“Estamos destruindo a natureza para o proveito de uma minoria” Segundo Dowbor.

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Entrevista Dowbor  –Agência Pública – Caio Costa, Thiago Domenici, José Cicero da Silva – Setembro /19

O diagnóstico é grave, mas Ladislau Dowbor nega ser pessimista. Brinca: “O pessimista é o otimista bem informado”, repetindo uma frase do economista Ignacy Sachs, com quem compartilha trabalhos e a origem polonesa. Para melhorar o cenário, Dowbor tem feito reuniões em um grupo que vai apresentar propostas no Economia de Francisco, evento convocado pelo Papa Francisco para discutir uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda”, nas palavras do comunicado do pontífice. O encontro será realizado em março de 2020 em Assis, na Itália. “Por isso o nome Economia de Francisco, de São Francisco de Assis”, explica o professor.

Grande crítico da financeirização, Dowbor estudou economia na Suíça, “com os melhores banqueiros”, e na Polônia. Foi consultor do secretário-geral da ONU (1980-1981) e atuou, pelas Nações Unidas ou assessorando governos, em países como Guiné-Bissau, Costa Rica, Nicarágua, Guiné Equatorial, Equador e África do Sul. Foi secretário da gestão Erundina em São Paulo e colaborou com o projeto Comunidade Solidária, do governo FHC, a convite da então primeira-dama Ruth Cardoso.

Anos antes, na ditadura, participou da luta armada, foi preso e torturado. Virou símbolo internacional da violência do Estado brasileiro ao denunciar, durante exílio na Argélia, ao lado de Miguel Arraes, as marcas da tortura que traz na pele até hoje. Diante de um presidente que ora nega essas práticas, ora exalta os que as praticavam, ele hesita, diz ficar “à procura de termos”. “É um boçal que encontrou um filão para mamar nos recursos públicos e que nunca fez porra nenhuma em termos de trabalho na vida”, conclui.

Sua maior preocupação, no entanto, são outros agentes “mamando” recursos em ritmo acelerado. Não por salários, mas pelo endividamento do Estado, das empresas e das famílias, como detalha em A era do capital improdutivo (2017), sua última obra. Ele aponta a financeirização como um problema global, mas afirma que no Brasil “atingiu níveis grotescos”, com grande influência na crise dos últimos anos. E vê no enfrentamento dos beneficiários desse fenômeno a raiz do impeachment de Dilma Rousseff.

Em longa entrevista, apontou exemplos de medidas que considera positivos nos mais variados países: China, Suécia, Suíça, Alemanha, Coreia, Inglaterra. No Brasil, criticou, entre outras coisas, as privatizações e a PEC do Teto de Gastos, e disse não ver “descontinuidade” entre os governos Temer e Bolsonaro. “A mudança é no discurso político”. Ele também tem duras críticas à Operação Lava Jato, para ele, “essencialmente uma alavanca política”, e defende que o verdadeiro combate à corrupção depende principalmente da maior transparência dos bancos.

Thiago Domenici – Começando por sua trajetória de estudante, militante contra a ditadura até chegar a economista, professor, escritor…

A minha área, essencialmente, é linguística. Mas eu decidi ir para a economia simplesmente para entender o que acontece. Esse sentimento de que há coisas que não se aceitam. E eu estudei na Suíça, com bons banqueiros, como se deve, mas quando voltei ao Brasil vi que eu estava na lista de procurados [pela ditadura] porque fiz um curso de russo em uma associação Brasil-União Soviética. Na mesma época, eu estava assistindo curso de literatura americana no Roosevelt Institute, mas eu era procurado porque era prova da ameaça soviética contra a qual os militares nos defenderiam e coisa do gênero. As coisas se enroscam.

Thiago Domenici – Que idade o senhor tinha?

Eu entro na luta armada com 27 anos, mas já tinha estudado economia, já tinha entendido o que é desigualdade, já tinha visto que pode ser diferente. A gente não sabe como as coisas se acumulam – e o momento em que as coisas rompem. Na época, tinha luta armada por toda parte: em toda a América Latina, a Guerra do Vietnã, que, para a minha geração, foi um negócio… Ver aquele bombardeamento químico que eles faziam com agente laranja. Era uma barbárie. E o golpe aqui, o papel eminente dos Estados Unidos. Na juventude, às vezes, quando você sente uma coisa escandalosa, você reage. O pessoal me contatou em Paris, vim aqui para a Vila Leopoldina e fui preso depois de dois meses em um negócio besta porque a gente precisava de carro – inclusive, devolvia [depois] porque era só para fazer uma operação. Mas, em uma dessa, fui preso pelo que viria a ser o Esquadrão da Morte, o departamento de automóveis, no Deic [Departamento Estadual de Investigações Criminais]. Éramos quatro, fomos massacrados de um jeito impressionante. É desumano. O impacto de longo prazo é o seguinte: você tem uma das coisas mais preciosas que é preservar os seus companheiros e você tem a dor absolutamente… Eles são profissionais, tem aparelhos elétricos, esse choque é um negócio… Eu inventei que tinha um buraco no [viaduto] Santa Ifigênia, que [por ali] eu recebia mensagens, coisas assim, e [fomos lá com] o Deic, na época tinha aqueles fusquinhas. A gente desceu porque eu ia mostrar para eles onde eu escondia as coisas, mas eu já tinha essa ideia, tentei me jogar em cima da Brigadeiro Tobias. Mas eles tinham me amarrado com uma corda, enrosquei, fiquei preso. É banal. Mas a morte é muito preferível àquilo que você passa.

Thiago Domenici – O senhor diz que a morte é preferível a ser torturado?

Sem dúvida. Junta-se a dor e junta-se o pavor de você entregar outra pessoa. Muita gente, dos torturados, tem dificuldade de superar esse processo. Na época, através de uma grana que passaram para um delegado de polícia, o Milton Dias, a gente depois conseguiu sair, ele liberou a gente. O Exército não chegou a saber. Aí eu voltei para a luta. Você diz: “Ah, o pessoal entrou na luta armada”. Bom, frente ao que eles estão fazendo você faz o quê? Abaixa a cabeça e aceita? Muita gente simplesmente não aceitava. Quando você tem mais de 10 mil pessoas que colocam a sua vida para tentar mudar as coisas, é muito amplo, é um processo. Levei dois anos de luta até ser preso de novo e depois ser trocado pelo embaixador alemão. E [na tortura] tive o serviço completo porque eles achavam que eu sabia onde estava o dinheiro, e, para enfraquecer a organização, era esse processo. Quando a gente saiu da prisão, denunciava a tortura e o governo dizia: “Não existe tortura no Brasil”. Aí saiu uma foto minha em uma revista alemã que mostrava um buraco de terceiro grau na minha canela – com o tempo de choque que você leva, os fios elétricos são enrolados em algodão e molhados em água para não deixar marca, e o tecido começa a se deteriorar. Esse buraco levou uns dez anos para se reconstituir. Isso é real.

Depois, na Argélia, quando eu conheci Miguel Arraes, a gente passou a fazer todo um trabalho de denúncia da ditadura. Aí a gente foi chamado pela Cruz Vermelha Internacional, fui pra Genebra junto com Apolônio de Carvalho, porque eles estavam interessados em promover, da mesma maneira que tem um direito do preso militar, um direito do prisioneiro político. Acabou não dando em grande coisa, mas ali… não é todo dia que sai de uma prisão um cara com feridas, com sangue escorrendo, mostrando: “Olha, é assim que a coisa funciona”. Então a gente tinha o Le Monde, Tribune de Genève, as televisões, e os militares [brasileiros] mandavam ministros lá para a Suíça para exigir que a gente fosse expulso. Fomos chamados pelo presidente do cantão de Genebra e fomos, eu e o Jean Ziegler, que depois escreveu A Suíça lava mais branco – e não é roupa, um baita de um livro, é um cara muito corajoso. E o presidente do Cantão disse pra gente: “Olha, é o seguinte: eu recebi a instrução de Genebra que eu devo expulsar vocês. Só que vocês vieram aqui a convite da Cruz Vermelha internacional. São convidados do cantão de Genebra. Eu respeito essa tradição e portanto eu peço a compreensão de vocês pelo seguinte: eu não vou encontrar vocês”. A gente esperou mais de uma semana até expirar o visto dando entrevista, passando na televisão que a polícia não encontrava a gente. Quando viajamos de volta para a Argélia, o escândalo era tamanho, naquela altura, que tinha um monte de jornalistas internacionais para receber a gente.

Thiago Domenici – Como o senhor vê hoje o revisionismo do presidente Bolsonaro em relação a esse período que o senhor viveu, foi torturado. Qual a percepção?

Eu acho uma bestialidade. É difícil, a gente fica à procura de termos. É um boçal, um boyzão, um cara que encontrou um filão para mamar nos recursos públicos, tem 26 anos de deputado e, agora presidente, nunca fez porra nenhuma em termos de trabalho na vida. Vive desse bate-boca. “Vou fazer”, “Vou acontecer”. E quando chega à Presidência está constatando que não funciona. Para o país não funciona e para o grosso da população não funciona. Eu acho que essa eleição é legal, mas não é legítima. O artigo 1o da nossa Constituição diz que o poder emana do povo. Ou seja, a representatividade está no centro. Isso é cláusula pétrea. Ele nunca teria sido eleito se o Lula tivesse concorrendo, se não o tivessem impedido dois meses antes da eleição. Ninguém no mundo acredita na corrupção do Lula, e ele nunca teria sido eleito se não fosse a facada.

Agora, uma coisa é personagem; outra é que para um conjunto de forças interessa muito ter um presidente fraco. Deixa ele falar da mulher do Macron, falar qualquer besteira, mas estão se apropriando do petróleo. Estão se apropriando da Amazônia. Estão se apropriando da terra. Estão se apropriando da Embraer, o que é um escândalo. Curiosamente, aqui você se apropriar de recursos públicos que estão dando lucro, vender por uma merreca, chama privatização. Eu bato tua carteira, eu sou um ladrão; o cara com grande recurso se apropria do negócio pagando menos do que o lucro de um ano e você chama de privatização. Mas aí há muito interesse. Interesse americano em torno do petróleo. Você não tem um país com petróleo que não esteja em situação ameaçada. Eu estive agora em Angola, a pedido deles [angolanos], e um deles me falou da maldição do petróleo porque, no país de frágil governança, o sistema de interesses internacionais é muito grande. E nós estamos aí, em nome da pátria amada, entregando o país a interesses internacionais, os mais escandalosos. Não é só uns bestas que se reúnem lá no Congresso. Ter acesso à soja barata, madeira barata e carne barata, isso está na mão, em particular no Brasil, do Blackstone. O Blackstone é o maior grupo de traders do mundo. Dizer que é nossa soberania e entregar esse negócio para os traders internacionais…

Caio Costa – Trazendo para o senhor o que disse o leitor que sugeriu o seu nome na enquete: “Eu quero ouvir a opinião do professor sobre a relação entre a desigualdade, o avanço do setor financeiro e o crescimento desses governos de ultradireita”. O senhor pode comentar?

Em julho agora [fui] chamado para uma reunião na Europa com 23 pessoas, tinha Harvard, Stanford, Oxford, London School of Economics, Paris, Sydney, Estocolmo. Pegaram a nata. Obviamente, também interessados no fenômeno Bolsonaro porque estavam estudando a loucura que é o governo da Polônia, o fundamentalismo religioso em um país que, em termos econômicos, ia bem, 16 anos de crescimento 4% ao ano. Você pega Erdogan na Turquia, pega Duterte nas Filipinas, pega na Argentina… a discussão básica era o seguinte: no que foi a democracia liberal não se atingiu os grandes interesses, mas se conseguia uma classe média razoavelmente à vontade, não se esquecia uma metade lá embaixo. Então, eu vejo muito uma ligação de uma base da sociedade que sabe perfeitamente que poderia ter uma clínica decente para a mulher dele parir, poderia ter uma escola decente pro filho, e que não está aceitando mais as coisas. E aí há uma rejeição da política, mas [ao mesmo tempo] você tem uma indústria de opinião pública que entendeu que é muito mais produtivo, em termos eleitorais, mobilizar o ódio do que discutir programas. A gente vem com discussões na cabeça e os outros vão para o estômago, para o fígado. Em uma das apresentações [na Europa], uma das pessoas dizia: “Quando você gera insegurança e desinformação na base da sociedade, isso muito rapidamente se transforma em ódio. Você vê que não há racionalidade política, nem na eleição do Trump, nem no Brexit, nem na Hungria, e é compreensível. Todos esses são eleitos como antipolítica, e curiosamente o denominador comum é a pátria, Jesus e a família. Só que isso foi transformado, hoje, em uma indústria de marketing político extremamente poderosa. Não é só o Cambridge Analytica, é o negócio que atinge um nível de manipulação em que não há legitimidade, porque nós não podemos dizer que o presidente eleito representa o país. Você não tem essa base que é o objetivo do artigo 1o [da Constituição]. Eu acho que é uma deformação fundamental no processo de ter reduzido a democracia ao fato de ter eleições. Isso não é democrático.

Thiago Domenici – A democracia brasileira foi reduzida às eleições?

Para dar um exemplo, o sueco médio participa de quatro organizações comunitárias em seu país; da totalidade dos recursos públicos, uma carga tributária elevada a mais de 50%, 72% vão para o local. O governo central é pequeno, cuida de relações internacionais, políticas tecnológicas de longo prazo, coisas do gênero. A democracia é de rédea curta. Você tem regularmente reuniões da comunidade, consultas. Veja as consultas na Suíça. Então, você tem uma democracia no cotidiano. Não é o show eleitoral uma vez a cada quatro anos. Você tem que dar espaço para que os interesses da população se manifestem efetivamente. Estive três vezes na China – eles me chamaram para traduzir livros –, e a China é ainda mais descentralizada que a Suécia. O governo central é pequeno e com grande capacidade de força política de orientação geral. Cada cidade resolve-se através de um sistema muito complexo de consultas. O sistema brasileiro é centralizado. O dinheiro que chega aos municípios, que é de espaço de decisão dos municípios, é de cerca de 13%. Você vai ter um ministro com uma fila de prefeitos tentando conseguir alguma coisa na antessala. Depois ele vai ver o deputado da região pra ver se o cara usa a emenda parlamentar, que é assim um negócio de corrupção escandaloso, pra ver se o cara vai dar o quê pra ele? Um viaduto porque ele está interessado na empreiteira que financiou [sua campanha]. São 5.570 municípios diversificados, como o ministro vai saber do que [cada um] precisa? Em termos de função management é disfuncional. Pega Coreia, pega China, Alemanha, por exemplo. Na Alemanha, o sistema financeiro é local, caixa de poupança local. Você junta com o fato de que grande parte dos recursos federais é repassada diretamente para os municípios com as poupanças, que também servem ao município. Você tem uma coincidência entre a democracia econômica e a democracia política. E funciona. As pessoas se sentem donas do seu destino. Isso aqui não tem como funcionar.

Caio Costa – Você falou que lá funciona porque a democracia econômica, a democracia política são descentralizadas e atendem aos municípios. E aqui é o contrário? As duas coisas são centralizadas, a parte com o sistema financeiro…

As duas coisas são centralizadas. Porque, se você não tem o acesso ao recurso financeiro, você é obrigado a ir buscar recursos, e, quando você é obrigado a ir buscar recursos no centro, você vai comer na mão de quem tem a grana. É um problema estrutural tamanho! Veja que nos Estados Unidos, durante muito tempo [a descentralização], funcionou. A riqueza dos Estados Unidos não é à toa. Os Estados Unidos eram extremamente descentralizados. Os bancos eram locais. Coisa que a gente via nos [filmes] bang-bang: todo mundo assalta um banco local. Um banquinho local ali, de qualquer parte do Texas, em que o cara tem as poupanças da população local e decide: “Não, vou aplicar lá em não sei onde”. A área financeira não é um setor, nem uma área. É uma dimensão que te permite decidir se você faz saúde ou abre uma estrada. Que dizer, você segura a decisão, o conjunto das decisões.

Thiago Domenici – Nesse exato momento, está sendo discutida a questão do teto de gastos, que o senhor já criticou bastante. Como o teto de gastos brasileiro seria encarado nesses países que têm esse modelo democrático de que o senhor falou? Isso seria cabível?

Esse teto de gastos é visto como uma aberração jurídica. É um crime em termos sociais e é uma aberração econômica. Tem um negócio básico e simples de entender que é o seguinte: o país que funciona não precisa de cálculos complexos, prioriza o bem-estar da família. Você pega a China, o Canadá, a Alemanha, a Suécia. Esse é o eixo. Primeiro você assegura que, enquanto cresce a produtividade, você tem aumento de rendimento da população. E um sistema tributário que traz bastante dinheiro para baixo. Quando você aumenta a capacidade de compra das famílias – porque o grande pacto é o bem-estar das famílias, mas não só –, você aumenta o mercado das empresas. A empresa não precisa de discurso ideológico, precisa de mercado para quem vender e crédito barato para poder comprar as máquinas. No Brasil, não tem nem uma coisa nem outra. Hoje, no modelo atual. Mas, quando você tem essa dinâmica que parte do consumo das famílias, a ordem de grandeza é 60% da economia. Esse motor dinamiza as atividades empresariais, que geram mais emprego. Por exemplo, passamos de 12% de desemprego em 2002, baixamos para 4,8%, alguma coisa assim, em 2010. E você tem imposto sobre o consumo, gera receita para o Estado. No Brasil, as empresas vão trabalhando com 65%, 70% da capacidade, você tem aí uma imensa capacidade ociosa. Então não gera inflação. Porque, quando você tem demanda, você tem imediatamente a resposta. Você gerou receita sobre a produção para o Estado e receita sobre o consumo, a conta fecha. Se você olha a conta pública, em nenhum desses anos que o Banco Mundial chamou de “Golden Decade” tem déficit. Você tem, pelo contrário, superávit. O superávit, por sua vez, permite uma outra dinâmica, que é o Estado – aqui é mais ou menos um terço da economia que o Estado financia – [financiar] o consumo público, que a gente chama de salário indireto: SUS, educação, as universidades federais etc. Melhora muito o bem-estar das famílias; portanto, ele se soma com aquele negócio da renda. E do outro lado você tem como financiar infraestrutura, que melhora a produtividade das empresas. Então, o sistema que funciona é isso aí. Aqui o pessoal entende pouco, ou não quer entender, fala sempre de como estão os preços das commodities. O fato é que, com um país do tamanho do Brasil, que exporta 200 bilhões, isso [exportação de commodities], aqui, é uma merreca. Dá 11% do PIB; 89% do PIB no Brasil é mercado interno. Então, [a exportação de commodities] ajuda, mas não é decisivo. Por que funcionou durante a tal da Golden Decade? Porque isso funciona. Funciona na China, funciona na Coreia, funciona em Taiwan, com diversidade política profunda, mas a mecânica é essa. Aqui se enforcou as famílias basicamente pelo endividamento. Se enforcou as empresas pelo endividamento. Eu tive uma conversa com o Lula e ele dizia: “Não, Ladislau, a empresa vai entrar no rotativo do cartão?”. Bom, não soube responder, eu ia chutar. Voltei pra casa, olhei, consultei no Banco Central como entra o rotativo do cartão pagando, na época, 485%. Aqui não funciona. Quando o [Benjamin] Steinbruch vem pro Estadão e escreve ali “não dá pra fazer funcionar uma economia pagando 300% [de juros].

Por que você põe um teto de gastos? Para manter o fluxo da parte dos impostos que é transferida para os bancos. Juros sobre a dívida pública. Que chegou, por exemplo, em 2015, a R$ 500 bilhões. Lembre que o Bolsa Família, que tirou 56 milhões de pessoas do buraco, custa R$ 30 bi. Agora, claro, você tem que somar as outras coisas. A evasão fiscal está na parte de R$ 600 bi. Isso dá 20 [programas] Bolsa Família. O dinheiro lá fora, o tal dos US$ 520 bilhões, dá R$ 2 trilhões, dá um terço do PIB quase, 30%. Isso aqui é aritmética, não tem mistério nenhum. Não tem ideologia nenhuma. Eu fiz esse cálculo para vários países pela ONU. Você tem grandes títulos nos jornais: “Os juros subiram”. Que juros? [A taxa] de juros básica é completamente diferente da [taxa] de juros que você vai cobrar das famílias, que você vai cobrar dos crediários.

Caio Costa – No seu trabalho, você fala justamente desse setor financeiro drenando cada vez mais o Estado, as famílias e as empresas. Quem exatamente ganha com isso e por que você chamaria de capital improdutivo?

A chave é o seguinte: o PIB mundial aumenta em média 2,5% ao ano porque tem que produzir bens e serviço, dá trabalho. O rendimento financeiro nos últimos 20 anos está entre 7% e 9%. Onde o cara vai colocar o seu dinheiro? Você vê a quantidade de empresas industriais e pode ter um diretor de produção no conselho de administração que diz: “Vamos comprar máquinas e abrir mais não sei o quê”, e o diretor financeiro diz: “Meu amigo, vamos ganhar dinheiro? Comprar título do governo?”. Quando se torna mais interessante para os agentes econômicos fazer aplicações financeiras do que investir, você tem um problema.

Na realidade, o que está acontecendo no planeta é o seguinte: o dinheiro, a partir dos anos 1990, deixa de ser uma coisa que você imprime e passa a ser uma coisa que o banco emite – qualquer banco privado emite dinheiro. E com alavancagem podem emitir muito mais do que têm em reservas. Quando o dinheiro vira apenas o sinal magnético que gira na velocidade da luz, as capacidades de controle do governo e o Banco Central, de um Ministério da Fazenda e coisa do gênero ficam extremamente limitadas.

Thiago Domenici – A gente está com nove meses de governo Bolsonaro, de Posto Ipiranga, no caso, o Paulo Guedes. Como o senhor caracterizaria a política econômica do governo Bolsonaro?

Você tem um sistema que hoje está funcionando dessa maneira em muitos países, o que a gente chama de financeirização. Não é só o Brasil. Mas no Brasil atingiu um nível grotesco. Na realidade, essa política consiste essencialmente em favorecer os grandes grupos financeiros, os bancos, as pessoas que têm grandes aplicações financeiras. Nós somos acostumados a pensar a desigualdade e a exploração através da exploração salarial – o que todo mundo leu –, mais-valia etc. Agora, à medida que foi se passando dinheiro – 2004, 2005, 2006 – para o andar de baixo, eles foram aumentando as taxas de juros e chupando isso de volta. Então, você tem um sistema de exploração, através do endividamento e através de taxas de juros, que vai atingir justamente as famílias, as empresas e o Estado. Eu vejo a crise, a mudança radical das políticas a partir de 2014, e não a partir de 2016. Portanto, são cinco anos de uma política que “estão consertando”. Eu não vejo descontinuidade entre Temer e Bolsonaro; é uma descontinuidade política, no sentido de tipo de discurso, mas veja que interessante: o Temer governa dois anos fazendo teto de gastos, fazendo um monte de coisas pavorosas para o futuro do país, e não teve nenhum problema de governar com 4% de apoio. Ou seja, a máquina superior, que pega um segmento desse Congresso, um segmento do Judiciário, o apoio da mídia e o apoio dessa classe média alta e classes dirigentes, que essencialmente vivem de rentismo financeiro, tem uma força que o apoio popular… O Temer governou dois anos com 4% de apoio.

Thiago Domenici – O senhor está dizendo que o sistema financeiro era o que segurava o Temer no poder?

Sem dúvida.

Caio Costa – Quem era o principal interessado em medidas como o teto de gastos?

Em 2015, dos impostos que a gente pagou para o Estado, R$ 500 bilhões foram essencialmente juros pagos sobre a dívida pública. Para você transferir tanto dinheiro público para os interesses financeiros, você não pode ao mesmo tempo financiar o SUS. Então você faz o teto de gastos. Você está trancando um conjunto de gastos porque você tem que satisfazer [o setor financeiro]… Aí você vai ver os detentores da dívida. Essencialmente os bancos, mas nunca é só o banco, porque eu conversei com gente de classe média ou classe média alta que diz: “Meu, mas eu tenho dinheiro aplicado. Se baixar os juros, eu tô ferrado”. Por que você divide a sociedade, não só quem é patrão, burguês ou quem é operário, enfim, a visão século 19 ou 20 ou o que seja. Mas você tem a parte da sociedade que tem interesse em juros altos, porque ganha sobre o dinheiro, e a parte que está ferrada com os juros altos. Então, isso envolve não só os bancos, mas os grandes aplicadores financeiros, inclusive os fundos de pensão. A diferença básica é que o rico tem dinheiro aplicado, e esse dinheiro rende e a fortuna dele se multiplica. O pobre não consegue fechar o mês e, em geral, está endividado. Essa política gera uma transferência de uma massa de recursos de 1 trilhão; 1 trilhão de reais dá 16% do PIB. Eu acrescento 6% do PIB, que é juros sobre a dívida pública, dá 22%. O que nesse sistema financeiro retorna à economia real é de 10%. É uma economia que está vazando e você tem um desestímulo à produção. Eu vi recentemente a citação de um empresário importante, não lembro o nome: “Tá certo que tá mais barato eu contratar, mas para que eu vou contratar se eu não tenho para quem vender?”. Simples assim.

 

José Cícero da Silva/Agência Pública – O economista Ladislau Dowbor foi escolhido pelos Aliados da Pública para a Entrevista do Mês.

Caio Costa – O senhor pode falar mais das medidas tomadas até aqui pelo governo Bolsonaro?

A lógica básica dos mais variados projetos que eu acompanhei – eu também não estou assim pendurado nas últimas besteiras que fazem – é essa. Você segue o dinheiro. No Brasil, dezenas de milhões já pagaram três, quatro vezes a dívida e continuam ferrados, [o banco] continua mamando. Zygmunt Bauman escreve: “O banco detesta bom pagador”. Bom é ter um cara que está ferrado e que está passando 25%, 30% do seu salário todo mês para o banco, gerando uma dívida que não acaba. Você pega a Inglaterra, por exemplo, que fez uma lei antiagiotagem em janeiro de 2015 que [determina] que de ninguém se pode exigir pagar mais do dobro daquilo que pegou [de empréstimo]. O cara pegou mil libras, pagou as mil libras, mas tem os juros e porque atrasou tem uma multa… pode, mas chegou a 2 mil está liberado.

Caio Costa – E o senhor defende que esse endividamento da população está nas raízes da crise econômica, certo? Por causa das famílias endividadas, o consumo cai e isso gera a crise econômica que a gente observou no Brasil nos últimos anos.

Isso aprofunda. Em março de 2003, o estoque de juro de dívida das famílias era tipo 18%, ou seja, 18% da renda era a dívida que eles tinham. Quando você chega a 2012, está passando de 40%. Durante os governos Lula e Dilma, há um aumento sistemático das diversas formas de recuperação do dinheiro transferido [para as camadas mais pobres] através do cartão de crédito, através dos juros sobre os crediários, através das diversas formas de juros. Então, isso foi paralisando a economia. O Guido Mantega é um cara extremamente competente, não é nenhuma besta, e fez o negócio funcionar. O drama foi político; na realidade, porque quando, em 2012, o [endividamento das famílias] começa a travar a economia, o que faz a Dilma? A Dilma vai pra luta. Baixa a taxa Selic, vai pra 7,5%. Baixa os juros no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal. E há uma migração [para os bancos públicos]. Você entrou em guerra com um setor que tava mamando que é uma beleza. E ela não tinha força política correspondente porque não é só o banco, é também os que estavam [lucrando], a classe média alta – e esses juízes têm gordura grande, também estão ganhando com isso [dívida pública]. Então, para eles, ela está quebrando a economia.

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Thiago Domenici – Você acha que é isso [enfrentar os bancos] que fez a Dilma cair?

Não tenho nem dúvida. Ela baixa esses juros de 2012 para 2013. Em junho, você tem as gigantescas manifestações. Ela é reeleita em 2014, como eles disseram, “pode ser reeleita, mas não vai governar”. E não governou.

Caio Costa – E a partir daí ela toma medidas para tentar agradar a esses setores?

Exatamente. Ela tenta… porque é uma relação de força. Você, presidente, não tem controle do Congresso, não tem o controle da mídia, não tem o controle do Judiciário. Você tem um segmento do Executivo, porque no próprio Executivo, para você fazer alguma coisa no Congresso, você tem que ter nomeado gente das diversas áreas. Então, se tivesse uma mídia forte, uma BBC ou um New York Times da vida, você tinha uma força explicativa na sociedade.

Thiago Domenici – Teve erros de trajetória econômica?

Olha, eu acho que a derrubada vai por partes, porque é um processo. Começa em 2013 e termina em 2016, ou seja, é um negócio longo. Tem o processo de manifestações, boicotes, um conjunto de travamentos por toda parte. Você tem a Lava Jato, que desestrutura uma série de atividades econômicas, em particular as infraestruturas. Você tem a Odebrecht. Eu aprecio muito os trabalhos do Jessé [Souza] quando ele pega a dimensão, digamos subjetiva, de geração do ódio, das madames que se sentem indignadas – de repente elas têm que registrar a empregada. É um negócio importante, o Brasil tem esses 7 milhões de empregadas domésticas. Toda essa classe média brasileira está educada em um sistema assim. A herança, o sentimento de superioridade, isso é muito forte… Claro que, quando você atinge um bolso do pessoal que tava mamando sem produzir, você abriu a porteira. Mas todo o sistema, inclusive, hoje, a indústria da opinião pública, navega nisso.

Thiago Domenici – O senhor está falando da opinião pública e eu queria pegar um tópico que tem a ver com a questão das privatizações, porque na época do Fernando Henrique Cardoso era um debate público muito forte, e isso também aparece nos governos Lula. O privatista e o não privatista. Como isso é retomado no governo do Bolsonaro?

Nós somos sociedades complexas demais para ter um esquemão: sou de direita, privatizo; sou de esquerda, estatizo. Você dizer: “O Estado é corrupto, portanto, vamos pôr nas mãos privadas”. [Mas] quando você está transferindo bens públicos a um preço que é mais ou menos equivalente a um lucro de um ano, quando você coloca em mãos privadas empresas lucrativas ou estratégicas para um futuro tecnológico, como a Embraer, isso é bandidagem pura. Isso é acordo para favorecer os lucros. Não tem outra explicação possível. Eu trabalho há um tempo, junto com Ignacy Sachs, com o conceito de economia mista. Lembro que ele trabalhava na Nicarágua, que estatizou os bens do Somoza depois da derrubada da ditadura, e cortava cabelo porque o Somoza era dono de salões de beleza, barbearias. Você não fica mais socialista porque tem um funcionário público que está te cortando o cabelo. Na realidade, é bom senso. O sistema privado funciona onde você tem muitos produtores e tem concorrência de mercado. Mas não vai funcionar para grandes setores como saúde, como educação, onde você não tem o que [Joseph] Stiglitz chamou assimetria de informação. Um médico me diz: “Olha, tem que operar esse menino. Eu recomendaria tal médico, só que ele cobra por fora”. O que você faz? Você raspa a gaveta e paga. Usar “mercado” para essas áreas é besteira.

Thiago Domenici – São setores essenciais que o mercado não deveria mediar, né?

Exatamente. Saúde, infraestruturas e, no mínimo, o equilíbrio, um sistema misto nas áreas da intermediação. Já educação é pública, universal, gratuita. Não tem como. É olhar os avanços da Coreia do Sul, um milagre. As transformações do Japão a partir de 1868: ele sai do sistema feudal em 1868 e em 1900 não tem mais analfabeto. No mundo, o investimento na educação é investimento. Aqui, é gasto.

Caio Costa – Por falar em educação, no seu livro o senhor fala de algumas capturas do sistema financeiro: da captura da mídia, captura da Justiça, captura da opinião pública e captura da produção acadêmica através dos sistemas de financiamentos. Você poderia explicar um pouco melhor como funciona isso?

Hoje, nós temos pesquisas internacionais muito fortes sobre sistema. Nos Estados Unidos, são 15 mil cientistas que se recusam a publicar em revistas indexadas dos grandes grupos, do oligopólio mundial da academia. O ponto básico é o seguinte: o conhecimento se tornou o principal fator de produção. Meu celular pode ter 5% de trabalho físico e matéria-prima. O valor dele é conhecimento incorporado. A partir dos trabalhos do [Jeremy] Rifkin, a gente entendeu a que ponto isso transforma o planeta. Porque no século passado, era industrial, se eu te passo o meu relógio, eu deixo de ter um relógio. Agora, se eu te passo uma ideia, eu continuo com ela. Um exemplo prosaico é quando a Pastoral da Criança desenvolve o soro fisiológico, sobretudo para crianças desnutridas, que salvou milhões de crianças. Não patentearam. Está sendo usado em Angola, em Moçambique, por um monte de lugares, porque o conhecimento pode se espraiar sem tirar pedaço de quem o produziu. Estou desviando da sua pergunta, que é…

Caio Costa – Justamente sobre a captura da academia.

A produção científica gerou uma indústria, não só a indústria do diploma, mas gerou uma indústria do controle do conhecimento em que você está controlando não a educação, mas o núcleo da atividade econômica, que é o acesso ao conhecimento. Quando você tem a Economist fazendo um artigo de fundo dizendo que o sistema de patentes não mais favorece o progresso científico, mas o trava; quando você tem [Joseph] Stiglitz escrevendo a mesma coisa… Porque é assim. A motivação de um cara – pega o Pasteur, o gigantesco avanço nas vacinas que ele permitiu – não era quanto ele ia ganhar. Não funciona assim. A pesquisa vem do setor público, e não só usam isso como patenteiam e, ainda por cima, não pagam impostos.

Thiago Domenici – Mas isso que o senhor está falando tem a ver com a lógica do lucro. Todo esse sistema é voltado para a lógica do lucro, que não pensa coletivamente, enquanto o senhor fala em colaboração. O senhor é pessimista?

Não. Eu não sou pessimista. Para você entender melhor. Numa entrevista na TV, junto com o Ignacy Sachs, apresentando essas imagens, a moça disse: “Mas isso é uma visão pessimista”. O Sachs saiu com uma pérola. Ele disse: “Minha amiga, o pessimista é um otimista bem informado”. Na realidade, eu tenho uma amplitude de informação que se deve em parte pelas línguas, em parte por ter trabalhado em organizações internacionais e em parte por ter trabalhado na Ásia, na África, na Europa, na América Latina. Tem uma certa diversidade. E eu acompanho os dados que a gente chama de megatrends. A expressão francesa é muito forte, chama tendance lourde, uma tendência que tem inércia muito grande. Então, por exemplo, a gente pode se saracotear, fazer o que quiser sobre o clima, mas 2050 está dado porque é uma tendência. A tendência demográfica? 2050 está dado. Claro que a gente vai poder variar, um pouco mais, um pouco menos. À medida que você se distancia, a precisão diminui mais. Mas, se eu pego a mudança climática, a acidificação dos oceanos, a liquidação da cobertura florestal, a perda de solo fértil, a contaminação da água doce, a perda de excesso de água doce, o derretimento das geleiras do Himalaia, que alimentam a produção de cereais da maior concentração de população do mundo… E se eu vou pegando, de um lado, a dimensão ambiental e, do outro, a dimensão social, você tem uma volta ao distanciamento da desigualdade que está gerando outro conjunto de danos, e cada vez menos sustentável. Nós estamos indo, em termos de ritmo histórico, de maneira extremamente acelerada para um desastre. Nós estamos fazendo funcionar a economia destruindo a natureza para o proveito de uma minoria. Não funciona nem para a população nem para a natureza. Isso aqui já era. O [papa] Francisco não é besta, porque ele chama o Stiglitz [Joseph, Nobel de Economia], chama gente de primeira linha mundial, para repensar a economia. Chamou de Economia de Francisco. Eu fiz um primeiro documentinho de proposta.

Thiago Domenici – O senhor pode explicar isso melhor?

O papa fez um chamado mundial dizendo que a economia destrói o meio ambiente, gera miséria, não está funcionando; enfim, e não só, nós temos que mudar o conceito de economia. Ele chamou uma reunião de 26 a 28 de março do ano que vem em Assis, porque é são Francisco de Assis, e chamou isso de Economia de Francisco. Não dele, mas de são Francisco. Ele está apelando para o mundo se interessar e trazer aportes para essa reunião. Nós temos uma rede, no Brasil todo, discutindo o que seria uma outra economia. Tem gente de diversas universidades, diversos movimentos sociais. Nessa semana ou na semana que vem, vamos ter um blog para o movimento. Esse papa é muito esperto. Ele pegou um negócio que é de uma evidência… Não está funcionando, gente.

Thiago Domenici – Quer dizer que o papa quer peitar os grandes grupos financeiros mundiais. É isso, professor?

Você viu a tomada de posição dos 181 grupos mundiais? É interessante. Basicamente, são presidentes de 181 empresas de primeira linha mundial – Amazon, JP Morgan, Chase, Johnson & Johnson, Apple – que assinam o texto de cinco parágrafos dizendo que eles estão abandonando o conceito básico de neoliberalismo, ou seja, a visão do Milton Friedman de que a empresa tem que gerar lucros para os acionistas e que essa é a missão. A missão é essa também, mas, a longo prazo, uma visão construtiva da base produtiva tem que respeitar a dimensão ambiental, a dimensão social. Inclusive dos fornecedores das empresas. Interessante, mas a gente tem uma certa prudência de ficar aplaudindo. Vocês viram a multa da Johnson & Johnson? US$ 272 bilhões por venda de opióides. Isso é uma barbárie. Só nos Estados Unidos, o que a Johnson & Johnson está vendendo causou 400 mil mortes.

Thiago Domenici – Eu tenho uma última questão, sobre a economia da uberização, dos aplicativos. Esse formato que me parece muito mais predatório do que outros formatos de exploração trabalhista. Como o senhor vê esse movimento da uberização?

Eu não trabalho com o conceito de indústria 4.0. Acho que é uma bobagem. A mudança é muito mais profunda. Nós tivemos uma era muito longa em que a humanidade dependia da agricultura, feudalismo, escravidão. Tivemos dois séculos de indústria em que o principal era a fábrica, a máquina etc. Propriedade privada, bem físicos. E temos agora um sistema completamente diferente em que o principal fator é o conhecimento, não mais a máquina. O conhecimento eu compartilho. Ou seja, a propriedade privada, que é a base do capitalismo, deixa de ser essencial. Isso aqui está indo pra outro modo de produção, as relações de trabalho estão mudando. [Na uberização] é um cara que só é remunerado quando aparece uma tarefa. O Robert Reich, que foi ministro do Trabalho do Clinton, escreveu um livro que chama O futuro do sucesso. Está traduzido. E ele basicamente traz a ideia seguinte: a relação de emprego terá durado 150 anos e está indo embora. Então, você tem as diversas dimensões. Quando a economia passa a ser um sistema não baseado em indústrias, em máquinas, operários em volta, mas em plataformas de gestão, elas se transformam no que a gente chama de monopólios de demanda. Não adianta você fazer um uberzinho porque só funciona quando todos usam aquele mesmo [aplicativo]. Não adianta dizer: “Não gosto do x, vou fazer outra coisa”, porque ninguém usa. Sou obrigado a usar o que os outros usam. Esse capitalismo de plataforma está transformando radicalmente porque permite que você cobre, por exemplo, R$ 30 ao mês de 800 milhões de pessoas pelo mundo afora – a economia baseada em plataformas, em exploração por tarefas e com imensa capacidade microexploração de milhões de pessoas. Isso gera uma outra dinâmica. Claro, como tem a exploração, a gente chama de capitalismo. A forma de exploração se desloca do salário para sistemas, porque o dinheiro também se torna imaterial. O André Gorz publicou um livro muito interessante que chama O imaterial. A economia imaterial, a economia baseada em conhecimento, na conectividade imediata planetária. Possibilidade de controle de todas as pessoas, individualizadas por algoritmos. O que está se gerando – e ninguém tem garantia que vai ser melhor – pode ser um negócio monstruoso. Mas como o principal fator de produção é um fator de produção cujo uso não reduz o estoque, pelo contrário, multiplica, também abre para uma sociedade colaborativa planetária. Claro que a gente não tem a mínima ideia de como vai ser estruturado.

Caio Costa – Uma última pergunta, que tem um pouco a ver com a questão que você falou, de certa maneira, da captura do Judiciário. Mais especificamente, eu queria saber a opinião do senhor sobre a Lava Jato no sentido dessa disputa de capital produtivo e capital improdutivo. Da maneira que ela lidou, por exemplo, com os bancos e da maneira que ela lidou com as construtoras.

Eu vejo a Lava Jato essencialmente como uma alavanca política. Você combater a corrupção é uma coisa. Você usar politicamente a corrupção… Eu vi isso com Vargas, vi isso com Goulart. Eu vi isso em carradas de países. A única diferença da Odebrecht relativamente à Halliburton, ou qualquer uma das grandes construtoras mundiais, é a porcentagem que se põe no bolso. O problema do conceito de Lava Jato é que você persegue os corruptos, você não desestrutura a corrupção. A gente sabe perfeitamente como se acaba com a corrupção. É transparência. Quando você prende um corrupto e mostra na TV, você tem uma catarse da nação – “Pegamos o corrupto!” –, e o uso disso é profundamente perigoso. A gente sabe perfeitamente como reduzir drasticamente a corrupção. Por que a Dilma fez a Lei da Transparência em 2011, que abriu, inclusive, possibilidade que estão sendo usadas? Se você obriga os bancos a darem transparência sobre as suas transações, se você abre os computadores do sistema público – o que legalmente é absolutamente viável hoje por essa lei –, você tem como restringir radicalmente. Sempre vai ter a pequena corrupção. O cara que vai soltar uma grana porque queimou o farol e o policial… Agora, a grande grana é conhecida pelos bancos e é conhecida pelo andar de cima. A informática permite você identificar os fluxos de corrupção significativa. Como você tem um ministro que foi cofundador do Banco Pactual? O Banco Pactual tem 38 filiais em paraísos fiscais. O que é dinheiro em paraíso fiscal? Dinheiro de corrupção, de evasão fiscal e de lavagem de dinheiro, de droga ou do que seja. O Global Financial Integrity calculou quanto tem de prejuízo para o Brasil nas fraudes de notas fiscais de exportação. Dos anos 2011, 2012 e 2013, dá uma média de US$ 35 bilhões por ano. Dá mais ou menos R$ 140 bilhões e praticamente cinco Bolsa Família. O Tax Justice Network consegue ter os dados do nosso dinheiro lá fora. O Global Financial Integrity consegue saber quanto tem que… e aqui o Judiciário não consegue?

Na realidade, eu não tenho nenhum dado que corrobore isso, mas na lógica como funcionam as coisas. É óbvio que a Halliburton, que está muito presente aqui no Brasil, está imensamente interessada na desestruturação da Odebrecht. A Halliburton é o grupo que empurrou os Estados Unidos para a Guerra no Iraque. Herdou praticamente todos os contratos de reconstrução. Dizer de repente: “Uh, Odebrecht. Meu Deus, são corruptos”. Escrevi um livro em 1998, A reprodução social, em que mostro como funciona a corrupção das empreiteiras. Não há nada de novo nesse processo. Quando você transforma isso na campanha anti-PT para prender o Lula e coisa do gênero, mais ninguém no mundo acredita. Eu conheço suficientemente o Lula para saber que ele dá muito mais importância a si mesmo do que a uma grana no bolso. Não é todo país que tem o Lula.

Thiago Domenici– O senhor chegou a visitar o Lula na prisão?

Não visitei. Eu participava de reuniões com economistas, coisa do gênero. Sempre houve no próprio PT dificuldade de entender a exploração através da taxa de juros. É curioso isso. As pessoas têm dificuldade de entender como funciona a taxa de juros. Nós temos um problema de cultura porque no Brasil nunca ninguém teve aula de como funciona a moeda. Agora, a incompreensão é agravada pelo fato que apresentam juro ao mês. Juro ao mês não existe. Ninguém consegue fazer um cálculo com juros composto. Até o meu irmão que estudou politécnica acha que juros de 2% ao mês dá 24% ao ano. Eu sei fazer o cálculo certo. O cara que vai nas Casas Bahia fazer aquela compra do fogão. O fogão de R$ 420 à vista [sai por] R$ 840 a prazo. Saiu da fábrica a R$ 200, puseram 40% de imposto, vai pra R$ 280. Mesmo vendendo à vista, ganha um dinheirinho, mas na prática, pelo fogão que sai a R$ 200 na fábrica, a população paga R$ 840. É uma economia dos intermediários. Que não funciona.

“A desigualdade é ideológica e política”: extratos do novo livro de Thomas Piketty

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O economista francês publica, nessa quinta-feira, 12 de setembro, pelas edições Seuil, Capital e Ideologia, um livro que investiga a formação e a justificativa das desigualdades. Le Monde publica alguns extratos.

Após O Capital no Século XXI publicado em 2013 e que vendeu 2,5 milhões de exemplares em todo o mundo, Thomas Piketty, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor da École d’Économie de Paris, além de cronista no Le Monde, publica, nesta quinta-feira, 12 de setembro, Capital et Idéologie (Seuil), um livro de investigação sobre a formação e a justificativa das desigualdade de mais de 1.200 páginas.

O texto é de Thomas Piketty, publicado por Le Monde, 04-09-2019. A tradução é de André Langer.

A desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política. Esta é, sem dúvida, a conclusão mais óbvia da investigação histórica apresentada neste livro. Em outras palavras, o mercado e a concorrência, os lucros e os salários, o capital e a dívida, os trabalhadores qualificados e não qualificados, os nacionais e os estrangeiros, os paraísos fiscais e a competitividade, não existem como tais. São construções sociais e históricas que dependem inteiramente do sistema jurídico, fiscal, educacional e político que escolhemos estabelecer e das categorias que escolhemos criar. Essas escolhas referem-se, primeiramente, às representações que cada sociedade se faz da justiça social e da economia justa e às relações de poder político-ideológicas entre os diferentes grupos e discursos presentes. O ponto importante é que essas relações de força não são apenas materiais: são também e acima de tudo, intelectuais e ideológicas. Em outras palavras, ideias e ideologias contam na história. Elas permitem permanentemente imaginar e estruturar novos mundos e sociedades diferentes. Múltiplas trajetórias são sempre possíveis.

Esta abordagem difere de muitos discursos conservadores que visam explicar que existem fundamentos “naturais” para as desigualdades. De maneira pouco surpreendente, as elites das diferentes sociedades, em todas as épocas e em todas as latitudes, têm a tendência de “naturalizar” as desigualdades, ou seja, tentam dar-lhes fundamentos naturais e objetivos, de explicar que as disparidades sociais existentes são (como deve ser) do interesse dos mais pobres e da sociedade como um todo, e que, em todo caso, sua atual estrutura é a única possível e não pode ser substancialmente modificada sem provocar imensos infortúnios.

A experiência histórica mostra o contrário: as desigualdades variam muito no tempo e no espaço, em tamanho e estrutura, em condições e com uma velocidade que os contemporâneos teriam tido dificuldades para antecipar algumas décadas antes. Foi, às vezes, o resultado de infortúnios. Mas, em seu conjunto, as diversas rupturas e processos revolucionários e políticos que permitiram reduzir e transformar as desigualdades do passado foram um imenso êxito e, ao mesmo tempo, desembocaram na origem das nossas instituições mais valiosas, aquelas que permitiram, precisamente, que a ideia de progresso humano se tornasse uma realidade (o sufrágio universal, a escola gratuita e obrigatória, a universalização do seguro-saúde, o imposto progressivo). É muito provável que o mesmo aconteça no futuro. As desigualdades atuais e as instituições presentes não são as únicas possíveis, apesar do que possam pensar os conservadores, e elas também são chamadas a se transformar e a se reinventar permanentemente.

Mas esta abordagem, centrada nas ideologias, nas instituições e na diversidade das trajetórias possíveis, também se diferencia de certas doutrinas às vezes chamadas de “marxistas”, segundo as quais o estado das forças econômicas e as relações de produção determinariam quase mecanicamente a “superestrutura” ideológica de uma sociedade. Eu insisto, ao contrário, no fato de que existe uma autonomia real da esfera das ideias, isto é, da esfera ideológico-política. Para um mesmo estado de desenvolvimento da economia e das forças produtivas (na medida em que essas palavras têm um significado, o que não é certo), há sempre uma multiplicidade de regimes ideológicos, políticos e desigualitários possíveis.

Por exemplo, a teoria da passagem mecânica do “feudalismo” para o “capitalismo” após a revolução industrial não permite explicar a complexidade e a diversidade das trajetórias históricas e político-ideológicas observadas nos diferentes países e regiões do mundo, especialmente entre regiões colonizadoras e colonizadas, bem como dentro de cada conjunto, e, sobretudo, não nos permite tirar as lições mais úteis para as etapas seguintes.

Ao acompanhar os fios desta história, constatamos que sempre existiram e existirão alternativas. Em todos os níveis de desenvolvimento, existem muitas maneiras de estruturar um sistema econômico, social e político, definir relações de propriedade, organizar um sistema fiscal ou educacional, lidar com um problema de dívida pública ou privada, regular relações entre diferentes comunidades humanas, e assim por diante. Sempre existem vários caminhos possíveis de organizar uma sociedade e as relações de poder e de propriedade dentro dela, e essas diferenças não são apenas detalhes, longe disso. Em particular, existem muitas maneiras de organizar as relações de propriedade no século XXI, e algumas podem constituir um salto muito mais real do capitalismo do que o caminho que consiste em prometer sua destruição sem se preocupar com o que se seguirá.

O estudo das diferentes trajetórias históricas e das muitas bifurcações inacabadas do passado é o melhor antídoto para o conservadorismo elitista e para a expectativa revolucionária da grande noite. Essa atitude de esperar geralmente dispensa a reflexão sobre o regime político e institucional realmente emancipador a ser aplicado após a grande noite, e geralmente leva a confiar em um poder estatal ao mesmo tempo hipertrofiado e indefinido, o que pode se mostrar tão perigoso quanto a sacralização proprietarista à qual se pretende opor. Esta atitude causou consideráveis danos humanos e políticos ao século XX, danos dos quais ainda não terminamos de pagar o preço. O fato de que o pós-comunismo (na sua variante russa e na sua versão chinesa, assim como, até certo ponto, na sua variante do leste europeu, apesar de tudo o que diferencia essas três trajetórias) tornou-se no início do século XXI o melhor aliado do hipercapitalismo é a consequência direta dos desastres comunistas stalinistas e maoistas e o abandono de qualquer ambição igualitária e internacionalista que se seguiu. O desastre comunista conseguiu inclusive colocar em segundo plano os danos provocados pela escravidão, pelo colonialismo e pelas ideologias racialistas, assim como os laços profundos que os vinculam à ideologia proprietarista e hipercapitalista, o que não é pouca coisa.

Vamos ao cerne da questão. O progresso humano existe, mas é frágil e pode fracassar a qualquer momento devido aos desvios desigualitários e identitários do mundo. O progresso humano existe: basta, para se convencer disso, observar a evolução da saúde e da educação no mundo nos últimos dois séculos (…). A expectativa de vida ao nascer aumentou de cerca de 26 anos no mundo em média em 1820 para 72 anos em 2020. No início do século XIX, a mortalidade infantil atingiu cerca de 20% dos recém-nascidos em todo o mundo no primeiro ano, em comparação com menos de 1% hoje. Com foco nas pessoas que atingem 1 ano de idade, a expectativa de vida ao nascer aumentou de cerca de 32 anos em 1820 para 73 em 2020.

Poderíamos multiplicar os indicadores: a probabilidade de um recém-nascido atingir a idade de 10 anos, a de um adulto atingir a idade de 60 anos, a de um idoso passar cinco ou dez anos da aposentadoria com boa saúde. Em todos esses indicadores, a melhoria a longo prazo é impressionante. Podemos, certamente, encontrar países e momentos em que a expectativa de vida diminui, inclusive em tempos de paz, como a União Soviética na década de 1970 ou os Estados Unidos nos anos 2010, o que geralmente não é um bom sinal para os regimes em questão. Porém, a longo prazo, a tendência de melhoria é inquestionável em todas as partes do mundo, independentemente dos limites das fontes demográficas disponíveis.

A humanidade vive agora com melhor saúde do que jamais viveu; também tem mais acesso à educação e à cultura do que nunca. A Unesco não existia no início do século XIX para definir a alfabetização como passou a fazer a partir de 1958, ou seja, como a capacidade de uma pessoa “ler e escrever um enunciado simples e breve relacionado à sua vida diária”. No entanto, as informações coletadas em várias pesquisas e censos sugerem que apenas 10% da população mundial acima de 15 anos era alfabetizada no início do século XIX, em comparação com mais de 85% hoje. Aqui, novamente, indicadores mais refinados, como o número médio de anos de escolaridade, que teria passado de apenas um ano, há dois séculos, para mais de oito anos no mundo de hoje e mais de doze anos nos países mais avançados, confirmariam o diagnóstico. Na época de Austen e Balzac, menos de 10% da população mundial tinha acesso à escola primária; na de [Chimamanda Ngozi] Adichie e de Fuentes, mais da metade das gerações mais jovens dos países ricos ingressam na universidade: o que sempre foi um privilégio de classe torna-se aberto à maioria.

Para perceber a magnitude das transformações em jogo, convém lembrar também que a população humana e a renda média aumentaram mais de 10 vezes desde o século XVIII. A primeira passou de cerca de 600 milhões em 1700 para mais de 7 bilhões em 2020, enquanto a segunda, até onde se pode mensurar, passou de um poder de compra médio (expresso em euros em 2020) de apenas 80 euros por mês e por habitante do planeta em torno de 1700 para cerca de 1.000 euros por mês em 2020. Não é certo, no entanto, que essas progressões quantitativas significativas, em relação às quais é útil lembrar que ambas correspondem a taxas de crescimento médio anual de apenas 0,8%, acumuladas, é verdade, ao longo de três séculos (prova de que não é necessário aponta para um crescimento de 5% ao ano para alcançar a felicidade terrena), representam “progressos” em um sentido tão incontestável quanto aqueles alcançados em termos da saúde e educação.

Nos dois casos, a interpretação dessas evoluções é ambígua e abre debates complexos para o futuro. O crescimento demográfico certamente reflete parcialmente a queda da mortalidade infantil e o fato de um número crescente de pais ter conseguido crescer com os filhos vivos, o que não é nada. Entretanto, esse aumento da população, se continuasse no mesmo ritmo, nos levaria a uma população de mais de 70 bilhões de pessoas em três séculos, o que não parece ser nem desejável nem suportável pelo planeta. O crescimento da renda média reflete parcialmente uma melhoria muito real nas condições de vida (três quartos dos habitantes do mundo viviam perto do nível de subsistência no século XVIII, comparado a menos de um quinto hoje), bem como as novas possibilidades de viagens, lazer, reuniões e de emancipação.

No entanto, as contas nacionais mobilizadas aqui para descrever a evolução a longo prazo da renda média e que desde a sua invenção no final do século XVII e início do século XVIII, no Reino Unido e na França, tentam medir a renda nacional, o produto interno bruto e às vezes o capital nacional dos países, apresentam muitos problemas. Além de seu foco em médias e agregados e sua total falta de consideração das desigualdades, estão começando muito lentamente a integrar a questão da sustentabilidade e do capital humano e natural. Por outro lado, sua capacidade de resumir em um único indicador as transformações multidimensionais das condições de vida e do poder de compra de períodos tão longos não deve ser superestimada.

Em geral, os reais progressos realizados em termos de saúde, educação e poder de compra ocultam enormes desigualdades e fragilidades. Em 2018, a taxa de mortalidade infantil antes de 1 ano era inferior a 0,1% nos países europeus, norte-americanos e asiáticos mais ricos, mas elas atingem quase 10% nos países africanos mais pobres. A renda média mundial certamente era de 1.000 euros por mês e per capita, mas era de 100 a 200 euros por mês nos países mais pobres e era superior a 3.000 a 4.000 euros por mês nos países mais ricos ou mais ainda em alguns micro-paraísos fiscais que algumas pessoas suspeitam (não sem razão) de roubar o resto do mundo, quando não se trata de um país cuja prosperidade se assenta sobre as emissões de carbono e o aquecimento à frente. Alguns progressos foram feitos, mas isso não muda o fato de que sempre é possível fazer melhor ou, em todo caso, de se interrogar seriamente sobre isso, em vez de se entregar a um sentimento de felicidade diante do sucesso do mundo.

Acima de tudo, esse incontestável progresso humano médio, se compararmos as condições de vida prevalecentes no século XVIII e no início do século XXI, não deve nos fazer esquecer que essa evolução de longo prazo esteve acompanhada por terríveis fases de regressão nas igualdades e na civilização. O “Iluminismo” euro-americano e a Revolução Industrial dependiam de sistemas extremamente violentos de dominações proprietaristas, escravistas e coloniais, que assumiram uma escala histórica sem precedentes durante os séculos XVIII, XIX e XX, antes das próprias potências europeias afundarem em uma fase de autodestruição genocida entre 1914 e 1945. Essas mesmas potências foram forçadas as descolonizações nos anos 1950-1960, quando as autoridades estadunidenses acabaram estendendo os direitos civis aos descendentes de escravos.

Os temores do apocalipse atômico ligados ao conflito comunismo-capitalismo mal tinha sido esquecido após o colapso soviético de 1989-1991, e o apartheid da África do Sul mal tinha sido abolido em 1991-1994, quando o mundo entrou, a partir dos anos 2000-2010, em um novo torpor, o do aquecimento global e de uma tendência geral ao fechamento identitário e xenófobo, em um contexto de aumento sem precedentes das desigualdades socioeconômicas nos países desde os anos 1980-1990, impulsionado por uma ideologia neoproprietária particularmente radical. Afirmar que todos esses episódios observados desde o século XVIII ao século XXI eram necessários e indispensáveis para que o progresso humano fosse realizado faria pouco sentido. Outras trajetórias e regimes desigualitários eram possíveis, outras trajetórias e outros regimes mais igualitários e mais justos ainda são possíveis.

Se há uma lição a ser tirada da história mundial dos três últimos séculos, é que o progresso humano não é linear e que seria errado supor que as coisas sempre vão melhorar, e que a livre concorrência dos poderes estatais e dos atores econômicos seria suficiente para nos levar, como por um milagre, à harmonia social e universal. O progresso humano existe, mas é uma luta e, acima de tudo, deve se basear em uma análise fundamentada dos desenvolvimentos históricos passados, com o que eles comportam de positivo e de negativo.(…)

A justificação da desigualdade nas sociedades de proprietários

Basicamente, o argumento formulado pela ideologia proprietarista, de maneira implícita nas declarações dos direitos e nas Constituições, e de maneira muito mais explicitamente nos debates políticos em torno da propriedade que ocorreram durante a Revolução Francesa e ao longo do século XIX, pode ser resumido da seguinte maneira. Se começarmos a questionar os direitos de propriedade adquiridos no passado e sua desigualdade, em nome de uma concepção da justiça social certamente respeitável, mas que inevitavelmente seria sempre imperfeitamente definida e aceita, e nunca poderia ser totalmente consensual, não correríamos o risco de não saber onde parar esse processo perigoso? Não existe o risco de ir direto para a instabilidade política e a caos permanente, o que terminaria se voltando contra os mais modestos? A resposta proprietarista intransigente consiste em que não se deve correr esse risco e que a Caixa de Pandora da redistribuição das propriedades jamais deve ser aberta.

Esse tipo de argumento está constantemente presente durante a Revolução Francesa e explica muitas das ambiguidades e hesitações observadas, particularmente entre as abordagens “históricas” e “linguísticas” dos direitos antigos e de sua transcrição para novos direitos de propriedade. Se questionarmos as corveias e os royalties, não existe o risco de questionar também os aluguéis e todos os direitos de propriedade? Encontraremos esses argumentos nas sociedades de proprietários do século XIX e início do século XXI, e veremos que eles continuam a desempenhar um papel fundamental no debate político contemporâneo, particularmente com o retorno de um discurso neoproprietarista desde o final do século XX.

A sacralização da propriedade privada é, no fundo, uma resposta natural ao medo do vazio. A partir do momento em que abandonamos o esquema trifuncional, que propunha soluções que permitiam equilibrar o poder de guerreiros e clérigos, e que se apoiava em grande parte em uma transcendência religiosa (essencial para garantir a legitimidade dos clérigos e de seus sábios conselhos), é preciso encontrar novas respostas para garantir a estabilidade da sociedade. O respeito absoluto dos direitos de propriedade adquirido no passado fornece uma nova transcendência para evitar o caos generalizado e preencher o vazio deixado pelo fim da ideologia trifuncional. A sacralização da propriedade é de certa forma uma resposta ao fim da religião como uma ideologia política explícita.

Com base na experiência histórica e na construção de um conhecimento racional baseado nessas experiências, parece-me que é possível ir além dessa resposta certamente natural e compreensível, que é ao mesmo tempo um tanto niilista e preguiçosa e pouco otimista em relação à natureza humana. Tentarei, neste livro, convencer o leitor de que podemos nos apoiar nas lições da história para definir um padrão de justiça e de igualdade mais exigente em matéria de regulação e distribuição da propriedade mais além da simples sacralização dos direitos do passado, norma que certamente só pode ser evolutiva e aberta a deliberações permanentes, mas que é menos satisfatória que a opção cômoda que consiste em assumir como dadas as posições adquiridas e naturalizar as desigualdades produzidas pelo “mercado”. Além disso, é sobre essa base pragmática, empírica e histórica que as sociedades socialdemocratas se desenvolveram no século XX (que, apesar de todas as suas insuficiências, mostraram que a extrema desigualdade patrimonial do século XIX não era de forma alguma indispensável para garantir a estabilidade e a prosperidade, muito pelo contrário) e que ideologias e movimentos políticos inovadores podem ser construídos no início do século XXI.

A grande fraqueza da ideologia proprietarista é que os direitos de propriedade do passado frequentemente colocam sérios problemas de legitimidade. Acabamos de vê-lo com a Revolução Francesa, que transformou sem dificuldades as corveias em aluguéis, e encontraremos esta dificuldade em muitas ocasiões, em particular com a questão da escravidão e sua abolição nas colônias francesas e britânicas (onde se decidirá que era essencial compensar os proprietários, mas não os escravos), ou ainda com as privatizações pós-comunistas e os saques privados de recursos naturais. De maneira mais geral, o problema é que, independentemente da questão das origens violentas ou ilegítimas das apropriações iniciais, desigualdades patrimoniais consideráveis, duradouras e amplamente arbitrárias tendem a ser permanentemente reconstituídas, tanto nas sociedades hipercapitalistas modernas quanto nas sociedades antigas.

Não obstante, a construção de um padrão de justiça aceitável para o maior número de pessoas apresenta problemas consideráveis, e só poderemos tratar verdadeiramente desta questão complexa somente após nossa investigação, após o exame das diferentes experiências históricas disponíveis e, em particular, das experiências cruciais do século XX em matéria de progressividade tributária e, mais geralmente, da redistribuição das propriedades, o que forneceu a demonstração histórica material de que a desigualdade extrema não era indispensável, bem como os conhecimentos concretos e operacionais sobre os níveis de igualdade e desigualdade que poderiam ser considerados mínimos. De qualquer forma, o argumento proprietarista, baseado na necessidade de estabilidade institucional, deve ser levado a sério e avaliado com precisão, pelo menos tanto quanto o argumento meritocrático, que insiste mais no mérito individual, argumento que desempenha, sem dúvida, um papel menos central na ideologia proprietarista do século XIX do que na reformulação neoproprietarista em vigor desde o final do século XX. Teremos amplamente a oportunidade de retornar a esses diferentes desenvolvimentos político-ideológicos.

De um modo geral, a ideologia proprietarista dura deve ser analisada pelo que é: um discurso sofisticado e potencialmente convincente sobre certos pontos (porque a propriedade privada, corretamente redefinida dentro de seus limites e direitos, faz, efetivamente, parte dos arranjos institucionais que permitem que as diferentes aspirações e subjetividades individuais se expressem e interajam construtivamente) e, ao mesmo tempo, uma ideologia desigualitária que, na sua forma mais extrema e mais severa, visa simplesmente justificar uma forma particular de dominação social, muitas vezes de maneira excessiva e caricatural.

De fato, é uma ideologia muito prática para aqueles que estão no topo da escala, tanto no que diz respeito à desigualdade entre indivíduos quanto à desigualdade entre nações. Os indivíduos mais ricos encontram argumentos para justificar sua posição em relação aos mais pobres, em nome de seus esforços e méritos, mas também em nome da necessidade de estabilidade que beneficiará a sociedade como um todo. Os países mais ricos também podem encontrar razões para justificar sua dominação sobre os mais pobres, em nome da suposta superioridade de suas regras e instituições. O problema é que esses argumentos e os elementos fatuais apresentados por uns e outros para apoiá-los nem sempre são muito convincentes. Mas antes de analisar esses desenvolvimentos e essas crises, é importante começar por estudar a evolução das sociedades de proprietaristas no século XIX, na França e em outros países europeus, ao final desse momento importante e ambíguo que foi a Revolução Francesa.

Em novo livro, Thomas Piketty propõe “superar o hipercapitalismo”

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AFP – Extraído de Isto É Dinheiro – 13/09/2019.

O economista francês Thomas Piketty propõe superar o hipercapitalismo atual para combater as desigualdades com o objetivo de deter um avanço “identitário extremamente perigoso”, em uma entrevista à AFP por ocasião da publicação de seu novo livro, “Capital e Ideologia”.

Considerado uma figura estelar da economia, o professor da Escola de Economia de Paris publica o novo livro de mais de 1.200 páginas seis anos depois do sucesso mundial da obra anterior, “O Capital no Século XXI”, que já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares.

P: O que busca demonstrar em seu novo livro?

R: Neste livro, tento mostrar que na história já aconteceram grandes mudanças ideológicas. Ainda pensamos que a estrutura das desigualdades não mudará, que as coisas são sólidas como uma rocha. Mas todas as ideologias acabam sendo substituídas por outros sistemas de organização das relações sociais e de propriedade. Vai acontecer o mesmo com o regime atual.

P: Como?

R: Precisamos retomar o fio, com calma, serenidade, tentando discutir soluções para superar o hipercapitalismo atual, à luz das experiências históricas. A boa notícia é que todos os regimes políticos desiguais terminam se transformando, geralmente com momentos de crise mais violentos do que se gostaria. Eu desejaria que isso pudesse ser feito pacificamente, através da deliberação democrática, com eleições. Às vezes existem momentos imprevistos de crise, como o Brexit. Em tais momentos, como demonstra a história, é necessário recorrer aos repertórios de ideias produzidas no passado.

P: Qual o risco de não debater as desigualdades?

R: Se nos negamos a falar sobre a superação do capitalismo por uma economia mais justa e descentralizada, corremos o risco de continuar fortalecendo as narrativas do avanço identitário, do avanço xenófobo. Estas são história niilistas extremamente perigosas para nossas sociedades que se alimentam da recusa em discutir soluções justas, internacionalistas, soluções igualitárias de reorganização do sistema econômico.

P: Você é severo a respeito da evolução da sociedade desde a queda do império soviético.

R: É hora de fazer um balanço das decisões tomadas desde os anos 80 e 90. No início da década de 2020 podemos ver seus limites com uma globalização altamente desigual, que é desafiada por muitos e que nutre avanços identitários extremamente perigosos. A revolução conservadora de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, assim como a queda do comunismo soviético, deram uma espécie de impulso a uma nova fé, às vezes ilimitada, na autorregulação dos mercados, na sacralização da propriedade. Mas é um movimento que, acredito, está chegando ao fim.

P: Qual a influência da queda do Muro de Berlim, há 30 anos, na evolução das desigualdades?

R: O ano de 1989 dá lugar a um mundo no qual a desilusão pós-comunista leva a uma espécie de sacralização do hipercapitalismo. O comunismo no século XX, depois de apresentar-se como o desafio mais formidável à ideologia dos proprietários, terminou se transformando no melhor aliado do hipercapitalismo precisamente por seu fracasso. Depois de 1989, deixamos de pensar na questão do excesso de desigualdade no capitalismo, a necessidade de regular, de superar o capitalismo. O caso extremo é a Rússia, onde não existe nenhum imposto sobre a herança, nem imposto de renda progressivo. Nem Donald Trump, em seus sonhos mais loucos, pensa em algo assim.

P: O Partido Comunista ainda está no poder na China…

R: A história é diferente na China, mas você tem o desastre maoista, da revolução cultura. Existe o papel dominante do Partido Comunista, mas também há uma negativa a superar a desigualdade gerada pela propriedade privada. A China, como a Rússia, não tem imposto sobre a herança. O caso de Hong Kong é inédito porque é o único país do mundo que se tornou mais desigual depois de se tornar comunista. Existia um imposto sobre a herança que foi eliminado após a devolução para a China.

P: Não teme utilizar a palavra “socialista”, que não está mais na moda?

R: Não tenho medo. Acredito que o socialismo democrático, que é a social-democracia, trouxe consigo não apenas esperança, mas também um tremendo sucesso durante o século XX.

 

 

 

 

 

 

Desemprego, subemprego, informalidade e desagregação social

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A economia brasileira passa por um dos momentos mais negativos dos últimos anos, estamos completando mais de cinco anos de baixo crescimento e aumento da exclusão social, com impactos sobre as mais variadas famílias, gerando desagregação social, violência e desesperança, onde as políticas públicas são vistas como as únicas alternativas de muitos grupos sociais.

Neste período de crescimento econômico medíocre, encontramos um aumento substancial da informalidade, pessoas antes empregadas com carteira assinada e benefícios variados hoje não conseguem mais se integrar no mercado de trabalho e passam a viver de trabalhos esporádicos, sem proteção e entregues à própria sorte, se não tivéssemos ainda alguma proteção social por parte do Estado estaríamos, com certeza, na pior das barbáries.

Diante deste quadro de forte degradação no emprego, percebemos o incremento do discurso de que na sociedade contemporânea não teremos mais empregos, todos seremos livres e ficaremos desimpedidos para nos dedicarmos aos projetos que quisermos, aqueles que mais nos trouxerem retornos, um mundo de contos de fadas onde todos estarão felizes e satisfeitos, tenham paciência e se capacitem para este novo momento que está em curso e, muito brevemente, estará presente na vida de todos nós.

Interessante esta visão otimista e altamente motivadora que domina alguns dos consultores e especialistas aficionados pelo crescimento da tecnologia e das mudanças em curso no mercado de trabalho, suas pesquisas mostram como será a nova dinâmica no mercado de trabalho, novas oportunidades estão em curso e se alguns conseguem, vocês também devem se dedicar que vão conseguir, agora se não conseguirem os responsáveis pelos fracassos serão vocês mesmos, faltou esforço, faltou estudo e faltou uma visão mais consistente sobre as necessidades e as oportunidades que estão sendo inauguradas num futuro muito próximo.

Esta visão nos parece bastante fantasiosa e cheia de ideologias de prosperidade, esquecem porém, que estamos numa sociedade marcada por muitas desigualdades que perduram por séculos, uma sociedade que traz em suas entranhas heranças de séculos de escravidão e desmandos dos mais variados possíveis, onde temos um grande contingente de pessoas na informalidade e a média salarial não passa de R$ 1500,00, sendo marcados por uma educação precária para a massa e subsídios vultosos e sempre muito generosos para os grupos mais vulneráveis, o crescimento desta visão tende a consolidarmos uma sociedade cada vez mais desigual, preconceituosa e atrasada.

Acreditamos que o futuro nos reserva mais transformações, a tecnologia vem modificando a vida de todos os indivíduos, todas as regiões e países sentem os impactos destas alterações motivadas pela tecnologia, com isso, novas oportunidades chegarão e deveremos estar preparados para usufruir deste novo mundo, mas para isso precisamos ter em mente, que grande parte da população deste país não apresenta os requisitos mínimos para a competição em escalas internacionais, muitos deles nunca frequentaram uma escola e apresentam péssimas condições de sobrevivência, sendo condenados a um futuro de grandes privações, como aquelas que se fizeram presentes em suas vidas desde a mais tenra idade, quando conviveram com avós, tios e familiares em situação de miséria e de degradação.

Sem qualificação estes trabalhadores estarão condenados a indignidade, muitos deles se debruçam, todos os dias, nas fileiras da ilegalidade, se entregam aos pequenos roubos e gastam seus recursos indignos em produtos que simulam prazer e satisfação, drogas e vícios variados que os perpetuam numa situação de miserabilidade e de grande insegurança. Todos sabemos que estes indivíduos já foram condenados a dois caminhos em sua trajetória de vida: marginalidade, criminalidade e prisão ou morte em decorrência de confrontos com as forças de segurança da sociedade. Dificilmente encontraremos outro caminho ou alternativa nestas condições e estamos nos colocando em uma posição que tendemos a incrementar estas desigualdades e fomentando o ódio e o ressentimento.

Vivemos numa sociedade marcada por um dualismo absurdo, de um lado percebemos a existência de grupos sociais dotados de grandes recursos materiais, pessoas que trabalham legalmente em empregos bem remunerados, para isso estudaram e se prepararam para o futuro, muitos deles conseguiram passar por escolas altamente qualificadas e acumularam diplomas de excelência, que lhes garantiram uma sólida condição social, estes indivíduos vivem em uma situação de requintes e sem privações materiais. No mundo da ostentação, viajam todos os anos, conhecem vários países e regiões, desfrutam de um lixo jamais imaginado por grande parte da população brasileira.

De outro lado encontramos uma outra gama de pessoas, uma grande maioria, são indivíduos desprovidos dos mais simples produtos essenciais para a sobrevivência, são privados dos alimentos básicos e estão entregues a uma situação de subalternidade, sem as políticas públicas e sem a caridade dos outros dificilmente conseguiriam sobreviver.

Nesta semana encontramos o depoimento de um procurador de Minas Gerais que reclamou nas suas redes sociais de seus parcos rendimentos, míseros R$ 24 mil ao mês, a repercussão foi tanta que a mídia foi investigar seus “parcos” vencimentos e chegou a conclusão que a média salarial deste modesto funcionário público foi de quase R$ 60 mil ao mês, estes rendimentos incorporavam seus penduricalhos, que no caso mais do que dobravam seus ganhos. Com este caso podemos perceber como vivemos em uma sociedade que se degrada a olhos vistos, uma elite podre e corrompida que não quer perceber o crescimento da indignidade e da pobreza, se encastelando em condomínios de luxos e cercados de seguranças fortemente armados, infelizmente, estamos muito longe de sermos o país do futuro.

Esta sociedade se caracteriza por possuir em suas fronteiras nacionais um dos territórios mais ricos, produtivos e valorizados da economia internacional, neste território encontramos riquezas expostas em todos os locais, desde lagos, rios e vegetações variadas com clima propício e agricultura de grande rentabilidade. Neste ambiente encontramos riquezas visíveis e, mas ao mesmo tempo, estas riquezas convivem lado a lado com uma pobreza generalizada, com indivíduos vivendo e sobrevivendo em condições indignas e cujas perspectivas de melhorias são bastante limitadas.

Neste ambiente marcado por empresas pouco eficientes, que sobrevivem por um longo período de proteção estatal escancarada, onde a escolarização da população ainda não se universalizou e os problemas educacionais ainda nos constrangem em competições internacionais, como no exame de Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e cujas performances brasileiras são bastante negativas, sempre aparecendo nos últimos lugares deste ranking.

Na economia brasileira contemporânea, o país apresenta grandes dificuldades para aumentar os investimentos produtivos, sem estes investimentos a economia não consegue gerar os empregos necessários para garantir o crescimento econômico para diminuir as desigualdades que cresceram de forma acelerada nestes últimos seis anos, obrigando o Estado a incrementar as políticas públicas para reduzir os desequilíbrios estruturais da sociedade.

O grande problema do desemprego atual é que, pela primeira vez, os mais afetados por estas transformações são os profissionais liberais e a classe média, os grupos mais vulneráveis foram fortemente impactados pelas tecnologias anteriores, enquanto a classe média passa a sentir este desemprego, sem respostas imediatas e sem capacidade para empreender estas transformações, passam a bradar aos quatro ventos seus medos, frustrações e desesperanças.

Com receio de perder seu estilo de vida e seus luxos possíveis, passam a se entregar a uma carga de trabalho cada vez maior, dedicando cada vez mais seu tempo para o trabalho, para se qualificar e se capacitar, deixando de lado questões de grande relevância para todos os indivíduos, relacionamentos, famílias e saúde pessoal. Logo chegará um tempo, que não tardará, para se perceber vítima de uma grande emboscada, todo seu sucesso material não será suficiente para lhe garantir um equilíbrio e uma solidez em família, bolsos ricos convivendo com solidão e desesperanças emocionais e psicológicas.

Com o incremento do desemprego, do subemprego e da informalidade, os trabalhadores passam a perder os benefícios que possuem com a carteira assinada, sem estes benefícios pressionam os serviços públicos e passam a demandar do Estado uma atenção maior, mais recursos com assistência social e, principalmente mais gastos com a capacitação e requalificação dos trabalhadores desempregados, jogando a economia em uma equação cruel. Os governos arrecadam menos impostos e são obrigados a dispender uma maior quantidade de recursos para socorrer estas populações, levando os cofres públicos a situações dignas de penúrias, deixando de lado outros investimentos e gastos fundamentais.

No outro lado da equação encontramos empresários sacando gordos empréstimos subsidiados pelo Estado, recursos oriundos dos trabalhadores destinados a beneficiar empresas que pouco investem em qualificação e capacitação de trabalhadores, impostos reduzidos e subsídios variados para os donos do capital, isenção em aplicações financeiras e variados benefícios para os donos do poder, até quando os grupos menos favorecidos vão continuar pagando a farra com os ditos escassos recursos públicos?

Olhando pela lógica individual, o desemprego longo e acelerado acaba gerando graves constrangimentos sociais e familiares, nesta situação, muitas famílias são desfeitas e muitos relacionamentos chegam ao fim, levando filhos a deixarem as escolas e acabando com as pequenas chances de melhorias sociais e de ascensão na comunidade. A ascensão social que sempre caracterizou o sistema capitalista, uma verdadeira revolução quando este sistema passou a dominar a sociedade, na contemporaneidade esta ascensão se tornou muito difícil, para muitos jovens nascidos na periferia esta ascensão é quase impossível, a não ser que este garoto desenvolva habilidades esportivas ou artísticas, ascendendo como cantor, compositor ou como jogador de futebol.

Na situação atual da sociedade brasileira, é fundamental encontrarmos instrumentos para reduzir estes indicadores sociais negativos, algumas sugestões estão sendo colocadas pelo governo, como a liberação do FGTS e do PIS/PASEP, que teve início em setembro, mas os impactos esperados não são os mais auspiciosos, muitos acreditam em um auxílio de 0,3% no crescimento econômico, números estes insuficientes para reativar a economia e estimular os investimentos, requisito primeiro para diminuir os dramas vividos pela sociedade brasileira. Para muitos economistas, o incremento nos gastos públicos  poderiam reativar a economia, esta seria uma forma de movimentar o sistema econômico e reativar os investimentos, incrementando o mercado de trabalho, mas como estamos percebendo o governo não acredita neste caminho e aposta em propostas ditas estruturais, tais como privatizações, desregulamentações, concessões e desestatizações, que demandam mais tempo e cujos resultados futuros podem ser contestáveis se analisarmos a literatura e as experiências internacionais.

Neste ambiente e no ritmo das políticas implementadas pelo governo ainda permaneceremos durante muito tempo nesta situação, mesmo sabendo que os mais afetados estão em condições de indignidade, parece-nos claro que as prioridades do governo e das elites econômica e financeira não são os desempregados. Sem investimentos públicos e com as crises políticas recorrentes, dificilmente conseguiremos um crescimento robusto nos próximos anos e as condições sociais tendem a permanecerem em situação deplorável, marcadas por incertezas e inseguranças.

As propostas de privatização dos governos federal e estadual devem ser vistas com atenção pela sociedade, muitas empresas públicas perderam eficiência e passaram a acumular um excesso de burocracia, esta nova agenda deve nortear as decisões estratégicas dos governos, as incertezas permanecerão sempre negativas se as propostas não forem colocadas em prática e se as promessas não se concretizarem. Outro ponto de grande relevância nestas várias reformas propostas pelo governo e que devem ser implantadas para que tenhamos uma maior justiça social é a taxação de aplicações financeiras, a regulamentação das grandes fortunas, a redução das isenções fiscais e financeiras, afinal, quando percebemos a situação de degradação econômica por que passa este país, com milhares de brasileiros saindo e buscando novas oportunidades em outras regiões do mundo e tomamos contato com os bilionários lucros dos bancos em um ambiente de convulsão social, percebemos que nos encontramos em um momento único de reconstrução deste país, para transformá-lo em uma sociedade que olha para o futuro com a cabeça erguida e consciente de seu potencial e de suas necessidades.

Larry Summers diz que ameaça de ‘japanificação’ dos EUA eleva chance de recessão no Brasil

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Economista diz que taxas de juros perto de zero e sistema bancário problemático travariam progresso

Érica Fraga – Folha de São Paulo – 15/09/2019

SÃO PAULO

O risco de os Estados Unidos mergulharem em uma nova recessão até o fim do próximo ano é, hoje, “substancialmente maior” do que há seis meses.

A opinião é de Larry Summers, um dos mais proeminentes economistas americanos, que foi secretário do Tesouro de Bill Clinton e assessor de Barack Obama, além de ter presidido a Universidade Harvard, onde ainda leciona.

Segundo ele, países desenvolvidos estão à beira a estagnação secular, sujeitos a recuperações fracas e repetidos mergulhos recessivos.

Nos Estados Unidos, ele vê uma probabilidade pouco inferior a 50% de que a lenta recuperação desde a crise financeira de 2008 se converta em um novo ciclo de contração da atividade.

“Dadas as consequências de uma recessão, é um resultado muito adverso”, disse o economista em entrevista por telefone à Folha, na quarta-feira (11).

Segundo ele, uma nova recessão levaria a maior economia do mundo a entrar em um processo de “japanifização”, termo usado em referência às quase três décadas de luta do país asiático contra a deflação e o baixo crescimento.

Se esse for o destino dos Estados Unidos, Summers alerta que países emergentes como o Brasil também podem ser afetados.

“Num ambiente de recessão americana, por exemplo, seria mais difícil para a América Latina atingir progresso e integração”,diz.

A situação brasileira nos últimos anos, segundo ele, foi complicada pelas evidências de que fatores como infraestrutura inadequada, corrupção e incerteza política se mostraram “um problema maior do que muitas pessoas teriam imaginado há alguns anos”.

Crítico das políticas do presidente americano, Donald Trump, Summers diz acreditar que a guerra comercial travada com a China tem piorado a situação econômica:

“Acho que o governo atual está incorrendo em riscos desnecessários. A guerra comercial tem aumentado a incerteza, levando a uma queda do investimento e a um aumento da poupança”.

No atual contexto de incapacidade da política monetária de animar a economia, ele defende uma elevação dos gastos do governo americano em áreas como infraestrutura.

O economista preferiu não fazer comentários sobre as chances de vitória de um candidato democrata na eleição presidencial de 2020.

Quando a economia americana parou de crescer num ritmo sustentável?

Acho que, em retrospectiva, agora conseguimos ver sinais disso ocorrendo 15 anos atrás ou mais.

A economia americana cresceu num ritmo razoavelmente rápido antes da crise financeira. Mas, a fim de impulsionar aquele crescimento, precisávamos de bolhas de ativos extremas, um grande aumento da alavancagem e uma política monetária extremamente frouxa com elevados déficits orçamentários.

Na ausência desses desenvolvimentos anormais, a economia provavelmente teria estado muito mais fraca antes da crise financeira.

As dificuldades que encontramos foram que aqueles desenvolvimentos estavam associados a excessos financeiros, que então levaram à crise. Desde então, a estagnação secular tem sido confirmada pelo ritmo vagaroso da recuperação.

O PIB [Produto Interno Bruto] americano hoje relativo ao seu nível em 2008 não é muito melhor –se for algo melhor– do que era em 1940 em relação a 1929.

Como o sr. avalia a política econômica do atual governo americano para evitar uma possível recessão? 

Acho que o governo atual está incorrendo em riscos desnecessários.

A guerra comercial [com a China] tem aumentado a incerteza, levando a uma queda do investimento e a um aumento da poupança. O que isso faz é complicar os problemas econômicos e reduzir a demanda.

A interferência em relação a outros países, por meio da imposição de tarifas, está reduzindo a competitividade dos produtores americanos e dificultando a venda dos nossos bens em mercados externos.

A guerra de tarifas está tendo o efeito contrário do desejado? 

Exatamente, acho que é contraproducente.

Além disso, a decisão de reduzir impostos substancialmente antes de termos qualquer tipo de desaceleração econômica, consumindo nosso canhão fiscal pode se provar custosa. Então, não acho que o governo tem agido de forma inteligente para evitar uma recessão.

Quais são os riscos de uma recessão no curto prazo? 

O risco de que tenhamos uma recessão no próximo ano e meio, durante o mandato do presidente Trump, não é muito menor do que 50%. Dadas as consequências de uma recessão, é um resultado muito adverso.

O sr. disse recentemente que a economia americana está a uma recessão da “japanificação”. O que isso significa? 

A “japanificação” da economia americana significa uma situação em que as taxas de juros estão quase permanentemente estabelecidas em zero, o sistema bancário está em uma condição problemática e as autoridades podem tentar o quanto quiserem, mas não conseguem elevar a inflação.

Quais seriam as consequências de uma “japanificação” americana para a economia global e, particularmente, para os mercados emergentes? 

Uma economia americana fraca complica a capacidade de os Estados Unidos de proverem liderança no mundo; do ponto de vista econômico, como o mercado de última instância para as exportações; e, do ponto de vista político, como o país que fez tanto para manter a estabilidade, por meio das organizações internacionais, mas não apenas dessa forma.

Num ambiente de recessão americana, por exemplo, seria mais fácil para a América Latina atingir progresso e integração.

Qual seria o impacto econômico disso para países como o Brasil?

 Acho que as chances de uma recessão aumentariam porque haveria menos demanda para seus produtos, e tanto menos capacidade quanto menos apetite de risco por parte das empresas americanas para fazer investimentos estrangeiros.

Quão grande é esse risco? 

Embora a chance seja um pouco menor do que 50%, ela parece substancialmente maior agora do que há seis meses.

O Brasil vive uma lenta recuperação após três anos da recessão, com desemprego e subemprego altos. Alguns economistas locais dizem que o país pode estar vivendo uma histerese [efeitos duradouros ou permanentes criados por longas crises]. Que consequências isso pode ter? 

Isso protela a desaceleração, a incerteza, a interferência no crescimento.

Com certeza, isso deixa o Brasil com um bloco de capital produtivo substancialmente menor do que era esperado por economistas brasileiros há cinco ou dez anos.

E, por fim, isso leva a um crescimento lento e a uma menor produção.

Surpreende que o Brasil esteja crescendo tão pouco? 

Acho que temos visto que há problemas estruturais muito mais profundos –como infraestrutura inadequada, corrupção, incerteza sobre o ambiente político– e tudo isso é um problema maior no Brasil do que muitas pessoas teriam esperado há alguns anos.

A situação de crescimento mais fraco da economia global reduz as chances de os mercados emergentes fazerem sua renda convergir para o nível dos países ricos?

 Acho que muitos países são muito afetados pela maré da economia global.

Quando essa maré está mais baixa, seu desempenho econômico não será bom.

E acho que estamos diante de uma maré baixa na atividade econômica global por alguns anos pela frente.

Há o risco de redução permanente na capacidade de crescimento dos países emergentes se a economia global mantiver uma tendência de expansão mais fraca no longo prazo?

 [O contexto] Demandará que eles tenham políticas sólidas, para encontrar fontes de demanda doméstica que, esperemos, garanta que esse estágio de crescimento lento não seja permanente.

Quais são as políticas que os países desenvolvidos deveriam adotar para evitar a estagnação secular?”. Acho que precisaremos de uma maior ênfase em políticas que estimulem a oferta, assim como políticas estruturais e fiscais, e menor foco em políticas puramente monetárias e financeiras, que já fizeram o que podiam para a estimular a economia.

Em que os países desenvolvidos deveriam investir?

Isso varia de país para país. Acho que, no caso dos Estados Unidos, as duas prioridades principais são investimentos em inovação e em infraestrutura pública.

O sr. acha que as medidas necessárias serão tomadas? E a situação aumenta a chance de eleição de um candidato democrata em 2020? 

Não vou tentar prever política. Mas como afirmam que Winston Churchill dizia sobre os Estados Unidos: nós normalmente fazemos a coisa certa, mas só depois de esgotar as alternativas.

LARRY SUMMERS, 64

Bacharel pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) e doutor pela Universidade Harvard, ambos em economia. É atualmente professor de Harvard, instituição que presidiu de 2001 a 2006. Foi secretário do Tesouro dos Estados Unidos, entre 1999 e 2001, durante o governo democrata de Bill Clinton. Voltou a ocupar um cargo proeminente em uma gestão democrata, quando dirigiu o Conselho Econômico Nacional e foi o principal conselheiro econômico de Barack Obama, de 2008 a 2010. Entre 1991 e 1993, foi economista-chefe e vice-presidente do Banco Mundial

Anatomia da próxima recessão global, por Nouriel Roubini

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Aos desequilíbrios financeiros já conhecidos, somam-se três prováveis choques de abastecimento – todos gestados pelos EUA. Agora, de nada adiantará inundar de dinheiro os mercados. Das entranhas de uma crise, pode surgir outra maior

Há três choques negativos de abastecimento que poderiam desencadear uma recessão global em torno de 2020. Todos refletem fatores políticos que envolvem relações internacionais. Dois envolvem a China, e os Estados Unidos estão no centro de todos. Mais importante: nenhum deles pode ser aplacado pelas ferramentas tradicionais de política macroeconômica contracíclica.

O primeiro choque potencial deriva da guerra comercial e monetária entre Estados Unidos e China, que ampliou se no mês passado, quando o presidente norte-americano, Donald Trump, ameaçou impor tarifas adicionais às exportações chinesas e rotulou formalmente a China como “manipuladora de moedas”. O segundo diz respeito à guerra fria de lenta maturação entre EUA e China sobre tecnologia. É uma rivalidade com todas as marcas de “Armadilha de Tucídides”. A China e os EUA disputam entre si o domínio sobre as indústrias do futuro: inteligência artificial (IA), robótica, 5G e outras. Os EUA incluíram a gigante chinesa Huawei em sua lista de companhias estrangeiras que representam, supostamente, uma ameaça à segurança nacional. Embora a Huawei tenha se beneficiado de exceções temporárias, que lhe permitem continuar usando componentes norte-americanos, o governo Trump anunciou, esta semana, que está acrescentando 46 parceiras da Huawei à lista.

O terceiro grande risco relaciona-se às fontes de abastecimento de petróleo. Embora os preços tenham caído nas últimas semanas, e uma recessão desencadeada por uma guerra comercial, monetária e tecnológica tenda a deprimir a demanda por energia e reduzir os preços, um confronto dos EUA contra o Irã poderia ter efeito oposto. Se ele degenerasse em confronto militar, os preços globais do petróleo poderiam disparar e provocar uma recessão, como ocorreu nas conflagrações anteriores no Oriente Médio em 1973, 1979 e 1990.

Todos estes três choques potenciais teriam efeitos estagflacionários, elevando o preço de bens de consumo importados, componentes intermediários e tecnológicos, além da energia – reduzindo, ao mesmo tempo, a produção, ao cortar cadeias internacionais de abastecimento. Pior: o conflito movido pelos EUA contra a China já está impulsionando um processo mais amplo de desglobalização, porque os países e empresas já não podem contar com estabilidade de longo prazo nas cadeias integradas de valor. À medida que o comércio de bens, serviços, capital, trabalho, informação, dados e tecnologia tornar-se cada vez mais balcanizado, os custos de produção global crescerão em todos os setores.

Além disso, a guerra comercial e monetária e a competição tecnológica amplificarão umas às outras. Considere o caso do Huawei, hoje líder global em equipamentos 5G. Esta tecnologia será em breve a forma-padrão de conectividade para a infraestrutura civil e militar mais crítica – para não mencionar os bens de consumo que estão conectados por meio da emergente Internet das coisas. A presença de um chip 5G implica que tudo (de uma torradeira a uma máquina de café) poderia se converter num aparelho de escuta. Significa que se a Huawei for amplamente vista como uma ameaça à segurança nacional, também o seriam milhares de exportações de bens de consumo chineses.

É fácil imaginar como a situação atual poderia levar a uma implosão em grande escala do sistema global de comércio. A questão, portanto, é se os formuladores de políticas monetárias e fiscais estão preparados para um choque prolongado – ou mesmo permanente – de abastecimento.

Na sequência dos choques de estagflação dos anos 1970, estes formuladores apertaram as políticas monetárias. Agora, porém os grandes bancos centrais, como o Fed norte-americano, já estão praticando o afrouxamento das políticas monetárias, porque a inflação e as expectativas de inflação permanecem baixas. Qualquer pressão inflacionária de um choque de petróleo será vista pelos bancos centrais como um mero efeito no nível de preços, mais que uma alta persistente da inflação.

Ao longo do tempo, os choques de abastecimento tendem a se converter em choques negativos de demanda, que reduzem tanto o crescimento quanto a inflação, ao deprimirem o consumo e os investimentos. Sob as condições atuais, os gastos das empresas nos EUA e em todo o mundo já estão severamente deprimidos, devido às incertezas sobre a probabilidade, severidade e persistência dos três choques potenciais.

Na verdade, à medida em que empresas dos EUA, Europa, China e outras partes da Ásia reduziram os gastos de capital o setor global de tecnologia, manufatura e indústria já está em recessão. A única razão para isso não ter se traduzido em recessão global é que o consumo privado permanece forte. Se os preços dos bens importados subir mais, como resultado de qualquer um destes três choques de abastecimento, o aumento da renda real (ajustada à inflação) disponível das famílias sofreria um choque, o mesmo ocorrendo com a confiança dos consumidores, o que conduziria a economia global a uma provável recessão.

Dado o potencial para um choque negativo de demanda no curto prazo, os bancos centrais estão corretos ao reduzir as taxas de juros. Mas os responsáveis pelas políticas fiscais deveriam também se preparar para uma resposta de curto prazo. Um declínio agudo no crescimento e na demanda agregada convidaria ao afrouxamento fiscal contracíclico, para evitar uma recessão muito severa.

A médio prazo, porém, a melhor resposta não seria uma acomodação aos choques de abastecimento, mas um ajuste a eles, sem novos afrouxamentos. Afinal de contas, os choques de abastecimento oriundos de uma guerra comercial e tecnológica seriam mais ou menos permanentes, assim como a redução do crescimento potencial. O mesmo aplica-se ao Brexit: deixar a União Europeia condenará o Reino Unido a um choque de abastecimento permanente e, portanto, a um potencial de crescimento menor, a longo prazo.

Tais choques não podem ser revertidos por meio de políticas monetárias ou fiscais. Embora eles possam ser geridos, no curto prazo, tentativas de mitigá-los permanentemente acabariam levando tanto a um aumento da inflação quanto das expectativas de inflação, que subiriam muito além das metas dos bancos centrais. Nos anos 1970, os bancos centrais mitigaram dois grandes choques de petróleo. Os resultados foram o crescimento, de forma duradoura, da inflação e das expectativas de inflação; déficits fiscais insustentáveis e rápido crescimento da dívida pública.

Por fim, há uma importante diferença entre a crise financeira global de 2008 e os choques de abastecimento que poderiam atingir a economia global hoje. Como naquele ano houve principalmente um grande choque de demanda, que deprimiu o crescimento e a inflação, foi possível enfrentá-lo, de forma adequada, com estímulos monetários e fiscais. Mas desta vez, o mundo estaria se deparando com choques prolongados de abastecimento, que iriam requerer um tipo muito distinto de resposta política a médio prazo. Tentar consertar o dano por meio de estímulos monetários e fiscais de duração indefinida não seria uma opção inteligente.

 Sexo, sexualidades e os dramas dos desequilíbrios sexuais

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O mundo contemporâneo vive momentos de excessiva mercantilização, os indivíduos compram e vendem de tudo neste novo mercado capitalista, desde produtos, mercadorias e serviços até amor, sexo e amizades, as negociações são intensas e o comércio cresce de forma acelerada, transformando tudo em negócios lucrativos e negociáveis, como os chamados homem econômico que subsidia as bases da economia moderna.

Nesta sociedade, os valores materiais estão se sobrepondo aos valores do espírito, a religião tende ao predomínio dos valores monetários, deixando de lado os valores enobrecedores que sempre foram as bases das verdadeiras religiões, que agem como seu conceito mais consistente, a religação do indivíduo a uma força ou um ser superior. Os templos são suntuosos, os cofres destas igrejas estão abarrotados de recursos amoedados, os indivíduos mais abastados garantem uma grande soma de dinheiro em troca dos deslizes cotidianos, compramos de tudo e usamos os recursos materiais para tentar limpar a nossa consciência, tão congestionada com os valores do dinheiro e do imediatismo do momento.

Neste mundo em constantes transformações percebemos uma grande movimentação nos mercados do sexo, novas formas de sexualidade estão gerando constrangimentos nas famílias e nos indivíduos, levando a violência física e ao desequilíbrio moral, degradando os valores e criando desavenças e desestruturações familiares, além de medos e inseguranças. A sexualidade reprimida de muitas pessoas encontra neste mercado uma larga oportunidade de desequilíbrios e desajustes, neste mercado o sexo é estimulado, sem responsabilidades e compromissos, e com valores monetários envolvidos crescendo de forma acelerada e garantindo lucros extraordinários de uns poucos em detrimento de outros.

O sexo vem perdendo seus mais intensos sentimentos, a sexualidade irresponsável busca prazeres imediatos e fogem das responsabilidades, os indivíduos buscam os gozos e não os compromissos, querem uma vida marcada por divertimentos e sem compromissos, como nos informa o grande sociólogo polonês Zygmunt Baumann, na obra Amor Líquido. Nesta obra, o autor reflete sobre os novos relacionamentos, todos centrados na busca pelo prazer e no distanciamento dos transtornos e das decepções, sem ligações e sem retornos, sem compromissos e sem decepções e comprometimentos.

Neste novo mercado encontramos um potencial explosivo, somente o mercado do sexo e da sexualidade movimentam mais de US$ 400 bilhões anualmente, agitando um mercado bilionário, caracterizado por filmes, viagens, turismos, academias, estética e beleza, gerando empregos e movimentando os sistemas econômico, financeiro e bancário. O mercado percebeu rapidamente que as energias emanadas do sexo são uma das mais potentes do ser humano, um potencial avassalador que quando utilizado de uma forma serena pode gerar frutos positivos e imediatos, mas quando usados de forma equivocada tende a gerar constrangimentos violentos, dores e desequilíbrios intensos nos cidadãos.

As informações trazidas pela Doutrina Espírita nos levam a reflexões intensas, mostrando-nos que muitos dos desequilíbrios oriundos da sociedade estão relacionados aos desajustes sexuais, sexualidade destrutiva, gerando dores em irmãos que partiram para o mundo espiritual e ainda se encontram muito fortemente atrelados as energias sexuais, estes indivíduos apresentam grandes dramas na sexualidade, vivem pensando em sexo, em prazeres sexuais e desejos escabrosos, perpetuando diuturnamente como satisfazer estas vontades, com isso, se aproximam dos casais mais incautos e se satisfazendo mais intimamente, parasitando os desejos alheios e permanecendo muito atrelado ao sexo e aos gozos imediatos.

A Doutrina Espírita nos mostra a importância do sexo na sociedade, as relações devem ser responsáveis e os valores nelas envolvidos devem ser sólidos, os indivíduos devem ver o sexo como uma grande oportunidade de crescimento e de consolidação de uma base moral e espiritual mais consistente nos indivíduos, um movimento que pode culminar em relacionamentos mais intensos e estruturados, chegando muitas vezes na construção de uma nova família, baseada em valores mais verdadeiros de amor, respeito e solidariedade.

São muitas as obras espíritas que nos trazem informações sobre a temática da sexualidade, dentre eles destacamos Sexo e destino, ditado por André Luiz e Vida e Sexo, ditado pelo espírito Emmanuel, ambos psicografados pelo médium Francisco Cândido Xavier. Estas obras analisam a questão do sexo, suas energias e as responsabilidades e vínculos que geram entre os indivíduos, afinal nesta permuta de energias os espíritos trocam mais do que valores materiais, se integram e se tornam mais humanos e sentimentais.

Relacionamentos ocasionais e esporádicos são cada vez mais constantes nesta sociedade, a busca do prazer aumenta e as consequências muitas vezes são deixadas de lado, nestes casos muitos são surpreendidos com uma gravidez indesejada que se levada a cabo pode trazer graves constrangimentos para os envolvidos, desde desequilíbrios futuros até constrangimentos para o herdeiro que retorna do mundo espiritual, tendo nos pais pouco responsáveis e imaturos um envolvimento direto e uma responsabilidade intensa por seus passos futuros.

O espiritismo nos mostra que nos relacionamentos irresponsáveis e nos encontros esporádicos, sem sentimentos e valores desconexos, ocorridos em locais insalubres e deselegantes, muitos casais são acompanhados por entidades de baixo padrão vibratório, irmãos que mesmo desencarnados ainda não conseguiram se desvincular do mundo material, sua busca por prazer é tão insana que se refugiam em locais de vibrações semelhantes para se satisfazer com os prazeres de casais incautos e desequilibrados. Muitos relacionamentos estão marcados pela presença de inúmeras entidades, o casal foge para um local distante e acredita estar sozinho no local, mal podem imaginar que ao chegarem neste ambiente, encontram uma infinidade de entidades inferiores e espíritos de baixo padrão vibratório que se comprazem com as gotas de prazer deste encontro marcado pelo anonimato e pela insensatez.

Segundo Francisco Cândido Xavier, mais de cinquenta por cento dos irmãos desencarnados não tem consciência de que desencarnaram, são entidades que partiram para o mundo dos espíritos e ainda permanecem presos à matéria, sentindo os prazeres do sexo, das drogas e das bebidas, nesta situação se aproximam de irmãos incautos e passam a extrair destes indivíduos gotas destes prazeres, atuando como verdadeiros vampiros espirituais, mesmo não querendo fazer mal ao seu hospedeiro, acabam-lhe gerando fortes constrangimentos, desde os emocionais, até os físicos e os espirituais. Em épocas nem tão remotas, muitas pessoas foram internadas em hospitais psiquiátricos como loucos ou como desequilibrados devido a presença de entidades que viam neles um espaço de prazeres e satisfações materiais. O desconhecimento das questões espirituais sempre trouxe grandes distúrbios na sociedade, levando muitas pessoas a tratamentos dolorosos, muitos deles sendo vitimados por choques elétricos e dores das mais intensas, sendo confundidos e chamados de loucos eram na verdade, apenas irmãos desequilibrados, muitos deles perturbados pelas energias do sexo descontrolado.

Neste novo ambiente, a sociedade está tomando contato mais intimamente com a homossexualidade, neste momento estão reencarnando uma grande quantidade de pessoas com desequilíbrios na área da sexualidade, que reencarnam nesta condição como forma de se reequilibrar com as leis divinas, estes irmãos se encontram em um amplo e positivo processo de educação de suas sexualidades, devido à anos de desajustes e desequilíbrios que precisam ser revistos, só assim estes irmãos vão conseguir se preparar melhor para novas oportunidades na matéria.

O Espiritismo nos mostra que a homossexualidade não deve ser vista como algo negativo, muitas famílias enxotam filhos e membros do seio familiar devido a manifestações homossexuais ou bissexuais, maltratam e agridem estes indivíduos e muitas vezes os humilham, acreditando que tê-los na família deve ser visto como uma punição de Deus. Outros mais desequilibrados acabam matando seus familiares, se rendendo ao rancor e ao ressentimento que, muitas vezes, se encontra no âmago de seu ser e num momento de insanidade e desesperança.

Muitos casos de homossexualidade ou de bissexualidade estão vinculados a desequilíbrios em vidas anteriores, muitos irmãos mal barataram as questões sexuais, humilharam ou agrediram irmãos homossexuais e, nesta vida, passam por vivências que antes condenaram como forma de desenvolver a solidariedade, o respeito e a empatia, deixando de lado as críticas mais ácidas e os julgamentos, tão comuns em pessoas superficiais e hipócritas.

O desenvolvimento tecnológico abriu novos espaços para a manifestação do sexo e da sexualidade, as redes sociais expõem as agruras sexuais dos indivíduos, que perdem o pudor de se mostrarem em câmeras e aplicativos, alguns fazem destas exposições espaços de lucratividade e de rendimento, transformando o sexo em um negócio altamente lucrativo, faturando milhões e vivendo no lucro, no consumo irresponsável e na alienação intelectiva. As redes sociais, como nos foi dito por Umberto Eco deu voz aos idiotas, levando-os a uma exposição excessiva, onde fotos e vídeos circulam sem nenhum puder, buscando performance e rentabilidade, valores materiais e luxo, deixando de lado os verdadeiros valores da vida. Quando estes irmãos desencarnam e retornam ao mundo espiritual se frustram com suas opções superficiais e imediatistas, percebendo o quanto perderam tempo na vida, deixando uma oportunidade de crescimento passar e se deixar levar por prazeres que pouco contribuem para seu desenvolvimento espiritual e emocional.

Quando os jovens homossexuais ou bissexuais, nos anos 90, passaram a se ver na internet, nos canais de streaming e nas TVs por assinaturas, começaram a se comunicar e passaram a criar comunidades, que cresceram e ganharam adeptos, com isso, passaram a compreender que sua situação vivida por eles devia ser vista como algo natural, a homossexualidade e a bissexualidade se transformaram em um drama menor que poderia ser compartilhado com outras pessoas e, com isso, suas dificuldades poderiam ser reduzidas e deixadas para trás.

O amor e o sexo devem caminhar lado a lado, os valores ligados ao sexo e a sexualidade devem ser vistos como uma preservação do templo maior dos seres humanos, que tem em seus corpos um santuário que devem ser entregues quando os indivíduos retornarem ao mundo espiritual, a responsabilidade pelas nossas vestes materiais é de cada pessoa, intransponível, podemos usar da forma que acharmos conveniente, mas não devemos abusar deste uso, pois se assim o fizermos, seremos responsáveis pelo desgaste excessivo que impusermos ao nosso corpo material.

A visão que aprendemos nas letras espíritas não nos condenam por atitudes e comportamentos, somos livres para atuar e comandar nossos comportamentos, mas devemos ter em mente que assim como somos livres para decidir devemos ter consciência de que nossas escolhas e decisões tem importância e consequências, muitas delas imediatas que vão seguir conosco durante muitos anos.

No livro Nosso Lar, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito André Luiz, somos levados a conhecer a vida de um médico que quando acorda no mundo espiritual recebe a informação que seu desencarne foi obra de um suicídio indireto, o facultativo não queria se suicidar, mas abusou de seu corpo material de uma forma muito insana, viveu muitos relacionamentos e prazeres, muitos deles ligados ao mundo da sexualidade, e naquele momento teve de prestar constas a sua consciência, esta sim implacável e avassaladora.

Com estas novas formas de sexualidade, a sociedade passou a se ver de forma mais escancarada, neste momento passou a denegrir os indivíduos que apresentavam algumas dificuldades nesta área, com isso, passou a reprimir e tentar matar estes sentimentos que os homossexuais cultivam intimamente, desta forma aumentou os desequilíbrios emocionais dos indivíduos e abriu espaços para que os irmãos desencarnados que apresentavam o mesmo padrão vibratório se aproximassem e passassem a vampirizar estes indivíduos viventes no mundo material.

Somos dotados de energias variadas e atraímos as mais variadas energias no cotidiano, o sexo é um grande gerador de energias, segundo os especialistas as energias do sexo perdem apenas para as energias da mente, seu potencial é imenso, quando bem treinadas e educadas elas podem nos conduzir a amplos espaços de crescimento, atraindo boas vibrações e irmãos desencarnados, agora, quando deixamos estas energias nos dominar e nos comandar, atraímos entidades de baixo teor vibratório que nos causam graves constrangimentos no cotidiano.

Aqueles que vivem da exploração do sexo, quando deixarem o mundo material terão que responder por muitos desajustes e desequilíbrios impingidos a outros seres humanos, sem tirar a responsabilidade individual de cada indivíduo, somos chamados para um encontro com nossa consciência, é neste momento que encontramos as maiores dores, as maiores frustrações e os mais intensos sentimentos de que perderam tempo importante que não voltam mais, neste momento temos que nos perdoar e seguir em frente nos instruindo e nos capacitando para que quando uma outra oportunidade aparecer nós não mais nos envergonhemos de nossas decisões e comportamentos equivocados.

Suicídio, Depressão e as dores da alma da sociedade contemporânea

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A sociedade mundial vem passando por grandes transformações nos últimos trinta anos, modelos anteriormente responsáveis por forte crescimento econômico, geração de emprego e melhora nas condições de vida da população estão sendo substituído por paradigmas caracterizados por crises econômicas constantes, desemprego, desesperanças generalizadas e sentimentos de medo e melancolia, levando os indivíduos a medidas extremas, assustadoras e que pioram a situação de forma acelerada.

Neste ambiente de grande conflagração, percebemos um crescimento das violências em todos os grupos sociais, as famílias vivem momentos de grandes dificuldades, as empresas se encontram marcadas por medos e preocupações com novas tecnologias e aumento de despensas de funcionários, os governos vivem instantes de inquietações devido a acordos internacionais e pressões sociais e políticas, o mundo do século XXI é realmente um mundo de grandes preocupações, medos e desesperanças.

Diante destas crises e incertezas, as pessoas estão cada vez mais propensas a desatinos, os suicídios estão crescendo de forma acelerada, a cada quarenta segundos uma pessoa se suicida no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), gerando graves constrangimentos em seu entorno, desequilibrando familiares e gerando um ambiente de desespero e inseguranças, muitos recorrem a estas medidas extremos acreditando que assim vão conseguir fugir de suas dores, acreditando que conseguirão resolver suas dificuldades, esquecem-se de que o suicídio é o maior crime que o ser humano comete contra si, abrindo mão de seu corpo físico e fugindo de uma oportunidade que recebe para evoluir e se desenvolver, tal como nos mostra a lei de Deus.

Como este problema afeta milhares de pessoas em toda a sociedade internacional, o mês de setembro foi escolhido para a prevenção do suicídio, este mês recebeu a designação de Setembro Amarelo, uma forma de conscientização da sociedade dos males causados por este gesto insano e altamente irresponsável, onde o desespero do ser humano e a total falta de equilíbrio o leva a tirar a sua própria vida e mergulhar em choros e desajustes generalizados.

A mobilização da sociedade pode ser o caminho encontrado pelas instituições para reduzir os suicídios, campanhas de conscientização estão ganhando força e encantando as comunidades, peças de teatro falando sobre a temática, aplicativos que vasculham as redes sociais em busca de pensamentos ou frases que possam estimular o suicídio e identificar pessoas depressivas ou comunidade de indivíduos que são mais propensos a este gesto insano, a tecnologia pode auxiliar no atendimento e na reflexão sobre este tema tão atual, assustador e responsável por dores, constrangimentos e perturbações.

A Doutrina Espírita nos traz grandes informações sobre a temática do suicídio, nos mostrando através de uma literatura imensamente rica e variada as dores que acometem os indivíduos num momento como este, mesmo compreendendo que o indivíduo que se suicida está envolto em grande desespero, nos mostra que, muitos destes irmãos, ainda estão sendo acompanhados por entidades infelizes que o estimulam ao ato extremo, são irmãos doentes da alma, cujos corações se veem cercados por negatividades e ressentimentos, atuando para levar estes indivíduos mais incautos e desequilibrados, antecipando encontros revestidos em mágoas, ressentimentos e rancores.

A Doutrina nos relata as aflições e as agruras que esperam todos que optam pelo suicídio, escolhendo um caminho escuro e sem luz, uma escolha terrível com graves consequências, levando o indivíduo, rapidamente, a perceber que suas escolhas foram equivocadas e a fuga encontrada foi muito mais uma ilusão passageira do que uma solução para as verdadeiras dificuldades que o levaram até este gesto insano e altamente degradante.

A obra de Yvonne do Amaral Pereira dialoga com as questões ligadas ao suicídio e nos mostra o acordar do suicida no mundo espiritual, suas lembranças corroendo seu coração e pairando fortemente sobre sua mente, suas dores físicas e principalmente os remorsos que se avolumam na alma, criando medos, ressentimentos e uma forte sensação de desampara e desesperança, sentimentos que corroem a alma e transborda para seus irmãos encarnados de uma forma bastante intensa e insana.

Na sociedade contemporânea, percebemos um incremento vertiginoso do suicídio, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada quarenta segundos uma pessoa se suicida no mundo, estes indivíduos para cometer estes gestos insanos devem estar em momentos de grande desespero, atentar contra a própria vida deve ser visto como uma atitude extrema que causa dores fortes e indescritíveis na alma e no coração das pessoas.

Além do suicídio, percebemos um crescimento acelerado da depressão e da ansiedade, somente esta primeira acomete mais de quatrocentas milhões de pessoas na comunidade internacional, gerando sentimentos degradantes e medos generalizados e obrigando as autoridades mundiais a repensarem muitas das políticas que se disseminaram pela sociedade nos últimos trinta anos, marcadas pela crescente competição entre pessoas, empresas e países e uma busca alienada por bens e recursos monetários que acaba transformando tudo em mercadorias comercializáveis nos mercados internacionais.

Os vazios dos indivíduos, a superficialidade das relações sociais, a competição selvagem e degradantes, as dificuldades de ascensão social, o poder do dinheiro e os medos com os rumos da sociedade, estão levando os indivíduos a caminhos perigosos. A busca pelo possuir, pelo ter e pelo comprar está escondendo da natureza dos relacionamentos o verdadeiro eu de cada indivíduo, as razões da existência e os sentidos da vida, culminando em seres cada vez mais imediatistas, materializados e altamente instáveis, se comportando igualmente ao sistema econômico dominante da sociedade internacional.

O modelo econômico dominante na sociedade internacional gera um incremento na instabilidade e nas incertezas nas pessoas, possibilitando graves desequilíbrios nos indivíduos, obrigando setores ligados a saúde a aumentarem os investimentos em pesquisas e em novas drogas, com isso percebemos que os dispêndios destes setores estão nos níveis mais elevados dos últimos anos, levando a criação de drogas e medicamentos que dopam os indivíduos e os tiram da realidade social, evitando uma maior reflexão sobre as causas desta insanidade coletiva que, ao mesmo tempo, que incrementa as descobertas científicas e tecnológicas, levam os indivíduos a acelerarem as dores da alma e os desajustes emocionais e psicológicos.

As fugas e os medos atemorizam os indivíduos, somados à convicção de que a vida é única e pessoal, levam cidadãos incautos a comportamentos imediatistas, deixando de lado a construção de relacionamentos mais sólidos e serenos, boicotando o meio ambiente, a preservação da vegetação e deixando de lado a ética e a moral, tudo isto ajuda a compreender como estamos desolados e, como seres humanos, perdidos em um mundo cujas estruturas estão em franca destruição e novas bases estão sendo construídas, cabendo a cada indivíduo uma busca pelo seu equilíbrio interior sob pena de perder a razão e se entregar para uma sociedade degradante e patologicamente afetada.

Na sociedade contemporânea os indivíduos estão cada vez mais vazios e cheios de pobreza espiritual, concentram-se em valores transitórios e confundem conceitos fundamentais, se entregam as facilidades materiais e deixam de lado os valores do espírito, da imortalidade da alma e da continuidade da vida. A Doutrina dos Espíritos nos traz uma outra forma de enxergar a realidade, desde a publicação de O Livro dos Espíritos (1857), uma nova realidade foi revelada para a sociedade mundial, enfraquecendo os valores materiais e deixando claro que a vida transcende a matéria, somos espíritos estagiando em corpos materiais, a verdadeira vida está no mundo dos espíritos, a matéria é transitória.

Vivemos um mundo de grandes transformações de todas as naturezas, todas as bases que sustentam esta nova sociedade estão em franca modificação, se compararmos com as sociedades anteriores centradas nas famílias, nas escolas e nos locais de trabalho, percebemos mudanças extraordinárias com impactos generalizados sobre todos os indivíduos. As famílias estão sendo alteradas, os modelos tradicionais estão dando espaço para novas configurações, transformando as noções de gêneros e de relacionamentos. As escolas que sempre foram vistas como o local do conhecimento e dos conteúdos intelectuais estão perdendo seu pedestal, na atualidade outras arenas estão surgindo e alterando os modelos escolares, como as redes sociais, as plataformas de palestras e aulas, como educação a distância, youtube, plataformas de streamings… dentre outros.

O mundo do trabalho em constante transformação está alterando rapidamente o emprego e as ocupações dos indivíduos, exigindo uma intensa qualificação, cursos e novas capacitações e, mesmo assim, não mais garantem que estes indivíduos consigam se posicionar no mercado de trabalho, gerando medos e ansiedades em todos os grupos sociais, dentre eles os jovens e os adolescentes que percebem nestas mudanças uma grande dificuldade de progresso, levando-os, muitas vezes a depressões, ansiedades e nos extremos suicídios como uma forma de fugir das pressões sociais e familiares que os oprimem intensamente.

Percebemos nesta sociedade um grande distanciamento dos membros da família, os familiares pouco conversam, com o aumento das atividades as pessoas estão cada vez mais concentradas em seus afazeres do cotidiano, os pais estão envoltos em trabalhos e estudos que deixam seus filhos para segundo plano, muitos acreditam que o mergulho nas atividades profissionais tende a garantir recursos para satisfazer as necessidades pessoais dos filhos, esquecendo que estão deixando de lado a construção de relacionamentos muito mais sólidos e consistentes, o estar presente no cotidiano dos filhos, o conversar e o acompanhar diário tende a servir como um grande elixir contra vários vícios contemporâneos, auxiliando na construção dos anticorpos necessários para afugentar as crianças e os adolescentes de drogas, violências e a criminalidade crescentes.

O papel dos pais é fundamental para construir famílias mais sólidas e relacionamentos mais consistentes, quando este ente se distancia dos filhos e os deixa em segundo plano, muitos desajustes passam a acompanhar estes adolescentes, transformando a família e contribuindo para que vícios e desequilíbrios destruam as relações, cabe aos país ou responsáveis a criação e a educação dos seus filhos e não mais deixá-los de lado e terceirizar seu papel e sua responsabilidade no cotidiano dos menores e, muitas vezes, indefesos.

O livro Memórias de um suicida, de Yvonne do Amaral Pereira, nos mostra que a fuga das dificuldades não se dá via suicídio, muitos daqueles que se enveredaram por este caminho tiveram que encarar as agruras desta decisão deplorável e insana, passaram uma longa temporada em regiões trevosas, conviveram com as mazelas humanas, as dores mais íntimas e a degradação dos seres humanos, tudo isto serve de alerta para que os indivíduos repilam imensamente este caminho, cujos males se apoderam da alma e causam graves constrangimentos ao coração.

Vivemos em uma sociedade doente, as dores da alma acometem todas as classes sociais, não diferenciando países, crenças e nacionalidades, gerando mágoas e ressentimentos intensos, a raiz destes desequilíbrios está na ausência de Deus e dos valores verdadeiros da solidariedade, do amor e da família, somos indivíduos em constantes transformações, a busca do conhecimento não deve se restringir aos conhecimentos materiais, sempre imediatistas e superficiais, temos que nos enveredar também pela busca dos valores do espírito, que estão inseridos no íntimo de cada ser humano e foram inscritos pelas variadas experiência que tivemos e dos sentimentos que cultivamos, este mergulho é essencial e inadiável e deve ser feito de forma individual, sem este mergulho viveremos em um mundo superficial e continuaremos a culpar os outros indivíduos pelas inconsistências que vivemos e nos atrelamos intimamente.

A sociedade mundial está percebendo que estas patologias estão gerando graves constrangimentos para toda a sociedade, com o incremento da depressão, da ansiedade e do suicídio, o ambiente se sobrecarrega de energias negativas e contaminadas de incertezas e desequilíbrios, estas energias estão acometendo as pessoas e levando as comunidades a degradações morais que nos impedem de entender e de compreender os verdadeiros valores da vida, perpetuando dores intensas e misérias morais e limitações espirituais.

O suicídio, a depressão e a ansiedade são patologias que crescem de forma acelerada na sociedade contemporânea e nos mostra intimamente que os verdadeiros valores da vida são mais simples e modestos do que os indivíduos querem acreditar, a consciência tranquila, o coração carregado de paz e de solidariedade e o trabalho no bem nos levam a construir valores morais e éticos sólidos que tende a nos levam para caminhos mais seguros e eficientes, a dois mil anos recebemos estas informações de forma serena e equilibrada e, mesmo depois destes anos, ainda insistimos em buscar a felicidade em riquezas materiais e passageiras, com isso, mergulhamos em depressão, ansiedade e enveredamos para o suicídio.

A empresa do tráfico de drogas e a proliferação da pobreza no norte e no nordeste. Entrevista especial com Roberto Reis Netto.

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 Por: Patricia Fachin | 06/09/2019

Os altos índices de violência nos estados do Norte e Nordeste podem ser explicados pelo fato de que essas regiões foram privadas de “políticas públicas de desenvolvimento regional”, diz Roberto Magno Reis Netto, especialista em segurança pública pela Universidade Federal do Pará. A falta de políticas públicas, acentua, “acabou desembocando em um verdadeiro apartheid social, que aos poucos foi integrando essas pessoas a outras economias menos formais e, dentre elas, as economias ilícitas, as economias do crime”.

Nos últimos anos, Reis Netto tem estudado a integração de presídios às redes territoriais do tráfico de drogas no Norte do país e, consequentemente, a atuação das facções na região e suas implicações sociais. Altamira, município que foi palco da construção da hidrelétrica de Belo Monte nos governos Lula e Dilma, é um exemplo “marcante” da violência no estado do Pará, onde as facções estão em expansão desde 2010. Cidades como essa, menciona, propiciaram o surgimento de uma massa de trabalhadores que, por estarem abandonados à própria sorte, encontraram no tráfico “uma grande possibilidade de inserção”.

Igualmente, o pesquisador também vem investigando a relação do tráfico de drogas com a proliferação da pobreza na região Norte. Segundo ele, “o tráfico se dá utilizando, e muito — é uma hipótese que estamos levantando —, a droga enquanto dinheiro-mercadoria, isto é, se negocia o transporte da droga com uma parcela da droga transportada. Por exemplo, se alguém transporta 100 quilos de droga e recebe por esse transporte 10 quilos de droga, e se essa pessoa comercializa a droga na sua região, o traficante está possibilitando um ganho de valor agregado muito maior do que poderia ser possibilitado em dinheiro, fora os problemas de câmbio que teria na região e os problemas de se tornar visível para os órgãos fiscais, que fragilizam o negócio. Quando um traficante paga o transporte da droga com uma pequena quantidade de droga, quem recebe o resíduo pode contratar pequenos varejistas, pulverizar essa droga por aí e conseguir um ganho de valor pelo seu refino e diminuição do seu grau de pureza, lucrando bastante na própria região. Com isso, o que está acontecendo? A pessoa está extraindo dinheiro da sua própria região para si mesmo, que pode ser disfarçado por uma série de mecanismos de lavagem de dinheiro e, sim, realocando a economia e o poder local. Se isso, no fim das contas, resulta em pobreza? Eu penso que toda a concentração de dinheiro nas mãos de alguém, na outra ponta vai ocasionar pobreza”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, ele adverte ainda que “temos que olhar para o tráfico como uma empresa, temos que entender o fluxo de capitais dentro do tráfico de drogas como um verdadeiro fluxo de caixa. Enquanto ficarmos olhando o tráfico de drogas como crime demonizado feito por pessoas que não usam terno e gravata, estaremos agindo de forma mais do que completamente equivocada, inclusive quanto a se pensar sobre a legalização ou a não legalização [das drogas]”.

 Roberto Reis Netto é graduado em Direito e mestre em Segurança Pública pela Universidade Federal do Pará – UFPA, e doutorando em Geografia, na linha dinâmicas territoriais na Amazônia, com ênfase em geografia e segurança pública. Atualmente é professor do curso de graduação em Direito, na Escola Superior Madre Celeste – ESMAC, e instrutor no Instituto de Ensino de Segurança Pública do Pará – IESP.

IHU On-Line — Segundo o Atlas da Violência 2019, os estados do Norte e Nordeste estão entre os mais violentos do país. A que atribui esse quadro?

Roberto Reis Netto — O Norte e o Nordeste estão despontando em termos de violência por serem regiões historicamente esquecidas por uma série de políticas públicas de desenvolvimento regional. Não falo, por exemplo, das políticas de desenvolvimento da Zona Franca e de projetos; falo de políticas públicas voltadas ao atendimento dos setores básicos da população, como educaçãosaúde, integração de diversas áreas pauperizadas a outras, que realmente prestam serviços nas cidades. Então, isso acaba desembocando em um verdadeiro apartheid social, que aos poucos vai integrando essas pessoas a outras economias menos formais e, dentre elas, as economias ilícitas, as economias do crime. Principalmente quando falamos na rede de tráfico de drogas, em nível nacional, regional e local, estamos falando de uma rede que funciona à imagem e semelhança de uma verdadeira empresa, porque costuma agregar pessoas para diversas funções. As funções da ponta do varejo são ocupadas pelas parcelas mais esquecidas da população, justamente aquelas pessoas mais pobres, que acabam vendo na economia do tráfico uma possibilidade de conseguir o que o mercado formal não lhes dá.

IHU On-Line — O senhor já comentou em outras ocasiões que o crescimento econômico e populacional de Altamira, no Pará, estimulado pela construção da usina de Belo Monte, fomentou a atuação das gangues na cidade. Pode nos contar como aconteceu esse processo? Qual é o perfil dos membros dessas gangues?

Roberto Reis Netto — O caso de Altamira é justamente um exemplo marcante disso. Com o estabelecimento dos grandes projetos, não só nesse município, mas em vários outros, é muito fácil de observar um grande fluxo populacional que se estabelece nessas áreas, principalmente durante a fase de construção da hidrelétrica de Belo Monte. Essas mesmas pessoas que, obviamente, no início são aproveitadas e lastreadas pelas empresas dentro de empreendimentos e vilas, logo em seguida são abandonadas à própria sorte, dentro de uma economia que acaba se estabelecendo nas cidades. Essas pessoas que a princípio habitariam a vila de operários, logo em seguida começam a ocupar as zonas precárias das cidades ou os chamados aglomerados subnormais, isto é, as invasões que vão surgindo ao longo desse processo. De novo: áreas esquecidas pelo Estado, que vão propiciando o surgimento de uma massa de trabalhadores, que alguns chamam de massa de trabalhadores de reserva ou exército de reserva no mercado de trabalho, que é muito utilizada pelo tráfico de drogas, justamente por serem pessoas que estão lá, à própria sorte, querendo ingressar em uma economia ou em algo que lhes renda esses bens de consumo que a sociedade tanto promete. O tráfico chega com uma grande possibilidade de inserção.

As facções acabam batizando grupos locais (as gangues), como ocorre com o Comando Vermelho – CV. Observamos que são pessoas com um perfil predeterminado específico, que é o mesmo perfil das pessoas que estão encarceradas neste exato momento: na sua maioria, pretos e pardos, que compõem, pelo IBGE, a chamada raça negra; em segundo lugar, pessoas extremamente jovens, figurando entre os 18 e 29 anos; pessoas de baixa escolaridade, que só cursaram até o ensino fundamental; e, obviamente, pessoas oriundas de zonas pauperizadas da cidade, a maior parte também presa por crimes contra o patrimônio, como roubo e furto, e por tráfico de drogas. Em primeiro lugar, observamos os crimes contra o patrimônio, seguido do tráfico de drogas no estado do Pará. Essa tendência se repete em vários outros estados da federação.

IHU On-Line — É possível identificar a partir de que momento as facções passaram a atuar nas regiões Norte e Nordeste do país? Essas regiões têm alguma especificidade que faz com que as facções atuem ali?

Roberto Reis Netto — Não existe um lastro predeterminado. Dois delegados do estado do ParáDr. Fernando de Souza Rocha e Dr. Mac Dowell Fortes Silveira Cavalcanti Filho, estão pesquisando a história das facções no estado. Alguns pesquisadores relatam que a primeira aparição do Comando Vermelho na região teria se dado por meio de uma pessoa ainda na década de 1990, mas não há dados precisos a respeito disso. Com certeza, ao longo dos anos 2000 houve um estabelecimento dessas facções em nosso estado [Pará], as quais em seguida se consolidaram com mais força na década seguinte, quando houve a grande expansão das facções criminosas, principalmente no Pará. No Amazonas esse fenômeno é um pouco anterior, sobretudo por conta da importância que o Amazonas tem em relação aos países que são produtores de cocaína. Há também alguns relatos anteriores em relação, principalmente, ao Acre e, residualmente, ao Amapá. Mas no Pará, a principal inserção das facções foi no início dos anos 2000 e a grande expansão foi na década de 2010.

Quanto à especificidade, temos que considerar que o Norte e o Nordeste têm uma rota direta, com muitos rios, com um espaço aéreo de difícil fiscalização, com matas que permitem uma circulação à revelia dos órgãos fiscais do Estado em diversos sentidos. Então, esse território acaba sendo muito importante para o fluxo das drogas que vêm da região Andina, como PeruColômbia e Bolívia, embora hoje se fale também na Venezuela. Mas, notadamente, segundo o World Drug Report, esses países são os principais fornecedores de cocaína e dos produtos que dão origem à cocaína, como a pasta base.

Então, justamente pela possibilidade de escoamento do produto rumo à Europa via portos do Norte ou da chamada rota Caipira, principalmente no estado de São Paulo, o Brasil e o Norte e Nordeste adquirem uma importância muito forte nessa rede de escoamento internacional. Quanto menor a fiscalização, mais barato sai para transportar o produto à Europa, onde ele ganha um valor agregado muito maior.

IHU On-Line — A disputa entre as facções nos presídios se manifesta nas ruas do Pará? Ainda nesse sentido, como os jovens são afetados ou cooptados pelas facções?

Roberto Reis Netto — A disputa das facções é muito mais sensível dentro dos presídios. Inclusive, neste momento, estou em São Paulo defendendo um trabalho sobre isso, falando sobre uma cartografia biopolítica das facções criminosas. Até mesmo a forma como se dá a morte de uma pessoa dentro da cadeia, mostra a potencial presença de uma facção. Por exemplo: em 2018 despontou no estado do Pará o número de suicídios, que na verdade não são suicídios, são simulações de suicídios para evitar inquérito contra as pessoas que cometeram o verdadeiro homicídio dentro do cárcere.

Quanto às ruas, as facções costumam evitar o conflito: a primeira regra é evitar o conflito, porque isso chama a atenção da polícia, da imprensa e dos órgãos de segurança pública em geral, tornando visível a ação das facções, quando na verdade elas têm o interesse de que suas redes fiquem no anonimato, fiquem escondidas. Porém, é muito comum observarmos casos de pessoas que são mortas. Por exemplo, se uma pessoa é identificada como pertencendo a uma facção, a outra facção costuma rastreá-la e aplicar-lhe uma pena, que costumam chamar de “decreto”, condenando essa pessoa a uma morte cruel, muitas vezes filmada e disseminada pela internet como exemplo para os contrários.

IHU On-Line — Quais são as implicações sociais da existência do tráfico no Norte e no Nordeste? Ele contribui para a proliferação da pobreza nessas regiões?

Roberto Reis Netto — Neste momento, como uma parte muito importante da minha tese, estou defendendo algo que se vincula à ideia do que você perguntou: se o tráfico ajuda na proliferação da pobreza. Na verdade, o tráfico se dá utilizando, e muito — é uma hipótese que estamos levantando —, a droga enquanto dinheiro-mercadoria, isto é, se negocia o transporte da droga com uma parcela da droga transportada. Por exemplo, se alguém transporta 100 quilos de droga e recebe por esse transporte 10 quilos de droga, e se essa pessoa comercializa a droga na sua região, o traficante está possibilitando um ganho de valor agregado muito maior do que poderia ser possibilitado em dinheiro, fora os problemas de câmbio que teria na região e os problemas de se tornar visível para os órgãos fiscais, que fragilizam o negócio. Quando um traficante paga o transporte da droga com uma pequena quantidade de droga, quem recebe o resíduo pode contratar pequenos varejistas, pulverizar essa droga por aí e conseguir um ganho de valor pelo seu refino e diminuição do seu grau de pureza, lucrando bastante na própria região. Com isso, o que está acontecendo? A pessoa está extraindo dinheiro da sua própria região para si mesmo, que pode ser disfarçado por uma série de mecanismos de lavagem de dinheiro e, sim, realocando a economiae o poder local. Se isso, no fim das contas, resulta em pobreza? Eu penso que toda a concentração de dinheiro nas mãos de alguém, na outra ponta vai ocasionar pobreza.

IHU On-Line — A sua pesquisa de mestrado tratou sobre a integração de presídios às redes territoriais do tráfico de drogas. Quais são os principais resultados dessa pesquisa acerca da integração dos presídios às redes de tráfico?

Roberto Reis Netto — Quanto à minha pesquisa de mestrado, que está disponível na internet, foram identificadas seis estratégias das quais o tráfico de drogas, sejam os grandes traficantes, as facções ou os pequenos traficantes, costumam se valer para integrar as cadeias e as redes territoriais externas. A primeira delas é a busca por uma associação interna entre os presos de modo a aproximá-los e unir suas próprias redes, fortalecendo seus vínculos e seus poderes internos e, com isso, sua capacidade de gestão dos negócios. Em segundo lugar, eles buscam, por meio dessa associação interna, uma associação externa, ganhando mais espaço com as redes pelos contatos que têm fora da cadeia, como os parentes, advogados e facções aliadas. Em terceiro lugar, costumam cooptar agentes do sistema penitenciário — este é o tema de um artigo que vou publicar em breve, que é uma parte inédita da minha dissertação —, seja pelo dinheiro, que é a forma preponderante, seja pelo medo, que é um fator que nós encontramos no estado do Pará, seja, residualmente, por concordância ideológica, o que ninguém pode afirmar se existe no Brasil. É muito comum observar que as facções usam os agentes penitenciários pela facilidade de eles estarem nos dois mundos — interno e externo — como importantes trunfos de poder.

Em seguida, costumam estabelecer uma rede interna de tráfico de drogas, e a droga não vale só como um comércio dentro da cadeia; ela também é um trunfo de poder, porque quem controla a droga, controla a população carcerária e a massa de consumidores. Além disso, observamos que eles costumam usar meios de comunicação e essa é uma estratégia muito forte para conseguirem manter a informação com o mundo externo, que são inseridos pelas formas mais diversas dentro das cadeias, tal qual as drogas — hoje se fala até no uso de drones, por exemplo. E, finalmente, há um enfrentamento direto com o poder público, seja de forma velada, por greves brancas e de fome, seja por uma forma mais direta, por meio de fugas e rebeliões. No Pará, no ano de 2018, houve uma tentativa de fuga que resultou na morte de 22 pessoas, inclusive de civis que, infelizmente, passavam pela região no momento do ataque realizado por uma determinada facção. As facções ainda se utilizam de meios de contrainteligência, que são formas de neutralizar as ações dos órgãos de inteligência, evitando que eles levantem informações sobre as facções. Basicamente foram essas seis estratégias identificadas.

IHU On-Line — Sua pesquisa de doutorado é sobre as estratégias de intangibilidade territorial dos macroagentes do tráfico de drogas. Pode explicar em que consiste?

Roberto Reis Netto — Quanto à minha pesquisa de doutorado, ela vai tentar verificar os agentes que estão no nível acima daqueles visíveis. Aqueles que são apontados como violentos, estigmatizados, dessa vez não são os que me interessam, pois quero saber quem está acima deles, agregando a questão em nível regional e internacional. Como esses caras fazem para não serem vistos, notados ou identificados? Essa é a grande proposta da minha tese de doutorado, por isso que falo em uma intangibilidade territorial: eles não conseguem ser atingidos, embora, às vezes, até sejam vistos.

Quanto aos territórios em disputa, certamente podemos falar dos presídios de toda a região em que as facções se instalaram como fornecedores de drogas dentro das redes da Região Amazônica e a principal rede do Centro-Sul, que é a chamada Rota Caipira, que começa em Mato GrossoMato Grosso do Sul e se estende por São PauloRio de Janeiro e todas as áreas portuárias anexas a esses dois estados, além de outras que são mais residuais, mas também existem.

No Pará, especialmente nas regiões metropolitanas, há uma presença marcante das facções, principalmente nos centros urbanos agregadores de capital, que é para onde o dinheiro com certeza vai para ser lavado. Então, certamente podemos falar nessas regiões, além de outras cidades que representam “nós” dentro da rede, como, por exemplo, Altamira, que tem uma representatividade muito forte dentro do Primeiro Comando da Capital – PCC, que é vinculado ao Comando Classe A – CCA. Essa facção surgiu localmente associada ao PCC por meio de um jogo de transferência de internos, permitindo a cooptação de um deles há alguns anos, e ao Comando Vermelho, que é a principal facção hegemônica no estado.

IHU On-Line — Como surgiu a facção Comando Classe A – CCA?

Roberto Reis Netto — O surgimento da facção CCA ocorreu por meio das transferências de internos, que é algo que estudo no artigo que será publicado. As transferências de internos são apontadas como o principal meio de disseminação da ideologia das facções. Assim, a CCA surgiu dessa forma em Altamira, por meio de um preso que foi mandado para o regime federal e já voltou faccionado pelo PCC.

IHU On-Line — Quais são as relações do Comando Classe A com o PCC e o CV?

Roberto Reis Netto — As relações entre o PCC e o CCA seguem a lógica nacional em nosso estado: elas estão em conflito neste exato momento porque são as duas grandes transportadoras nacionais. Pela ilegalidade das funções, elas concorrem de maneira violenta, principalmente dentro dos presídios. O massacre de Altamira é um grande exemplo disso.

IHU On-Line – Também existem milícias atuando no Pará?

Roberto Reis Netto — Sim, existem milícias, mas suas características ainda são muito distantes das milícias cariocas que exploram o tráfico de drogas e uma rede de serviços ilegais, como abastecimento de gás e rede de TV a cabo ilegal dentro de determinadas áreas dominadas por esse poder paralelo. No Pará não é assim. No estado, as milícias estão associadas à figura do matador, aquele indivíduo que quer fazer justiça com as próprias mãos, eliminando o criminoso, mas ao mesmo tempo promete segurança para um determinado conjunto de comerciantes, os quais pagam esse indivíduo para se livrarem das más pessoas da região.

IHU On-Line — As facções que atuam nas regiões Norte e Nordeste têm relações com a classe política no âmbito municipal, estadual e federal?

Roberto Reis Netto — A literatura costuma apontar a existência da associação à classe política nos âmbitos municipal, estadual e federal. Mas, neste momento, no atual nível da minha pesquisa de mestrado, os entrevistados, até mesmo por serem pessoas ligadas ao Estado, não me apontaram a existência disso. Ouvi relatos de que no Amazonas teve todo um conjunto de relações acordadas politicamente para o estabelecimento de facções em determinadas cidades, mas é uma informação sensível e prefiro não entrar em detalhes. No entanto, na região metropolitana de Belém, no município de Ananindeua, tem um caso muito específico de um vereador que teria ligação com o tráfico, o qual chegou inclusive a ser preso cerca de um ano atrás numa megaoperação que ocorreu na região. Então, existe. É difícil dizer, mas onde corre muito dinheiro, certamente corre política.

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Roberto Reis Netto — Gostaria de desmistificar algo que é muito importante dentro da minha tese: temos que olhar para o tráfico como uma empresa, temos que entender o fluxo de capitais dentro do tráfico de drogas como um verdadeiro fluxo de caixa. Enquanto ficarmos olhando o tráfico de drogas como crime demonizado feito por pessoas que não usam terno e gravata, estaremos agindo de forma mais do que completamente equivocada, inclusive quanto a se pensar sobre a legalização ou a não legalização [das drogas]. Neste momento, por exemplo, não me julgo a favor da legalização ou descriminalização das drogas; é preciso uma forte política educacional nesse sentido no país. Porém, temos que desmistificar uma coisa muito forte: o tráfico de drogas não é uma atitude criminosa por si; antes de mais nada, é uma atividade econômica que foi criminalizada e que dá muito dinheiro. E é sob essa ótica que temos que compreender o tráfico de drogas no país e no mundo.

IHU On-Line – O pacote anticrime proposto pelo ministro Moro dá conta de entender e investigar o fluxo de capitais do tráfico de drogas? Que avaliação faz do pacote?

Roberto Reis Netto – Eu concordo com o pacote do ministro Moro em muitos sentidos, porque esse endurecimento há tempos era necessário. Só que de outro lado, tem que ser feita uma crítica de que não adiante somente repetir os erros do passado, no sentido de que o tráfico de drogas tem que ser realmente enfrentado enquanto empresa e não enquanto uma atividade que é desempenhada supostamente em favelas, em aglomerados subnormais, em zonas de explosão. É necessário compreendermos que o tráfico é articulado num nível muito mais alto do que o nível desses locais precarizados. O tráfico, inclusive, se imbrica e envolve os níveis políticos do nosso Estado, e a corrupção é algo diretamente ligado a esse mesmo tráfico. Portanto, o pacote é muito interessante, traz medidas muito importantes, mas se ele não for bem aplicado e se não for feita a autocrítica que ele merece, ele é só mais uma medida de repressão e não vai combater a essência real do problema.

Nesse sentido, tem um ponto a se elogiar dentro do pacote do ministro Moro, que é o investimento em órgãos de atividade em inteligência. Só que todo órgão de atividade em inteligência exerce uma função cuja atuação final depende do gestor. Então, os órgãos de inteligência vinculados à Presidência da República dependem de uma decisão final do presidente. É ele quem vai dar eventual basta no tráfico de drogas. Os governos dos estados, a mesma coisa. As superintendências da Polícia Federal, a mesma coisa. Enfim, ainda se depende muito de uma atuação política realmente comprometida com os propósitos da segurança pública. É isso que estamos aguardando. O pacote pode geralmente criar isso. Está dando poderes para que isso aconteça, mas, no fim das contas, repito, depende de uma atuação concreta, coerente e politicamente vinculada com a Constituição da República por parte dos órgãos com poder decisório final.

 

 

 

 

Poderia o capitalismo ser menos brutal?

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Joseph Stiglitz e Ladislau Dowbor

Em manifesto, 102 executivos-chefes de megacorporações prometem refrear a própria voracidade e não pensar apenas nos lucros. Revisão dos dogmas neoliberais ou jogada de marketing? Joseph Stiglitz e Ladislau Dowbor comentam:

“O mercado consegue fazer com que as empresas não enxerguem no longo prazo e não invistam suficientemente em seus trabalhadores e comunidades. Por isso, é um alívio que líderes corporativos, que supostamente deveriam ter uma visão profunda e interna do funcionamento da economia, finalmente tenham visto a luz e se atualizado com a economia moderna, mesmo tendo demorado mais de 40 anos para perceber isso”, escreve Joseph Stiglitz, economista e prêmio Nobel da Economia, em artigo publicado por Outras Palavras, 04-09-2019. A tradução é de Simone Paz.

Será exagerado dizer que o capitalismo está à procura de novos rumos? As grandes corporações atuam no espaço planetário, onde não há governo, regulação ou regras do jogo. As maiores simplesmente não pagam impostos, ou recolhem 0,05% dos lucros como a Apple. Os desastres ambientais e sociais estão se generalizando, mas para as corporações trata-se de “externalidades”. A desigualdade atinge níveis explosivos, mas os bancos vão bem. Em paraísos fiscais temos 200 vezes mais recursos financeiros do que o a Conferência Mundial sobre o Clima decidiu, e mal consegue, levantar. Fraudes em medicamentos, alimentos que generalizam a obesidade, inclusive infantil, trambiques em emissões de veículos, agrotóxicos e antibióticos nos alimentos — é um clima de vale-tudo.

A indignação está se generalizando, e 181 corporações (gigantes como AmazonJP MorganApple etc.) decidiram que o credo que valia desde os anos 1980, com Milton Friedman, de que as empresas devem pensar apenas nos lucros, não é suficiente. Os impactos ambientais e sociais que provocam fazem parte das suas responsabilidades. Após 40 anos de neoliberalismo irresponsável, há novos caminhos? É saudável recebermos a notícia com ceticismo, a cosmética corporativa tem longa tradição. Mas também é fato que pelo jeito as corporações estão sentindo o calor da irritação social. Stiglitz faz a proposta essencial: novas leis e regras devem ancorar essas boas intenções corporativas. (Ladislau Dowbor)

Nas últimas quatro décadas, a doutrina prevalecente nos EUA tem sido a de que as corporações devem potencializar os valores para seus acionistas — isto é, aumentar os lucros e os preços das ações — aqui e agora, não importa o que aconteça, sem se preocupar com as consequências para os trabalhadores, clientes, fornecedores e comunidades. Logo, a declaração que defende um capitalismo consciente e que foi assinada este mês por quase todos os membros da Business Roundtable causou um grande alvoroço. Afinal de contas, trata-se dos executivos-chefes das companhias mais poderosas dos EUA, dizendo aos norte americanos que o mundo dos negócios é muito mais do que apenas balanços patrimoniais. E isso é uma baita virada de jogo, não é mesmo Milton Friedman, o teórico do livre mercado e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, influenciou não somente espalhando a doutrina da supremacia dos acionistas, mas também garantindo que fosse inscrita na legislação estadunidense. Ele chegou a declarar “há somente uma responsabilidade social nos negócios: usar seus recursos e comprometê-los em atividades que aumentem seus lucros”.

A ironia está no fato de que logo após Friedman ter promovidos tais ideias, e mais ou menos na época em que elas se popularizavam e consagravam nas leis da administração corporativa — como se fossem baseadas em teorias econômicas sólidas — Sandy Grossman e eu, num conjunto de artigos do final dos anos 1970, demonstramos como o capitalismo acionário não melhorava o bem-estar social.

Isto é obviamente verdadeiro quando há tantas “externalidades” relevantes, como a mudança climática, ou como quando as corporações contaminam o ar que respiramos e a água que bebemos. E isto é ainda mais verdadeiro quando nos empurram produtos prejudiciais à saúde, como bebidas açucaradas que colaboram com a obesidade infantil, ou analgésicos que desatam uma epidemia de vício em opióides, ou quando exploram os vulneráveis, como é o caso da Trump University e tantas outras instituições de ensino superior norte-americanas com fins lucrativos. E também é real quando lucram exercendo o poder de mercado, como tantos bancos e empresas de tecnologia fazem.

Mas é ainda mais verdadeiro de modo geral: o mercado consegue fazer com que as empresas não enxerguem no longo prazo e não invistam suficientemente em seus trabalhadores e comunidades. Por isso, é um alívio que líderes corporativos, que supostamente deveriam ter uma visão profunda e interna do funcionamento da economia, finalmente tenham visto a luz e se atualizado com a economia moderna, mesmo tendo demorado mais de 40 anos para perceber isso.

Mas será que esses líderes empresariais pregam essa mudança de verdade, ou seria somente uma declaração num gesto retórico, em face de uma reação popular contra o tão disseminado mau comportamento? Há razões para acreditar que eles estão sendo mais do que apenas um pouco dissimulados.

A principal responsabilidade das corporações é o pagamento de impostos, e entre os signatários da nova visão empresarial estão mega-evasores de impostos, incluindo a Apple, que, de acordo com suas contas, continua utilizando paraísos fiscais, como Jersey. Outros deles, apoiaram a nova política de impostos proposta em 2017 por Donald Trump. Ela reduz os impostos para corporações e bilionários, elevará os impostos para a maioria das famílias de classe média e fará com que milhares percam seus seguros de saúde — num país com o nível de desigualdade mais elevado, os piores resultados na área da saúde, e a menor expectativa de vida, entre os principais países economicamente desenvolvidos. E embora esses líderes de mercado defendam que o corte de impostos traz mais investimento e melhores salários, os trabalhadores acabam recebendo apenas uma ninharia. A maior parte do dinheiro acaba sendo utilizada para recomprar ações, o que serve para, basicamente, alinhar os bolsos dos investidores e dos executivos-chefes com esquemas de incentivo e valorização das ações.

Um senso de responsabilidade sincero e verdadeiro faria com que líderes de corporações aceitassem regulamentações mais fortes para proteger o meio ambiente e para melhorar a saúde e segurança de seus empregados. Algumas poucas companhias automobilísticas (HondaFordBMW e Volkswagen) têm feito isso, defendendo regras mais firmes do que as impostas pelo governo Trump, já que o presidente atual trabalha no desmonte do legado ambiental construído por Barack Obama. Há inclusive executivos de empresas de bebidas não-alcóolicas que parecem estar envergonhados pela sua influência na obesidade infantil, a qual costuma levar à diabetes, pois eles sabem disso.

Porém, embora muitos executivos-chefes queiram fazer o correto (ou tenham familiares e amigos que se preocupam com essas questões), eles sabem que têm concorrentes que não. Deveria existir condições equitativas, que garantissem que empresas conscientes não se vissem prejudicadas por aquelas que não têm preocupação alguma. É por isso também que muitas corporações desejam e pedem normas contra as propinas, e querem regras que protejam o meio ambiente, além da segurança e saúde nos locais de trabalho.

Infelizmente, muitos dos grandes bancos cujo comportamento irresponsável provocou a crise financeira global de 2008 não estão nesse grupo. Mal havia secado a tinta da legislação da reforma financeira da Lei Dodd-Frank, em 2010 — a qual endureceria as normas, com o intuito de evitar a recorrência das crises — quando os bancos começaram a trabalhar para revogar algumas das medidas-chave. Entre eles, estava o JP Morgan Chase, cujo diretor é Jamie Dimon, presidente atual do Business Roundtable. Considerando as políticas norte americanas, tão pautadas pelo dinheiro, não surpreende o fato de que os bancos tenham esse êxito todo. Uma década após a crise, alguns bancos ainda lutam contra ações judiciais movidas por aqueles que foram prejudicados em vista de seu comportamento irresponsável e fraudulento. Eles esperam que seus grandes bolsos permitam-lhes permanecer na disputa mais do que quem os processa.

A nova postura dos diretores mais poderosos dos EUA é, obviamente, bem-vinda. Mas teremos que esperar para ver se se trata somente de mais um golpe publicitário, ou se eles realmente estão sendo verdadeiros. Enquanto isso, precisamos de uma reforma legislativa. O pensamento de Friedman não só deu aos executivos-chefes uma desculpa perfeita para fazerem tudo o que sempre quiseram, como também conduziu leis de governança corporativa que deram suporte e incorporaram o capitalismo acionário na estrutura legal dos EUA e na de tantos outros países. Isso precisa mudar, de modo que as corporações não só possam, como sejam obrigadas a considerar as consequências de seu comportamento sobre os demais colaboradores.