Globalização fracassou para muitos, e reações podem ser violentas

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Coordenador do Relatório da Desigualdade Global diz que ‘fuga para o mais barato’ achatou as classes médias e levou à precarização dos serviços públicos

Para o economista Lucas Chancel, um dos coordenadores do Relatório da Desigualdade Global, as promessas da globalização “fracassaram” para muitos ao redor do mundo.

Em sua opinião, os países precisam reorganizar a integração econômica global para evitar “reações violentas” no futuro.

Frenando Canzian – 22/07/2019 – Paris

Embora os muitos pobres estejam melhorando por causa da Ásia, os mais ricos ficam cada vez mais ricos em todo o mundo e a classe média está sendo espremida. Quais as razões e as perspectivas desse movimento?

O que vemos são os três lados da história da globalização. O lado mais feliz é o enorme crescimento da Ásia. Na China, na Índia e em outros países. Há uma melhora substancial nos padrões de vida,e isso levou à redução das desigualdades entre os países.

Alguns se concentraram nisso para dizer que a globalização é ótima e que é preciso aprofundá-la,pois a desigualdade global diminuiu.

Mas há um outro lado. A renda cresce em ritmo muito baixo entre as classes trabalhadoras na América do Norte e em alguns países europeus. Nos EUA, toda a metade mais pobre ficou de fora do crescimento da renda nos últimos 38 anos.

Isso também precisa ser entendido a partir da perspectiva da terceira história da globalização, que é a da elite econômica global.

Onde quer que olhemos o mundo, na Europa, na América Latina, na América do Norte ou na Ásia, vemos a renda do 1% mais rico subindo brutalmente. São taxas de crescimento acima de 100% ou de 200% para o 1% do topo entre 1980 e hoje. Em alguns países a taxa ultrapassa os quatro dígitos.

Um debate bem informado sobre a globalização precisa levar em conta essas três histórias. Não dá para dizer apenas que os pobres estão melhorando e que isso é ótimo. Ou que as pessoas do topo estão ganhando muito e que isso é terrível.

O que vai acontecer? O lado bom da história é que tudo depende de nós.

Tudo vai depender do que os formuladores de políticas implementarem. E isso vai depender, em muitos países, das decisões dos cidadãos.

Como os países individualmente podem combater as desigualdades se as empresas hoje são globais e o capital é livre para migrar, mas as pessoas, não?

O capital pode migrar por que organizamos a globalização dessa maneira. Assinamos tratados que nos permitem mover bens e às vezes trabalhadores e, em muitos casos, o capital. Mas não assinamos tratados que harmonizassem a tributação.

Então, qualquer tipo de entidade na qual há livre comércio sem harmonização fiscal será uma entidade econômica que não funcionará adequadamente. Particularmente do ponto de vista da desigualdade. Com certeza, essa é uma questão-chave que precisa ser enfrentada.

Nos últimos 30 anos houve, dentro da União Europeia, uma “fuga para onde for mais barato” em termos de tributação progressiva,ou em termos de tributação de uma empresa. Porque todo país acha que, se não fizer o jogo da “fuga para o mais barato”, vai sair perdendo.

Mas, no final, todo mundo perde porque não sobram recursos para os atores públicos que quer em financiar um bom nível de educação, transporte público e saúde.

Basicamente, os formuladores de políticas foram um pouco preguiçosos, e apenas diziam que “tudo bem, vamos fazer o jogo da fuga para o mais barato”. Mas qual é a consequência desse jogo?

Bem, há contribuintes “móveis”, que são as multinacionais e os cidadãos ricos, que ameaçam e chantageiam o governo com o argumento de que “se você aumentar meus impostos, eu me mudo”.

Mas também há”contribuintes imóveis”, a classe trabalhadora, a classe média e o contribuinte que simplesmente não pode se mudar. E essas pessoas querem a manutenção de bons níveis de serviço público.

Então, quem vai pagar os impostos? Se isso recair sobre a classe média, sobre os grupos de baixa renda, não será nenhuma surpresa que venhamos a ter uma reação muito violenta, brutal.

Já temos fenômenos como Donald Trump, brexit e populistas ganhando terreno. A “desglobalização” vai se acentuar nessa onda?

Um dos problemas é que as promessas da globalização em grande parte fracassam. Ela deveria aumentar o padrão de vida em países de baixa renda, e isso aconteceu

Mas também deveria melhorar a vida das classes médias e dos trabalhadores nos países ricos, e isso não aconteceu.

Uma das formas de entender a rejeição a o multilateralismo é o próprio fracasso do multilateralismo.

Mas uma maneira de tentar torná-lo bem-sucedido é abordar a questão-chave que você colocou, da fuga de capitais. É preciso organizar a globalização e saber com muito mais transparência onde está a riqueza e como ela se move de um país para outro.

Isso significa, por exemplo, que não podemos continuar negociando com paraísos fiscais que não respeitam as regras básicas da transparência. Porque países e governos perdem nesse jogo. Isso justifica a imposição de limites.

Em “The Great Leveler”, Walter Scheidel argumenta que a desigualdade é um fato da vida. Que só diminuiu após eventos extremos, como guerras e pestes. Qual a sua opinião?

Sim, é um fato da vida e, em certa medida, sempre existirá, até o fim dos tempos.

Mas a questão é até que ponto aceitaremos esse nível de desigualdade. E há outro fato, não um fato da vida, mas das sociedades humanas, que é a discussão permanente sobre como a riqueza deve ser compartilhada. E esse tipo de discussão está no centro da construção das democracias modernas.

 

Desencarnação, crescimento e desenvolvimento espiritual

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A morte sempre foi uma grande incógnita para os indivíduos e para as coletividades, as culturas tratam de forma diferente este tema e encontram respostas originais e inusitadas, todos sabemos que desde o nascimento estamos em contagem regressiva para uma outra vida, para alguns vamos para um vazio absoluto ou para uma escuridão sem precedentes, outros acreditam em uma espera que pode durar muitos anos ou quem sabe séculos ou milênios, a morte ainda desperta muitas dúvidas e reflexões das pessoas em todos os lugares do mundo.

Existem muitas discussões e dúvidas sobre a morte, as religiões, as culturas e as correntes filosóficas apresentam visões variadas, algumas trazem explicações mais vigorosas e consistentes, enquanto outras atribuem as respostas a dogmas inatingíveis para os homens no momento atual, contribuindo para o crescimento e o fortalecimento de um verdadeiro misticismo, que cultiva ignorância e desinformação, gerando medos e inseguranças.

A Doutrina Espirita, codificado por Allan Kardec, em 1857, com a publicação de O Livros dos Espíritos nos traz informações novas e originais, suas análises perpassam a questão religiosa e se concentram em uma visão científica e filosófica, com isso, nos mostra uma situação mais completa e uma interpretação mais consistente e inteligente, sem dogmas e desprovida de preconceitos, que muitas vezes limitam a capacidade de compreensão dos indivíduos e das coletividades.

Os conhecimentos trazidos pela Doutrina dos Espíritos nos informam que a morte como a conhecemos não existe, somos espíritos que estagiamos no corpo físico e, posteriormente, retornaremos para o verdadeiro local da vida, o mundo espiritual, embora não nos recordemos este é o verdadeiro local da nossa existência, somos espíritos habitando corpos materiais temporariamente, nele passamos por variadas experiências que devem servir como vivências, nunca como punição, mas como educação, em prol do progresso e de um verdadeiro desenvolvimento espiritual.

As informações trazidas por Allan Kardec geraram muitas controvérsias na época, é importante lembrar que, neste momento histórico, a Europa vivia os últimos espirros da Inquisição, momento marcado pelos desatinos da Igreja Católica, que se outorgava o direito de alienar os indivíduos e impor seus interesses mesquinhos e imediatos, condenando os indivíduos a uma cegueira moral e perpetuando seu poder e dominação.

As ideias descritas por Kardec reviviam os ensinamentos de Jesus de Nazaré, mostrando aos indivíduos a importância de sermos bons e justos com nossos semelhantes, isto porque estas atitudes nos auxiliariam em nosso progresso espiritual e em outros momentos da vida. Pelas doutrinas anteriores, os prazeres do mundo eram os grandes ideais dos indivíduos, as posses materiais, as terras, os títulos e as insígnias eram buscadas como forma de prazer e enriquecimento, formas de poder da sociedade da época.

Quando restringimos a vida dos indivíduos a apenas uma única vida, quando não cogitamos a existência de uma vida posterior a existência atual, nos deixamos levar por todos os instrumentos de acumulação e de prazeres materiais, afinal a vida se restringe aos momentos atuais, os prazeres do hedonismo dominam os indivíduos e nos garantem prazeres e mais prazeres, esta era, para a grande maioria dos indivíduos, os ideais da existência humana.

Se vivemos eternamente em momentos e em estágios diferentes, a vida material deve ser encarada como uma nova experiência de progresso do ser humano, uma nova oportunidade de crescimento e de desenvolvimento espirituais onde novas oportunidades e antigas experiências são revividas para que consigamos encontrar o equilíbrio e o progredir, estes sim os grandes objetivos da vida e o caminho para a evolução.

A doutrina dos espíritos vem nos mostrar um mundo muito maior e mais complexo, nos esclarecendo sobre verdades e nos mostrando que o verdadeiro caminho para a melhoria espiritual está na máxima fora da caridade não há salvação, onde devemos compreender a caridade como algo maior e mais consistente, não como muitas a veem, como a doação de recursos financeiros e de valores materiais, esquecendo-se de que a verdadeira caridade é algo muito maior do que esta doação monetária, a verdadeira caridade pode ser feita com palavras, gestos e conversas desinteressadas e estimulantes, quando despendendo tempo para ouvir e esclarecer corações aflitos e solitários.

Os desencarnados retornam ao mundo espiritual, voltam ao verdadeiro local da existência humana, quando retornam encontram situações variadas e individualizadas, a Doutrina Espírita nos mostra que não existe um modelo único de desencarnação, existem regras gerais, mas os méritos e a meritocracia são instrumentos que diferenciam os indivíduos, os que melhor se comportaram na matéria, que mais fizeram pelos semelhantes e mais trabalharam para o bem, recebem mais segundo seus merecimentos agora, aqueles que se afastaram dos caminhos do bem recebem de acordo com seus parcos merecimentos.

As pessoas desencarnadas voltam para o mundo espiritual e com a passagem não melhoram instantaneamente, muitos acreditam que os desencarnados passam deste mundo para um outro melhor, isto nem sempre é uma verdade irrefutável, muitos ao desencarnar passam para o mundo espiritual de uma forma muito pior do que estavam na matéria, muitos vivem uma verdadeira ilusão marcada por riquezas, posses e bens materiais e quando desencarnam acordam em uma situação deplorável e degradante, como encontramos no livro Nosso Lar, escrito por Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito de André Luiz, nesta obra nos deparamos com o relato do médico fluminense que vivia uma vida de conforto e posses materiais e ao desencarnar se depara com uma situação assustadora em uma região fétida e deplorável.

A Doutrina nos mostra que os espíritos são entidades que não mais possuem corpos materiais, o fato de estarem no mundo dos espíritos não os concedem nenhuma capacidade intelectual ou moral superior, são apenas espíritos em uma outra condição de vida, a desencarnação não gera desenvolvimento espiritual em ninguém, a morte física não faz o papel da evolução.

A evolução é uma conquista individual que demanda muito tempo e muita dedicação, reflexão, empenho e reforma íntima são instrumentos centrais para o desenvolvimento do ser humano, a morte é um fenômeno natural e a evolução uma conquista particular e imprescindível que todos alcançaremos, uns mais cedo e outros mais tarde, dependendo do esforço e dedicação de cada indivíduo.

Encontramos muitas pessoas buscando notícias e informações de parentes, amigos e familiares desencarnados, esta atitude é muito saudável e louvável, afinal temos saudade e queremos saber como estão nossos afetos que partiram para uma outra existência, embora saibamos que a desencarnação não conduz ao progresso imediato, muitos familiares oram e buscam auxílio de pessoas recém desencarnadas, acreditando que estes podem auxiliar nos momentos de dores e decepções. A Doutrina Espírita nos mostra que quando retornamos ao mundo espiritual somos nós mesmos, trazemos embutidos na alma os valores e conquistas morais e intelectuais, estas não podem ser tiradas, são conquistas verdadeiras que levamos para todos os momentos de nossa existência.

Todos os indivíduos que desencarnam com sentimentos saudáveis, desprendimento de bens materiais e bons pensamentos, marcados pelos trabalhos no bem e no respeito as Leis de Deus, todos que cultivam a oração e a reflexão edificante, com certeza encontrarão, no mundo espiritual, as energias e os sentimentos compatíveis com seus pensamentos e com a suas condutas individuais, estes irmãos muito brevemente estarão integrados em trabalhos e continuarão suas atividades no mundo espiritual. Ao contrário, todos aqueles que passam para o outro lado da vida, com os corações marcados pelo rancor e pelo ressentimento, muito atrelados aos bens materiais e aos prazeres do álcool e do sexo, com certeza estes irmãos demorarão algum tempo para se libertar destas energias desagradáveis e limitantes, necessitando de oração e bons pensamentos como forma de auxiliá-los no processo de melhoria e de conscientização espiritual.

Todas as vezes que interpelamos familiares desencarnados com problemas particulares, dificuldades materiais ou constrangimentos afetivos, levamos a estes irmãos, energias pesadas e densas, nos deixamos levar por sentimentos menores e transmitimos e estes irmãos desencarnados estas energias e sensações, prejudicando-os muito mais do que imaginamos, embora não queiramos prejudicá-los, nossas energias causam desequilíbrios a estes irmãos. Numa situação como esta devemos evitar os petitórios que fazemos aos irmãos desencarnados, o melhor a fazer nesta situação é nos apegarmos a oração e o envio de boas vibrações, estas devem auxiliá-los em seu progresso e desenvolvimento espiritual.

A oração deve ser uma conduta constante na vida das pessoas, quando oramos e solicitamos o amparo e a proteção de amigos espirituais estamos reconhecendo nossas limitações e fragilidades, no livro Nosso Lar, André Luiz destaca que as poucas orações recebidas em seu auxílio foram fundamentais para que este vencesse seus desequilíbrios e lhe trouxesse as energias necessárias para superar os momentos de dores e dificuldades.

Outro depoimento interessante retratado na literatura espírita está na obra Voltei, neste livro psicografado pelo ilustre Francisco Cândido Xavier, ditado pelo espírito de Frederico Figner, encontramos o autor espiritual descrevendo seu próprio velório, embora um episódio inusitado, percebemos como nos comportamos em um momento de tanta dificuldade, as pessoas se encontram distante das orações e se entregam as conversas desimportantes e as piadas degradantes, todas estas energias são absorvidas integralmente pelo desencarnado, trazendo-lhe energias e sentimentos menores marcados pelo pessimismo, pelo medo e pela insegurança.

Na obra acima, o autor nos mostra como estamos distantes dos sentimentos e das energias edificantes e desenvolvidas, mesmo sendo descrito pelos encarnados como uma pessoa de bem, de boas obras e elevados sentimentos morais, o autor espiritual se encontra em uma situação de medos e preocupações, acreditou encontrar “facilidades” variadas devido a suas obras no plano material, mas infelizmente seu trabalho foi insuficiente para angariar as conquistas que acreditava ser merecedor.

Todos os dias uma grande quantidade de pessoas retornam ao mundo espiritual e uma quantidade elevada retornam ao munda da matéria, estes fluxos mostram a grandeza das obras divinas que nos auxiliam no desenvolvimento constante da sociedade, embora buscamos todos os momentos o crescimento e o desenvolvimento espiritual, para que o angariemos, faz-se necessário nascer, morrer, renascer e morrer novamente, afinal como nos diz Allan Kardec, esta é a verdadeira Lei da vida e da natureza, e todos estamos sujeitos a esta lei para que consigamos evoluir e alcançar o verdadeiro progresso.

A vida nos traz grandes desafios e oportunidades, todos que conseguem compreender as grandes realidades da vida conseguem trilhar caminhos mais sólidos e consistentes, vive melhor e morrem de forma serena e equilibrada, mostrando que a tão falada morte na verdade não existe, mas uma nova vida se abre em um local diferente e com uma maior liberdade e consciência, afinal somos todos seres humanos em constante evolução.

Matthew H. Kramer

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Professor de Filosofia Política e Jurídica na Universidade de Cambridge, Kramer discute temas como teorias da justiça, o positivismo jurídico e a objetividade de juízos morais.

Estado da Arte 

19 de julho de 2019

por Gilberto Morbach

Matthew H. Kramer é professor de Filosofia Política e Jurídica na Universidade de Cambridge. Autor de uma vasta obra, Kramer discute temas como teorias da justiça, o positivismo jurídico, a objetividade de juízos morais, o liberalismo político, direitos e responsabilidades, a pena de morte, enfim, questões que gravitam em torno do núcleo central que constitui sua obra: a filosofia moral, política, jurídica. Seus livros mais recentes são H.L.A. Hart: The Nature of Law — uma das mais completas obras a discutir o legado de Hart — e Liberalism with Excellence — no qual Kramer articula sua versão de liberalismo político.

Tomando suas obras mais recentes como ponto de partida, conversei com o Prof. Kramer sobre Hart, sobre positivismo, sobre uma teoria perfeccionista de liberalismo político e sobre o próprio liberalismo em tempos de populismos iliberais ao redor do globo.

  1. Seu livro mais recente, L.A. Hart, é uma análise tão interessante quanto aprofundada da teoria jurídica de Hart. Naturalmente, há, como em qualquer livro que lide com a obra de um autor, espaço para elogios e críticas. Se estivermos a tratar de sua posição, em que o senhor acompanha Hart, e em que segue um caminho distinto do dele? Dito de outro modo, como o senhor resumiria seus principais acordos e desacordos com Hart?

Kramer: Meu livro de 2018 expõe apenas as ideias de Hart com relação à teoria geral do direito (i.e., suas ideias sobre a natureza do direito, da filosofia do direito, do raciocínio jurídico e do discurso jurídico). Com a maior parte dessas ideias, estou de acordo com Hart. Como Hart, sou um positivista. Especialmente em meus livros In Defense of Legal Positivism (1999), Where Law and Morality Meet (2004) e Objectivity and the Rule of Law (2007) — e, é claro, no próprio livro de 2018 sobre Hart —, eu desenvolvo uma concepção positivista de direito. Além disso, como Hart, sou um positivista inclusivo e não exclusivo. É verdade, estou longe de alguém que não tem críticas a Hart com relação à teoria do direito. Meu livro traz uma série de objeções à obra de Hart em uma série de pontos e meus outros escritos sobre o positivismo são igualmente críticos à teorização hartiana sobre o direito em vários aspectos. Seja como for, em termos de teoria geral, a minha posição e a de Hart são muito próximas uma da outra. Sou imensamente grato a ele.

Em outras questões filosóficas, minhas divergências com relação a Hart são mais contundentes. Por exemplo, Hart foi um dos mais notáveis proponentes da teoria da vontade no âmbito dos direitos, enquanto eu tenho proeminentemente articulado uma teoria do interesse — a teoria rival. No mesmo sentido, embora eu seja, como Hart, um liberal em questões de liberdade civil, seus fundamentos eram eminentemente consequencialistas, ao passo que os meus são fortemente deontológicos. Mais do que isso, embora eu tenha me baseado fortemente na concepção de causalidade no direito elaborada por Hart com Tony Honoré, a minha concepção (desenvolvida de forma mais robusta em The Quality of Freedom, meu livro de 2003) vai além da deles em várias questões. Além disso, sou um realista moral, na medida em que não é assim tão fácil definir a visão de Hart com relação à natureza dos juízos morais. Falarei mais sobre o realismo moral mais à frente.

Finalmente, enquanto Hart era um forte crítico da pena capital (baseado em fundamentos consequencialistas), argumentei amplamente — a partir de fundamentos deontológicos — em favor da legitimidade, em princípio, da pena de morte em determinados contextos bastante restritos. Admitidamente, contudo, deixo em aberto a questão sobre se os problemas práticos subjacentes à administração da pena capital são superáveis

  1. A partir do debate entre positivismo jurídico exclusivo e inclusivo, alguns autores derivam uma espécie de positivismo normativo — ou seja, a aceitação do positivismo inclusivo num plano conceitual, mas com a prescrição de algo próximo aos fundamentos do positivismo exclusivo. Alguns autores adotam essa posição, outros veem-na como possível, outros rejeitam-na. Como um positivista inclusivo, como o senhor vê essa questão?

Kramer: O positivismo jurídico prescritivo é certamente uma doutrina que tem sido defendida por alguns filósofos do direito. Tom Campbell é o filósofo contemporâneo que a articulou de forma mais contínua, mas ela foi ainda mais notavelmente proposta ao início da era moderna por Thomas Hobbes e Jeremy Bentham. Basicamente, ela consiste na proposição de que uma série de leis em determinada jurisdição devem ser formuladas de modo a garantir que o processo por meio do qual se pode atribuir caráter de juridicidade a determinadas proposições raramente ou nunca envolvam juízos morais. Como tal, essa é uma posição ortogonal ao positivismo jurídico enquanto teoria geral do direito (i.e., uma teoria sobre a natureza do direito). Pessoalmente, oponho-me ao positivismo prescritivo; não por fundamentos teóricos, mas por razões de moralidade política.

  1. Algumas pessoas — equivocadamente, a meu ver, mas ainda assim — insistem que é difícil reconciliar o positivismo jurídico com uma posição de realismo moral. Como o senhor articula suas visões sobre a objetividade moral de um lado e, de outro, a tese da separabilidade entre direito e moral?

Kramer: Longe de serem incompatíveis, o positivismo jurídico e o realismo moral ajustam-se um ao outro tranquilamente. Nenhuma dessas teses pressupõe a outra, mas elas são absolutamente consistentes entre si. De fato, dado que a minha versão de positivismo jurídico é parcialmente sobre a relação entre o direito e a moralidade tout court (i.e, a moralidade como um conjunto de princípios básicos cuja existência e conteúdos são independentes daquilo que se pense sobre eles), minha posição na teoria do direito já pressupõe a correção do realismo moral como explicação sobre a natureza da moralidade.

Eu suponho que a visão de que as doutrinas são incompatíveis se dá em razão da crença de que a insistência do positivismo na separabilidade entre direito e moral significa uma asserção de um caráter não moral do direito — i.e., uma asserção de que o direito não é suscetível a apreciações morais. Qualquer asserção desse tipo seria de fato incompatível com o realismo moral, mas (como eu coloco enfaticamente em meus escritos jurídicos) nenhum positivista até hoje sugeriu que o direito é um fenômeno não moral.

  1. Agora, com relação ao seu trabalho na filosofia política: em Liberalism with Excellence (2017), o senhor reflete sobre se é moralmente exigível que governos mantenham-se neutros com relação a concepções razoáveis sobre o desenvolvimento humano e a boa vida. A partir desse debate, o senhor articula uma posição a que chama de perfeccionismo de aspiração [“aspirational perfectionism”]. Como o senhor definiria sua posição dentro da esfera do liberalismo àqueles que ainda não leram o livro?

Kramer: Como indicado em vários momentos do livro, minha posição é amplamente estóica. A sequência a Liberalism with Excellence — que será escrita assim que eu finalizar outros dois livros, sobre aborto e liberdade de expressão — será intitulada A Stoical Theory of Justice. Entretanto, meu liberalismo estoico não pode ser propriamente designado como uma espécie de liberalismo amplo [“comprehensive liberalism”] no sentido utilizado por John Rawls e seus seguidores, tais como Jon Quong. Quero dizer, não se trata de uma tentativa de fundamentar o liberalismo em um valor (ou uma série de valores) que poderia ser sensatamente rejeitado por alguns liberais. Ao contrário: o âmago de meu liberalism estoico é o valor da garantia de autorrespeito — que é igualmente o coração do liberalismo rawlsiano.  Não posso entrar em maiores detalhes aqui, mas, com efeito, o que quero fazer é criar um certo desacordo entre a busca rawlsiana por neutralidade e a doutrina de razão pública de Rawls. Eu apoio, afinal, a neutralidade, enquanto rejeito as limitações da razão pública. (Aos leitores não familiarizados com a obra de Rawls, gostaria de colocar que o princípio da neutralidade prescreve que qualquer Sistema de governança deve manter-se neutro com relação à concepções razoáveis do que é bom e valioso — sendo que “razoável” significaria “consistente com os valores básicos do liberalismo”. As limitações da razão pública são restrições nos tipos de considerações às quais as pessoas podem recorrer em desacordos políticos públicos. Essa limitação foi tomada por seguidores de Rawls como uma decorrência lógica do princípio da neutralidade, mas eu rejeito a primeira conservando a segunda.)

  1. Finalmente, em tempos de democracia iliberal e populismo, qual é a maior ameaça — se houver alguma — ao liberalismo?

Kramer: No Reino Unido e em alguns países como a Venezuela, o populismo de esquerda foi muito mais danoso que o da direita. As calamidades produzidas pelos regimes populistas de esquerda de Chávez e Maduro são certamente bem conhecidos pelas pessoas de sua região, então concentro-me no Reino Unido. Em 2015, o Partido Trabalhista britânico foi dominado pelo ideólogo de extrema esquerda Jeremy Corbyn e sua trupe de sinistros asseclas. Corbyn, à época, talvez fosse mais conhecido por seu apoio de longa data ao terrorismo da República da Irlanda e por seu efusivo apoio a tiranias antiocidentais, mas ele já tinha também uma longa e nada atrativa história de associação com antissemitas fanáticos. Ao longo de seus anos enquanto líder do Partido Trabalhista, os níveis de antissemitismo interno à organização aumentaram de forma exponencial, levando milhares de judeus ao abandono do partido mesmo após uma filiação durante boa parte da vida adulta. Mais do que isso, o partido passou a se comprometer com uma política econômica que transformaria desastrosamente o Reino Unido na Venezuela do Mar do Norte caso os britânicos fossem suficientemente loucos a ponto de eleger um governo liderado por Corbyn. Um governo desse tipo seria firmemente leal a tiranos como Vladimir Putin, Ali Khamenei e Bashar al-Assad. Sobre esses tiranos, Corbyn não tem uma única palavra negativa. Toda sua raiva é direcionada às democracias liberais ocidentais.

Nos Estados Unidos, em seu país e em alguns países europeus, como Hungria, Polônia e Áustria, o populismo de direita tem sido pior que o de esquerda. Donald Trump é o primeiro candidato por um dos grandes partidos a, em quase um século, engajar-se em retórica racial ao longo da campanha. A robustez, o desenvolvimento geral da democracia liberal nos EUA limitou (embora não tenha evitado completamente) os danos gerados pela lamentável presidência de Trump, mas outros países como Polônia e Hungria não tiveram a mesma sorte. Tendo quase definhado sob o despotismo comunista até poucas décadas atrás, cada um desses países é agora governado por regimes manifestamente antissemitas e quasi-fascistas que podem arruinar de vez todo o progresso em direção aos valores da democracia liberal.

Ainda, em outros países como a França, o populismo à esquerda e à direita parece ganhar força. Isso quer dizer que qualquer resposta adequada à sua pergunta deve levar em conta as circunstâncias variáveis de país a país. A democracia liberal, ao longo de sua história, sofreu ataques de uma série de ideologias iliberais, e seus inimigos são diversos e abundantes.

Liberalismo e dogmatismo

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Por André Lara Resende – Valor Econômico – 13/05/2019

No início da década, a Grécia se viu obrigada a fazer um extraordinário ajuste fiscal. Tendo sido beneficiada pela condição de membro da União Europeia, o que lhe permitiu financiar sua dívida a juros baixos, a Grécia tinha sido fiscalmente irresponsável. Com a crise financeira de 2008, a realidade bateu à porta. Os mercados, sempre dispostos a absorver mais dívida quando a maré está alta, com o refluxo, secaram. O aumento do prêmio de risco cobrado pelos bancos tornou a dívida, além de muito alta, também muito onerosa.

Yanis Varoufakis, à época um professor visitante na Universidade do Texas-Austin, foi o primeiro a afirmar o que qualquer pessoa com uma noção básica de aritmética poderia constatar: a dívida grega era impagável. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, a Troica, preocupados com o impacto sobre o sistema bancário, decidiram entender que não, que a Grécia deveria fazer um drástico ajuste fiscal e refinanciar a dívida. O ajuste foi feito. O déficit, de mais de 10% do PIB em 2010, foi revertido. Em 2017 a Grécia, a Alemanha, a Dinamarca e a Suécia, eram os únicos países da União Europeia com superávit fiscal.

O resultado pode ser avaliado por alguns números. O desemprego, que já era alto antes do início do ajuste, quase de 10%, três anos depois chegou a 28% da força de trabalho e a mais de 60% entre os jovens. No ano passado o desemprego ainda estava perto de 20% e o PIB tinha caído mais de 30% em relação a 2010. A dívida, que era equivalente a 150% do PIB em 2010, depois de quase uma década de ajuste, chegou a 180% do PIB. Mas os números, por mais impressionantes que sejam, não podem exprimir a dimensão da verdadeira tragédia que se abateu sobre a Grécia. O país foi destroçado.

Em 2015, depois de três anos de ajuste fiscal, a população exprimiu sua rejeição ao estrangulamento econômico a que o país estava sendo submetido. Um novo partido de esquerda, o Syriza e seu jovem lider, Alex Tsipras, venceram as eleições. Varoufakis foi convocado para ser o ministro da fazenda e renegociar a dívida. Condicionou a sua aceitação a ser eleito para o congresso. Sem jamais ter exercido qualquer cargo público, em menos de três meses de campanha, foi eleito o deputado mais votado da história. Ministro, enfrentou a tecnocracia europeia e o FMI, procurando demonstrar a inviabilidade do ajuste como exigido pela Troica. Convocou um referendo para avalizar a sua proposta alternativa. Saiu vitorioso das urnas, mas foi derrotado pela tecnocracia. O governo cedeu à Troica e Varoufakis voltou à academia e ao ativismo político. O seu livro, Adults in the Room, publicado em 2017, que resenhei para a revista Quatro Cinco Um, é uma fascinante incursão pelos bastidores das forças políticas do mundo contemporâneo.

Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal

A tragédia grega deste século XXI traz à cena todos os elementos do impasse da democracia contemporânea. Desde o início do século passado, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra, o mundo parecia ter encontrado a fórmula do progresso e da paz social. A democracia representativa liberal e a separação dos poderes davam a impressão de compatibilizar a vontade da maioria com a defesa dos direitos individuais e o respeito às minorias. Através de políticas compensatórias, o Estado, administrado por uma tecnocracia ilustrada, garantiria as condições mínimas de vida para os mais desfavorecidos. Nos países mais atrasados, o Estado exerceria ainda o papel de coordenador do desenvolvimento econômico.

Neste início de século, o equilíbrio entre os três elementos que compõem as democracias representativas – a vontade popular, o respeito aos direitos individuais e o governo tecnocrático – se rompeu. O populismo, tanto de direita como de esquerda, que hoje se alastra pelo mundo, deve ser entendido como uma reação à tomada de consciência de que a tecnocracia e as instituições liberais para a defesa dos direitos individuais se tornaram dominantes e abafaram a vontade popular. Tantos as razões desta tomada de consciência, como as implicações para o futuro da democracia têm sido objeto de inúmeros estudos e livros publicados nos últimos anos.

O populismo chega ao poder pelo voto, explorando a percepção de um déficit democrático, que foi acentuada pela internet e pelas mídias sociais. Primeiro, questiona as instituições liberais, depois desmantela a tecnocracia, para em seguida instaurar o autoritarismo. Não importa se a partir da esquerda, como na Venezuela, ou da direita, como na Turquia, na Polônia e nos EUA. Tanto a sua ascensão, quanto a sua capacidade de manter acesa a chama do ressentimento, dependem da frustração das expectativas. Por isso, o mau desempenho da economia, a recessão e o desemprego, são o combustível de que depende para solapar a democracia. Quando a economia se desorganiza mais rápido e profundamente, maior é a probabilidade do populismo descambar para o autoritarismo aberto. Confrontado com a perda de apoio, o populismo sobe o tom contra a política representativa, as minorias e as instituições liberais. A desorganização da economia, a recessão e o desemprego, se tornam um terreno fértil para a sua campanha de ressentimento.

No Brasil, depois de alguns meses do novo governo, a economia não dá sinais de que irá se recuperar. Continua estagnada, com a renda abaixo do que era há cinco anos e o desemprego acima de 12% da força de trabalho. O programa dos tecnocratas que estão no comando da economia parece estar condicionado à aprovação da reforma Previdência, uma reforma há décadas mais do que necessária, mas na qual não faz sentido depositar todas as esperanças. Transformada num cavalo de batalha com o congresso, insistentemente bombardeada como imprescindível pela mídia, a reforma da Previdência, ainda que aprovada sem grande diluição, como os resultados não são imediatos, não será suficiente para resolver o problema fiscal dos próximos anos. Também não será capaz de despertar a fada das boas expectativas. Como demonstra de forma dramática a experiência recente da Grécia, a busca do equilíbrio fiscal no curto prazo, quando há desemprego e capacidade ociosa, não apenas agrava o quadro recessivo, como termina por aumentar o peso da dívida em relação ao PIB.

A Grécia não tinha escolha: ou se submetia ao programa de austeridade fiscal ou seria obrigada a sair da zona do euro, com custos possivelmente ainda mais altos. No Brasil, a obsessão pelo equilíbrio fiscal no curto prazo é uma auto-imposição tecnocrática suicida. O liberalismo econômico do governo parece estar subordinado ao seu dogmatismo fiscal. Como liberalismo e dogmatismo são incompatíveis, o liberalismo sairá inevitavelmente derrotado. No século passado, o dogmatismo monetário derrotou o liberalismo econômico de Eugênio Gudin. Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal.

André Lara Resende é economista.

 

 

Lara Resende a meio caminho

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Marcelo Manzano – Le Monde Diplomatique Abril de 2019

Em artigo publicado semanas atrás no jornal Valor Econômico, o economista André Lara Resende, talvez um dos maiores expoentes do liberalismo econômico no país e o pater familias do Plano Real, colocou a moeda em cima da mesa e tratou de questionar a forma como a corrente dominante entende o seu papel na economia capitalista contemporânea.

Aos não economistas, esse debate pode parecer um tanto esdrúxulo ou lateral, mas, acreditem, é fundamental, já que em última instância é esse entendimento sobre o papel da moeda que define o norte das políticas econômicas que governam um país. Antes de avançar, portanto, vale um breve esclarecimento sobre o assunto.

Costuma-se considerar que a moeda cumpre três funções clássicas no capitalismo: 1) meio de troca: quando é utilizada como um equivalente geral para que sejam trocados produtos e serviços no dia a dia dos mercados; 2) unidade de conta: quando serve como um padrão de medida (um índice) que permite comparar e avaliar o valor de produtos, serviços e riquezas diferentes entre si e 3) reserva de valor: quando funciona como forma geral da riqueza, isto é, quando os agentes a retém para preservar os valores que puderam se apropriar até o presente.

Pois bem, desde a velha tradição monetarista (surgida na Escola de Chicago em meados do século XX) até os atuais e predominantes economistas novo-keynesianos (que de keynesianos não têm nada), prevalecia uma perspectiva de que a moeda é apenas e fundamentalmente um meio de troca, o que significa dizer que a moeda seria neutra, uma espécie de graxa que ajuda no funcionamento dos mercados, mas que em nada afetaria a dimensão real (material) da produção e da renda. Desta perspectiva, o volume de moeda que circula na economia impactaria apenas o nível geral de preços. Emissão de moeda em excesso ou gastos financiados por endividamento público seriam assim inúteis para impulsionar a atividade econômica e prejudiciais ao bom ambiente econômico, na medida em que produziriam pressões sobre o sistema de preços provocando inflação. Logo, controlar a quantidade de moeda por meio de regras rígidas de emissão (como recomendavam os velhos monetaristas) ou pelo manejo da taxa de juros (como querem os novo-keynesianos) seria o fundamento primordial a orientar a ação governamental.

Como essa concepção um tanto simplista da moeda serve muito bem aos interesses de todos os agentes econômicos que estão na ponta credora do sistema (instituições financeiras e rentistas de um modo geral), ela foi sempre abraçada com afinco pelas classes dominantes, principalmente a partir dos anos 1970, quando o padrão de regulação da ordem econômica internacional de Bretton Woods foi desmantelado, abrindo o flanco político para a emergência das finanças desreguladas e o império dos rentistas.

Nessa toada, o mundo seguiu aos trancos e barrancos até a grande crise financeira de 2008, que não só explicitou o fracasso daquela ordem desregrada, como ensejou políticas emergenciais que jogaram na lata do lixo toda a construção teórica que vinha sendo lapidada pelos novo-keynesianos e sua certeza na moeda neutra. Para socorrer os bancos que iam a pique empapuçados de títulos podres, os governos dos países centrais (principalmente dos Estados Unidos) passaram a comprar seus micos com um apetite ciclópico, inundando de liquidez as praças financeiras e salvando os bancos privados do colapso. A essa solução deu-se o nome de quantitative easing (QE), termo em inglês que pode ser traduzido por “laxidão monetária”. Com ela, a crise não engoliu o capitalismo, nem o capitalismo engoliu a crise. Entretanto, o que mais intrigou os economistas convencionais, até então fieis ao mantra da moeda neutra, é que a avalanche de dinheiro circulando no mundo ao lado de taxas de juros próximas de zero não tiraram a inflação do rés do chão, embora muito tenham contribuído para inflar os preços dos ativos (reais e financeiros).

Intrigada com teimosia mundana de trilhar caminhos não prescritos pelos manuais de economia, a ortodoxia econômica voltou aos livros em busca de interpretações alternativas a respeito das funções da moeda. Acabou trazendo à tona teorias que apontavam a função “unidade de conta” como aquela que deveria ser considerada a primordial. Resgataram assim a MMT (modern monetary teory) dos anos 1990 e com ela, toda a velha ladainha sobre a relação entre excesso de moeda e inflação passou a ser fortemente questionada. Mais do que isso, corretamente, os economistas da MMT jogaram luz sobre um aspecto contra intuitivo do capitalismo que é fundamental para se compreender o seu real metabolismo: a quantidade de moeda não é controlada pelos governos ou pelos bancos centrais, mas gerada endogenamente, isto é, por dentro do circuito financeiro na medida em que há maior ou menor demanda por crédito. Como bem observa Lara Resende “sua expansão ou contração [da moeda] é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica”.

Como decorrência lógica dessa concepção um tanto mais realista das funções da moeda, uma segunda conclusão que obrigatoriamente vem sendo resgatada diz que, se não é cabível satanizar o excesso de moeda, então também deixa de ser problema o fato dos governos se endividarem, vendendo títulos da dívida pública (que são uma variante da moeda) para aumentarem os seus gastos e estimularem a demanda.

Ora, ora, se assim for – e a história do capitalismo demonstra com fartura de evidências que assim é – então o setor público não precisa lidar com as impertinências da restrição financeira, podendo avançar os seus gastos muito além da sua capacidade de arrecadação. Keynes e Kalecky já haviam tratado disso – e muito mais! – há quase noventa anos, mas estranhamente a ortodoxia preferiu descartar suas profícuas reflexões, apostando na ideia de que todos os agentes econômicos, inclusive o Estado, se movem segundo as mesmas regras universais, notadamente a da restrição financeira.

Deve-se reconhecer, portanto, que o despertar de Lara Resende para este “novo” entendimento da macroeconomia tem o mérito de trazer um debate que nas últimas décadas rastejava pelo campo da heresia para o centro do ninho das garças, digo, do clube de economistas liberais brasileiros que cuida de azeitar os argumentos da corrente dominante neste nosso fim de mundo. Se for finalmente derrubado o tabu teórico que pregava limites espartanos para o gasto público, poder-se-á abrir uma avenida no campo da política econômica para se avançar rumo ao pleno emprego e ao financiamento do Estado de Bem Estar Social.

É de se lamentar, entretanto, que tanto Lara Resende quanto os economistas que hoje se entusiasmam com as revelações da MMT não avancem como poderiam. A bola segue quicando na frente do gol, mas eles preferem ignorar o fato incontornável de que a moeda cumpre uma outra função – a mais crucial das três – na ordem capitalista: a de “reserva de valor”. Vejamos qual seria então o busílis da questão.

Primeiramente, vale notar que por ser uma modalidade de ativo com qualidades muito especiais (liquidez plena, grande mobilidade, fácil entesouramento, dentre outras), a moeda é o porto seguro para onde a riqueza se transmuta sempre que sente cheiro de crise e, também, é o cálice sagrado que abriga mais ou menos quinhões de capital quando seus possuidores não estão seguros quanto às alternativas de acumulação produtiva que se apresentam no cenário. Keynes, lendo em Marx o problema do salto mortal da mercadoria (i.e., da sempre possível e ameaçadora não realização da produção) denominou esse traço de caráter dos capitalistas como “preferência pela liquidez” e demonstrou que nele reside a mãe de quase todos os problemas que cercam esse colérico sistema em que estamos metidos.

Como deveria parecer óbvio a todo aquele que pisa a calçada da rua, o ambiente econômico que aflora da dinâmica capitalista é atravessado do início ao fim por inescapáveis incertezas, pois nada pode garantir que as inversões produtivas alcancem plenamente o lucro que era planejado no momento em que se decidiu imobilizar capital. Se assim for, deve-se considerar que ao menos uma fração do capital não seja empenhada em processos de acumulação produtiva, ficando preservada em sua forma líquida (olha a moeda aí!). O problema é perturbador porque, embora cada capitalista individual possa decidir soberanamente o quanto de sua riqueza deseja imobilizar em um processo de acumulação produtiva (comprando trabalho, máquinas e insumos), é ao mesmo tempo incapaz de controlar ou sequer prever o quanto de capital será investido pelo conjunto da classe capitalista. Dessa anarquia das decisões de investir, resultam dois problemas da maior gravidade: (1) periódicas e imprevisíveis crises de acumulação e (2) a prevalência de um padrão comportamental que prima pela aversão ao risco, cujo reflexo em termos agregados é a tendência ao subemprego das forças produtivas.

Dito isso, e partindo do entendimento de que a função “reserva de valor” não apenas deve ser considerada, como deve ser percebida como crucial na formulação das políticas econômicas, vale refletir sobre certas implicações desta particular função da moeda no campo da economia política.

Por servir como “equivalente geral da riqueza” que, em última instância, permite estabelecer o balanço entre as relações de propriedade em nossa sociedade, a moeda atua como a chave de comando (o comutador) que estabelece as hierarquias de poder entre países, blocos de capital, modalidades de ativos e classes sociais. Não por outra razão, a gestão da moeda, ou melhor, a manutenção artificial de sua escassez, é antes de mais nada um instrumento político, de preservação do valor relativo da riqueza e, consequentemente, da luta de classes. Por isso, ao contrário do que propõe a autocrítica tardia e meritória de Lara Resende – e de seus colegas da MMT –, o anacronismo do pensamento econômico dominante não deve ser imputado a equívocos teóricos que por ventura lhes encantavam, mas antes à sua pertinência para manter o jugo do capital sobre os interesses gerais da sociedade.

Em outras palavras, o que Lara Resende não se atreve a dizer – e talvez até mesmo conceber – é que o debate em torno da gestão da moeda é tão somente a epiderme de um conflito muito mais profundo e crítico a respeito do poder relativo das classes no capitalismo. Para o polo dos possuidores da riqueza, não apenas é imprescindível manter o torniquete privado (i.e., o banco central independente) regulando a quantidade de moeda que circula na economia, como é fundamental guardar em segredo o poder que dispõem de decidir acumular riqueza em forma líquida (eis a moeda como reserva de valor), especialmente quando a produção se esfarela e o desemprego grassa.

 

*Marcelo Manzano é economista, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, pós-doutorando do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit/IE/Unicamp) e coordenador da Maestría Estado, Gobierno y Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO Brasil).

A busca da economia ética, por Jospeh Stiglitz

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É através do nosso sistema político que as regras da economia são estabelecidas, e quando os resultados dessas regras são inaceitáveis – como na crise de 2008 – as consequências devem ser abordadas e resolvidas através de mudanças radicais.

Agora está claro que algo está fundamentalmente errado com o capitalismo moderno. A crise financeira global de 2008 mostrou que o sistema atualmente construído não é nem eficiente nem estável. Se uma série de dados ainda não nos convenceu de que, durante quarenta anos de crescimento econômico lento nas economias avançadas, os benefícios foram majoritariamente superiores aos 1% – ou 0,1% -, os votos anti-establishment nos Estados Unidos e no Reino Unido certamente deveria. Os principais economistas, governadores dos bancos centrais e políticos centristas de Blair e Clinton, que nos colocaram e mantiveram esse curso sombrio e declararam confiantemente que a globalização e a liberalização do mercado financeiro trariam crescimento sustentado e benefícios financeiros para todos, foram profundamente desacreditados.

Considerando a devastação provocada por políticas financeiras equivocadas, ao longo da última década em particular, poder-se-ia razoavelmente esperar uma revolução na profissão de economia semelhante à keynesiana no rescaldo da Grande Depressão. Mas tendemos a esquecer que, nos anos 1930, à medida que a economia afundava cada vez mais na depressão, muitos economistas nos EUA e no Reino Unido se atinham ao laissez-faire. Os mercados se corrigiriam, disseram eles; não há necessidade de se intrometer. E mesmo depois de John Maynard Keynes brilhantemente articulado o que estava errado, e como as ações do governo poderiam corrigir as coisas, um grande número de economistas não queria seguir suas prescrições, por medo ideológico de intervenção excessiva do governo. Portanto, não é surpresa, na verdade, que a resposta da profissão de economia à crise de 2008 tenha sido lenta e hesitante.

É assim que a disciplina funciona. Cinco anos antes da crise, o economista ganhador do Prêmio Nobel, Robert Lucas, capturou o espírito da profissão quando afirmou orgulhosamente que “a macroeconomia… teve sucesso: seu problema central de prevenção da depressão foi resolvido, para todos os efeitos práticos, e tem de fato resolvido por muitas décadas ”. Para ser claro: com isso, Lucas não quis dizer que o problema havia sido resolvido por Keynes e seus discípulos, mas pelos seguidores de outro ganhador do Prêmio Nobel, Milton Friedman, no que veio a ser chamado de “nova economia clássica” e “negócios reais”, “ciclos ”(essencialmente a ideia de que choques econômicos são respostas eficientes do mercado). E enquanto muitos desses economistas friedmanistas permaneceram extraordinariamente aquiescentes após a crise, a ideologia e os conjuntos de crenças que eles impulsionaram e que têm responsabilidade significativa pela crise permanecem vivos e bem.

É por isso que esses três livros bem escritos de eminentes estudiosos são muito bem-vindos. Juntos, eles montam um ataque convincente à ortodoxia estabelecida – convencendo, pelo menos, àqueles que não estão ligados às teorias desacreditadas – e propõem remédios para corrigir algumas de suas falhas. Suas idéias, muitas delas originais e intrigantes, fornecem uma base para a tão necessária reforma de nossa economia e da profissão econômica. Paul Collier, por exemplo, em O Futuro do Capitalismo: Enfrentar as novas ansiedades propõe um imposto não apenas sobre a terra urbana – sobre as rendas que se acumulam como resultado do aumento da produtividade da aglomeração econômica em nossas prósperas cidades – mas sobre as altas renda dos trabalhadores urbanos que compartilham dessa prosperidade (veja o artigo de Collier no TLS, 27 de janeiro de 2017). Mesmo assim, mesmo tomadas em conjunto, essas idéias estão longe de ser abrangentes ou suficientemente desenvolvidas para fornecer um paradigma alternativo às doutrinas econômicas neoliberais que predominaram nas últimas décadas.

Nosso atual sistema econômico é freqüentemente chamado de capitalismo, um termo – como Fred L. Block aponta no Capitalismo: O futuro de uma ilusão – que a esquerda uma vez usou pejorativamente e a direita agora defende como se fosse uma estrutura imutável e nobre que proporciona um crescimento milagroso e interminável, do qual todos se beneficiam, ou se apenas o governo não interferisse. Mas todas as premissas subjacentes deste termo são erradas: nenhuma economia, e certamente nenhuma economia moderna, tem um setor privado que funciona no vácuo. O governo está bem ao lado dele, promulgando regras e regulamentos, reforçando os padrões comerciais, apoiando o sistema bancário e estabilizando a economia de mercado. O capitalismo não é um sistema rígido. Está sempre mudando. E as promessas feitas por seus defensores mais redutivos – de que a desregulamentação, a privatização e a globalização trarão o bem-estar para a maioria dos cidadãos em todos os países – provaram estar terrivelmente erradas. (A globalização, para seu crédito, contribuiu para a enorme diminuição da pobreza global: os sucessos na Ásia Oriental, em particular na China, onde cerca de 740 milhões foram retirados da pobreza, não teriam sido possíveis sem ela. a globalização mal administrada e injusta, com grandes subsídios agrícolas para as fazendas corporativas nos países avançados, prejudicou os mais pobres dos pobres: trabalhadores rurais nos países menos desenvolvidos.)

Duas outras crises acompanham a crise em nossa economia. O primeiro é uma crise em nossa democracia, pois os dois são inseparáveis. É através do nosso sistema político que as regras da economia são estabelecidas, e quando os resultados dessas regras são inaceitáveis – como na crise de 2008 – as conseqüências devem ser abordadas e resolvidas através de mudanças radicais. E esses tipos de mudanças têm que ser feitos através do sistema político – caso contrário, as coisas só vão piorar, especialmente quando uma terceira crise de interconexão é levada em consideração: o meio ambiente. Infelizmente, nenhum desses livros enfrenta o fracasso do nosso sistema em abordar a questão existencial do momento: a mudança climática.

Em um nível, eu simpatizo com o chamado de Collier para me afastar da ideologia e do extremismo, e sua ênfase no pragmatismo. Ele é um centrista de esquerda forte, moralmente motivado e se opõe aos excessos de ambos os extremos. Afinal, qualquer estudante de revolução sabe onde essas ideologias quase inevitavelmente levam. Mas foi o pragmatismo – o pragmatismo de Tony Blair e Bill Clinton, apoiado pelo que eles chamariam de “políticas baseadas em evidências” – que nos ajudaram a entrar na bagunça atual, e o incrementalismo não nos levará para fora. Quando sua geração e a geração de seus pais estavam crescendo, a era progressista da América e o New Deal trouxeram mudanças radicais (embora, para todos os epítetos lançados contra eles, longe de serem revolucionários) das quais todos nós nos beneficiamos enormemente. Da mesma forma, na Grã-Bretanha, as reformas foram feitas durante o governo trabalhista pós-guerra de Clement Attlee. O mesmo vale para a macroeconomia keynesiana. Todas essas políticas transformaram nossa concepção do papel do Estado e nos mostraram as possibilidades, até mesmo as necessidades, da ação coletiva. Imagine quão pior seria o mal-estar de hoje se não fosse pelas ações radicais das gerações anteriores.

Collier começa seu livro com uma descrição contundente das divisões que separam tantos países desenvolvidos, divisões entre cidades prósperas como Londres e Nova York e cidades provinciais e áreas rurais, e entre as elites educadas e os cidadãos com escolaridade limitada. Não muito tempo atrás, a teoria econômica predominante era “convergência”. Isso argumentava que havia forças econômicas subjacentes que reduziriam as discrepâncias na renda entre diferentes lugares, à medida que o capital se deslocava dos países ricos para os pobres, dos trabalhadores dos países pobres para os ricos e o comércio elevava os salários não qualificados nos países em desenvolvimento e nos países desenvolvidos. . Este último ponto raramente foi enfatizado – pois previu que a globalização por si só, sem intervenções governamentais significativas, incluindo a redistribuição, poderia deixar piores as grandes regiões dos países avançados. Mas o raciocínio era direto, e deveria ter sido óbvio para qualquer um que tivesse tomado um curso de iniciante em economia: mão-de-obra e, especialmente, mão-de-obra não qualificada, era relativamente abundante em países em desenvolvimento e emergentes, o que significava que esses países seriam exportadores líquidos. bens com uso intensivo de mão-de-obra (especialmente bens que requerem mão-de-obra não qualificada) para países avançados. Como a produção desses bens declinou nos países avançados, a demanda por mão-de-obra (especialmente a mão-de-obra não qualificada) diminuiu, levando a salários mais baixos e desemprego mais alto. Como Collier nos mostra, em vez da convergência geral prevista, a evidência agora sugere um quadro mais complexo, com os mercados emergentes convergindo para os países avançados, enquanto as brechas se ampliam entre os cidadãos mais pobres e mais ricos dentro e entre os países.

Robert Skidelsky, cujo dinheiro e governo: Um desafio para a economia mainstream é mais voltado para economistas do que os outros dois livros em análise, concentra sua atenção em fracassos macroeconômicos – a incapacidade da economia para evitar crises decrépitas e seu corolário, alto desemprego. A crise de 2008 mostrou vividamente que Lucas estava errado. As flutuações que fizeram parte do capitalismo desde o início ainda estavam conosco. Enquanto economistas da direita, como Friedman, por muito tempo culparam o governo por essas flutuações – e nos Estados Unidos o fizeram novamente depois de 2008 – a esmagadora evidência mostra que os delitos do setor financeiro privado foram responsáveis ​​por provocar a recessão global. Naturalmente, o que o governo fez e o que não fez moldou as conseqüências dos fracassos do setor privado: a recusa do governo dos EUA de resgatar o Lehman Brothers desencadeou a crise financeira, enquanto a subsequente intervenção governamental impediu que a crise se transformasse em outra Grande Depressão. Aqueles que, como eu, criticam o resgate por causa do modo como foi feito, e não pelo fato de que foi feito. Poderíamos ter salvado os bancos e seus depositantes sem socorrer os banqueiros e seus acionistas e detentores de títulos. Skidelsky argumenta convincentemente que a desaceleração teria sido ainda mais bem administrada se os conservadores no Reino Unido e os republicanos nos EUA não mantivessem a política fiscal. Com taxas de juros reais negativas (taxas de juros ajustadas pela inflação) em meio à crise, esse era precisamente o momento para investimentos públicos robustos. Nas primeiras semanas de seu governo, em fevereiro de 2009, Barack Obama aprovou uma medida de estímulo aprovada pelo Congresso, no valor de US $ 787 bilhões, que incluiu gastos significativos em infraestrutura e seguiu isso com várias medidas menores, mas dada a escala, escopo e duração provável. da recessão, era improvável que a economia retornasse rapidamente ao pleno emprego. (Eu disse isso na época, e eventos subseqüentes provaram que isso era verdade.) Enquanto estava sob o Partido Trabalhista, o Reino Unido tinha medidas expansionistas mais modestas, que foram revertidas sob o governo de coalizão de David Cameron em 2010. Mesmo se a real “austeridade” fosse por vezes, menos grave do que aquilo que foi reivindicado, constituiu uma mudança na direcção errada, e o Reino Unido sofreu, como resultado, demorando muito tempo a emergir da recessão e depois a registar anos de crescimento lento. A noção de uma “contração expansionista” provou ser a quimera que economistas como Skidelsky disseram que seria. Haveria um duplo dividendo – rendas mais altas hoje e no futuro.

Até mesmo os republicanos da América concordaram que esse investimento era muito necessário. Alegadamente, eles se preocuparam com o déficit resultante, que é o que os reteve; no entanto, não foi o déficit, mas a ideologia que impulsionou sua oposição à política fiscal: eles queriam impedir que o Estado assumisse um papel crescente. Apesar da tão alardeada promessa de Donald Trump de investir em infra-estrutura, isso não parece ser algo que ele, e certamente seus colegas republicanos, levaram a sério, e sua mais recente (ainda não realizada, e com virtualmente zero sua proposta, em fevereiro, para injetar US $ 200 bilhões fica bem aquém das várias promessas de trilhões de dólares que ele fez na campanha. Em contraste, quando, no primeiro ano da presidência de Trump, os republicanos tiveram a oportunidade de cortar impostos para bilionários e corporações, eles o fizeram com entusiasmo – mesmo quando aumentaram enormemente o déficit: até 2022, os EUA são esperados pelo Orçamento do Congresso. Escritório terá déficits de US $ 1,1 trilhão de dólares, totalizando quase 5% do PIB. E enquanto as estimativas oficiais colocam o aumento total do déficit nos próximos dez anos em cerca de US $ 1,5 trilhão, elas se basearam em cenários de crescimento que já estão perdendo sua credibilidade. Se o crescimento se mostrar mais fraco do que os números rosados, os déficits e a dívida aumentarão.

Todos os três livros dão destaque ao papel da batalha de idéias, explicando como as teorias equivocadas venceram a era de Reagan e Thatcher em diante. Block, por exemplo, detalha o papel desempenhado por vários equívocos sobre nosso sistema econômico e político, começando com o fundamentalismo de mercado (o que eu refiro em meu livro, Globalization and Its Discontents, 2002, como a crença quase religiosa de que os mercados, por conta própria , são eficientes, estáveis e, em certo sentido, justas). Ele mostra com razão que, sem as restrições do governo, os ricos e poderosos moldam o capitalismo para obter vantagem, minando a competição e explorando os outros, acabando por minar o próprio sistema capitalista. Adam Smith reconheceu isso, mas seus seguidores nos últimos dias parecem esquecer-se disso.

Aqui, Skidelsky se junta à sua análise macroeconômica: não há presunção, argumenta Skidelsky, que as economias de mercado obtêm o equilíbrio certo – ou seja, demanda agregada suficiente para garantir pleno emprego sem inflação, uma espécie de economia de ouro de não muito pouco, não muito Muito de. Jean-Baptiste Say afirmou em 1800 que os mercados atingem essa economia de Cachinhos Dourados; a história mostrou que ele estava errado. Keynes, seguindo uma série de escritores anteriores, incluindo John Stuart Mill, explicou as falácias da teoria de Say. Skidelsky acrescenta a essa refutação uma exposição clara e útil: os indivíduos, especialmente quando enfrentam altos níveis de incerteza sobre o futuro, podem decidir converter o poder de compra que ganham da produção de bens em dinheiro, ou, ainda, em qualquer bem não produzido, como a terra. Nesse caso, a demanda agregada por bens produzidos será menor que a oferta. Os macroeconomistas modernos “resolvem” o problema assumindo-o: os modelos-padrão presumem que, de algum modo, a economia está em equilíbrio, com a demanda por trabalho e bens de alguma forma apenas igualando a oferta. O fato de alcançarmos esse belo equilíbrio é, como a crença na própria eficiência do mercado, uma questão de profunda convicção religiosa e o caminho que seguimos para chegar a uma questão de revelação mística. Se surgir um problema nesta teoria abrangente – se houver desemprego, por exemplo – a resposta é simples: culpe a vítima, significando trabalhadores, por exigir salários muito altos, ou migrantes, por inundar o mercado de trabalho. Se apenas os salários fossem suficientemente flexíveis, diz a teoria, ou fronteiras suficientemente proibitivas, a economia estaria sempre em pleno emprego. E se tudo o mais falhar, culpe o governo por estragar tudo.

Como Block coloca, há uma ilusão de que a democracia ameaça a economia; isso levará o governo a inevitavelmente estragar as coisas. Friedman tentou culpar a Grande Depressão pelas políticas equivocadas dos bancos centrais: sua contração da oferta monetária, argumentou ele, foi o que derrubou a economia. Sua análise é agora entendida como ilusória. E o que aconteceu depois do colapso do Lehman Brothers pode fornecer a prova mais convincente. Ninguém poderia imaginar até que ponto os bancos centrais em todo o mundo expandiram a oferta monetária em 2008 e 2009, e ainda assim o mundo experimentou uma profunda recessão. Assim, também, a direita hoje tentou culpar a recessão de 2008, com suas origens na crise do subprime, no incentivo do governo à propriedade imobiliária. E mais uma vez os argumentos foram refutados: ninguém forçou os bancos a fazer empréstimos ruins, a emprestar uma quantia que estava além da capacidade de pagamento dos compradores – na verdade, mesmo encorajando a casa própria, o governo também encorajou a prudência. A Comissão de Inquérito da Crise Financeira, nomeada pelo Congresso para investigar as causas da crise, concluiu que esses programas de propriedade não foram os fatores que originaram a crise financeira; foram as más ações do setor financeiro privado.

Ao mostrar que a intervenção do governo pode evitar os piores excessos do desemprego, Keynes, sem dúvida, salvou o capitalismo, e o mesmo deve ser verdade hoje em dia. O capitalismo deformado, no qual a renda sobe para os que estão no topo, enquanto os salários estagnam e a qualidade de vida se desintegra para a maioria dos cidadãos – um estado de coisas apenas aumentado desde 2008 – não é política ou socialmente sustentável. Se o capitalismo deve ser salvo, o governo terá que mostrar que pode ser reformado, que o capitalismo pode proporcionar prosperidade para todos ou pelo menos para a maioria dos cidadãos.

Há muitos elementos dessa agenda de “reforma”. Collier acertadamente leva as corporações modernas à tarefa por seu foco único no valor do acionista – o que muitas vezes simplesmente significa alinhar os próprios bolsos do CEO. E Block corretamente critica a doutrina da “ganância é boa”, uma idéia que na verdade tem algum pedigree intelectual. Isso aconteceu por meio de uma extensão do teorema da mão invisível de Adam Smith – de que a busca de interesse próprio de indivíduos e empresas levaria, como que por uma mão invisível, ao bem-estar da sociedade. (Como já observamos, Smith entendia as limitações dos mercados não regulamentados, observando, por exemplo, a tendência das empresas de conspirar para aumentar os preços.) Assim, as empresas deveriam simplesmente maximizar seu valor de mercado de ações, aconteça o que acontecer. Para economistas como Friedman, era errado, quase imoral, que as empresas se comprometessem com a responsabilidade corporativa, não conseguindo baixar os salários. Essa noção desempenhou um papel fundamental na reformulação das normas e do arcabouço legal em torno do capitalismo. Foi novamente uma agenda política, com fortes consequências para o crescimento e distribuição. As empresas se concentraram no que poderiam fazer para aumentar o valor das ações hoje, sem pensar no futuro. Isso levou tanto à contabilidade criativa – os investidores enganados a acreditar que as perspectivas futuras da empresa eram melhores do que de fato eram – quanto a diminuir o investimento em fábricas, equipamentos e pessoas. O foco nos retornos de curto prazo – graças às ideias de Friedman – levou a um crescimento mais lento. Uma empresa não pode ter um crescimento de longo prazo baseado em pensamento de curto prazo.

A análise de Friedman baseou-se em argumentos superficiais que, na época em que ele os impulsionou, já haviam sido desacreditados por avanços simultâneos na teoria econômica. Por exemplo, a doutrina da “ganância é boa” foi refutada pelo trabalho (feito na segunda metade do século passado por Kenneth Arrow, Gérard Debreu, Bruce Greenwald e eu) que mostrou que as condições sob as quais o teorema da mão invisível de Smith era true eram tão restritivas que tornavam o teorema irrelevante como uma questão prática. Em suma, esta pesquisa mostrou que os mercados não eram eficientes em geral sempre que a informação era imperfeita e os mercados incompletos – o que é sempre. Se alguém precisasse de evidências empíricas de que a ganância desenfreada era ruim para a economia, bastava olhar para as ações dos banqueiros no período que antecedeu a recessão de 2008: sua voracidade levou a economia global à beira da ruína. Mais uma vez, legisladores, legisladores e políticos pró-negócios da direita não prestaram atenção: seus argumentos econômicos eram simplesmente uma fachada, um meio para um mercado menos regulado que lhes proporcionaria mais oportunidades de lucros, mais chances de explorar e tirar vantagem de outros. .

Uma força desses três livros é que eles saem dos limites estreitos da economia. Essa abordagem é natural para Block, que vem de um departamento de sociologia e cuja visão está profundamente enraizada no trabalho do pensador vienense Karl Polanyi. Mas também não é surpresa para Collier, um eminente economista de desenvolvimento que está particularmente interessado em reconciliação pós-conflito e conflito. Collier reconhece que o colapso econômico é causa e conseqüência do colapso social; mas ele é rápido demais para culpar o paternalismo, os utilitaristas e os globalistas pelas doenças da sociedade. Há razões mais profundas para isso – por exemplo, o colapso do engajamento cívico e o sentimento de isolamento que permeia. Há muitas explicações estruturais que considero mais plausíveis do que aquelas que Collier foca, incluindo os impactos de muitas das novas tecnologias, os extremos do individualismo enfatizados pelo Reaganismo / Thatcherismo e as vertentes dominantes do neoliberalismo, e o declínio da confiança pública por eventos como as guerras do Iraque e do Vietnã e Watergate.

Collier acredita que uma catastrófica falta de moralidade – evidenciada pela ganância é boa doutrina – está no cerne do capitalismo moderno. Ele pede uma família ética, uma empresa ética e uma globalização ética. Essa é a abordagem correta, mas, embora possamos discutir se ele definiu esses conceitos adequadamente, ou até mesmo forneceu bases filosóficas suficientes, a questão central é: como podemos alcançar essa sociedade ética? Collier não responde de forma persuasiva, nem vai longe o bastante para expor os lapsos éticos das economias e sociedades capitalistas do século XXI. Afinal de contas, o que podemos dizer sobre a ética de uma sociedade que parece estar disposta a comprometer a saúde e o bem-estar das futuras gerações ao consumir, com carência, mais bens materiais intensivos em carbono hoje? Os manifestantes de colete amarelo em Paris, enquanto clamam contra um imposto verde progressivo destinado a garantir o futuro do planeta, estão, com razão, imaginando como terão dinheiro suficiente para chegar ao final do mês. O que mostra que um capitalismo verdadeiramente ético deve abordar simultaneamente a desigualdade estrutural e o meio ambiente. O tempo não está do nosso lado. O tipo de pragmatismo e centrismo defendido por Collier não servirá se quisermos reagir com prudência aos riscos reais que enfrentamos. O Green New Deal, proposto por um grupo de jovens democratas nos EUA, está mais próximo da meta: uma mobilização de recursos da magnitude que cabe à tarefa e feita de forma a reestruturar a economia para que os “coletes amarelos” do mundo ”Não estão mais vivendo as vidas precárias que foram. Eu acredito que esses jovens democratas estão certos. De fato, haveria um enorme aumento na renda nacional se eliminássemos a discriminação e o desemprego, reformassemos nossos mercados de trabalho para facilitar que mais mulheres e trabalhadores mais velhos participassem em igualdade de condições no local de trabalho e reduzissem as distorções decorrentes de empresas com mercado. poder. Este aumento de renda seria um longo caminho no sentido de fornecer os recursos necessários para o Green New Deal. Sem dúvida, precisaríamos fazer mais: redistribuindo recursos – inclusive reduzindo o consumo excessivo e conspícuo dos ricos por meio de impostos mais progressivos e reduzindo o efetivo militar (a segurança global é a ameaça real à segurança no longo prazo). Essa agenda alcançaria não apenas um crescimento maior, mas uma prosperidade mais equitativa e sustentável.

Collier está certo em se preocupar com o extremismo, e o nativismo e a fealdade sintetizados por Trump – o que Collier chama de “nacionalismo excludente”. Mas seu diagnóstico da causa principal é equivocado. Ele conclui seu livro com o seguinte argumento: “Evitando o pertencimento compartilhado e o patriotismo benigno que ele pode apoiar, os liberais abandonaram a única força capaz de unir nossas sociedades aos remédios. Inadvertidamente, imprudentemente, eles o entregaram aos extremos charlatães, que estão alegremente torcendo-o para seus próprios propósitos distorcidos ”. Esta posição parece injusta. Esses não são os liberais que conheço, que lutaram para enriquecer a vida coletiva de nossas nações. Uma pessoa pode ser cidadã do mundo, cidadã do país e da mesma cidade ao mesmo tempo. Os economistas – e especialmente os liberais – reconhecem há muito tempo a importância do capital social e da confiança, a cola que não apenas mantém a sociedade unida, mas faz a economia funcionar.

Não é inevitável que nossa economia de mercado misto continue em sua forma atual no Reino Unido e nos EUA. De fato, podemos olhar para um capitalismo mais temperado na Escandinávia e, pelo menos de tempos em tempos, em outros lugares: o atual governo da Nova Zelândia está mostrando o caminho. Até mesmo seu orçamento é formulado em termos de “bem-estar” nacional. Os EUA e o Reino Unido talvez tenham liderado o caminho errado ao criar uma versão extrema do capitalismo, muitas vezes em nome de doutrinas neoliberais aparentemente “centristas” e pragmáticas. Há pouca dúvida em minha mente de que podemos criar um capitalismo mais ético, projetado para moldar uma sociedade mais desinteressada – e o resultado será uma sociedade menos povoada por indivíduos egoístas. Mas isso não vai acontecer sozinho. E isso não vai acontecer com palestras corporativas sobre responsabilidade social. As corporações são especialistas em greenwashing, ou alegam falsamente ser ambientalmente responsáveis, porque é um bom negócio. A Apple e a Starbucks falam sobre responsabilidade corporativa e, em algumas esferas, agem com responsabilidade. Mas a verdade subjacente é a seguinte: onde Collier enfatiza a importância da obrigação mútua, a Apple, a Starbucks e muitas outras multinacionais estão dispostas a aceitar, mas não a retribuir em igual medida. O primeiro elemento da responsabilidade social é pagar seus impostos, e essas empresas e outros como eles empregaram a mesma engenhosidade que usaram para produzir produtos melhores para evitar a tributação.

É por isso que a criação deste novo sistema só acontecerá através da política – o que, por sua vez, é o motivo pelo qual o futuro do capitalismo, nossas democracias e o mundo estão inextricavelmente ligados. Vimos o que o capitalismo disforme tem feito às democracias nos EUA e em outros lugares e como as perversões eleitorais resultantes distorcem nossas economias. A triste realidade é que as coisas podem piorar. O presidente Jair Bolsonaro do Brasil é apenas o mais recente autoritário no cenário global.

Se quisermos alcançar um capitalismo ético, precisamos de uma política ética, que respeite os princípios básicos dos valores democráticos. Novamente, isso não é provável que aconteça sozinho. Podemos ver isso claramente nos EUA, onde a direita tem se engajado em uma agenda sistemática de privação de direitos e desempoderamento – limitando o voto aos cidadãos que se opõem às ideias da direita, limitando a capacidade dos opositores de traduzir votos em poder político, e limitando o que pode ser feito se seus oponentes obtiverem poder político (ou como Nancy MacLean colocou em seu livro com esse título, colocando “a democracia acorrentada”; ver TLS, 6 de julho de 2018). Isso é especialmente fácil nos EUA, onde a Suprema Corte altamente politizada julga à direita ler na Constituição novos direitos para os ricos e menos direitos para os cidadãos comuns: por exemplo, o direito das corporações ricas de fazer contribuições de campanha desenfreadas enquanto circunscrevem os direitos dos cidadãos. trabalhadores para organizar ou indivíduos para processar corporações que abusaram deles. Mesmo os democratas de alguma forma conseguiram superar as desvantagens eleitorais gerrymandering, o Senado dos EUA (em que populações em pequenos estados são super-representados) e o colégio eleitoral (que assegurou que ambos os presidentes republicanos eleitos neste século assumiram o cargo com uma minoria de votos ), eles só poderiam mudar essas e outras políticas obtendo novas decisões da Suprema Corte.

Esses três livros naturalmente atribuem um papel fundamental ao poder das idéias. Mas os interesses também importam. A economia tem a ver com crescimento, mas também com batalhas distributivas – e, como ilustra a devastadora Lei de Cortes de impostos e Empregos de Trump, de 2017, a última mostrou-se mais importante do que ideias ou crescimento. Um pequeno estado é uma serva para esses interesses. Os cidadãos com poder econômico simplesmente não querem um estado que os impeça de exercer esse poder. As empresas que exploram outras pessoas não querem um governo capaz de impedi-las de se envolver em atividades nefastas ou de redistribuir seus ganhos ilícitos. As empresas de petróleo, produtos químicos e carvão não querem um estado poderoso o suficiente para impedi-los de destruir nosso planeta.

Em suas tentativas de circunscrever o Estado, a direita também destrói a capacidade de uma nação de fazer o que deve para que todos os seus cidadãos prosperem. Os enormes aumentos nos nossos padrões de vida nos últimos 250 anos são baseados em avanços no conhecimento – cuja base é a pesquisa básica – um bem público que deve ser fornecido publicamente através de universidades e outras instituições de pesquisa financiadas pelo setor público. Nossa prosperidade também repousa sobre organização social, nosso estado de direito, democracia e sistemas de freios e contrapesos, todas as funções públicas essenciais. Em seu egoísmo, mesmo aqueles que estão no topo podem estar se prejudicando: eles estariam melhor com uma fatia menor de um bolo maior e, como todos os outros, se beneficiariam de uma economia e sociedade mais estáveis e sustentáveis. Para não mencionar um planeta habitável.

Agora é hora de encontrar um caminho entre o incrementalismo, por um lado, e a revolução violenta, por outro. Uma mudança radical nas relações econômicas e de poder é possível. Também é existencialmente urgente. Essa é a única coisa que salvará o capitalismo de si mesmo e dos capitalistas que o destruiriam involuntariamente, e a Terra junto com ele.

A redescoberta da nação: Nacionalismo econômico volta a ser lembrado

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Luiz Carlos Bresser Pereira

A grande crise que começou em 2013 dura até hoje. No plano econômico, ela é estrutural; decorre do fato de desde os anos 1980 tanto o Estado quanto o setor privado terem perdido capacidade de investir; no plano político, ela começa com as grandes manifestações de junho de 2013 que marcaram o rompimento da classe média brasileira com o pacto democrático-popular das Diretas Já.

O rompimento da classe média decorreu da incapacidade dos governos, tenham sido eles de centro-direita ou de centro-esquerda, de retomar o desenvolvimento econômico interrompido em 1980.

A partir de 1990, no quadro da democracia, com a preferência pelo consumo imediato, os interesses financeiros prevaleceram sobre o componente desenvolvimentista do pacto, e a classe média se viu espremida entre uma classe alta, financeiro-rentista, que se beneficiava dos juros e do câmbio apreciado, enquanto os pobres eram beneficiados pelas políticas sociais e pelo aumento do salário mínimo.

O rompimento da classe média ocorreu em 2013, quando essa classe deu uma grande guinada para a direita e se submeteu ao neoliberalismo. Quando, em 2014, o PT ganhou as eleições por pequena margem, não obstante haver perdido o apoio das elites econômicas, esse partido e seu líder foram transformados em “inimigos públicos”, aprofundando a crise política. O desencadeamento de uma crise financeira e fiscal nesse mesmo ano de 2014, cuja culpa foi atribuída ao governo Dilma Rousseff, agravou essa guinada.

Ocorre, então, uma sequência de conluios que aproveitam da hegemonia neoliberal. Primeiro, o vice-presidente Michel Temer, para obter o apoio das elites e da classe média e lograr o impeachment, encomendou a economistas neoliberais o documento “Uma Ponte Para o Futuro”; ao mesmo tempo, para se legitimar as violências contra o Estado de Direito da Operação Lava Jato, o então juiz Sérgio Moro e seus procuradores escolheram o PT e Lula como seus alvos; finalmente, e segundo a mesma lógica, o candidato Bolsonaro escolheu um economista radicalmente ortodoxo, Paulo Guedes, para alcançar a Presidência.

Esses três conluios não foram apenas contra a esquerda, foram contra o Brasil. Os governos que deles resultaram colocaram todas as suas fichas em uma incompetente política fiscal procíclica de corte dos investimentos públicos, mostrando-se, assim, incapazes de adotar as políticas necessárias para a retomada do desenvolvimento econômico, enquanto procuravam vender as empresas públicas monopolistas a estrangeiros.

Hoje, o fracasso desse conservadorismo e dessa dependência radical aos Estados Unidos está minando a hegemonia neoliberal. E vemos, de repente, ressurgir a ideia da nação brasileira. Vemos intelectuais e políticos tanto na centro-esquerda quanto na centro-direita, que haviam “esquecido” o nacionalismo econômico, voltarem-se para ele —voltarem-se para uma nação que, não obstante as lutas inerentes à sociedade civil, seja capaz de unir os brasileiros em torno de um projeto nacionalista e desenvolvimentista.

Não há desenvolvimento econômico sem nacionalismo econômico, mas o nacionalismo implica um projeto de desenvolvimento econômico que tenha como principal característica macroeconômica a rejeição radical de déficits em conta corrente que a taxa de câmbio apreciada gera no longo prazo. Não basta para um país a competitividade técnica (a produtividade); é preciso que o país tenha também competitividade monetária, ou seja, uma taxa de câmbio competitiva que assegure às empresas brasileiras igualdade de condições na concorrência com as empresas de outros países.

Não basta ser contra a venda dos móveis da família. É preciso que a família brasileira abandone a não-política de um regime econômico voltado para o consumo e o substitua por um regime de política econômica voltado para a produção e a competitividade. O nacionalismo econômico só faz sentido quando o país, além de rejeitar a dependência, abandona a preferência pelo consumo imediato e se dispõe a competir no nível internacional.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Pensamentos, influências e as companhias espirituais

Os teóricos da autoajuda sempre destacaram a importância do pensamento positivo para o equilíbrio emocional e para as conquistas que cada pessoa almeja nesta sociedade, o pensamento tem uma importância central para a vida dos indivíduos, aqueles que controlam seu pensamento e vibram de forma positiva conquistam tudo que querem e se tornam mais eficientes e felizes, justamente tudo que almejamos em uma sociedade dominada pelo poder do dinheiro e pelos prazeres da matéria e das sensações.

O pensamento é força criadora, pensar positivamente pode auxiliar em nosso crescimento profissional, auxiliando nossas conquistas e nosso crescimento corporativo, esta fórmula a muito fora compreendida pelos teóricos da gestão e foi vendida como um grande mantra pessoal, levando muitos a acumular fortunas e prestígio na sociedade do consumo e do entretenimento.

A Doutrina Espírita, desde sua codificação, sempre destacou a importância do bem pensar, do reflexionar e do conhecimento interno para nosso crescimento e desenvolvimento pessoal, mostrando-nos a importância do pensamento como força de atração criadora e realização de sonhos e na construção de perspectivas salutares para a vida e o futuro imediato.

Como nos mostra Emmanuel, no livro Pão Nosso, psicografia de Francisco Cândido Xavier: “Pensar é criar. A realidade dessa criação pode não se exteriorizar-se, de súbito, no campo dos efeitos transitórios, mas o objeto formado pelo poder mental vive no mundo íntimo, exigindo cuidados especiais para o esforço de continuidade ou extinção”.

Num mundo marcado pela competição crescente e pela busca do prazer, onde os desejos são facilmente realizados e as condutas individuais são, na sua maioria, pautadas, pelos interesses do dinheiro e do poder material, o pensamento deve ser construído com grande intensidade pelas pessoas, como uma forma de atrair energias saudáveis para equilibrar o ambiente e buscar alcançar os ganhos da sociedade contemporânea.

Vivemos numa sociedade muito competitiva, os valores muitas vezes são deixados de lado em prol de prazeres e satisfações momentâneas, como acreditamos nos prazeres imediatos, nos esquecemos de questões espirituais mais relevantes e nos esquecemos que somos espíritos em constante evolução, embora nosso corpo físico tenha uma limitação física e temporal, nos esquecemos que, num futuro muito próximo, estaremos de volta a roupagem material em busca do crescimento e do desenvolvimento, tudo isto nos foi revelado com a publicação de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, obra basilar da codificação espírita.

Na obra, O Livro dos Espíritos, nos foi revelado que somos espíritos que habitamos corpos materiais, a verdadeira face da vida se encontra no mundo espiritual, a matéria pode ser descrita apenas como um processo de crescimento individual, um momento necessário e imprescindível para a evolução de cada indivíduo, todos somos obrigados a passar por este momento de amplo crescimento e aprendizado em busca da evolução moral, emocional e espiritual.

O pensamento nos auxilia na organização das energias que atraímos para nosso convívio, se pensamos coisas saudáveis e salutares, atraímos estas energias que nos fazem muito bem, nos ajuda em nosso crescimento e nos aproxima de bons espíritos que nos protegem e nos inspiram em atitudes e comportamentos melhores, contribuindo para nosso desenvolvimento enquanto ser humano.

As energias salutares podem ser encontradas em bons pensamentos, no hábito da oração e nas atitudes saudáveis, na caridade e nos trabalhos assistenciais. Quando agimos de forma caridosa e buscamos auxiliar as pessoas em dificuldades, estamos nos capacitando para angariar boas energias e com elas renovamos nossos sentimentos e pensamentos, trazendo para perto de nós bons espíritos e amigos espirituais.

Quando temos atitudes negativas, pensamentos grosseiros e, muitas vezes, negativos e maldosos, atraímos para nosso convívio entidades e espíritos ora dominados por sentimentos menores, estes irmãos nos geram mal-estar e nos geram constrangimentos, muitos deles podem até nos dominar e comandar nossas atitudes e nossos comportamentos.

Na sociedade atual, marcada por sentimentos hedonistas e imediatistas, onde os sentimentos de concorrência e competitividade dominam e, na maior parte das vezes, não trazem embutidos valores mais sólidos e estruturados, os sentimentos negativos e os pensamentos agressivos dominam de forma acelerada, moldando as pessoas e motivando-as intensamente.

Nesta mesma sociedade, os pensamentos negativos estão atraindo espíritos desencarnados dotados de sentimentos e pensamentos equivocados, muitos irmãos desencarnados ainda não se conscientizaram de seu estágio atual, morreram e não compreenderam o que está lhes acontecendo, muitos chafurdam na lama e desconhecem as profundidades do pântano, com isso, atraem dores e ressentimentos em escalas crescentes.

Numa sociedade doente, como a que vivemos na contemporaneidade, marcada pela busca do lucro indiscriminado e pelos prazeres do dinheiro, os espíritos estão presentes em nossa vida muito mais do que imaginamos, muitos deles nos controlam e nos dominam, fazendo com que seus pensamentos desequilibrados dominem nossas atitudes e comportamentos. Como nos foi dito em O Livro dos Espíritos, os espíritos nos influenciam muito mais do que imaginamos, enquanto nos comportamos como seres dotados de uma única vida e não encararmos de frente a riqueza do mundo espiritual, corremos o risco de perpetuar um desequilíbrio constante entre os dois polos da vida, o material e o espiritual.

O pensamento é uma fonte criadora constante, os teóricos da autoajuda entenderam esta equação muito mais rápido do que os outros mortais, seus conhecimentos podem auxiliar os indivíduos em sua renovação e crescimento íntimos, mas para que este crescimento se materialize, é fundamental que os indivíduos busquem atrair bons espíritos e boas energias, sem estas dificilmente as teorias vendidas nos mercados da literatura de autoajuda encontrará ecos e resultados auspiciosos.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que como somos todos espíritos envoltos em corpos materiais, necessitamos auxiliarmo-nos mutuamente, precisamos construir uma evolução conjunta, todo progresso do ser humano está envolto em um desenvolvimento coletivo, somos entidades criadas para viver em comunidade e evoluir em comunidade, todos aqueles que dificultam o desenvolvimento da sociedade são expurgados para outros mundos, como nos foi retratado por Edgar Armond em Os exilados de Capela.

Na obra acima, a espiritualidade nos leva a conhecer a trajetória dos capelinos, estes irmãos dotados de grande crescimento intelectual e tecnológico, mas desprovidos de valores espirituais e de uma ética de responsabilidade coletiva, estes espíritos estavam dificultando o crescimento de seu mundo e, com isso, foram levados a mundo mais atrasados como forma de evoluir e valorizar suas conquistas em prol da coletividade, dando maior sentido para sua existência enquanto ser espiritual, dotado de valores emocionais sólidos e consolidados.

Como nos destaca Suely Caldas Schubert, no livro Obsessão e desobsessão: Profilaxia e terapêuticas espíritas: “Na qualidade do pensamento que emitimos, que cultivamos e que recebemos dos outros, aceitando-os ou não, está o ‘mistério’ da saúde ou da doença, da paz ou do desequilíbrio”

O pensamento deve ser visto como algo central na sociedade e no processo de crescimento espiritual dos indivíduos, diante disso, faz-se necessário destacar, que pensar positivamente exige trabalho incessante para a concretização de seus sonhos e de seus desejos, o pensamento positivo sem obras e trabalho consistente não nos garante as conquistas almejados no cotidiano.

Outro ponto interessante e fundamental a ser destacado, é que muitas conquistas não se efetivam por completo, muitos sonhos e desejos não se materializam como desejamos, isto acontece porque muitos de nossos desejos e de nossas vontades não nos trariam as vantagens no médio ou no longo prazo, sendo inviabilizadas por espíritos superiores que zelam pela nossa caminhada. Muitos de nossos desejos imediatos ou caprichos materiais não se viabilizam porque nos trariam ganhos ilusórios e num prazo posterior pode nos custar muito mais caro e nos trazer prejuízos e desequilíbrios enormes, diante disso, os bons espíritos evitam que estes desejos sejam materializados.

Neste momento, é importante refletir e compreender, que muitas das nossas vontades são apenas desejos imaturos de indivíduos tolos e inconsequentes, muitos desejos se realizados no momento podem nos levar a desequilíbrios e dores intensas num futuro muito próximo, diante disso, o auxílio dos bons espíritos pode evitar que nossas vontades inconsequentes se transformem em uma realidade assustadora.

O pensamento equilibrado é uma grande conquista dos seres humanos, embora saibamos que a razão e a racionalidade estão presentes nos indivíduos a uns quarenta mil anos, sabemos que a liberdade de pensar pode nos levar a equívocos generalizados ou auxiliar-nos em progressos imensuráveis, a liberdade é uma grande benção concedida por Deus e deve vir sempre junto com a responsabilidade, para merecermos a liberdade devemos assumir a responsabilidade.

Neste mundo contemporâneo percebemos pensamentos viciados e desequilibrados, na nossa caminhada escolhemos caminhos equivocados e percebemo-nos escravos das paixões mundanas e dos desejos imediatos e nos esquecemos que somos seres em constante evolução, e esta trajetória envolve vitórias e derrotas, mas nunca devemos esmorecer e nos esquecer que somos auxiliados constantemente por uma força propulsora que tende a nos levar pra frente, uns mais rápidos do que os outros, mas todos vão alcançar o progresso.

A obsessão, muito estudada na Doutrina Espírita, pode ser descrita como o pensamento a transitar e a sintonizar nas faixas vibratórias inferiores. A desobsessão é a mudança de direção do pensamento para rumos novos e construtivos, é a mudança do padrão vibratório, sob o influxo da mente, que optou por uma frequência mais elevada.

As dificuldades do mundo contemporâneo são constantes e vencê-las é fundamental para o progresso e o crescimento espiritual, nesta jornada rumo ao desenvolvimento do espírito, o controle e a domesticação do pensamento devem ser vistos como fundamentais, pensamento positivo nos leva em direção ao progresso e nos aproxima dos bons espíritos, enquanto sentimentos viciados e inconsequentes nos afasta do progresso espiritual e nos distancia dos bons espíritos.

 

 

 

 

Corporações: já vivemos uma distopia…

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Poder global das megaempresas manipula pessoas, devasta o meio ambiente e corrompe democracias. Uma ameaça a existência humana mais devastadora — e real — que a Inteligência Artificial. Podemos superá-la?

Por Jeremy Lent | Tradução: Simone Paz

Alguns dos principais pensadores de nossos tempos vêm soltando uma série de alertas sobre a ameaça da inteligência artificial dominar os humanos. Stephen Hawking profetizou que isso poderia ser “o pior acontecimento na história de nossa civilização”, a menos que encontremos uma forma de controlar o seu desenvolvimento. O bilionário Elon Musk fundou uma companhia para tentar manter os humanos um passo à frente no que ele considera uma ameaça existencial da Inteligência Artificial (IA).

O cenário que os aterroriza é que, apesar das boas intenções, terminemos criando uma força mais poderosa do que toda a humanidade, com um sistema de valores que não necessariamente incorpora o bem-estar social dos humanos. Quando essa força atingir uma massa crítica, ela poderá dominar o mundo, controlar as atividades humanas e, essencialmente, sugar toda a vida do planeta, enquanto se otimiza para seus próprios fins. O notável futurista Nick Bostrom nos dá o exemplo de uma superinteligência projetada para fabricar clipes de papel que poderia transformar toda a Terra em uma grande instalação industrial produtora de clipes.

Estes futuristas estão certos ao falarem de suas preocupações, mas se esquecem do fato de que os humanos já criaram uma força que está no caminho de devorar a humanidade e o planeta juntos, exatamente da forma em que eles temem. É a Corporação.

“Governado por corporações”

Quando as corporações foram inicialmente criadas, no século XVII, seus fundadores — assim como os engenheiros de software modernos — acreditavam que agiam com boas intenções. Os primeiros estatutos corporativos foram feitos apenas para limitar a responsabilidade do investidor à quantia de seu investimento, portanto, encorajando-os a financiarem expedições arriscadas para a Índia e para o Sudeste da Ásia. Porém, logo surgiu uma consequência imprevista, conhecida pelo seu perigo moral: com vantagens maiores do que os prejuízos, desatou-se um comportamento imprudente, que desencadeou uma série de grandes fraudes e a falência do mercado. Com isto, as corporações foram banidas temporariamente da Inglaterra, em 1720.

Thomas Jefferson e outros líderes dos Estados Unidos, precavidos pela experiência inglesa, desconfiavam profundamente das corporações e davam a elas contratos limitados com poderes muito restritos. No entanto, no turbilhão da Guerra Civil americana, industriais se aproveitaram da desordem para alavancar e generalizar a corrupção política e, assim, expandir sua influência. “Este não é mais um governo das pessoas, feito por pessoas e para as pessoas. É um governo de corporações, feito por e para corporações”, lamentou Rutherford Hayes, que virou presidente em 1877.

As corporações se aproveitaram completamente de sua nova autoridade e passaram a influenciar legislações estatais para que emitissem contratos perpétuos que lhes dessem o direito de fazer qualquer coisa que não fosse explicitamente proibida pelas leis. O ponto de inflexão em seu trajeto para a dominação ocorreu em 1886, quando a Corte Suprema denominou corporações como “pessoas” com direito à proteção da 14ª Emenda, que havia sido aprovada para dar direitos iguais aos antigos escravos, libertos após a Guerra Civil. Desde então, a dominação das corporações só tem sido otimizada pela lei, culminando no conhecido caso do Citizen United, em 2010, que liberou as restrições de gastos políticos das corporações em eleições.

Sociopatas com alcance global

Corporações, bem como uma Inteligência Artificial potencialmente desertora, não possuem interesses intrínsecos de bem-estar humano e social. São construções legais: entidades abstratas, projetadas, acima de tudo, com o objetivo final de maximizar os retornos financeiros para seus investidores. Se corporações fossem, de fato, pessoas reais, seriam sociopatas, completamente esvaziados de empatia, que é um elemento crucial do comportamento humano normal. Todavia, diferentemente dos humanos, corporações são teoricamente imortais, não podem ir para a cadeia e, no caso das maiores multinacionais, não podem ser restringidas pela lei de nenhum país de forma individual.

Com a incalculável vantagem de seus poderes sobre-humanos, corporações dominaram o mundo, literalmente. Cresceram de forma tão acentuada que um impressionante número de 69 das 100 maiores economias do mundo não são Estados-nações, mas entidades corporativas.

Corporações têm conseguido usar seus poderes transnacionais para ditar suas próprias condições a qualquer país do mundo. Como resultado de décadas de globalização, corporações podem explorar a livre movimentação de capitais para construir fábricas em países com sindicatos mais fracos ou distribuir plantas poluentes em países com leis ambientais inconsistentes, baseando suas decisões somente na maximização dos retornos para seus acionistas. Os governos disputam entre si para tornar seus países o mais atraente possível para o investimento corporativo.

As corporações manejam seus vastos poderes para controlar a mente dos consumidores, seduzindo-os para um estado de consumo sem fim. No começo do século XX, Edward Bernays, o grande cérebro do empoderamento corporativo, apresentou seu audacioso plano de jogo como “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões das massas, de forma organizada”. Declarou, ameaçador, que “aqueles que manipulam este mecanismo invisível da sociedade constituem um governo invisível, que é o verdadeiro poder dominante deste país”. As tenebrosas palavras de Wayne Chilicki, diretor executivo da General Mills, demonstram como a visão de Bernays tem se perpetuado: “Quando se trata de segmentar consumidores infantis, nós da General Mills… acreditamos em capturá-los bem cedo e tê-los conosco para a vida toda”.

O resultado desta apropriação da humanidade pelas corporações é um mundo fora de controle, onde a natureza é impiedosamente saqueada para extrair as matérias-primas necessárias ao aumento dos retornos dos acionistas num vórtex de crescimento econômico infinito, sem se preocupar com a qualidade da vida humana e sem consideração pelo bem-estar das futuras gerações.

Apropriação corporativa da governança global

Em vez de serem julgados pela sua destruição voraz, aqueles que dedicam suas vidas aos importantes senhores das corporações são recompensados com riqueza e elevados cargos com maior poder e prestígio. ExxonMobil, por exemplo, foi denunciada por ter mentido descaradamente sobre as mudanças climáticas, sabendo há décadas das suas consequências e, ainda assim, ter ocultado informações — condenando, deste modo, as gerações presentes e futuras à catástrofe. Longe de ir preso, Rex Tillerson (que foi o diretor executivo da ExxonMobil durante grande parte desse período), é hoje o Secretário de Estado dos EUA e coordena as relações globais do país mais poderoso do mundo.

De fato, o atual gabinete dos Estados Unidos representa a maior dominação até então vista de corporações no governo norte-americano, com cerca de 70% dos altos cargos preenchidos por executivos corporativos. Nas palavras de Robert Weissman, presidente da Public Citizen (organização liberal progressista de advocacia de direitos do consumidor, fundada em Washington), “no governo Trump, lobistas da indústria automobilística definem a política de transporte, a Boeing tem uma posição elevada no Ministério de Defesa, Wall Street controla as políticas financeiras e as agências regulatórias e advogados de defesa corporativa ocupam os cargos-chave no Ministério de Justiça”. Corporações estão entrando em acordos internacionais, com o objetivo de alcançarem seus interesses de forma mais eficaz. No Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2015, uma nova Global Redesign Initiative (Iniciativa de Reestruturação Global, na tradução), estabeleceu uma agenda para que as corporações multinacionais se envolvessem diretamente na governança mundial. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, apresentados com muito orgulho como uma proposta para reduzir a pobreza, em 2015, adotaram essa abordagem convidando corporações a se sentarem em sua mesa para discutir os impactos das políticas da ONU, pedindo mais globalização. Companhias de combustíveis fósseis têm se infiltrado nas conferências anuais das Nações Unidas sobre mudanças climáticas para assegurar-se de que não sejam prejudicados por algumas ações, mesmo com o planeta enfrentando as ameaças da catástrofe climática.

O fato das multinacionais terem assumido a administração mundial fez com que o bem-estar social fosse minado em todas as partes, na busca do lucro. Sem remorso algum, a Nestlé compra de comunidades rurais o domínio das reservas de água subterrânea para vendê-la engarrafada, deixando para essas comunidades a conta da limpeza ambiental e o resultado é que, em alguns países como a Colômbia, os refrigerantes são mais baratos do que a água. Como resultado dos produtos químicos vendidos por companhias globais de agronegócio, como a Cargill e a Monsanto, a ONU estima que a camada superior do solo só possa aguentar mais 60 anos de colheitas. Nestes casos, assim como em muitos outros, tanto os humanos como a terra são mera ração para o insaciável apetite de uma inteligência desumana e amoral, fora de controle.

Há uma saída

A posse da humanidade pelas corporações é tão abrangente que fica difícil visualizar qualquer outro sistema global possível. Porém, existem alternativas. Ao redor do mundo, cooperativas administradas por trabalhadores mostram-se tão eficientes quanto corporações — ou até mais — sem almejar, em primeiro lugar, a riqueza dos acionistas. A Cooperativa Mondragon, na Espanha, tem receitas que superam os 12 bilhões de euros, demonstrando que este tipo de organização pode dar muito certo.

Também há mudanças estruturais que podem ser feitas pelas corporações para realinhar seus sistemas de valores ao bem-estar humano. Contratos corporativos podem ser reformados e otimizados, para terem uma linha de fundo tripla, com resultados sociais, ambientais e financeiros — os chamados “três P”, de people (gente), planet (planeta) e profit (lucro). Uma certificação “benéfica” ou B-Corp, que mantém companhias dentro dos padrões de performance social e ambiental, está sendo cada vez mais adotada e, hoje, já é tida entre mais de 2 mil corporações em torno de 50 países.

Por fim, se queremos impedir que essa força tome o completo controle da humanidade, essas abordagens alternativas precisam ser sistematizadas para nossa governança nacional e internacional. Imagine um mundo em que contratos corporativos só pudessem ser reconhecidos se adotasse um “fundo de linha triplo” e onde processos judiciais ameaçassem os acionistas cada vez que uma companhia quebrasse uma de suas regras sociais ou ambientais. Até que isso aconteça, pode ser que o “pior acontecimento na história de nossa civilização” não seja o futuro desenvolvimento da Inteligência Artificial moderna, e sim a decisão de um grupo de políticos do século XVII, que desatou o poder da Corporação sobre uma humanidade desavisada.

Anotações sobre os sucessos e os fracassos do Plano Real

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A Economia Brasileira viveu períodos nebulosos marcados por altos índices inflacionários e desequilíbrio nos preços, gerando graves problemas econômicos, sociais e políticos, contribuindo fortemente para uma degradação nas condições sociais e um incremento considerável na desigualdade e na exclusão social, levando o Brasil a se tornar uma das economias com indicadores sociais mais degradantes da sociedade internacional.

O processo inflacionário sempre esteve atrelado aos altos gastos empreendidos pelo Estado Nacional, gastos estes que geraram fortes desequilíbrios fiscais e financeiros, inicialmente o Estado se notabilizou como o grande promotor do processo de industrialização que, no início dos anos 80, transformou a indústria nacional na mais sofisticada dentre todos os países em desenvolvimento, deixando-nos a poucos passos de um setor industrial mais complexo e dotado de tecnologias mais desenvolvidas.

Todo o processo de desenvolvimento industrial brasileiro foi construído pelo Estado Nacional, nesta empreitada os sucessivos governos foram imprescindíveis no planejamento e na orquestração de todas as variáveis centrais para uma consolidação da indústria, desde a capacitação da mão-de-obra, passando pelo financiamento monetário, os variados subsídios e incentivos governamentais, até a atração de profissionais estrangeiros dotados de bagagem teórica e conhecimentos para a transformação do setor produtivo, transformando nossa economia de bases agroexportadoras em uma economia industrializada, dinâmica e em constante evolução.

A intervenção estatal foi imprescindível para esta construção industrial, como o país não tinha recursos privados suficientes e como as taxas de retorno eram demoradas e, muitas vezes, incertas, os investimentos do Estado foram feitos via emissão monetária, levando a um excesso de moeda em circulação na sociedade e, posteriormente, a um descontrole monetário gerador de inflação e instabilidade nos preços relativos.

A inflação era uma das características do descontrole econômico, fiscal e financeiro do país, que colocava os investidores internacionais sempre em dúvida sobre as incertezas e as instabilidades do país, muitas vezes afugentando novos investimentos produtivos e gerando preocupações na sociedade internacional quanto a solvência do Estado Nacional e sua capacidade de honrar seus compromissos financeiros.

Nesta trajetória de combate a inflação, muitos planos econômicos surgiram, uns mais consistentes tecnicamente enquanto outros se mostraram bastante frágeis e seus resultados foram reduzidos, criando um desafio que mobilizou muitos economistas nas mais diferentes áreas do pensamento econômico, desde liberais e neoliberais até os keynesianos e os estruturalistas, cada um com suas fórmulas, teorias e intensa arrogância.

Os anos 1980 representaram um momento de intensas tentativas e variados planos de estabilização monetária, desde o Plano Cruzado, passando pelo Plano Bresser e pelo Plano Verão, culminando no Plano Collor, todos inconsistentes e com resultados decepcionantes e limitados, transformando o combate a inflação como um desafio nacional.

Depois de décadas de desequilíbrios monetários e de muitos planos econômicos fracassados, em julho de 1994, entrou em funcionamento o Plano Real que, embora tenha apresentado alguns equívocos macroeconômicos, foi fundamental para que a economia brasileira vencesse este grave desajuste nos preços e nesta instabilidade monetária, responsável por um incremento na concentração de renda da sociedade brasileira.

No ambiente externo, é importante destacar, que o Plano Real foi implantado em um momento de grandes crises econômicas na sociedade internacional, entre 1994 e 1998 foram vários os países que passaram por desequilíbrios macroeconômicos e crises externas, desde México, passando pela Rússia, pela Coréia do Sul e pela Argentina, um momento de grandes incertezas e instabilidades.

O Plano Real pode ser descrito como um grande avanço quando comparamos aos seus antecessores, seu “nascimento” foi planejado pela equipe econômica que teve todos os seus passos descritos e informados para a sociedade, uma forma diferente da dos planos anteriores que foram introduzidos sem nenhuma informação prévia, gerando ganhadores e perdedores que, muitas vezes, se mobilizavam para fraudar e denegrir a tentativa de estabilização.

A inflação sempre beneficiou os grupos mais bem organizados da sociedade, aqueles que são capazes de construir instrumentos de defesa e evitando a desvalorização de seus recursos e a defesa de seus rendimentos monetários. Os maiores ganhadores com a inflação são os governos, que emitem moeda e ganham com o poder de senhoriagem e os bancos, que faturam alto com os recursos parados nas contas correntes de seus correntistas, estes recursos são investidos pelas instituições financeiras e seus rendimentos são apropriados em forma de ganhos adicionais, engordando os lucros bancários.

Como os governos são os grandes ganhadores com a inflação, muitos acreditavam que, dificilmente, estes mesmos governos adotariam medidas para acabar com os desequilíbrios monetários. Estas medidas somente foram adotadas, quando estes governos foram pressionados pelos investidores e governos internacionais, que viam esta instabilidade como um limitador de seus investimentos e passaram a exigir políticas de estabilização mais consistentes e um monitoramento das instituições financeiras globais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD).

O programa começou a ser implementado no governo Itamar Franco e foi construído por uma equipe econômica de respeito, formada por economistas do calibre de Edmar Bacha, Pérsio Arida, Gustavo Franco e André Lara Resende, todos supervisionados pelo Ministro da Fazendo Fernando Henrique Cardoso, responsável pela ligação entre as questões técnicas e as questões políticas relacionadas a presidência da República.

Outro ponto importante que vale a pena destacar, é com relação as questões políticas da época, naquele momento existia uma oposição forte que usava todos os expedientes para boicotar o plano e inviabilizar a melhora do ambiente macroeconômico, temendo que neste cenário suas chances de ganhar eleições presidenciais seriam reduzidas imensamente. O grande partido de oposição, no período, era o Partido dos Trabalhadores (PT), cujo potencial de oposição era elogiado, mas sua capacidade de proposição era sempre limitada e concentrada em interesses corporativos e eleitoreiros, este grupo político ganhou as eleições em 2002 e governou até o impeachment da presidente Dilma Rousseff e teve como principais resultados grandes políticas sociais e graves desequilíbrios fiscais e financeiros que levaram o país a flertar com a insolvência.

Antes da entrada em funcionamento da nova moeda, o Real, a equipe econômica costurou a criação de um indexador único para a economia, entra em vigor a Unidade Real de Valor (URV) que, mais do que antecipar seu nome, fez a transição com a moeda anterior, o cruzeiro real. A URV foi considerada pelos teóricos como um prodígio da engenharia econômica que, lançado a três meses antes, permitiu que, aos poucos, a sociedade abandonasse a moeda desvalorizada e migrasse para um indexador estável.

O Plano Real apresentou resultados auspiciosos, reduziu a inflação rapidamente a padrões aceitáveis internacionalmente, atraiu uma grande quantidade de recursos financeiros, viabilizando investimentos produtivos e iniciando uma nova fase para a sociedade, deixando para trás um modelo centrado no Estado desenvolvimentista e iniciando a construção de um novo paradigma, marcado pela redução do papel do Estado na economia, pela abertura econômica, pelas privatizações e por um incremento da concorrência entre os atores econômicos.

Destacamos ainda, algumas medidas que foram descritas, na época, como fundamentais para o plano de estabilização, dentre elas destacamos: quebra de alguns monopólios da Petrobrás, criação de agências reguladoras (ANP, Anatel, ANS, Anvisa, etc,), extinção ou privatização de bancos públicos, vistos como sorvedouro de recursos para os governos estaduais, ajuste no sistema bancário privado que perdeu fontes de recursos com a queda da inflação, renegociações de dívidas e programas de ajustamentos das finanças estaduais dos quais resultaria, alguns anos a frente, a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Neste período foram alienadas muitas empresas vistas anteriormente como grandes ícones da economia brasileira, nesta batalha o governo federal angariou grande inimizade e foi muito criticado por grupos corporativistas, eram verdadeiras joias da coroa, onde destacamos a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, dos bancos estaduais e da Telebrás, dentre outras.

Depois de vinte e cinco anos de Plano Real, muitas foram as conquistas oriundas da estabilização monetária, poucas pessoas duvidariam de que o fim da hiperinflação, que transferia renda para quem dela podia se proteger, teve um impacto social positivo para a sociedade brasileira, seus ganhos iniciais foram imensos e propiciaram uma melhoria na renda de uma parcela considerável da população, que anteriormente viam seus recursos serem dragados pelo chamado imposto inflacionário.

Embora saibamos que neste período a economia brasileira passou por grandes e fundamentais transformações, se analisarmos estrategicamente todas estas mudanças, vamos perceber que, na lógica econômica o país passou por uma verdadeira revolução, muitas foram as alterações econômicas, mas neste ínterim, as mudanças políticas foram muito reduzidas, em muitos casos impercebíveis e pouco significativa para as grandes mudanças econômicas.

Dentre os maiores equívocos do Plano Real, devemos destacar a política de valorização da moeda, o câmbio valorizado aumentou a entrada de produtos importados e aumentou a competição interna, obrigando os agentes econômicos locais a adotar uma postura diferente. Neste período, muitas empresas nacionais foram transferidas a empresários estrangeiros, aumentando a desnacionalização, enquanto outras empresas quebraram em decorrência deste ambiente competitivo e da reestruturação econômica.

O câmbio valorizado estava diretamente atrelado a altas taxas de juros que atraíram grandes somas de recursos para o setor externo da economia, gerando uma verdadeira avalanche de dólares que, como resultado imediato, valorizava em excesso a política cambial, gerando estragos nas contas externas que obrigaram o governo a assinar inúmeros acordos com instituições financeiras globais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Em decorrência destas políticas, a indústria nacional sofreu um processo de desindustrialização, com graves consequências no cenário externo, com queda nas exportações e internamente, com um incremento no desemprego e uma piora do emprego regular, em decorrência de uma fragilização maior dos setores exportadores, fortemente afetados pelo câmbio.

A estabilidade monetária trouxe inúmeros benefícios para a população, gerando um aumento de renda e uma melhora no consumo, este incremento se voltou fortemente para a compra de produtos importados, diante disso, as importações cresciam de forma acelerada e consistentes, gerando uma tendência forte de déficits nas contas externas e obrigando o governo a se endividar no mercado internacional de crédito, elevando os desembolsos futuros.

Outro ponto fundamental para que entendamos o Plano Real, foi o crescimento da dívida pública, os indicadores mostram que a queda da inflação e o fim do imposto inflacionário, exigia dos governos uma reestruturação fiscal e uma melhoria nas contas públicas, sem elas, os governos precisavam angariar recursos no mercado de crédito, com incremento nas dívidas públicas.

As demandas são sempre imensas em uma sociedade como a brasileira, o Plano Real foi um grande avanço para a economia, garantindo ganhos generalizados no inicio e alguns desequilíbrios na implantação, o câmbio e os juros altos foram, com toda certeza, dois efeitos colaterais bastante negativos para a economia do país, que contribuíram para uma desindustrialização da economia e uma piora nas contas externas.

Depois de vinte e cinco anos, as condições econômicas atuais são desafiadoras, mas melhores do que nos anos 90, muitas das medidas que deveriam ter sido implementadas não foram e a tão sonhada modernização da economia brasileira não aconteceu, na atualidade muitas destas medidas estão sendo discutidas e, algumas delas, devem ser aprovadas e implementadas, gerando novos ambientes de investimentos e crescimento econômico.

Depois de vinte e cinco anos, o Real se transformou na mais longeva moeda em circulação na sociedade brasileira, superando o cruzeiro, seus ganhos são enormes, a estabilidade monetária deve ser vista como um passo fundamental, mas seus desafios na construção de um país mais justo e desenvolvido não são menores e devem ser encarados imediatamente.