Reforma da Previdência: o futuro está em jogo

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Guilherme Boulos

O Brasil precisa saber o que está em questão com a reforma da Previdência apresentada pelo governo Bolsonaro. É verdade que o aumento da expectativa de vida traz um debate sobre o financiamento do sistema previdenciário. É verdade que precisamos enfrentar privilégios para assegurar direitos. Mas a proposta do governo não resolve nenhuma dessas questões e ainda cria novos problemas. O marketing de uma “Nova Previdência”, que garanta as aposentadorias no futuro, não para em pé.

O grande objetivo da reforma é fazer uma transição radical de modelo: desmontar a Previdência pública, com suas três fontes de financiamento –trabalhador, empregador e Estado– e colocar em seu lugar o regime de capitalização, financiado unicamente pelos próprios trabalhadores e gerido por bancos privados.

Ao contrário do regime de solidariedade entre gerações, consagrado na Constituição de 88, na capitalização impera o cada um por si.

Quem pode faz poupança individual nos bancos e garante uma aposentadoria com dignidade. Quem não pode estará condenado a condições indignas de aposentadoria ou a trabalhar até morrer.

O argumento de que as pessoas vão poder optar pelo INSS ou a capitalização é uma falácia. Por duas razões. Primeiro, num país com 37 milhões de trabalhadores informais é absurdo supor que a maioria conseguirá comprovar 20 anos de contribuição; 40 anos, então, nem se fale. Já com as regras atuais, apenas 29% se aposentam por tempo de contribuição. As mulheres e trabalhadores rurais serão ainda mais afetados com o endurecimento das regras.

A segunda razão é que o direito de escolha do trabalhador não existe numa economia com alto desemprego. Se quiser optar pelo INSS, a empresa terá de entrar com sua cota de contribuição. Na Previdência privada, ela estará desobrigada. Alguém acredita que uma empresa contratará quem opte pelo regime público?

O objetivo é impor a capitalização como modelo. A questão é que nele não cabem todos. O Chile é um exemplo. Após a implantação da capitalização na ditadura de Pinochet, o país produziu um surto de miséria entre idosos. Hoje, 80% dos aposentados recebem menos de 1 salário mínimo, por não conseguir garantir poupança individual.

A parte mais covarde é a “alternativa” oferecida aos que não consigam entrar no jogo da capitalização: benefícios sociais abaixo do salário mínimo. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) garante hoje 1 salário para idosos pobres, a partir dos 65 anos. Atende 5 milhões de pessoas, representando em média 80% de sua renda. É a garantia de comida na mesa para muita gente. A proposta é permitir esse ganho apenas a partir dos 70 anos e, aos 60, garantir um valor pífio de R$ 400.

Os efeitos contra os mais pobres são devastadores. E também afetam a economia do país. As aposentadorias e benefícios previdenciários representam a maior movimentação econômica para 70% dos municípios brasileiros. Como disse reservadamente um prefeito da base bolsonarista a um amigo governador: “Se aprovar isso, na minha cidade não se vende mais nem um quilo de carne”.

Em vez de permitir um equilíbrio da Previdência, a reforma deve piorar a situação. E não apenas pelo efeito depressor na economia, mas também porque –com a Previdência privada– muitos deixarão de contribuir para o INSS. O resultado será uma descapitalização da Previdência pública, podendo, aí sim, criar um rombo insustentável, especialmente na transição. O objetivo de Paulo Guedes não é equilibrar a Previdência, mas entregá-la aos bancos.

Não é verdade que a única saída para o Brasil é fazer uma reforma que ataca direitos. É preciso ter coragem para enfrentar privilégios do poder econômico. Só a renúncia fiscal do INSS, com desonerações e isenções, representa cerca de R$ 57 bilhões ao ano. A taxação de fortunas, grandes heranças e lucros e dividendos –que defendemos nas eleições do ano passado– poderia representar arrecadação de R$ 120 bilhões ao ano para Previdência e políticas sociais. E por que não implementar um Imposto Especial sobre o Lucro dos Bancos, como fez a Hungria em 2010 para sair da crise?

O que está em jogo é que futuro queremos: uma sociedade baseada no princípio da solidariedade, que acolha seus idosos, ou então no “cada um por si”, que leve a maioria deles a uma aposentadoria indigna. A hora de definir é agora. Ainda dá tempo. Vamos hoje às ruas de todo o país em defesa de nossos direitos.

Guilherme Boulos

Ex-candidato à Presidência da República pelo PSOL (2018) e militante da Frente Povo Sem Medo

 

Privatização, abertura econômica e desburocratização: a agenda neoliberal

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Muito se discute do programa econômico do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro para a economia brasileira, liderado pelo Ministro da Economia, o economista Paulo Guedes, neste programa as ideias neoliberais ganham força e se espalham pelos arredores de Brasília, marcadas por uma crítica feroz ao Estado brasileiro e sua atuação marcada pela ineficiência, pelo desperdício e muitas vezes pela corrupção, os neoliberais propõem uma abertura econômica acelerada, uma desregulamentação financeira e uma redução do número de empresas estatais, além de uma considerável redução da burocracia e da estrutura tributária.

Analisando o fortalecimento do pensamento neoliberal, percebemos muitas medidas importantes e necessárias que precisam ser tomadas com urgência, visando uma melhoria na estrutura econômica, destravando os investimentos e abrindo espaço para que o ambiente de negócios, termo caro aos adoradores do mercado, se consolide e a economia volte a crescer de forma acelerada, fato este que deixou de acontecer desde os anos 1970, num momento marcado por forte autoritarismo e repressão.

Os economistas neoliberais pregam a urgência das reformas previdenciária, tributária e fiscal, acreditamos que todas estas reformas sejam muito importantes e fundamentais para o crescimento e para o desenvolvimento do país, porém devemos destacar quais os objetivos destas reformas, se são apenas para melhorar as condições fiscais ou se para promover uma melhora considerável na distribuição da renda e na equidade social, estas questões envolvem discussões políticas e devem ser feitas de forma mais ampla e democrática, o que acreditamos que não acontecerá.

Uma das políticas mais efetivas nos discursos dos teóricos neoliberais é com a necessidade urgente de uma desburocratização da economia brasileira, somos uma sociedade que traz nas veias os arroubos burocráticos, nossa experiência fez surgir uma burocracia que tem vida, pessoas sobrevivem e se reproduzem através desta burocracia, toda e qualquer proposta de eliminação gera movimentos organizados em todos os entes federativos, levando os governos a desistirem deste embate, com isso, nossa burocracia se perpetua no tempo e inviabiliza a modernização e a maior eficiência do Estado.

As privatizações são aventadas como forma de melhorar a eficiência do sistema econômico, retirando o Estado de setores produtivos e abrindo espaço para os investimentos privados, vistos pelos neoliberais como mais eficientes e capacitados para melhorar as condições da competitividade e da produtividade do sistema, garantindo uma maior condição para concorrer em um ambiente fortemente marcado pela competição.

Temos mais de 440 empresas estatais passíveis de serem privatizadas, nesta conta inserimos as estatais dos três níveis de governo (União, estados e municípios), destas, 134 são de propriedade do governo federal, dentre elas encontramos grandes empresas que muito interessam aos grandes empresários nacionais e estrangeiros, muitas delas são de difícil privatização, mas outras poderiam, facilmente, ser repassadas a iniciativa privada, gerando recursos para uma agenda de maior competitividade da economia, melhorando sua governança e consolidando seus indicadores econômicos e produtivos.

Segundo os neoliberais, a transferência de empresas estatais para a iniciativa privada traria ao governo, recursos financeiros para uma melhora nas finanças públicas e uma significativa diminuição do número de funcionários públicos, reduzindo, com isso, os espaços de atuação dos grupos políticos que veem nestas empresas um amplo local de indicações de apadrinhados e colaboradores, nem sempre qualificados para o cargo, abrindo espaço para a corrupção e para a ineficiência do Estado brasileiro, como está sendo constatado pelas investigações em torno da Operação Lava Jato, que desbaratou muitas práticas nocivas para a coletividade, prendeu políticos, empresários e conseguiu ressarcir os cofres públicos em alguns bilhões de reais.

Privatizar empresas estatais não é tarefa fácil no Brasil, no governo Fernando Henrique Cardoso muitas foram tentadas sem sucesso, os grupos de pressão, os sindicatos e o corporativismo sempre conseguiram seu intento, com isso, mantêm seus inúmeros privilégios que dominam a estrutura administrativa, perpetuando um ambiente de burocracia e de ineficiência, gerando lentidão, déficits constantes e novos encargos econômicos para o governo, ou melhor, para a sociedade.

Outro ponto central nesta discussão, é que a população tem uma relação paradoxal com o Estado, de um lado querem sua presença ativa no cenário econômico e produtivo, demandam sua constante interlocução, buscam suas fileiras e almejam postos no funcionalismo público e, ao mesmo tempo, rechaçam uma atuação política mais efetiva e denigrem constantemente seus representantes que foram por eles eleitos, detendo assim a legitimidade necessária para representá-los diretamente.

A agenda liberal ou neoliberal, como queiram, é muito charmosa e atrai muitos adeptos, seu discurso encanta os meios de comunicação e o grande empresariado e ganha força na coletividade, de um lado temos a desesperança crescente com a atuação estatal, que consome mais de 34,5% da renda gerada na sociedade e devolve serviços de péssima qualidade, além da ineficiência e da corrupção generalizadas que destroem a classe política; de outro cria um discurso de automatismo das relações sociais, atribuindo ao mercado um papel sobrenatural nesta sociedade, responsável pela alocação e pela eficiência, deixando de lado os conflitos que muitas vezes são por ele criado ou por ele estimulado.

Menos empresas estatais e mais mercado, mais competição e melhoras na qualidade com queda no preço dos produtos é algo muito bem aceito por toda a coletividade, o grande problema desta equação é que, quando analisamos o Estado brasileiro e seu comportamento histórico de subserviência aos grandes capitalistas, ficamos nos indagando: como regular e fiscalizar este mercado sendo que este domina e controla muitos aparatos do Estado?

O Estado brasileiro sempre esteve nas mãos dos grandes conglomerados, sejam eles agricultores, industriais ou banqueiros, cujo poder econômico e financeiro impunham ao governo inúmeras limitações em termos de política econômica, muitas vezes levando-o a adotar políticas que beneficiavam mais aos donos do poder, que moldam a “democracia” de acordo com seus interesses imediatos e, nem sempre, estes interesses são os mesmos da coletividade e dos grupos mais vulneráveis e dependentes do Estado e das políticas públicas.

Na sociedade internacional percebemos uma disseminação destas indagações, com o crescimento acelerado dos grandes conglomerados econômicos, as empresas estão influenciando, cada vez mais, as decisões políticas, comprando leis e isenções fiscais e financeiras, reduzindo a capacidade de atuação dos governos e impondo sua agenda econômica e seus interesses imediatos, diminuindo os benefícios dos trabalhadores, liberalizando a conta capital, desregulamentando e aumentando seus benefícios tributários, a premissa destas ideias é que, neste ambiente de desregulamentação e desburocratização, os investimentos produtivos serão maiores e os benefícios se disseminarão para toda a coletividade, inclusive para os trabalhadores e para os grupos mais vulneráveis.

Nestes momentos de hegemonia do pensamento neoliberal em terras brasileiras, cabe aos partidos políticos de esquerda e aos sindicatos apresentarem alternativas críveis e efetivas, o discurso de críticas ásperas e ofensas, ou em palavras ou expressões para denegrir não devem ser aceitas e nem estimuladas, temos mais de 13 milhões de pessoas desempregadas e mais de 27 milhões na informalidade, totalizando quase 20% da população economicamente ativa, um contingente elevado que poderia estar empregado, contribuindo e construindo uma sociedade mais justa e eficiente, diante disso, cabe aos chamados defensores do povo e da classe trabalhadora uma postura mais efetiva e propositiva.

Destacamos ainda, outra proposta interessante dos economistas neoliberais, a abertura econômica, somos um país que tradicionalmente apresenta, em comércio internacional, uma economia fechada, participamos com menos de 1% do comércio global, número bastante distante de nossa posição econômica, onde nos posicionamos em oitava lugar, a abertura deve ser feita e estimulada pelo governo mas, faz-se necessário, que construamos as bases para esta abertura, sob pena de prejudicarmos ainda mais uma economia depauperada nestes anos recentes de recessão e baixo crescimento.

A concorrência é salutar e deve ser estimulada, mas como competir com um sistema educacional falido, com uma carga tributária elevada, com serviços públicos de baixa qualidade e com uma infraestrutura degradada, todas estas questões devem ser revistas, consertadas e aprimoradas, sem estas medidas mais abertura econômica vai destruir o pouco de empresas e de indústrias que temos e aumentar os gargalos sociais e a violência contemporânea.

Todos os países que conseguiram melhorar sua performance econômica atuaram na abertura de suas economias, ganhando escala e competitividade, construíram estratégias para minimizar seus custos e adotaram uma política protecionista para priorizar seus produtores, esta proteção na atualidade deve ser feita de forma sutil e racional, evitando embates com instituições e organismos multilaterais, se feitas de forma atabalhoada podem correr o risco de serem inviabilizadas e revertidas pelos tribunais superiores de comércio, como a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Analisando a história recente do Brasil, percebemos que nossa economia foi fortemente protegida pelo Estado, esta proteção exigiu pouquíssimas contrapartidas e geraram uma grande acomodação por parte dos empresários que, com mercados garantidos, produziam produtos caros, ineficientes e com preços elevados, deixando para os consumidores preços estratosféricos de mercadorias e serviços, reduzindo sua renda agregada e criando empresários ricos e empresas pobres e com pouca eficiência, incapazes de competir no mercado internacional.

Devido a esta proteção, nossas empresas não estão, na sua grande maioria, em condições de concorrer no mercado internacional, participamos e somos ativos em poucas cadeias globais de produção, uma abertura pode aumentar nossa desindustrialização, gerando um incremento no desemprego e uma piora nas condições internas, seus defensores acreditam que o país não tem outras alternativas no curto prazo, sendo necessário pressionar nossa estrutura produtivo para que aumentemos nossa competitividade, sob pena de, ao demorarmos na proteção, destruir ou inviabilizar a sobrevivência da indústria no médio e no longo prazo, perdemos as poucas chances de concorrer com empresas estrangeiras.

São muitas as questões que estão em jogo na economia brasileira, sua inserção sempre foi um dos maiores problemas e desafios da sociedade, se continuarmos fechados ao mundo seremos condenados a produtos caros, ineficientes e de qualidade questionável; ao nos abrir para a concorrência temos que ter em mente que a concorrência global tende a nos causar graves constrangimentos internos, cabe a sociedade construir uma estratégia para minimizar estes custos negativos e potencializar nossas potencialidades, transformando nossas habilidades em vantagens competitivas e aproveitando as brechas do mercado, inovando e empreendendo em busca de novas oportunidades de negócio e de desenvolvimento econômico.

A concessão de parcerias e de apoios da iniciativa privada são vistas com ceticismo por muitos grupos organizados, dividir os investimentos e os riscos fazem parte dos novos modelos de gestão, depois de liderar a industrialização do país, cabe ao Estado um papel mais discreto e efetivo, reduzindo sua exposição direta e atuando na regulação e na construção de estratégias, além de fiscalizar e punir todos os excessos, sempre atuando diretamente, preservando as instituições e construindo um clima de credibilidade, mesmo numa sociedade marcada pela incerteza, pela instabilidade e pela ineficiência.

A parceria Estado e Mercado é fundamental para a construção de uma nova estrutura social e econômica, cada um prescinde do outro, Estado sem Mercado leva a políticas socialistas e estatizantes que levaram, historicamente, ao autoritarismo, ao arbítrio e a opressão, enquanto Mercado sem Estado leva ao incremento da pobreza e da exclusão, criando uma grande quantidade de excluídos e de miseráveis, destas experiências, faz-se necessário compreender que, cada um dos agentes econômicos necessita do outro para sua sobrevivência, dosar as políticas e integrar os interesses é o melhor dos caminhos para conduzir o país para um desenvolvimento econômico, inclusivo e generalizado.

Em todos os países desenvolvidos, o desenvolvimento econômico foi construído com uma intensa parceria entre o Estado e a iniciativa privada, esta parceria sempre existiu, embora muitos não a queira reconhecer, atualmente a Alemanha criou um fundo financeiro para proteger suas empresas das tentativas de compra por parte de empresas chinesas ou asiáticas, o governo dos Estados Unidos vetou a venda de uma grande empresa de tecnologia para seus concorrentes asiáticos, além de comprar grandes empresas com a crise de 2008 para evitar a bancarrota de conglomerados importantes, estas políticas sempre existiram e, na atualidade, estão voltando com mais força e intensidade, embora muitos tentem esconder estes fatos, o neoliberalismo é uma doutrina da burguesia, nasce para defender e estimular os interesses dos donos do capital e, num segundo momento, para empregar e garantir a sobrevivência dos trabalhadores.

O grande trunfo do neoliberalismo foi criar, no imaginário coletivo, a ideia de que suas teses trariam o desenvolvimento e a melhoria social para todos os grupos sociais, esta propaganda foi difundida para todas as regiões do mundo, embora tenham conseguido melhorar a eficiência da economia e incrementar a produtividade, o grande risco destas ideias é que, ao extremo, podem levar muitos grupos a uma situação de degradação e de marginalidade, contribuindo para uma piora dos indicadores sociais, da miséria e da violência urbana.

A sociedade brasileira vive momentos de crise e de desesperança generalizadas, ao governo cabe um papel de construção de novas perspectivas e novos horizontes, melhorando o ambiente macroeconômico para que os investimentos sejam retomados, a articulação entre Estado e Mercado é um dos maiores desafios da economia, onde cada um contribui para o dinamismo econômico com suas potencialidades e expertise, sem esta atuação conjunta, mais uma vez, o país tende a andar contra o gradiente internacional, pois na economia internacional, neste momento de turbulências crescentes, os governos estão atuando diretamente com as empresas, buscando uma sinergia fundamental para navegar em mares revoltos e turbulentos.

O mundo mudou muito e está obrigando os países, empresas e indivíduos a se adaptarem a esta nova organização social, o Brasil mostrou grande flexibilidade desde os anos 80, todos os indicadores econômicos e sociais mostram claramente este progresso, melhoramos economicamente mas ainda não avançamos na lógica política, onde ainda cultivamos hábitos nocivos e degradantes, precisamos passar por novos avanços, melhorando as questões sociais e evoluindo em um novo consenso social, marcados pela inclusão, tolerância e respeito generalizados.

A perestroika brasileira é absolutamente descabida: entrevista especial com Leda Paulani.

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Patrícia Fachin – 12 de março de 2019.

É “difícil” fazer uma avaliação da política econômica conduzida pelo ministro Paulo Guedes, “porque de fato nada de concreto ainda foi feito na área, a não ser o envio da proposta de reforma da previdência ao Congresso”, diz a economista Leda Paulani à IHU On-Line, ao comentar a atuação da equipe econômica nos dois primeiros meses do novo governo. Já no nível do discurso, pontua, “não há nada além daquilo que já era previsto, ou seja, a condução da economia a partir de uma filosofia ultraliberal, que é a marca do economista Paulo Guedes”. Na avaliação de Leda, a declaração do ministro da Economia de que é preciso fazer uma perestroika brasileira, fazendo alusão a uma maior abertura econômica, “traz implícita a ideia de que o país está enredado nas entranhas de uma economia estatizada, com elevado grau de dirigismo”. Mas essa visão, frisa, “é absolutamente descabida quando se olha para a realidade e, principalmente, quando se tem em conta os parâmetros que vêm presidindo a condução da política econômica brasileira desde pelo menos o início dos anos 1990”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a economista também comenta os três pilares do projeto econômico do novo governo, que são a reforma da previdência, a privatização acelerada e a simplificação, redução ou unificação dos impostos. Segundo ela, “a reforma da previdência e as privatizações são expedientes típicos das receitas de bolo do pensamento convencional neoliberal, pautado pelas máximas dos mercados e pelos imperativos da acumulação, sobretudo da acumulação financeira”. De outro lado, defende, a reforma tributária deveria reduzir os impostos indiretos e elevar os impostos sobre patrimônio, mas por enquanto o governo fala “apenas de simplificar e reduzir ou eliminar impostos.

Assim, na melhor das hipóteses, trata-se apenas de mais uma rodada da série ‘melhorar o ambiente de negócios’ e, na pior delas, de uma tentativa de reduzir a carga tributária, constrangendo ainda mais a capacidade do Estado de agir como poder equilibrador no enfrentamento das desigualdades”. Em resumo, assevera, “nenhuma dessas três medidas tem impactos imediatos e/ou garantidos” sobre o equilíbrio das contas públicas, porque “os efeitos de reformas no sistema previdenciário se dão quase sempre no médio ou longo prazo”.

Na avaliação da economista, a primeira proposta da equipe econômica enviada ao Congresso, a reforma da previdência, não visa reformar o regime previdenciário de repartição em operação no país, mas, sim, destruí-lo. Ela explica que, com a reforma e a introdução do regime de capitalização, a tendência é que os trabalhadores que ganham salários mais elevados e “ajudam a sustentar os benefícios daqueles que contribuem menos e que auferem benefícios muito reduzidos”, possivelmente “ficarão tentados a sair, migrando para outros regimes ou simplesmente para uma poupança pessoal própria, visando sua manutenção na velhice”. Segundo ela, “é evidente que isso não aconteceria se o propósito da reforma fosse de fato preservar a sustentabilidade do regime de repartição, tornando compulsórias a permanência e as alíquotas mais elevadas, mas, como se percebe, não parece ser este o caso”. E acrescenta: “A depender das condições em que será implantado o celebrado regime de capitalização, muitos trabalhadores tenderão a abandonar de vez o regime geral hoje predominante”.

Leda Paulani é graduada em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA-USP e em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes – ECA-USP. É doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo – IPE/USP. É livre-docente junto ao Departamento de Economia da FEA-USP e professora do Departamento de Economia e da Pós-graduação da FEA/USP. De 2004 a 2008 foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política – SEP. De janeiro de 2001 a abril de 2003 foi assessora chefe do gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, e de janeiro de 2013 a março de 2015 foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação geral faz da atuação da nova equipe econômica nestes dois primeiros meses do novo governo?

Leda Paulani – Difícil fazer uma avaliação, porque de fato nada de concreto ainda foi feito na área, a não ser o envio da proposta de reforma da previdência ao Congresso. De resto, no nível do discurso, não há nada além daquilo que já era previsto, ou seja, a condução da economia a partir de uma filosofia ultraliberal, que é a marca do economista Paulo Guedes. Exemplos claros disso podem ser encontrados em entrevista dada pelo ministro em meados de fevereiro ao jornal Financial Times. Dentre outras afirmações, tão fortes quanto controversas ([graças ao trabalho dos Chicago boys “o Chile é hoje uma Suíça“]), ele indica que é preciso fazer (e ele fará) no Brasil a perestroika, ou seja, a abertura da economia com concessão de total liberdade ao mercado. A afirmação, que traz implícita a ideia de que o país está enredado nas entranhas de uma economia estatizada, com elevado grau de dirigismo, é absolutamente descabida quando se olha para a realidade e, principalmente, quando se tem em conta os parâmetros que vêm presidindo a condução da política econômica brasileira desde pelo menos o início dos anos 1990. Mas ela evidencia com clareza os princípios que devem orientar a atuação da área econômica no governo de Bolsonaro.

IHU On-Line – Quais serão, na sua avaliação, as principais diferenças da política econômica do novo governo em comparação com a condução da política econômica nos governos Dilma, Lula e FHC?

Leda Paulani – A agenda neoliberal entrou no país pelas mãos de Fernando Collor. Foi seu discurso de “caça aos marajás” que seduziu a classe média brasileira e os endinheirados de sempre. Junto com o mote, vinham as propostas de privatização, de abertura comercial e financeira da economia e de redução do Estado. Já se percebia aí a semente daquilo que, mais tarde, tomaria enormes proporções, a saber, a mistura descarada de princípios universalmente aceitos, como a redução de privilégios, a responsabilidade com os recursos públicos e o combate à corrupção, com as proposições típicas do modelo liberal: para reduzir os privilégios e acabar com a corrupção, é preciso reduzir o tamanho e a influência do Estado; para tornar efetiva a responsabilidade com o dinheiro público, é necessário adotar políticas de austeridade e cortar gastos. O raciocínio simplório tinha poder de convencimento e foi ganhando corações e mentes, alcançando até mesmo aqueles que são os mais prejudicados quando tais assertivas saem do papel e se tornam realidade. O sucesso do neoliberalismo, sua principal vitória (mas não só aqui, no mundo), foi essa: na batalha das ideias, as máximas do mercado saíram vitoriosas.

A reflexão pode parecer um desvio um tanto prolongado da resposta à pergunta propriamente dita, mas, para além da importância em si do tema, ela ajuda a mostrar quão despropositada é a fala do ministro de Bolsonaroao Financial Times. A perestroika com que sonha Guedes começou no início dos anos 1990 e só não foi naquela ocasião mais efetiva porque o país ainda patinava no solo escorregadio do binômio inflação/dívida externa. Mesmo assim, várias e importantes providências foram então tomadas para colocar o país no “novo rumo”. Por exemplo, tão cedo quanto em 1992, no governo de Collor, se promoveu, na surdina, o início da abertura financeira: num movimento absolutamente questionável do ponto de vista jurídico, uma mera carta circular do Banco Central desbancou uma lei federal para permitir a qualquer cidadão a livre disposição de recursos em divisas. Começava aí a transformação do país em plataforma internacional de valorização financeira, movimento que seria consolidado no governo de FHC.

Governo FHC e a potência financeira emergente

Em seus dois mandatos, com o país já estabilizado monetariamente, FHC tratou exclusivamente das medidas necessárias para viabilizar e colocar em prática os ingredientes da fórmula liberal, e para transformar o país em “potência financeira emergente”: melhora do “ambiente de negócios”, concessão de garantias aos credores, oferta de benesses aos investidores financeiros (em particular aos não residentes), privatizações, liberalização dos fluxos internacionais de capital, controle estrito das contas públicas, além de política monetária draconiana e juros estratosféricos.

Governos petistas: do “milagrinho” econômico à política de “austericídio”

A ascensão de Lula e do PT ao poder federal não mudou esse entorno benfazejo à riqueza financeira e à posição do Brasil como dependente de poupança externa e pagador de renda aos capitais internacionais. Ao contrário, logo de início, sob a batuta de Palocci e dos economistas ortodoxos de que se cercou, sua política macroeconômica foi a continuação e, em alguns casos, o aprofundamento da agenda de FHC. Foi só com o lançamento do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, no último ano do primeiro mandato de Lula (2006), que esse ideário foi relativamente desobedecido. Esse polpudo pacote de investimentos públicos destinado a garantir a continuidade do crescimento que o bom momento da economia internacional estava possibilitando foi um pequeno ato de rebeldia, pois não combina em nada com um receituário que visa diminuir a dimensão e a importância do Estado. Na leitura da ortodoxia, investimentos públicos sempre “roubam” o espaço (nós dizemos o espaço de acumulação) que deveria ser do mercado.

Além disso, os governos do PT fizeram um bom uso do assim chamado “bônus macroeconômico”. As benesses da alta internacional no volume negociado e nos preços em dólar das commodities que o país exporta, permitiram, sem mexer com os ganhos dos de cima, a adoção de um pacote de políticas e programas sociais de alto impacto, além da elevação acelerada do valor real do salário mínimo. Combinaram-se os efeitos multiplicadores da demanda externa aquecida com aqueles oriundos da redução na desigualdade distributiva e crescimento do emprego, e, na sequência, com o impulso do investimento público, para promover o melhor momento da economia brasileira desde o milagre econômico dos tempos dos militares. A diferença entre esse “milagrinho” como já vem sendo chamado, e aquele de 35 anos antes, é que ele desbancou a máxima de então: não foi preciso esperar o bolo crescer para depois dividir.

O advento da crise vai desmanchar essa conciliação até então possível e, à sua maneira, virtuosa, entre política econômica liberal e programas sociais de alto impacto. Mas suas consequências para nós não apareceram de imediato, tornando-se mais concretas apenas no início da gestão Dilma. O primeiro mandato da presidenta também se caracterizou, de alguma forma, como ato de rebeldia aos imperativos da valorização financeira e do rentismo, pois buscou, como forma de driblar a crise, redução substantiva dos juros e enfrentamento dos obscenos spreads bancários. Mas cometeu, por outro lado, o erro, que depois se revelaria fatal, de apostar no incremento do investimento privado com uma política de desoneração da folha que ganhou, depois de passar pelo Congresso, dimensões descomunais. Para conciliar tudo orçamentariamente, brecou os investimentos públicos, que detêm elevado poder multiplicador, e os investimentos privados, que deveriam assumir o protagonismo, não apareceram. O fracasso da política e a piora das contas públicas abriram o espaço político para o impeachment da presidenta, que, em seu segundo mandato, na esperança de contar com o beneplácito dos mercados, trouxera para o comando econômico ninguém menos que Joaquim Levy, que afundou de vez a economia com sua política de austeridade”.

A agenda econômica de Bolsonaro e a construção da Ponte (para o abismo) iniciada por Temer

Para falar das possíveis diferenças entre a política do atual governo e a sequência que viemos de reportar desde Collor, é preciso lembrar que, entre Dilma 2 e Bolsonaro, houve o governo de ocupação de Temer. O que o presidente ilegítimo tentou fazer foi colocar em prática tudo que estava previsto no programa Ponte para o Futuro, uma “alternativa” de política econômica elaborada pelo PMDB e que, segundo consta, teria sido apresentada à presidenta e por ela recusada. A essência desse documento é o resgate pleno da agenda liberal, sem os arroubos sociais dos governos do PT, agenda, é preciso sublinhar, que estava na mira do governo de FHC e que certamente teria sido implantada, se o PSDB tivesse continuado no poder. Ela envolvia não só a continuidade dos processos de privatização, chegando até à Petrobras, como também uma série de alterações na Constituição Federal – CF de 1988, que, segundo já se dizia à época, era inviável do ponto de vista das contas públicas. Não foi por acaso, nem apenas por querelas político-partidárias, que o PSDB insuflou e apoiou o golpe e depois fez parte do governo Temer.

Essa agenda completamente liberal precisava ser retomada, com a providência adicional de desmontar a política externa ativa e altiva que os governos do PT haviam construído. Lia-se ali, por exemplo, que seria necessário promover “uma verdadeira abertura comercial”, buscando acordos de todos os tipos “com ou sem o Mercosul”. O governo Temer agiu rápido e, a não ser pela incapacidade de mexer no sistema previdenciário, teve pleno sucesso. Desmontou a CLT, com a reforma trabalhista e a lei de terceirizações, e aprovou a PEC 95, do teto dos gastos, que congela por 20 anos o valor real dos gastos públicos, destruindo substantivamente a capacidade do Estado de fazer políticas públicas. Sob a batuta de Guedes, a agenda econômica de Bolsonaro será a continuidade da construção da Ponte (para o abismo) iniciada por Temer, fazendo, de forma mais despudorada, o que ainda não foi feito, a saber, reforma da previdência, retomada das privatizações, enterro final da CF de 1988Guedes é mais celerado que Meirelles (ou Guardia), mas a diferença é de grau, não de conteúdo.

IHU On-Line – Em seu discurso de posse, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os três pilares do projeto econômico do novo governo serão: 1) reforma da previdência; 2) privatizações aceleradas; 3) simplificação, redução, eliminação e unificação de impostos. Quais são os pontos positivos e negativos desse tripé? Em que medida ele pode garantir o crescimento econômico, a geração de emprego e o equilíbrio das contas públicas?

Leda Paulani – A reforma da previdência reforma da previdência e as privatizações são expedientes típicos das receitas de bolo do pensamento convencional neoliberal, pautado pelas máximas dos mercados e pelos imperativos da acumulação, sobretudo da acumulação financeira. A última perna do tripé poderia estar relacionada à questão tributária e a uma reforma que de fato precisa ser feita, no sentido de elevar o peso dos impostos diretos, sobretudo dos impostos sobre o patrimônio, e reduzir o peso dos indiretos, tornando o sistema menos regressivo. Mas não é esse o tom que sobressai da menção à questão tributária. Ao contrário, fala-se aí apenas de simplificar e reduzir ou eliminar impostos. Assim, na melhor das hipóteses, trata-se apenas de mais uma rodada da série “melhorar o ambiente de negócios” e, na pior delas, de uma tentativa de reduzir a carga tributária, constrangendo ainda mais a capacidade do Estado de agir como poder equilibrador no enfrentamento das desigualdades. Em qualquer dos casos, trata-se de farinha do mesmo saco. Não vejo, portanto, pontos positivos aí. No mais, não acredito que tais medidas possam favorecer a retomada do crescimento e do emprego. A aprovação da reforma da previdência certamente vai causar uma euforia nos mercados financeiros, com elevação dos indicadores de bolsa e valorização do real. Mas esses são impactos que ocorrem no âmbito dos estoques de riqueza, cujo valor se altera por força de movimentos especulativos.

Retomada do crescimento

No que tange aos fluxos de produção e de renda, ou seja, no que concerne à retomada substantiva do crescimento (no último biênio a economia cresceu 2,1%, depois de ter caído 7% no biênio anterior), conviria a retomada dos investimentos privados, que continuam letárgicos, ou um novo impulso nos investimentos públicos, alternativa rifada pela aprovação da PEC dos gastos. Assim, o crescimento continuará a ser pífio, a menos de uma enorme virada favorável no plano internacional, que não parece estar no horizonte (além das especulações em torno da existência de bolhas de ativos, em particular na economia chinesa, os indicadores de perspectiva de comércio da Organização Mundial do Comércio – OMC estão em seu nível mais baixo desde 2010; ademais, um possível acordo entre EUA e China pode roubar do Brasil um mercado de US$ 25 bilhões em soja).

Quanto às contas públicas, nenhuma dessas três medidas tem impactos imediatos e/ou garantidos sobre seu equilíbrio. Os efeitos de reformas no sistema previdenciário se dão quase sempre no médio ou longo prazo. No caso da proposta apresentada, seu impacto pode inclusive ser negativo no curto prazo, a depender de como será regulamentado o regime de capitalização. Combinada com a tal carteira verde-amarela, ela pode aprofundar sobremaneira o desequilíbrio financeiro do sistema.

IHU On-Line – Entre as preocupações da nova equipe econômica, destaca-se a de garantir o equilíbrio das contas públicas. Essa é uma agenda fundamental para o Brasil neste momento? Sim ou não e por quê?

Leda Paulani – É evidente que desfrutar de uma posição confortável nas contas públicas é sempre uma situação desejável. Contudo é também evidente o caráter cíclico da economia capitalista. O Estado tem de poder agir contraciclicamente, impulsionar a economia com investimentos públicos e mitigar as consequências sociais nos períodos de recessão e alto desemprego, e poupar e cortar gastos quando a economia vai bem. Insistir na perpetuidade de resultados primários positivos é negar ao Estado esse papel e fazer o jogo daqueles que buscam tão somente a garantia do valor real e da remuneração de seus estoques de riqueza, em particular da riqueza financeira. Pior ainda, é não perceber que políticas de austeridade, em momentos de retração, complicam de vez o cenário porque, por mais que se cortem gastos, o efeito multiplicador agindo ao contrário faz a receita cair ainda mais, piorando de vez os resultados primários (basta conferir os indicadores do Brasil desde 2015). No afã de preservar as condições de remuneração da riqueza financeira assentada em títulos públicos, cortam-se gastos públicos para melhorar o resultado primário, mas o resultado final é uma piora geral. Em outras palavras, uma boa forma de fazer a relação dívida/PIB crescer é adotar uma política de austeridade em tempos de estagnação.

IHU On-Line – Nos dois primeiros meses de governo, a equipe econômica concentrou-se em apresentar uma proposta de reforma da previdência que propõe mudar o sistema da previdência para um sistema de capitalização. Quais são as vantagens e os riscos dessa proposta?

Leda Paulani – A proposta da assim dita “reforma” da previdência necessita, em primeiro lugar, ser renomeada. Não se trata em absoluto de proposta de reforma do regime previdenciário atualmente em operação no Brasil (o regime de repartição), senão de sua destruição. Estudo do Dieese mostra que, mesmo antes de entrar em funcionamento a reforma trabalhista aprovada no governo Temer, cerca de 40% da força de trabalho já não conseguia comprovar 20 anos de contribuição (atualmente, o exigido são 15 anos para a aposentadoria por idade, com benefício parcial).

Estes, que são a enorme maioria (hoje, apenas 1/3 das aposentadorias são por tempo de serviço), já estarão fora do sistema, porque, se pensarem um minuto que seja, preferirão trabalhar sem contribuir, a contribuir sem ter condição de receber um mínimo que seja, quando terminar sua idade laborativa. A vingar a alíquota progressiva, em princípio algo salutar, aqueles que ganham salários mais elevados (e que atualmente, como o sistema é baseado na solidariedade — geracional, mas também social — ajudam a sustentar os benefícios daqueles que contribuem menos e que auferem benefícios muito reduzidos) também ficarão tentados a sair, migrando para outros regimes ou simplesmente para uma poupança pessoal própria, visando sua manutenção na velhice.

É evidente que isso não aconteceria se o propósito da reforma fosse de fato preservar a sustentabilidade do regime de repartição, tornando compulsórias a permanência e as alíquotas mais elevadas, mas, como se percebe, não parece ser este o caso. A depender das condições em que será implantado o celebrado regime de capitalização (isso não está em absoluto claro na proposta), muitos trabalhadores tenderão a abandonar de vez o regime geral hoje predominante. Por fim, mas não menos importante, a referida carteira de trabalho verde-amarela, que acabará por se transformar em imposição na maior parte dos casos (ou alguém acha que as empresas não implementarão “acordos” com os trabalhadores que, de “livre e espontânea vontade”, abrirão mão de seus direitos para não perderem suas fontes de subsistência?) completa o quadro das condições que destruirão o regime geral.

Quanto ao regime de capitalização, como já adiantei, não há informações suficientes na proposta apresentada para saber como ele funcionará no Brasil. De qualquer forma, os princípios desse regime são opostos aos do regime de repartição: trata-se de contas individuais, não há nenhuma solidariedade no sistema, a vinculação entre contribuições e benefícios é rígida (o que não significa, nota bene, garantia de rendimentos determinados no futuro, pois os benefícios são indefinidos — dependem da rentabilidade auferida pelos recursos ao longo do tempo e da expectativa de vida). Ademais, nesse regime, o trabalhador conta apenas consigo mesmo. Desaparecem as contribuições da empresa e do Estado, que constituem o tripé onde se assenta o regime de repartição. Num país como o Brasil, pejado de desigualdades sociais, com cerca de 50% de seu mercado de trabalho precário e informal, um regime como esse só pode apontar para um futuro ainda mais sombrio. A maior parte dos trabalhadores não conseguirá poupar o suficiente e não terá o que retirar no futuro. Será jogado para o assistencialismo. É o que vem acontecendo no Chile, um dos primeiros países a implantar o regime de capitalização, urdido e imposto à população na ditadura sanguinária de Pinochet. Mas na Suíça original, até onde se sabe, não há a taxa recorde de suicídio entre idosos como na Suíça latino-americana, que Paulo Guedes quer copiar.

IHU On-Line – O que seria um modelo econômico alternativo hoje para o Brasil? O que a esquerda propõe como outra via ao modelo econômico em curso?

Leda Paulani – O modelo hoje seguido é o do Ultraliberalismo, com total liberdade para o mercado, obrigações cada vez menores para as empresas e Estado Mínimo, cuja única atribuição é fornecer as garantias jurídicas necessárias ao funcionamento do sistema. O próprio trabalhador vem sendo instado a se ver cada vez mais como empresário de si mesmo”. Num processo conhecido como “pejotização” da força de trabalho, muitos trabalhadores assalariados abrem mão de seus direitos e se transformam em microempresários (o que vem a calhar para as empresas, que, de uma só tacada, economizam os recursos antes destinados ao pagamento das contribuições e demais encargos incidentes sobre a folha, e simultaneamente despem-se das figuras de exploradoras do trabalho). O mundo do (mal) dito “cada um por si e o Estado por ninguém” (senão pela classe de sempre) será um desastre para um país caracterizado pela fratura social que nos marca desde sempre. O pouco que se conseguiu em termos de redução da desigualdade e da miséria nos últimos anos, mas que já vai se perdendo com a continuidade da crise e das “temerárias” políticas ultraliberais, não ocorreu pelo virtuosismo do mercado ou por obra e graça do divino Espírito Santo. Foi resultado de política deliberada, adotada pelo Estado brasileiro.

Modelo alternativo

Um modelo alternativo passa pelo Estado, mas não só. Ele teria que ser uma espécie de “ultraliberalismo reverso”, um modelo em que a ânima capitalista fosse de alguma forma domada e em que aquilo que é vital ao ser humano, saúde, educação, trabalho, cultura, fosse retirado completamente do domínio do mercado e transferido ao domínio da política. Seria uma espécie de desfetichização de bens essenciais, preservados da sanha mercantil por uma espécie de cordão sanitário social. Colocar sob a égide da política não significa dizer que seriam necessariamente atividades estatizadas, senão que estariam sob os auspícios do conjunto da sociedade e de suas entidades representativas, funcionando em espaços de atuação coletivos, numa configuração institucional em que os processos de democracia direta teriam importância crescente. Se o Estado vem a ter aí importância decisiva, o modelo fica parecido com o Estado de Bem-Estar Social que se criou no pós-guerra na Europa e que ainda existe de alguma forma por lá, em particular nos países nórdicos. Mas o Welfare State foi desenhado dentro de uma moldura keynesiana, que ainda tem no crescimento puro e simples do produto e na preservação do nível de emprego seus principais ingredientes. Isso está hoje em xeque, no primeiro caso pelos problemas ambientais e pela exaustão dos recursos naturais e, no segundo, pela revolução tecnológica de quarta geração, que mundo afora vai insaciavelmente sugando empregos. Não por acaso propostas como o Green New Deal e a Renda Básica de Cidadania ganham interesse crescente. Elas, seguramente, também teriam lugar num modelo alternativo, de política econômica progressista.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Leda Paulani – Gostaria, para finalizar, de fazer duas observações. A primeira é que, implantado o modelo ultraliberal, o Estado ficará completamente amarrado, incapaz de fazer o que quer que seja para minorar o quadro de anomia social, que já existe, mas que se agravará sobremaneira. E esta será a situação, pouco importa quem vier a vencer as eleições a cada quatro anos.

A irrelevância da política, cuja semente o mestre Chico de Oliveira detectou há quase duas décadas, se tornará então plena. O sentido último do ultraliberalismo é, no fundo, este, acabar com a política, que supõe participação, mudança, dinâmica social, luta pela radicalização da democracia e por conquistas sociais crescentes e plenamente inclusivas. A vitória completa do ultraliberalismo implica a fetichização absoluta e absurda da esfera política, a naturalização da periódica troca de bastão pelo voto para comandar uma sociedade em que o poderio crescente do capital e da forma mercadoria é que estará colocado como verdadeiro sujeito.

Em países como o Brasil, o crescimento, nesse contexto, da importância de organizações que atuam em torno do ilícito será apenas o corolário da abolição da política. Muitos dirão de imediato que tal realidade já existe, que o mundo já está assim desde o levante liberal dos anos 1980, que as esquerdas não fazem senão adotar o mesmo programa econômico que criticavam quando na oposição, que o Brasil já é esse cenário distópico. É verdade, mas a situação pode piorar, e muito, solapando por completo os poucos espaços que ainda existem de luta política e social. Por isso é preciso resistir da forma que for possível a essa avalanche devastadora.

Por fim, não é demais lembrar que a agenda liberal, que, como já dito, remonta ao início dos anos 1990, rendeu a nosso país uma posição absolutamente subalterna na divisão internacional do trabalho. Em meio ao clamor mundial cada vez maior pela preservação do meio ambiente, viramos uma economia extrativista, produtora de bens primários, que valoriza como ninguém a riqueza financeira e paga renda régia ao capital internacional. Estamos presos numa sorte de nova dependência, que passa pela movimentação de capitais, mais do que pelas relações de troca, e compromete o sobrevalor futuro a ser extraído de nossa força de trabalho em condições cada vez mais duras.

Em outras palavras, hoje, o que gera a permanente transferência de valor excedente para os países do centro do sistema, não é principalmente o fato de produzirmos bens primários e eles bens de maior conteúdo tecnológico. Há até momentos em que essa situação pode se inverter, como aconteceu nos anos 2000. O fator mais importante é o crescimento desmesurado dos capitais internacionais em operação em nossa economia, com destaque para os investimentos financeiros. Eles precisam ser remunerados e nós decidimos que o seriam regiamente (o Brasil resolveu ser uma potência financeira emergente). Assim, parte significativa da mais-valia aqui extraída transforma-se em renda que os remunera. O movimento é de círculo vicioso porque a entrada em profusão desses capitais impõe pagamentos cada vez maiores, afetando negativamente a conta corrente de nosso balanço de pagamentos e exigindo que eles continuem a entrar no país.

Em poucas palavras, dependemos desses capitais para que continuemos dependentes. A elevada taxa real de juros prevalecente há quase três décadas, elemento central dessa “estratégia”, dificultou o crescimento da economia, desindustrializou o país e impediu a necessária acoplagem tecnológica de seu parque produtivo. É essa a “voz dos mercados”, que ouvimos repetida ad nauseam na imprensa especializada e nos telejornais de cada dia. Os governos do PT não atentaram para a necessidade de alterar esta situação, única possibilidade de assentar em pilares mais firmes as conquistas sociais que seus programas e políticas promoveram. Enquanto isso, no relógio da História, os ponteiros indicam o tempo da indústria 4.0. Não poderíamos estar mais atrasados.

 

 

Estupidez e burrice

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Há relação direta entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru.

Veja o mal que a estupidez e a burrice são capazes de causar.

Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre Aids para um grupo de travestis presas na Casa de Detenção —o Carandiru.

No meio da explicação entrou o diretor do presídio, Ismael Pedrosa, que me convidou para um café na sala dele. Foi o que fiz ao redor do meio-dia, quando a aula terminou.

Na conversa, ele tirou do armário uma teresa, corda improvisada com tiras de cobertor enroladas em fios de arame, descoberta na cela de um ladrão de banco que pretendia galgar a muralha, em busca da liberdade.

Quando dei por conta, conversávamos havia mais de uma hora. Levantei para me despedir:

— Já é tarde, estou atrasado e empatando o senhor, aqui.

— Que nada, respondeu ele. É sexta-feira, dia de faxina nas celas para receber as visitas no fim de semana. É o dia mais tranquilo: ninguém mata, ninguém morre.

No fim da tarde, só acreditei que a rebelião de que falavam era mesmo na Casa de Detenção, quando liguei a televisão e reconheci o Pavilhão Nove no meio da fumaça.

Foram mortos 111 detentos, o maior massacre já ocorrido numa prisão brasileira.

Não havia justificativa para aquele morticínio. Quando começou a confusão, os rebelados se apressaram em expulsar os funcionários de plantão, decisão temerária tomada por presos inexperientes, como eram os do Nove, pavilhão que alojava os mais jovens, encarcerados pela primeira vez.

Homens com muitos anos de cadeia estão cansados de saber que manter reféns numa hora dessas é providência primordial para impedir a entrada das forças de repressão que colocarão em risco a integridade física dos rebelados.

Sem reféns no interior do pavilhão convulsionado, o doutor Pedrosa propôs às autoridades reunidas na sala da diretoria, enfrentar a situação da forma convencional, tantas vezes empregada pelos funcionários: cortar luz, água, comida e voltar na manhã seguinte para negociar.

Homem destemido, acostumado a andar sozinho pela cadeia inteira, foi para o portão que dava acesso ao pátio do Nove, na tentativa de evitar o pior. Mas, assim que o portão foi aberto, ficou espremido na parede, quase esmagado pelo tropel dos policiais que invadiu com os cachorros e as metralhadoras. Deu no que deu.

A culpa caiu nas costas do coronel que comandou a operação. Quem conhece um mínimo da hierarquia militar, no entanto, sabe que um coronel jamais daria uma ordem como “dominar a rebelião a qualquer preço” na véspera de um dia de eleições, sem consultar seus superiores. O nome desses criminosos ele levou para o túmulo.

Ao contrário da repercussão negativa na imprensa brasileira e internacional, muita gente apoiou o massacre. Houve até quem lamentasse a timidez da repressão. O próprio coronel se elegeu deputado estadual duas vezes, com dezenas de milhares de votos, exibindo o número 111 na propaganda eleitoral.

Quais foram as consequências dessa estupidez coletiva?

O nascimento do Primeiro Comando da Capital, organização que comanda com mão de ferro o crime organizado na maior parte do país.

Qual a relação entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru?

Basta ler o que está escrito no estatuto da fundação do partido, que teria vindo para “combater a repressão dentro do sistema prisional paulista” e “vingar a morte dos 111 no massacre do Carandirú”.

Não conheci um carcereiro sequer que tenha trabalhado numa cadeia sem facções de criminosos. O trabalho era evitar que alguma delas fosse capaz de eliminar as demais, para assumir o comando. O massacre subverteu a disciplina nos presídios e afrouxou perigosamente o controle do Estado.

Hoje o PCC está presente nos 27 estados da Federação, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Argentina, Peru e tenta dominar as rotas de tráfico de cocaína dos países andinos para a Europa e a África.

Não tivessem os governantes dado a ordem para a PM invadir o Pavilhão Nove naquele 2 de outubro, é provável que não existissem quadrilhas com milhares de membros, como as atuais. Os inconsequentes que aplaudiram o massacre agora cobram medidas enérgicas para acabar com a violência urbana.

Lamento dizer-lhes que o crime organizado foi longe demais. Não está mais ao alcance das mordidas dos cachorros nem dos disparos das metralhadoras. O combate agora exige inteligência, preparo técnico e intelectual, qualidades raras nos governantes de hoje.

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

 

Historiador rebate mitos sobre o golpe de 1964

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À esquerda e à direita, Daniel Aarão Reis revê fantasmas que cercam a ditadura

Daniel Aarão Reis

Folha de São Paulo – Ilustríssima – 31 de março de 2019. 

A orientação do presidente Jair Bolsonaro para que unidades militares comemorem neste domingo o golpe de 31 de março de 1964, que iniciou a ditadura no país, suscitou polêmicas que merecem análise mais equilibrada, evitando-se “histórias oficiais” à direita e à esquerda.

Vamos por partes. Em fins de março de 1964 instaurou-se no país uma ditadura através de um golpe de Estado. Trata-se de um fato objetivo. Um presidente legítimo, João Goulart, foi deposto pelas armas, ao que se seguiu um regime de exceção, em que o direito da força prima sobre a força do direito. Em outras palavras: em que a vontade do poder se sobrepõe, ou nega, à existência das leis, (re) criando legislações a seu bel-prazer.

Entretanto, a ditadura não se tornou vitoriosa apenas pela ação militar. Foi um golpe civil-militar. Houve apoio social, que se exprimiu nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade no país, na força das tradições conservadoras e autoritárias.

Naquele momento encontramos as raízes que explicam, ao menos em parte, a ascensão atual da extrema direita no país. Além disso, dirigentes civis, políticos, empresários e religiosos participaram do golpe, além instituições, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e as principais mídias.

A simpatia suscitada pelo golpe era consequência do medo de uma ditadura comunista. A chamada Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, estava no auge. Na América Latina, a Revolução Cubana acontecera. No Brasil, um amplo movimento reformista propunha mudanças estruturais, visando a “democratização da democracia”.

Aparentemente, havia ali um equilíbrio de forças, contribuindo para o acirramento das contradições.

Assim, a vitória fulminante do golpe de 1964 foi uma surpresa, mesmo para os golpistas mais otimistas.
Como compreender a derrota das esquerdas? Seria resultado de vacilações de suas lideranças mais importantes, que temeriam enfrentamentos imprevisíveis? De organizações populares muito dependentes do Estado e de suas iniciativas? De dúvidas de militantes acerca de engajar-se ou não numa luta decisiva para defender aquela República? Um pouco de tudo isto? O fato é que, até hoje, a derrota das esquerdas carece de melhor compreensão.

Muitos que apoiaram a instauração da ditadura a desejavam de curta duração. Ela eliminaria as forças de esquerda e as eleições do ano seguinte se realizariam. Aí houve uma surpresa. Os chefes militares apropriaram-se do poder por longo tempo, afirmando a preeminência indisputada das corporações (Exército, Marinha e Aeronáutica). Daí ser exato conceituar o regime como uma ditadura militar.

O primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco, apostou numa orientação liberal. A ideia era enterrar as heranças varguistas e a cultura política nacional-estatista. A aposta foi perdida. A propósito deste governo, brotou a formulação de que teria sido uma ditadura branda, uma “ditabranda”.

Como então classificar, entre outras arbitrariedades, as prisões e cassações de direitos políticos e civis, as torturas acobertadas, a dissolução dos partidos políticos, o fechamento do Congresso e a alteração arbitrária da legislação eleitoral? Recusar evidências não é rever a história, mas negá-la. É negacionismo, a eliminação da história.

Os governos ditatoriais seguintes, principalmente no período Médici-Geisel (1969-1979), retomaram o parâmetro nacional-estatista, mas excluindo o povo. Isso não os impediu de conservar e ampliar apoios civis.

Daí ter surgido a ideia de uma ditadura civil-militar, para aprofundar a reflexão sobre as complexas relações entre a ditadura e a sociedade, e evidenciar as cumplicidades de segmentos civis, inclusive de camadas populares. Muito já se fez para desvendar essas cumplicidades, muito ainda há que se fazer para compreender como se comportaram os cidadãos comuns sob a ditadura. Mais pistas poderão daí advir para entender o “mito Bolsonaro”.

A ditadura, porém, sempre suscitou oposições, moderadas e radicais. No grupo dos moderados estavam muitos apoiadores iniciais do golpe, depois decepcionados com os militares, e os que nunca aceitaram a ditadura, mas também não acreditavam em enfrentamentos violentos. Entre os radicais encontravam-se as correntes revolucionárias, armadas, que tentaram derrotar os militares, destruir o capitalismo e construir uma sociedade alternativa. Almejavam uma ditadura revolucionária que asseguraria a transição nos moldes do socialismo autoritário plasmado pela Revolução Russa e confirmado pelo exemplo cubano.

A ditadura massacrou os radicais —com o uso e o abuso da tortura como política de Estado— e neutralizou os moderados, alguns dos quais também presos e torturados. Mais tarde, muitos destes últimos contribuiriam no processo de transição rumo à restauração democrática.

Entre os críticos da ditadura houve um triplo equívoco. Imaginaram-na destinada à estagnação econômica, à subserviência aos EUA e à pura e simples repressão violenta, exercida por boçais. Não foi o que aconteceu. O capitalismo mudou de patamar, embora à custa de desigualdades sociais e regionais. Recuperou-se o nacional-estatismo como programa. E a própria repressão, sempre impiedosa, combinou-se com políticas de conciliação e de acomodação. Anos de chumbo, certamente. Mas também de ouro, e para não poucos.

A transição começou no início do governo Geisel, em 1974, e foi até a aprovação da Constituição de 1988. Foi transicional, estendendo-se no tempo, e transacional, baseada na negociação. A primeira fase terminou com a extinção dos atos institucionais, em 1979. Estendeu-se, a partir daí, outra etapa, em que já não havia ditadura, mas ainda não surgira um Estado democrático de Direito. A tese, ainda dominante, de que a ditadura terminou com a posse de José Sarney, em 1985, tende a privilegiar a preeminência militar e ocultar a participação civil no processo ditatorial.

É certo que o último general presidente, João Figueiredo, tomou posse ainda nos marcos da ditadura, mas governou sem o apoio dos atos institucionais. Sua gestão se conciliava com os aparelhos repressivos e com atentados terroristas de extrema direita, mas os tribunais agiam com autonomia. Não havia presos políticos. A imprensa não era mais censurada. Os partidos políticos e os sindicatos funcionavam em liberdade.

Nas eleições de 1982, elegeram-se candidatos das oposições, e os resultados não foram questionados. Houve ainda greves parciais e gerais, além do gigantesco movimento pelas eleições diretas para a Presidência da República em 1983 e 1984. Tudo isso aconteceu às claras, nas ruas, sem repressão sangrenta. Como falar, então, em ditadura? Trata-se de uma impropriedade.

Em outubro de 1988, a nova Constituição encerrou a transição, mas não agradou a todos. Conservando a cultura nacional-estatista, irritou os liberais. Desagradou também as esquerdas, ao não priorizar a reforma agrária e reivindicações históricas, como a estabilidade no emprego e a semana de trabalho de 40 horas.

Por outro lado, junto a inovações concernentes aos direitos civis, políticos e sociais, nela permaneceram as marcas da transição longa e negociada, os legados da ditadura. Entre outros, a hegemonia do Poder Executivo e da União, o modelo econômico, o monopólio dos meios de comunicação e da terra, a hegemonia do capital financeiro e a tutela —mal disfarçada— das Forças Armadas. Uma Constituição híbrida. Chamá-la de “cidadã”, como quis Ulysses Guimarães, foi uma licença poética.

De 1988 a 2018, 30 anos se passaram. O que se fez em relação à memória da ditadura? Infelizmente, muito pouco. Como em relação à ditadura do Estado Novo (1937-1945), prevaleceu a ideia de que “olhar pelo retrovisor” revolveria “feridas abertas”. É verdade que pesquisas foram empreendidas nas universidades e que a mídia divulgou controvérsias.

Nada capaz, todavia, de fazer a sociedade ver que a ditadura não era um passado que passara, mas algo que permanecia, através de seus legados. Não se convocaram as Forças Armadas para um debate sobre suas funções numa sociedade democrática. Ao contrário, só foram chamadas para assegurar a ordem pública, cumprindo papel de polícia, o que só fez aumentar seu prestígio. É certo que uma Comissão Nacional da Verdade funcionou, mas suas resoluções cedo caíram no esquecimento.

Enquanto isso políticos e partidos, de esquerda e de direita, compraziam-se em dizer, por motivos variados, que a democracia no país estava consolidada. Seus erros geraram consequências, com o ressurgimento, à luz do dia, das tradições conservadoras e autoritárias que permaneciam subterrâneas, mas vivas.

Compreendê-las e superá-las, através do debate e das lutas políticas, é um desafio e tanto. Esconder evidências históricas ou distorcê-las não será um bom caminho para a sempre necessária “democratização da democracia” brasileira.

Gostaria agora de explicitar de que ponto de vista falo, pois ninguém pensa sem premissas ou princípios. Depois de uma longa trajetória, identifiquei-me com o socialismo democrático, ainda por nascer, a ser alcançado pela persuasão, pela participação e pelo voto, distante do capitalismo, sempre desigual e injusto, e também do socialismo autoritário. Essas referências não devem incidir sobre o que é essencial no ofício do historiador —a busca da evidência e da verdade.

Atento a isto, Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964, advertiu que a “história era muito séria para ser deixada nas mãos de historiadores”. Exprimiu a ambição do Estado de controlar a historiografia e fazê-la serva das “histórias oficiais”.

Aos historiadores cabe resistir, afirmando, para além de interpretações que podem e devem variar, os compromissos éticos com as evidências e as verdades —por mais fugazes e provisórias que essas sejam, apenas entrevistas como ruínas sob os relâmpagos das tempestades, na bela metáfora de Walter Benjamin.

Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense, é autor de “A Revolução que Mudou o Mundo” e “Ditadura e Democracia no Brasil”.

 

Religiões Líquidas na sociedade contemporânea

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A sociedade contemporânea vive um momento de grandes transformações em suas estruturas, as bases que estruturavam o mundo estão em crise, exigindo dos indivíduos grandes alterações em suas formas de vida, seus comportamentos e em suas atitudes cotidianas, o incremento tecnológico, o aumento da concorrência e o crescimento constante do poder do dinheiro, estão gerando hábitos, necessidades e costumes novos, levando os indivíduos e a coletividade a um ambiente de incertezas crescentes, medos e inseguranças.

Todas as bases desta sociedade estão ruindo de forma acelerada, as famílias entraram em crise, os governos perderam força e estão endividados, os indivíduos amedrontados e ansiosos, os relacionamentos perderam força, os sentimentos estão assustados, o trabalho em constante transformação, os mercados alucinados e  marcados por uma instabilidade crescente, a educação se sente incapaz de dar respostas mais sólidas e a democracia se encontra envergonhada, estamos numa sociedade marcada por muitos medos e preocupações, onde as respostas e os paradigmas antigos não conseguem mais responder efetivamente aos anseios e as inseguranças dos cidadãos, nesta situação, até mesmo a religião, que sempre trouxe mensagens de otimismo e perseverança, se encontram em fases de inseguranças e alterações estruturais.

Quando olhamos para as questões religiosas, inúmeras indagações nos vem a mente, passamos de religiões detentoras de toda razão, marcadas pelo conhecimento e pela explicação de tudo o que acontecia na sociedade, para um mundo onde as religiões apresentam graves conflitos internos, marcados pela desagregação, pelo medo e pelo desequilíbrio, onde os religiosos brigam e se expõem em público, deixando a mostra uma religião apodrecida e dilacerada pelas divisões internas e pela busca constante de poder material e dinheiro.

Neste ambiente de dissensões e crises constantes, percebemos novas demandas sociais, com isso, as religiões precisam passar por alterações estruturais, nesta sociedade em transformação, as pessoas exigem mais respostas de suas religiões, as crenças antigas e os medos construídos não mais conseguem “prender” os fiéis, que passam a ler, estudar e a ter acesso a informações, neste ambiente estamos visualizando as grandes transformações das religiões, sendo obrigadas a descer de seu pedestal e falar diretamente com seus fiéis, sob pena de perder um grande contingente de apoiadores, seguidores e financiadores.

Ao analisarmos a tradicional Igreja Católica, uma instituição milenar marcada por grandes serviços prestados à sociedade, pois somos uma nação marcada pela colonização portuguesa, um povo fortemente marcado pelo catolicismo, pelas tradições deste grupo detentor de forte influência na Europa e, principalmente, na Península Ibérica, sendo uma das regiões onde o catolicismo perdurou durante muitos anos e séculos, dificultando a ascensão de outros grupos religiosos.

Portugal foi um dos países em que a Igreja Católica apresentava uma estrutura de poder mais consistente, suas tradições dominaram e influenciaram a população portuguesa durante muitos anos e o brasileiro recebeu estas crenças de seu colonizador e a manteve internamente hegemônica durante muitos séculos, sendo contestados neste momento por outro grupo religioso que cresce, ganha poder dentro da sociedade e apresenta claros interesses de hegemonia, de dominação e de poder, gerando preocupações em outros grupos religiosos.

Com uma estrutura milenar, marcada por uma capilaridade nas várias regiões do globo, a Igreja Católica se encontra em momentos de meditação e reestruturação, depois de escândalos recentes que abalaram as estruturas da Igreja, percebemos movimentos intensos e lutas fratricidas por espaços de poder e de dominação, todos agravados pelas transformações e pelas novas demandas da coletividade, impulsionando mudanças, discussões, discórdias e conflitos, muitos deles acumulados a muitos séculos e que estão sendo colocados abertamente.

Nesta estrutura em transformação, encontramos grandes resistências as ideias e as políticas implementada pelo Papa Francisco, de origem Argentina e fortemente atrelado aos grupos mais a esquerda da Igreja, o Papa representa para uns a certeza de que temas mais ligados aos direitos humanos e a justiça social serão encampados pela mundo católico e, de outro, os grupos mais conservadores que se dizem ameaçados pelas mudanças que estão vindo a tona pelo Papa Francisco, visto por muitos como um agente do comunismo.

Nesta luta por poder dentro desta estrutura, percebemos grandes avanços na Igreja desde o início do século XX, a pouco mais de 100 anos as missas eram rezadas em latim e os padres se colocavam de costa para os fiéis, numa demonstração de distanciamento e arrogância, criando uma relação marcada pela frieza, gerando uma distância entre o representante de Deus e a população em geral. Neste momento percebemos a Igreja Católica fazendo gestos para uma outra direção, depois de anos de afastamento, na atualidade percebemos uma busca cada vez maior por aproximação, uma obsessão por estar próximo, pois o distanciamento leva a uma redução dos fiéis e a um enfraquecimento de seu poder dentro da sociedade, desta forma podemos compreender a estratégia adotada pelo papa atual, com visitas a outras denominações religiosas, desde os ortodoxos russos aos grupos muçulmanos, locais visitados recentemente, construindo pontes entre as religiões e dissipando mágoas e conflitos anteriores.

A eleição de Mário Jorge Bergóglio, o Papa Francisco, para suceder o alemão Joseph Ratzinger, que renunciou ao cargo alegando problemas de saúde e idade avançada, nos parece uma demonstração clara de que os cardeais apostavam no carisma do argentino para reduzir as dissensões na Igreja e prepará-la para novas bases da competição religiosa do século XXI, dando novo gás para uma organização milenar, altamente conservadora, que precisa se modernizar, mas apresenta grandes dificuldades de abrir mão de uma estrutura de poder marcada pelo luxo, pela ostentação e pelos rituais, muitos deles vistos como desnecessários e superados.

Nos anos recentes, percebemos a Igreja se deparando com seus fantasmas mais íntimos, os casos de pedofilia e abusos contra crianças e jovens deixaram marcas muito negativas nesta estrutura religiosa, comprometendo muitas de suas ideias e levando a sociedade a exigir punições exemplares de membros de toda a hierarquia da Igreja, desde os menores na pirâmide hierárquica até os mais elevados, como bispos e cardeais.

As religiões precisam dialogar com a sociedade, mostrar claramente as razões de suas desditas, levar aos indivíduos instrumentos de libertação das dores e dos desequilíbrios da realidade, levá-los a compreender que as crises que os envolvem são crises generalizadas e acontecem todos os dias e tendem a acontecer por muitos e muitos anos se as pessoas não buscarem Deus como instrumento de conscientização, se o indivíduo não se voltar para os ensinos superiores, dificilmente vão sobreviver a este turbilhão de desequilíbrios e desajustes generalizados.

De outro lado encontramos o crescimento dos grupos evangélicos, que passam a garimpar fiéis em todas as estruturas da sociedade, desde escolas, passando por presídios e universidades, com uma estratégia de marketing bastante sólida, consistente e eficiente. Este grupo faz um trabalho social bastante interessante e exitoso, com um crescimento acelerado nos últimos anos, com isso, os evangélicos estão mudando o perfil religioso do brasileiro e trazendo novas demandas para os grupos religiosos.

Muitos destes grupos pregam o fortalecimento de ideias e de políticas empreendedoras, reduzindo com isso, as dependências do Estado e a busca por novos projetos e posicionamentos, buscando empreender novos projetos, acreditando na vinculação religiosa e na força da oração e do pensamento positivo como força inspiradora.

Estes movimentos estão crescendo de forma acelerada na sociedade, ganhando espaço na televisão e em todas as mídias modernas e digitais, com esta exposição passam a angariar mandatos eletivos e a contribuir diretamente nas discussões políticas e eleitorais, intensificando uma agenda conservadora nos costumes, liberal na economia e fortemente centrada na família.

Os grupos evangélicos crescem de forma acelerada nesta sociedade, seus encontros e musicais atraem uma ampla quantidade de pessoas, seus cultos vibrantes atraem energias positivas, suas orações sinceras nos levam a emoção e sua atuação social auxilia na melhoria das necessidades individuais, minorando os desajustes e os desequilíbrios e abrindo oportunidades crescentes para muitos que perderam as esperanças e as expectativas de uma vida melhor e até mesmo na existência de um Deus todo poderoso.

Os grupos evangélicos são muito criticados pela doutrinação rigorosa, muitos apresentam pouco capacidade reflexiva e vivem repetindo falas e doutrinas sem conhecer as bases filosóficas de sua vertente religiosa, com isso, muitas vezes servem como uma grande massa de manobra para interesses escusos e inescrupulosos, a reflexão mais crítica deve ser estimulada e os debates mais consistentes devem se tornar frequentes e continuados, melhorando o perfil dos fiéis e dando-lhes um cabedal maior de conhecimento sociocultural.

As novas religiões estão abarcando novas estruturas, os velhos modelos perderam força e clamam por ser substituídos, exigindo das religiões novas formas de atração dos fiéis, vendo-os muitas vezes como clientes, como consumidores de seus produtos imateriais, neste ponto se mostram muito antenados com as novas estratégias dos mercados, mas abrem espaço para críticas ou reflexões sobre um modelo muito centrado nos interesses econômicos e monetários, sendo vistas como uma religião de bases materialistas e alimentadas pelos recursos monetários e financeiros.

Os espíritas precisam sair de seus casulos e se apresentarem mais na sociedade, segundo o IBGE, o movimento Espírita abarca mais de 3,8 milhões de brasileiros, sendo que muitos outros podem ser descritos como simpatizantes desta religião, uma religião bastante reflexiva e marcada pela leitura e pelo conhecimento, onde muitos a confundem com um movimento elitista e arrogante.

Nesta pesquisa realizada em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), descobriu-se que o espiritismo é o secto com maior índice de pessoas com ensino superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização (98,6%), descobriu se ainda, que existem no Brasil mais de 15 mil centros, estando fortemente consolidado nas regiões do país, abrindo espaço para que o movimento divulgue a frase cunhada como a essência do Espiritismo: “Fora da caridade não há salvação”.

Depois da morte de seu líder maior, Francisco Cândido Xavier, ocorrida em 2002, o movimento perdeu força e se viu dominado por grupos que pouco conversam entre si, buscando poder e visibilidade, são forças consistentes e consolidadas, mas se deixam dominar pela vaidade, querem falar sobre tudo, opinar sobre os mais variados temas e brigam constantemente pelo controle do movimento, mesmo sabendo que este poder é transitório e que, muitas vezes, nos leva a quedas violentas e desnecessárias, que nos condenam a anos de experiências trágicas em regiões abissais, marcadas por dores e desesperança.

Outro ponto central na doutrina dos espíritos, encontramos nestas fileiras pessoas que estudam e discutem suas ideias e pensamentos, muitas destas pessoas se deixam levar por um melindre exagerado, deixando suas fileiras e confundindo as pessoas que professam esta vertente religiosa e a Doutrina, nestas situações muitos se afastam e buscar outras composições religiosas.

A sociedade está mudando rapidamente e exigindo mudanças nas crenças e nos valores religiosos, todas as religiões que insistirem em permanecer como eram anteriormente verão uma grande debandada de fiéis, verão muitos deles buscando novas crenças, ainda mais numa sociedade globalizada e altamente competitiva, marcada pelo crescimento acelerado da informação e do conhecimento, onde as pessoas passam a acessar o funcionamento e as explicações de cada religião sobre as indagações e as dúvidas de cada indivíduo, a competição está levando a religião a mudanças, mas faz-se fundamental que entendamos estas transformações, evitando que caiam no canto da sereia do poder econômico e financeiro.

O momento atual á bastante propício para o crescimento das religiões, em momentos turbulentos, como os que vivemos, as religiões precisam construir um discurso sólido, coeso e centrado em interesses imateriais, com isso, todos aqueles indivíduos que anteriormente mergulharam no discurso científico e tecnológico, vendo neste as explicações para todas as dúvidas e dificuldades dos seres humanos, passam a exigir novas respostas a suas indagações e preocupações cotidianas.

Outro ponto central, neste ambiente de competição, as doutrinas religiosas precisam unificar as demandas materiais com as de cunho imaterial, discurso centrado apenas nos ganhos materiais terão dificuldades para esclarecer as dúvidas dos indivíduos, ainda mais nesta sociedade que disponibiliza uma grande quantidade de informações e de conhecimentos.

O tema religião é sempre visto com muitas reticências, falar sobre religião leva muitas pessoas a conflitos que evoluem para confrontos e violência, nesta sociedade faz-se importante conversar e debater sobre as visões diferentes e temas variados, sempre com respeito e tolerância, onde as pessoas não queiram impor suas visões e respeitem o pensamento e os sentimentos alheios, afinal, todos temos direito de pensar da forma como quisermos, todos temos um grau de evolução e todos somos seres em constante crescimento.

Como vimos, todas as religiões apresentam os seus desafios, mas acredito que o maior destes desafios seja o de manter a chama de Deus e seus valores eternos e imutáveis, nos corações dos indivíduos e capacitá-los para compreender, que religião nenhuma salva ninguém, todas apresentam vantagens e desvantagens, mas a única salvação está na melhoria constante que empreendemos intimamente, eliminando o homem velho e cultivando o verdadeiro homem novo.

O mundo contemporâneo fez com que o homem concedesse grande poder ao dinheiro que, para muitos, se transformou no grande deus da sociedade, libertando mentes e corações e prometendo conquistas sem esforços continuados, o poder deste dinheiro cresce aceleradamente e passa a conquistar mentes e corações, gerando uma grande massa de desequilibrados, desajustados e depressivos, onde as dores da alma estão cada vez mais presente no corpo físico de cada indivíduo, criando dores severas, dolorosas e intermináveis.

‘Autoritários aprenderam a controlar sem ser opressores’, diz Jan-Werner Mueller

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Guilherme Evelin – O Estado de S. Paulo 23/03/2019

O cientista político alemão Jan-Werner Mueller tornou-se uma referência no debate sobre a ascensão de líderes políticos populistas em vários países depois de publicar, em 2016, ano da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o livro What Is Populism? (O Que É Populismo?). Ele veio para o Brasil a convite da Embaixada da Alemanha para uma série de conferências e debates. Ele deu entrevista ao Estado na sexta-feira, 15, após palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Nela, discutiu suas ideias a respeito de populismo, democracia, imprensa e redes sociais num momento em que há uma série de desafios às formas tradicionais de democracia representativa no mundo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como distinguir um líder populista em ação? O presidente Jair Bolsonaro pode ser qualificado como um populista? 

Sou relutante em ser uma espécie de teórico com cartão de milhagem, que viaja de um país a outro e diz que isso é assim, aquilo funciona dessa forma, quando, obviamente, as pessoas no Brasil conhecem muito mais as circunstâncias locais. O que eu posso fazer é dar uma moldura e alguns indicadores para que as pessoas possam decidir por si próprias. No meu ponto de vista, um populista é alguém que diz: “Eu e apenas eu represento o povo” – ou o “verdadeiro povo”, como tipicamente, gostam de dizer. Outros políticos são considerados por eles como ilegítimos, corruptos – e todos os cidadãos que não concordam com os populistas são basicamente excluídos do “verdadeiro povo”. Outra forma de distinguir um líder populista é que eles promovem guerras culturais. Há uma diferença entre populismo e nacionalismo. Você pode ser um nacionalista e dizer: “América em primeiro lugar” ou “Brasil acima de todos”, mas não necessariamente proclamar que “apenas eu represento o povo”. É importante ver a diferença, embora muitos populistas sejam nacionalistas. Como eles têm de proclamar quem é o “verdadeiro povo”, o nacionalismo é a melhor resposta para dizer que um bom americano é isso, um bom alemão é aquilo. Um último ponto é que os populistas, frequentemente, não têm uma política externa previsível. Há uma hostilidade em relação às organizações internacionais. Quando eles chegam ao poder, precisam dar continuidade ao discurso anti-elite – e eles recorrem ao clichê de que existe uma “sombria” elite internacional que age nos bastidores contra os interesses do “verdadeiro povo”. Por isso, frequentemente, mas nem sempre, partilham de um discurso anti-semita.

Em conferência, o senhor afirmou que os líderes populistas desenvolveram uma arte de governar. Da mesma forma que Trump, Bolsonaro gosta de atacar a imprensa pelo Twitter. O uso das redes contra a imprensa faz parte desse ‘kit’ populista?

O que alguns desses líderes tentam alcançar é algo que paradoxalmente pode ser chamado de representação direta, uma conexão com os cidadãos, sem a mediação da imprensa profissional e dos partidos políticos. Em alguns casos, essa é uma promessa explícita. Na Itália, Beppe Grillo (comediante e blogueiro, fundador do Movimento Cinco Estrelas, hoje o maior partido da Itália) dizia que não só os políticos são corruptos, mas os jornalistas também. Ele dizia: “Você não pode confiar em ninguém, fale comigo diretamente que eu vou amplificar o que está acontecendo por meio do meu blog”. Essa é uma espécie de técnica, que acaba sendo copiada por outros. E qual pode ser a consequência disso? Tanto os partidos como a imprensa introduzem um certo grau de pluralismo na forma como as pessoas se relacionam com o sistema político. Obviamente, as pessoas têm suas identificações, mas elas se deparam com outros pontos de vista, ideias e formas de pensar quando há essa mediação. Esse pluralismo desaparece quando você tem uma relação de um para um. Outro perigo do “microtargeting” (a distribuição de mensagem, por meio das redes sociais, para públicos ultrasegmentados) é que ele pode virar uma forma de constantemente reforçar mensagens nas quais o povo deve acreditar. Uma definição básica de democracia é que as pessoas devem ter o direito de mudar de ideia e punir o governo para tirá-lo do poder. Mesmo essa definição básica pode estar em perigo se você pensar que existem hoje instrumentos para que as pessoas não recebam informações confiáveis e decidam por elas próprias.

Como a imprensa tradicional deve reagir quando é hostilizada dessa forma? 

Desde o século 19, nós sabemos que há duas instituições que são cruciais para uma democracia representativa funcionar: partidos políticos e mídia profissional. Ambos estão em crise. A imprensa não deve cair na armadilha de pensar ou mesmo dizer que representa a oposição. A oposição toma assento no Parlamento. Essa é a armadilha que Trump armou para alguns órgãos de imprensa nos EUA e que pode ser muito eficaz porque coincide com a crise da mídia. Alguns veículos tendem a responder: “Nós estamos aqui para salvar a democracia”, e assim passam a se vender como se fossem partidários. É melhor simplesmente dizer: “Não somos a oposição, estamos aqui para fazer o melhor jornalismo investigativo possível nas atuais circunstâncias, vamos cobrir o que realmente acontece”. Além disso, há uma outra armadilha: o ultraje e o escândalo vendem. É muito mais fácil fazer um artigo com muitas opiniões fortes, que causam ultraje, do que fazer uma investigação de dois meses, o que, obviamente, é muito caro e difícil. Uma coisa estranha que está acontecendo na mídia de países ocidentais é que algumas organizações estão se tornando clubes para pessoas com determinadas opiniões, como se fossem organizações partidárias com determinada filiação. Isso precisa de uma reflexão para saber se é algo de bom a ser feito.

A democracia liberal está em perigo por causa da ascensão desses líderes populistas?

Especialmente após a eleição de Trump, havia uma tendência a se homogeneizar todos os casos, mas isso é um engano. As pessoas diziam que ocorreria nos Estados Unidos um processo igual ao que aconteceu na Turquia e na Hungria, mas há diferenças importantes. Para chegar ao poder, os populistas partilham certas formas de agir. Mas para serem bem-sucedidos no governo, as circunstâncias locais pesam. Essa é a resposta pedante. Talvez a resposta menos pedante seja dizer que o perigo é aumentado pelo fato de que alguns desses atores podem aprender um com o outro. Depois do fim da Guerra Fria, houve uma ilusão de que as democracias têm uma vantagem epistemológica em relação aos regimes autoritários, porque as democracias aprendem com os erros, enquanto os sistemas autoritários seriam estúpidos. Todos terminariam como a União Soviética. Nós estamos aprendendo que essa “internacional” de líderes populistas autoritários gerou um conhecimento de governar que pode ser aprendido. Essas técnicas de como reduzir o pluralismo da mídia, de como intimidar a sociedade civil podem ser desenvolvidas, sem necessariamente reproduzir as imagens das ditaduras do século 20 que nós conhecemos. Uma coisa que precisa ser dita é: sim, nós, os democratas, aprendemos com a história. Mas os autoritários também. Eles também aprenderam a exercer um grande controle sobre as sociedades sem ser opressores. Há pessoas que viajam para a Hungria e voltam de lá, dizendo: “Está tudo bem, não parece que estamos numa espécie de país fascista”.

Quão importante é o papel de instituições sólidas para conter o impulso autoritário dos populistas?

As instituições importam muito, é claro – e elas não são apenas as instituições tradicionais como o sistema judiciário e os partidos políticos, mas também incluem a mídia e organizações da sociedade civil. O que importa também é o nível de centralização ou descentralização do poder. Em alguns dos países, o poder é muito centralizado. Se você ganha controle do Parlamento, do Executivo e da Corte, e não há outras instâncias de poderes regionais, é muito difícil resistir. Houve um tempo em que Trump podia ignorar os democratas no Congresso, podia ignorar os protestos nas ruas, mas se a Califórnia dissesse que não iria implementar tal política, ele não podia ignorar, porque o governo federal não tem recursos para executar certas políticas sozinho. Na Alemanha, temos um dispositivo na Constituição que diz que certos direitos fundamentais e o federalismo não podem ser abolidos. Antigamente, achava-se que o federalismo não era tão importante, mas agora percebemos como descentralizar o poder é importante para dar às pessoas meios legais de resistir e de praticar a desobediência civil dentro do sistema político.

Como evitar que populistas se transformem em líderes autoritários que ameaçam a democracia?

É preciso proteger as instituições. É preciso ter uma oposição que saiba comunicar bem quais são as discordâncias em termos de políticas que podem ser consideradas ordinárias das discordâncias de natureza constitucional. Os populistas procuram mudar as regras do jogo para, caso ele produza resultados que não os satisfazem, possam dizer que essas regras são ilegítimas. É importante, em algumas circunstâncias, subsidiar ou mudar a forma de regulação da mídia para que informação confiável continue a ser produzida. Por último, é importante sempre fazer uma distinção entre os populistas e os eleitores, porque sabemos muito pouco a respeito desses eleitores para fazer, do alto, severas condenações a eles. Sim, alguns deles talvez sejam racistas. Sim, alguns deles são convictos anti-pluralistas. Mas há muitos sobre os quais nada sabemos.

Qual foi o peso das redes sociais na ascensão desses líderes populistas?

É uma afirmação muito plausível dizer que elas facilitaram a sugestão de representação direta feita pelos líderes populistas. Mas havia populismo antes das redes sociais. Essa experiência de conexão direta não é totalmente nova. Antigamente, você podia ir à assembleia de um partido e, por quatro horas, todo mundo ficava saudando o grande líder. Ao final, você saía da assembleia com essa sensação de conexão direta. Mas essa era uma experiência extraordinária. Agora, é uma experiência que você pode sentir 24 horas por dia pelo Twitter. Talvez essa mudança quantitativa tenha levado também a uma mudança qualitativa, mas há muitos outros fatores. A política ainda é uma questão de indivíduos fazendo escolhas. A história na Europa Ocidental e nos Estados Unidos mostra que nenhum líder populista de direita, até agora, ascendeu sem a colaboração de elites conservadoras bem estabelecidas. Relativar o peso das mídias sociais é importante para cobrar a responsabilidade dessas elites que conscientemente optaram por esse caminho.

A blasfêmia de Jair Bolsonaro: que “Deus” acima de todos?

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Não queria ter escrito este artigo. Mas a aguda crise política atual e o abuso que se faz do nome de Deus provocam a função pública da teologia. Como qualquer outro saber, ela possui também a sua responsabilidade social. Há momentos em que o teólogo deve descer de sua cátedra e dizer uma palavra no campo do político. Isso implica denunciar abusos e anunciar os bons usos, por mais que esta atitude possa ser incompreendida por alguns grupos ou tida como partidista, o que não é.

Sinto-me, humildemente, na tradição daqueles bispos proféticos como Dom Helder Câmara, dos Cardeais Dom Paulo Evaristo Arns (lembremos o livro que ajudou a derrocar a ditadura “Brasil Nunca Mais”) e de Dom Aloysio Lorscheider, do bispo Dom Waldir Calheiros e de outros que, nos tempos sombrios da ditadura militar de 1964, tiveram a coragem de erguer a sua voz em defesa dos direitos humanos, contra os desaparecimentos e as torturas feitas pelos agentes do Estado.

Vivemos atualmente num país dilacerado por ódios viscerais, por acusações de uns contra os outros, com palavras de baixíssimo calão e por notícias falsas (fake news), produzidas até pela autoridade máxima do país, o atual presidente. Com isso ele mostra a falta de compostura em seu alto cargo e das consequências desastrosas de suas intervenções, além dos despropósitos que profere aqui e no exterior.

Seu lema de campanha era e continua sendo “Deus acima de todos e o Brasil acima de tudo”. Precisamos denunciar a utilização que faz do nome de Deus. O segundo mandamento divino é claro de “não usar o santo nome de Deus em vão”. Só que aqui o uso do nome de Deus não é apenas um abuso mas representa uma verdadeira blasfêmia. Por que?

Porque não há como combinar Deus com ódio, com elogio à tortura e a torturadores e com as ameaças a seus opositores como fazem Bolsonaro e seus filhos. Nos textos sagrados judaico-cristãos, Deus revela sua natureza como “amor” e como “misericórdia”. O “bolsonarismo” conduz uma política como confrontação com os opositores, sem diálogo com o Congresso, política entendida como um conflito, de viés fascista. Isso não tem nada a ver com o Deus-amor e o Deus-misericórdia. Consequentemente propaga e legitima, a partir de cima, uma verdadeira cultura da violência, permitindo que cada cidadão possa possuir até quatro armas. A arma não é um brinquedo para o jardim da infância mas um instrumento para matar ou se defender mutilando ou matando o outro.

Ele se diz religioso, mas é de uma religiosidade rancorosa; ele comparece despojado de sacralidade e com um perturbador vazio espiritual, sem qualquer sentido de compromisso com a vida da natureza e com a vida humana, especialmente daqueles que menos vida têm. Com propriedade afirma a miúdo o Papa Francisco: prefere um ateu de boa vontade e ético que um cristão hipócrita que não ama seu próximo, nem tem empatia por ele, nem cultiva valores humanos.

Cito um texto de um dos maiores teólogos do século passado, no fim da vida, feito Cardeal, o jesuíta francês Henri De Lubac:

“Se eu falto ao amor ou se falto à justiça, afasto-me infalivelmente de Vós, meu Deus, e meu culto não é mais que idolatria. Para crer em Vós devo crer no amor e na justiça. Vale mil vezes mais crer nessas coisas que pronunciar o Vosso nome. Fora delas é impossível que eu Vos encontre. Aqueles que tomam por guia – o amor e a justiça – estão sobre o caminho que os conduz a Vós” (Sur les chemins de Dieu, Aubier 1956, p.125)

Bolsonaro, seu clã e seguidores (nem todos) não se pautam pelo amor nem prezam a justiça. Por isso estão longe do “milieu divin” (T.de Chardin) e seu caminho não conduz a Deus. Por mais que pastores neo-pentecostais veem nele um enviado de Deus, não muda em nada a atitude do presidente, ao contrário agrava ainda mais a ofensa ao santo nome de Deus especialmente ao postar na internet um youtuber pornográfico contra o carnaval.

Que Deus é esse que o leva a tirar direitos dos pobres, a privilegiar as classes abastadas, a humilhar os idosos, a rebaixar as mulheres e a menosprezar os camponeses, sem perspectiva de uma aposentadoria ainda em vida?

O projeto da Previdência cria profundas desigualdades sociais, ainda com a desfaçatez de dizer que está criando igualdade. Desigualdade é um conceito analítico neutro. Eticamente significa injustiça social. Teologicamente, pecado social que nega o desígnio de Deus de todos numa grande comensalidade fraternal.

O economista francês Thomas Piketty, famoso por seu livro O Capital no século XXI (Intrínseca 2014), escreveu também um inteiro livro sobre A economia da desigualdade (Intriseca 2015). O simples fato, segundo ele, de que cerca de 1% de multibilhardários controlarem grande parte das rendas dos povos e no Brasil, segundo o especialista no ramo, Márcio Pochmann, os seis maiores bilionários terem a mesma riqueza que 100 milhões de brasileiros mais pobres (JB 25/9/2017), dão mostras de nossa injustiça social.

Nossa esperança é de que o Brasil é maior que a irracionalidade reinante e que sairemos melhores da atual crise.

Leonardo Boff é teólogo e comentou A oração de São Francisco pela Paz, Vozes 2009.

Previdência de Bolsonaro produzirá massa miserável, avalia economista.

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Para Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, governo quer criar ‘colônia exportadora de soja, na qual a população não precisa ter renda’

A Reforma da Previdência ganhou um nome pomposo e marqueteiro sob a caneta de Bolsonaro: Nova Previdência. A missão alardeada pelo governo parece ainda mais nobre, acabar com os privilégios e cobrar mais de quem ganha mais. Mas o texto enviado ao Congresso mostra pouco disso.

Embora corrija certas distorções entre o regime geral e p próprio (dos servidores públicos), as regras ficaram ainda mais duras para os mais pobres. Para se aposentar com 100% da média salarial, será preciso contribuir por 40 anos. A idade mínima subiu e afeta principalmente as mulheres. Também foram cortadas pensão por morte e aposentadoria por invalidez.

Para o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit), essas mudanças criarão uma massa de miseráveis nas próximas décadas. “Poucos vão conseguir comprovar a idade mínima e o tempo de contribuição. E serão jogados para assistência.”

Um dos pontos mais críticos é o corte no benefício de prestação continuada. Pelas novas regras, os idosos pobres só teriam direito ao salário mínimo a partir dos 70 anos. “No caso dessa população, é muito difícil que eles cheguem aos 70 anos. Haverá uma sobrevida muito curta”, diz.

Ele também rebate os slogans do governo. “Não dá prá dizer que uma reforma é justa se ela deixa de fora os militares. Os policiais civis, federais e agentes penitenciários se aposentam com 55 anos. Porque a mulher rural tem que aposentar com 60 anos, e essas categorias antes?”

Um dos especialistas ouvidos pelas comissões que discutiram a reforma na gestão Temer, Fagnani comenta os principais pontos da nova versão reforma. Confira a seguir.

CartaCapital: O governo fala em previdência justa, com regras iguais para todos. Até que ponto isso é verdade?

Eduardo Fagnani: Não é verdade. O que eu percebo, é que essa reforma continua exigindo muito do INSS e do regime geral. Ela tende a excluir da Previdência muita gente que não vai conseguir chegar na idade mínima e nem comprovar os vinte anos de contribuição. E baixando o benefício assistencial a 400 reais, eles constroem um muro. Vamos sair de um país que tem 80% dos idosos com proteção previdenciária e caminhar para um futuro em que 30% da população terá uma previdência ganhando entre 400 reais e 1000 reais.

CC: Se essa PEC for aprovada como está, quais os efeitos sobre a desigualdade?

EF: Você já tem 50% do mercado de trabalho na informalidade, que não contribui com a Previdência. E com essas regras, que continuam duríssimas, mais uns 20% não irão conseguir e serão lançados à assistência ganhando 400 ou 500 reais. Para que destruir o sistema de proteção social, para que a gente tenha um país indigente daqui a 20 ou 30 anos? País sério faz reforma da Previdência, mas não destrói o sistema de proteção social. Juntando isso com a reforma trabalhista, teremos um capitalismo sem consumidor. Esse é o sonho deles, uma colônia exportadora de soja, na qual a população não precisa ter renda.

CC: Guedes manteve a promessa de economizar 1 trilhão em dez anos. Faz sentido esse cálculo?

EF: Isso é chute. O governo não tem um modelo de projeção atuarial, os economistas não acertam projeções de um ano. Qual o PIB que eles estão projetando para os próximos dez anos? Para dizer isso, é preciso abrir os dados. Eles dizem que só a pensão das Forças Armadas vai gerar uma economia de 92 milhões. Mas eles não têm um projeto para as Forças Armadas. Se não tem projeto, como sabem dessa economia?

CC: Políticos à esquerda e à direita concordam que é preciso reformar a Previdência. Qual seria a reforma ideal?

EF: Nos últimos 30 anos, foram feitas quatro grandes reformas na Previdência. No regime geral, você precisa de correções muito pontuais. A idade mínima existe desde a década de 30, hoje eles dizem que o trabalhador urbano se aposenta com 66 anos. E isso representa 70% das aposentadorias. O restante é por tempo de contribuição. O problema estava aí, mas foi corrigido em 2015 com o fator previdenciário móvel. Isso é padrão de país desenvolvido. Não sei o porquê de mexer de novo nisso.

CC: E a questão dos servidores públicos?

EF: A idade de aposentadoria do servidor público tem que aumentar mesmo, ser pelo menos igual à do INSS. Mas é uma medida pontual. Os problemas da Previdência no setor público são dois. Um é o estoque dos trabalhadores que entraram desde 2012. O outro é a previdência dos estados.

O servidor que entra no serviço público a partir de 2012 tem um teto 5.800 reais do INSS. Porque foi criado o Funpresp [Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal]. Daqui a 35 anos, essa pessoa se aposenta pelo teto. Então o problema também não é quem se aposenta a partir de 2012.

CC: Esse projeto é melhor ou pior do que aquele que o Temer apresentou em 2016?

EF: Os relatores daquela época aprenderam muitas coisas nas discussões, e até tentaram reduzir o problema. Mesmo assim, permanecem aspectos muito críticos. A proposta inicial da reforma era de 25 anos de contribuição. Na versão final, baixou para 15. Agora eles deixaram com 20 anos. Também recuam pouco na questão rural. Mas os problemas permanecem.

CC: Há algum ponto crítico que não esteja recebendo a atenção devida?

EF: O chamado gatilho. A cada quatro anos, sempre que a expectativa de vida subir, a idade mínima aumenta um ano. Em vinte anos, esse limite deve chegar aos 67, 68 anos. É uma coisa doida, porque alguns países capitalistas desenvolvidos passarão a idade para essa faixa etária a partir de 2030. E nós podemos chegar antes deles lá. O Brasil é o nono país mais desigual do mundo [dados da Oxfam]. E além de desigual, é heterogêneo. Não dá prá comparar o Piauí com Santa Catarina.

 

 

 

 

Sexo, desejos e prazeres na sociedade do hedonismo

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Vivemos em uma sociedade marcada por grandes mudanças em todas as áreas e setores, desde o mundo dos relacionamentos, os encontros e os desencontros, todas estas mudanças estão estruturadas numa sociedade centrada na lógica do prazer e do gozo desesperados, estamos assoberbados de vontades e nos esquecemos de nossas responsabilidades, vivemos no mundo onde o prazer ganhou ares de celebridade, se estamos sentindo prazer temos que mostrar aos outros agora, se não estamos sentindo devemos fingir e atuar como atores neste mundo da imaginação.

Sabendo da importância da temática, o médium Francisco Cândido Xavier e seu mentor espiritual Emmanuel, nos trouxeram, no começo dos anos 1970, a obra Vida e Sexo, onde nos trazem informações e mensagens dos tarefeiros benevolentes e sábios que orientaram Allan Kardec nos primórdios da Doutrina Espírita, nesta obra são abordados temas contemporâneos de relevo, como família, namoro, casamento, divórcio, filhos, uniões infelizes, aborto, homossexualidade, dentre outros.

O sexo é fonte criadora, sua importância é central na sociedade, a união entre os seres humanos e sua reprodução é uma grande benção de Deus para o processo de crescimento e desenvolvimento dos indivíduos, esta fonte criadora deve ser utilizada e estimulada como forma de prazer e de reprodução, mas sempre de forma responsável e inteligente, para que isto aconteça, os pais, as famílias e os educadores tem um papel fundamental.

A Doutrina Espírita tem muitas coisas para nos dizer referentes a estas questões ligadas ao sexo, muitos indivíduos são surpreendidos por obsessões e desejos delirantes e destrutivos, muitas obras nos mostram como os espíritos pode se utilizar dos desequilíbrios sexuais para destruir relacionamentos e reputações, quantas pessoas são denegridas e brutalizadas pelos escândalos gerados no mundo do sexo e dos prazeres tresloucados.

É importante destacar, que estes espíritos podem até gerar constrangimentos aos encarnados, mas isto só acontece quando os encarnados são invigilantes e se entregam aos prazeres do sexo  desajustado, com isso se abrem para estes sentimentos e pensamentos desequilibrados, deixando um campo fértil de ação para os desencarnados que ora se comprazem com os desejos desenfreados do sexo de encarnados pouco vigilantes.

Um dos livros mais interessantes com esta temática é Sexo e Destino, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito André Luiz, este livro faz parte da coleção A vida no Mundo espiritual, uma obra fantástica que nos leva a compreender como os prazeres do sexo desequilibrado levaram duas famílias cariocas a uma situação de vinganças, mortes, desastres, violências e desesperos constantes, histórias que retratam as mazelas dos seres humanos e que nos envolvem a todos nos mais variados momentos da vida.

Falar dos desajustes do sexo e dos prazeres sexuais é falar sobre vontades que afetam uma grande parcela da humanidade, segundo espíritos superiores, a energia sexual é uma das mais importantes existentes nos seres humanos, o poder desta energia é tão violento que, quando desequilibrados podem nos levar a desajustes mentais e, quem sabe, a uma internação em hospitais psiquiátricos, locais estes que antigamente obrigavam pacientes desinformados desta temática sexual a tratamentos terríveis e agressivos, com impactos generalizados no corpo físico por inúmeros anos.

Depois de vivermos em famílias castradoras, pais agressivos e violentos, comunidades caracterizadas por uma alta prole e vontades e desejos castrados de forma agressiva e violenta, partimos para um mundo mais liberal, onde os prazeres sexuais estão a mostra nas emissoras em todas as faixas etárias, expondo jovens e crianças a um mundo de prazeres sem responsabilidade e conhecimento.

O sexo se transformou em um ativo de destaque na sociedade contemporânea, muitos investem seu tempo e seus recursos para adquirir corpos sarados e perfeitos, cheios de curvas e insinuantes, objetivando a sedução e a conquista de prazeres materiais, nesta situação, a Doutrina Espírita nos mostra que todas as conquistas podem nos gerar problemas se não forem acompanhadas de sentimentos e interesses nobres, todos aqueles que estimulamos a se apaixonar pela gente, por vaidade ou interesse escusos, ao fazermos estes irmão sofrerem, podemos estar criando sentimentos de ódio, de rancor e de ressentimento, levando-o a, num outro momento ou numa outra vida, se tornar nosso algoz, nosso perseguidor, um amor que se transformou em ódio, prendendo estes irmãos durante muitos séculos, períodos de dores, mágoas e tristezas mútuas.

Nesta sociedade descontrolada, encontramos religiosos envoltos em crimes sexuais, pessoas que anteriormente fizeram votos de castidade se envolveram intimamente com jovens, abusando e desencaminhando pessoas, utilizando-os para prazeres indecorosos que agridem sua psique e criam nestes indivíduos medos e desequilíbrios que os perseguem por muitos anos, quiçá décadas, de suas exist6encias, gerando dores e ressentimentos.

A Doutrina Espírita nos leva a grandes reflexões sobre as questões do sexo, aos desvarios sexuais e seus desequilíbrios, a reencarnação nos auxilia a compreender muitas coisas desta temática e, principalmente, nos auxilia a não criticar nem julgar estes irmãos, ao nos descortinar as misérias dos seres humanos no campo sexual, nos mostra que todos estamos sujeitos a estes desequilíbrios, todos temos em nossa trajetória de espíritos imortais esta chaga reluzindo no espírito e no períspirito, todos somos pecadores e devemos respeitar, orar e auxiliar a todos que ora passam por esta mazela severa, julguemos menos e oremos mais para que as dores alheias sejam superadas pelos irmão caídos, afinal não sabemos quando seremos nós os caídos.

Muitos espíritos são marcados por fortes desejos e vontades sexuais, quando desencarnam vão para regiões condizentes com suas vontades e necessidades imediatas, nestes locais aprendem com outros indivíduos desencarnados a sentirem os prazeres das pessoas encarnadas, buscando-as e vampirizando-as constantemente, instigam nestes indivíduos suas vontades e seus desejos e se satisfazem da pouca vigilância dos irmãos encarnados que, nem imaginam, que sua intimidade é vista por muitos irmãos desencarnados, num quadro macabro de prazer, orgias e desequilíbrios.

Em locais de encontros sexuais, motéis, becos escuros e quartos mais humildes, estes irmãos fazem morada e são atraídos por estas energias desequilibradas, os encarnados que buscam estes recintos para seus gozos físicos e seus prazeres efêmeros, perpetuam suas necessidades e suas vontades sexuais são por eles acompanhados e por eles influenciados, muitos de seus pensamentos, vontades e desejos não são seus, mas oriundos de companheiros desencarnados, que os controlam muito mais que imaginam.

O prazer sexual deve ser visto com grande responsabilidade, todos que se misturam com estas energias desequilibradas sentem prazeres mas, ao mesmo tempo se veem em situação de constantes buscas, são indivíduos que nunca se satisfazem por completo, buscam estas energias todos os momentos, são afins aos seus pensamentos, vibram no mesmo diapasão, se entregando a um prazer mais rápido e fulgás, deixando de lado a reflexão baseada na ética e na moral, valores fundamentais para a construção de sociedades mais estruturadas e baseadas na vivência do Cristo.

Muitos reinos e governos foram dizimados depois de ver suas estruturas sendo corroídas internamente pelos prazeres imediatos da bebida e do sexo exagerados, cortes e reinados foram substituídos devido a uma forte e consistente degradação moral, onde os governados passam a perder o respeito e a admiração por reis e rainhas que se entregam a promiscuidade e as prazeres desequilibrados.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que todos os indivíduos são dotados destas energias sexuais, uns a utilizam de forma equilibrada, constituem família, constroem laços sólidos e imutáveis, agem como verdadeiros cristãos e levam sua mensagem de respeito aos indivíduos para todos os locais, solidificando sua base moral e consolidando uma ética baseada em valores sólidos e verdadeiros.

Outros se utilizam destas energias sexuais para a busca constante pelo prazer, se utilizam da sedução penhorando corpos saudáveis em prol de uma ascensão social imaginária e temporária, seduzem com as armas do sexo e buscam uma estrutura centrada no transitório, conseguem os prazeres da matéria e muitas vezes os recursos amoedados desejados mas, ao mesmo tempo, penhoram seus espíritos para resgates dolorosos em vidas futuras, muitas vezes marcadas por doenças físicas e incapacidade reprodutivas.

Muitos irmãos, em busca de prazeres tresloucados, se esquecem dos compromissos dos sentimentos mais nobres, se entregam a prazeres sexuais e se veem com filhos indesejados, buscando nesta situação subterfúgios para acobertar estas crianças, muitas foram mortas e outras foram levadas para outras regiões, gerando dores e lágrimas constantes, obrigando-os a, numa próxima experiência física, arcar com esta desventura gerada em corações alheios.

São inúmeros os irmãos que se entregam a vingança de entidades encarnadas, irmãos desencarnados que se dizem vítimas de atitudes equivocadas e se entregam a uma maldade contumaz, buscando nela uma resposta para suas desditas anteriores, estes irmãos acabam numa auto- obsessão, vivem para descobrir falhas em seus perseguidos e, ao descobrir, canalizam suas energias para se vingar, destruindo e degradando sem puder nem solidariedade.

O sexo é uma fonte intensa de prazer, dele os indivíduos nascem, crescem e se desenvolvem, esta energia saudável pode lhe propiciar grandes incrementos morais e éticos, contribuindo para que o indivíduo cresça como espírito e se eduque de desequilíbrios anteriores, angariando novos conhecimentos e sentimentos para um processo de depuração espiritual.

Numa sociedade centrado no dinheiro e no poder do capital financeiro, onde a imagem ganha relevância em todas as discussões sociais, onde os valores monetários compram corpos esculturais e conseguem adquirir um  amor quase verdadeiro, o sexo passa a ter uma importância incomensurável, levando o mercado a perceber e investir neste potencial, com filmes, séries, empreendimentos, boates, motéis, encontros e jogos virtuais, o potencial é imenso e os empreendedores não se furtam de investir e lucrar, onde existe potencial de ganhos econômicos os interesses materiais se instalam e dominam.

O livro Sexo e Destino nos mostra como entidades em situações degradantes se aproximam de casais desavisados e absorvem prazeres animalizados, a proximidade e a sintonia servem como eixo central deste prazer, gozam e se regozijam do encontro de encarnados e, muitos deles, vivem desta forma por décadas e até séculos envoltos em prazeres da sedução e do sexo descontrolados.

Na obra psicografada por Francisco Cândido Xavier e ditada por André Luiz, duas famílias se entrelaçam em um conto de sexo desequilibrado e recursos financeiros abundantes, onde casais se entregam aos prazeres e seus filhos são devorados por uma educação centrada em valores fúteis e materializados, atraindo espíritos com pensamentos e desejos parecidos, a mente é força criadora, seu pensar atrai energias valiosas para seu progresso material ou te leva a uma tempestade de desesperanças e medos.

Outro ponto central e de fundamental importância relacionados aos prazeres do sexo são descritos por André Luiz no livro citado acima, o autor destaca que os casais apaixonados e em sintonia, ao se entregarem aos namoros sexuais são preservados e o fazem sem a presença de entidades de mundos inferiores, estes casais são protegidos em sua intimidade por laços sólidos e verdadeiros de amor e reciprocidade constantes. Ao contrário, todos aqueles casais ou grupos de indivíduos que se entregam a orgia, promiscuidade e sexo desequilibrados, fazem da banalização do sexo seu momento máximo de prazer e dos gozos seus espaços de gritos e desajustes.

Como nos mostra Allan Kardec em O livro dos Espíritos, “…são os mesmos os espíritos que animam os homens e as mulheres”. Com isso, percebemos que o espírito não tem sexo como imaginamos, podem encarnar no corpo masculino ou num corpo feminino, depende de sua missão ou compromisso espiritual, com isso, percebemos a importância de respeitarmos as pessoas e suas escolhas, não as respeitando muitas vezes encontramos inúmeros conflitos na área da sexualidade que poderiam ser, facilmente, evitáveis, afinal nas varias encarnações que tivemos, nascemos com as várias morfologias físicas.

O sexo é algo de muita importância para a humanidade, seus prazeres exigem uma imensa responsabilidade dos indivíduos e das coletividades, nesta sociedade o papel da família ganha relevância e obriga os pais a um compromisso mais efetivo, a educação cristã somada a uma constante referência aos sólidos e consistentes valores deixados pelo Cristo, além de conversas e trocas de informações, somadas a oração e aos pensamentos edificantes, constroem nos indivíduos valores morais e éticos que perpassam o corpo material e se propagam para o espirito e o períspirito, transformando os homens e materializando a centelha divina de amor e solidariedade.