Tarifas, subsídios e protecionismo

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O ano de 2025 começou com grandes alterações nas relações econômicas, políticas e produtivas entre as nações, gerando mal-estar, preocupações crescentes e desconfianças generalizadas, cujos resultados são desconhecidos por completo. O retorno de Donald Trump é o epicentro destas grandes alterações sobre o cenário internacional, gerando variadas políticas protecionistas, novas tarifas e alíquotas comerciais e confrontos com nações e grupos de nações, que podem catalisar maiores confrontos entre países hegemônicos.

No cerne destas discussões e políticas protecionistas, estão a perda de espaço da economia norte-americana no cenário global, que embora seja a maior economia do mundo, apresenta uma perda crescente de competitividade dos setores industriais e produtivos, ainda mais quando percebemos a ascensão asiática, notadamente a chinesa, que busca um reequilíbrio de poder e de riqueza num mundo volátil, incerto, quente, volumoso e marcado pelo predomínio do mercado financeiro global.

Nesta crescente guerra comercial que vivemos atualmente, as nações buscam defender seus setores econômicos e produtivos, impondo alíquotas de importações maiores, novas formas de proteção industrial, taxação de empresas vistas como estratégicas e medidas claras de proteção interna, defendendo seus empregos, suas empresas e a renda de sua população, garantindo crescimento econômico.

Numa economia globalizada, muitas políticas protecionistas adotadas pelos governos podem gerar graves constrangimentos internos para sua estrutura produtiva, elevando custos de produção e culminando no incremento dos preços internos, gerando inflação e medidas de austeridade das Autoridades Monetárias, elevando as taxas de juros e desacelerando a economia nacional, com graves impactos sobre a renda nacional e a geração de emprego.

É importante que as economias nacionais compreendam os grandes desafios da sociedade contemporânea, as pressões comerciais e políticas dos norte-americanos devem ser vistas com tranquilidade e maturidade e, ao mesmo tempo, precisamos preservar a soberania e a autonomia nacionais, afinal, muitas das políticas anunciadas pelo governo norte-americano são uma verdadeira afronta a democracia e a soberania dos parceiros comerciais.

Muitas destas políticas anunciadas pelo governo Donald Trump podem levar parceiros históricos a se bandearem para o lado chinês, buscando novas oportunidades comerciais, recursos monetários e financeiros para financiar sua expansão comercial e produtiva, além de angariar proteção contra as retaliações estadunidense, desta forma, estamos vislumbrando uma grande transformação geopolítica mundial, um redesenho da estrutura produtiva e novas formas de poder e de riqueza.

A ascensão chinesa está reconfigurando a estrutura global de poder, levando o governo norte-americano a uma postura mais agressiva e pragmática, neste momento, as economias em desenvolvimento, como a brasileira, precisam compreender os desafios que se avizinham, atraindo investimentos asiáticos, buscando a transferência de tecnologias, construindo parcerias estratégicas para investimentos em infraestrutura necessárias para o crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, construir consensos internos para investir fortemente em capital humano, incrementando os recursos orçamentários para a pesquisa científica e tecnológica, deixando de lado recursos obscuros que abastecem os ralos da corrupção e contribuem ativamente para a perpetuação dos desequilíbrios que caracterizam a sociedade brasileira. Vivemos um momento único para isso, precisamos forjar lideranças que compreendam o momento histórico e compreendam as oportunidades que se abrem para a coletividade.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Esquerda erra ao bater na globalização, por Hélio Schwartsman

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Maior integração econômica ajudou a tirar da miséria milhões de pessoas em países emergentes

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 07/02/2025

A esquerda brasileira sempre bateu na globalização. Fazia-o, creio, porque esse movimento era parte do chamado Consenso de Washington, o que vale dizer que era uma manifestação do imperialismo ianque.

Na prática, porém, a globalização é um dos ingredientes da notável redução da desigualdade mundial. Entre 1990 e 2020, o coeficiente de Gini do planeta passou de 70 para 60,6. Quanto mais esse número se aproxima de 100, mais concentrada é a renda. A queda foi puxada pela diminuição da desigualdade entre países. O Gini que compara nações foi de 60 para 47,1 no mesmo período.

Não estamos aqui falando de abstrações estatísticas. No mundo real, a transferência de postos de trabalho dos países ricos para os emergentes tirou milhões de pessoas da miséria, especialmente na China.

Outra faceta desse fenômeno aparece na redução da proporção de terráqueos vivendo em pobreza extrema, que passou de 36,22% em 1990 para 9,18% em 2017. Historicamente, a pobreza extrema foi uma fiel companheira da humanidade. O índice só passou a patamar inferior a 50% em 1970.

Não vejo como a esquerda, pelo menos a esquerda internacionalista, poderia deixar de aplaudir esse movimento.

Daí não se segue, é claro, que a batalha esteja ganha. A pobreza não extrema ainda é prevalente no mundo, e a própria globalização, apesar de um resultado positivo, também produziu efeitos colaterais adversos.

O mais notável deles é que o enriquecimento de emergentes se deu principalmente à custa de setores da classe média de países ricos, que viram seus bons empregos na indústria migrarem para outras nações.

Essa população sentiu-se deixada para trás (os ricos de muitos desses países ficaram ainda mais ricos), o que gerou o ressentimento que hoje ajuda a eleger líderes de extrema direita como Donald Trump.

A globalização agora sai de cena para dar lugar a um mundo de guerra tarifária. É pena, porque quanto menos integradas são as economias dos países menos riqueza é produzida e distribuída, ainda que imperfeitamente.

 

Assim o capital nos faz reféns do trabalho frenético, por Jacobin Brasil

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Desigualdades brutais, salários estagnados e ideia de autorrealização via trabalho geraram jornadas mais massacrantes. Desmonte dos sindicatos só aprofundou a exploração. Como construir políticas que resgatem o tempo livre e a felicidade coletiva?

Jamie McCallum em entrevista a Meagan Day, na Jacobin Brasil. 05/02/2025 – OUTRAS MÍDIAS

Em 2014, uma mulher chamada Maria Fernandes morreu por conta de um vazamento de monóxido de carbono no estacionamento de uma loja de conveniência Wawa no norte de Nova Jersey. Ela trabalhava em média 87 horas por semana em três lojas diferentes da Dunkin’ Donuts e estava cochilando em seu carro como costumava fazer entre os turnos, com o motor ligado para aquecer. Um porta-voz da empresa comentou que Fernandes tinha sido uma “funcionária modelo”.

Esta é a história que abre o livro Worked Over: How Round- the-Clock Is Killing the American Dream [Esgotados: Como o Trabalho Exaustivo Está Matando o Sonho Americano] de Jamie McCallum. Mas não foi isso que inspirou McCallum, um professor de sociologia no Middlebury College, a estudar o fenômeno do excesso de trabalho nos Estados Unidos.

Em vez disso, o interesse foi despertado por sua observação de que os alunos em ambientes acadêmicos de elite estavam “quase competindo entre si para ver o quão duro eles poderiam trabalhar e para mostrar sua ética de trabalho”, ele disse à Jacobin. “Fiquei interessado em por que pessoas abastadas tratam o trabalho como um distintivo de honra.” Eventualmente, o projeto se expandiu para incluir trabalhadores de todas as outras faixas de renda.

Meagan Day, da Jacobin, falou com McCallum sobre o porquê de muitos trabalhadores de baixa renda terem que trabalhar tanto, o porquê de muitos trabalhadores de alta renda aparentemente quererem trabalhar muito, e como podemos construir uma sociedade que coloque o trabalho em seu devido lugar. Esta entrevista foi levemente editada para maior clareza.

Como a jornada de trabalho mudou nas últimas décadas?

Acho que, quando algumas pessoas falam sobre o livro, elas se concentram nessa estatística, que demonstra que as horas de todos os trabalhadores assalariados aumentaram significativamente desde os anos setenta. Acho que esses dados são muito importantes.

No entanto, se você se aprofundar, encontrará muitas variações. O que achei interessante foi que os trabalhadores de baixa renda aumentaram mais sua jornada. Estamos todos familiarizados com profissionais de colarinho branco sobrecarregados, mas não acho que essa seja a parte mais interessante da história. Então, há uma tendência de excesso de trabalho para todos, mas há uma distribuição desigual desse aumento na quantidade de tempo de trabalho entre diferentes classes de pessoas.

Outra dimensão é o aumento da imprevisibilidade e volatilidade de turnos e horários, o que é, principalmente, o caso de trabalhadores de baixa remuneração do setor de serviços. Em outras palavras, seus horários tornaram-se cada vez mais controlados por seus gerentes e pela tecnologia. Horários imprevisíveis são voláteis por concepção, não apenas por acaso. E eles criam uma vida profissional incrivelmente estressante e agitada.

A última dimensão é o aumento da jornada para as pessoas que simplesmente não têm horas suficientes, o que está conectado à volatilidade. Como a maioria dos empregadores exige quarenta horas de disponibilidade para trabalhar, mesmo que você tenha apenas vinte horas de trabalho, é difícil encontrar um segundo emprego em que você também possa se envolver de forma razoável. Como resultado, muitas pessoas estão sofrendo de desemprego involuntário.

Você pode explicar como os empregadores se beneficiam de ter pessoas disponíveis para quarenta horas, mas trabalhando apenas vinte, e sem saber quais exatamente serão essas horas efetivamente trabalhadas?

Quando eu trabalhava no varejo, sabia minha escala com três semanas de antecedência, eu aparecia e tinha um turno normal. Mas agora a nova tecnologia permitiu que os chefes agendassem pessoas apenas para os horários em que os trabalhadores são necessários. Em muitos algoritmos de agendamento, uma empresa pode relacionar o clima, a época do ano, a hora do dia e outros tipos de fatores que os ajudariam a determinar o quanto eles podem vender em um determinado dia. E isso os ajuda a definir quantos funcionários de frente eles precisam em uma loja de varejo, por exemplo. Isso, por sua vez, permite que eles paguem menos pela mão de obra e ganhem mais dinheiro.

A outra razão é que os empregadores acham que tornar as horas imprevisíveis e voláteis impede as pessoas de conversar com e conhecer seus colegas de trabalho em turnos regulares, que é como muito da organização política acontece. O interessante é que não funcionou bem assim, e agora há um grande movimento contra as escalas imprevisíveis.

Ao buscar entender os padrões de mudança da quantidade de tempo de trabalho, você oferece três explicações: a econômica, a cultural e a política. Como definiria cada uma delas?

Muitas vezes pensamos no problema do excesso de trabalho em termos individuais, relacionados ao desejo, necessidade ou aptidão de cada pessoa. Mas há múltiplas explicações não individuais do problema que compõem o argumento econômico.

Há um gráfico no livro que mostra o movimento paralelo do coeficiente de Gini, que é uma medida que quantifica a desigualdade, e o aumento de horas de trabalho nas últimas duas décadas. A maior parte dos lucros nos últimos quarenta anos tem ido para as pessoas no topo, enquanto os salários estão estagnados na base. Se os salários estão estagnados, então a principal maneira pela qual as pessoas da classe trabalhadora e até mesmo da classe média, em sua maioria, ganham mais dinheiro é trabalhando mais horas.

Então a desigualdade impulsiona longas jornadas de trabalho. E a força motriz da desigualdade é o poder de classe. A principal medida do poder de classe é o declínio do movimento trabalhista, que foi o meio através do qual as pessoas obtiveram uma redução da jornada de trabalho, bem como um mínimo suficiente de horas, e coisas como o pagamento de horas extras, por um bom tempo. Se você erodir o poder desse veículo pelo qual as pessoas reduzem suas horas, as conquistas simplesmente começam a desaparecer.

O próximo é o argumento cultural, que ajuda a explicar por que especialmente os trabalhadores de alta renda acabam trabalhando longas horas, embora tenham comparativamente mais controle sobre seu tempo, e o tempo livre ostensivamente é um bem social. Por que eles não trabalhariam menos se pudessem?

Encontrei duas razões. Uma é que os trabalhadores de alta renda na verdade estão sujeitos a algumas das mesmas forças de precariedade que os trabalhadores de baixa renda.

A segunda é que a ideologia do trabalho mudou para produzir uma nova ética de trabalho. Essa ideologia prioriza a autorrealização e a individualidade expressiva, e sugere que você obtém isso por meio do trabalho, e obtém mais disso por meio de mais trabalho.

Entrevistei muitos trabalhadores de alta renda, especialmente na indústria de tecnologia, e descobri que trabalhar mais horas era uma espécie de senso de identidade para eles.

A explicação política é que ambos os partidos têm seguido uma política de colocar pessoas pobres para trabalhar nas últimas duas décadas na forma de workfare, exigindo que trabalhadores atendidos por programas sociais trabalhem como contrapartida. Como resultado disso, você tem uma grande quantidade de novas pessoas inundando o mercado de trabalho, o que tem derrubado os salários. Isso tem usurpado totalmente o tempo das pessoas, tempo que era muito necessário para cuidar de crianças ou familiares ou estudar ou o que seja.

Quais são algumas outras demonstrações reais do problema do excesso de trabalho, conforme manifestado na vida dos trabalhadores de baixa renda?

O exemplo mais óbvio no livro é a história de uma mulher que morreu enquanto trabalhava dividindo turnos em três Dunkin’ Donuts diferentes no norte de Nova Jersey. Ela morreu enquanto dormia em seu carro, o que fazia frequentemente entre os turnos. Ela trabalhava em média oitenta e sete horas por semana, sustentava um parceiro com filhos e se tornou por um minuto uma figura-propaganda das longas horas de trabalho e da economia de baixos salários. Ela se tornou um símbolo para outros trabalhadores que não tiveram o mesmo destino, mas que, no entanto, estavam sobrecarregados.

Se você andar para cima e para baixo em qualquer rua importante para o setor de varejo em uma cidade grande e conversar com trabalhadores fazendo seus intervalos, como eu fiz, rotineiramente descobrirá que alguns deles começaram seu turno às 9h45 e terminaram às 15h15 — esses horários estranhos que não fazem sentido até você perceber que seus turnos estão sendo divididos. E muitos deles dirão que precisam começar seu próximo trabalho uma hora e meia ou duas horas depois. As estatísticas trabalhistas podem capturar esse tempo como lazer ou tempo livre, mas, na verdade, a maioria das pessoas o gasta correndo para comer, pegando transporte público ou trocando de uniforme.

Um resultado é que o local de trabalho acaba tendo uma grande importância na vida das pessoas. Conversei com muitas que se sentiam e se descreviam como sobrecarregadas, mesmo que trabalhassem menos de quarenta horas por semana, só porque passavam mais tempo procurando trabalho ou correndo entre empregos, que é tempo gasto pensando sobre o trabalho e fazendo atividades relacionadas a ele, mesmo que não estejam sendo pagas. Então, trabalho excessivo e trabalho insuficiente são dois lados da mesma moeda, com uma característica compartilhada de aumento de estresse e intensidade, com as pessoas, às vezes, até os vivenciando simultaneamente.

É mais fácil entender por que trabalhadores de baixa renda estão trabalhando mais, mas vamos retornar ao extremo oposto do espectro de classes. O que explica jornadas mais longas entre aqueles com mais controle sobre seu tempo de trabalho?

Isso foi o mais interessante para mim, acho que em parte porque sou um workaholic notável. Então, trabalhadores de baixa renda têm visto um aumento maior em suas jornadas de trabalho nas últimas décadas, mas ainda é verdade que trabalhadores de alta renda, em sua maioria homens, lideram o ranking. Por que isso? Essas coisas ideológicas são frequentemente colocadas como se as pessoas simplesmente tivessem uma nova ideia sobre o trabalho, ou o trabalho melhorasse e, portanto, decidíssemos trabalhar mais.

O que eu fiz foi tentar descobrir uma maneira de conectar um fascínio cultural com a ética do trabalho às mudanças materiais reais na forma como as pessoas trabalhavam. Em outras palavras, encontrar uma base política e econômica para essa nova crença na ideologia positiva da ética do trabalho.

Eu remonto isso aos anos setenta, quando os trabalhadores industriais começaram a exigir não apenas salários mais altos e assistência médica, mas empregos mais significativos. Eles se sentiam presos à linha de montagem, presos ao relógio, e quando isso entrou em contato com a política cultural dos anos sessenta e setenta, as pessoas não queriam mais fazer esse tipo de trabalho. Elas queriam fazer algo mais autorrealizável.

Você tem um discurso similar que surge entre pessoas que trabalham em escritórios no final dos anos oitenta e noventa, essa ideia de que o escritório é um inferno e as baias são como uma gaiola. Pense no ótimo filme Como Enlouquecer Seu Chefe. Acho que havia desejos sinceros de ter um trabalho que não fosse tão enfadonho e monótono, com o qual todos nós podemos nos identificar.

Adicione a isso o fato de que o trabalho passou de uma economia majoritariamente industrial para uma economia amplamente de serviços durante esse período. Uma economia de serviços realmente exige que as pessoas participem mais. Você não está apenas parado ao lado da linha de montagem; você tem mais cautela. As pessoas começaram a se ver cada vez mais como indivíduos valiosos para uma equipe. Tornou-se positivo se ver como importante para um processo de trabalho.

Combinando essas coisas, você obtém essa nova demanda por um trabalho melhor, mais significativo e mais individualizado. O que acontece depois é que gerentes, supervisores, gurus de negócios e assim por diante tomam nota e são capazes de repensar e reembalar o trabalho em si como sendo mais relevante e significativo. Os gerentes foram capazes de converter esse desejo por um trabalho com mais propósito em uma nova ética de trabalho, uma nova cultura de trabalho, para trabalhadores de alta renda.

Como as ideias do livro respondem à crise da covid-19?

Quando a pandemia chegou, meu primeiro pensamento foi: “Ah, não, vou publicar este livro sobre longas jornadas de trabalho quando ninguém está trabalhando, quão bizarro isso será?”

Mas, na verdade, os primeiros dados sobre esse assunto parecem sugerir que muitas pessoas estão trabalhando mais. A medição do uso de e-mail indicou mais horas por dia, significativamente mais em alguns setores, especialmente entre trabalhadores de colarinho branco.

A crise da covid parece ter exacerbado algumas das tendências que descrevi no livro e também produziu algumas dinâmicas inesperadas e interessantes. Por exemplo, devido aos cuidados com as crianças e outras responsabilidades domésticas, a multidão que trabalha em casa está vivenciando mais o dia pontuado sobre o qual falamos com pessoas que têm escalas flexíveis.

Enquanto isso, trabalhadores essenciais são basicamente apenas para serem sacrificados. E há também um número enorme de pessoas desempregadas cujas vidas são, no entanto, dominadas pela busca por trabalho e pela preocupação de que não o encontrarão. Então, há novamente muita desigualdade em como a vida profissional das pessoas é organizada em todo o espectro de classes.

O problema do excesso de trabalho afeta pessoas em todo o espectro, e não deixa ninguém em melhor situação além dos capitalistas que lucram com o trabalho. Que tipos de coisas podemos fazer para diminuir o número de horas que trabalhamos?

As pessoas precisam, antes de tudo, de mais controle sobre as horas que trabalham, o que requer ter mais controle sobre as condições do trabalho em geral. E a melhor maneira de garantir isso é por meio de um sindicato ou algo parecido. Então essa é a mudança mais óbvia.

A luta pelo controle também exige que lutemos pelo acesso a serviços básicos. Por exemplo, a maioria das pessoas obtém assistência médica por meio de seu empregador. Muitos sindicalistas relatam que a assistência médica é um empecilho para as negociações sindicais. Eles não podem falar sobre salários, tempo ou segurança porque estão muito ocupados negociando assistência médica. Se tirarmos isso da equação implementando assistência médica pública nacional ou o Medicare for All, a dependência das pessoas em relação ao trabalho diminuirá e a capacidade delas negociarem os termos de seus empregos aumentará.

Além disso, acho que também há políticas pelas quais podemos lutar que são totalmente vencíveis. Poderíamos simplesmente recortar, copiar e colar políticas de outros países onde as pessoas trabalham menos e vivem vidas mais felizes, políticas que nos permitiriam tirar mais tempo de folga para a saúde, para o trabalho de cuidado, para férias e assim por diante.

Finalmente, isso é um pouco menos concreto, mas pensamos no tempo como algo muito objetivo, mas isso não é verdade no capitalismo. Empregadores e trabalhadores não pensam no tempo da mesma forma. Em uma economia onde os trabalhadores têm controle democrático sobre seus empregos, o que é, digamos, uma sociedade socialista, o tempo de trabalho seria valorizado de forma muito diferente. Os próprios empregos seriam valorizados de forma diferente, e podemos imaginar que as pessoas descobririam uma maneira mais saudável de encaixar o trabalho em suas vidas.

 

Guerras Comerciais

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O comércio internacional passou por grandes transformações nas últimas décadas, inúmeras nações atrasadas, produtoras de produtos primários de baixo valor agregado, ganharam relevância no cenário global e se transformaram em grandes atores produtivos, ganhando escala e produtividade no mercado mundial, melhorando suas estruturas econômicas, diversificando a produção, consolidando suas instituições, ganhando espaço geopolítico, levando ao enriquecimento e melhorando as condições de vida da população, um verdadeiro milagre impulsionado pelo comércio.

As trocas comerciais entre as nações impulsionam o crescimento das economias, aumentando a geração de renda, melhorando o salário da população, fortalecendo o consumo interno, aumentando as receitas tributárias dos governos nacionais e contribuindo diretamente para a melhora das condições de vida da população, levando a sociedade a investimentos em infraestrutura, levantando escolas, universidades, centros de pesquisas, hospitais e consolidando o capital humano, dando um impulso para o desenvolvimento econômico.

No século XX, os Estados Unidos foi o grande pioneiro do desenvolvimento econômico, comercializando com todas as regiões do globo, diversificando sua estrutura produtiva, incrementando a produtividade, investindo fortemente em pesquisa científica e tecnológica, expandindo seus domínios econômicos para o espaço e se destacando nas mais variadas áreas do conhecimento, se transformando na nação hegemônica, dotada de grandes oportunidades e a mais admirada, ao mesmo tempo, a mais temida do cenário internacional.

Depois dos anos 1990 as nações asiáticas passaram a ganhar espaço dos Estados Unidos no cenário global, incrementando um embate que perdura há muitas décadas, inicialmente o confronto foi com o Japão e, posteriormente, foram os chineses, de longe o maior desafio para a sociedade norte-americana. A ascensão da China representa um concorrente jamais visto, afinal, estamos falando da maior estrutura comercial do mundo, responsável por um setor industrial que produz mais de US$ 4 trilhões e detém um superávit comercial de mais US$ 1 trilhão, um valor inimaginável.

Percebendo a ameaça chinesa, a “nova” administração dos Estados Unidos vem incrementando políticas para diminuir a dependência do concorrente asiático, espalhando tarifas comerciais, impondo proteção a empresas nacionais, ameaças generalizadas e represálias agressivas a empresas chinesas. Neste pacote de variadas políticas protecionistas, muitos aliados estão sendo taxados, gerando graves constrangimentos diplomáticos, tais como vizinhos tradicionais, como o México, Panamá e Canadá.

Neste embate para retomar a liderança global, os Estados Unidos da América vêm perdendo espaço na sociedade global, antes era visto como o líder inconteste da sociedade global, hoje sua atuação está sempre gerando conflitos e constrangimentos, estimulando guerras e destruições, difundindo agressões, rancores e ressentimentos, além de uma atuação titubeante, imatura e sempre visando seus interesses particulares, deixando de ser um farol da civilização e se transformando num espaço de degradação moral.

Num ambiente de grandes desafios climáticos, preocupações com problemas energéticos e do aquecimento global, além de grandes conflitos militares que crescem em todas as regiões do globo, precisamos repensar a governança global e fortalecer os laços políticos e sociais entre as nações, criando instrumentos de integração e interdependência, rechaçando todas as medidas unilaterais e individualistas adotadas pelo “novo” governo norte-americano, afinal, a história recente nos mostra que esse unilateralismo nos leva a grandes destruições, agressividades e devastações civilizacionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

Todos perdem com guerra comercial de Trump, por FSP

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Medida que aumenta tarifas sobre importações de Canadá, México e China pode impactar mercado de trabalho e inflação

Folha de São Paulo, 02/02/2025

Com sua retórica beligerante costumeira, Donald Trump instituiu a primeira medida que pode gerar uma guerra comercial com grande impacto para a economia mundial.

Sem distinguir entre aliados e adversários, o presidente dos Estados Unidos decidiu impor tarifas de 25% sobre as importações do México e do Canadá —com exceção de energia, que será taxada em 10%.

Também haverá tarifas de 10% para importações da China, em adição às cobranças já vigentes, que abrangem certas categorias de produtos.

Juntos, os três perfazem 43% das importações americanas, o equivalente a US$ 1,3 trilhão (em torno de 4,8% do PIB).

A alta das taxas com essa abrangência fará com que a cobrança média sobre todas as importações passe de cerca de 3% para quase 11%, acima da tarifa linear de 10% proposta por Trump durante sua campanha eleitoral.

As justificativas alegadas não são apenas econômicas. Ao invocar poderes emergenciais, Trump mencionou o fluxo ilegal de imigrantes e drogas, em especial os opioides traficados por cartéis mexicanos com componentes obtidos na China. No caso do Canada, haveria evidência de aumento do tráfico pela maior fronteira não vigiada do mundo.

Trump faz valer, assim, sua obsessão com tarifas, que prometeu usar mais amplamente como arma, e não somente para conter o déficit comercial do país, de quase US$ 1 trilhão anual. Na melhor das hipóteses, as medidas podem ser revertidas após negociações, mas os riscos são grandes.

No caso dos vizinhos, há gigantesca assimetria. Ambos destinam quase 80% de suas exportações aos EUA, o que representa 22% do PIB do Canadá e 35% do PIB do México. Já as compras feitas pelos EUA dos dois países somam 4% do PIB americano.

Mesmo assim, o Canadá já anunciou a mesma cobrança sobre cerca de US$ 106 bilhões em bens que importa dos EUA. A China foi mais contida, prometendo levar o caso à Organização Mundial do Comércio, mas não se descarta uma reação mais dura. O México tem a posição mais frágil.

De todo modo, também haverá custos para os EUA. Mesmo com diminuta representação no PIB, as compras americanas são grandes em setores considerados críticos, como o automotivo.

A inviabilização de um pedaço da cadeia produtiva é capaz de produzir reação cumulativa que custará empregos para a população americana. Não se devem descartar efeitos recessivos.

Projeta-se ainda um impacto inflacionário, algo que pode ser contraproducente para Trump. A alta nos preços de alimentos e gasolina, afinal, foi uma das explicações para a derrota eleitoral do Partido Democrata.

Por ora, o republicano não parece se importar e acredita que seu método agressivo pode trazer vitórias imediatas. Mas o uso repetido de tarifas e da coerção pode afastar aliados e, ao longo do tempo, enfraquecer a liderança global já combalida dos EUA.

 

Classe média foi esmagada pela política? por Michael França

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Enquanto arca com impostos, ela sente que recebe pouco em troca

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 04/02/2025.

O que são políticas públicas? Elas são instrumentos para corrigir as disparidades nos pontos de partida ou devem ser utilizadas para reforçar as vantagens daqueles que já largaram à frente? No cerne da discussão está o dilema sobre se elas devem funcionar como um vetor de mudanças ou apenas manter a ordem vigente. No final, elas são reflexos de escolhas. Escolhas tanto políticas quanto ideológicas. Escolhas que determinam quem deve ganhar e quem deve perder.

Essas escolhas se materializam em decisões. Cada orçamento que aprovamos carrega consigo uma mensagem. Se priorizamos o investimento em segurança para proteger propriedades privadas mas negligenciamos escolas públicas, estamos dizendo que proteger coisas é mais importante do que investir no potencial humano. Quando optamos por subsidiar grandes corporações em vez de garantir saúde de qualidade, estamos declarando que o lucro é mais valioso do que a vida.

Tal hierarquia de prioridades reflete mais do que simples decisões administrativas, pois expõe a essência de nossos valores e nossas omissões. No Brasil, muitas políticas surgem para atender às mais variadas demandas, mas frequentemente ignoram os problemas centrais. A proliferação de programas desarticulados e sem avaliação levanta a questão: estamos realmente avançando no combate à pobreza e à desigualdade?

Bem, não podemos ser fatalistas. O país conquistou avanços desde a redemocratização. Programas como o Bolsa Família, a ampliação do acesso à educação básica e as políticas de saúde pública, como o SUS, trouxeram benefícios. Reduzimos a pobreza extrema e conseguimos, em alguns momentos, diminuir as desigualdades. No entanto, poderíamos ter avançado muito mais rapidamente se houvesse um projeto de desenvolvimento consistente.

O desafio não está apenas em combater a pobreza, mas em reformular as estruturas que a sustentam. Em vez de implementar políticas públicas integradas para limitar fatores externos que impedem o desenvolvimento dos indivíduos, a classe política frequentemente opta pela fragmentação e ineficiência, reforçando ciclos de privação. A incapacidade de integrar soluções sistêmicas perpetua a pobreza, tornando a mobilidade social uma exceção, não a regra.

Por outro lado, continuamos alimentando a concentração de riqueza com políticas que beneficiam desproporcionalmente os mais ricos, seja por meio de subsídios fiscais e benefícios tributários seletivos, seja com gastos públicos que privilegiam o topo da pirâmide.

Nesse cenário, a classe média sente o peso da omissão. Sem o amparo de benefícios sociais voltados às camadas mais pobres e distante dos privilégios fiscais e políticos das elites, ela sente o peso de um Estado que parece exigir muito, mas entregar pouco. Essa desconexão gera uma insatisfação difusa, mas crescente. O descontentamento se traduz em desaprovação política, além de alimentar a corrosão do atual pacto social, abrindo ainda mais espaço para soluções populistas que apenas aprofundam o problema.

 

Cenário turbulento

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O retorno de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos da América gerou graves acanhamentos para a sociedade internacional, com a adoção de medidas unilaterais, ameaças generalizadas, taxações crescentes, chantagens variadas, saída de organismos multilaterais, conflitos com aliados históricos e deportações em massa de imigrantes ilegais, todas estas medidas criaram graves constrangimentos para a sociedade mundial, podendo levar a um isolacionismo norte-americano que impacta negativamente sobre o comércio global, ainda mais, quando percebemos que a economia mundial, desde o incremento da globalização, se integrou em cadeias produtivas, onde a produção de mercadorias, bens e serviços estão divididas em variados países e regiões, uma nova forma de divisão internacional do trabalho.

O furacão Donald Trump pode gerar conflitos generalizados em todas as regiões do globo, afinal os Estados Unidos comercializam com todas as regiões do mundo, importando e exportando bens e serviços para muitas nações. Se as políticas adotadas pelo “novo” governo dos Estados Unidos prejudicarem de forma variada outros países, estas nações, com certeza, retaliarão as políticas norte-americanas, gerando maiores incertezas no comércio global, aumentando os preços internos, incrementando a inflação e levando a Autoridade Monetária a aumentarem as taxas de juros como forma de controlar os preços e evitar um processo inflacionário que poderia desequilibrar o sistema econômico e produtivo.

No caso brasileiro o impacto é imediato e preocupante, a elevação dos Juros nos Estados Unidos absorve grandes estoques de dólares na economia mundial, desvalorizando as moedas nacionais e imediatamente os Bancos Centrais, como o brasileiro, aumentará seus juros internos para evitar uma fuga de dólares, com o incremento dos juros internos a economia tende a atrair recursos especulativos, estimulando os ganhos fáceis de poucos agentes econômicos, fortalecendo o rentismo, aumentando o endividamento dos Estados e aumentando a cobrança dos financistas que exigem uma redução dos dispêndios sociais, vislumbrando o pagamento de juros estratosféricos arbitrados pela Autoridade Monetária.

Com menos de dez dias na presidência dos Estados Unidos, Donald Trump gerou preocupações com todos os imigrantes ilegais, deportando de forma violenta cidadãos de outras nações, gerando constrangimentos diplomáticos com países menores e mais frágeis politicamente, gerando revolta, ressentimentos e insatisfação com essa política de deportação agressiva. Essas medidas unilaterais podem levar muitas nações a bandearem para o lado dos chineses, aprofundando as relações comerciais e geopolítica com o maior concorrente dos Estados Unidos, levando os norte-americanos a um possível isolacionismo político e comercial que podem fragilizar os fluxos de comércio entre as nações, estimulando o crescimento do protecionismo, além de aumentar as taxações de produtos externos, gerando um verdadeiro caos econômico e produtivo, afinal a economia global se estrutura na interdependência e na integração entre as nações.

Além das posturas beligerantes nas questões de deportação em massa de imigrantes ilegais, as ameaças ao vizinho México, a anexação da Groenlândia e do Canadá geraram incertezas e preocupações, para piorar o cenário, o “novo” governo norte-americano abandonou organismos tradicionais, como Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Acordo de Paris, enfatizando um unilateralismo e uma imaturidade que nada auxilia na resolução dos grandes desafios da sociedade mundial, na verdade aprofunda um caos que serve para interesse de poucos em detrimento da maioria.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comoção seletiva, por Salem Nasser

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Salem Nasser – A Terra é Redonda – 18;01;2025

O que é preciso para que alguém veja, enxergue, um genocídio em curso?

À clássica pergunta, sobre se faz barulho a árvore que cai sem que haja ali alguém por testemunha, eu sempre respondi com a afirmativa, não sem um traço de irritação. Incomodava-me a presunção de que o som só se produzisse para ouvidos humanos; era, para mim, uma manifestação do nosso antropocentrismo soberbo.

Se alguém estiver por perto enquanto cai a árvore, os seus sentidos serão tocados pelo maior ou menor espetáculo, pelo som estrondoso ou delicado, pela visão da queda que começa lenta e logo acelera, pelo tremor do chão… E logo talvez emerja alguma emoção, diante da experiência de assistir, por exemplo, ao fim de um ser vivo… E, finalmente, talvez nos ocorra refletir, sobre a inevitabilidade da morte, ou sobre desertificação e mudanças climáticas… Talvez decidamos, inclusive, fazer algo a respeito.

Se, no entanto, diante da queda, concomitante ou não, de duas árvores diferentes, um mesmo observador só ouvir o ruído de uma delas, só enxergar a queda de uma delas, e só se deixar emocionar e logo refletir diante de um dos dois fenômenos, a explicação para essa “cegueira relativa” precisa ser buscada no ser humano que é esse observador, e no meio social em que ele está inserido.

Voltemos agora: o que é preciso para que alguém enxergue um genocídio em curso ou, inversamente, para que alguém deixe de enxergar um genocídio em curso?

Sei que o exemplo do genocídio é extremo e que haveria muitas coisas entre isso e a queda de uma árvore que poderiam servir à reflexão sobre a cegueira e sobre a seletividade de nossos sentidos e de nossas emoções. Ocorre, no entanto, que, no momento em que escrevo, há de fato um genocídio em curso e pouca gente parece disposta a ver! E mais, se eu puder sustentar meu argumento para o genocídio, esse fenômeno que, em princípio, deveria se impor aos sentidos e às emoções de todos, assim como a todas as consciências vivas, então sua relevância estará provada para todas as demais coisas.

É difícil conceber um observador que seja ou tenha sido testemunha direta de dois processos de sistemática destruição de povos, ainda que eles possam existir, como sendo o nosso observador típico. Para entendermos o fenômeno para o qual quero apontar, é preciso ter em mente o observador a quem chegam as notícias dos eventos, as narrativas, as imagens, os textos, os filmes, as análises.

É óbvio, por isso, que, se quisermos entender a relatividade ou a seletividade das percepções e dos julgamentos, precisamos combinar aquilo que está no próprio ser humano socialmente localizado com o que está, ou deixa de estar, nas narrativas que chegam até ele.

As narrativas podem ser diversas e podem estar em competição, mas nem a multiplicidade nem o conflito são imediatamente perceptíveis como tal para o observador médio. De algum modo, parece haver uma tendência a que algumas narrativas ganhem curso livre e sejam vistas como sendo as “naturalmente verdadeiras”, ao mesmo tempo em que as alternativas sejam percebidas como marginais, divergentes, merecedoras de menor crédito.

Em minha experiência pessoal, a existência de narrativas em competição pela prerrogativa de representar o que seria a verdade se fez constatar muito cedo e se tornou uma preocupação central e permanente. Diante de grandes acontecimentos da vida internacional, revoluções, guerras, intervenções, eu invariavelmente encontrava duas narrativas opostas que se pretendiam exclusivamente verdadeiras: uma circulava nos jornais e nos noticiários televisivos – e logo entre professores e colegas de escola, além dos clientes da loja e os transeuntes – e outra dominava o ambiente familiar e comunitário. Por vezes, não bastavam duas narrativas, já que nada impedia o vizinho e o seu grupo de terem a sua própria verdade.

Muito cedo eu percebi que era possível transformar o herói em vilão, o algoz em vítima, e vice-versa, que era possível arbitrar o começo e o fim das histórias, que se podia inverter razões e consequências. Isso tudo era problemático para quem ainda tinha alguma ilusão sobre a existência de verdades objetivas.

Mas era mais problemático ainda o efeito que têm as narrativas divergentes sobre a localização da justiça.

É assim que, gradualmente, os temas correlatos, das narrativas em competição, e daquelas naturalizadas, da cegueira seletiva e da comoção seletiva foram se tornando naquilo que eu poderia chamar de “minha grande questão”.

Alguns acidentes foram contribuindo para que as expressões se consolidassem em meu espírito e se relacionassem entre si. Primeiro, quando dos ataques ao jornal satírico francês Charlie Hebdo eu quis reagir em texto e resolvi que o título deveria ser “Comoção Seletiva”. Muitas coisas trágicas aconteciam naqueles dias, uma guerra absurda na Síria, atentados no Egito, na Tunísia, no Niger, refugiados naufragando e aparecendo mortos nas praias. Nada, no entanto, podia competir, em comoção sentida e expressada, com os ataques ao Charlie Hebdo.

Um belo dia, resolvi recolher textos escritos por mim e publicados ao longo de dois ou três anos, e resolvi que o melhor nome para a coletânea seria “Comoção Seletiva”. Entre os artigos, mais de um faziam referência a Edward Said, à sua preocupação com as narrativas e as representações do outro, um outro a quem não se permite o privilégio de contar a si mesmo, e também à sua referência à cegueira específica de grandes intelectuais e de grandes humanistas, que viam tudo, ou quase tudo, mas eram incapazes de enxergar os palestinos como um povo e a sua tragédia como uma grande injustiça histórica.

Um bom amigo, editor, leu com grande generosidade os textos e me disse que o conjunto podia muito bem se chamar “Cegueira Seletiva” e que isto seria talvez mais apropriado.

Sou, portanto, devedor, em relação aos amigos, aos acidentes e às trocas que vão sedimentando em nós as ideias que pensamos ter.

E não há dúvidas quanto à inspiração “Saidiana” das minhas reflexões. A ideia de um Ocidente que guarda para si a prerrogativa de representar o outro, o oriental ou, de modo geral, o não-ocidental, é um achado de extrema potência. Ela carrega em si a imagem das narrativas em competição, das narrativas naturalizadas, das narrativas impossíveis.

Um pequeno desvio, para referir a impossibilidade de contar, de fazer ouvir a própria voz: se eu soubesse desenhar, eu produziria um palestino que conta a sua história contra uma forte ventania; o vento empurraria as suas palavras para trás do orador e ninguém o poderia ouvir a imagem do cego que tudo vê menos a questão Palestina, apesar de parecer mais banal, emerge para mim como especialmente assustadora, por ser um caso muito particular e específico de seletividade e por acometer pensadores críticos que, em princípio, têm preocupação genuína com os temas da justiça, do poder… Basta dizer que entre os exemplos listados por Edward Said estão nomes como os de Isaiah Berlin e Michel Foucault.

Sei, é claro, que o adjetivo “seletiva” que faço acompanhar a cegueira e a comoção pode carregar o sentido de uma seletividade voluntária, proposital, consciente. Interessa mais, no entanto, a ocorrência dos pontos cegos e dos vieses, da visão e dos sentimentos, enquanto fenômeno involuntário, enquanto movimento natural, por assim dizer.

É claro que, enquanto buscamos as razões paro que vemos e para o que não vemos, e enquanto buscamos entender o processo de naturalização de narrativas dominantes, e olhamos para o observador, para a sociedade em que está inserido e para o modo como chegam até ele as narrativas, não podemos descartar a possibilidade de que os resultados, a cegueira e a naturalização, decorram de uma intenção que não está no observador. Não se pode descartar a possibilidade de um processo controlado.

Noam Chomsky, um interlocutor longevo de Edward Said, é um dos principais pensadores a tentar revelar o processo através do qual detentores de poder produzem consenso e o papel que a mídia desempenha nessa construção.

E foi justamente em Noam Chomsky que encontrei um conceito aparentado com minhas preocupações em torno da seletividade das nossas percepções e sobre o caráter dominante de alguns mecanismos produtores de narrativas. Em certa ocasião, ouvi Noam Chomsky dizer que a ideia de que havia liberdade no campo do debate político nos Estados Unidos era uma ilusão. Apesar da aparência de total liberdade, quem observasse com cuidado veria que as margens dentro das quais era possível discordar estavam claramente desenhadas. Quem quisesse desafiar essas margens não seria necessariamente calado, mas estaria condenado a falar para os muito poucos, os marginalizados, os excluídos do mercado principal de ideias.

O conceito que encontrei, relacionado a esse universo de argumentos, é o da “Janela de Overton”. Concebida por um cientista político, a janela em questão expressa a ideia de que, contrariamente ao que se poderia esperar, os atores políticos não agem como portadores de opiniões políticas próprias que submetem à consideração do eleitorado; eles, na verdade, ajustam o seu discurso ao espaço político que percebem presente no lugar e no tempo. A janela e os bordes do discurso e do debate possíveis estão dados.

A pergunta inescapável, para a qual só se pode ter respostas tentativas, é esta: em que medida é natural, espontâneo, o processo pelo qual se desenham as fronteiras e os limites, e em que medida é possível que alguém determine as margens e as ideias que podem circular entre elas?

Ao pensar nisso, sempre tive tendência a visualizar, como exemplo definitivo da verdade da tese, o fato de que é praticamente impossível defender o comunismo e ser ouvido nos Estados Unidos, quanto mais participar da vida política do país. Hoje um exemplo mais atual seria o da impossibilidade de ser uma voz dissonante em relação à defesa de Israel.

Isso tudo nos coloca diante de um conjunto de questões existenciais de difícil resposta: quanto apreendemos da realidade que nos circunda, e quanto do que percebemos é de fato realidade? É possível falar em verdade, e é possível conhecer alguma verdade?

Sei que deve haver limites para as referências que se faz à cultura popular se fizermos questão de preservar alguma respeitabilidade, mas assumo aqui um risco calculado. Tenho em mente o dilema que domina o filme Matrix: em que medida vivemos uma ilusão, ou uma mentira, construída por um arquiteto que nos é desconhecido, e que só pode ser enfrentada mediante o custo de uma vida clandestina nos subsolos sombrios, de trapos por roupas e mingau insosso por única comida?

Não se trata de uma falsa pergunta. Nesta nossa vida concreta, quais são as reais possibilidades de desafiarmos as narrativas dominantes? Com que chances de sucesso? Mediante que preço?

Ocorreu-me recentemente que, assim como não posso acreditar no que dizem ver aqueles grandes espíritos que apenas não veem a tragédia palestina, me vejo forçado a colocar em questão a história oficial dos grandes eventos do passado já que, diante dos grandes eventos da história presente, eu vejo que se está construindo hoje, sob meu olhar, as narrativas ficcionais que servirão de história oficial no futuro.

Tenho em mente, quando digo isso, dois grandes processos que ao mesmo tempo ilustram os fenômenos das narrativas naturalizadas, da cegueira seletiva e da comoção seletiva, e revelam a face verdadeira de um Ocidente que ainda pretende reservar para si o privilégio exclusivo de representar o outro e o mundo, para si e para o mundo.

Refiro-me à guerra na Ucrânia e à guerra na Palestina (este segundo é um nome genérico que engloba o genocídio em curso que vitima a população de gaza, mas também compreende as ações armadas que se estendem para além da Palestina e envolvem outros atores). A concomitância dos dois eventos é especialmente relevante porque permitiu a descoberta dos diferentes pesos e medidas mobilizados na construção das narrativas e presentes na comoção pretensamente sentida.

Assim como podemos questionar os processos de apreensão da realidade e duvidar das possibilidades de alguma verdade, cabe apontar para a seletividade da nossa comoção, do nosso ultraje, da nossa revolta, diante do que percebemos como injusto ou como desumano.

No limite, assim como nos perguntamos se estamos inseridos em toda uma vida ficcional, podemos também nos perguntar se sentimos de verdade. Se cada um de nós, enquanto indivíduo, consegue identificar as instâncias em que, por exemplo, nossas emoções e nossas capacidades empáticas são mobilizadas diante do sofrimento de uma criança, e as instâncias em que o sofrimento de uma outra criança nos deixa indiferentes.

A nossa comoção, quando acontece, é genuína, ou pelo menos pode ser – não tenho em mente os que fingem e mentem. Na medida em que se manifesta seletivamente, no entanto, podemos duvidar do que deveria ser a sua conexão com a injustiça, com o sofrimento, com um senso de humanidade. Isso tudo se impõe a nós quando nos referimos à comoção que se manifesta no indivíduo.

É importante notar, no entanto, que muitas vezes falamos de comoção seletiva ou de conceitos equivalentes, atribuindo essa seletividade de pesos e medidas, e de sentimentos, a instituições, a Estados, a organizações internacionais, a tribunais… Isso é especialmente verdadeiro em circunstâncias como as que referi acima, guerras, genocídios, crimes de guerra e contra a humanidade…

Dizemos, então, que Estados Unidos, França, este ou aquele outro Estado, a ONU, o Tribunal Penal Internacional, fazem prova de comoção seletiva. Sabemos, é claro, que esses entes são desprovidos de sentimentos, e que, em princípio, ao menos, as pessoas que falam e agem em nome dessas instituições são sim capazes de sentir. A confusão, e a imprecisão com que nos referimos ao comportamento dos Estados e de outros entes, decorrem, ao menos em parte, do fato de que quem se manifesta em nome deles, apesar de ter em mente razões exclusivamente políticas, se coloca enfatizando argumentos de natureza moral, afirmando o amor à justiça e à humanidade.

Para um observador mais atento, fica evidente a inconstância dos valores afirmados, a sua contradição com os comportamentos, a seletividade com que são aplicados. Para todos os demais, mais uma vez, o apagamento das contradições e da seletividade fica por conta de narrativas bem construídas e naturalizadas, narrativas que não revelem os seus próprios furos de enredo e que não permitam qualquer memória de mais longa duração.

Como sugeria acima, a coincidência no tempo das guerras na Ucrânia e na Palestina nos fornece uma oportunidade única na revelação da verdadeira natureza do jogo. E isso porque a parte do mundo que alguns hoje chamam de Ocidente Coletivo ou Norte Global – ou seja, Estados Unidos e seus aliados – se sentiu forçada a caminhar concomitantemente em duas direções contrárias, e mais, a ir ao extremo nas duas direções: ao mesmo tempo demonizar a Rússia e justificar as ações criminosas de Israel.

É nesse sentido que se pode dizer que neste momento histórico caíram as máscaras. E não se pode subestimar a potência desse fato. Enquanto caem as máscaras do Ocidente, não são apenas os rostos dos atores individuais que se revelam; este é antes o anúncio do possível desfazimento do sistema internacional, criado por esse Ocidente à sua imagem e semelhança, e das suas instituições.

O sistema tinha, segundo nos é dito, pretensões de universalidade, mas as várias seletividades para as quais eu vim apontando negam qualquer verdade dessa pretensão. Perceba-se, olhando para os eventos recentes no seio da ONU e de outras organizações internacionais, assim como nos tribunais internacionais, como as estruturas institucionais ameaçam ruir diante da tensão entre sua orientação principiológica pelo universalismo e a dificuldade de agir contrariamente aos interesses de seus criadores.

O caso da Palestina talvez sirva como nenhum outro a ilustrar os temas da cegueira seletiva, da comoção seletiva, das narrativas dominantes e naturalizadas e da crise do sistema internacional montado sobre um conjunto de narrativas avançadas pelo Ocidente.

Antes de ser uma instância de uma narrativa dominante, a Palestina é um lugar, geográfico, mental e simbólico de muitas e diversas narrativas, a bíblica, enquanto coração dos monoteísmos, a histórica e geográfica, enquanto parte do coração do mundo e do berço das civilizações, a bíblica ressuscitada na Europa protestante e no sionismo europeu, a colonial dos grandes impérios que dividiam entre si o mundo…

Depois de mais de cem anos de uma Questão Palestina que poderia ser narrada enquanto uma luta de resistência de um povo que quer preservar o seu território e a sua identidade, a narrativa que impera soberana é outra: havia antissemitismo na Europa e havia pogroms violentos que vitimavam os judeus europeus; isso se combinava com uma longa história de perseguições contra o grupo; por conta disso, chegou-se à conclusão de que o grupo só estaria seguro se tivesse um Estado para si; levando em conta o relato bíblico, o estabelecimento desse Estado na Palestina histórica seria como uma volta para a casa prometida por Deus; o genocídio dos judeus europeus durante a segunda guerra mundial só confirmava a tese; o território da Palestina não teria um povo e os palestinos não seriam um povo; antes de Israel, tudo era atraso, e depois, tudo progresso; todas as guerras foram culpa dos árabes e estes só perderam territórios porque não aceitaram os acordos; que hoje o justo seria uma solução de dois Estados em que a Palestina seria algo menos do que soberana…

O que não aparecia, antes desta guerra em que, como se disse, muitas máscaras caíram, na narrativa, era a realidade da ocupação do território destinado a ser a Palestina, em princípio, de acordo com o pretenso consenso, era a realidade do sistema de segregação e de apartheid, era a realidade da limpeza étnica.

Esses aspectos da realidade eram, para quem quisesse olhar, indiscutíveis. E, no entanto, ninguém queria ver; ninguém queria pagar o preço de sustentar narrativas que revelassem essa verdade; e parecia que ninguém estava disposto a se deixar comover.

Que mistério será esse? Eu proponho a seguinte chave, se não para desvendar definitivamente o enigma, pelo menos para iluminar um pouco o nosso caminho. Sinto que, na verdade, apesar da profusão de narrativas que tentam provar o contrário, não nos afastamos tanto assim do Século XIX.

Essencialmente, a Questão da Palestina pertence ao tempo em que o Ocidente dito civilizado se permitia a dominação e a exploração dos não-ocidentais, bárbaros. É um caso típico de colonização por assentamentos e por substituição de população. Em parte, então, é porque as vidas dos bárbaros não valem o mesmo que as dos civilizados que não são ou não precisam ser vistas, não merecem uma narrativa que as conte e que as valorize, não nos fazem sentir e muito menos agir. Mas essa é parte da razão, não é toda ela. Há certamente mais. Quem ousa contar o resto?

Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina).

 

Onde erramos?

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As mudanças na sociedade contemporânea criam sentimentos variados, de um lado, encontramos grupos eufóricos com o desenvolvimento da tecnologia, novos modelos de negócios e grandes descobertas científicas, com ganhos para os seres humanos. De outro lado, percebemos uma desesperança que nos geram grandes preocupações pelo crescimento assustador da pobreza, ascensão da desigualdade, incremento dos conflitos militares e o aumento da exclusão, afinal mais da metade da população global vive em condições indignas, sem perspectivas, sem oportunidades, sendo obrigados a se entregarem a ocupações precárias e insalubres, com isso, percebemos uma perpetuação da indignidade dos indivíduos. Neste cenário, poderíamos destacar uma questão que nos aflige: onde erramos como seres humanos?

Ao analisarmos as visões destes dois grupos, percebemos que ambos estão corretos em suas análises, vivemos num momento de grande desenvolvimento das tecnologias, com potencial para melhorarmos as condições de vida dos seres humanos, mas para que isso aconteça, a contento, precisamos encontrar um ponto de equilíbrio nestas percepções. Os avanços do conhecimento científico é um ativo fundamental da civilização e deve melhorar as condições de vida das pessoas e das comunidades, não apenas para uma pequena parte dos indivíduos, afinal, estamos vislumbrando uma situação marcada por um grande distanciamento dos grupos sociais, uns muito ricos e poderosos, dotados de grande poder material e, ao mesmo tempo, uma legião de miseráveis degradados e sem perspectivas palpáveis de melhoras, culminando, certamente, em uma verdadeira guerra civil.

Estamos caminhando a passos largos para a metade do século XXI e as discussões são primitivas, estamos questionando valores que nos definem como civilização, estamos deixando de lado o combate aos preconceitos, deixando de defender o clima, promover a inclusão social e a diversidade, assuntos prioritários estão sendo colocados em segundo plano. No lugar, estamos nos concentrando em assuntos desnecessários e desconexos, defendendo privilégios de terceiros que pouco trazem de positivo para a sociedade, estamos perdendo tempo visualizando fake News e as divulgando para acreditar que somos conscientes politicamente, defendendo brutalidades e acreditando que isso resolve o problema da segurança pública, além de defender uma falsa liberdade de expressão que serve apenas para gerar uma sociedade alienada, ignorante e facilmente dominada.

Precisamos estimular discussões mais sólidas e maduras, afinal, num mundo de constantes transformações estamos ficando, cada vez mais atrasados, sem espaços e sempre dependentes tecnologicamente, constantemente escravos das novas tecnologias, máquinas e equipamentos que compramos a preço de ouro e nos descrevemos como empreendedores e inovadores, será mesmo?

Precisamos repensar os pactos de mediocridades que cultivamos todos os anos, precisamos compreender que para nos transformarmos numa nação civilizada necessitamos incluir a nossa população, dando oportunidade e chance de ascensão social, investindo fortemente em capital humano, diversificando nossa pauta produtiva e deixando de fomentar o rentismo que perdura nos primórdios da sociedade.

Para respondermos à pergunta inicial precisamos saber o que queremos no futuro: será que queremos cultivar a desigualdade e a exclusão que caracterizam a sociedade brasileira? Muitos querem, estão satisfeitos com a situação que vivenciamos, agora, para aqueles que estão preocupados, precisamos rever as discussões desnecessárias e equivocadas que dominam a sociedade, precisamos rever prioridades, garantir direitos básicos, como água potável, saúde, educação e alimentação. Em suma, o direito a uma vida digna.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Por que não superamos o trabalho escravo? por Raíssa Araújo Pacheco

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Raíssa Araújo Pacheco – Blog da Redação – 22/11/2024

Livro da Editora Unesp analisa como a exploração forçada e trabalhos análogos à escravidão são pilares do capitalismo brasileiro. Para o autor José de Souza Martins, tal forma é parte essencial da reprodução desse sistema econômico.

Desde o fim do século XIX, o Brasil se orgulha de ter abolido a escravidão, com a promulgação da Lei Áurea, em 1888. No entanto, já não é novidade que a abolição não significou exatamente liberdade e boas condições de vida para os ex escravizados, formas disfarçadas de escravização continuam a existir, revelando a complexidade e a persistência dessa questão histórica.

Frequentemente nos deparamos com notícias denunciando trabalhadores em situações precárias e desumanas. Em setembro de 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que mais de 27 milhões de pessoas no mundo ainda viviam em condições análogas à escravidão, sendo 4 milhões delas localizadas nas Américas.

O sociólogo José de Souza Martins, em sua obra Capitalismo e Escrevidão na Sociedade Pós-escravista, lançada pela Editora Unesp, examina a escravidão contemporânea não como um resquício do passado, mas como um componente estrutural do capitalismo brasileiro, cujas raízes atravessam séculos de desigualdade e exploração.

“Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.”

– trecho retirado da introdução de Capitalismo e Escravidão na Sociedade Pós-escravista.

No livro estão reunidos uma série de artigos independentes, mas conectados por uma observação sociológica e interpretativa em comum.

Com base em uma rigorosa análise sociológica, Martins reflete sobre a relação entre o capitalismo subdesenvolvido e a continuidade da escravidão. Para ele, o trabalho forçado não é um anacronismo, mas sim uma peça fundamental para a reprodução do sistema capitalista.

Ao explorar as contradições dessa estrutura econômica, o autor revela como o trabalho escravo se perpetua, sendo peça chave para maximização dos lucros, especialmente em áreas onde o Estado é ausente ou ineficaz.

Ademais, na visão de Martins, a questão fundiária é essencial para compreender a realidade brasileira. “O capitalismo brasileiro levou mais de um século para se tornar um capitalismo de capital subsumido pela renda fundiária e subsidiado pelo Estado. E constitutivamente subsidiado por formas não capitalistas de relações de trabalho, como a da ‘escravidão contemporânea’”, aponta o professor.

A obra de Martins vai além das explicações superficiais sobre o tema, oferecendo uma leitura crítica, aprofundada e embasada sobre o funcionamento das relações de trabalho no Brasil e no mundo.

Sua tese, de que a escravidão moderna é uma prática necessária ao capitalismo, desafia noções simplistas e joga luz nas condições socioeconômicas que mantêm essa tragédia viva até os dias de hoje, ressaltando a necessidade de repensarmos as estruturas que sustentam a exploração do trabalho e a distribuição de riquezas.

Raíssa Araújo Pacheco, Redatora do Outros Quinhentos, Formada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta de moradia e direito à cidade.