Mundo ainda não se recuperou de 2008, afirma economista

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Para professor da Universidade de Columbia, a próxima bolha pode estourar na China

Danielle Brant – Folha de São Paulo, 16 de dezembro de 2018.

A próxima crise econômica global pode ser mais devastadora que a anterior, porque os países ainda não se recuperaram da recessão de 2008. A avaliação é de Adam Tooze, professor de história da Universidade Columbia e autor do livro “Crashed: How a Decade of Financial Crisis Changed the World” (Quebrados: como uma década de crises financeiras mudou o mundo, em tradução livre).

Segundo ele, houve uma recuperação desigual da crise. “Você poderia citar a experiência americana, em que a recuperação econômica da crise foi vigorosa”, diz. Na Europa, muitos países ainda estão em situação frágil, e os emergentes ainda lidam com os efeitos colaterais das medidas que os bancos centrais tomaram para conter a recessão, continua.

Tooze relaciona ainda a crise com a ascensão de uma onda conservadora que teve reflexos inclusive no Brasil.

“Não há uma fórmula simples que traduza crise econômica em resultado político”, diz. “O Brasil é um exemplo extraordinário disso. Ninguém diria 12 meses atrás que o Brasil estaria onde está hoje.”

O senhor está no grupo dos que previram a crise? Eu não diria que previ a crise. Como muitas pessoas, eu achava que havia desequilíbrios na economia americana, déficit dos EUA, da China também, mas eu não antecipei a crise. Eu estava escrevendo um livro sobre Primeira Guerra Mundial e não estava pensando na tecnicidade do sistema bancário. Não foi uma crise como a que temos, cíclica, nunca vimos na história do capitalismo.

É possível comparar com a Grande Depressão de 1929? O resultado da crise de 1929, que terminou em 1933, foi muito pior em termos de desemprego, em colapso dos preços de commodities. Mas, em parte, foi porque não foi administrada, não foi contida. Foi uma doença, como a gripe, que seguiu seu curso sem intervenção médica.

A crise de 2008, a maioria vai concordar, pareceu pior que a de 1929. Em setembro e no início de outubro de 2008, parecia que estávamos vendo o fim do mundo, nunca tantos bancos ficaram em risco ao mesmo tempo, nos dois lados do Atlântico. Todos os bancos europeus e os grandes bancos americanos estavam em risco. Porque parecia tão terrível e porque tínhamos a experiencia da Grande Depressão, medidas foram tomadas quase que imediatamente. Significa que tinha o potencial de ser maior, de ser um desastre maior que a de 1929. Mas não acabou do mesmo jeito. Essa foi a diferença.

A crise de 2008 foi um ataque cardíaco, uma doença pior que a de 1929, mas, dessa vez, tivemos intervenção, o que fez toda a diferença.

Então a intervenção impediu o pior? Sim no que diz respeito a Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, o coração do sistema bancário de 2008. O choque que o Brasil sofreu em 2014 foi muito grave, o choque que Espanha, Grécia, Itália sofreram em 2008 foi extraordinariamente grave. A terapia e a intervenção de que estou falando se aplicam ao centro do sistema financeiro. Na periferia, foi muito menos bem-sucedido.

Sobre o papel dos bancos centrais, você tem alguma crítica à atuação deles? Os bancos centrais fizeram, na crise de 2008, o que era necessário para impedir os bancos de falirem. Houve duas coisas que você podia fazer. Se você tem uma crise de liquidez e o banco não tem dinheiro, o que você tem que fazer é pegar os ativos de longo prazo e dar dinheiro líquido a eles em troca. E eles fizeram isso nos EUA e na Europa. Todos estavam corretos.

E, se você tem um problema de solvência em que o capital do banco não é suficiente, então você tem que fazer recapitalização e oferecer garantia a esses bancos, e os bancos centrais e Tesouros fizeram isso também. No começo da crise, houve uma diferença, o BCE (Banco Central Europeu) reagiu mais devagar que o Fed (o banco central dos EUA), e os bancos e o Fed ofereceram dólares em grandes quantidades para bancos europeus e asiáticos por linhas de swap. Foi um sucesso dos bancos centrais para conter o dano.

Ainda assim, no seu livro, o senhor diz que a gente não se recuperou da crise. Depende de para onde você olha. Você poderia citar a experiência americana, onde a recuperação econômica da crise foi vigorosa, mas não se estende a todas as pessoas na sociedade. As minorias sofreram perdas em sua riqueza que não vão ser recuperadas em décadas. Mas o mercado de trabalho está forte, o desemprego caiu dramaticamente.

Na Europa, a crise, em muitas partes, continuou. A Grécia ainda está numa situação econômica desafiadora, está crescendo agora, a partir de um nível muito baixo. O desemprego na Itália e na Espanha permanece extremamente elevado, especialmente entre jovens. Se olhar no mundo, para os emergentes, nós ainda estamos lidando com os efeitos colaterais das medidas que os bancos centrais tomaram. O Brasil é um dos clássicos. Quando o Fed expandiu a liquidez em dólar, houve uma busca por juros, dinheiro estrangeiro do mundo todo foi injetado no país, parecia um investimento lucrativo. Quando o Fed voltou a elevar os juros, o dinheiro voltou a sair dos emergentes. Essa dinâmica em desdobramento ainda está em processo o tempo todo.

O senhor enxerga uma relação entre a crise e a ascensão do populismo no mundo? Varia enormemente de país para país. Uma forma de pensar é em uma imagem metafórica, você pensa na crise financeira como um terremoto. O impacto que tem nos sistemas políticos ao redor do mundo depende do quão perto eles estão do epicentro do terremoto, de quão sólida sua arquitetura é e depende de como os sistemas políticos foram bem mantidos.

Se olhar no mundo, alguns sistemas políticos estavam com uma grande pressão fiscal, só esperando explodir. Ucrânia e Hungria são países assim, você tem um profundo nacionalismo ressentido, tradições fortes. No caso húngaro, nacionalismo, traços de antissemitismo, ressentimento histórico. O choque de 2008 libera isso em um país como a Noruega.

O efeito na Alemanha é muito mais complexo. O AfD, o partido populista de direita, é produto direto da crise financeira, no sentido de que é uma reação ao esforço de Mario Draghi de estabilizar a zona do euro. Não é sobre a política de refugiados de Angela Merkel, mas sim à aceitação de Merkel da política de fornecimento de dinheiro do BCE. Aí você pega a crise de refugiados para impulsionar o AfD, fica mais complicado.

Se você olha na Espanha ou na Grécia, você não tem a ascensão da direita, mas o que a crise fez foi destruir a credibilidade de partidos de centro-esquerda, como o PSOE, na Espanha, e o Pasok, na Grécia.

Nos EUA, não há dúvida de que o Partido Republicano começou a perder sua coerência no verão [hemisfério Norte] de 2008. Você tem a Presidência Bush apelando ao Congresso por votos que não conseguia receber, John McCain se lançando como candidato a presidente e se recusando a endossar políticas da administração Bush e escolhendo Sarah Palin como sua vice, que é literalmente a antecessora de Donald Trump, como a xerife lunática que representa a política de direita americana.

Em cada país, depende da arquitetura, de como os atores no sistema político escolhem explorar as oportunidades. E de tensões preexistentes.

Não há uniformidade. Não mais do que teve nos anos 1930. Se você pensar na Grande Depressão, você teve o Peronismo na Argentina, o New Deal nos EUA e Adolf Hitler na Alemanha. Todos eles são produto da Grande Depressão.

Não há uma fórmula simples que traduza crise econômica em resultado político. É sempre uma equação complexa, em que tomadas de decisão e iniciativas são adotadas. O Brasil é um exemplo extraordinário disso. Ninguém diria que o Brasil estaria onde está hoje 12 meses atrás.

Uma próxima crise poderia vir dos empréstimos estudantis? Os empréstimos estudantis não são tanto um risco, mas as dívidas de empresas são um risco sério. Os títulos emitidos por empresas americanas com ratings de grau de investimento são elegíveis para compras por fundos de pensão, considerados ativos de alta qualidade. Há um grande problema, com ativos de baixa qualidade sendo considerados como de grau de investimento.

E só o que precisa acontecer é que eles sofram um rebaixamento para não serem mais elegíveis para compra pelos fundos. Aí você vai ter ondas de venda, o que levaria ao problema de queda de preços.

Esse é um cenário perigoso. A pergunta sobre a possibilidade de causar uma repetição da crise de 2008 requer que se questione quem sofreria as perdas. Se forem investidores comuns ou famílias que sofrerem as perdas, poderia causar a gripe econômica, a recessão, levaria as pessoas a poupar mais e investir menos. Mas não causariam uma crise financeira, porque, para ter uma crise financeira, você precisa que as perdas estejam no balanço de pagamentos de entidades que se alavancaram, que tomaram muito dinheiro para investir. E, no curto prazo, que estivessem sujeitos a uma situação em que as pessoas retirariam seu dinheiro.

Eu não vi dados até agora que mostrem um risco muito grande dos títulos corporativos nos balanços de empresas com financiamento de curto prazo. Sem isso, você pode ter uma recessão, mas não uma crise financeira.

Considerando que muitos países não se recuperaram da última crise, uma nova crise seria mais devastadora? Absolutamente, e os bancos centrais já gastaram muita de sua munição. Não é óbvio qual outra munição eles teriam para usar. Eles poderiam achar mais maneiras de deixar os juros em terreno negativo, devolver a zero, mas essa medida de emergência já foi tomada dez anos atrás. E não está claro de onde viria a próxima ação.

O senhor diria que o mundo aprendeu alguma coisa com a última crise? Eu acho que sim, nós temos uma ideia mais clara dos riscos. Eu acho que houve mudanças que tornaram o sistema financeiro mais seguro, não tão seguro quanto gostaríamos, mas certamente mais seguro do que o que havia em 2008.

Também sabemos agora o que fazer quando as economias estão tendo um ataque cardíaco.

O processo de globalização é contínuo. Precisamos reconhecer quão recente a história dos mercados emergentes é, e ainda estamos no processo de entender a implicação da governança global e econômica. Fizemos um experimento ao vivo para saber o que acontece quando, depois de dez anos de uma taxa de juros muito baixa, você sobe os juros americanos. Todo economista do mundo está focando essa questão.

E de onde vem a próxima crise? Se perguntar de onde vem a próxima recessão, e eu vou diferenciar de novo entre gripe e ataque cardíaco. Se você pergunta de onde vem a próxima gripe, está muito claro. Os EUA vão desacelerar, nessa mesma etapa do próximo ano. Isso não é difícil de ver.

O próximo ataque cardíaco é muito mais difícil, porque é algo que, por definição, você não consegue saber de onde vem, pega de surpresa.

A maioria das pessoas deve concordar que é improvável que venha do Ocidente. A crise de 2008 foi uma bolha conjunta entre EUA e Europa, não vemos esse fenômeno de bolha agora. Se houver evidência de um fenômeno de bolha, o risco é na Ásia e, acima de tudo, na China. Não está óbvio se o governo chinês está cogitando isso.

Adam Tooze, 51

Formado em economia pelo King’s College Cambridge, fez doutorado na London School of Economics. É professor de história na Universidade Cambridge e autor do livro “Crashed: How a Decade of Financial Crisis Changed the World”.

 

Sem partidos, Bolsonaro minaria governabilidade, diz Maílson da Nóbrega

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Para economista, recusa do eleito em fazer coalizão pode dificultar a aprovação de reformas – Folha de São Paulo – Ilustríssima, 16 de dezembro de 2018.

Maílson da Nóbrega

Autor avalia que a recusa do presidente eleito em buscar uma coalizão formal com partidos pode dificultar a aprovação de reformas necessárias e, assim, provocar exaustão de sua governabilidade.

A expressiva renovação no Congresso permitiria, na visão otimista de muitos, uma nova forma de relacionamento com o executivo, eliminando o toma-lá-dá-cá de outros tempos. Ocorre que a renovação privou o governo de parlamentares experientes na coordenação de votações relevantes.

Dos novos deputados, 141 deles (27,5% do total) jamais exerceram um cargo público. No partido do novo presidente, o PSL, 45 dos 52 deputados eleitos (87%) são novatos na cena política. O novo paradigma tem muitos riscos.

O presidente eleito tem cumprido a promessa de não negociar cargos, o que agrada muitos segmentos da sociedade. Sua equipe tem sido constituída sem as habituais barganhas políticas, indicando que ele não buscará uma coalizão formal com partidos, que pressupõe o compartilhamento do poder via distribuição de cargos.

Mesmo tendo iniciado encontros com legendas nas últimas semanas, Jair Bolsonaro tem se limitado a pedir apoio para as reformas. Não se fala em cargos.

Dificilmente, contudo, seu programa de governo será aprovado sem uma coalizão, o que pressupõe o compartilhamento do poder e, portanto, de cargos. Seu PSL elegeu pouco mais de 10% da Câmara, mas será preciso obter pelo menos 60% dos votos para aprovar reformas que dependem de emendas constitucionais.

Diz-se que a coalizão será feita com frentes parlamentares como a ruralista, a dos evangélicos e a da segurança, que têm entre 250 e 280 deputados, mas reformas constitucionais exigem o mínimo de 308 votos na Câmara. No Senado, onde necessitará de 49 votos, seus apoiadores serão apenas 15. Além disso, as frentes se unem em torno de temas corporativistas, não necessariamente para apoiar reformas polêmicas.

Coalizões partidárias têm eficácia muito superior. Os partidos têm prerrogativas inexistentes nas frentes. Seus líderes detêm poder de indicar parlamentares para relatar projetos e compor comissões. Eles integram o Colégio de Líderes, que define a pauta de votações de projetos relevantes. São o elo entre os parlamentares e o Executivo, tanto na liberação de emendas orçamentárias quanto em outros assuntos. Exercem função de coordenação ao encaminhar votações.

Negociar com frentes implica o risco de fracasso, embora seja possível aprovar a reforma da Previdência na chamada lua de mel, o início do mandato. O capital político obtido na eleição costuma viabilizar mudanças nos seis primeiros meses após a posse, mas a lista de reformas não se esgotaria.

A reforma tributária, que envolverá difíceis negociações com estados e municípios, demandará emenda constitucional. Outras, como aquelas relacionadas com costumes, podem enfrentar resistências.

Sistemas políticos multipartidários como o brasileiro criaram regras para lidar com processos de decisão coletiva, de modo a assegurar a fidelidade e a coesão da base parlamentar, reduzindo o custo de transação do processo legislativo. Por exemplo, no Reino Unido há o cargo de “whip” (“chicote”, em tradução literal), o parlamentar incumbido da disciplina partidária.

O “chief whip” do partido do governo coordena as votações, tem status de ministro e residência oficial na Downing Street, onde mora o primeiro-ministro. O status e as prerrogativas dessa posição mostram sua relevância para a governabilidade.

Nos dias de votação, o “chief whip” distribui uma lista com os projetos, seguida de símbolos ao lado de cada um deles. Uma linha indica desnecessidade de presença e de voto. Duas linhas significam comparecer e votar com o governo, mas uma justificativa pode dispensar a presença. Três linhas obrigam presença e voto favorável. A desobediência é punida com expulsão do partido. Não é incomum ver parlamentares comparecerem de maca a Westminster nessas ocasiões.

John D. Huber mostrou que a instabilidade da Quarta República Francesa decorreu da deficiente coordenação nas votações parlamentares. Houve 29 governos entre 1946 e 1958, o que levou a Assembleia Nacional a aprovar uma nova Constituição, a da atual Quinta República.

Surgiram arranjos institucionais para assegurar a coesão, a estabilidade e a capacidade decisória do Parlamento, o que decorre de uma Presidência forte e do chamado “parlementarisme rationalisé”. Eleições parlamentares após o pleito presidencial favorecem a escolha de maiorias alinhadas com o governo.

No Brasil, presidentes nunca se elegem com maioria no Congresso.  Para o cientista político Sérgio Abranches, criador da expressão “presidencialismo de coalizão”, “a coalizão é uma espécie de acordo prévio pelo qual os partidos se dispõem a apoiar projetos do Executivo, sob determinadas condições, a serem negociadas no momento da discussão e votação de cada um. Nunca é uma delegação de poderes”.

Da  capacidade do presidente de gerir a coalizão depende o apoio para aprovar o programa de governo. Ademais, acentua Abranches, “a reeleição dos parlamentares depende fortemente da influência sobre a execução orçamentária e da ocupação de cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões do Executivo”. Sem essas condições, a governabilidade se exaure rapidamente.

A dificuldade de aprovar reformas inibe o cumprimento de promessas de campanha. A consequente queda de popularidade provoca fugas da coalizão, a debandada dos aliados e, no limite, a perda do mandato. O presidencialismo de coalizão é, assim, o arranjo para garantir a coesão e a estabilidade da base parlamentar. Sem isso, a governabilidade pode cair drasticamente.

Bolsonaro parece se imaginar capaz de mudar de maneira radical a forma de negociação política do presidencialismo brasileiro. Governaria com a “força do povo”, o que poderia constranger o Congresso. Abriria mão, assim, da coordenação dos líderes de uma coalizão partidária. Trata-se de estratégia muito arriscada.

O mercado financeiro repousa seu otimismo na expectativa de aprovação de ampla reforma da Previdência e na ortodoxia do superministro da Economia. Empresários e grande parte da classe média apoiam a rejeição do toma-lá-dá-cá, influenciados pela degradada negociação da era petista, que cooptava apoio via corrupção. Imagina-se que negociar cargos seja sinônimo de fisiologismo e corrupção —o que não é necessariamente verdadeiro. Pode haver muitas decepções.

O senso comum diz que as reformas não avançam por “falta de vontade política”, o que abre espaço para figuras enérgicas como Bolsonaro, vistas como dispostas a arrostar e a vencer desafios. Acontece que as reformas dependem da capacidade de articulação política e de gestão de uma coalizão partidária majoritária e coesa.

A negociação com frentes parlamentares, como sinaliza o novo presidente, pode esgarçar as relações com o Congresso e acarretar altos custos de transação. Sem coordenação, será difícil aprovar reformas além da Previdência, impedindo a concretização da esperada recuperação do potencial de crescimento da economia e o cumprimento das promessas de campanha.

A consequência seria a perda gradativa de popularidade e de legitimidade, reduzindo as condições de governabilidade. Esse é o grande risco que correrá o novo presidente caso persista na ideia de desprezar o valor de uma coalizão partidária.

Maílson da Nóbrega, economista, foi ministro da Fazenda (1988-1990) no governo Sarney.

 

Uma visão espírita sobre as dores da alma

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Vivemos em uma sociedade marcada por grandes mudanças e transformações constantes, num mundo onde as frustrações caminham lado a lado com as vitórias, tanto profissionais quanto sentimentais, vivemos em um mundo doente, onde as dores da alma crescem de forma exponencial, seu incremento está diretamente atrelado aos avanços na ciência e nas tecnologias, avanços estes que levam os seres humanos a se isolarem rapidamente de si próprios e se encastelar nos escaninhos das redes sociais, vivemos em um mundo de transições, onde uns se adaptam mais rapidamente enquanto outros se fragilizam e veem suas energias sendo, todos os momentos, serem reduzidas a uma chama cada vez menor e mais insignificante.

Nesta sociedade, os avanços tecnológicos nos levam a gozar a vida intensamente, os prazeres materiais nos empolgam e nos tornam cada vez mais poderosos, adoramos a ciência, cultivamos o conhecimento e as descobertas científicas e passamos a acreditar que Deus não existe e que somos todos frutos de uma grande explosão.

A Doutrina dos Espíritos nos foi trazida como forma de compreendermos melhor as bases que sustentam a vida, o Espiritismo destaca que somos seres em constante evolução, desde nossa criação como seres simples e ignorantes até o porvir de uma perfeição relativa, onde nos encontrarem em um estágio evolutivo onde a guerra, a destruição e os sentimentos mais perversos não mais existirão, algo difícil de imaginar quando olhamos para a sociedade atual, mas que todos vislumbramos como um verdadeiro ideal de realidade futura, afinal somos todos imortais.

O Espiritismo nos mostra que estagiamos no mundo material, para isso, recebemos um corpo físico e somos responsáveis por este corpo, devemos entrega-lo, nas melhores condições, no melhor estado de conservação e seremos cobrados por isso. Um exemplo interessante a destacar, na obra Nosso Lar, livro psicografado pelo médium Francisco Cândido Xavier e ditado pelo médico André Luiz, recebemos inúmeras informações novas e inesperadas, como a de que o médico desencarnado, nesta vida tenha sido considerado um suicida indireto, ou seja, embora não tenha sido o responsável direto por seu desencarne, suas atitudes no corpo físico contribuíram para encurtar sua passagem pelo mundo material, desde os excessos com o sexo até os prazeres sempre difíceis de controlar, que nos atraem e nos dá prazer, e qual de nós não gostamos do prazer?

Se considerarmos o descrito no parágrafo acima, a grande maioria da humanidade pode ser descrita como suicidas indiretos, não buscamos a morte material e gostamos demasiadamente dos gozos terrestres, mas nos empanturramos de comida das mais diferentes possíveis, adoramos novos experimentos gastronômicos e não economizamos neste prazer tão “inofensivo”. Outro ponto que nos excedemos é nos gozos sexuais, pensamos em sexo muitas vezes do dia e praticamos mais do que deveríamos, se temos parceiros fixos exigimos constantemente este prazer intenso agora, se não temos parceiros próximos, nos entregamos as mais intensas extravagâncias, nos enchemos de prazer e nos esquecemos que na vida, parafraseando o grande economista liberal norte-americano, Milton Friedman, não existe almoço grátis.

Vivemos uma sociedade onde estão encarnados indivíduos das mais variadas condições espirituais, desde aqueles que já atingiram um grau de desenvolvimento e poderiam se dedicar a outros trabalhos no mundo espiritual mas que, por amor a humanidade, aceitam retornar para contribuir para o progresso do orbe terrestre, até aqueles que se recusaram a retornar e só o fizemos porque foram obrigados pela Justiça Divina, espíritos que se comprazem no mal e possuem, em seus corações, sentimentos maus, de ódio, de vingança e de ressentimento, querem destruir e se comprazem com esta destruição.

Neste ambiente percebemos que os seres humanos estão atolados nas mais variadas dores e angústias, trazem em seus corações dúvidas cruéis, sentimentos dúbios, mágoas generalizadas e sentimentos dos mais desequilibrados, nesta sociedade os suicídios crescem de forma acelerada, apenas no ano passado mais de 1 milhão de pessoas se suicidaram no mundo, além da depressão que afeta mais de 5% da população mundial, algo em torno de 350 milhões de pessoas, um contingente de doentes crônicos que carregam em seus corações dores e desequilíbrios desconhecidos e incompreendidos.

A Doutrina Espírita nos mostra que somos seres humanos que estamos, por hora, vestindo a roupa de carne mas, na verdade, somos espíritos imortais e tudo que temos em nossa mente é fruto de milhares de encarnações que se sucederam em nossas experiências anteriores, todas as dificuldades com sentimentos difusos e complexos podem ser compreendidos como vivências de outras encarnações que vivemos e não nos lembramos, dores com amores mal correspondidos, crimes que cometemos ou fomos as vítimas momentâneas, todas estas experiências estão inscritas em nossa consciência e, como as esquecemos ao encarnarmos, sentimos os ruídos destes desequilíbrios inscritos em nossa alma, cultivando as chamadas dores da alma.

Alguns advogam a tese de que deveríamos nos lembrar destas experiências anteriores, defendem que ao se lembrar destas experiências conseguiríamos contornar estes desajustes que, em muitos casos estão vivos, e construir uma nova consciência, mais justa e conscientes de que não existem vítimas, somos todos culpados e, devido a providência divina, conseguimos sempre nos levantar e angariar as forças necessárias para seguir em frente.

O Espiritismo acredita que o esquecer de experiências anteriores é um antídoto para que o palco da reencarnação não se transforme em um local de lutas e confrontos variados, esquecemos porque, muitas vezes, se lembrássemos de que este que agora está ao nosso lado foi nosso algoz em momentos anteriores, se lembrássemos destes episódios, seríamos impelidos a buscar uma revanche imediata, afinal para muitos o que vale é a lei de olho por olho e dente por dente, mesmo sabendo que estamos no século XXI, marcados pela civilização e pela institucionalidade social e política da contemporaneidade.

Depois de construirmos tantas riquezas, tecnologias e conhecimentos que transformaram a história da civilização, a sociedade caminha a passos largos para um ambiente de destruição generalizada, muitos acreditam que esta destruição é algo inimaginável, se conseguimos desvendar tantos segredos da natureza, com certeza, conseguiremos reverter os impactos negativos destas revoluções sobre a sociedade mundial, podemos acreditar nisso mas, mesmo assim devemos compreender que todas as destruições que os seres humanos impingirem ao planeta Terra, a Justiça Divina vai agir no sentido de cobrar de todos os envolvidos, todas as faturas e pagamentos futuros, senão neste mundo, mas em algum local e momento todos seremos chamados para prestarmos contas desta destruição que condena as futuras gerações a privações e degradações.

Na sociedade em que vivemos os consultórios de psiquiatria estão abarrotados, as clínicas de psicólogos e de terapeutas holísticos estão todas abarrotadas, o exército de desequilibrados aumenta de forma exponencial enquanto o mundo globalizado cria loucos e desajustados em escala, neste mundo a reflexão é deixada de lado, as disciplinas baseadas na Filosofia, na Antropologia, na Sociologia e na Política são vistas como desnecessárias, uma verdadeira perda de tempo mas, ao mesmo tempo, alguns intelectuais ganham fortunas discutindo questões que os seres humanos se fazem todos os dias e não se entregam a reflexão, as leituras e as discussões são deixadas de lado, o que está em alta é a busca generalizada pelo prazer, pelo gozo e pelos ideais hedonistas, afinal, nesta sociedade o que vale não é ser inteligente, mas parecer inteligente, com isso, perdemos nosso tempo com postagens de momentos felizes e nos colocamos na vitrine da vida como seres de sucesso e bem sucedidos deste mundo altamente competitivo e desequilibrado, marcados por medos, instabilidades e incertezas generalizadas.

Os desequilíbrios de cada ser humano está dentro de seu íntimo, olhar para dentro de cada pessoa é a verdadeira chave para seu autoconhecimento, todas as vezes que deixamos de reflexionar sobre nossas emoções, sentimentos e desejos, adiamos a descoberta do que fomos em vidas anteriores e, se não nos encararmos de frente, perpetuaremos em nosso interior os nossos desajustes mais íntimos durante muitas vidas, afinal somos seres imortais, estamos num traslado constante entre dois mundos, o material e o imaterial.

A Doutrina Espírita nos auxilia nesta caminhada e nesta descoberta constante, se nos entregarmos nesta aventura de auto conhecimento, viveremos melhor e de forma mais equilibrada e tranquila agora, se não nos conscientizarmos de que precisamos mergulhar dentro de nossas entranhas, continuaremos vivendo em mundos paralelos, incutindo em nossas mentes que os verdadeiros culpados de nossas desditas são outras pessoas, com isso, estamos terceirizando nossas responsabilidades e evitando encarar de frente todos os nossos percalços desta existência e de existências anteriores.

Normalmente encontramos pessoas que nos abordam e dizem com grande satisfação que, mesmo tentando serem melhores todos os dias, mesmo buscando ajudar as pessoas e contribuindo para diminuir as desigualdades do cotidiano, vivem com inúmeras dores na alma, como pode encontrarmos pessoas boas e dedicadas que estão sempre com problemas variados? Dificuldades crescentes nos relacionamentos, problemas financeiros e perturbações espirituais, como podem apresentar tais sintomas se estão buscando a palavra de Deus e tentando ser melhores todos os dias? Todos devemos compreender que as dificuldades são questões que envolvem a todos, somos seres devedores, nascemos com muitas dívidas e, conforme agimos, temos nosso débito reduzido ou aumentado, tudo vai depender de nossa construção diária.

Outro ponto a se destacar é que hoje somos melhores, hoje compreendemos mais, hoje auxiliamos mais, anteriormente nada fazíamos para o auxílio, não estudávamos e estávamos em lamúrias constantes, hoje somos bons, mas e ontem, como éramos? Se ainda colhemos frutos ruins mesmo com trabalho e dedicação, o que colheríamos se continuássemos vivendo de forma agressiva e violenta? O mundo não acaba no túmulo, em nossas trajetórias já morremos e renascemos milhares de vezes e, em todas elas, trazemos em nosso íntimo novas experiências, hoje somos o que acumulamos em nossas variadas experiências anteriores na matéria, sendo melhores na atualidade, com certeza, em outros momentos colheremos os melhores frutos de sabedoria, de alegrias, de felicidades e de progressos, afinal estamos sempre em constantes evoluções.

Na Doutrina Espírita aprendemos que todos somos algozes uns dos outros, se todos cometemos ilícitos dos mais variados possíveis nesta e em outras encarnações, como podemos apontar para os equívocos e desequilíbrios de nossos semelhantes, como nos disse Jesus de Nazaré quando percebeu o tratamento das pessoas para com a mulher adúltera: atire a primeira pedra aqueles que não pecaram. Neste exato momento todos os concidadãos saíram do local calados e desconsertados, afinal todos pecamos e ninguém esta em condição de julgar e muito menos de condenar outro semelhante.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para Ricardo Paes de Barros, país chegou ao limite de fazer política social sem economia saudável por trás

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Érica Fraga FSP – 10 de dezembro de 2018.

Diante da severidade da recessão dos últimos anos, o aumento da pobreza ocorrido no Brasil em 2017 foi, surpreendentemente, pequeno, um fato que precisa ser celebrado.

A opinião é do pesquisador Ricardo Paes de Barros, conhecido como PB, que se tornou referência por seus estudos sobre desigualdade de renda e educação no país.

“Diante de uma crise dessa magnitude, você ter menos de um ponto percentual de aumento da pobreza é algo para um país celebrar”, disse ele, que é economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper.

A análise se referia a dados divulgados na semana passada pelo IBGE(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Segundo o órgão, o contingente de pobres no país aumentou de 25,7% para 26,5% da população entre 2016 e 2017. No mesmo período, a extrema pobreza, que afetava 6,6% dos brasileiros, passou a atingir 7,4% do total.

Pela linha definida pelo Banco Mundial —métrica adotada pelo IBGE—, são classificados como pobres os que vivem com até US$ 5,50 (o equivalente a R$ 406 por mês, segundo a cotação do período analisado) por dia. Os de extrema pobreza têm renda diária inferior a US$ 1,90 —R$ 140 por mês.

“Foi um pequeno aumento, mas muito concentrado naqueles que são muito pobres.”

Para PB, se, por um lado, os dados revelam que o impacto da crise sobre os extremamente pobres foi dramático, por outro, indicam que o progresso anterior do país no combate à pobreza tem sido resiliente.

Ambos os resultados têm de ser mais bem estudados e compreendidos, diz. Mas, olhando para a frente, PB ressalta que o Brasil chegou ao limite da possibilidade do combate à pobreza apenas com política social, sem uma economia saudável —que gere emprego para todos e inclua os extremamente pobres— por trás.

“Então, economia, por favor, cresça aí!”

O que o aumento da pobreza revelado pelo IBGE representa em termos de retrocesso para o país?

Não olhei os dados com cuidado. Mas isso já era, mais ou menos, conhecido. Uma das preocupações é se isso reverte os ganhos do passado. Precisamos ter em mente que a redução que fizemos na extrema pobreza foi astronômica. A pobreza em 2014 era menos de um terço do nível de 2003, uma queda gigantesca.

Então, o aumento agora, menor que um ponto percentual, não chega a 10% do que a gente reduziu de pobreza nos últimos tempos. Ele é bem problemático, mas de forma nenhuma representa reversão.

Obviamente, a gente gostaria de ver a extrema pobreza continuando a cair e espera que ela volte a cair, mas, em certo sentido, dada a magnitude da recessão e do desequilíbrio fiscal do país, ela subir menos de um ponto percentual mostra uma certa resiliência, porque ela tinha caído 10 ou 11 pontos percentuais, dependendo de como se mede.

Agora, 2017 foi muito ruim para os muito pobres. Esse período foi dramático para esse grupo, cuja renda caiu mais de 10% em termos reais. Ou seja, foi um pequeno aumento da pobreza, mas muito concentrado nos que são muito pobres.

Isso não seria um retrocesso?

Para um país que tinha mais de 10% da população na extrema pobreza, eu não chamaria isso de reversão de maneira nenhuma. A grande conquista da nossa redução da extrema pobreza no passado foi que, embora em parte ela tenha sido explicada pelo Bolsa Família, em larga medida, se deu por inclusão produtiva, pelo trabalho das pessoas.

Mas esse processo, que foi muito legal, não conseguiu chegar, em toda a era Lula [Luiz Inácio Lula da Silva] e Dilma [Rousseff], aos 5% mais pobres. E eles foram os que mais sofreram agora.

O IBGE atribui o aumento da pobreza ao maior desemprego. Se os extremamente pobres não tinham sido incluídos produtivamente, por que foram os mais afetados? Faltou proteção social? 

Acho um pouco inesperado porque eu imaginaria que esses 5% que, tradicionalmente, estão mais desconectados do setor formal sofreriam menos com uma crise que atingiu tantos setores formais da economia.

É curioso que, no meio da distribuição, as pessoas se mantiveram mais ou menos com a mesma renda.

Já entre os 5%, a renda cai bastante. Precisaríamos de um estudo mais detalhado porque na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio, do IBGE) os 5% mais pobres de 2016 não são necessariamente os 5% mais pobres de 2017.

Se um monte de gente do mercado formal fica desempregada e com renda muito baixa, eles passam a integrar os 5% mais pobres. Pode ter ocorrido uma mexida em quem são os 5% mais pobres do Brasil.

Em termos relativos, esses desempregados podem ter se tornado mais pobres do que os do grupo que vive do Bolsa Família?

Exatamente. Pode ter aparecido um novo extremamente pobre no Brasil. Se bem que os antigos 5% mais pobres não podem ter melhorado tanto de vida, e, portanto, a pobreza teria de ter subido muito mais. Precisamos olhar com mais cuidado os dados. É uma especulação.

É relativamente surpreende que o aumento da pobreza tenha sido tão pouco porque a crise no mercado de trabalho foi muito maior. Aí entra a questão da resiliência.

E o que explica essa resiliência? O Bolsa Família?

O fato de você ter uma rede de proteção como o Bolsa Família ajuda. Mas, olhando para os dados, ninguém diria que o Brasil passou pela recessão que passou. Dado o aumento na taxa de desemprego, era de esperar que a pobreza aumentasse muito mais. O fato de ter aumentado muito pouco é surpreendente.

Com outra metodologia de mensuração o resultado poderia ser diferente?

Não, o dado é esse. Um relatório do Banco Mundial já antecipava um aumento pequeno da pobreza, e eu tinha pensado que não era possível. Mas acabou sendo mesmo.

Eu celebraria esse aumento da pobreza. Só isso para uma recessão desse tamanho? Agora, por que foi só isso com tanto desemprego? Como mais desempregados não entraram na extrema pobreza, como eles não entraram nem na pobreza?

Talvez porque esse desemprego esteja muito concentrado entre os jovens, e não tanto entre os chefes de família. Precisamos de um estudo mais profundo para entender.

Então, a boa notícia é que não afetou tanto a extrema pobreza. A má notícia é que, entre os pobres, pegou o muito, muito pobre.

Olhando para a frente, o que o Brasil deveria estar pensando em termos de política pública de combate à pobreza? 

Em primeiro lugar, diante de uma crise dessa magnitude, você ter menos de um ponto percentual de aumento da pobreza é algo para um país celebrar. Nenhum país do mundo consegue isso.

Precisamos entender como conseguimos isso. Ainda nem conseguimos entender direito como fizemos a extrema pobreza cair tanto, porque não foi simplesmente o Bolsa Família.

A outra coisa é que, para a gente andar para a frente agora, só com uma economia saudável. Acho que todo o mundo que estuda pobreza está convencido de que chegamos mais ou menos ao limite de fazer política social remendando em cima de uma economia frágil, num país que não cresce.

É claro que dá para fazer muita coisa ainda, mas, vamos combinar, estamos chegando ao limite. Então, economia, por favor, cresça aí!

O sonho da política social, o sonho de Osmar Terra [ex-ministro de Michel Temer, que voltará a comandar a área social na gestão de JairBolsonaro] deve ser que os economistas façam nossa economia andar para a frente.

Quando a economia deslanchar, não poderemos fazer como no passado. Temos de ter política social, que vai garantir que os mais pobres se enganchem no mercado produtivo. Isso não é automático, requer uma política social de inclusão produtiva que nosso ministro Osmar Terra tentou fazer na última administração dele pós-Dilma, mas que ainda está devendo um pouco.

Ele fez algo maravilhoso com o Criança Feliz [focado na primeira infância], aumentou o valor real do Bolsa Família, acho que melhorou bastante sua fiscalização e acabou com a fila do programa.

Foi uma boa decisão chamá-lo de volta?

Sem dúvida, foi uma excelente escolha. Mas a questão da inclusão produtiva no Brasil, para mim, é um grande mistério porque a presidente Dilma, ao lado da ex-ministra Tereza Campello[Desenvolvimento Social e Combate à Fome], desenvolveu um programa fantástico de inclusão produtiva, que é o Brasil sem Miséria. Eu estava no governo na época e dei uns palpites, deveria ter participado mais. Mas, até onde vi, a implementação dele foi muito sólida, feita por equipe supercompetente.

E acho que esse programa foi descontinuado ainda na gestão Dilma e eu não entendo o porquê. Eu me lembro do Osmar Terra chegando, perguntando pelo programa e descobrindo que ele não existia mais.
Acho que ele tinha um erro. Era muito bem integrado em Brasília. Mas um programa de inclusão produtiva precisa ser muito bem integrado lá na ponta. Se você não der ao agricultor familiar assistência técnica, crédito, apoio à comercialização, ele não vai sair da pobreza.

Acho que precisamos fazer de novo um Brasil sem Miséria com um atendimento lá na ponta mais integrado, mais customizado, parecido com o Chile Solidário.

A assistente social precisa ir a cada família e conversar para entender como ela pode ser incluída produtivamente. Se for um empreendedor, é preciso uma política. Se for um pequeno produtor, outra política.

almirante Bento Costa Lima de Albuquerque Junior, futuro ministro de Minas e Energia de Jair Bolsonaro, é seu irmão?

Sim. Ele é filho da segunda esposa do meu pai. O pai dele morreu quando ele tinha uns dois anos e a mãe dele se casou com meu pai quando ele tinha uns quatro anos. Ele é quatro anos mais novo que eu. Meu pai botava nós dois de castigo e me colocava para dar aula de física e de energia para ele nas férias [risos].

 

RAIO-X

Ricardo Paes de Barros, 64
Formação: engenharia eletrônica pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), mestrado em estatística pelo Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), doutorado em economia pela Universidade de Chicago, pós-doutorado pelas universidades Yale e de Chicago.

Cargos atuais: economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper

Carreira: pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) por mais de 30 anos, professor visitante da Universidade Yale e subsecretário de Ações Estratégicas da Presidência da República (2011-2015, governo Dilma)

Áreas de estudo: desigualdade, pobreza, mercado de trabalho, produtividade do trabalho, educação, primeira infância, juventude, demografia e imigração

 

 

 

Autor de ‘Homo Deus’ mapeia as graves implicações da tecnologia

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Merece respeito um jovem historiador israelense que se põe a escrever uma “breve história da humanidade”, dá ao livro o título de “Sapiens” e vende mais de 2 milhões de cópias dele.

Dois anos depois, Yuval Noah Harari, 40, lança “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã”, obra que chega às livrarias do país na próxima semana. Nela, ele se propõe a mapear as tendências das tecnologias e suas graves implicações para a humanidade nos próximos 200 anos.

Alguns dirão que o sucesso lhe subiu à cabeça. Neste caso, contudo, o dito não deve ser tomado como reprimenda, porque o livro consegue provocar reflexões avançadas sobre as consequências dos poderes “divinos” que a biotecnologia e a inteligência artificial vão conferindo aos homens e mulheres do século 21.

Fã da série de TV “Black Mirror”, que trata de distopias propiciadas pela tecnologia da informação, Harari acha um desatino que as pessoas abram mão tão facilmente de seus dados e privacidade para os aplicativos monopolísticos de relacionamento, vendas ou busca. Diz que só mantém uma página em rede social por razões comerciais, não para angariar “amigos”.

Para ele, a idolatria da informação, ou Big Data, pode substituir o humanismo liberal e tornar-se a “religião” do século 21, com grave ameaça para aquilo que a ciência não consegue explicar com seus algoritmos: a consciência. Mas ressalta que “Homo Deus” não faz profecias pessimistas sobre o mundo.

Ele prefere que o livro seja visto como uma convocação às armas da filosofia: “Se você não gosta dessas possibilidades, então faça algo a respeito”. Por exemplo, escrever um livro – ou dois.

Folha – Começando pela pergunta final de seu livro: será que todos os organismos são algoritmos e a vida não passa de processamento de dados?

Yuval Noah Harari – Segundo o que sei sobre o establishment científico hoje, a resposta é “sim”. Se você perguntar aos biólogos, eles podem dizer que, num nível pessoal, acreditam em Deus e que existem almas, coisas assim. Mas quando vão ao laboratório ou escrevem para um periódico científico, a vida é mesmo apenas processamento de dados e todos os organismos são só algoritmos.
Creio que hoje essa é a ortodoxia científica. Eu não necessariamente acho que isso seja verdade, ou que todos os cientistas, como indivíduos, pensem assim, mas no establishment esse é o dogma.

Mas qual é a sua própria opinião a respeito?

Minha opinião é que a ideia de organismos como simples algoritmos tem sido bem-sucedida, especialmente na biotecnologia. Mas acho que existe aí uma grande lacuna nessa visão: a consciência, as experiências subjetivas.
Não temos nenhum modelo científico bom para explicá-las, e é por isso que sou cético quanto a essa visão da vida ser realmente verdadeira. Pode ser que em 20 ou 30 anos tenhamos um modelo da consciência em termos de processamento de dados.
Penso que podemos estar na posição em que a física estava no final do século 19, os físicos estavam convencidos de que realmente entendiam a realidade física e de que só restavam algumas coisas pequenas para resolver. Mas aí vieram revoluções tremendas com a teoria da relatividade e a mecânica quântica.
Acho que o mesmo pode acontecer com a biologia no século 21. Só existem algumas coisinhas como a consciência que não podemos explicar e, bum, uma revolução acontece nas próximas décadas.

Se eu tivesse de indicar a ideia central de seu livro “Homo Deus”, eu diria que a tecnologia está ganhando poderes para transformar crenças em realidades, portanto há que ter cuidado com aquilo em que se acredita. É isso mesmo?

É um excelente resumo do livro. Vai contra a ideia muito comum no século 21 de que a ascensão da tecnologia e da ciência tornaram menos importantes coisas como ideologia, religião, mitologia e ficção. Uma das ideias centrais do livro é que não, é exatamente o oposto.
Essas novas tecnologias dão poderes às ideologias e ficções humanas, coisas que as pessoas podiam imaginar, mas não tornar realidade.
As pessoas vêm sonhando com a imortalidade por milhares de anos, mas sempre foi só uma história religiosa, mitológica. Com o advento da biotecnologia, mais e mais gente está pensando que de fato podemos tornar essa fantasia mitológica uma realidade na Terra, primeiro para prolongar a vida e, eventualmente, superar a velhice e a morte.
Acho que as pessoas estão um pouco precipitadas, e otimistas, nas suas estimativas. Pensadores como Ray Kurzweil estão dizendo que em 30 anos pelo menos as pessoas ricas poderiam prolongar a vida indefinidamente e que hoje alguns de nós fazem parte do grupo de pessoas imortais.
Acho que 2050 é cedo demais. Mas, no longo prazo, digamos dois séculos, não creio que isso esteja além dos poderes humanos.

O sr. se refere ao prolongamento da vida fisiológica, ou pensa nalgum tipo de upload da mente humana em máquinas?

Essas são as duas grandes opções. Há a opção de usar engenharia biotecnológica e talvez conectar corpos e computadores diretamente para prolongar a existência física do corpo humano e do cérebro para além dos 150 anos.
A outra opção é preservar apenas a consciência, de alguma forma fazer seu upload em um computador. Gente muito séria nesses dois campos está dizendo que isso pode ser feito.
Minha grande dúvida é nosso entendimento do que seja mente ou consciência. Sem entender isso não se pode alcançar a imortalidade. E até aqui houve exatamente zero de progresso na tentativa de desenvolver consciência em computadores. Confunde-se inteligência com consciência.
Um de meus receios é que, antes, os humanos adquiriram controle sobre o mundo exterior. Aprendemos a reformatar a realidade física e ecológica fora de nós, mas não entendemos bem como o sistema ecológico funciona. Isso resultou na ruptura dele.
Receio que o mesmo possa acontecer no século 21, mas com o mundo interno. Ganharemos mais poderes para manipular o interior de nossos corpos, de nossos cérebros, mas, por não entendermos o ecossistema mental interno, o resultado será um desastre.

A biotecnologia e a inteligência artificial prometem dar poderes divinos à humanidade. O normal é se referir a isso como “brincar de Deus”, mas o sr. prefere falar em “tornar-se Deus”, daí “Homo Deus”. Deve-se entender que sua argumentação seria como que uma bioética turbinada?

Falo de tornar-se Deus e não de brincar de Deus porque não se trata de brincadeira, é para valer. É preciso lembrar o que os deuses eram nas mitologias tradicionais: não ideias abstratas, e sim seres com capacidades muito concretas. Se fizermos uma lista, os humanos já possuem muitas dessas capacidades e estão desenvolvendo mais e mais delas.
Se você ler o Velho Testamento, verá que muito do que o Deus dos hebreus deveria realizar era zelar pela produção agrícola, garantir que os campos fossem férteis. Os cientistas, hoje, estão se saindo muito melhor do que o Deus do Velho Testamento.
Outra capacidade que o Deus da Bíblia tinha era a de criar vida de acordo com seus desejos. Neste século nós já estamos no ramo de modificar vida e mesmo de criar formas de vida que o próprio Deus nunca conseguiu criar.

O livro adverte que os desenvolvimentos delineados pelo sr. não devem ser tomados como profecias, mas sim como cenários. Várias passagens, no entanto, dão a entender que esses cenários vão necessariamente acontecer. Críticas como as suas à biotecnologia e à inteligência artificial poderiam impedir a humanidade de tomar esse rumo?

Há alguns desenvolvimentos que são inevitáveis. Quando se considera o progresso da biotecnologia, acho inevitável que no século 21 isso vá continuar e que a humanidade ganhe imensos novos poderes para remodelar a vida.
Isso no nível mais fundamental. Além dele, começam a aparecer opções e escolhas. A tecnologia não é determinista. Pode-se usar biotecnologia para propósitos diferentes.
Para dar um exemplo do passado: há muitas décadas temos a capacidade de transplantar órgãos, e as pessoas imaginavam que o resultado seria um mercado livre para órgãos humanos.
Embora a gente veja alguns desses fenômenos perturbadores, em lugares como a China e a Coreia do Norte, no geral se pode dizer que isso não aconteceu, embora a tecnologia e fortíssimos incentivos de mercado estivessem presentes. Os humanos ainda têm a capacidade ética e política de impedir o que consideram os piores usos da tecnologia.

“Novas tecnologias matam deuses antigos e dão origem a deuses novos”, diz o livro. Por que é que necessitamos substituir a religião do humanismo, como o sr. diz, por uma nova religião, e não por uma ética secular, baseada em evidências, de baixo para cima?

Quando falo em dar vida a novos deuses não penso em reviver algum tipo de politeísmo antigo, ou hinduísmo.
De meu ponto de vista, o próprio humanismo não está baseado em evidências, também é um tipo de religião, de história de ficção. As ideias centrais do humanismo são apenas invenções humanas, basta pensar na ideia de que todos têm direitos iguais à vida e à liberdade, e assim por diante –são histórias que inventamos, não está nas leis da natureza ou no DNA.
Não me inclino a dizer que isso seja ruim. Histórias são essenciais para unificar as pessoas e tornar uma sociedade funcional.
Algumas histórias são melhores que as outras. Digo que se pode medir o valor de uma história por quanto sofrimento ela causa ou alivia. No século 20, se compararmos as histórias do liberalismo e do humanismo com as do nazismo e do comunismo, veremos que, de longe, as primeiras são muito melhores.
Só não acho que sejam histórias relevantes no século 21, por causa das imensas mudanças na tecnologia que trarão mudanças na sociedade e na economia. Vamos precisar de uma nova história, de uma nova ideologia ou uma nova religião, se quiser, muito mais bem adaptada para a sociedade do século 21.

Há uma seção no livro dedicada a desmontar a noção de livre arbítrio, mas daí o sr. afirma que a maior ameaça ao liberalismo e ao humanismo não é essa ideia filosófica de que não existe livre-arbítrio, e sim as tecnologias que vão aboli-lo. O sr. está de luto pelo liberalismo?

De certo modo, sim. O liberalismo está como a história dominante por dois ou três séculos, e em vários sentidos foi uma história muito melhor do que qualquer outra que a humanidade tenha inventado. Não acho que devamos ficar contentes com o fato de que o humanismo liberal esteja mais difícil de se manter.
Devemos ser realistas, porém. Com a ascensão de novas tecnologias, agarrar-se a noções do século 18, como a de livre-arbítrio, não vai nos ajudar muito. Nenhum sistema, nem mesmo a Igreja ou a KGB, ainda que coletando e analisando informação sobre você, podia entender o que se passa dentro de você.
Estamos chegando em um ponto em que teremos conhecimento biológico e capacidade de computação para criar algoritmos para entender os humanos melhor que eles podem entender a si próprios.
O algoritmo vai levar em conta seu DNA, sua pressão arterial, sua função cerebral, tudo, para entender seus sentimentos e escolhas muito melhor do que você. Ele poderá dizer: você quer isso e eu posso dizer por quê.
Isso é diferente dos grandes cenários tipo Big Brother do século 20. O medo do liberalismo era que algum sistema exterior, algum ditador, fosse esmagar sua individualidade. Agora o grande perigo é o oposto, que o indivíduo vá se desintegrar a partir de dentro.
Do ponto de vista científico, não há indivíduo. O ser humano é uma coleção de subsistemas biológicos. Vai desintegrar-se e ser substituído por essa coleção de subsistemas, que poderia ser compreendida e manipulada de fora.
Se isso soa muito abstrato ou teórico, eis um exemplo: os aparelhos Kindle. Antes, quando se queria escolher um livro para ler, ia-se à livraria. Ninguém sabia quem você era nem lhe recomendava nada.
Agora a Amazon faz isso por você, e vai se tornar cada vez melhor nisso. Se você conectar um Kindle a software de reconhecimento facial ou a sensores biométricos no seu corpo, estaremos muito perto do ponto em que a Amazon poderia saber o impacto emocional exato de cada sentença que você ler no livro.
Com esse conhecimento, ela será capaz de dizer não apenas o que fazer na vida, mas também pressionar seus botões emocionais e manipulá-lo numa extensão muito maior que qualquer ditador com que pudéssemos sonhar.

No final do livro o sr. lança outra questão –se a inteligência é mesmo mais valiosa que a consciência. Minha conclusão é que ele foi escrito com consciência e a favor da consciência. Na superfície parece um livro muito pessimista, mas também pode ser visto como uma convocação às armas –as armas da filosofia.

Eu enfatizo repetidamente que não se trata de um livro de profecias, porque ninguém sabe com que o mundo se parecerá em um século. Ele traça diferentes possibilidades.
Num certo sentido, é mesmo uma convocação às armas: se você não gosta dessas possibilidades, então faça algo a respeito. Ainda há tempo para pensar sobre essas questões e moldar nosso futuro.
É responsabilidade de historiadores, filósofos e pensadores pensar nas possibilidades mais negativas e assustadoras. Se você questionar o povo do Vale do Silício sobre como será o futuro, eles vão pintar esse lindo quadro de como a vida será boa com todas essas tecnologias. Eles têm um poder tremendo e um monte de dinheiro para pôr nesses sonhos.

O livro aponta a mudança do clima causada pelo homem como possível barreira para a conversão desenfreada da vida econômica e social em algoritmos, mas só de passagem. Por que chamar a atenção aos poderes criados pela tecnologia humana e não tanto para suas limitações?

Para muitas pessoas a mudança do clima pode ser a maior ameaça no século 21, e certamente não estamos fazendo o bastante a respeito disso. Isso porque hoje o único meio de parar a mudança do clima é frear o crescimento econômico, e não há governo na Terra disposto ou capaz de fazer isso.
Qualquer governo que fizer, no Brasil, na China, na Índia, cairá do poder em alguns poucos dias ou meses. Haverá uma revolução ou cairá pelo voto. No momento não há como parar a mudança do clima, e as repercussões para a maior parte das pessoas poderiam ser horrendas.
Não pus foco nisso como tópico principal do livro porque acredito que no longo prazo, no prazo realmente longo, mesmo que a maioria das pessoas sofram com a mudança do clima, ela não destruirá a humanidade nem impedirá o progresso de tecnologias como inteligência artificial e bioengenharia.
Na realidade, só vai acelerá-las, da mesma maneira que em tempo de guerra muitas restrições são deixadas de lado. A época da Segunda Grande Guerra foi um tempo de grande inovação tecnológica. Pense no Projeto Manhattan. Quando a sobrevivência está em causa, faz-se tudo o que for necessário para sobreviver.
Creio que a mudança do clima terá um efeito similar. No momento em que se atingir o ponto de ebulição, quando se tornar uma verdadeira crise, ela dará um incentivo ainda mais forte para explorar novas tecnologias, na esperança de que isso nos ajudará a superar a crise.
Quanto maior for a crise, mais os seres humanos estarão dispostos a deixar de lado restrições éticas e políticas e a seguir em direções extremas. Suspeito que o resultado será que a maioria das pessoas no mundo sofrerá enormemente, mas que pelo menos uma pequena elite será capaz de sobreviver e terá sob seu comando fantásticas novas tecnologias, muito além de tudo que conhecemos hoje.
Para a evolução de longo prazo da vida, na Terra e mesmo além dela, a coisa realmente mais importante serão as novas tecnologias e não a mudança do clima. Nesse sentido será parecido com Segunda Guerra Mundial que causou enorme sofrimento, mas no final a humanidade conseguiu atravessá-la, e o que herdamos de verdade dela são todas essas novas tecnologias que remodelaram o mundo, como aviões a jato, armas nucleares, radares etc.
“Homo Deus” é na verdade um livro sobre o longo prazo, o futuro da vida, e não sobre o futuro de médio prazo das sociedades humanas. Se eu fosse escrever um livro sobre como o mundo estaria em, digamos, 2050, aí daria muito mais atenção para a mudança do clima do que dei para a inteligência artificial.

Pretende escrever um livro desses?

Primeiro, ainda não tenho planos concretos para um próximo livro. Tento deixar que meus livros se escrevam a si próprios, não começo com uma ideia definida, vou escrever uma história do mundo. Escrevo coisas, dou conferências, aí as coisas começam a se acumular e, ei, isso pode já ser um livro em gestação.
Além disso, acho muito mais difícil falar do médio prazo, num sentido paradoxal. Se você tentar prever desenvolvimentos e eventos particulares, é quase impossível. Qual será a potência política dominante em 20 anos? EUA, China? Não sei, há tantas coisas que podem mudar e acontecer.
Já se você perguntar, num nível mais fundamental, o que vai influenciar o mercado de trabalho, aí posso ter mais confiança para dizer que a inteligência artificial o transformará inteiramente. As coisas mais fundamentais são na realidade mais fáceis de prever.

 

 

 

Luiz Marques: “A crise brasileira é a espuma superficial de um problema estrutural ignorado pela esquerda”  

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A esquerda erra ao separar a agenda ambiental da agenda social, como se fosse possível manter o combate à desigualdade sem levar em consideração as consequências suicidarias de uma política desenvolvimentista que concebe o planeta erroneamente como estoque infinito de recursos. Esta é a avaliação do historiador Luiz Marques que avalia neste entrevista a atual conjuntura política e econômica do Brasil da perspectiva ambiental. “A crise brasileira é a espuma superficial de um problema estrutural e profundo, para o qual os contingentes majoritários da esquerda não estão dando a devida atenção,” afirma o autor de Capitalismo e colapso ambiental (Ed Unicamp, 2015), “conservar o que resta da biosfera tornou-se essencial para manter qualquer sociedade organizada”.

Esta conversa, conduzida por Gabriel Zacarias (pós-doutorando USP/EHESS-Paris) e Fernanda Marinho (pós-doutoranda Unifesp/Musée du Louvre), dá sequência à série de entrevistas do Movimento Democrático 18 de maio (MD18) com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicando aqui, e a segunda entrevista da série, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, clicando aqui..

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O senhor foi militante político e atuou na resistência à ditadura militar no Brasil. Partindo dessa experiência, como o senhor considera a atual situação política brasileira? É possível estabelecer, de fato, um paralelo entre o Brasil pós-64 e o momento atual?

Paralelos são sempre possíveis e tentadores, mas não subestimemos o que foi o golpe de 1964. Ele instalou uma ditadura militar que se tornou, sobretudo após 1968, terrivelmente violenta. Fechou o Congresso Nacional, criou órgãos específicos de repressão dirigidos pelas Forças Armadas e articulados com outras ditaduras latino-americanas e com os Estados Unidos. Tão ou ainda mais grave que tudo isso, mas menos lembrado, a ditadura é também culpada pelo mais fulminante “ecocídio” jamais perpetrado pelo gênero humano. Segundo o INPA, até meados do século XX a ocupação humana da Amazônia não ocasionara alterações significativas em sua cobertura vegetal. Foram os militares que desencadearam a dinâmica de sua destruição. Em 1992, sete anos após o fim da ditadura, a área desmatada por corte raso da Amazônia correspondia, segundo dados do IBGE, a 499.037 km2. Em apenas 25 anos (1967-1992), a ditadura e os governos civis que ela gerou – os de José Sarney (1985-1990) e de Fernando Collor de Mello (1990-1992) –, haviam destruído na Amazônia uma área de floresta quase equivalente ao território da França.

Diante desse quadro, o paralelo proposto com o golpe parlamentar em curso é até compreensível, mas a escala dos dois fenômenos é incomparável. O que presenciamos é uma sórdida manobra parlamentar, no intuito, até agora não bem-sucedido, de circunscrever a ofensiva do Judiciário contra o PT e de salvar a própria pele. A precária coalizão que hoje dirige o país aproveita-se de uma crise econômica profunda e da desmoralização do PT para tentar anular as pequenas, mas significativas, conquistas sociais obtidas durante o primeiro decênio do século. Encontrará dificuldades, talvez intransponíveis se considerarmos sua imoralidade, impopularidade e os conflitos entre os grupos rivais dentro da própria coalizão. A dupla Temer-Blairo Maggi tentará a proeza de ser ainda pior que a dupla Dilma-Kátia Abreu em termos de devastação ambiental. Isso posto, não há como equiparar sua destrutividade, por hedionda que seja, à do ecocídio perpetrado pela ditadura, pelo simples fato de que Temer não pode passar por cima da sociedade, da crítica internacional, da comunidade científica e das instituições em geral, vigilantes em relação à conservação do que ainda resta da Amazônia.

Para alguns comentadores, a atual crise brasileira seria resultante de uma luta de classes que encontra sua expressão em duas formas distintas de políticas públicas: políticas neoliberais, de Estado mínimo, por um lado, e políticas sociais, por outro lado, ainda inspiradas pelo modelo do Welfare State. O senhor concorda com essa visão? A crise ambiental provocada pelo capitalismo, da qual o senhor trata em seu livro Capitalismo e colapso ambiental, não apontaria justamente para um limite da política de Bem-Estar Social?

Para responder à primeira pergunta, digo que a visão de que a atual crise brasileira reflete um conflito social, uma luta de classes, é indiscutível. Os que detêm a propriedade e o controle sobre o capital querem, como sempre, aumentar sua rentabilidade. Os que não detêm capital lutam para pelo menos manter sua participação na distribuição da riqueza nacional, participação em parte assegurada pelo Welfare State. Isso é uma constante social, mesmo quando não há crise. Quando a crise se instala, o conflito tende naturalmente a se acirrar. Mas aqui beiramos o truísmo: como imaginar uma crise socioeconômica e política alheia à luta de classes?

Quanto à segunda, não acredito que a crise ambiental apontaria para um limite da política do Bem-Estar Social. Ao contrário. O Welfare State é fundamental para a diminuição do impacto ambiental. Satisfazer as carências básicas de 90% da humanidade aumentaria de modo irrelevante o impacto humano sobre os ecossistemas ou mesmo o diminuiria. Por exemplo, em 2015, havia 2,7 bilhões de pessoas sem acesso à infraestrutura sanitária básica. Provê-las dessa infraestrutura, missão primeira do Welfare State, implicaria radical diminuição, e não aumento, de seu impacto ambiental.

No mesmo livro, o senhor apresenta como crenças falaciosas duas posições comumente defendidas também por setores progressistas: a de que seria possível um capitalismo ambientalmente sustentável, e a crença segundo a qual “quanto mais excedente material e energético formos capazes de produzir, mais segura (e feliz) será a nossa existência”. Seria, portanto, necessário romper com a própria lógica do crescimento econômico, como apontam aqui na França grupos como o do “decrescimento” e o da “crítica do valor”? Ou ainda, mais além, romper com o próprio estado tecnológico atual, como afirmam, por exemplo, os “anti-industriais”?

A crença de que o crescimento econômico como um fim em si ainda é um bem é errônea. Como afirma Herman Daly, “o termo ‘desenvolvimento sustentável’ […] faz sentido para a economia, mas apenas se for compreendido como desenvolvimento sem crescimento”. A ideia de um decrescimento administrado remonta às teses de Nicholas Georgescu-Roegen sobre as relações inevitáveis entre economia e entropia. Ela se afigura, hoje, como a proposta mais consequente, talvez a única efetiva, para uma sociedade viável. Ela se assenta sobre dois pressupostos, sem a compreensão adequada dos quais ela pareceria absurda. O primeiro pressuposto é que o decrescimento econômico, bem longe de ser uma opção, é uma tendência inexorável. Já estamos crescendo, em escala internacional, a taxas muito inferiores às dos anos 1945-1973 e iremos decrescer dramaticamente num futuro muito próximo, porque estamos esgotando os recursos minerais, hídricos e biológicos do planeta, e porque estamos desestabilizando as coordenadas ambientais que prevaleceram no Holoceno. Um crescimento anêmico ou mesmo negativo já é a nova normalidade do capitalismo. Os poucos países que ainda apresentam taxas elevadas de crescimento são vítimas de estrangulamentos ambientais que imporão em breve também estrangulamentos econômicos. Conscientes de que a ilusão desenvolvimentista está conduzindo à falência os serviços prestados pela biosfera aos seus integrantes, os partidários do decrescimento percebem que um decrescimento administrado seria a única forma de evitar um colapso ambiental, o qual será tanto mais brutal e mortífero quanto mais for protelado.

Segundo pressuposto: o decrescimento administrado é essencialmente anticapitalista. A ideia de decrescimento nos marcos do capitalismo foi justamente definida por John Bellamy Foster como um teorema de impossibilidade. Um mal-entendido tenaz deve definitivamente ser dissipado: o decrescimento administrado não é uma proposta de redução quantitativa do PIB. Ele advoga uma redefinição qualitativa dos objetivos do sistema econômico, que devem passar a ser a adequação das sociedades humanas aos limites da biosfera e dos recursos naturais. Essa adequação implica, como é óbvio, investimentos em áreas e países carentes de infraestrutura básica e, em geral, crescimento econômico imprescindível à transição para energias e transportes de menor impacto ambiental. Mas se trata de investimentos localizados, vetorizados e orientados para a diminuição de impactos ambientais (infraestrutura sanitária, abandono do uso de lenha, transporte público, etc); jamais de um crescimento pelo crescimento. Serge Latouche explicita o liame entre decrescimento e superação do capitalismo: “O movimento do decrescimento é revolucionário e anticapitalista (e até antiutilitarista), e seu programa, fundamentalmente político”.

Sobre a segunda parte da pergunta, o decrescimento não é tecnofóbico. É preciso evitar o mal-entendido que consiste em atribuir a crise ambiental à técnica como se esta fosse uma instância originária. A técnica é a objetivação de uma faculdade inerente a todas as espécies e em uma escala muito maior à nossa. Parece impossível, de resto, separar cirurgicamente seu lado benfazejo de seu lado ominoso. Mais que nunca, de qualquer modo, seu progresso é, hoje, imprescindível pois a inadiável transição para uma sociedade de baixo impacto ambiental requererá aceleração da inovação tecnológica. Pôr o engenho humano a serviço da diminuição da pressão antrópica sobre a biosfera – ao invés de mantê-lo cegamente atrelado a uma anacrônica e disfuncional pulsão acumulativa –, tal é a questão inescapável, definidora de uma nova agenda e de um novo espectro político-ideológico, inconcebíveis enquanto persistir a ilusão de que podemos crescer de modo ilimitado.

Nesse contexto, como situar a crise política brasileira? Encontramo-nos diante da deposição ilegítima de um governo de esquerda, mas cujo projeto não representava, porém, uma ruptura com essa lógica de acumulação capitalista. Tendo em vistas os limites ecológicos do capitalismo, como podemos nos posicionar perante o projeto desenvolvimentista da esquerda brasileira? O risco ambiental de projetos como o da exploração do pré-sal ainda podem valer à pena se seus ganhos forem reconvertidos em políticas públicas de combate à desigualdade? Ou se trataria de apenas mais uma ilusão?

A crise brasileira é a espuma superficial de um problema estrutural e profundo, para o qual os contingentes majoritários da esquerda não estão dando, a meu ver, a devida atenção. A defesa do monopólio do pré-sal pela Petrobrás é um ótimo exemplo do extravio da esquerda. Como se o petróleo da Petrobrás emitisse menos gases de efeito estufa… A esquerda deveria estar lutando, é sua obrigação, pelo fim de todo e qualquer petróleo! O consenso da direita de que o crescimento econômico contínuo é uma condição de possibilidade de uma sociedade segura e próspera tem sido subscrito também pela maioria das agremiações de esquerda, ou que assim se denominam. Os partidos socialdemocratas, socialistas e ex-comunistas na Europa e na Ásia, assim como o PT no Brasil, não apenas integram esse consenso, mas reivindicam maior competência que os governos supostamente situados à sua direita para garantir taxas mais robustas de crescimento econômico. São mais ou menos competentes, que importa? O traço mais distintivo do capitalismo no século XXI é a tendência ao colapso ambiental. Diante dessa tendência definidora de nosso século, conservar o que resta da biosfera tornou-se a condição primeira de possibilidade, não apenas de avanços sociais (os quais serão cada vez mais improváveis e efêmeros, a se manter o paradigma desenvolvimentista), mas da simples manutenção de qualquer sociedade organizada.

Não percebendo a radical novidade da situação histórica atual, e muito menos sua gravidade, as esquerdas em sua maioria, o PT entre elas, ainda dissociam a agenda social da agenda ecológica, reservando a esta última um espaço secundário em seu ideário e em seus programas, isso quando não a desqualificam como um estratagema de dominação imperialista, como na tristemente famosa carta de Aldo Rebelo a Marcio Santili, de 15 de julho de 2010, intitulada “A trapaça ambiental”, carta na qual afirma: “O chamado movimento ambientalista internacional nada mais é, em sua essência geopolítica, que uma cabeça de ponte do imperialismo”. Tal posição negacionista do PCdoB define à perfeição a política ambiental do governo de Dilma Rousseff e é, aliás, quase idêntica à do Partido Republicano dos EUA.

Atardadas na concepção de um planeta estoque-de-recursos (e ainda mais grave: estoque infinito), essas esquerdas distinguem-se da direita apenas por reivindicar mais investimentos nas áreas sociais e uma melhor distribuição de renda e dos serviços. No mais, subscrevem a premissa que legitima como universal o ponto de vista do capital, a saber, a da bondade e mesmo da necessidade de acumulação contínua de excedente e de energia. Escapa-lhes que a única crítica que vai à raiz do sistema capitalista é a crítica dessa premissa e do tipo suicidário de sociedade que ela implica. A protelação de um “aggiornamento” [atualização], melhor seria dizer de um “svecchiamento” [desenvelhecimento], de parte da maioria da esquerda é a maior responsável pela incipiência atual das alternativas políticas às crises socioambientais que se alastram e se agravam.

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Movimento Democrático 18 de Março (MD18) nasceu da luta contra o golpe de Estado no Brasil. Sediado em Paris, e com grande presença de pesquisadores, professores universitários, artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento propõe ampliar a reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas com intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que visam ampliar o debate sobre as formas de resistência que podem e devem advir. O projeto se inicia com a participação de grandes pensadores da esquerda como Michael LöwyBoaventura de Sousa SantosNancy Fraser e Anselm Jappe, além de contar com a colaboração de inúmeros intelectuais brasileiros. As entrevistas serão disponibilizadas em português e em francês no site do MD 18.

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Luiz Marques é professor do Departamento de História (IFCH) da Unicamp. Publicou diversos livros e ensaios sobre a Tradição Clássica e, mais recentemente, também sobre a crescente degradação antropogênica dos ecossistemas, entre os quais, “Brazil. The legacy of slavery and environmental suicide” (History of Nations, Londres, Thames & Hudson, 2012); e Capitalismo e colapso ambiental (Ed Unicamp, 2015). Atualmente participa, com um coletivo de professores da Unicamp, da criação do portal Rio+40, dedicado à informação, pesquisa, debate e mobilização acadêmica em torno das crises socioambientais contemporâneas.

 

 

A nova Guerra Fria: Estados Unidos e China em busca da hegemonia internacional  

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A comunidade internacional se encontra em momentos de grande apreensão e instabilidade com os movimentos geopolíticos globais mais recentes, depois de anos de hegemonia norte-americana, percebemos movimentos que despertam interesses e preocupações nos países ocidentais, a ascensão chinesa não deve ser vista mais como uma possibilidade, mas como uma realidade, uma tendência cada vez mais atual e preocupante, levando os Estados Unidos a se preparar para uma nova guerra fria, desta vez o adversário é a China, uma sociedade marcada por uma cultura rica e mais de cinco mil anos de história, estamos nos encaminhando para um conflito entre Ocidente versus Oriente.

Depois de um período de hegemonia no cenário internacional, os Estados Unidos vem perdendo espaço em vários setores, sua indústria não é a mais importante do mundo, seus valores perderam força e não mais inspiram outras civilizações, seu poderia inconteste está apenas no poder bélico, mesmo assim sofre com a ascensão chinesa e o poder militar da Rússia, o dólar, que desde o Acordo de Bretton Woods, se notabilizou como a moeda dominante, na atualidade sofre com a ascensão do Euro e com o crescimento do Yuan, moedas que vem ganhando novos adeptos neste cenário global cada vez mais concorrencial, competitivo e marcado por jogadas estratégicas e planejadas.

Os anos 80 trouxeram grandes novidades nos países asiáticos, de uma economia fortemente centralizada e socialista, a China inicia sua abertura econômica, marcada pelo fortalecimento do poder do Estado, como agente estrategista e planejador, e pela centralização de poder nas mãos do Partido Comunista Chinês, o PCC, cujo poder extrapola todas as regiões e províncias do país, elevando a China ao panteão das maiores economia da mundo, em apenas trinta anos o país sai de uma posição intermediária para o posto de segunda maior economia do mundo, além disso, o país se tornou o maior exportador, ganhando posições de países que sempre se caracterizaram como grandes exportadores, como as economias da Alemanha e do Japão.

O crescimento chinês foi, num primeiro momento, visto como algo bastante positivo para as economias desenvolvidas, a grande quantidade de mão de obra e o baixo custo levaram os países desenvolvidos a buscar, nesta região, novos espaços de produção e organização industrial, com isso, a China recebe uma grande quantidade de investimentos estrangeiros, transformando-a num dos grandes pilares do desenvolvimento econômico mundial, atraindo empresas de inúmeros países e produzindo mercadorias a preços reduzidos, contribuindo para inserir os mercados asiáticos neste novo cenário internacional.

No século XXI, depois de seu espantoso crescimento econômico, os países industrializados passam a perceber que todo aquele crescimento gerou, em muitas regiões do mundo desenvolvido, impactos variados, desde a redução do preços dos produtos até a destruição de muitos setores de sua estrutura produtiva, que para sobreviver acabaram fechando suas fábricas no ocidente e abriram unidades em países asiáticos, principalmente na China, tudo isto levou a uma diminuição dos empregos industriais e a uma queda nos salários dos trabalhadores, transformando a classe média dos países desenvolvidos em uma classe decadente, marcada por empregos degradados e com uma alta carga de rancor e ressentimento.

A ascensão asiática, liderada pela China, não é uma miragem, tudo que estamos vivendo e vivenciando no mundo contemporâneo é uma grande realidade, os chineses traçaram uma estratégia muito clara nos anos 80, desde que Deng Xiaoping assumiu os comando dos país, e destacou que não importa a cor do rato, desde que ele cace o gato,  o país deixou de lado as amarras ideológicas do socialismo, características do período Mao Tsé Tung e passou a se direcionar pelo pragmatismo, mesclando, de um lado uma forte dose de mercado, concorrência e competição e, de outro, centralização, autoritarismo, intervencionismo e planejamento.

Diante da ascensão chinesa, os norte-americanos mesclam dois sentimentos com relação a China, são vorazes compradores de mercadorias e dependentes de seus produtos para sua sobrevivência cotidiana e, ao mesmo tempo, ressentem do crescimento do país asiático, que ao crescer atrai para suas fronteiras grandes investimentos e empresas que antes concentravam seus investimentos nos Estados Unidos, com isso, os trabalhadores norte-americanos são obrigados a aumentar sua carga de trabalho para conseguir manter sua renda, buscar novos empregos, reduzindo seu tempo de lazer, sua vivência com seus familiares e seus momentos de ócio, o resultado imediato disto é o aumento do estresse, da ansiedade, da depressão e, em muitos casos, de suicídio.

Depois da ascensão de Donald Trump a presidência dos Estados Unidos, percebemos uma mudança bastante considerável na sua política comercial, as relações com a China estão sendo alteradas e muitos produtos chineses estão sendo sobretaxados, com isso, os dois países estão começando uma grande guerra comercial, os impactos deste movimento para a economia internacional ainda são pouco compreendidos, mas o objetivo maior destas medidas é reverter o alto déficit comercial que os norte-americanos possuem com o país asiático, apenas em 2017 as exportações dos Estados Unidos foram de US$ 140 bilhões enquanto as exportações do dragão chinês foram de mais de US$ 520 bilhões, com isso, o déficit norte-americano foi de quase US$ 400 bilhões.

O que estamos assistindo neste momento é uma grande reconfiguração do poder geopolítico global, um verdadeiro conflito entre as duas maiores economias do mundo, deste conflito teremos o nascimento de uma nova sociedade internacional, com uma nova estrutura de poder e de dominação, o momento atual é tão complexo e assustador que o historiador Nial Ferguson o chamou de uma nova Guerra Fria, um novo momento onde os chineses em ascensão estão sendo chamados para o conflito pelos até então hegemônicos norte-americanos, o resultado deste confronto só o tempo vai poder nos mostrar.

Um dos momentos mais importantes deste conflito foi as medidas adotadas pelo governo dos Estados Unidos para impedir que empresas chinesas comprassem conglomerados norte-americanos, principalmente empresas produtoras de semicondutores e produtos de alta tecnologia, os popularmente conhecidos como chips, esta indústria está no centro do conflito entre chineses e norte-americanos, embora estes últimos sejam os líderes incontestes neste mercado, os chineses estão se movimentando rapidamente neste setor, recentemente o governo do país asiático tornou público um megaprojeto para que até 2025 a China se transformasse no maior produtor mundial de semicondutores, assumindo a liderança que, na atualidade, pertencem aos Estados Unidos.

O que vemos nestas políticas adotadas por ambos os países é que os discursos de liberalismo, de concorrência, competição e de baixa intervenção do Estado na economia são muito mais uma retórica para os outros países do que um ideário seguido por Estados Unidos e China, ambos são intervencionistas, ambos adotam medidas governamentais quando estas se revertem para seus interesses imediatos, o discurso fica mais claro quando identificamos um faça o que digo mas não faça o que faço.

Destacamos ainda, que os impactos desta guerra comercial sobre a economia mundial é algo difícil de mensurar, alguns países acreditam que o conflito lhes trará benefícios futuros, enquanto outros acreditam que terão prejuízos imensos  e imensuráveis mas, na verdade, as consequências desta guerra será prejudicial para toda a economia internacional, afetando países ricos e pobres e trazendo um grande retrocesso para o multilateralismo, dificultando uma maior integração mundial via comércio e produção.

Recentemente, na reunião do G20 realizada na Argentina, os governos envolvidos no imbróglio comercial, assinaram uma pequena trégua nesta disputa por um período de 90 dias, este acordo deve arrefecer os ânimos dos dois países, mas ao mesmo tempo, nos mostra claramente que o conflito já começou a deixar marcas profundas nos contendores, principalmente nos Estados Unidos, cujos impactos econômicos foram bastante sentidos pela população, com incremento na inflação e no aumento nos déficits comerciais.

Com as medidas impostas pelo presidente Donald Trump, que taxou mais de US$ 250 bilhões em importações chinesas, a balança comercial sino-americana ficou ainda mais negativa para os Estados Unidos, os preços dos produtos importaram aumentaram, a renda do trabalhador médio se reduziu e a inflação apresentou sinais de elevação, o que está levando o Banco Central (FED) a elevar as taxas de juros e, com isso, a contrair o crescimento da economia.

Mais do que isso, a guerra comercial está deixando claro as fragilidades da economia norte americana neste momento, seu déficit comercial com a China se elevou, até setembro o déficit acumulado do ano soma US$ 305 bilhões, comparado aos US$ 276,6 bilhões de 2017. Com uma economia com pouca capacidade ocioso, os norte-americanos teriam dificuldades para aumentar os investimentos e fazer novas contratações de trabalhadores para substituir os produtos chineses e se estes investimentos fossem feitos seriam às custas de outras decisões de negócios que são mais lucrativas e cujos retornos são mais seguros e imediatos.

Outro erro central do presidente norte-americano Donald Trump é que sua atenção imediata está nos setores da indústria convencional, desde os tempos de campanha eleitoral, nos estados do Nordeste, do meio-oeste e da Região dos Lagos, em vez de concentrar esforços naquilo que consideramos mais importante, a saber, a competição com a China em setores de alta tecnologia, este sim é o verdadeiro local de embate econômico entre os Estados Unidos e a China.

O novo embate entre estes países não mais será sobre a produção de petróleo, de combustível ou de aço, mas sobre as novas tecnologias do século XXI, principalmente sobre os mercados de inteligência artificial, de computação quântica e de biotecnologia, estes produtos serão as novas armas nucleares e seu domínio prenunciará os ganhadores e os perdedores do mundo contemporâneo, a ciência deve nortear as decisões estratégicas de todos os países, desde os grandes até os menores, sem ela as populações terão grandes dificuldades para assimilar as conquistas do mundo.

O episódio mais recente deste conflito foi a prisão da herdeira e diretora financeira do conglomerado chinês Huawei, ocorrida no Canadá no começo do mês, esta empresa é uma das maiores empresas chinesas, responsáveis pela produção de suprimentos para setores fundamentais do mercado de tecnologia, principalmente para o setor de telecomunicações. O governo norte-americana acusa a Huawei de fornecer informações para o governo chinês, como trabalha com milhares de empresas de tecnologia, os norte-americanos acreditam que esta empresa coleta informações confidenciais e repassa ao governo chinês, cometendo, com isso, inúmeros crimes e estes devem ser punidas.

Ao contrário do que apregoa o liberalismo, vendido pelos países desenvolvidos ao mundo em desenvolvimento, as políticas desenvolvidas na China foram fortemente centradas no planejamento do Estado, nos anos 80 estas empresas eram frágeis e sucateadas, apenas uma política correta de incentivos e posterior concorrência para auxiliar no crescimento destes conglomerados e no fortalecimento do mundo corporativo chinês.

A resolução deste imbróglio pode sinalizar como os dois países estão enxergando este momento de conflito e de incertezas na economia internacional, as discussões iniciais mostraram uma animosidade grande entre as partes, com retóricas exaltadas de ambos os lados, a Huawei não é uma empresa qualquer, trata-se de um dos grandes gigantes da tecnologia chinesa, os próximos capítulos deste confronto podem nos mostrar se os ânimos continuarão exaltados ou se o bom senso deve predominar.

A relação comercial e política entre os dois países piorou sensivelmente depois do episódio acima, o embate descrito como comercial, na verdade é um conflito por hegemonia, os Estados Unidos sentem a ascensão chinesa que, por outro lado, apresenta ambições hegemônicas, com isso, o mundo caminha para um novo conflito econômico, político, cultural e, quem sabe, uma guerra militar, estamos presenciando um momento bastante conturbado e ao mesmo tempo bastante rico e interessante, o início de uma nova guerra, cujos desdobramentos, na atualidade, nos parecem bastante assustadores.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mundo perigoso, violento e de perspectivas sombrias

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Vivemos em uma sociedade marcada por grandes medos e desesperanças, de um lado uns milionários ou melhor, bilionários, vivendo de forma nababesca, ganham recursos de forma rápida, na maioria das vezes com o preço de suas ações e de títulos públicos, se fecham em condomínios fechados, moram em casas suntuosas, seguranças disfarçados, luxo, ostentação e hedonismo são as marcas destes indivíduos, seus gastos diários correspondem aos recursos que os grupos mais fragilizados ganham durante anos, uma sociedade onde as classes médias estão desaparecendo e dois extremos surgindo, os muito ricos e os muito pobres.

Esta nova organização social ainda está sendo construída, de um lado percebemos a destruição e a violência intensa dos países desenvolvidos, fenômenos anteriormente restrito aos países pobres e subdesenvolvidos, hoje se tornou rotina em países desenvolvidos e estruturados, como a França, que recentemente se viu acossada por revoltas e destruições nas ruas, vandalismo e destruição em massa, com saques e roubos no cair da tarde, as reivindicações são as mais variadas, desde os aumentos constantes nos preços dos combustíveis que reduzem o poder de compra da população até os mais variados medos de um futuro próximo, descrito como sombrio, nebuloso e de desesperança.

Nas décadas anteriores vivíamos em uma sociedade mundial marcada por países ricos e pobres, os primeiros eram os grandes beneficiários das benesses da civilização, nestes países a produtividade era alta, os recursos eram abundantes, os serviços públicos eram de excelência e o bem-estar da população era garantido. Nos países mais pobres ou subdesenvolvidos, a situação era diferente, os serviços prestados pelo poder público deixavam muito a desejar, a produtividade dos trabalhadores era alta e as condições sociais eram bastante negativa.

Com o avanço do século XX, percebemos o surgimento de uma nova organização social, a economia passou a ser o centro das atividades produtivas, a política se transformou em refém das decisões econômicas e todo o espectro social se alterou imensamente, era a economia dando as cartas na sociedade, transformando tudo em instrumentos de acumulação, o poder do dinheiro destruía as bases da sociedade e corrompia todas as estruturas sociais, criando uma nova sociedade marcada pelo lucro, pela produtividade e pela busca constante por acumulação, nesta nova sociedade se compra de tudo, desde as mercadorias mais sofisticadas até os prazeres do sexo e do amor verdadeiro, isto mesmo, no mundo contemporâneo compramos até amor verdadeiro.

Com o crescimento do poder da economia, as pessoas são obrigadas a trabalhar todos os dias e horários, se dependessem dos empresários as empresas estariam abertas 24 horas por dia, para este poder dominante da sociedade o trabalho é fonte criadora, apenas esquecem de destacar que numa sociedade onde os trabalhadores trabalham diuturnamente, as famílias perdem seus referenciais e as relações familiares se degradam intensamente, abrindo novos espaços para o avanço da criminalidade, da violência e do banditismo. Não estamos condenando o trabalho e colocando-o no centro dos problemas da sociedade, apenas estamos refletindo sobre o excesso de trabalho, o acúmulo de metas agressivas e a redução do tempo e das relações entre pais e filhos, menos exemplos em casa os adolescentes são facilmente recrutados para atividades paralelas, esta sim está no centro da desagregação e do incremento na violência urbana em curso na sociedade.

Regiões mais desenvolvidas do mundo, como Europa, América do Norte e Japão, viram seu poderio econômico perder força com a nova organização produtiva global, uma nova geopolítica passou a dominar a sociedade global, empresas das regiões mais avançadas migram intensamente para regiões mais pobres e subdesenvolvidas, esta migração objetiva a construção de novos mercados consumidores e a exploração da mão de obra barata destes países, este fluxo econômico e financeiro, num primeiro momento é bem vindo e exaltado por todos, afinal geram empregos e novos investimentos, angariando um incremento da renda, dos salários e do desenvolvimento econômico, mas posteriormente geram instabilidades e incertezas variadas, isto porque estes conglomerados acumulam poder econômico e uma gigantesca força política, influenciando o poder político, fragilizando e colocando em xeque as bases da democracia representativa.

As novas empresas levam também o poderio econômico e político de seus Estados Nacionais, são estes que abrem as portas através de negociações comerciais e financeiras para a instalação destes conglomerados em solos estrangeiros, esta parceria foi muito importante para a internacionalização destas organizações e para o fortalecimento da chamada globalização, cujos malefícios hoje nos parecem mais claros e os benefícios, embora muitos, estão sendo esquecidos e sobrepostos pelas dificuldades do momento.

Depois de mais de trinta anos de crescimento econômico e melhorias sociais inquestionáveis, os anos 1980 nos trouxeram grandes inquietações e preocupações, as corporações ganharam força e poder político, com isso, passaram a dominar as sociedades e traçar estratégias de dominação e cooptação, com seu poder em ascensão e o enfraquecimento dos Estados Nacionais, estas instituições passaram a comandar um novo modelo de capitalismo, mais financeiro e imediatista, onde o lucro crescente, as metas exigentes e os ganhos constantes se transformaram no novo mantra da sociedade internacional.

Nesta nova sociedade, percebemos os impactos crescentes sobre os trabalhadores, de um lado a tecnologia transforma os postos de trabalho, diminuem a contratação e reduzem os salários, obrigando os trabalhadores a salários cada vez menores e jornadas maiores, toda e qualquer reclamação pode, simplesmente, levar a demissão, obrigando-o a trabalhar, trabalhar e trabalhar… até o final de suas forças físicas e emocionais. É neste ambiente, que percebemos um crescimento dos desequilíbrios psíquicos e emocionais, pesquisas recentes destacam que as pessoas estão sofrendo de problemas psiquiátricos com maior frequência, o trabalho exacerbado, as metas inatingíveis e as cobranças desmesuradas estão levando uma parcela cada vez maior dos trabalhadores para os consultórios de psicólogos e para as clínicas psiquiátricas, são verdadeiros zumbis que para enfrentar mais uma jornada exaustiva de trabalho precisam se dopar, com medicamentos e drogas tarjas pretas, sem estes o destino final ou é o manicômio ou o cemitério, isto sem falar no crescimento nos índices de suicídio, somente no amo passado tivemos mais de 800 mil pessoas que se suicidaram no mundo, um número em torno de um suicídio a cada 40 segundos.

Os movimentos ocorridos na França neste final de semana retratam que as dificuldades não estão limitadas apenas aos países em desenvolvimento, depois de um período de forte crescimento econômico e uma ampla melhoria em suas condições de vida, a população dos países desenvolvidos percebeu uma queda considerável em seu padrão de vida, sua renda vem sofrendo uma forte redução nos últimos vinte anos, tudo isto gerou grave descontentamento político e social, levando a população a novas reivindicações e demandas que não estão mais sendo respondidas a altura pelo Estado Nacional e por toda a classe política destes países, o grande risco está na demonização da política, sem ela o que sobra é a lei do mais forte, e nesta os grandes sempre levam vantagens.

Nos Estados Unidos os movimentos e as perspectivas sociais não são mais animadores que os ocorridos na França, a vitória de Donald Trump para a presidência em 2016 mostrou uma forte insatisfação de grupos que estão, nos últimos anos, sendo alijados do poder e vendo sua renda, seus recursos e seus rendimentos serem reduzidos, seu status quo diminui e seus medos com relação aos produtos estrangeiros e aos indivíduos que chegam de outros países crescem de forma acelerada, alimentando grupos de direita e setores mais reacionários da sociedade.

Com a integração das economias e o crescimento dos blocos econômicos, o fortalecimento dos conglomerados transnacionais, os Estados perderam força política e poder econômico, ao mesmo tempo que as demandas sociais da comunidade cresceram de forma acelerada, a competição desenfreada e a busca constante por lucros e rendimentos geraram um incremento no desemprego e uma queda na renda agregada da economia, tudo isto impactou sobre as receitas dos governos e, ao mesmo tempo, pressionou seus gastos, levando a um incremento na dívida pública e a uma maior dependência dos mercados para financiar estes gastos adicionais e constantes, o resultado disso tudo é que a maior parte dos Estados Nacionais estão presos aos mercados financeiros nacional e internacional, suas dívidas crescem de forma acelerada e grande parte de seus recursos são tragados para o pagamento destes compromissos, deixando a população, principalmente as mais vulneráveis, em condições de calamidade.

O avanço da tecnologia nos últimos anos contribuiu para uma melhoria na prevenção e na cura de inúmeras doenças, moléstias que até recentemente eram vistas como muito agressivas e os pacientes estavam condenados a morte, agora sobrevivem e vivem muitos anos, tudo isto pode ser descrito como uma das maiores conquistas da humanidade, nesta sociedade global os seres humanos estão vivendo mais e melhor e os impactos sobre as finanças da sociedade é imediato e preocupante, levando todos os Estados a repensarem seus gastos com a previdência  e a seguridade social.

Ao mesmo tempo que tivemos melhorias na medicina nos anos recentes, percebemos também um incremento na insegurança pública, a violência cresceu de forma acelerada em todas as regiões do mundo, países como o Brasil apresentaram em 2017 mais de 63 mil assassinatos, colocando-nos nos primeiros lugares entre os países mais violento do mundo, em situação semelhante a países que se encontram, a muito tempo, em guerras fratricidas. Além do crescimento da violência, percebemos o crescimento do crime organizado, grupos bem estruturados que atuam dentro do território nacional em várias áreas e setores altamente rentáveis, desde o roubo de cargas, comércio clandestino de cigarros, prostituição, tráfico de drogas, terrorismo, corrupção e roubos a bancos e, com isso, movimentam bilhões de reais criando medo, insegurança e instabilidade. Este avanço exige uma forte organização dos Estados Nacionais, estrutura repressiva, judiciário capacitado e políticas públicos concatenadas para o combate a estas organizações que crescem de forma acelerada, cooptam pessoas nas mais variadas áreas e setores e minam a democracia e o poder das instituições governamentais.

A população dos países desenvolvidos percebe que o futuro está marcado por incertezas, medos e desesperanças, os cidadãos que conheceram as benesses do crescimento econômico e da melhoria das condições sociais, hoje estão amedrontados com as condições que se colocam, a concorrência acirrada e os fortes investimentos em tecnologias, colocam os trabalhadores em condições secundárias no mercado de trabalho, a qualificação e o aperfeiçoamento sozinhos não respondem as principais indagações na busca por empregos, as corporações exigem cada vez mais capacitação e remuneram cada vez menos, estamos no pior momento da classe trabalhadora que, definitivamente, na atualidade não vai mais para o paraíso.

Aos trabalhadores, a busca por trabalho e qualificação é uma constante, na era da inteligência artificial, os novos empregos exigem investimentos enormes e de uma motivação infinita, além de uma grande bagagem emocional e sólida estrutura espiritual, como construir uma carreira de sucesso se o mundo se transforma com uma rapidez jamais vista na história da humanidade? E como compatibilizar carreira de sucesso com uma família estruturada e feliz? E o que podemos entender, no mundo contemporâneo, como uma carreira bem sucedida? São perguntas que toda sociedade civilizada precisa responder para poder viabilizar um futuro melhor digno e esperançoso para seus cidadãos.

Nestes momentos de instabilidades e medos, faz-se necessário repensar o modelo de desenvolvimento adotado pela sociedade internacional, de nada adianta aumentar a produtividade do trabalhador, diminuir o preço dos produtos, produzir em escalas cada vez maiores se o ser humano precisa urgentemente de ajuda emocional, se continuarmos criando indivíduos doentes e com graves desequilíbrios emocionais o fim da humanidade estará diuturnamente mais próximo e todos seremos condenados e responsabilizados por esta destruição.

Todos nós somos culpados pelos desajustes desta sociedade, todos contribuímos para esta desagregação dos vínculos sociais e da desumanização que cresce a passos largos e consolidados, as revoluções armadas não conseguem e não conseguiram sozinhas dar as respostas que todos desejamos, apenas uma revolução silenciosa e individualizada, onde cada um deve fazer a sua parte, com isso, os resultados positivos crescerão rapidamente e a sociedade tende a se consolidar, abrindo espaço para a empatia, o respeito e a solidariedade, sentimentos esquecidos no mundo contemporâneo mas fundamental para a construção de uma sociedade inclusiva e solidária.

 

 

 

 

 

Não faz sentido culpar só a internet pela disseminação de fake news, diz autor

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Ricardo Abramovay analisa estudo sobre como influência da televisão e círculos ideológicos geram desinformação

Ilustríssima – Folha de São Paulo – 18/11/2018

A ascensão da extrema direita em várias partes do mundo lançou a internet num ameaçador território distópico. O otimismo em torno de sua vocação democratizante e descentralizadora esvaneceu, até para seus mais vigorosos apologistas. Nicholas Thompson, comemorando os vinte e cinco anos da revista Wired (a mais importante publicação sobre tecnologia em todo o mundo) afirma, logo ao início da imperdível conversa que manteve com Yuval Nohah Harari e Tristan Harris[1]: “quando a revista foi fundada, ela tinha a marca do otimismo, da mudança e pautava-se na ideia de que tecnologia é bom e mudança é bom. Vinte e cinco anos depois, olhando como o mundo está, não dá mais para manter integralmente aquela filosofia”.

A internet pede desculpas: este é o título de um conjunto de entrevistas que a revista norte-americana Intelligencer[i] fez com figuras icônicas do Vale do Silício como Jaron Lanier (cujo último livro[ii] propõe que as pessoas abandonem todas as redes sociais), Guillaume Chaslot (que ajudou a desenvolver o algoritmo de recomendações do You Tube e que hoje denuncia seus efeitos nefastos) e Roger McNamee (investidor que foi conselheiro de Mark Zuckerberg e é atualmente um de seus mais implacáveis críticos), entre outros. Acumulam-se artigos científicos e imensa quantidade de livros nos últimos dois ou três anos denunciando o modelo de negócios dos gigantes digitais contemporâneos por estar conduzindo o bem público que é a internet a um caminho oposto ao concebido por seus criadores.

Yochai Benkler, Robert Faris e Hal Roberts (os três do Berkman Klein Center para Internet e Sociedade da Universidade Harvard) acabam de publicar Network Propaganda[iii] em que, mesmo reconhecendo as ameaças do modelo de negócios dos gigantes digitais à vida cívica contemporânea, mostram que as mídias sociais não podem ser consideradas como os vetores fundamentais da ascensão do que chamam de “majoritarianismo autoritário” nos Estados Unidos e, provavelmente, tampouco no resto do mundo.

A individualização massificada

Na base deste modelo de negócios estão as mudanças tecnológicas que tiveram início com o smartphone, a computação em nuvem, o avanço da aprendizagem de máquinas e da inteligência artificial. Captadores de imagens, de voz, que reconhecem o movimento das pessoas, mesmo que não estejam em posse de seus celulares completam o que Shochana Zuboff caracteriza como o capitalismo de vigilância[iv]. Os dados que fornecemos permanente e involuntariamente não só no uso de dispositivos digitais, mas até caminhando pelas ruas ou fazendo compras são coletados, armazenados, processados e permitem o conhecimento individualizado de cada um de nós num grau de detalhe que vai além de tudo o que o marketing convencional (comercial ou político) jamais sequer imaginou.

O conhecimento tão minucioso e personalizado não só de nossos comportamentos, mas até de nossos sentimentos íntimos abriu caminho a um modelo de negócios pelo qual os gigantes digitais conquistaram um grau de riqueza e de poder inédito na história da economia moderna. Como bem mostra Woodrow Hartzog no recém publicado Privacy’s Blueprint[v], a concepção dos dispositivos digitais e dos aplicativos a partir dos quais os usamos agride alguns dos mais importantes valores da democracia, a começar pela privacidade. Mas como esta permanente invasão da privacidade é um fenômeno coletivo, atingindo hoje bilhões de pessoas, Hartzog denuncia um perigoso poder de influir nas opções dos consumidores e dos cidadãos por parte de quem detém o conhecimento dos perfis de cada um de nós. O escândalo do vazamento dos dados dos usuários do Facebook, coletados pela Cambridge Analytica levantou a suspeita de que o resultado das eleições norte-americanas de 2016 teria sido outro sem a manipulação que permitiu o envio de mensagens personalizadas e de forma massiva voltadas a destruir a figura de Hillary Clinton.

O diagnóstico parece irrefutável, que se trate de Trump, do Brexit, de Orbán na Hungria ou de Duterte nas Filipinas: o modelo de negócios dos gigantes digitais, a coleta generalizada de dados pessoais, o tratamento destas informações por algoritmos cada vez mais sofisticados e o conhecimento individualizado a que abrem caminho tudo isso permite uma influência sobre a vida cívica e eleitoral que compromete a própria democracia. Junte-se a isso o uso destes dispositivos por estrangeiros (e sobretudo russos, no caso norte-americano) e está formado o quadro que poderia ser sintetizado numa fórmula sombria: a democracia não tem como sobreviver à internet.

Polarização assimétrica

Network Propaganda contesta esta conclusão, respaldado por colossal massa de dados empíricos. Não que a internet esteja isenta de ameaças para a vida democrática ou que as mídias sociais não tenham sido veículos de transmissão de notícias falsas em larga escala. No entanto, segundo pesquisa citada por Benkler, Faris e Roberts, apenas 14% dos norte-americanos identificavam as mídias sociais como as mais úteis fontes para sua informação, no processo eleitoral de 2016. Isso significa que os eleitores foram às urnas bem informados?

Para responder a esta pergunta os autores mostram uma impressionante assimetria entre o ecossistema informativo em que vivem os eleitores da extrema-direita norte-americana e aquele que marca os de centro e os de esquerda. 47% dos norte-americanos que se consideram “consistentemente conservadores” informam-se sobre governo e política quase exclusivamente pela Fox News. Trata-se de um canal de TV que não hesita em difundir e fazer “reportagens” sobre a filiação de Hillary Clinton ao fundamentalismo islâmico (ao ISIS), sobre o poder da Arábia Saudita na Fundação Clinton, sobre o acordo secreto para que os americanos vendam urânio para os russos, sobre o tráfico de crianças vindas do Haiti, promovido pelos Clinton, visando a pedofilia ou sobre o chefe da campanha de Hillary (John Podesta, hoje professor visitante da prestigiosa Georgetown Law University) como praticante de magia negra. Por maior que tenha sido a divulgação destas histórias pelo Facebook, este era a fonte principal de informação para apenas 7% dos eleitores de Trump.

Já as pessoas que se declaram “consistentemente liberais” tinham suas fontes de notícias muito mais diversificadas: 15% assistiam a CNN, 13% a NPR, 12% a MSNBC e 10% liam o New York Times. Da mesma forma que com os eleitores de Trump, o Facebook foi a fonte primária de informação para apenas 8% dos eleitores democratas.

É verdade que a desconfiança com relação à imprensa aumentou muito nos EUA dos anos 1970 para cá, quando atingia entre 10% e 20% da população (um pouco mais os republicanos que os democratas). Em 2016 esta desconfiança subiu assustadoramente, mas chega a 40% entre os democratas e a nada menos que 60% entre os republicanos.

Três conclusões emergem destes dados: a primeira é que a influência das mídias sociais nas eleições norte-americanas de 2016 foi bem inferior ao que inúmeros estudos estimam. Mesmo que o envio personalizado, mas massivo, de mensagens ameacem a democracia, não foi este o principal responsável pela informação de que se alimentou o eleitor norte-americano em 2016. A segunda conclusão é que a televisão teve um papel decisivo. A terceira é a mais importante, sobretudo porque traz lições sobre a ascensão da extrema-direita além dos Estados Unidos: são muito mais concentradas e exclusivas as fontes de informação dos eleitores de Trump, quando comparados aos democratas.

Se esta concentração fosse o resultado do formato e do design das mídias sociais, ela atravessaria de modo mais ou menos homogêneo todo o espectro político. Mas na extrema-direita é impressionante a crença e a falta de meios de contestação de histórias totalmente absurdas e que só podem ser compartilhadas por quem está fechado num círculo político e cultural que reitera as identidades que o constituem (a supremacia branca, a aversão à imigração, os valores tradicionais contrários à revolução sexual e à emancipação feminina, entre outros). Nos Estados Unidos, o compartilhamento de informações fantasiosas, sem qualquer verificação de sua veracidade, atinge, de forma sistemática nada menos que 40% da população. Mas a fantasia não se distribui de forma homogênea no espectro político e eleitoral.

A palavra “polarização” escamoteia uma notável assimetria entre o comportamento da mídia de extrema-direita e as regras que norteiam o ecossistema informativo que a ela não se filia. São duas comunidades epistêmicas que funcionam a partir de lógicas bem distintas uma da outra. Claro que na esquerda também circulam histórias falsas como a veiculada em 2016, de que Donald Trump violentou uma criança de treze anos em 1994. Mas esta informação foi muito mais submetida ao crivo da crítica e das fontes alternativas do que as criadas pela Fox, pelo Breitbart e por inúmeros colunistas (muitos dos quais praticantes do poderoso tele evangelismo), difusores de histórias em que é difícil imaginar que as pessoas acreditem.

O declínio da objetividade

O poder destas narrativas fantasiosas torna-se ainda mais intrigante quando se leva em conta que durante o Século XX desenvolveram-se instituições e uma cultura voltada a coibir o charlatanismo em quase todos os campos profissionais. Isso se exprime nas associações médicas, na generalização dos métodos de revisão pelos pares em publicações científicas, nas associações de economistas, cientistas políticos, advogados e na edição, por parte da maior parte dos grandes jornais em todo o mundo, de manuais de redação que procuram estabelecer os meios que permitem ao público a crença compartilhada nas informações transmitidas e as bases do jornalismo objetivo. É claro que a mentira, a má informação, a desinformação intencional e a má fé sempre existiram, sobretudo no calor das disputas eleitorais. Mas o Século XX, sobretudo após a IIª Guerra Mundial, traz a marca de instituições e do fortalecimento de uma cultura, ao menos nas sociedades democráticas, voltadas a coibir a informação e as narrativas mentirosas.

Este mundo desabou, sobretudo na segunda década do Século XXI, quando, nos Estados Unidos, entram em cena tanto um conjunto de sites, blogs (Breitbart, Infowars, Truthfeed, Zero Hedge, Gateway Pundit) e colunistas de repercussão nacional sem qualquer compromisso com estas normas de objetividade. Mas mesmo emissoras como Fox News e Daily Center, que alegam seguir normas de jornalismo objetivo, na verdade não o fazem.

Benkler, Faris e Roberts mostram que nos Estados Unidos o ecossistema informativo não é marcado por uma polarização direita/esquerda e sim entre direita e todo o restante da mídia. É na direita, mostram os dados, que se concentram os modelos de câmaras de eco, com alto grau de impermeabilidade de seus participantes a tudo que não pertence ao universo cultural em que vivem, o que os torna ainda mais suscetíveis à crença em teorias conspiratórias e narrativas inverossímeis. O noticiário, as opiniões dos colunistas de repercussão nacional e dos blogs mais frequentados têm, permanentemente esta propensão de confirmar a identidade cultural dos que os recebem e transmitem.

Em que consiste esta identidade conservadora? No caso norte-americano ela é uma reação ao movimento de direitos civis (contra o racismo), às lutas pela emancipação feminina, à revolução nos costumes, que os anos 1960 trouxeram e contra as quais um vasto conjunto de pregadores religiosos, de colunistas e de emissoras de rádio e TV (que passaram a ter alcance nacional por mudanças na legislação de broadcasting) se organizou. A valorização da família patriarcal e a apologia ao individualismo são o sustentáculo dos pilares pelos quais a coalizão que resultou na presidência de Donald Trump imprimiu sentido e identidade (mais do que um programa de governo) a milhões de norte-americanos que se alimentam espiritualmente do fechamento em si mesmo de seu ecossistema informativo.

Duas conclusões emergem da análise de Benkler, Faris e Roberts. A otimista é que a internet não está condenada a ser um vetor de destruição da democracia. É fundamental e é possível estabelecer regras que permitam ao público distinguir a informação da propaganda política tóxica e há um forte movimento nesta direção, não só nos EUA. A pessimista é que não há forma simples de enfrentar a crise epistêmica em países onde grande parte da população vive em círculos culturais que fazem da informação distorcida e muitas vezes falsa um meio para fortalecer as identidades e os significados a partir dos quais as pessoas enxergam o mundo.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/nao-faz-sentido-culpar-a-internet-pelas-fake-news-afirma-pesquisador.shtml

[1] https://video.wired.com/watch/yuval-harari-tristan-harris-humans-get-hacked

[i] http://nymag.com/intelligencer/2018/04/an-apology-for-the-internet-from-the-people-who-built-it.html

[ii] https://www.intrinseca.com.br/livro/857/

[iii] https://global.oup.com/academic/product/network-propaganda-9780190923624?cc=us&lang=en&

[iv] https://www.publicaffairsbooks.com/titles/shoshana-zuboff/the-age-of-surveillance-capitalism/9781610395694/

[v] http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674976009

 

 

Competências para o mercado: todos precisam ser líderes?

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Ainda que a formação de profissionais capazes de liderar projetos seja altamente relevante, as instituições não podem descuidar da diversidade de perfis. Há muitas outras competências para serem desenvolvidas

Diego Braga Norte  20 DE OUTUBRO DE 2018 – Revista Ensino Superior

De todas as competências socioemocionais trabalhadas no ensino superior, a liderança é certamente a mais incensada. Muitos cursos de graduação e pós dedicam horas ao seu desenvolvimento, pois seus coordenadores acreditam que, ao despertar o espírito de liderança em seus alunos, estarão desenvolvendo também a capacidade de resolver problemas, de se comunicar, de trabalhar em equipe, entre tantas outras características valorizadas pelo mercado.

Porém, enquanto alguns são líderes natos, outros só conseguem desenvolver parcialmente tal capacidade. Há ainda aqueles que não desejam ou mesmo não têm o perfil de um líder, dentre as muitas nuances nessa zona cinzenta que envolve a personalidade e os anseios humanos.

“Esse papo que todo mundo pode ser líder é uma falácia. E excesso de líderes não funciona. Tribo com dois caciques não existe”, indica Victor de La Paz, supervisor do laboratório de recursos humanos da ESPM. Fato posto, estariam as IES falhando ao se dedicarem com tanto afinco à formação de líderes? A resposta é sim e não.

Sim, se elas pretenderem ensinar apenas um tipo de liderança para diferentes perfis. E não, quando ensinam o autoconhecimento e valorizam os pontos fortes de cada indivíduo, num ensino mais integral e inteligente.

Do mercado de trabalho para a sala de aula

A emergência desse tema nas faculdades brasileiras é recente. De acordo com Luiz Felippe Mata Ramos, pesquisador e professor do Centro Universitário Senac, a importância das habilidades socioemocionais e, mais especificamente, da capacidade de liderança surgiu no mercado de trabalho e, como sempre acontece, extravasou para a formação profissional e acadêmica.

“Não é algo casual; é decorrente de um processo histórico da pós-modernidade, que passou a ser enxergada e discutida do final dos anos 1980 e durante a década de 1990”, diz Ramos.

Em 1995, a publicação do livro Inteligência emocional, de Daniel Goleman (Ed. Objetiva), popularizou definitivamente as habilidades socioemocionais, complementa Paulo Vieira de Campos, professor de liderança corporativa da ESPM. Também no mesmo período, tivemos o surgimento de um mercado de trabalho global, mais dinâmico e altamente especializado — algo que primeiro foi notado nos Estados Unidos e Europa.

Esse novo contexto criou um lapso entre a formação e o emprego. “Era uma geração de pessoas carentes de experiências profissionais e sem nenhum contato com práticas corporativas”, prossegue o pesquisador Ramos.

Para suprir essa carência profissional, surgiram os MBAs. E com os MBAs, técnicas e processos utilizados em corporações multinacionais entraram definitivamente nas salas de aula, como a ênfase na liderança.

 Sem múltipla escolha

Hoje, a relevância que se dá às características socioemocionais e à personalidade dos alunos é tão grande que algumas faculdades — como a FGV, o Insper e a Faculdade Israelita d​e Ci​ências da Saúde Albert Einstein, por exemplo — já utilizam avaliações presenciais, entrevistas e dinâmicas de grupo para escolher seus futuros alunos.

Similares aos processos de seleção utilizados por grandes empresas, essa forma de triagem pode ser muito útil para garimpar determinados perfis, mas não são perfeitas. Como todos os processos coordenados por humanos, estão sujeitos a falhas, geralmente provocadas pela ampla margem de subjetividade envolvida na tarefa.

Para Marcelo Haegenbeek, CEO da Apponte, empresa de gestão de RH, com esse modelo de seleção, há o risco de tanto as IES como as empresas contratarem pessoas com perfis muito parecidos. “Isso muitas vezes ocorre e afeta a diversidade de personalidades e de forma de pensamento”, avalia.

Os prejuízos da falta de diversidade tendem a aparecer no médio e longo prazo, comprometendo metas e o próprio desempenho de uma sala de aula ou de uma companhia. “Empresas precisam buscar a complementaridade, sempre. A diversidade propicia a inovação no ambiente organizacional. Equipes bem estruturadas têm pessoas com diferentes habilidades e competências; e um bom gestor para direcionar os trabalhos e dirimir os conflitos”, opina Marco Antônio Lovizzaro, professor de Liderança e Gestão de Pessoas da Fiap.

A vingança dos tímidos

“Nossas escolas e instituições são pensadas para pessoas extrovertidas. Temos também um sistema de crença, que eu chamo de ‘novo pensamento de grupo’, de que toda a criatividade e produtividade vêm de um lugar muito sociável e comunitário”, escreve a autora americana Susan Cain em seu livro O poder dos quietos (Ed. Agir).

De acordo com a pesquisadora, as sociedades ocidentais sempre favoreceram o homem de ação em detrimento do homem de reflexão e contemplação.

Analisando o desenvolvimento da sociedade ao longo do século 20 e mais acentuadamente agora, no 21, com o culto às personalidades, celebridades e a influência da cultura “corporativa descolada” do Vale do Silício, é perfeitamente compreensível que magnetismo pessoal, carisma e capacidade de influenciar os outros tenham se tornado muito importantes. Sendo assim, não espanta constatar que os youtubers são os atuais ídolos da juventude.

Há atualmente um sistema que privilegia a formação de grupos e o trabalho em equipe, algo muito importante, sem dúvida, mas que pode prejudicar pessoas brilhantes e mais introspectivas.

A psicologia contemporânea já comprovou que as pessoas não conseguem ficar num grupo sem imitar opiniões e comportamentos dos demais, muitas vezes sem mesmo notarem isso. Geralmente, uma ou mais personalidades extrovertidas dominam o ambiente e influenciam os demais, que podem estar seguindo uma ótima ideia, ou não.

Se um jovem decide se afastar e fazer o trabalho sozinho, é geralmente visto como estranho, ou pior, problemático. E a maioria dos professores acredita que o estudante ideal é o extrovertido, mesmo quando introvertidos têm melhores notas e são mais cultos, de acordo com pesquisas.

Pessoas mais reservadas são normalmente rechaçadas de posições de liderança, mesmo que introvertidos sejam muito cautelosos, menos passíveis de cometer erros. Uma pesquisa coordenada por Adam Grant, professor de gestão e psicologia da Wharton School (considerada a escola com o melhor MBA de Administração dos EUA), na Filadélfia, descobriu que líderes introvertidos apresentam melhores resultados que os extrovertidos.

Os introvertidos são melhores ouvintes e deixam seus subordinados mais à vontade, enquanto os extrovertidos têm a característica de ficar tão excitados a ponto de atropelar as ideias de seus subordinados.

Para evitar que problemas assim aconteçam, os especialistas não propõem o fim dos trabalhos em grupo, mas indicam que, paralelamente, é preciso incentivar os “voos solitários”, momentos e atividades que favoreçam a privacidade e a autonomia.

Em tarefas que precisam ser necessariamente feitas em equipe, o ideal é cada integrante gerar suas próprias ideias e depois discutir com os demais, evitando assim a predominância de um falso líder.

Siga o líder

É preciso sempre ter em vista que existem maneiras diferentes de liderar, avalia a psicanalista Roberta D’Albuquerque. “Há espaço para pensar as pessoas a partir de suas singularidades, o que as torna quem são e como isso pode contribuir para o grupo social”, completa.

Sofia Esteves, presidente do Conselho da Cia. de Talentos, empresa de consultoria em gestão de pessoas e RH, afirma que a extroversão não é uma característica determinante num líder. “Autoconhecimento e equilíbrio para fazer as escolhas certas são muito mais impactantes”, pensa.

“Ninguém nasce para liderar, não há prova científica disso. Há pessoas com mais capacidade de comunicação, mais expansivas, mais carismáticas, mas isso não necessariamente as torna líderes”, explica Lovizzaro, da Fiap.

Liderar, basicamente, é ter a capacidade de influenciar o comportamento de outras pessoas e isso pode ser treinado e aprimorado. Saber conviver socialmente é uma necessidade de qualquer indivíduo. Ninguém consegue fazer muita coisa sozinho; profissionalmente, muito menos.

Portanto, resta aos tímidos e introspectivos serem incentivados a desenvolver suas próprias formas de exercer a liderança – se assim desejarem.