O neoliberalismo e a hegemonia dos valentões, por George Monbiot

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O sistema entende a vida como uma luta na qual só alguns devem vencer, promovendo líderes capazes, desde a infância, de coagir, submeter e ser brutais. Não precisa ser assim. Na competição, todos somos, de algum modo, derrotados

George Monbiot – Outras Palavras – 29/04/2024

Um grande e impressionante estudo sobre o progresso das crianças na idade adulta descobriu que aqueles que promovem bullying e apresentam comportamento agressivo na escola têm maior probabilidade de prosperar no trabalho. Eles conseguem empregos melhores e ganham mais. Os pesquisadores afirmam estar surpresos com suas descobertas, mas será que elas são realmente tão notáveis? A associação de cargos de chefia com comportamentos de intimidação e domínio será, sem dúvida, um choque para muitos.

Isto não significa que todas as pessoas com bons empregos ou que dirigem organizações sejam agressoras. Longe disso. Não é difícil pensar em pessoas boas em posições de poder. O que isto nos diz é que não precisamos de pessoas agressivas para organizar as nossas vidas. Nem a boa liderança, nem o sucesso organizacional, nem a inovação, a visão ou a previsão exigem uma mentalidade de domínio. Na verdade, tudo pode ser inibido por alguém que exerce seu peso.

Seja na teoria dos jogos ou no estudo de outras espécies, você descobre rapidamente como o comportamento dominante de alguns pode prejudicar a sociedade como um todo. Por exemplo, um estudo sobre peixes ciclídeos descobriu que os machos dominantes têm “relações sinal-ruído mais baixas” (som e fúria, sem significar nada) e impactos contraproducentes no desempenho do grupo. Alguma coisa parece familiar?

Uma vitória para os agressores é uma perda para todos os outros: o seu sucesso é um jogo de soma zero. Ou soma negativa: o primeiro estudo que mencionei também descobriu que os agressores escolares são mais propensos a abusar do álcool, fumar, infringir a lei e sofrer problemas de saúde mental mais tarde na vida. Mas o triunfo dos agressores é também um resultado da narrativa dominante dos nossos tempos: durante os últimos 45 anos, o neoliberalismo caracterizou a vida humana como uma luta que alguns devem vencer e outros devem perder. Somente por meio da competição, nesta religião quase calvinista, podemos discernir quem pode ser o digno e o indigno. A competição, claro, é sempre fraudada. O objetivo do neoliberalismo é fornecer justificativas para uma sociedade desigual e coercitiva, uma sociedade onde os valentões governam.

É um círculo perfeito: o neoliberalismo gera desigualdade; e a desigualdade, como mostra outro artigo, está fortemente associada ao bullying na escola. Com maiores disparidades de rendimento e de estatuto, o estresse aumenta, a concorrência aumenta e o desejo de dominar intensifica-se.

A patologia se autoalimenta.

Os pesquisadores que conduziram o primeiro estudo sugerem, tendo descoberto que os agressores prosperam, que deveríamos “ajudar a canalizar esta característica nas crianças de uma forma mais positiva”. Na minha opinião, esta é uma conclusão errada. Em vez disso, deveríamos procurar construir sociedades nas quais a agressão e o domínio não sejam recompensados. Seria melhor que as escolas se concentrassem na dissuasão e no aconselhamento.

Mas em todas as fases de nossa vida somos forçados a uma competição destrutiva. Não somente as crianças são pressionadas repetidamente a participar de concursos de seleção, mas também as escolas. Na Inglaterra, por exemplo, com seus testes Sats e o brutal regime Ofsted, essas competições prejudicam o bem-estar das crianças e dos professores. Como sempre, a competição é organizada para permitir que os ricos e poderosos vençam. Mas, como Charles Spencer explica em seu livro de memórias sobre a vida em um internato, ganhar também é perder: os pais que mandam seus filhos para escolas particulares pagam para criar uma personalidade externa dominante, mas a criança dentro da concha pode estar distorcida em nós de medo, fuga e raiva.

Esta contra-educação é reforçada mais tarde na vida por milhares de livros, websites e vídeos de autoajuda. Por exemplo, um site e programa popular chamado The Power Moves, dirigido pelo cientista social Lucio Buffalmano, ensina “10 maneiras de ser mais dominante”. Estas incluem exercer pressão social, reivindicar território, “agredir, afirmar e punir” e dar tapas na cara. Você também pode aprender oito maneiras de dominar as mulheres, uma lição essencial porque, aparentemente, “as mulheres dormem com homens que as obrigam a se submeter”. As técnicas que Buffalmano promove incluem “segurar o rosto dela se ela se recusar a beijar você”, “empurrá-la de brincadeira para a posição horizontal”, “arrastá-la de brincadeira para a cama” e “penetrar sua mente com ‘Daddy Dominance’”.

Buffalmano afirma que quer “promover a humanidade capacitando homens bons a avançar, liderar e vencer”. O resultado mais provável é aumentar o número de idiotas. Em vez disso, deveríamos aprender a ser atenciosos, pró-sociais e gentis: resistir à dominação, independentemente de quem a exerça.

O bullying óbvio no local de trabalho não é mais tolerado de modo geral. Mas suspeito que, em muitos casos, a aparente melhora é resultado do fato de os agressores aprenderem a mascarar seus impulsos, enquanto continuam a controlar e manipular sem ultrapassar a linha do RH.

Mas o bullying ostensivo está ressurgindo na política. Trump, Putin, Netanyahu, Orbán, Milei e outros fazem pouco para disfarçar seus comportamentos de dominação grosseira. Quando Trump ficou atrás de Hillary Clinton durante o debate presidencial e quando zombou vergonhosamente da deficiência de um jornalista, pudemos ver a criança que ele era e a criança que continua sendo.

Nossos sistemas políticos – centralizados e hierárquicos – estão prontos para serem explorados por valentões. Como nos pátios das escolas de antigamente, as piores pessoas acabam no topo.

A mesma dinâmica opera em nível global. Os governos garantem a seus cidadãos que estão envolvidos em uma “corrida global”: se ficarmos para trás, outra nação nos ultrapassará. Essa história de competição de soma zero justifica todo e qualquer abuso. Ela foi usada pelas nações europeias para racionalizar a construção de seus impérios e guerras eletivas. Logo foi acompanhada por um mito egoísta: o de que a corrida pelo domínio será vencida pela “raça dominante”. Como disse Charles Darwin: “As raças civilizadas do homem quase certamente exterminarão e substituirão as raças selvagens em todo o mundo”. Por meios mais sutis, com justificativas mais sutis, as nações ricas ainda jogam o mesmo jogo: sua riqueza depende, em grande parte, da extração de outros países.

Mas enquanto a corrida unilateral entre as nações continua, corremos coletivamente em direção ao precipício do colapso ambiental. Se alguma vez houve a necessidade de cooperação e colaboração, é agora. Mas a competição reina, uma competição que todos nós estamos destinados a perder.

Em resumo, devemos parar de celebrar o comportamento coercitivo e controlador. Em todas as etapas da educação e da progressão na carreira, bem como na política, na economia e nas relações internacionais, devemos procurar substituir um ethos competitivo por um ethos cooperativo.

Esse é o aspecto surpreendente dos seres humanos, ao contrário dos peixes ciclídeos: não precisa ser assim. Podemos controlar nosso próprio comportamento, além de imaginar e criar formas melhores de organização. Por meio da democracia deliberativa e participativa, tanto na política quanto no local de trabalho, podemos criar sistemas que funcionem para todos. Não há nenhuma lei natural que determine que os agressores de playgrounds devam continuar cobrando tributos pelo resto de suas vidas.

Pochmann: As três ondas de ultradireita no Brasil.

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Do Integralismo e da “Defesa da Tradição”, nos anos 30 e 60, país chegou ao bolsonarismo – em asfixia, mas com inegável força. Governo Lula pode ser crucial para superá-lo de vez. Mas precisará evitar os erros que alimentam o extremismo

Marcio Pochmann, OUTRAS PALAVRAS – 05/06/2023

Na esfera da disputa de poder em torno de interesses e necessidades de classes e frações de classes sociais, a política resulta de uma totalidade social complexa, cuja separação ideológica entre esquerda e direita tem origem na Revolução Francesa que em 1789 marcou a formação do Ocidente Moderno. Originariamente, os delegados defensores das mudanças sociais no velho agrarismo em torno da igualdade na França durante o último quarto do século 18 se posicionaram à esquerda do rei, enquanto os representantes dos interesses de aristocratas e conservadores da época se localizaram à direita.

Assim, em geral, o espectro ideológico de direita se afirmou como reação às mudanças que possam alterar o status quo de segmentos ricos, poderosos e privilegiados no interior de cada sociedade. No Brasil, a direita extremada se constituiu mais e melhor organizada em três diferentes momentos de inflexão da história republicana nacional.

O primeiro momento se estabeleceu na crise do liberalismo que a partir dos anos de 1920 terminou por colapsar o longevo projeto agrarista, produzindo, em consequência, distintas mobilizações em torno de novos rumos possíveis para o Brasil. Com Plínio Salgado à frente da Ação Integralista Brasileira (AIB) criada em 1932, o ideário fascista de base italiana ganhou expressão nacional e encadeou o movimento cívico cultural nos meios políticos e intelectuais em resposta aos efeitos internos da Grande Depressão capitalista de 1929.

Entre 1935 e 1937, por exemplo, o Partido Ação Integralista em inédito ritmo de expansão foi considerado a maior organização fascista em operação fora da Europa. Assim como o integralismo se alastrou na década de 1930, o Partido Nazista no Brasil também ganhou dimensão expressiva, assumindo a posição de maior seção do nazismo fora da Alemanha. Ambos os movimentos populares de extrema direita buscavam chegar ao poder pela via democrática, somente interrompida pela instalação do Estado Novo (1937-1945).

O segundo momento de inflexão histórica republicana pela extrema direita no Brasil transcorreu durante a consolidação da sociedade urbana e industrial no final dos anos de 1950. Em pleno auge das tensões em torno da Guerra Fria (1947-1991) na América Latina surgiu, em 1960, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) liderada por Plínio Correa de Oliveira no combate ideológico do comunismo identificado no movimento em defesa da Reformas de Base impulsionada pelo governo João Goulart entre 1961 e 1964.

Ao mobilizar valores morais do passado agrarista tradicional, assumiu o radicalismo conservador e antimodernista na época. Com apoio político e base social organizada, a extrema direita, patrocinou e justificou, compartilhada com interesses externos, o golpe de Estado em 1964. Por 21 anos o Brasil esteve submisso ao regime do autoritarismo, somente absolvido pelo movimento de redemocratização nacional na primeira metade da década de 1980.

O terceiro momento de inflexão histórica republicana se encontra em curso assentada na ruína da sociedade industrial e mediada pela crise do neoliberalismo que passou a ameaçar também os interesses do “andar de cima” da sociedade. Nesta perspectiva, consideram-se as jornadas de mobilizações nacionais do ano de 2013 como a marca do reaparecimento público de agrupamentos de extrema direita portadores de valores morais conservadores catapultados pelas inovações comunicações e organizativas trazidas pela transição para a Era Digital.

Por seu enraizamento no interior do poder Judiciário, embalado pela força tarefa denominada por Operação Lava Jato, a extrema direita ganhou e contaminou os meios de comunicação com a pauta anticorrupção. Na mesma toada, a sua expressão nacional se materializou na alçada partidária, contaminando os poderes legislativo e executivo.

O golpe parlamentar em 2016 que inviabilizou o mandato da presidente Dilma Rousseff, aprisionou o ex-presidente Lula e asfixiou as bandeiras de luta da esquerda asfaltou a via da extrema direita que pelo voto bolsonarista nas eleições de 2018 passou a dominar tanto a presidência da República como a maioria do parlamento. Em contraponto, o movimento popular na defesa de Lula Livre foi encontrando respaldo na cúpula do poder Judiciário até assumir a reversão da extrema direita incrustada na Operação Lava Jato.

A partir daí, o pêndulo da extrema direita chegou ao seu limite, iniciando a gradual asfixia. A vitória eleitoral presidencial em 2022 permitiu a montagem do governo Lula que apequenou, sem plenamente superar, a força da direita extremada que segue ainda com inegável força no parlamento, meios de comunicação e em segmentos específicos da sociedade brasileira.

O sucesso do governo do presidente Lula constitui a essência pela qual o país poderá – de fato – se livrar do terceiro momento de inflexão histórica republicano ocupado pela extrema direita. Mas isso dificilmente significará o fim dos representantes e das organizações em defesa dos interesses de poderosos, ricos e privilegiados no Brasil.

 

 

Ambiente conturbado

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Conflitos militares, agressões verbais, confrontos políticos, ofensas crescentes, informações equivocadas, invasões de embaixadas, guerras entre Estados, degradação do ambiente, fraudes financeiras, corrupção descontrolada, incremento das desigualdades, matanças generalizadas, confrontos religiosos, violências urbanas, crescimento da fome e da exclusão social, são características evidentes do caos que impera na sociedade contemporânea, gerando incertezas, instabilidades emocionais e desequilíbrios cotidianos.

Neste cenário, percebemos que a economia internacional vem sentindo cotidianamente pressões constantes, com o aumento dos desajustes produtivos, variações nos preços de produtos fundamentais para a sobrevivência dos seres humanos, levando à medidas macroeconômicas agressivas como forma de conter os desequilíbrios que se espalham para a comunidade mundial.

Percebemos, cotidianamente, os impactos dos desequilíbrios externos da economia global que estão forçando a novos ajustes internos, aumentando o desemprego e forçando os governos nacionais ao incremento das taxas de juros, como forma de reduzir os desequilíbrios internos e impedir que a economia nacional perda dinamismo e mergulhe numa espiral recessiva, gerando aumento do desemprego e instabilidades políticas internas. Vivemos numa economia fortemente integrada, marcada por forte interdependência, centrada no crescimento tecnológico, fortemente individualista e pela busca frenética pelos ganhos monetários e financeiros.

Nesta sociedade globalizada, marcada por grande desenvolvimento tecnológico, as nações precisam construir novas formas de inserção na economia internacional, fortalecendo sua autonomia política, investindo fortemente em pesquisa científica e angariar os conhecimentos necessários para desenvolver uma complexidade econômica e produtiva, única forma de fortalecer suas estruturas nacionais, defendendo interesses nacionais e consolidar nossa autonomia.

Numa economia internacional centrada nas incertezas e nas instabilidades, estamos sujeitos a movimentos cambiais que desequilibram nossa estrutura econômica, fragilizando os setores produtivos, degradando a renda interna, exigindo taxas de juros maiores como forma de combater a inflação, desta forma, nosso comportamento econômico medíocre se torna mais caótico, postergando a recuperação econômica e incrementando uma maior insatisfação popular e de ressentimentos políticos.

Vivemos numa sociedade altamente instável, com incertezas econômicas, inseguranças crescentes, violências urbanas e polarizações políticas, neste cenário, precisamos reconstruir nossos pactos sociais e políticos, como forma de se defender deste ambiente de medos, ressentimentos e caos generalizados.

Neste momento, precisamos evitar que os conflitos externos não se espalhem internamente, para isso é imprescindível reconstruir as instituições, garantindo passos seguros para fortalecer nossa democracia, consolidando-a e garantindo para todos os cidadãos oportunidades de ascensão social, dignidade e autonomia econômica, além de efetivarmos a tão chamada meritocracia. Numa sociedade mundial conflagrada por degradações constantes, marcada por grandes transformações tecnológicas, com imensas alterações no mundo do trabalho, incremento de grandes conflitos militares, precisamos rechaçar as brigas cotidianas que crescem e se avolumam entre os poderes institucionais.

Precisamos construir maturidade para que a sociedade compreenda, que os desafios em curso na sociedade mundial devem ser vistos como um divisor de águas entre a civilização e a barbárie, esta última que, cotidianamente está visitando a sociedade brasileira e vislumbrando atrasos, violências e degradações.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dependência eterna

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Vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, caracterizada pelo processo de globalização construído pelo incremento do capital financeiro, onde as nações comercializam produtos, bens e mercadorias em todas as regiões, as distâncias vêm se reduzindo de forma acelerada, as culturas se transformam com uma rapidez pouco vista na história da comunidade internacional e as noções de tempo estão em constante movimento.

Com o crescimento da concorrência internacional, a abertura econômica e o incremento da tecnologia estão moldando a sociedade global gerando verdadeiras revoluções na estrutura econômica e produtiva, fortalecendo grupos transnacionais e multinacionais que passam a dominar setores estratégicos da economia mundial, criando formas de dependência externa, reduzindo a soberania das nações e fragilizando os Estados Nacionais.

As novas tecnologias estão arregimentando modelos de negócios revolucionários, empresas vistas como gigantes e consolidadas em determinados setores, dotadas de grande conhecimento e vistas como detentores de alta experiência, estão sendo superadas por novos grupos econômicos, com novas formas de organização, estruturas mais enxutas, comportamentos flexíveis, ágeis e eficientes, além de grande flexibilidade e dotadas de grande desenvolvimento tecnológico, impactando o mercado de trabalho, exigindo mão de obra altamente complexo e atualização constante.

Nesta nova sociedade internacional, os Estados Nacionais estão se utilizando de instrumentos geopolíticos, protecionismos e grandes recursos financeiros e monetários como forma de defender suas estruturas produtivas, como forma de estimular investimentos internos, fortalecendo a transferência de tecnologias externas, garantindo a geração de empregos e o fortalecimento de seus parques produtivos, desta forma, conseguem manter e aumentar seus poderes políticos e seu espaço numa sociedade globalizada e fortemente interdependente.

Anteriormente, as nações subdesenvolvidas eram os exportadores de produtos primários de baixo valor agregado, vendiam no mercado internacional produtos agrícolas e minérios, angariando recursos conversíveis na economia global para comprar produtos industrializados como forma de sobrevivência. Os preços eram definidos pelas nações desenvolvidas, estes países eram os grandes ganhadores do comércio internacional, acumulavam recursos, melhoravam as condições de vida de sua população e se destacavam como detentores de tecnologias inovadoras.

Os investimentos em capital humano, a construção de um projeto nacional, além de fortes investimentos em ciência, pesquisa e tecnologia eram fundamentais para o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento da nação, além de políticas industriais efetivas e uma atuação ousada dos governos nacionais, subsidiando projetos, protegendo setores estratégicos, cobrando eficiência, definindo metas e angariando mercados internacionais.

Na nova economia internacional, marcada pelo desenvolvimento da tecnologia e a interdependência produtiva, as nações precisam construir novos instrumentos de inserção no cenário mundial, reduzindo a dependência da exportação de produtos primários de baixo valor agregado.
A estrutura da economia internacional está fortemente concentrada no conhecimento científico, nos ativos intangíveis e as nações que negligenciarem os investimentos em capital humano e que postergarem recursos em pesquisa científica tendem a perder espaço na economia internacional, consolidando uma dependência externa e eterna, perpetuando desigualdades sociais, incrementando exclusões e violências crescentes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

As políticas públicas para quem mora na rua, por Maria Hermínia Tavares

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Faltam eficiência e respeito à dignidade das pessoas nas ações do Estado

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 11/04/2024

Dignidade foi uma das palavras mais ouvidas no recente seminário “População em situação de rua”, no auditório da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

Entre diagnósticos, denúncias e propostas de políticas, o que uniu os participantes foi a constatação de que eficiência e respeito à dignidade das pessoas têm sido o bem mais escasso nas sucessivas tentativas de lidar com um problema tão descurado pelos governos municipais e estaduais. Uns e outros, com frequência, os reduzem a uma questão de polícia —o controle do tráfico e do consumo de substâncias ilícitas— ou de zeladoria urbana —a limpeza matinal de praças e ruas que servem de desabrigo aos sem-teto.

Este o primeiro erro: simplificar o que é complexo por qualquer lado que se o focalize. Para a rua convergem pessoas levadas por amplo rol de tragédias, agravadas pela proximidade da pobreza extrema: perda de emprego ou trabalho ultraprecário, ruptura de laços familiares, uso de drogas, doenças, problemas psicológicos graves ou distúrbios mentais. Para a simplificação contribui a inexistência de um censo dessa população que a descreva em detalhe. A lacuna permite que se substitua conhecimento por estereótipos assentados em preconceitos.

O segundo erro decorre do primeiro. Não existe bala de prata para lidar com problemas complexos. Há muitas dimensões a considerar —e a assistência social, embora insubstituível, está longe de ser a única. São igualmente importantes programas de moradia, saúde, educação, trabalho e renda, destinados a segmentos específicos desse contingente. A multiplicidade de instrumentos requer dos governos municipais e estaduais capacidade de coordenação, atributo raramente encontrado no setor público.

O terceiro equívoco são as mudanças abruptas de orientação a cada troca de governo: produzem instabilidade institucional, descontinuidades de todo tipo, dificuldade de acumular experiências e aprender com elas, ruptura de vínculos de confiança particularmente importantes quando os beneficiários são pessoas que perderam ou estão por perder suas raízes.

Difícil acreditar que iniciativas para população de rua possam se firmar se não virarem políticas de Estado, capazes de sobreviver a mudanças das coalizões governantes, a exemplo de Bolsa Familia, SUS ou Fundef.

Essa transformação sempre requer programas bem concebidos e comunidades de especialistas que os defendam e logrem dar-lhes legitimidade social. Em suma, que sejam capazes de mostrar que a indignidade a que está condenada nossa população de rua torna menos dignos os que com ela convivemos.

Macroeconomia da estagnação

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Depois de um forte crescimento econômico nas décadas posteriores a segunda guerra mundial até os anos 1980, com rápido crescimento econômico, com incremento da urbanização, industrialização e melhora nos termos de troca, a partir dos anos 1990, a economia brasileira perdeu seu dinamismo econômico, convivendo com estagnação produtiva, com forte desindustrialização, com precarização do trabalho, com achatamento salarial, com aumento substancial da violência urbana e incremento da desigualdade social, culminando em uma sociedade paradoxal e fortemente polarizada, de um lado somos um dos maiores produtores agrícolas, vegetação diversificada, solo fértil, climas propício e agradável, convivendo, lado a lado, com grandes contingentes de indivíduos empobrecidos, esfomeados, sem perspectivas e sem dignidade.

Desde os anos 1990, percebemos uma estagnação econômica e produtiva, taxas de juros escorchantes, câmbio valorizado, inflação em ascensão, diminuição dos investimentos produtivos, abertura econômica atabalhoada, privatização sem planejamento e marcado por crescimento da corrupção, fragilização dos órgãos de controles institucionais, culminando num processo amplo de desindustrialização e empobrecimento nacional, marcados por uma macroeconomia da estagnação. Qual nação conseguiu se desenvolver num cenário como este?

Depois de décadas de crescimento econômico e produtivo vigorosos, a sociedade brasileira caiu no canto da sereia, aceitando uma agenda vinda de fora, se rendendo aos interesses do grande capital financeiro internacional, abraçando o Consenso de Washington, abrindo mão da soberania nacional em prol de grandes grupos econômicos internacionais, desta forma, perdemos autonomia política e aumentamos a dependência da economia mundial, somos atualmente exportadores de produtos primários de baixo valor agregado e somos importadores de produtos industrializados, dependentes de tecnologias externas e abdicamos da construção da tecnologia nacional, exportamos cérebros e importamos todos os tipos de produtos industrializados.

Se construímos empresas de telecomunicação precisamos vender esse ativo para conglomerados internacionais e desta forma, passamos a absorver tecnologias de grandes grupos internacionais, aumentando a dependência externa. Se construímos aviões comerciais com grande complexidade e eficiência, somos obrigados a vender esse ativo estratégico para grupos globais maiores para aliviar os rombos fiscais e monetários. Se construímos chips e tecnologias complexas, setor responsável por grandes conflitos comerciais entre as nações internacionais, somos tentados a vender ou a fechar este ativo estratégico e nos tornando importadores dos grandes atores da tecnologia global, aumentando nossa dependência externa.

Embora as nações desenvolvidas estejam reconstruindo os consensos econômicos, relendo os manuais de teoria econômica, retomando privatizações equivocadas, aumentando a intervenção do Estado na economia e reconstruindo subsídios para fortalecer empresas nacionais, além de defender os produtores locais, com pomposas isenções fiscais e financeiras, países como o Brasil, insistem na macroeconomia da estagnação, limitando o potencial da sociedade, aumentando a dependência externa, como vimos no período da pandemia com a criação de um rastro de destruição e desagregação social.

Numa sociedade marcada pelo desenvolvimento tecnológico, pelo aumento da concorrência e pela instabilidade crescente, as nações que se sobressaem no cenário internacional são aquelas que investem fortemente em capital humano, com recursos garantidos em pesquisa científica, preservando sua autonomia econômica e sua soberania política, além de fortalecer seu projeto de nação e, principalmente, se afastando do complexo de vira lata, tão bem retratado por Nelson Rodrigues para analisar a elite nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Assim o neoliberalismo capturou a família, entrevista com Melinda Cooper

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Nos anos 60, o sistema saiu em defesa desta instituição: desmontar o Estado, exigia que ela assumisse o ônus do bem-estar social e de dívidas individuais, transmitidas entre gerações. Movimentos, hoje, a contestam: seria frente de luta anticapitalista?

Melinda Cooper – OUTRAS PALAVRAS – 05/04/2024

Os valores da família: entre o neoliberalismo e o novo social-conservadorismo de Melinda Cooper, (Sydney, 52 anos), é uma obra fundamental para entender por que o neoliberalismo defende a instituição familiar. Cooper é professora de sociologia na Universidade Nacional Australiana em Camberra e, atualmente, pesquisa políticas neoliberais e finanças públicas. Esta entrevista é um resumo da recente apresentação de seu livro em Madrid.

Você poderia explicar as teses do livro e por que é importante levá-las em consideração hoje para compreender o funcionamento tanto do neoliberalismo quanto do conservadorismo que ressurge em todo o mundo?

Na esquerda tornou-se comum dizer que o feminismo e outros movimentos da New Left colaboraram com o neoliberalismo. A filósofa feminista Nancy Fraser disse, por exemplo, que havia uma afinidade subterrânea entre o feminismo de segunda onda e o neoliberalismo, uma vez que ambos minaram as formas de segurança social – íntimas e econômicas – que tinham sido construídas na ordem social keynesiana: o salário familiar [o homem ganhava o suficiente para sustentar toda a família e as mulheres da classe média não trabalhavam]. Mas se esta premissa for aceita, a conclusão lógica é extremamente perigosa: que para resistir ao capitalismo neoliberal é necessário restaurar as fronteiras sociais ou de gênero – ou mesmo raciais ou nacionais. Então pensei que era importante ver o que aconteceu naquele momento decisivo entre as décadas de 1960 e 1970.

Concentrei-me em investigar um movimento que talvez não seja tão espetacular quanto outros mais conhecidos: o que defendia os direitos do Estado social e também questionava os efeitos do Estado social keynesiano; atacava a ordem de gênero que o keynesianismo deu origem e as suas hierarquias internas como, por exemplo, o salário familiar. E, ao mesmo tempo, não abandonava a ambição de uma redistribuição mais justa da riqueza social. A proposta era radicalizar a distribuição da riqueza para além dos limites toleráveis pelo Estado capitalista. Este movimento pela expansão dos direitos do Estado de bem-estar social fez parte da ascensão dos movimentos radicais de esquerda, o que incluiu a esquerda do movimento sindical. Eles pressionaram abertamente por aumentos salariais para além da sua associação com o crescimento. Tentavam recuperar para os trabalhadores uma parcela maior dos benefícios da renda nacional. Foi radical no nível salarial, mas também para quem se incluia nesta luta: trabalhadores migrantes, negros, jovens, mulheres e trabalhadores do setor público.

Este foi um momento perigoso do ponto de vista dos capitalistas, que até então eram a favor do consenso keynesiano. Economistas como Milton Friedman, que tinha feito parte do consenso do New Deal face a esta militância da década de 1960, decidiram que este pacto tinha que acabar. Acho que é muito importante não perder o que realmente eram o feminismo e os movimentos antirracistas e trabalhistas daquele momento. Então, entram em cena os economistas neoliberais que queriam desmantelar todo o aparelho de bem-estar social: “Se o Estado de bem-estar social faz as pessoas se sentirem tão empoderadas ou legitimadas para lutar e, além disso, está aumentando os seus desejos revolucionários, então é hora de pôr fim a isto.”

Por outro lado, havia os neoconservadores que veem a ruptura da família não apenas como o sintoma, mas como o catalisador da crise capitalista de 1970. O interessante é que os neoliberais da época disseram algo muito semelhante: o ataque na estrutura econômica da família keynesiana representava uma ameaça real ao capitalismo estadunidense. Por que eles se preocupavam com a família? Eles compreenderam que a família tinha uma função econômica e pensaram que poderiam restaurar a ordem capitalista se desmantelassem o estado de bem-estar social, por isso pressionaram para que as pessoas regressassem a algumas formas de parentesco – voluntário, forçado, normativo, não normativo… – porque isso funcionaria como um substituto do bem-estar social. Portanto, neste momento, os neoliberais e os novos conservadores encontram este estranho ponto de convergência onde veem a crise econômica em relação à desagregação da família e da ordem de gênero, e concordam que esta deveria ser restaurada. Não vamos voltar ao chefe de família masculino de meados do século XX, mas vamos voltar a uma ideia de responsabilidade familiar privada pelos seus membros.

Entendo que as críticas de Nancy Fraser querem influenciar a forma como se criou uma hegemonia dentro do Partido Democrata em que se assume o reconhecimento das minorias e certas reivindicações, mas não estão associadas à redistribuição da riqueza como os movimentos pela expansão do bem-estar social do que você diz.

Há uma parte do argumento de Fraser contra o neoliberalismo progressista com a qual concordo, mas não como ela o define. Significa que parte da esquerda foi absorvida pelas exigências neoliberais de reconhecimento de identidade e de inclusão legal ou de expansão de certos direitos, desvinculando-os de uma questão mais ampla de redistribuição econômica.

É evidente que há um progresso real no reconhecimento de relações não normativas, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas poderíamos ver isso como um exemplo de neoliberalismo progressista. O que está acontecendo é que o impulso radical dos movimentos da década de 1970 foi canalizado de volta para o parentesco, na forma de casamento e família. Existe uma razão econômica que é totalmente compatível com as ideias neoliberais sobre o papel da família no bem-estar.

Quando examinamos a jurisprudência em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
vemos que o argumento era permitir que os gays se casassem porque a unidade conjugal serviria como um substituto para a assistência social e não seria um fardo para o Estado. Este argumento foi forjado em plena crise da aids, quando as autoridades públicas não quiseram arcar com os custos hospitalares decorrentes desta enfermidade. O economista neoliberal Richard Posner foi o primeiro a recomendar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Ele não tinha nenhum tipo de oposição moral à sexualidade não normativa, mas ao mesmo tempo pensava que os direitos à sexualidade não normativa deveriam ser reconhecidos desde que as pessoas estabelecessem algum tipo de relação familiar com reconhecimento legal.

Algo semelhante aconteceu com a reforma da assistência social que ocorreu sob a administração Clinton, uma espécie de apogeu do neoliberalismo progressista. Esta reforma reviveu a forma mais atávica e punitiva do welfare, porque implicava que uma mulher tinha que depender do cônjuge no casamento em vez do Estado. O que esta reforma fez foi investir o dinheiro da assistência social na localização dos pais genéticos dos filhos de mães solteiras para que pudessem cuidar da família.

Nancy Fraser não aproveita esta reforma política histórica do neoliberalismo progressista para perguntar: o que isto nos diz sobre o neoliberalismo? Está claro que quando se trata de cuidados e dependência, o neoliberalismo não se contenta apenas com o reconhecimento da família, mas inventa ativamente relações familiares que não são emocionalmente reais ou consensuais e força as pessoas nestas relações a subsidiarem-se mutuamente para substituir o Estado. Assim, a responsabilidade familiar é um pilar absoluto da ideia neoliberal progressista.

Resumindo: concordo que grande parte da esquerda está próxima do pensamento neoliberal, mas não acredito que o pensamento neoliberal seja de forma alguma anti-família ou anti-hierarquia de género. Este é o paradoxo do nosso tempo: assistimos a uma expansão das formas de expressão sexual e de parentesco permitidas, mas isso não significa que o próprio parentesco tenha deixado de ser central para o estado de bem-estar social neoliberal, de modo que mesmo ele seja ativamente imposto por o Estado como uma obrigação.

Em geral, a esquerda também reivindica a instituição familiar, diz-se mesmo que é um baluarte da resistência ao neoliberalismo ou ao capitalismo. Porque isto ocorreu e porque é necessário questionar ou desafiar esta instituição?

Penso que é uma mitologia tanto da esquerda como dos liberais econômicos. Se olharmos para a história do liberalismo econômico, os liberais sempre tiveram problemas em encaixar o papel da família na sua visão da dinâmica econômica porque são a favor da responsabilidade individual e pessoal e a contradição mais óbvia aqui é a questão da herança. O liberalismo econômico lutou contra isso desde a Revolução Francesa porque a herança ou certas formas de herança – como a primogenitura – aparecem como o último baluarte da ordem aristocrática feudal. Contudo, os economistas liberais não pedem o fim da herança, eles precisam dela, mas veem a contradição porque falam de meritocracia e presumem igualitarismo formal no contrato econômico. Mas enquanto existe herança, é preciso admitir que os indivíduos não celebram o contrato como iguais.

Então a família apresenta sempre este inconveniente, mas é absolutamente fundamental, porque para proteger a riqueza privada é necessário proteger a transmissão da riqueza dentro da família. Portanto, a família nunca foi uma forma de resistência ao capitalismo. É a forma como a riqueza privada é reproduzida ao longo do tempo. Isto não significa que a forma da família permaneça estática, ela muda radicalmente em diferentes épocas e não tem a mesma função para diferentes classes, mas ela é absolutamente essencial. Portanto, a resistência à família é fundamental para o anticapitalismo. Não se pode criticar ou confrontar o capitalismo sem abordar a instituição da herança.

Você costuma dizer que não existe uma “família tradicional”, mas que esta figura é uma produção histórica. A que se refere?

Algo que me incomodou nas resenhas de Os valores familiares é que mesmo pessoas que simpatizaram com sua tese disseram que o livro era uma crítica à família nuclear patriarcal normativa. É isso, claro, mas é também uma crítica à família não normativa ou à família alargada. As pessoas acreditam que se as famílias fossem ampliadas seriam muito melhores. Se olharmos para a formação familiar no século XX, a família nuclear foi um produto da família fordista e do salário familiar: a capacidade de uma unidade familiar viver junta numa casa sem família alargada e sem ajuda doméstica – a classe média Para substituir o serviço doméstico, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres foi parcialmente subsidiado pelo Estado. Todos estes tipos de ajuda social criaram e apoiaram a individualização da família.

Hoje, penso que em muitos países estamos voltando a uma forma de família alargada. O exemplo da Austrália é muito claro porque não existe um sistema em que o trabalho migrante substitua o trabalho doméstico. O que acontece é que as mulheres casadas ou com filhos continuam trabalhando, mas é a família alargada que cuida dos filhos. O aumento dos preços da habitação faz com que as pessoas vivam cada vez mais juntas em lares multigeracionais. As crianças vivem na casa da família até aos vinte ou trinta anos, e mesmo mais, e os avós muitas vezes vivem com elas. No melhor dos casos, isto implica uma distribuição da riqueza familiar; no pior, uma distribuição da dívida. Quando eu era jovem, as pessoas saíam de casa aos dezesseis anos e viviam de forma independente. Isto mudou e acredito que a tendência neoliberal é no sentido da família alargada. É aqui que não guardo romantismo para as famílias tradicionais. E acho que temos que ser muito céticos quando as pessoas evocam essas ideias ou as romantizam.

Em The asset economy – juntamente com Lisa Adkins e Martijn Konings – vocês explicam como desde a década de 1980 temos entrado numa fase de “bem-estar baseado em ativos”. A financeirização (especialmente a da habitação) substituiu o Estado de bem- estar. Que consequências isso tem para a configuração das classes sociais?

Isto é algo que os neoliberais progressistas da terceira via apostaram. Eles pensaram: “Se conseguirmos empurrar o maior número possível de pessoas para a aquisição de casa própria e apoiarmos o aumento dos valores das casas, atrairemos esses eleitores para a economia da transmissão da riqueza familiar”. Por vezes, o argumento era “vamos criar uma geração de pequenos conservadores: pessoas que querem proteger a sua propriedade e a riqueza familiar”.

Penso que, em muitos aspectos, foi uma proposta muito exitosa. As casas tornaram-se os ativos financeiros da classe média. O problema aqui é que chega um momento em que já não é possível incorporar as pessoas nesta economia porque os preços da habitação e os níveis de dívida disparam.

Há muito tempo ultrapassamos aquele momento em que existia uma espécie de neoliberalismo aspiracional e estamos começando a ver novamente as linhas divisórias. Há uma fratura entre as pessoas que possuem propriedades ou cujos pais têm propriedades que irão herdar – mesmo mais tarde na vida – e aquelas que nunca herdarão e que estão presas no aluguel e em trabalhos precários. Isso transforma a forma como as classes são organizadas. Podem ser duas pessoas, ambas com empregos profissionais relativamente bem remunerados, mas numa cidade com preços imobiliários muito elevados, elas estão, na verdade, em posições de classe completamente diferentes. Não é necessário preocupar-se com os custos da habitação ou com o crédito ao consumo porque a habitação pode respaldar esses créditos. Assim, no livro tentamos estabelecer uma tipologia alternativa de classe que levasse em conta as posições das pessoas em relação aos ativos financeiros, incluindo a habitação. No topo estão as pessoas que possuem e comercializam ativos financeiros não residenciais – capital de investimento, propriedade intelectual… –, e depois uma classe média alta cujo principal ativo é a habitação. Aqueles que têm propriedades de investimento e aqueles que possuem apenas uma residência já estão numa posição de classe diferente, mas depois há todo um grupo de pessoas que têm hipotecas e que são, na verdade, proprietários de uma forma diferida, aspiracional, estão simplesmente endividados, o que é uma situação perigosa, tendo em conta a precariedade geral do trabalho. Portanto, também matizamos nossa análise de turma em termos de trabalho inseguro. Mas ter um emprego inseguro e uma casa como garantia por trás de você é muito diferente de estar na mesma situação, mas sem ativos.

O que isto significa em termos de família é que regressamos a uma espécie de economia dinástica.

As oportunidades sociais são determinadas pelos seus pais e pelo bem-estar dos pais. E o outro lado disto são as economias do trabalho forçado por dívida, que envolvem gerações inteiras. Um exemplo muito claro disso é a economia dos empréstimos estudantis nos Estados Unidos. Muitas vezes, são os avós e os pais que se endividam para permitir que um filho faça faculdade, na esperança de que esse filho consiga um emprego bem remunerado o suficiente para saldar uma dívida que envolve várias gerações da família. Esta é uma forma de trabalho forçado por dívida.

Não se trata de dívida pessoal, mas de formas de dívida familiar intergeracional.
Assistimos também ao ressurgimento de formas familiares de empresas capitalistas em todo o mundo. É óbvio quando você olha para pessoas como Donald Trump, Coke Industries… Essas empresas familiares privadas sempre existiram, mas assumiram uma nova proeminência e centralidade no capitalismo estadunidense que não tinham na década de 1970. Então eu acredito que este regresso da família como vetor de transmissão de riqueza está ocorrendo em vários níveis diferentes simultaneamente.

Novos ditadores evitam violência para fingir que são democráticos, aponta livro

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‘Democracia Fake’ discute como governantes abandonam tática do medo por manipulação mais sutil

Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários.

Folha de São Paulo, 07/04/2024

[RESUMO] Livro “Democracia Fake”, publicado recentemente no Brasil, alerta para nova estratégia de ditadores contemporâneos, Buscando forjar um verniz democrático que possibilite o estabelecimento de relações com países liberais, esses líderes abandonam a repressão violenta e se voltam para táticas de manipulação menos escancaradas.
Uma multidão se aglomerava na praça principal da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que aconteceria ali.

Sob um sol escaldante, desceram de um jipe militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram enforcados.

Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu, que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar um golpe.

Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro “Democracia fake” (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman.

A obra opõe dois tipos de ditadores. O primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o culto à personalidade.

O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado pelos autores de “ditadores do spin” — não existe uma tradução literal para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas de mídia privada e mantém uma fachada democrática.

Os dois representam um tipo distinto de perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. “Os ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões”, afirma. “Por outro lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores.”

O modus operandi de líderes como Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar popularidade.

“Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião”, escrevem os autores.

O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán.

O primeiro-ministro também disfarçou o autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da universidade na Hungria.

Orbán minou o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica.

“A globalização hoje oferece muitos incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir isso, eles têm que fingir ser democratas”, diz Guriev. “Para viajar para Davos [onde acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem torturado milhares.”

A globalização é um dos componentes do que os autores chamam de “coquetel da modernização”, uma junção de forças que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário.

“Se você quer transformar uma economia de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com ensino superior”, afirma Guriev. “Essas pessoas não querem trabalhar em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um democrata.”

Guriev e Treisman criaram uma base de dados utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para 53%. Os demais são de um tipo híbrido.

Guriev fala em duas maneiras comuns para a ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo tipo.

A outra, explica ele, ocorre quando um governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o ex-presidente Donald Trump tentou fazer isso nos Estados Unidos.

Treisman diz que, se Trump foi eleito novamente neste ano, o cenário se repetirá. “Ele vai tentar minar o sistema de freios e contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a burocracia [do Estado]”, afirma. “A equipe dele já anunciou que tem planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e introduzir novas pessoas leais a ele.”

Isso não significa que, caso eleito, Trump será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência contra líderes como ele está no grupo que chamam de “bem-informados”, subconjunto da população com “educação superior, habilidades de comunicação e conexões internacionais”, que documentam e denunciam os abusos do governante.

“Não apostaria contra a sociedade americana, que é muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes, funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da democracia”, diz Treisman. “Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de Bolsonaro.”

Em alguns casos, um ditador do spin pode recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu na Venezuela. Hugo Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolas Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou a repressão. O russo Vladimir Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia, diz Guriev.

Putin teve grandes ganhos de popularidade com a anexação da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de uma causa em comum, fortalecendo seu governo.

“Ele viu que não estava funcionando, que as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando influência”, afirma Guriev. “Na primeira semana, ele fechou a mídia e bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura declarada, algo que nunca tinha sido usado.”

Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris.

Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da Califórnia e especialista em Rússia.

Os dois começaram a observar que as táticas de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos.

Depois de publicar uma série de trabalhos acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a um público mais amplo.

Expor as táticas dos ditadores recentes é justamente uma das soluções para lidar com eles.

Outra, segundo os autores, é limitar as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas.

Os autores lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em democracias.

Os dois também advogam pela reparação das instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica.

Apesar dos alertas, o livro tem uma nota otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em direção à democracia. “A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica”, diz Guriev.

Os autores afirmam que não existe nenhum antídoto conhecido para o “coquetel de modernização” que empurra as nações em direção à democracia.

Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo.

Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os prejudicaria.

Em um momento de descontentamento, os ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a abandonar o medo e a escolher a manipulação.

Resta saber se esse dilema não resolvido de fato levará o mundo a um cenário mais democrático.

Heranças acumuladas

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Numa sociedade que passa por grandes transformações cotidianas, marcadas pelo desenvolvimento da tecnologia, do aumento da concorrência e de movimentações estruturais no mundo do trabalho, as nações precisam refletir sobre todos os desafios que limitam seu desenvolvimento, analisando as heranças acumuladas, as desigualdades crescentes para superarmos esta condição de subdesenvolvimento, sem essa superação as nações nunca conseguirão alcançar o sonhado desenvolvimento econômico e a melhora do bem estar social da comunidade.

Ao analisarmos o caso brasileiro, percebemos que estamos acumulando problemas estruturais que se perpetuam à séculos sem perspectivas de melhoras palpáveis, cultivando subdesenvolvimentos, incrementando pobrezas e indignidades, alimentando espaços de corrupção, fortalecendo corporativismos degradantes, precarizando trabalho e educação, negligenciando a ciência, cultivando negacionismos, fazendo subinvestimentos em capital humano, pagando juros elevados que degradam as contas públicas, preservando privilégios escorchantes para poucos e, diante disso, estamos perpetuando em escalas crescentes de degradação, garantindo condições dignas para uma parte da população em detrimento de uma grande massa de excluídos e degradados.

Aquela nação vista como o país do futuro vem perdendo espaço na economia internacional, somos um grande produtor de produtos de baixo valor agregado, estimulamos uma desindustrialização crescente, estamos nos entregando para uma especulação financeira, degradando as condições de vida dos trabalhadores como forma de aumentar as condições de competição internacional, fragilizando os sindicatos para garantir uma ilusória concorrência mundial mas, o que estamos vendo é o contrário, uma degradação das condições de vida dos trabalhadores, famílias dilaceradas, salários arrochados e grandes conglomerados enriquecidos, investindo seus recursos em Bolsas internacionais ou em paraísos fiscais e se alegrando com as isenções tributárias que garantem ganhos pomposos em detrimento de uma classe média degradada, mal remunerada, dando vazão a visões de vida reacionária e fascista, um verdadeiro caos.

Numa sociedade internacional marcada pelo desenvolvimento tecnológico e pela forte competição econômica, as nações devem encarar de frente suas fragilidades. O Brasil precisa rever suas estruturas políticas e econômicas ultrapassadas e excludentes, para evitar uma perpetuação das desigualdades que crescem rapidamente, lembremos que, desde os anos 1980, nossa economia estagnou, nossas condições sociais se precarizaram, no campo político estamos cultivando uma polarização degradante e as perspectivas de uma economia global fortemente dominada pela tecnologia e pela competição econômica, diminuindo os horizontes nacionais, ficando cada vez mais empobrecidos e relegados ao esquecimento da comunidade internacional.

Dentre os grandes teóricos da realidade brasileira, destacamos o economista Celso Furtado, responsável por escritos fundamentais para a compreensão dos desafios da sociedade brasileira, que ao analisar os horizontes nacionais destacou os grandes problemas do Brasil, destacando que estes não estavam no campo da economia, os verdadeiros problemas nacionais estão ligados ao campo político, uma elite imediatista e altamente dependente dos favores dos governos nacionais, que falam do empreendedorismo e da inovação como forma de superar nosso subdesenvolvimento mas, na realidade, encontramos vários grupos de parasitas que crescem e enriquecem degradando a nação e se alegrando com degradações e indignidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Maior parte da imprensa brasileira apoiou golpe de 1964, por Oscar Pilagallo

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Jornais defenderam deposição de João Goulart, presidente democraticamente eleito

Oscar Pilagallo, Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista” (Três Estrelas) e “O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” (Fósforo)

Folha de São Paulo, 02/04/2024

A imprensa brasileira, esta Folha inclusive, desempenhou papel relevante na conspiração contra o presidente João Goulart e, em 31 de março de 1964, apoiou com entusiasmo a deflagração do golpe militar, antes mesmo que ele fosse consumado.

Com exceção do “Última Hora” –que nascera em 1951 para apoiar o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e, depois, de seus herdeiros políticos–, os jornais fustigaram com intensidade crescente um governo democraticamente eleito, preparando a opinião pública, durante meses, para a intervenção que rasgava a Constituição do país.

No Rio de Janeiro, os principais concorrentes locais deixaram de lado as disputas comerciais para se unir num projeto comum.

Em fins de outubro de 1963, cinco meses antes do golpe, entrou no ar a Rede da Democracia, um programa em que as rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi, dos Diários Associados, juntaram esforços para combater o que identificavam como ameaça comunista. O acordo foi costurado pelos próprios donos dos veículos: Nascimento Brito, Roberto Marinho e um representante de Assis Chateaubriand respectivamente.

A repercussão ultrapassava largamente o alcance das frequências das três rádios fluminenses. O programa era retransmitido em centenas de emissoras espalhadas pelo país e, mais tarde, transcrito nos grandes jornais.

Embora tivessem o mesmo objetivo –derrubar Jango–, os veículos do Rio se diferenciavam pelo alvo da artilharia. Marinho, tendo em vista uma demanda por um canal de TV, evitava a crítica direta ao presidente, com quem mantinha aberto um canal de comunicação. O Globo focava o governo, não o governante, ao contrário dos outros, que personalizavam os ataques na figura de Goulart.

Não por acaso, fuzileiros navais obedientes a um militar fiel a Leonel Brizola –cunhado e apoiador de Jango– invadiram as sedes do JB, Globo e um jornal dos Diários Associados, além da Tribuna da Imprensa, nas primeiras horas do golpe.

Os editoriais resumem a participação dos jornais no golpe. O tradicional Correio da Manhã entrou para a história com os títulos “Basta!” e “Fora!”, publicados em 31 de março e 1º de abril. O prestigioso JB celebrou “a vitória da democracia” contra “a implantação de um regime comunista”.

E o Globo, um vespertino com penetração limitada, festejou na capa no dia 2: “Vive a nação dias gloriosos”, escreveu, atribuindo o desfecho da ação militar à “Providência Divina”.

O início do golpe, no entanto, foi uma surpresa para a imprensa, assim como para os principais articuladores da ruptura na caserna, como o general Castello Branco. A ação foi precipitada por Olympio Mourão Filho, general que comandava as tropas de Juiz de Fora e não estava entre os protagonistas dos planos para derrubar Jango. Ele deu início às mobilizações na madrugada de 31 de março.

Em São Paulo, o sinal mais nítido de que a imprensa passou a agir conjuntamente para afastar Jango foi a aproximação, às vésperas do golpe, dos arqui-inimigos Assis Chateaubriand e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo.

A diferença na atitude dos principais veículos limitou-se ao nível de engajamento de seus proprietários. Se quase todos franquearam as páginas dos jornais aos propósitos golpistas, houve quem fosse além, abrindo as portas de seus gabinetes aos conspiradores.

Mesquita foi além do apoio editorial do Estadão, então o principal jornal de São Paulo. Em janeiro de 1962, mais de dois anos antes do golpe, recebeu na sede do matutino um general –Orlando Geisel, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel – que o sondou sobre a ideia de instaurar uma ditadura. A resposta é uma carta intitulada “Roteiro da revolução”, que exorta os militares a intervir.

Mais tarde, sairia da sala de Mesquita um documento em tudo semelhante a um ato institucional, prevendo até a suspensão temporária de garantias constitucionais.
Quanto à Folha, teve influência relativamente menor –do tamanho de sua importância na época. A empresa que edita o jornal havia sido comprada em 1962 por Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, e os empresários trabalhavam para saná-la financeiramente antes de investir no setor editorial.

No discurso, porém a Folha não se distinguia da concorrência. Contribuía para a difusão de teses antipopulistas e conclamava as elites à ação coordenada, com um tom cada vez mais alto. O jornal trabalhava com a hipótese de que Jango pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta.

A deposição do presidente contou até com a criação de um jornal popular para fazer contraponto ao Última Hora. Foi o Notícias Populares, que nasceu em outubro de 1963 financiado por Herbert Levy, um político da UDN (União Democrática Nacional), o principal partido de oposição a Goulart. Anos depois, já sem essa função, o NP seria incorporado ao Grupo Folha.

Ao longo das duas décadas de ditadura militar, os veículos sofreram censura, passaram a criticar o governo e, sobretudo após a redemocratização, se penitenciaram por terem apoiado o golpe.