Laval: Uma nova guerra civil mundial?

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Casamento entre mercado e democracia fracassou. O que chamamos de neofascismo pode ser apenas o velho neoliberalismo, que mostra enfim seus dentes e seu projeto: impor, contra a ética do coletivo, a dominação ilimitada das oligarquias
Christian Laval – OUTRAS MÍDIAS – 25/03/2022

“O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial”, escreve Christian Laval, professor emérito de Sociologia na Université Paris Nanterre.

“Em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal”, avalia.

Laval expõe alguns dos argumentos desenvolvidos no livro coletivo (escrito junto com Pierre Dardot, Haud Guéguen e Pierre Sauvêtre) Le choix de la guerre civile: Une autre histoire du néolibéralisme, Lux Editions, Montreal, 2021, apresentado no curso Direitas radicais e neoliberalismo autoritário, organizado pela Universidade do País Basco, com as Fundações Betiko e Viento Sur e o Centro de Pesquisa em Multilinguismo, discurso e comunicação (MIRCo).

Eis o artigo.

A situação mundial se caracteriza por uma grande crise das formas da democracia liberal clássica. Esta crise se manifestou, primeiro, por poderosos movimentos que reivindicaram uma verdadeira democracia entre 2010 e 2016. Depois, manifestou-se em um sentido completamente diferente, com a ascensão reativa de forças da extrema direita e o surgimento de governos com aspectos abertamente ditatoriais, nacionalistas, violentos, racistas, sexistas e, em alguns casos, fascistizantes. Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán e Erdogan são algumas das figuras emblemáticas que se somam na longa lista de déspotas e tiranos que fazem estragos em todos os continentes.

Ao desestimular as reivindicações democráticas, sociais e ecológicas que entram em contradição com o projeto neoliberal, estes dirigentes só conseguiram encontrar base eleitoral enaltecendo os valores morais e religiosos tradicionais e o nacionalismo dos grupos sociais mais conservadores. Estes governos não estão aí para administrar uma situação, acomodar interesses diferentes, representar a população. Realizam uma guerra contra inimigos. Esta postura guerreira parece nova, ao menos para aqueles que tinham fé nas democracias de tipo clássica.

Os liberais norte-americanos ainda permanecem sob o choque da invasão do Capitólio pelos fanatizados partidários de Trump, no dia 6 de janeiro de 2021. Como foi possível semelhante violação da democracia?, perguntam-se. Para compreender o fato é preciso adotar um ponto de vista estratégico, o de governos que estão comprometidos em uma guerra total: social, é claro, porque se busca enfraquecer os direitos sociais da população; étnica, porque pretende excluir os estrangeiros de qualquer possibilidade de acolhida e de coexistência; política e jurídica, utilizando novos meios de repressão e de criminalização da esquerda e dos movimentos sociais; cultural e moral, ao atacar os direitos individuais e as evoluções culturais das sociedades.

Esta sequência histórica, cujo apogeu foi, de momento, o dia 6 de janeiro, não cai do céu. Há várias décadas, diversos sinais permitiam pressentir tal momento político, efeito de uma combinação de diferentes fatores, embora todos ligados ao colapso da crença na representação e legitimidade das elites e da classe política. Para prevê-lo, bastava estar atento ao sentimento de exclusão e de marginalização de uma grande parte da população, a ascensão de uma cólera antissistema, e o ódio crescente às minorias, estrangeiros e inimigos internos.

Os comentaristas se contentam em estigmatizar esta reação complexa e contraditória, classificando-a como populista. Com isso, não explicam nada, embora considerem necessário preconizar a continuidade da abertura, da modernidade, do multilateralismo e, na Europa, a continuação da construção da União Europeia.

Este momento de crise não tem uma causa única. No entanto, parece que é preciso levar a sério uma delas: a implementação, há várias décadas, de um determinado tipo de governo que consegue se afastar do controle dos cidadãos para impor pela força transformações profundas das sociedades, das instituições e das subjetividades. Como não ver uma relação entre esta chamada reação populista e o neoliberalismo, que fez nascer uma nova sociedade organizada como um mercado?

Na verdade, esta reação, longe de colocar fim ao período neoliberal, constitui uma nova fase e uma nova forma do mesmo. O que estamos vendo hoje é um neoliberalismo cada vez mais violento, que se apoia nas cóleras e frustrações populares para reforçar ainda mais o império do poder sobre a população e fazê-la aceitar retrocessos sociais impossíveis de contemplar sem que ao menos uma parte consinta.

É um novo neoliberalismo? Não exatamente. Trata-se muito mais, como acaba de ser dito, de uma fase histórica em que, diante de múltiplas contestações e temíveis prazos impostos pela crise climática, para garantir a continuidade de seu projeto neoliberal, os governos só se fortalecem com as paixões populares dirigidas contra minorias, estrangeiros, intelectuais.

Com isso, obtêm certo apoio popular, deslocando os desafios políticos do campo da injustiça social para o campo dos valores da nação e a religião, desviando os medos sociais e as indignações morais para um conjunto de objetivos considerados como tantos outros desvios e ameaças: imigrantes, negros, mulheres, homossexuais, sindicalistas, militantes, intelectuais, e contra todas as forças sociais, corpos profissionais e instituições democráticas que se opõem a esta domesticação da sociedade.

O caso do Brasil é muito instrutivo deste ponto de vista. Naquele país, não existe nenhuma esfera da vida cotidiana e nenhuma instituição que não tenham sido afetadas por um retrocesso dos direitos humanos, liberdade de pensamento e igualdade. É o que demonstram os repetidos ataques contra o meio ambiente, o mercado de trabalho, o sistema de aposentadorias, a universalidade da escola pública, os direitos dos povos autóctones.

E não se deve esquecer que para esses neoliberais abertamente autoritários, como o bolsonarismo, o inimigo é acima de tudo a esquerda e o socialismo. Inclusive, é possível dizer que se trata de uma guerra civil contínua contra a igualdade em nome da liberdade. É uma das principais faces do neoliberalismo atual, visto pelo ângulo da estratégia.
Um novo fascismo?

Costuma-se falar de um novo fascismo. Embora seja verdade que o ódio e a pulsão criminosa estão no centro da expansão das formas ditatoriais de poder, como demonstra mais uma vez o caso atual do Brasil, e também a prática e a retórica de Trump, existem importantes diferenças em relação ao fascismo clássico. Ignorá-las levaria ao erro de diagnóstico. Diferente dos anos 1930, que viram a emergência dos fascismos europeus como reação diante do deixar fazer do liberalismo econômico e suas consequências, os neoliberalismos nacionalistas, autoritários e xenófobos de hoje em dia não pretendem reenquadrar o mercado no Estado total, nem mesmo, mais simplesmente, enquadrar os mercados, mas pretendem, ao contrário, acelerar a extensão da racionalidade capitalista à custa de aumentar ainda mais as desigualdades econômicas, consequência inevitável do livre jogo da concorrência e das privatizações.

Nesse sentido, estes governos não viram as costas para o neoliberalismo, como alguns afirmam de forma imprudente, mas desnudam a lógica intrinsecamente autoritária e violenta do próprio neoliberalismo. Embora o Brasil seja o espelho crescente de uma guerra total contra as instituições da sociedade que não se dobram ao modelo neoliberal, seria errôneo pensar que esta violência estatal se circunscreve aos chamados países periféricos.

Também no próprio centro dos países capitalistas mais desenvolvidos se exerce esta violência, ainda que sob formas diferentes. As violências policiais com as quais o governo liberal de Macron queria impor medidas impopulares, em 2018, ou o envio de tropas federais por Trump contra os manifestantes de Portland e de Chicago e a forma posterior de acender o fogo questionando o resultado das eleições presidenciais que eram desfavoráveis a ele, são exemplos recentes.

Evidentemente, essas formas de violência saem do marco político liberal clássico, baseado desde o Iluminismo nas liberdades individuais e coletivas, no respeito ao sufrágio universal, na pluralidade de opiniões, na defesa do conhecimento racional e no respeito à verdade. Contudo, não nos deixemos confundir pela idealização do modelo político clássico nas democracias ocidentais.

Se o neoliberalismo pôde se impor nos Estados Unidos e na Europa por governos legalmente eleitos (Giscard, Mitterrand, Thatcher, Blair, Reagan, Clinton, Schmidt, Kohl), não se privou, e há muito tempo, do uso da força legal, sobretudo policial e judicial, e de todos os tipos de medidas de coação regulatórias, administrativas e disciplinares à disposição dos Estados. Se estes vêm reforçando há muito tempo a vigilância dos indivíduos em nome da luta antiterrorista, as potências capitalistas privadas não ficam para trás, impondo, sobretudo aos assalariados, uma gestão baseada no controle individual que em parte destruiu a capacidade de defesa coletiva na esfera do trabalho. Mas, então, por que é possível falar em uma nova fase do neoliberalismo?

A confissão da violência

O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial. A expressão guerra civil mundial foi utilizada, desde a sua invenção por Carl Schmitt, em vários sentidos diferentes. Para ele, desde meados dos anos 1940, a Weltbürgerkrieg se refere ao final das guerras interestatais próprias do mundo westfaliano e ao nascimento de guerras assimétricas, realizadas em nome de um ideal de justiça que permite às superpotências exercer um poder de polícia no marco de um direito internacional renovado e exercido com uma vontade missionária.

Para Arendt, a expressão se refere muito mais à guerra travada pelos regimes totalitários – nazismo e stalinismo – que, apesar de importantes semelhanças, não puderam evitar o enfrentamento direto por causa de sua vontade expansionista. Essa forma de análise foi retomada por Ernst Nolte, em sua obra La guerra civil europea, 1917-1945. Outros autores assumiram esta expressão para falar do confronto internacional entre as forças do progresso, surgidas do Iluminismo, e o fascismo. Foi o caso de Eric Hobsbawm, em A era dos extremos: o breve século XX.

Evidentemente, utilizamos a expressão em um sentido muito diferente, por isso a importância do adjetivo nova. A nova guerra civil mundial não opõe diretamente uma ordem global de tipo imperial, mesmo que seja dirigida por uma potência hegemônica, à população, como também não opõe dois regimes políticos ou dois sistemas hegemônicos entre si. Opõe Estados, cujos meios de comunicação estão monopolizados por oligarquias agrupadas, a amplos setores de suas próprias populações.

Mas qual é o objeto desta guerra? Oficialmente, trata-se de se opor a qualquer forma de intrusão de um inimigo exterior e de combater todos os seus aliados que, no interior, minam a unidade nacional, a homogeneidade do povo, a grandeza e a identidade da nação. Pode-se dizer que, para os defensores de um capitalismo sem fronteiras, é paradoxal inflamar as paixões com um nacionalismo exacerbado e com um racismo pouco velado, mas, na última década, já se provou que a divisão do povo e a inflexão de setores inteiros da população contra seus próprios interesses significaram enormes êxitos políticos.

Nesse sentido, o Brexit é uma obra-prima do gênero. A França oferece um exemplo muito interessante de uma manobra política bastante surpreendente. Desde o outono de 2020, enquanto se esforça para conter a epidemia e multiplica seus erros de gestão, o governo se lançou em uma ampla campanha de caluniosos ataques contra as universidades, em especial contra as ciências sociais, acusadas de estar “pervertida pelo islamo-esquerdismo”. A palavra se refere a um puro fantasma, construído seguindo o modelo do judaico-bolchevismo dos fascistas e os nazistas de antes da guerra.

O ministro da Educação nacional, assim como o do Ensino Superior e o do Interior (que dirige a polícia), durante meses, foram se revezando para fazer a opinião pública acreditar que o terrorismo encontrava apoio no meio universitário, que estaria contaminado pelos estudos pós-coloniais, decoloniais e outras teorias do gênero. É assombroso que tal quantidade de ignorâncias e de calúnias tenham sido emitidas pelos representantes de um governo que se diz liberal. Em algum momento, Macron não se apresentou como o anti-Orbán na Europa?

Deve-se concluir: esse discurso de ódio de tipo fascistoide nada mais é do que uma versão local de uma lógica guerreira mais geral que consiste em designar, neste caso, no corpo de universitários e pesquisadores, o inimigo a ser esmagado, e que pode encontrar outros alvos em outros lugares ou mais tarde.

A palavra guerra não pode ser tomada, aqui, como uma simples metáfora. A luta estratégica pela dominação à qual se dedicam os agentes políticos, econômicos e intelectuais do neoliberalismo, às vezes com o pretexto de lutar contra o terrorismo ou o islamismo radical, pretende consolidar o poder das oligarquias dominantes por outros meios distintos ao da confrontação pacífica de opiniões.

Para dizer de outra maneira, em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal. Ellen M. Wood chama isso de guerra sem fim (infinite war): a guerra neoliberal não tem objetivos limitados, como seria a destruição de um exército inimigo ou a conquista de um território, mas é marcada pelo objetivo ilimitado da dominação do Estado sobre a população.

A guerra em questão requer todos os meios pelos quais o Estado afirma seu domínio sobre a população, começando, para além do Exército, pela Polícia e a Justiça e, claro, pelos meios de comunicação de massas e as tecnologias de vigilância, o que supõe a estreita subordinação, ou ao menos a neutralização dos agentes do Estado para que cumpram da melhor forma possível sua função de dominação. A situação presente nos confirma o que dizia Foucault quando, ao contrário de Clausewitz, afirmava em seu curso, A sociedade punitiva, que “a política é a continuação da guerra por outros meios” (Foucault, 2013: 29).

Maximizar a divisão das forças populares por meio da inflamação nacionalista e racista, mobilizar uma parte da população contra os intelectuais irresponsáveis e perigosos e, por fim, encontrar um inimigo a combater não é um fim em si. Não há nada de gratuito em designar um inimigo, se a política tem alguma racionalidade. Mas qual é o inimigo último? Tem como nome genérico a igualdade e aqueles que a almejam.

O neoliberalismo como estratégia política contra a igualdade
É claro, não existe uma única forma de neoliberalismo que seria idêntico em todas as partes. A ordem econômica mundial é construída se apoiando em estratégias nacionais diferenciadas e singulares em cada ocasião. Esta plasticidade e este caráter proteiforme do neoliberalismo devem nos prevenir contra qualquer tentação essencialista, embora não por causa disso devemos deixar de destacar a lógica antidemocrática inerente ao neoliberalismo desde a sua formação.

O neoliberalismo autoritário não se opõe a um neoliberalismo que antes não fosse. O neoliberalismo assume uma lógica de enfrentamento violento com todas as forças e as formas de vida que não cabem no marco de um mundo hierárquico e desigual baseado na concorrência. E, para se realizar, este projeto neoliberal que pretende a construção de uma sociedade de mercado pura requer a violência do Estado.

Falar em nova guerra civil mundial é, portanto, reinterpretar o neoliberalismo pelo ângulo de sua violência intrínseca e, sobretudo, questionar a maneira acadêmica de compreendê-lo como conjunto de doutrinas ou como posições puramente ideológicas. É aceitar o campo em que se desenvolve, o da luta política pela dominação, e entendê-la como uma estratégia política de transformação das sociedades em ordens concorrenciais que supõem o enfraquecimento ou a eliminação das forças de oposição.

O termo neoliberalismo é objeto de um uso inflacionista que, hoje em dia, provoca certa confusão. O viés universitário, que Bourdieu chamaria de escolástico, consiste em não ver no neoliberalismo mais do que uma corrente intelectual com fronteiras também problemáticas, em que o estudioso se dedica a discutir sua unidade e a destacar sua diversidade, às vezes até negando sua existência em nome do número e diferença dessas variantes.

É muito fácil constatar, e isso não deixou de ser feito doutamente, que desde os anos 1920 e 1930 existem divergências epistemológicas e ontológicas entre as diferentes correntes que hoje são chamadas, retroativamente, de neoliberais. Embora o conhecimento direto dos autores seja indispensável, limitar-se à história das ideias é ignorar que o neoliberalismo, na história política efetiva, não é apenas um conjunto de teorias, uma coletânea de obras, uma série de autores, mas um projeto político anticoletivista efetivado por teóricos e ensaístas que também são empreendedores políticos.

Durante décadas, não pararam de buscar apoios e aliados entre as elites políticas e econômicas, construíram redes, criaram associações e think tanks para ganhar influência, desenvolveram uma verdadeira visão do mundo e até mesmo uma utopia radical, que permitiram o triunfo da governamentabilidade neoliberal, em quarenta anos de incansáveis esforços. O neoliberalismo, portanto, não é só Hayek, ou Röpke, ou Lippmann, é uma vontade política comum de instaurar uma sociedade livre, baseada principalmente na concorrência, em um marco determinado de leis e princípios explícitos, protegido pelos Estados soberanos, encontrando na moral, na tradição e na religião ancoragens para uma estratégia de mudança radical da sociedade.

Em outras palavras, o neoliberalismo, como o socialismo, como o fascismo, deve ser compreendido como uma luta estratégica dirigida contra outros projetos políticos qualificados pelos neoliberais, globalmente e sem muitas nuances, como coletivistas, como o objetivo de impor às sociedades certas normas de funcionamento de conjunto, sendo a concorrência a principal delas para todos os neoliberais, já que é a única que assegura a soberania do indivíduo-consumidor.

Somente esta dimensão estratégica e conflituosa permite compreender tanto as condições de surgimento como a sua continuidade no tempo e as consequências para o conjunto da sociedade. Sem esta definição política do neoliberalismo, nos perdemos no imbróglio das posições doutrinais e na busca de pequenas diferenças individuais, esquecendo o principal: o projeto unificador de uma empresa política, ao mesmo tempo militante e governamental.

Quando nos deslocamos do campo puramente teórico ao dos preceitos práticos e as razões para atuar, descobrimos uma grande confluência de todas estas diferentes correntes no objetivo político perseguido, o que permite falar justamente de uma racionalidade política do neoliberalismo perfeitamente identificável. Este foi o enfoque de Foucault, às vezes mal compreendido por aqueles que o censuram por ter ignorado a heterogeneidade das escolas teóricas do neoliberalismo. O que o unifica relativamente é o objetivo político de instauração ou de restabelecimento de uma ordem de mercado ou de uma ordem de concorrência, considerada não só como a fonte de toda prosperidade, mas como o fundamento da liberdade individual.

Essa ordem pode ser concebida de forma diferente, seja como uma ordem espontânea que reivindica ser confirmada e apoiada pelo marco jurídico (o neoliberalismo austro-americano de Hayek), bem como uma ordem social construída por uma vontade normativa do legislador (o ordoliberalismo alemão). Mas todo o cosmos neoliberal está convencido, antes de tudo, que é necessária uma ação política para realizar e defender tal ordem social.

Esta também foi a base do acordo formulado, pela primeira vez, durante o Colóquio Lippmann, de 1938, e em uma segunda com a fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em 1947. Todos os grandes combates posteriores do neoliberalismo político confirmam este acordo, e nenhum neoliberal deixará de denunciar o Estado de bem-estar e de lutar contra o comunismo [1].

Mas não é preciso muita exegese para compreender como todos esses empreendedores políticos interpretam o sentido de sua própria ação. O dizem e o escrevem com todas as letras. Assim, Röpke: “A humanidade se deixará levar pelo coletivismo, enquanto não tiver em vista outro objetivo palpável, dito de outra maneira, enquanto não tiver frente ao coletivismo um contraprograma que possa entusiasmá-la” [2]. E se equivoca quem pense que existam ordoliberais mais sociais, mais moderados e mais razoáveis, que esperam do Estado serviços indispensáveis, e neoliberais mais radicais, os austro-americanos, que querem eliminar completamente o Estado [3].

Exceto alguns anarco-libertários que mantêm a chama do foco utópico na versão radical de um Von Mises, a imensa maioria dos teóricos do neoliberalismo que querem desempenhar um papel político eficaz tem uma concepção positiva do Estado, ainda que muito diferente dos promotores do Estado social. Quer se chamem Rougier, Lippmann, Eucken, Hayek ou Röpke, todos concordam em fazer do Estado o guardião supremo das leis fundamentais do mercado, papel eminente que deve obrigá-lo a se aliviar das responsabilidades sociais que os coletivistas o fizeram suportar indevidamente desde o final do século XIX.

O mercado acima de tudo

Os neoliberais têm a convicção de que o que está em jogo com a ordem de mercado é muito mais do que uma decisão de política econômica, é uma civilização inteira, baseada na liberdade e na responsabilidade individual do cidadão-consumidor. E como a sociedade livre se baseia em seu fundamento, o Estado, com todas as suas prerrogativas soberanas, conserva um eminente papel a desempenhar, e faz disso o dever de utilizar os meios mais violentos e mais contrários aos direitos humanos, caso a situação o exigir.

O mercado competitivo é uma espécie de imperativo categórico que permite legitimar as medidas mais extremas, inclusive o recurso à ditadura militar se necessário, como ocorreu com o golpe de Estado no Chile, aplaudido pelas cúpulas intelectuais do neoliberalismo mundial. Para dizer em uma linguagem um pouco envelhecida, mas que expressa claramente as coisas: o mercado é a nova grande razão do Estado neoliberal. Este ponto fixo explica a plasticidade política do neoliberalismo.

Em algumas ocasiões históricas, o neoliberalismo parece se confundir com o advento ou o restabelecimento da democracia liberal, em outras circunstâncias, quando a ordem de mercado parece ameaçada, conjuga-se com as formas políticas mais autoritárias, chegando até a violação dos direitos mais elementares dos indivíduos. E em muitos outros casos, a democracia parlamentar se vê pouco a pouco esvaziada de sua substância por um Estado policial que exerce vigilância e malevolência, diante de tudo o que possa ameaçar a sacralizada ordem da concorrência. Assim é possível considerar as circunstâncias tão distintas que atravessou o neoliberalismo, dos anos 1930 até hoje.

A refundação teórica do liberalismo nos anos 1930 pretendia ser uma reação às formas ditatoriais do comunismo russo, do fascismo italiano e do nazismo alemão, todas entendidas como a consequência lógica do dirigismo e do nacionalismo econômico. O ordoliberalismo alemão, de finais dos anos 1940, foi a principal fonte da refundação de uma Alemanha ocidental desnazificada e democratizada e, mais tarde, nos anos 1950 e 1960, o principal fundamento doutrinal de um mercado comum europeu, contemplado como a base das instituições democráticas e da paz.

Mais adiante ainda, entre os anos 1970 e inícios dos anos 1990, a lógica neoliberal avançou à medida que ocorreu o enfraquecimento e a posterior queda dos regimes comunistas, e acompanhou o progressivo desaparecimento das ditaduras militares anticomunistas, tanto na Europa como na América Latina. Graças ao mercado universal que estava sendo construído, podia parecer que o Estado jamais poderia esmagar a sociedade, oprimir os indivíduos, bloquear a informação. A abertura do mundo exigia um Estado apaziguado, respeitoso com os cidadãos, não desejar mais controlar e reprimir a população.

Inclusive, a globalização foi entendida por certo número de ensaístas e jornalistas como o meio mais radical e mais eficaz de estender as liberdades políticas à China! As próprias guerras mudavam de sentido: não derivavam mais de nações inimigas, não pretendiam conquistar, opunham a civilização do Bem às forças obscuras do Mal. A grande ilusão, que favoreceu justamente o desenvolvimento do neoliberalismo, foi ter acreditado no casamento feliz entre o mercado e a democracia.

Essa época acabou. É o momento do enfrentamento brutal contra os revoltosos e descontentes, da instrumentalização da justiça e o exercício da força desencadeada pelos policiais. Mas o mais novo e desconcertante, na atualidade mais recente, é sem dúvida a nova conjugação entre o neoliberalismo e o populismo nacionalista mais autoritário, como se, na gama de técnicas para impor a liberdade dos mercados contra todas as reivindicações de igualdade, novos poderes tivessem conseguido a façanha de desviar a cólera das massas e de a fazer servir, por incrível que possa parecer, para promover o neoliberalismo mais radical.

Um erro constante na ciência política consiste em simplesmente opor progressistas da globalização a populistas nacionalistas. A situação contemporânea exige mais sutileza na análise. O neoliberalismo de hoje não é mais o de ontem, está dividido entre versões aparentemente muito diferentes, o que pode ser a melhor garantia para a sua sobrevivência e reforço.

Assim como a crise econômica e financeira de 2008 foi uma bela oportunidade para se ir mais longe ainda na via neoliberal, a atual crise da representação, no centro da democracia liberal, oferece às forças conservadoras a oportunidade para mobilizar as massas mais desfavorecidas e mais desesperadas para colocá-las a serviço de uma forma de neoliberalismo tão turvador que é difícil identificá-lo como tal, já que é ao mesmo tempo nacionalista, reacionário e racista. E enquanto outrora o neoliberalismo se baseava no medo fóbico das massas, fonte de todas as derivas coletivistas, agora parece se transformar em uma espécie de fundamentalismo da nação e do povo.

O aspecto já habitual de usar a violência neoliberal contra as instituições e as pessoas força a interrogar de uma forma nova a história do neoliberalismo em suas relações com a violência e o Estado. A questão política e teórica em questão é se as aparências liberais, pluralistas, abertas, modernistas do neoliberalismo, que serviram para seduzir a novas gerações urbanas, culturalmente avançadas e em sua época tecnologicamente de ponta, não foram iscas que dissimularam, durante um período que já ficou para atrás, o caráter profundamente agressivo e regressivo de uma estratégia que hoje se avalia melhor, pelos obstáculos e contestações que encontra e que precisa superar por todos os meios.

Referência

Foucault, Michel (1992). Genealogía del racismo. Madrid: Ed. de La Piqueta.
Notas

[01] Quando em 1948 os ordoliberais alemães passaram à ação para convencer os dirigentes alemães da dupla zona anglo-americana de liberar os preços e reformar a moeda, o primeiro número de seu órgão de combate, o Ordojahrbuch, que se apresentava como o manifesto do ordoliberalismo, colocou como introdução um grande texto de filosofia social de Hayek. “O verdadeiro e o falso individualismo”, F. Hayek, “Der Wahre und falsche Individualismus”, Ordojahrbuch, nº 1, 1948. Cf. Patricia Commun, Les ordolibéraux, Histoire d’un libéralisme à l’allemande, Les Belles Lettres, 2016.

[02] Citado por Jean Solchany, Wilhelm Röpke, l’autre Hayek, Aux origines du néolibéralisme, París, Publications de la Sorbonne, 2015, p. 85.

[03] A biografia de Röpke, de Jean Solchany, oferece uma negação definitiva das interpretações que veem no sociólogo liberal um contrapeso moderado ao ultraliberalismo de Hayek. Demonstra que Röpke é muito mais radical na crítica da modernidade democrática do que Hayek, até o ponto de condenar a descolonização e aprovar o apartheid sul-africano.

Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs, por Adilson Paes de Souza

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Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs

Presidente, expurgar o legado do golpe de 64 das polícias é indispensável para ‘tocar o Brasil para a frente’

Adilson Paes de Souza, Doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP.

Folha de São Paulo, 31/03/2024

[RESUMO] Políticas atuais de segurança pública, orientadas por lógica de guerra contra parte da população e aposta na letalidade policial como medida de proteção social, atualizam os métodos empregados pelo regime militar. Autor sustenta que a situação demanda enfrentar as heranças da ditadura em vez de tratar o golpe de 1964 como parte da história que não deve ser remoída, como Lula faz.

Não tenho recordação da ditadura na minha infância, sensação que causa hoje em mim estranheza. Lembro, vagamente, as propagandas ufanistas sobre o país que deu certo, o milagre econômico, o progresso e o desenvolvimento de toda a nação.

Presidente, eu nasci em julho de 1964, três meses depois do golpe de Estado e da instauração da ditadura no Brasil. Diferente do senhor, que tinha 19 anos de idade, não lembro, obviamente, o que aconteceu.

Acho que o senhor se lembra, presidente, de um programa de TV chamado Amaral Netto, o Repórter, ocasião em que os supostos êxitos do governo militar eram apresentados e exibidos à exaustão: um Brasil que deu certo graças aos militares —aliás, fala constante de pessoas que fazem, hoje em dia, apologia do período ditatorial.

Não era sobre um Brasil onde pessoas eram torturadas e desapareciam. Não era sobre um Brasil onde a miséria e a hiperinflação reinavam. Está vendo como é importante falar de um passado que insiste em ser negado, presidente?

A vida seguiu adiante. Em 1985, se iniciou o processo de redemocratização do país. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal, a nossa Constituição Cidadã, marco do retorno da democracia ao país. É o que dizem. Não foi bem isso, contudo, o que aconteceu.
Ingressei em 1982 no curso de formação de oficiais da Polícia Militar de São Paulo e o concluí em 1984, em plena ditadura. Durante o processo de redemocratização —vale dizer, a Assembleia Constituinte—, pude notar a presença marcante do lobby militar, com o objetivo de barrar mudanças na estrutura das Forças Armadas e das polícias militares no novo texto constitucional.

Naquela ocasião, delegações de oficiais das polícias militares estavam em Brasília o tempo todo e atuavam conjuntamente com as Forças Armadas. O lobby deu certo: os papéis, tanto das Forças Armadas quanto das polícias militares, são os mesmos, na essência, dos que tinham na ditadura.

Aliás, Lula, o senhor se tornou recentemente parte de um lobby poderosíssimo em defesa da aprovação da Lei Orgânica das PMs, lei pior que a do regime militar.

Presidente, nada mudou da ditadura para cá em termos de segurança pública. Hoje, temos uma estrutura incompatível com os valores democráticos presentes na nova Constituição —basta olhar a vasta produção de dados estatísticos sobre a letalidade policial.

O Estado brasileiro, por meio das polícias, se manifesta levando medo e desconfiança à sociedade, característica marcante da atuação estatal durante o regime militar. Desde 1988, houve inúmeras operações policiais, em vários estados, com cifras inaceitáveis de pessoas mortas.

Essas operações têm em comum a falta de transparência e a morosidade nas apurações, o discurso de guerra contra inimigos e a aposta na letalidade policial como a única medida para alcançar a paz social. Via de regra, foram objeto de denúncias de graves violações de direitos humanos e de execuções sumárias, tiveram locais de crime violados e não contaram com perícia e relatos de testemunhas adequados. Isso não é nada diferente das operações realizadas contra os ditos subversivos nos anos de chumbo.

Técnicas de tortura e de assassinato de pessoas vistas como inimigas da nação foram, mesmo após 1988, ensinadas para policiais empenhados no que acreditavam ser a defesa da sociedade contra quem queria destrui-la. Isso aconteceu durante o regime militar, sob a instrução de agentes estrangeiros —CIA e OPS (Gabinete de Segurança Pública dos EUA)— em ações contra elementos subversivos, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional.

O emprego desses métodos, no entanto, persiste até hoje no dia a dia de aplicação de uma política de segurança pública militarizada, que se traduz em uma aludida guerra contra os inimigos da sociedade. O que mudou então, Lula? O senhor acredita, sinceramente, que o golpe é coisa do passado?

Até hoje, presidente, policiais acreditam que o assassinato é uma medida eficaz de proteção da sociedade. A morte de pessoas identificadas como inimigos a serem combatidos, marginais, suspeitos etc. é tratada como sinônimo de eficiência estatal e de segurança pública, da mesma forma como ocorria durante o regime militar. Lula, lamento dizer, a ditadura não ficou para trás, ao contrário do que o senhor diz: ela repercute e produz consequências na atualidade.

Exemplo nítido disso é a conduta de militares no governo Bolsonaro e o envolvimento deles na trama golpista agora investigada, em atuação semelhante à ocorrida às vésperas do golpe de 1964 —que, de acordo com suas declarações recentes, ficou para trás. Insisto, presidente, o passado está presente.

Ao dizer que o golpe de 1964 “já faz parte da história”, o senhor ignora as centenas de assassinatos e desaparecimentos pelo regime militar (434 pessoas, segundo a Comissão Nacional da Verdade). O senhor ignora o sofrimento de seus parentes, familiares e amigos.

Suas afirmações também minimizam o fato de milhares de pessoas serem executadas todos os anos pelas polícias, hoje ditas democráticas. Seu silêncio, presidente, em relação a determinadas operações policiais que resultam em mortes não deixa de ser estarrecedor.

Por que silenciar em relação ao golpe de 1964 e a atuação das polícias hoje? Por que não recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos? Por que vetar eventos oficiais sobre os 60 anos do golpe militar em vez de fomentar a memória a respeito da ditadura? Por que tentar apagar o passado?

A razão é o medo? Algum tipo de acordo com quem se opõe à justiça de transição e à punição de responsáveis por crimes durante o regime militar?

Na Argentina e no Chile, por exemplo, militares que torturaram e assassinaram foram punidos.

Veja como o cenário institucional é bem diferente nesses países.

Isso faz falta ao Brasil. Expurgar o legado da ditadura militar das Forças Armadas e das polícias militares é indispensável para “tocar este país para a frente” e garantir a preservação da nossa democracia.

A miséria da Economia, entre mitos e preguiça, por Jayan Ghosh

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Em meio a uma crise civilizatória aguda, uma disciplina crucial para buscar saídas rende-se a velhas fórmulas, à consagração de “saberes” fossilizados, aos encantos do poder e à arrogância diante de novas teorias. Haverá meios de salvá-la?

Jayan Ghosh – OUTRAS PALAVRAS – 26/03/2024

A necessidade de mudança drástica na disciplina econômica nunca foi tão urgente. A humanidade enfrenta crises existenciais, com a saúde planetária e os desafios ambientais se tornando grandes preocupações. A economia global já estava mancando e frágil antes da pandemia. A recuperação subsequente expôs as desigualdades profundas e agravadas, não apenas em renda e riqueza, mas também no acesso às necessidades humanas básicas. As tensões sociopolíticas resultantes e conflitos geopolíticos estão criando sociedades que em breve podem ser disfuncionais a ponto de não serem mais vivíveis. Tudo isso requer estratégias econômicas transformadoras. No entanto, a corrente principal da disciplina persiste em fazer negócios, como de costume, como se mexer nas margens, com pequenas mudanças, pudesse ter algum impacto significativo.

Há um problema de longa data. Muito do que é apresentado como sabedoria econômica sobre como as economias funcionam e as implicações das políticas é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior hipótese, simplesmente errado. Por décadas, um lobby poderoso dentro da disciplina vendeu meias-verdades e até falsidades em muitas questões críticas. Por exemplo, como os mercados financeiros funcionam e se eles podem ser “eficientes” sem regulamentação; as implicações macroeconômicas e distributivas das políticas fiscais; o impacto do mercado de trabalho e a desregulamentação salarial no emprego e no desemprego; como os padrões de comércio e investimento internacionais afetam os meios de subsistência e a possibilidade de diversificação econômica; como o investimento privado responde a incentivos políticos, incentivos e subsídios fiscais e déficits fiscais; como o investimento multinacional e as cadeias de valor globais afetam produtores e consumidores; os danos ecológicos decorrentes de padrões de produção e consumo; se os direitos de propriedade intelectual mais rígidos são realmente necessários para promover a invenção e a inovação; e assim por diante.

Por que isso acontece? O pecado original pode ser a exclusão do conceito de poder do discurso – o que efetivamente reforça as estruturas e desequilíbrios de poder existentes. As condições subjacentes são varridas ou encobertas. Entre elas, estão o maior poder de capital em comparação com os trabalhadores; a exploração insustentável da natureza; o tratamento diferencial dos trabalhadores por meio da segmentação do mercado de trabalho social; o abuso privado de poder de mercado e da busca de rendas; o uso do poder político para impulsionar os interesses econômicos privados no interior das nações e entre elas; e os impactos distributivos das políticas fiscais e monetárias. As preocupações profundas e contínuas com a insuficiência do PIB como uma medida de progresso são ignoradas. Mesmo com todas as suas muitas falhas conceituais e metodológicas, continua sendo usado como o indicador básico, apenas porque está lá.

Verdades inconvenientes

Existe uma tendência relacionada a subestimar o significado crucial das suposições na construção dos resultados analíticos e na apresentação desses resultados em discussões de políticas. A maioria dos economistas teóricos convencionais argumentará que se afastaram das suposições neoclássicas iniciais, como concorrência perfeita, retornos constantes à escala e emprego pleno, que não têm relação com o funcionamento econômico real em qualquer lugar. Mas essas suposições ainda persistem nos modelos que sustentam explícita ou implicitamente muitas prescrições de políticas (inclusive sobre políticas comerciais e industriais ou estratégias de “redução da pobreza”), particularmente para o mundo em desenvolvimento.

As estruturas de poder dentro da profissão reforçam o mainstream de diferentes maneiras, inclusive através da tirania das chamadas “publicações principais” e do emprego acadêmico e profissional. Tais pressões e incentivos desviam muitas das mentes mais brilhantes, que deixam de se dedicar a um estudo genuíno da economia (para tentar entender seu funcionamento e as implicações para as pessoas) e dedicam-se ao que só pode ser chamado de “atividades triviais”.

Muitas publicações acadêmicas destacadas publicam contribuições esotéricas que agregam valor apenas flexibilizando uma pequena suposição em um modelo, ou usando um teste econométrico ligeiramente diferente. Os elementos que são mais difíceis de modelar, ou que podem gerar verdades inconvenientes, são simplesmente excluídos, mesmo que contribuam para uma melhor compreensão da realidade econômica. Restrições ou resultados fundamentais são apresentados como “externalidades”, e não como condições a serem abordadas. Economistas que conversam principalmente um com o outro, depois simplesmente proselitizam suas descobertas aos formuladores de políticas, raramente são forçados a questionar essa abordagem.

Como resultado as forças econômicas (que são necessariamente complexas – devido ao impacto de muitas variáveis diferentes – e refletem os efeitos da história, da sociedade e da política) não são estudadas à luz dessa complexidade. Em vez disso, são espremidas em modelos matematicamente tratáveis, mesmo que isso remova qualquer semelhança com a realidade econômica. Para ser justa, alguns economistas convencionais muito bem sucedidos criticaram essa tendência – mas com pouco efeito até agora nos guardiões da ortodoxia da profissão.

Hierarquia e discriminação

A aplicação de hierarquias estritas de poder dentro da disciplina suprimiu o surgimento e a disseminação de teorias, explicações e análises alternativas. Isso se combina com as outras formas de discriminação (por gênero, raça/etnia, localização) para excluir ou marginalizar perspectivas alternativas. O impacto da localização é enorme: a disciplina convencional é completamente dominada pelo Atlântico Norte – especificamente os EUA e a Europa – em termos de prestígio, influência e capacidade de determinar o conteúdo e a direção da disciplina. O enorme conhecimento, os insights e contribuições para a análise econômica feitos por economistas localizados nos países onde vive a maior parte da população do planeta são amplamente ignorados, devido à suposição implícita de que o conhecimento “real” se origina no Norte e é disseminado para fora.

A arrogância em relação a outras disciplinas é uma grande desvantagem, expressa, por exemplo, pela falta de um forte senso de história, que deve permear todas as análises sociais e econômicas atuais. Recentemente, tornou -se elegante para os economistas se envolverem em psicologia, com o surgimento da economia comportamental e “cutucadas” para induzir certos comportamentos. Mas isso também é frequentemente apresentado sem reconhecer contextos sociais e políticos variados. Por exemplo, os testes randomizados de visão focada [worm’s eye tests], que se tornaram tão populares na economia do desenvolvimento estão associados a uma mudança que abandonou o estudo de processos evolutivos e tendências macroeconômicas, para se concentrar nas tendências microeconômicas que efetivamente apagam os contextos que moldam o comportamento e as respostas econômicas. A base subjacente e profundamente problemática do individualismo metodológico persiste, principalmente porque poucos economistas contemporâneos ousam fazer uma avaliação filosófica de sua própria abordagem e trabalho.

Essas falhas empobreceram muito a economia e, sem surpresa, reduziram sua credibilidade e legitimidade entre o público em geral. A disciplina convencional precisa muito de maior humildade, um melhor senso de história e reconhecimento do poder desigual e incentivo ativo à diversidade. Claramente, muito precisa mudar para que a economia seja realmente relevante e útil o suficiente para enfrentar os principais desafios de nossos tempos.

O Brasil entre dois negacionismos, por Gilberto Maringoni

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Gilberto Maringoni – A Terra é Redonda -30/03/2024

A negação pública do golpe de 60 anos atrás enseja sua reafirmação e renovação constante. Implica sua defesa e o impedimento de que uma página anterior seja realmente virada

O Brasil enfrentou quatro anos de negacionismo científico, a partir de 2018. O período mais grave se deu durante a pandemia (2020-2022), com a campanha antivacinal, promovida pelo ex-presidente. Foi algo abjeto, que resultou em número incalculável de perdas humanas.

Para total surpresa de qualquer espírito democrático, voltamos a viver um tenebroso clima negacionista neste 2024. Dessa vez temos o negacionismo histórico, que ao ignorar um exame consistente sobre o passado, bloqueia a reflexão e construção de alternativas de futuro. Buscar apagar da memoria oficial o golpe de 1964 é iniciativa igualmente repugnante.

Os dois negacionismos têm motivações distintas. Enquanto o primeiro procurava consolidar apoios em irracionalidades e dogmas religiosos para a construção de uma ideia força obscurantista, e, portanto autoritária, o novo negacionismo baseia-se no defensivismo, no recuo e na esdrúxula concepção de que a melhor maneira de pacificar um conflito é renunciar ao combate. Temos assim um estranho negacionismo lastreado na capitulação de na autodesmobilização.

De onde vêm essas tentativas de negar a realidade? negacionismo é um neologismo relativamente recente na ciência política. O Dicionário de política, organizado, entre outros, por Norberto Bobbio (1983), não o menciona. A Academia Brasileira de Letras define o negacionismo como “atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”. O discurso e a ação do que se convencionou chamar de “negacionismo” é uma poderosa ferramenta de disputa política na sociedade. O negacionismo representa a substantivação da negação, conformando o que seria uma espécie de doutrina ou teoria.

O termo adquiriu ares de conceito a partir da constituição de uma ideia-força disseminada por grupos de extrema direita em países do Ocidente, nas últimas décadas do século XX, cujo intento é construir uma particular leitura da História. Trata-se da afirmação de que o genocídio dos judeus pelos nazistas no contexto da Segunda Guerra Mundial não aconteceu ou não aconteceu da maneira ou nas proporções historicamente reconhecidas.

Mais tarde, ganhou destaque nos debates sobre meio-ambiente a atuação dos chamados “negacionistas do clima”, definidos como aqueles que – em contrário a toda evidência científica – contestam a existência do aquecimento global de origem antrópica, ou seja, decorrente de atividades humanas. Também são considerados negacionistas os que rejeitam (em geral por motivos religiosos) a teoria da evolução das espécies, que se tornou, a partir das descobertas de Charles Darwin, um dos alicerces da biologia moderna.

Sigmund Freud buscou classificar psicanaliticamente o fenômeno da negação – não o negacionismo –como uma forma de preservação do ego, num pequeno – cinco páginas – e complexo texto de 1925, intitulado justamente “A negação”. Escreveu ele: “A função do juízo tem essencialmente duas decisões a tomar: ela deve conferir ou recusar a uma coisa ou determinada qualidade e deve admitir ou contestar se uma representação tem ou não existência na realidade. A qualidade a ser decidida poderia originariamente ter sido boa ou má, útil ou nociva”.

A negação funcionaria como sublimação do real. Segue Freud: “negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu preferiria reprimir. (…) Por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações da repressão e se enriquece”. Negar – ou negar a partir de um julgamento –, de acordo com Freud, “é a ação intelectual que decide a escolha da ação motora, [que] põe fim ao adiamento pelo pensamento e faz a passagem do pensar para o agir”. É a partir daí que “a criação do símbolo da negação permite ao pensamento um primeiro grau de independência das consequências da repressão”. A negação faz parte das defesas cotidianas para evitar frustrações ou fracassos.

Pode-se dizer que a negação, no plano do indivíduo, tem uma função de defesa diante de incertezas e instabilidades. Através dela, evitam-se partes da realidade que causam medo ou insegurança.

No plano político, a negação busca também evitar inseguranças, mas pode, em determinadas situações, ser um dispositivo opressivo. A negação deixa de ser recurso defensivo, e torna-se ferramenta para a imposição de determinado juízo de valor de uma parte da sociedade sobre outra.

Ou o diktat do que seria uma verdade sobre outra. Não importa que essa verdade, objetivamente, seja uma mentira. Sua imposição visa criar um novo cenário no qual se darão as disputas sociais.

A negação nesses termos – no âmbito político – é parte da disputa de hegemonia.

Os dois casos relatados no início – a negação da ciência e a negação da história – fazem parte de uma imposição autoritária, que visa bloquear ações políticas contrárias. A negação de examinar e criticar o golpe de 1964 não se resume a tirar de cena uma ordem ditatorial de classe construída a partir daquele marco fundador de 21 anos de autoritarismo, com ramificações que alcançam a atualidade. Implicitamente, a negação é também a afirmação de seu contrário.

Assim, a negação pública do golpe de 60 anos atrás enseja sua reafirmação e renovação constante. Implica sua defesa e o impedimento de que uma página anterior seja realmente virada. Implica, enfim a legitimação de uma ordem não democrática, envenenando o ambiente político atual.

Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

O PL dos aplicativos, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 28/03/2024

O PL criado e proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativos é uma derrota cabal. A expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital

Trabalhadores de aplicativos

A primeira indicação importante é que, segundo o IBGE, são 600 mil trabalhadores e trabalhadoras, que compreendiam esse contingente de aplicativos, já demonstra que não é algo pequeno. E eu tenho a intuição clara de que esse contingente cresce a todo dia, celeremente, e que, com certeza, esse número já é bastante superior a essa primeira investigação.

A primeira incursão empírica do IBGE foi muito boa e mostrou que os trabalhadores e as trabalhadoras de aplicativos trabalham muitas horas a mais do que a média dos/as trabalhadores/as regulamentados pela CLT e mostra também que seus salários são inferiores.

O que esses números indicam, portanto, sobre a realidade do trabalho no Brasil é que nós temos, hoje, uma combinação letal caracterizada pela presença de uma burguesia predadora. A burguesia brasileira, junto com os capitais globais que atuam aqui são predadores, porque eles seguem a lógica do capital financeiro.

Essa ação empresarial, conduzida pelo mais destrutivo de todos os capitais – o “capital financeiro”– indica que a realidade do trabalho no Brasil, a depender dos interesses do capital, é sempre de mais predação, mais exploração, mais espoliação e mais expropriação, em plena era de uma expansão célere do mundo informacional, digital, da inteligência artificial, da indústria 4.0 etc.

É uma fotografia viva de que, no Sul do mundo, mas também nos bolsões mais precarizados do Norte, o capital só pode avançar incrementando altamente a tecnologia, de modo a levar ao limite a exploração, espoliação e expropriação da classe trabalhadora.

A proposta de regulação do trabalho de motoristas de aplicativos

O PL criado e proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativos é uma derrota cabal, se for aprovado. Por quê? Porque os seus (aparentes) pontos positivos são um remendo para tentar consertar o erro crucial.

Primeiro, o artigo três do projeto: o que essas plataformas, desde a Uber, Amazon, Amazon Mechanical Turk, Glovo, Deliveroo, 99, Cabify, todas elas, bem como outras formas de trabalho Airbnb, Google, Facebook, Meta etc., o que elas têm em comum? Elas se utilizam do trabalho desregulamentado. Ou seja, operam basicamente destruindo os direitos trabalhistas, não reconhecendo os direitos de assalariamento dessa classe trabalhadora. Fazem isso com base em um embuste ideológico muito bem arquitetado e sofisticado, típico de uma burguesia predadora da era financeira e digital.

Há uma massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras desempregados, procurando desesperadamente qualquer trabalho – por isso que essas plataformas entram mais fortemente na periferia do mundo, no Sul do mundo, e nos países do Norte avançam muito mais nos países devastadoramente neoliberais; porque onde tem alguma forma mais estruturada de direitos do trabalho, elas têm dificuldades.

Elas podem se dar a esta construção porque existe, primeiro, uma força de trabalho desempregada em abundância, em escala global, e que é muito mais extensa no Sul do mundo.
Segundo, num contexto de alta tecnologia, que não para de se desenvolver desde os anos 1970, inicialmente o mundo da automação e o mundo informacional digital invadiram a produção industrial e, partir daí, na virada do século, elas invadiram o que prefiro chamar como a indústria dos serviços.

Atenção! Nós não vivemos em uma sociedade pós-industrial, como diziam intelectuais eurocêntricos equivocados, nós vivemos a era da monumental expansão da indústria de serviços.

Ora, os capitais conseguiram ter, simultaneamente, forças de trabalho sobrante, desesperadamente em busca de trabalho e alta tecnologia em ampla expansão. Faltava dar o golpe Frankenstein, “dar o pulo do gato”, e qual é esse pulo? As perguntas que esses grandes empresários fizeram, na sua origem, foi: como burlar a legislação protetora do trabalho. Foram consultar esses grandes escritórios de advocacia corporativa e concluíram que, para burlar e negar os direitos do trabalho, era preciso criar uma categoria híbrida, estranha, que eles definiram como “autônomos” e “autônomas” e “empreendedores” e “empreendedoras”. Tratava-se de um embuste, desde sua origem!

É um embuste porque o que presenciamos é uma proletarização acentuada desses trabalhadores e trabalhadoras. Todas as pesquisas acadêmicas (não aquelas financiadas pelas plataformas) demonstram que eles e elas trabalham, frequentemente, na periferia do mundo, oito, dez, 12 e 14 horas – eu mesmo entrevistei um trabalhador que chegou a trabalhar 20 horas em um dia e outro que me disse que tinha uma jornada de 30 dias no mês, e eu perguntei “que dia você descansa?” e ele disse “não descanso nenhum dia”.

Isto é superexploração do trabalho, que precisa ter um “discreto charme” da burguesia predadora: viraram “empreendedores”, “autônomos” e, portanto, não têm direitos do trabalho. E, mais ainda, os trabalhadores e trabalhadoras devem comprar ou alugar o carro, a moto, a bicicleta – e tudo mais o que for instrumento de trabalho – comprar um celular, ter uma conexão de internet, comprar uma bag, no caso dos entregadores e cuidar dos seus veículos etc. É um processo que no limite volta às condições vigentes na era da acumulação primitiva, porque o capital nem sequer entra com o instrumental de trabalho. E foi assim que se forjou esse vilipêndio em relação ao trabalho.

Podemos chamar esse projeto de PL do Desastre do Trabalho no Brasil, um projeto que “abre a porteira” – lembra dessa expressão? – da devastação do Brasil. O atual presidente, que com razão tanto criticou a contrarreforma trabalhista de Michel Temer está criando um monstrengo assemelhado, inicialmente para motoristas de aplicativo, mas que tem potencial para se expandir para a classe trabalhadora que trabalha nos serviços, com o já estamos vendo em tantas atividades, como jornalistas, trabalhadoras dos cuidados, empregadas domésticas, professores, médicos, enfermeiras etc.

Isso porque, esse PL, no seu artigo terceiro, define juridicamente os/as trabalhadores/as como autônomos. Ora, fazer isto é o que querem (ou exigem) a Uber, a IFood, a Rappi, a Glovo, a 99, a Lyft e a Deliveroo, todas essas empresas que circulam no mundo e que são, muitas delas, muito poderosas. Basta citar o caso da Uber, por um lado, com todas as suas ramificações – Uber Eats, Uber Works, Uber Health e também a Amazon, inclusa a Amazon Mechanical Turk etc.

Então, quais são os avanços do texto? Em poucas palavras: ele dá os diamantes e o ouro para as grandes plataformas digitais e joga migalhas para os/as trabalhadores/as. E quando forem comer essas migalhas, percebem que estão estragadas. A previdência, que é crucial; a organização sindical é um direito dos trabalhadores e trabalhadoras, está indelevelmente vinculada ao reconhecimento da sua condição de assalariamento. Se não for assim, é embuste, como o PL 12.

É por isso que o que é aparentemente positivo, se desfaz, vira engodo, pois será sempre usufruído pela metade, quando muito. Quem garante que o trabalhador uberizado vai efetivamente conseguir pagar a sua parte da previdência? E o que é o verdadeiro embuste, a aparência de autonomia, bem como a ideia de que as plataformas são empresas de tecnologia, ganha estatuto legal. A pergunta elementar é: quando se chama a 99 ou Uber, nós estamos em busca de transporte privado ou queremos aprender tecnologia? A resposta, qualquer criança sabe. É óbvio que essas são empresas de transporte de pessoas e não são fornecedores de tecnologia. E o PL 12, se aprovado, legaliza-se, então, o ilegal. Por isso ele tem que ser rejeitado ou retirado da pauta parlamentar. Até porque, se lá ficar, vai piorar. Eis o imbróglio criado pelo governo.

A construção do texto

Não houve uma construção coletiva. Houve um início de uma discussão, que não aceitou uma participação livre do conjunto heterogêneo e polimorfo que caracteriza a categoria dos/as trabalhadores/as de aplicativos. E, além de não reconhecer essa heterogeneidade em sua plenitude, o governo já tinha uma proposta na mão, a das plataformas, que não aceitavam negociar o ponto crucial: o reconhecimento da subordinação, do assalariamento real, contemplados os direitos do trabalho. Esse é o ponto crucial: as plataformas não abrem mão do embuste, não aceitam e não reconhecem a condição de assalariados.

Eu soube que setores do Ministério Público do Trabalho saíram das negociações do PL, de representantes dos entregadores que também saíram ou não foram mais chamados para a negociação, pois se recusaram a legitimar o embuste. O resultado é que o PL está fazendo água por todos os lados, como estamos vendo, porque a recusa a esse projeto é muito grande, em vários setores, por motivos antagônicos, mas é uma recusa grande. Na balança, então, o governo, no essencial, ficou do lado das grandes plataformas, que continuarão a descumprir e burlar os direitos do trabalho; não pagar tributos; se definir como “prestadoras de tecnologia” etc. E assim encontram-se, hoje, entre as maiores corporações globais.

A criação de um sindicato de trabalhadores plataformizados

A criação de um sindicato nasce com a própria história de luta da classe trabalhadora. Foi assim que na Inglaterra, no século XVIII, as primeiras lutas levaram à criação dos sindicatos que se consolidaram legalmente a partir de 1824. Então, esta criação resulta da organização e da auto-organização da classe trabalhadora. Um sindicato dos entregadores aqui ou um sindicato dos motoristas ali, como trata esse PL – que, repito, os entregadores tiveram a coragem, a consciência e a lucidez de recusar – propõe e incentiva a criação, por cima, de sindicatos.

Não cabe ao governo, “por cima”, criar sindicatos. Quem vai criar são os/as trabalhadores/as.

Existe uma recusa muito forte aos sindicatos por parte de amplos setores da categoria, porque o ideário neoliberal ensina, desde meados do século passado, que o sindicato é inimigo da classe trabalhadora e que, portanto, o sindicato só atrapalha. Muitos dos trabalhadores mais jovens hoje estão imbuídos dessa concepção antissindical, mas eles percebem na luta que individualmente não são nada; coletivamente eles têm força. Para ter uma estrutura coletiva – e o Breque dos APPs mostrou isso – é preciso ter formas de organização.

Neste processo, por exemplo, nasceu a Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos – ANEA, que é um exemplo muito importante de criação de um embrião de entidade representativa dos/as trabalhadores/as de aplicativos de entrega.

Em 2019, houve discussões, que chegaram até um encontro internacional na Inglaterra, de trabalhadores/as uberizados, motoristas da Uber, que discutiu a criação de um sindicato internacional. Repito: não será pela via de um decreto do governo, mas pela conscientização, organização e auto-organização da classe trabalhadora. Através de um movimento, e não por decreto.

A ausência de direitos previstos no artigo 7º da Constituição

Não ter férias, 13º salário, descanso semanal, jornada regulamentada e fundo de garantia mostra que este projeto é regressivo, um projeto que retorna – se deixarmos seguir adiante – a níveis de exploração do trabalho ao século XIX. Não por acaso que as palavras “bonitinhas”, como crowdsourcing embutem a sua origem. O outsourcing, por exemplo, era um sistema de trabalho do século XIX na Inglaterra, onde a classe trabalhadora trabalhava em casa, fora do espaço da fábrica, sob condições abjetas e sem nenhum direito. É um embuste e é isso que significa esse PL. Deve, por isso, ser retirado ou rejeitado. E essa é uma luta que interessa diretamente a toda classe trabalhadora.

Trata-se da criação de uma terceira categoria, porque se abre à “lei da selva”. A partir de amanhã, todos os ramos e setores, não só as plataformas, vão começar a exigir do Supremo Tribunal Federal – STF, que é neoliberal no que diz respeito às questões do trabalho. O mesmo Supremo que teve coragem de tomar uma postura antifascista, é absurdamente neoliberal, o que não é uma contradição – nós sabemos, quem estuda e conhece o tema que estamos discutindo.

É a criação de uma terceira categoria sem direitos. Portanto, é dar plenitude à contrarreforma de 2017 de Michel Temer, que propôs o trabalho intermitente, que o Lula na época tanto criticou.

Hoje, o que Lula está fazendo, como já disse acima, é legitimar o ilegal, que não é frase jurídica, mas uma frase sociológica e crítica: estão legalizando o que é inaceitável de ser legalizado, estão criando uma terceira categoria que abre a porta para desmontar o conjunto da classe trabalhadora. Basta imaginar, nas próximas eleições, se voltar uma aberração tipo Michel Temer, ou uma versão abjeta do fanfarrão que vai para a prisão.

Como superar esta encruzilhada?

Com luta, organização, auto-organização, debate coletivo, valendo-se do WhatsApp para conectar com os companheiros e companheiras, conversando naqueles espaços durante as horas em que ficam esperando pelo trabalho que não chega.

Por exemplo: todos nós já entramos em uma loja de comércio, o trabalhador, que está na loja e vai te atender, estava recebendo com ou sem cliente. Por que os/as trabalhadores/as motoristas não recebem se estão disponíveis e conectados? Por certo, estas questões afloram em sua vida cotidiana, em suas conversas, em suas ações e lutas.

A empresa tem o maquinário algorítmico e a inteligência artificial, todos esses artefatos do mundo informacional digital, rigorosamente controlados pela engenharia do capital, pelos nefastos CEOs, que modulam as formas da exploração. Todos nós sabemos que isso é para se jogar contra os/as trabalhadores/as. O desafio são as lutas. Cito um exemplo real e vivo: o Breque dos APPs, de julho de 2020, entrou para a história da classe trabalhadora brasileira como a primeira greve dos trabalhadores entregadores de aplicativos. Só será possível superar essa encruzilhada através da força coletiva, da organização, da consciência e de luta. Não é uma coisa que a classe trabalhadora nasce sabendo. E algo que se constrói em sua história, desde a Revolução Industrial na Inglaterra.

Os motoristas das grandes plataformas, como Uber, Cabify e 99, até recentemente no Brasil, foram ex-operários, professores; eu já entrevistei veterinário, engenheiro químico e até um pequeno proprietário de indústria, porque ela estava parada na pandemia e ele foi trabalhar de Uber. É um amálgama de subjetividades, de experiências, não é só o antigo motoqueiro que tinha uma tradição já organizada de sindicato; é um amálgama. Têm jovens, muito jovens, que se conectam com uma plataforma, alugam uma motocicleta para fazer esse trabalho, não dirigiam antes, não eram motoqueiros. Têm estudantes que alugam bicicletas para pagar os estudos. Portanto, não vai nascer do nada um sindicato. Uma entidade desse gênero será resultado de muita experiência, luta, discussão e organização coletiva.

O piso do salário-mínimo

A contabilização dessas horas trabalhadas mostra, por exemplo, que os/as trabalhadores/as motoristas terão uma remuneração menor do que tinham antes. O que explica por que motivo esses motoristas não querem CLT e nem sindicato é que muitos estão imbuídos do milagre neoliberal.

Seria um milagre, depois de tantos desastres, derrotas da classe trabalhadora, pois nós vivemos uma era de contrarrevolução preventiva burguesa (conforme nos ensinou Florestan Fernandes), só que hoje ela é movida pelo capital financeiro. Seria um milagre que esses trabalhadores tivessem um pensamento diferente. Por exemplo, se estou desempregado e compro uma moto (ou um carro) e vou para uma plataforma, eu não pergunto os meus direitos; eu vou porque preciso pagar o veículo que comprei ontem e preciso trabalhar para sobreviver.

Com relação ao salário-mínimo, o primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que tende a reduzir o salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca em xeque, sim, trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo. Também nesse ponto, o PL é contra a classe trabalhadora.

Era necessário, imperioso, e ainda há tempo, de termos uma regulamentação efetiva e garantidora de direitos do trabalho e da previdência. É uma questão fundamental. Todos nós sabemos que Lula nasceu e apareceu na cena social e política, em meados dos anos 1970, como uma liderança operária-metalúrgica muito importante. Não é possível imaginar que aquele que foi, no passado, o mais importante líder operário e sindical da história da classe trabalhadora no século XX no Brasil não tenha consciência de que este projeto atende às empresas. Os entregadores, com lucidez, deram um sinal contrário e dou outro aqui.

Força para os entregadores, porque quando esse embuste vier a ser imposto para eles, será preciso recusar. Os entregadores têm mostrado mais agilidade em formas de luta do que os motoristas, por vários motivos que aqui não há tempo de discutir.
Flexibilizado na jornada, mas não flexibilizado nos direitos

Portanto, o projeto não é o que foi possível, porque esse projeto é pior do que o da Tabata Amaral e daquele senador, que gosta mesmo de apoiar o governo autocrata e fascista, o qual só não deu o golpe por muito pouco, como estamos sabendo agora. É inaceitável esse projeto, ele está neste nível e é preciso e imperioso avançar em direção ao reconhecimento da subordinação, do assalariamento real e do reconhecimento pleno dos direitos do trabalho, preservada a flexibilidade de horários, que tipifica esta atividade. Mas flexibilidade com direitos!

Pensando em motoristas e entregadores, quando perguntados se querem CLT, a maioria diz não, se perguntar se querem sindicato, boa parte diz não. Agora, se perguntar se eles querem o descanso semanal pago, dizem que sim. A mesma coisa quando perguntam se eles gostariam de ter férias pagas de um mês, 13º salário e condições para usufruir de uma previdência na aposentadoria, eles dizem que sim. Era isso que era possível fazer.

A CLT já permite a muitas categorias que o trabalho seja flexibilizado na jornada, mas não flexibilizado nos direitos. Esse monstrengo do governo Lula mantém a precariedade completa das condições de trabalho. O motorista ou entregador pode trabalhar até 12 horas? É um acinte, pois a jornada no Brasil é de 44 horas, sendo de 40 horas para vários setores. Ter 12 horas ou mais, é outro vilipêndio inaceitável.

Segundo ponto: a plataforma tem direito de demitir, suspender ou bloquear desde que justifique.

Mas justifique como? O governo sabe muito bem que no mundo dos algoritmos os/as trabalhadores/as não têm um gerente da empresa para conversar, não tem um espaço físico de contato. Estamos vivendo uma era algorítmica, da inteligência artificial, e os/as trabalhadores/as não sabem como funciona, quem opera e quem programa. Alguém conhece algum programa ou algoritmo dessas empresas que diz “Dirija lentamente, siga todas as regras de trânsito, teu tempo de entrega não vai contar, trabalhando ou não as mesmas horas por dia você vai receber o mesmo salário”. Não! É a gamificação. Isto é, quem rala e se mata vai adiante; quem não faz assim, não segue. Portanto, esse projeto é nefasto. E necessário avançar mais, com outro projeto.

E aqui trago outro ponto importante. Se o projeto for para a Câmara e o Senado, ele será aprofundado e se tornará ainda mais devastador. Se o governo tiver o mínimo de consciência histórica da classe trabalhadora, ele retira esse projeto de lei. O que Lula chamou – ele estava com a cabeça em outra coisa, talvez no Corinthians (eu falo aqui como corinthiano) – do “mais importante projeto” do mundo ou algo parecido, que envolve empresas/plataformas e trabalhadores/as uberizados é outro embuste. Ele é pior do que todos os projetos que foram feitos ou estão em discussão na Espanha, Inglaterra, Itália, Portugal, França, Alemanha e União Europeia.

Na semana passada, o projeto da União Europeia, por exemplo, reconheceu um ponto crucial: eles são empregados. Essa é a questão fundamental.

A expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital

Todos esses/as trabalhadores/as são prisioneiros de uma máquina algorítmica, que eles não têm ideia como funciona, assim como nós também não temos. Alguém aqui já viu um algoritmo? Ele é como um relógio que pode alterar as horas? Não. O algoritmo é um inferno na mão dos CEOs, que são os predadores.

Evidentemente que os CEOs são uma parte das classes dominantes. Não são os proprietários, mas os agentes fundamentais que mantêm a hierarquia de controle do trabalho sob o capital. Ou seja, é o capital sobrepondo-se ao trabalho.

A escravidão digital é um traço dos nossos tempos. Nenhum desses motoristas consegue trabalhar sem ter uma meta, visando receber um valor X no fim do dia. Mas, para atingir a meta, ele não sabe quanto vai receber. Quanto as empresas descontam? O mundo algorítmico e digital sequer mostra o que os motoristas ganharam e quanto lhes foi descontado.

O nosso livro Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (Boitempo) com pesquisas densas e pesquisadores nacionais e internacionais, bem como nosso trabalho anterior, coletivo, que originou o livro Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (Boitempo), ambos feitos em um Projeto com o Ministério Público de Campinas e região (MPT-15) mostram que este comando maquínico, digital, informacional e algorítmico faz com que o trabalhador não saiba nem o quanto vai receber. Ele vai saber o valor recebido quando vem o pagamento final e ele não pode perguntar por que é x e não y. Isso porque o comando mais global da sociedade é do capital financeiro, o mais destrutivo de todos. E os artefatos digitais e informacionais são projetados, programados e utilizados para impor a exploração, a expropriação e a espoliação do trabalho estão dados.

A exploração é evidente: trabalho de 12, 13 horas por dia, quando não mais. A expropriação é a retirada de todos os direitos. E a espoliação é que, para entrar nessas empresas, endividam-se com o capital financeiro, para pagar a prestação da moto, carro ou bicicleta, etc.

E os/as trabalhadores/as, endividados, não vão discutir se as empresas dão direitos ou não; querem começar a trabalhar e se envolvem na lógica da gamificação. É possível começar a trabalhar às 6h, às 8h ou às 10h da manhã, mas essa é a única “autonomia” que tem, mas vão trabalhar as horas necessárias para cumprir a meta. Foi isso que denominei como “escravidão digital”.

Em 2018, no livro O privilégio da servidão, quando cunhei a expressão, tínhamos um número menor de trabalhadores em plataformas, entregadores, trabalhadoras domésticas, professores, médicos, jornalistas, advogados, trabalhadores do cuidado, eletricista etc. Hoje nós temos uma massa de trabalhadores que trabalham por aplicativo e que é prisioneira dessa escravidão digital.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Precisamos de uma reforma do Judiciário e da polícia, por Rodrigo Zeidan

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Pôr mais ‘criminosos’ na cadeia não vai resolver nada, a não ser gerar mais demanda por venda de sentenças

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 30/03/2024

Os dois problemas principais do Brasil são a segurança pública e a desigualdade de renda. No caso da segurança pública, fomos enganados.

O debate público tem vendido a ideia, há décadas, de que a solução para a segurança pública passa por questões práticas: estatuto do desarmamento, policiamento ostensivo, invasão de comunidades e outras soluções que envolvem, normalmente, violência contra os mais pobres. O caso Mariele Franco descortinou a nossa triste realidade: o problema começa no Estado. Portanto, a solução também tem que começar lá.

Precisamos de uma reforma dos sistemas judiciário e policial. E deve ser uma reforma profunda, indo desde a carreira de juiz até os incentivos para quem estiver entrando na carreira policial. Precisamos de soluções de gente grande, muito além de slogans simplistas (embora não necessariamente errados) como “acabar com a Polícia Militar”.

O problema é que ninguém quer largar o osso. Qualquer reforma séria transformaria a relação do Judiciário e da polícia com o resto da sociedade. Hoje, a independência do Judiciário não funciona como deveria. É independência sem responsabilidade.

Embora a maioria dos funcionários públicos trabalhe direito, cumprindo suas funções como estabelecidas pela lei, os incentivos do sistema estão mal ajustados. Isso vale para a seleção de conselheiros, investigações pela corregedoria, punições por malfeitorias e muitas outras coisas. Sem acertar a estrutura do sistema, vai ter gente que vai continuar achando que segurança pública se faz entrando em comunidades com armas em riste.

Mas juízes, procuradores e outros teriam de largar o osso. É comum ouvir a tese de que precisamos pagar a juízes bem para que não tenham incentivos a se corromper. Mas isso é uma piada. Não faltam escândalos no Judiciário de vendas de sentenças e coisas do gênero.

Temos um dos Judiciários mais caros do mundo, mas já sabemos que o que importa não é o quanto gastamos com o sistema jurídico, mas sim o desenho correto dos incentivos e da estrutura do sistema.

Por exemplo, Botero, La Portae outros autores (2003) deixam isso claro, mostrando que o quanto uma sociedade gasta com o sistema jurídico não tem nenhum impacto no desempenho; há sistemas corruptos nos quais juízes e procuradores ganham pouco e também nos quais são os profissionais mais bem pagos do país. Exemplos da Holanda e do Japão mostram como reformas bem-feitas podem melhorar o sistema e diminuir custos ao mesmo tempo.

O problema é que, no Brasil, o Estado não é de ninguém quando deveria ser de todos. Não nos importamos com quem toma vantagem dele. E, pior, chamamos de otário quem tem a oportunidade de se dar bem e não o faz. Se uma carreira consegue um aumento, outras correm atrás do seu. Se um juiz tem dois meses de férias, outras também querem.

Isonomia é bonitinho no papel, mas vira uma corrida para saquear o Estado. É isso que os artigos científicos mostram quando afirmam que o mais relevante é o desenho dos incentivos dos agentes públicos. Hoje, temos funcionários públicos que heroicamente fazem o melhor que podem para cobrir os rombos dos outros. E um sistema jurídico no qual servidores ganham 20, 30 ou 40 vezes mais que um salário-mínimo e acham pouco.

Colocar mais “criminosos” na cadeia não vai resolver nada estruturalmente, a não ser gerar mais demanda por venda de sentenças. O Estado é de todos, ou pelo menos deveria ser.

O retorno do Estado investidor, por André Roncaglia

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Transição ecológica comandada por setor privado não deve ser realidade

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo – 29/03/2024

A promessa de que o setor privado se encarregaria de fazer a transição ecológica não tem mais salvação. Evan Halper, do Washington Post, mostrou que apenas 4% de uma amostra de mil empresas que se comprometeram a zerar suas emissões até 2050 estão fazendo o mínimo para atingir a meta do Acordo de Paris.

Em face da inépcia de corporações motivadas pelo lucro, as agências nacionais de desenvolvimento ganham destaque. Contando com subsídios estatais e garantias dos tesouros nacionais, estas instituições financeiras estatais atuam como catalisadoras de investimentos —públicos e privados— em setores-chave, como energias renováveis, transporte e agricultura sustentáveis.

Estudo do Roosevelt Institute, intitulado Política Industrial 2025. Trazendo o Estado de Volta (de novo), faz um levantamento da experiência internacional de política industrial e traz alguns exemplos de instituições de financiamento guiadas por critérios como emprego, renda, redução de emissões de carbono, inovação etc.

O banco de desenvolvimento alemão, KfW, financia projetos de energia renovável e eficiência energética na Alemanha e no mundo. Com mais de US$ 550 bilhões em ativos e adotando linhas de crédito especiais, garantias e subsídios, o KfW fomenta pequenas e médias empresas, crédito habitacional, bolsas de estudo, investimentos em infraestrutura e a expansão das energias limpas. Atua também como investidor direto em empresas de vários setores. Por exemplo, a KfW Capital, subsidiária especializada em gestão de ativo, investe em fundos de capital de risco, para apoiar startups em vários setores.

Outro exemplo é a Temasek, a gestora estatal de ativos de Singapura. Com carteira diversificada de ativos em setores estratégicos —como tecnologia limpa e infraestrutura sustentável—, a Temasek investe com foco no longo prazo, equilibrando o retorno financeiro com o impacto social e ambiental positivo.

Em parceria com a BlackRock, maior fundo de investimento do mundo, criou a “Decarbonization Partners”, uma plataforma de capital de risco para projetos de economia com emissão zero para 2050. Além disso, é acionista de “campeãs nacionais” do país, como o Banco de Singapura e a empresa estatal de transporte aéreo Singapore Airlines.

Até mesmo nos EUA ganha força a criação de uma agência nacional de investimento (National Investiment Authority – NIA): uma plataforma institucional para operacionalizar, financiar e implementar políticas industriais e de desenvolvimento. Estruturada com subsidiárias focadas em infraestrutura e em gestão de carteira de ativos, a NIA misturaria elementos de banco de desenvolvimento e gestora estatal de ativos, para coordenar a ação do Estado em vários mercados por meio de múltiplos canais.

Aqui no Brasil, o BNDES tem uma subsidiária gestora de ativos, a BNDES Participações (BNDESPar). Durante os governos Temer e Bolsonaro, houve intenso desinvestimento das participações diretas, devido ao tabu criado em torno das “campeãs nacionais”.

A atual gestão do BNDES vem revertendo esta direção. Por meio da BNDESPar, lançou iniciativas de fundos de investimento em participações (FIP) no total de R$ 1,5 bilhão, para atrair o setor privado a financiar startups e pequenas e médias empresas. Há também o FDIC Pátria Infra Crédito (R$ 500 milhões) —focado nos setores de energia, saneamento, logística e transporte, mobilidade urbana e telecomunicações— e o FIP Minerais Estratégicos no Brasil (até R$ 1 bilhão), para projetos de minerais ligados à transição energética, descarbonização e produção sustentável de alimentos.

Integrar o BNDESPar à política industrial do governo permitirá intensificar os investimentos diretos e indiretos em empresas ligadas à transição ecológica. As superstições neoliberais já não dão as cartas. O Estado investidor está de volta!

Potência chinesa

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Nas transformações constantes em curso na sociedade internacional, destacamos a ascensão chinesa como exemplo de grandes modificações estruturais num período curto, com grandes impactos e repercussões na sociedade internacional, gerando novos horizontes, novos desafios e novas oportunidades.

De uma sociedade fortemente empobrecida em grande parte do século XX, com uma população gigantesca e vivendo no meio rural, onde encontrávamos muitos indivíduos sobrevivendo do extrativismo, da pesca e da produção de produtos primários de baixo valor agregado, a sociedade chinesa passou por grandes transformações em poucas décadas, investindo em capital humano, consolidando o poder do governo nacional e estimulando uma consolidação do setor industrial.

Atualmente, a China se transformou numa potência industrial, responsável por grande parte das produções industriais do mundo, produzindo produtos de alta complexidade e participando ativamente das maiores cadeias globais de produção da economia mundial, gerando calafrios nas economias desenvolvidas, retomando discursos protecionistas esquecidos e trazendo novos horizontes para nações em desenvolvimento.

A ascensão chinesa está gerando fortes constrangimentos nas economias ocidentais, levando seus governos a adotarem medidas protecionistas, levando seus Estados nacionais a aumentarem os subsídios a empresas nacionais, despejando trilhões de dólares em subsídios diretos e indiretos, para evitar que seus setores econômicos e produtivos percam espaço nos círculos internacionais, perdendo espaço e fragilizando suas influências globais.

O modelo econômico chinês foi construído no final dos anos 1970, contrariando os modelos liberais defendidos pelas economias ocidentais, este modelo se caracteriza por fortes intervenções do Estado Nacional, elevados subsídios econômicos e financeiros, compras governamentais para fortalecer os grupos nacionais, forçando empresas estrangeiras interessadas a atuarem no mercado chinês e a transferência de tecnologias para grupos nacionais como forma de atuação no mercado interno, além disso, destacamos ainda, uma política sólida e consistente para estimular as exportações, com políticas de comércio internacional ousada e pragmática, fomentando a competição com atores internacionais, trazendo ganhos monetários, melhorando sua produtividade interna, aumentando a atração de recursos monetários e angariando novos mercados mundiais.

O crescimento da China reconfigurou a geopolítica internacional, fortalecendo nações asiáticas e fortalecendo seus modelos econômicos, estimulando seus investimentos em educação, fortalecendo canais de pesquisas científicas, culminando em um forte desenvolvimento tecnológico, aumentando a complexidade econômica e produtiva, ameaçando as nações ocidentais desenvolvidas e levando estes países a rasgarem os modelos econométricos defendidos pelos teóricos liberais, que rechaçavam o intervencionismo estatal e estimulavam os processos de privatizações e a diminuição do Estado como agente indutor do crescimento econômico.

Neste novo momento da sociedade mundial, marcado por grandes desafios e oportunidades no capitalismo contemporâneo, a ascensão asiática, liderada pela China, pode abrir novas oportunidades de negociação comercial e produtiva, exigindo das nações uma visão mais sistêmica e estruturada, abandonando uma visão até então dominante centrada no individualismo, no imediatismo e priorizando o curto prazo, responsável por grandes desajustes econômicos, degradação do meio ambiente, incremento da desigualdade social e um processo constante de desumanização da sociedade internacional, centrada em valores monetários e financeiros em detrimento de valores morais mais sólidos e sofisticados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O dia 31 de março precisa ser lembrado para não ser repetido, por Wilson Gomes

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Deixar passar em branco os 60 anos do golpe de Estado que tão duramente marcou a vida do país não faz sentido

Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”

Folha de São Paulo, 27/03/2024.

A última ditadura a que a República brasileira foi submetida completa 60 anos no domingo. Não foi a primeira na nossa breve história republicana de baixas convicções democráticas. Meu pai, nascido em 1922, viveu sua primeira ditadura aos 15 anos, e a segunda, aos 42. Trinta anos, de 73, transcorridos sem democracia.

Eu nasci às vésperas da segunda ditadura do século passado. Nem havia completado um ano quando a democracia morreu da última vez no Brasil, esmagada pelas botas de generais, brigadeiros, almirantes e suas tropas. Até os 21, eu não tinha vivido um único dia neste país sob governo civil, Estado de Direito, eleições livres, direitos políticos amplamente reconhecidos, essas coisas que a gente dá por garantidas como luz do sol e oxigênio.

Além disso, constatei com assombro na semana passada que faltou muito pouco para que a efeméride do início da ditadura de 1964 fosse comemorada com uma ditadura novinha em folha. Em vez de liturgicamente repetir o nosso “ódio e nojo à ditadura”, segundo a fórmula lapidar de Ulysses Guimarães, estivemos bem perto de estar celebrando uma “nova revolução” para defender o Brasil do “comunismo” nesse “país que vai pra frente, de uma gente amiga e tão contente”, como aprendi na doutrinação ideológica do regime militar desde a alfabetização.

Não estou descrevendo tragicamente a história de uma república em que o regime democrático aparece e desaparece a cada duas, três gerações. Na tragédia, por definição, o destino arrasta inexoravelmente os eventos, ignorando rogos e prantos e o esforço de evitar o desfecho previsto.

No drama brasileiro, em vez disso, a deliberação vai em sentido contrário às virtudes republicanas. Há sempre gente tramando, urdindo, projetando e tentando pôr em marcha algum projeto autoritário para tomar o poder sem ganhar eleições, para transformar a “res publica” em coisa particular, para governar sem desafiantes nem prestação de contas um povo sem direitos ou garantias, a não ser os que o governante lhe quiser conceder.

Na população civil, sempre houve a reserva de vocações autoritárias, mas é nas instituições militares que o DNA autocrático está não só preservado como é ritualisticamente cultuado e doutrinariamente transmitido. O Brasil teve mais golpes e intentonas de golpes do que guerras, movimentos de tropas inimigas nas fronteiras ou tentativas de invasão do território. O inimigo é principalmente interno e atende pelo nome de democracia.

Por isso, a cada celebração pelo fim de ditaduras ou a cada suspiro de alívio porque uma intentona de golpe de Estado falhou, convém lembrar que “o bacilo da peste”, na linguagem de Camus, o vírus da brutalidade autocrática, não morre nem desaparece. É apenas debelado provisoriamente. Permanece latente por décadas até que “chegue o dia em que, para desgraça e aprendizado dos homens, a peste desperte seus ratos e os envie para morrer em uma cidade feliz”.

Erra o governo ao tratar como um dia comum o 31 de março, o dia do último golpe de Estado bem-sucedido neste país em que a democracia parece frágil, provisória e incompleta. Ainda mais quando a população acabou de saber que o seu último presidente, o círculo íntimo dele e uma parte da elite militar arquitetaram e tramaram um golpe que, por fortuna, não se completou.

Falhou, mas não por falta de tentativa.

Deixar passar em branco os 60 anos do golpe de Estado que tão duramente marcou a vida do país não faz sentido. Nem que fosse um ritual, com velas acesas, uma vigília, um lamento, 60 segundos de silêncio, uma leitura da lista dos mortos e desaparecidos, uma poesia, um painel, um memorial, qualquer coisa.

É importante lembrar ao país que não temos o direito de esquecer, muito menos de repetir. Se há os que preservam o bacilo da peste autoritária e os que cultuam botas e baionetas acima da República, também os democratas precisam de uma liturgia em que se celebre um regime de direitos e liberdades, também os republicanos carecem de um reforço nos anticorpos que combatem a autocracia no sistema imunológico das instituições do país.

Esta nação merece um futuro em que governos civis não tenham que se preocupar se as Forças obedecem a uma constituição democrática, tramam mais um golpe, reconhecem ou não que servem à República e ao poder civil. A relação precisa é ser republicana, não concessiva. E será harmoniosa não porque silenciamos sobre ditaduras, mas quando os militares alinharem sua bússola ao regime democrático sob o qual escolhemos viver.

Como são lindos os neoliberais, mas tudo é muito mais, por Ricardo Viveiros

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Preocupam a alienação e a distância que se toma da emancipação humana

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de “A Vila que Descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um Tempo Obscuro” (Contexto).

Folha de São Paulo, 25/03/2024

Livros são um prazer. Além do conteúdo, as conexões que provocam com outras obras me gratificam “A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal” de Pierre Dardot e Christian Laval, surpreendeu pela quantidade de referências que me vieram à mente. Como em um caleidoscópio, convidei para “conversar” Friedrich August von Hayek, John Maynard, Fernando Henrique Cardoso, Michel Foucault, Karl Marx e representantes da Escola de Chicago.

Crítico que sou, a ideia de que há algo sensato em uma sociedade liberal não me convence. O colonialismo foi uma dominação capitalista. Parafraseando Caetano Veloso, cantarolei “como são lindos os neoliberais, mas tudo é muito mais” (“Podres Poderes”, 1984). Fique claro que a “nova razão” dos autores está associada ao novo sentido e à pretensão holística do neoliberalismo. A dominação sobre a economia é só o ponto de partida. Dardot e Laval utilizam complexas análises históricas e sociais, além de outras psicanalíticas, para fundamentar a obra. Talvez o pensamento que melhor sintetize o neoliberalismo esteja na frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: “A economia é o método. O objetivo é mudar a alma”. A ideia assombra, mas faz sentido.

Para os detratores de ideologias, sejam elas quais forem, os intelectuais recorrem à interpretação vanguardista com a precisa fundamentação filosófica de Michel Foucault e Karl Marx, entre outros, com o propósito de revelar o mito neoliberal da objetividade econômica. Neoliberalismo é ideologia, sim, e das mais complexas! A psicanálise é outra ferramenta indispensável para elucidar o problema. Muitos fantasmas e cobranças que ocupam nossa mente vêm dessa “nova razão”. Corpo perfeito, família perfeita e profissional perfeito são idealizações imaginárias que alimentamos sem cuidado. A alienação e a distância que se toma da emancipação humana, proposta por Marx, preocupam.

Na política, a deterioração da democracia parece algo natural nessa nova diretriz. Ao neoliberalismo não importam liberdade e justiça, exceto se estiverem em favor do sistema de dominação e lucro. Políticos como o estadunidense Donald Trump conseguem manter a popularidade e podem voltar à Presidência, mesmo após a prática de criminosos atos antidemocráticos. Ainda que a economia seja um pilar importante na avaliação dos cidadãos, questões como xenofobia, discriminação, violência e outras são ignoradas dentro da cultura neoliberal. Está aberto o caminho para discursos totalitários.

Ao contrário do interesse da sociedade, está no consenso que o controle da coisa pública pelo setor privado é a melhor opção. Ou seja, o cidadão prefere não fazer parte da administração dos seus impostos. Assim, além de atestar a própria incapacidade de atuar na vida do país, o eleitor afirma que o setor privado —que objetiva o lucro— está mais imbuído de melhores intenções do que o gestor público. A dominação não é só econômica, a “alma” já está comprometida.

Talvez desenvolvimentistas como Hayek e Keynes não tivessem a dimensão do que se tornaria o neoliberalismo. O combate às teorias que privilegiavam iniciativas coletivas e a valorização de ações individuais não acabariam em uma cultura de dominação tão ampla, até psiquiátrica. Isso não estava no horizonte dos representantes da Escola de Chicago; eles pensavam em melhorar a economia. Menos ainda em Fernando Henrique Cardoso e sua “Teoria da Dependência”, que, confrontada com o seu exercício do poder, revela a luta entre o pensador e o político. Mas, de alguma forma, todas essas teses compõem a base do neoliberalismo real.

A dinâmica da economia funciona com uma complexidade que não é vista pela maioria das pessoas. Ações nas Bolsas de Valores são movidas ao sabor das especulações. Apenas a minoria consegue avaliar quanto o sistema é invasivo no seu cotidiano. Os que têm boas interpretações da realidade devem contribuir para a construção da liberdade mais plena de todos nós. Nesse sentido, o livro de Dardot e Laval traz a lição: a consciência de que vida humana e suas relações devem estar acima de qualquer interesse econômico.