Por que nos sentimos tão sozinhos? por Pedro Henrique M. Aniceto

0

Pedro Henrique M. Aniceto

A Terra é Redonda – 07/05/2023

Os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida

Com a revolução técnico-científico-informacional e, por consequência, o avanço expressivo dos meios de comunicação de massa, uma nova realidade se estabeleceu no mundo do século XXI. Nunca antes, na história da humanidade, foi possível se conectar e trocar experiências e informações com o número de pessoas a que temos acesso pelas redes sociais.

A nova forma do capitalismo em que nós, seres humanos, passamos a ser produtos a serem comercializados e consumidos estabeleceu um precedente perigoso em que, por um lado, permite a disseminação de milhões e milhões de informações e conteúdos importantes para a manutenção da vida humana e, por outro, torna-se um instrumento dantesco responsável por um processo de desumanização do ser, o qual deixa de ser sujeito na própria vida e passa a objeto a ser consumido, responsável pela própria servidão, senhor da própria futilidade.

A necessidade pujante e erotizada de estar conectado e criando “conteúdo” para a experiência alheia evidencia um diagnóstico duro e complexo da sociedade contemporânea, o vazio estrutural da consciência moderna. Com isso, evidencia-se o pensamento de Jacques Lacan, um psicanalista francês cuja obra se fundamenta, em parte, na questão “Por que nos sentimos tão sozinhos?”.

Para Jacques Lacan, durante uma fase do desenvolvimento da criança, denominada “fase do espelho”, o indivíduo percebe que é um ente separado do ambiente e é essa distância simbólica que gera o vazio interior que nos torna tão solitários, tornando “necessário” a nós preenchê-lo. É esse, para o autor, o nascimento do ego. Pode-se, nessa conjuntura, tomar por base tal concepção lacaniana para justificar, em parte, o porquê a vida digital, projetada e encenada, é tão valorizada na contemporaneidade.

Isso porque possibilita ao indivíduo tentar reduzir, pelo menos um pouco, a distância entre ele e o mundo, permitindo que se sinta diluído e pertencente a um todo, o que Sigmund Freud chama de “sentimento oceânico”. Assim, numa espécie de “servidão voluntária”, utilizando um conceito de Étienne de la Boétie, os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida.

Nesse sentido, os indivíduos renunciam à liberdade e à privacidade em prol da sensação de pertencimento a um conjunto que, por essência, também tenta consolidar-se como alguém cuja vida exposta – não necessariamente verdadeira – deva ser desejada pela massa. E nesse cenário, marcado por um ciclo vicioso, que cintila a concepção doentia de felicidade contemporânea, em que é preciso, a todo tempo, exaltar uma vida feliz e inexistente a fim de que outros validem esse sentimento como verdadeiro. Para que assim, possa, no âmago do ser, sentir uma ilusão momentânea de integração com mundo que é, rapidamente, substituída por um sentimento de solidão, que move novamente a roda, fazendo com haja novas interações vazias e superficiais que não o preenchem fazendo com que o ciclo se repita.

É, portanto, nesse paradoxo da solidão em meio a muitos que a sociedade o século XXI se baseia, havendo um apagamento do ser enquanto sujeito dono de si e, em seu lugar, consolidando, cada vez mais, zombies gritando dia após dia que são pessoas felizes, enquanto esperam que o restante do mundo repita e ateste para que, assim, possam acreditar, pelo menos por um instante, nessa fantasia que a concepção atual de felicidade.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Há conciliação com a Faria Lima? por Paulo Nogueira Batista Júnior

0

Paulo Nogueira Batista Júnior –

A Terra é Redonda – 05/05/2023

O Banco Central atua como um quarto poder, enquanto os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Estou entre os críticos mais insistentes, mais renitentes da política de juros do Banco Central. Fora o presidente Lula, claro, que é hors concours. Ele tem feito críticas sempre pertinentes, quase sempre certeiras. Volto à carga hoje, acompanhando modestamente os esforços críticos do nosso Presidente.

O tema é vasto, mereceria um ensaio de 50 páginas, no mínimo. Vou tentar ser sintético. Começo com os apelos do ministro Fernando Haddad, que há algum tempo vem pedindo harmonia entre as políticas monetária e fiscal. Faz todo sentido. O termo mais usado na literatura é coordenação fiscal-monetária. Em todos os países razoavelmente organizados, mesmo um Banco Central autônomo se vê obrigado a coordenar as suas ações com as do Tesouro. Isso significa não só a troca regular de informações entre as duas instâncias, mas o cuidado de levar em conta as ações da outra parte na definição e implementação das suas. Se há alguma prevalência, esta é das autoridades fiscais, que representam o governo eleito. Em alguns países, o Tesouro tem até mesmo representação formal nos comitês que definem a política monetária.

Esforços em prol da harmonia fiscal/monetária
O ministro Fernando Haddad, a bem da verdade, não se limita a lançar apelos públicos em prol da harmonia. Vem fazendo o possível para aplacar o Banco Central e, mais importante, a base social da autoridade monetária – a Faria Lima, também conhecida como turma da bufunfa. Não é fácil, leitor, mas o Ministro da Fazenda se esforça. Em janeiro, anunciou um pacote de ajuste fiscal. Em seguida, abandou ou postergou o aumento das metas de inflação, aceitando os argumentos do Banco Central de que isso seria contraproducente. Em abril, anunciou um “arcabouço fiscal” com travas ao gasto público, na esperança de convencer o Banco Central de que o risco fiscal será pequeno daqui para a frente.

Fernando Haddad deu sinais, além disso, de que pretende negociar com o presidente do Banco Central os nomes dos dois novos integrantes da diretoria da instituição. Pela lei de autonomia, é prerrogativa do presidente da República nomear agora dois dos nove integrantes da diretoria do Banco Central e do Copom. Os mandatos de dois diretores venceram em final de fevereiro e o governo, não se sabe bem por que, ainda não indicou os substitutos. No momento em que escrevo, início de maio, as indicações continuam pendentes. Se dependesse apenas da Fazenda, os nomes seriam submetidos à aprovação de Roberto Campos Neto. Não quero ser injusto, mas é a impressão que a Fazenda está passando. Na verdade, o próprio ministro deu declarações nesse sentido há algum tempo. É mais do que apenas impressão, portanto.

Banco Central, um quarto poder
Os apelos de Fernando Haddad em favor da harmonização têm caído no vazio até agora. É que o comando do Banco Central vê a proposta como tentativa velada de suprimir ou condicionar a sua sacrossanta autonomia. O Banco Central brasileiro tem a pretensão extravagante, tudo indica, de definir os seus passos sem considerar a política do Tesouro.

Vamos ser mais claros. A verdade é que o Banco Central se comporta como quarto poder. Não é apenas autônomo, mas independente. Isso ao arrepio do que a lei pretendia. A distinção convencional, incorporada à legislação brasileira, estabelece que o Banco Central autônomo tem a liberdade de buscar o cumprimento de metas que lhe foram fixadas pelo poder político eleito, por meio do Conselho Monetário Nacional (CMN).

Já um Banco Central independente teria a prerrogativa de fixar as próprias metas de inflação. Essa distinção, no caso brasileiro, é mais teórica do que prática. Ocorre que o Banco Central tem um dos três votos do CMN; os dois outros são da Fazenda e do Planejamento. Além disso, o Banco Central exerce a secretaria do Conselho, o que lhe confere poder adicional. Para completar o quadro, a Fazenda e o Planejamento não conseguem ou não desejam, ao que parece, fazer face à ortodoxia do Banco Central.

Sentindo cheiro de sangue, a Faria Lima avançou. O comando do Banco Central já dá repetidos sinais de que pretende enquadrar a política econômica do governo eleito. Veja bem, leitor, não apenas a política fiscal, que deve fazer “o dever de casa” a que se refere insistentemente a ministra Simone Tebet, mas também os bancos públicos federais, que têm sido admoestados pelo Banco Central, em seus comunicados e atas de reuniões, a não adotar políticas que visem estimular a atividade econômica, pois isto reduziria, supostamente, a eficácia da política monetária.

Governo de mãos amarradas
A prevalecer a “harmonia”, tal como entendida pelo Banco Central, o governo ficará de mãos atadas, inerte, provavelmente incapaz de agir para relançar uma economia que está estagnada há dez anos! A política fiscal, limitada pelo arcabouço, conseguirá orientar-se para um papel ativo? O governo poderá determinar ao BNDES, ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica que forneçam um volume de crédito suficiente, a taxas e prazos atrativos, para destravar os investimentos na economia brasileira? Se depender do BC, não, nunca e jamais. Ficarão todas essas instâncias submetidas, harmonicamente, ao objetivo de assegurar a estabilidade monetária e o cumprimento das metas de inflação. O presidente da República, por sua vez, poderá continuar, sossegado, as suas críticas aos juros altos. A harmonia continuará sem sobressaltos.

Repare, leitor, que essa “harmonia” inclui também o direito que se reserva o Banco Central de lançar petardos contra a política fiscal! A política de juros altos, por exemplo, eleva o custo da dívida e o déficit público. Mas essa é uma fonte de “risco fiscal” que, Deus sabe por que, não precisa ser considerada. Os juros altos derrubam, também, os níveis de atividade e de emprego, reduzindo as bases de incidência da tributação e, tudo o mais constante, as receitas do governo.

Em ambiente de desaquecimento da economia, qualquer tentativa de aumentar a arrecadação, ou de tentar mantê-la estável, mesmo sem necessariamente recorrer a novos impostos ou aumentos de alíquotas, como pretende o ministro da Fazenda, encontrará tenaz resistência dos contribuintes, que redobrarão seus esforços para escapar da tributação.

Vamos elaborar um pouco esse ponto. O arcabouço fiscal estabeleceu, como metas centrais, déficit primário zero em 2024 e superávits nos anos seguintes. Se a economia continuar estagnada ou, pior, entrar em recessão, o esforço para alcançar a meta será maior e tenderá a acentuar a tendência à estagnação da economia. A política fiscal será pró-cíclica, em outras palavras. Uma solução para evitar a estagnação/recessão seria adotar medidas fiscais expansionistas.

Mas o arcabouço fiscal dará espaço para uma política antirrecessão? Duvidoso, dadas as travas à despesa pública inseridas no marco fiscal. Outra solução seria acionar os bancos públicos federais para prover o crédito que os banco privados não proveem, especialmente em períodos de juros altos e estagnação. Possível? Em tese, sim, mas o Banco Central já avisou que isso atrapalha a política monetária…

Finalmente, não vamos esquecer do seguinte. Os déficits públicos, desde Keynes, são vistos como admissíveis em períodos de estagnação ou recessão. Nessas situações, recomenda-se deixar os estabilizadores automáticos atuarem (isto é, a retração cíclica da carga tributária e o aumento de certas despesas ligadas à atividade econômica) e inserir componentes anticíclicos na política fiscal, expandindo por exemplo investimentos públicos e transferências sociais, com efeitos em termos de desconcentração da renda e multiplicadores da demanda e da atividade.

Veja o absurdo, leitor. O aumento do déficit público resultante dos juros altos não tem qualquer efeito positivo. Eleva o risco fiscal, sem benefícios em termos de reativação da economia e com efeito concentrador da renda. Só mesmo na Faria Lima essa política merecerá aplausos – e frenéticos. Simples entender por quê.

Os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Beneficiam todos aqueles que têm poupança financeira ou reservas de caixa aplicadas em títulos públicos e outros ativos. Ora, os pobres e remediados, e mesmo a classe média baixa, pouco ou nada possuem em termos de poupança financeira. Quem recebe a renda adicional são os super-ricos – sobretudo os bilionários, as grandes empresas e os bancos que têm aplicações vultosas em títulos públicos e outros ativos líquidos. Vida mansa. Alta rentabilidade, com liquidez e sem risco. O paraíso do rentista.

Esses mesmos aquinhoados não gastam nada ou quase nada da renda adicional que recebem em função da generosa política do Banco Central. O dinheiro recebido fica entesourado e aplicado em títulos públicos e outros ativos. Não circula na economia, nem ajuda a reativá-la.

Concluo aqui essa diatribe que já me saiu longa demais. Já não tenho, confesso, muita esperança de ajudar a modificar o quadro macroeconômico. O que escrevi aqui é apenas o desabafo de um brasileiro que assiste há décadas, revoltado, a repetição dos mesmos absurdos.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

A proposta do Emprego Digno Garantido, por Ladislau Dowbor

0

Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2023

Resenha do livro The case for a job guarantee, de Pavlina Tcherneva, publicado em 2020 pela Polity Press

É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos,
o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação. E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)

De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.

Nada é integralmente sustentável, por Rodrigo Tavares.

0

Será possível ou desejável adotarmos uma visão mais realista da sustentabilidade?

Rodrigo Tavares, Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017.

Folha de São Paulo, 03/05/2023

Nesta semana, o Fórum Econômico Mundial convocou uma entrevista coletiva para dizer várias coisas importantes sobre o futuro do trabalho. Baseado no estudo “O Futuro do Trabalho”, declarou que especialistas em sustentabilidade serão os profissionais mais procurados no mercado global, depois de especialistas em inteligência artificial. Mas e se o mercado estiver objetivamente à procura de especialistas em “insustentabilidade”, não em “sustentabilidade”?

Não é tecnicamente possível para um produto, uma empresa ou uma ação ser integralmente sustentável. A sustentabilidade é um conceito espaçoso, desde que foi cunhado nos anos 1980. Para uma empresa ser sustentável, devemos considerar não só a sua sustentabilidade corporativa interna (por exemplo: segurança laboral, igualdade de gênero, transparência fiscal) como os impactos positivos e negativos dos seus produtos e serviços (pegada carbônica, impactos nas comunidades locais, entre outros). Ou seja, deve contabilizar-se tanto o que uma empresa faz quanto como o faz.

Deve também ser levada em consideração toda a sua cadeia de valores e o conjunto das partes interessadas (stakeholders). Uma empresa é, por definição, um organismo que só sobrevive se estiver em permanente conexão com outras entidades. Uma célula-mãe origina células-filhas, sejam elas clientes, fornecedores ou empregados. Uma empresa isolada e esvaziada não é uma empresa, é um CNPJ.

Aplicando essa visão holística da sustentabilidade, abriremos a porta a contradições e limitações. A busca da totalidade do conceito leva à sua abolição.
Vejamos a descarbonização do planeta.

Praticamente todos os países têm metas de transição energética e de desenvolvimento sustentável. O Brasil, por exemplo, tem como objetivo a neutralidade carbônica até 2050. Essas metas só serão atingidas com fortes investimentos em energias renováveis e eletrificação de automóveis. Mas a tecnologia subjacente a essa transformação depende da extração de minérios.

Segundo o Banco Mundial, será necessário extrair até 3 bilhões de toneladas de minerais e metais raros até 2050 —um crescimento de 500% sobre a capacidade extrativa atual— para atingirmos as metas do Acordo de Paris. Precisaremos da “perversa” indústria de mineração, conhecida assim por muitos ambientalistas, para construirmos uma sociedade ambientalmente sustentável.

De acordo com a Agência Internacional de Energia, um carro elétrico requer seis vezes mais insumos minerais do que um carro movido a combustíveis fósseis, enquanto um parque eólico offshore requer nove vezes mais minerais do que uma usina a gás de tamanho similar. Segundo a União Europeia, só para as baterias dos automóveis elétricos e para o armazenamento energético, a Europa necessitará de 18 vezes mais lítio até 2030 e de até 60 vezes mais até 2050.

Sem lítio, níquel, cobalto, manganês e grafite não haveria fontes de energia limpa, incluindo energia geotérmica, solar, hidrelétrica e eólica. Ou veículos elétricos. A nossa capacidade coletiva de enfrentar as alterações climáticas depende de suprimentos confiáveis de minerais.

A China, com 70% da produção global e 85% da capacidade de processamento, lidera esse mercado. Outros países produtores, como Maláui, Angola, África do Sul ou República Democrática do Congo, também têm baixos índices de proteção dos direitos humanos.

Há alguns meses, a Tesla assinou contratos de US$ 5 bilhões com empresas indonésias para a compra de níquel. O primeiro-ministro de Portugal esteve no mês passado na Coreia do Sul, onde promoveu seu país como a oitava maior reserva de lítio do mundo (e a maior da Europa), com mais de 60 mil toneladas, apagando do cartão de visitas os protestos populares que tem enfrentado contra a exploração do mineral na região norte do país. A mineração pode ter um impacto destrutivo não apenas no meio ambiente como nas comunidades locais.

Mas, mesmo que consigamos aplicar mecanismos de rastreabilidade dos materiais raros e, hipótese igualmente rara, impor práticas responsáveis a mineradores em mercados emergentes, iremos sempre encontrar algum tipo de incongruência no domínio da sustentabilidade –na produção, no processamento, no transporte, na utilização fabril, na utilização pelo consumidor final, no pós-uso desses produtos.

Na cadeia de valores, haverá sempre violações de indicadores ESG, por menores que sejam. A insustentabilidade é uma inevitabilidade, não uma exceção.

E será cada vez mais fácil encontrar quem nos aponte os pecados. Nos últimos dois anos, têm despontado centenas de startups que monitoram as ações das empresas e das suas cadeias de valores, usando internet das coisas, imagens de satélite e inteligência artificial. Medir a insustentabilidade será tão recorrente quanto medir a sustentabilidade de uma empresa.

Para uma empresa, há certamente benefícios em perfilhar a sustentabilidade como objetivo final. Há uma lógica de positividade e de evolução inerente à comunicação, mobilizando funcionários e apaixonando clientes. O mercado está formatado dessa forma. Por isso temos normas técnicas, prêmios, rankings e certificações que premiam o aparente sucesso. Damos destaque a um conselho de administração que atingiu a igualdade de gênero, mas negligenciamos se a cadeia de suprimentos é composta por empresas sem preocupação pelo empoderamento feminino.

A impossibilidade de atingirmos essa meta final leva necessariamente a frustrações e a greenwashing. Um passo para a frente e dois passos para trás. No Brasil, a euforia em torno da sustentabilidade, visível no mercado há poucos anos, não produziu resultados consistentes em todo o ecossistema.

Medir sustentabilidade reflete não apenas uma visão fragmentada da realidade; é também tecnicamente difícil. Cada setor industrial tem as suas próprias práticas em sustentabilidade, cada empresa tem a sua própria cultura e interpretação de sustentabilidade e cada país tem o seu próprio quadro normativo e legal. Para uma empresa brasileira, diversidade de orientação sexual é um fator positivo. Em Uganda ou na Arábia Saudita dá prisão.

Em breve deixaremos de tentar medir a capacidade das empresas de atingir o apogeu da sustentabilidade. Adotaremos, como alternativa, uma lógica semelhante à das análises clínicas.

Para cada indicador ESG, como se fossem eritrócitos ou leucócitos, conheceremos os valores de referências e o nosso histórico.

Hoje nenhum médico parabeniza um paciente por ter o mais alto valor de hemoglobina, tal como nós ainda valorizamos as empresas que têm os mais altos valores ESG. Nem há médicos que analisem apenas o valor da hemoglobina, negligenciando todos os outros elementos que contribuem para a saúde de uma pessoa.

Uma visão holística da sustentabilidade de uma empresa deverá incluir, por isso, as discrepâncias e as imperfeições concretas que acontecem enquanto implementamos os nossos planos de descarbonização. O objetivo de uma organização não será atingir o máximo da sustentabilidade, mas reduzir ao máximo os elementos de insustentabilidade.

Na Europa já se deu o primeiro passo. A partir do próximo mês, todas as instituições financeiras terão que declarar os seus Principais Impactos Adversos (PAIs, na sigla em inglês).

A sustentabilidade total é uma fantasia. A sustentabilidade realista, por outro lado, deverá ser o eixo central da nossa economia e sociedade.

Desigualdade que beira o ridículo, por Ana Cristina Rosa

0

É aviltante o looping de carências dos pobres no Brasil ante a qualidade de vida dos ricos

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 08/05/2023

Uma das características mais cruéis de uma sociedade tão desigual como a brasileira é o menosprezo da elite —que usufrui de todos os direitos, além de muitos privilégios— em relação aos problemas cotidianos da massa de desvalidos que compõem o povo.

Não é de hoje que as classes C, D e E vêm se encalacrando para sobreviver. Diversas pesquisas apontam o endividamento crescente entre os mais pobres, que contraem dívidas até para comprar comida a crédito! Sem falar nos milhares que estão à margem, literalmente passando fome.

Com inflação e juros em alta, a “ralé” vive uma espécie de looping de carências que beira o ridículo de tão aviltante em comparação com a qualidade de vida dos mais ricos.

Hoje, em São Paulo, para comprar uma cesta básica são necessários R$ 794,68, segundo o Dieese. Isso é mais de 60% do valor do novo salário mínimo. Parece até piada, e de muito mau gosto, considerando que o mínimo deveria suprir todas as necessidades básicas de uma família. Mas é a realidade do pobre no Brasil, que inclui o drible das contas do mês. A saída óbvia é escolher o que deixar de pagar.

Na classe C, que representa o universo de brasileiros que recebem entre R$ 5,2 mil e R$ 13 mil mensais, 80% das pessoas estão endividadas! Não é preciso muito esforço para imaginar a situação das famílias das classes D e E, onde os rendimentos não ultrapassam os R$ 5,2 mil.

Também não é demais lembrar que a maioria desses cidadãos é negra, segundo pesquisa recente do Instituto Locomotiva. Por que será?

Nesse cenário bizarro, está cada vez mais difícil encontrar alguém que frequente o comércio e ainda não tenha sido abordado por um desamparado pedindo alguma coisa —não só na entrada, mas também no interior dos estabelecimentos.

Não sei o que é mais triste e constrangedor: a vulnerabilidade dos pedintes; a grosseria dos fiscais das lojas com quem está a esmolar; ou a indiferença dos que são incapazes de acolher um pedido genuíno.

Debates econômicos

0

A sociedade internacional vem passando por grandes transformações estruturais com repercussões em todas as regiões, com alterações nos modelos de negócio, alterações no mundo do trabalho, crescimento da concorrência e a necessidade de uma nova agenda ambiental e de sustentabilidade, exigindo variadas mudanças nas políticas públicas e novas formas de configurações nas estruturas de poder global.

Nesta sociedade, percebemos que o debate econômico se concentra no imediatismo e nas questões de indicadores dispersos, os discursos se limitam a questões cotidianas, deixando de lado as reflexões sobre os ecossistemas econômico e produtivo, com isso, todos os agentes políticos e sociais se sentem capacitados a participarem deste debate e dos rumos da economia contemporâneo.

O debate econômico e as grandes questões relevantes para a sociedade contemporânea estão sendo deixados de lado, os especialistas se escasseiam e as conversas se restringem a questões limitadas e enviesadas, se tornando opiniões centradas na defesa dos interesses de grupos detentores dos grandes conglomerados econômicos e produtivos, limitando os debates econômicos, privilegiando os mesmos profissionais e que defendem seus interesses imediatos. Neste cenário, percebemos que os grupos de mídia corporativa abrem espaço para as mesmas opiniões, fugindo dos contrapontos, dos debates e das reflexões críticas.

Os debates econômicos do século XX eram marcados por grandes embates de pensamentos e variadas visões de mundo, onde dois grupos digladiavam com visões diferentes e defendendo teses variadas. Na história do pensamento econômico brasileiro, encontramos o embate entre Roberto Simonsen versus Eugênio Gudin, um defendendo ideias e teses de industrialização da economia brasileira e, de outro lado, as visões de Gudin que defendia a vocação agrícola nacional, embora todos os contendores vislumbravam um Brasil mais sólido e consistente, embora tinham ideias contrárias, todos defendiam um país mais inclusivo, fortalecido, equilibrado e desenvolvido.

No curso dos debates econômicos internacionais destacamos os confrontos intelectuais entre os economistas J. M. Keynes e o austríaco Friedrick Hayek, teóricos conservadores, um mais intervencionista e outro de raiz liberal, responsáveis por grandes confrontos de ideias e de pensamentos. Destes embates, percebemos o nascimento de uma nova sociedade, novas formas de reflexão política, novos horizontes do pensamento econômico, com o surgimento de novas áreas, impulsionando a teoria econômica e contribuindo para criar novas formas de pensamento, de questionamento e desenvolvimento.

Nesta sociedade percebemos que os grandes embates intelectuais foram se escasseando, as batalhas teóricas se reduziram e todos os grandes grupos se perderam e se entregaram pelo poder do chamado mercado, que passam a controlar os indicadores econômicos, controlando as taxas de juros, escolhendo os responsáveis pelas autoridades monetárias e garantindo que seus serviçais voltem para o mercado depois de exercerem cargos de alta remuneração do setor público. Os especialistas chamam isso de, no jargão econômico, de porta giratória, onde funcionários saem dos governos e ganham empregos em grandes instituições financeiras nacionais e internacionais, como prêmio dos préstimos prestados para seus empregadores, com alta remuneração e inúmeros benefícios.

Os debates econômicos contemporâneos se restringem a uma visão limitada e superficial, os grandes confrontos e embates entre teorias econômicas estão cada vez mais distantes, as conversas se restringem ao crescimento do PIB e da inflação, deixando de lado as questões tributárias, evitando reflexões sobre isenções fiscais que garantem ganhos substanciais para os donos do capital, além de refletir sobre as crescentes desigualdades de renda, além de evitar os abismos financeiros entre os ricos e os pobres. Desta forma, percebemos que os debates econômicos estão distantes da realidade da população, mostrando a irrelevância da ciência econômica para compreendermos as necessidades dos seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista e Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/05/2023.

A urgente reindustrialização na Era Digital, por Marcio Pochmann

0

O Brasil é o quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, mas continua sendo grande importador. Superar dependência requer políticas de desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstruir o sistema produtivo nacional

Marcio Pochman, Economista e Professor da Universidade de Campinas
Outras Palavras – 24/04/2023

O Brasil demorou três décadas para ingressar de fato no século 20, o que somente começou a ocorrer a partir da Revolução de 1930, quando o país se libertou do domínio liberal. Até então, predominou a sociedade agrária que, longeva e primitiva, estava aprisionada aos atrasos do século 19.

Ainda que tardiamente, a modernização capitalista permitiu que em menos de meio século o Brasil
integrasse as 10 principais economias industriais do mundo. Para tanto, a aliança tripartite entre os capitais estatais e privados nacional e estrangeiro foi substancial, especialmente em momentos graves vividos pelo mundo (S. AMIN La desconexion. Hacia un sistema mundial policéntrico, 1988).

Inicialmente, na fase crítica da Segunda Guerra Mundial, o acordo entre Getúlio Vargas (1930-1945) e Franklin Roosevelt (1933-1945) marcou a transferência tecnológica e a participação do capital estadunidense na constituição da indústria de base nacional. Posteriormente, a tensão em torno da Guerra Fria foi utilizada por Juscelino Kubitschek (1956-1961) para atrair um verdadeiro bloco de investimento externo que edificou a industrialização pesada no país (P. Evans A tríplice aliança: as multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro, 1980).

Mas, quando o país se preparava para o ingresso na Era Digital em constituição no final do século 20, com a montagem interna da microeletrônica e o salto tecnológico e informacional em curso com a lei de informática e parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional (M. Pochmann A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial, 2022). O caminho do declínio brasileiro pôde ser quantificado pela perda de sua participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,6% em 2021.

Assim, as últimas quatro décadas configuraram o aprofundamento do grau de dependência externa do Brasil, com o retorno à especialização produtiva e à reprimarização exportadora. A colagem do endividamento externo com a expansão da dívida pública interna herdada dos últimos governos da ditadura civil-militar (1964-1985) demarcou a base pela qual a financeirização da economia ganhou autonomia concomitantemente com o regime de superinflação.

Na sequência do ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal desde 1990, a queda do processo hiperinflacionário transcorreu mediante a renegociação da dívida externa e a implantação do Plano Real. Uma receita mortífera à industrialização, uma vez que a combinação de elevadas taxas de juros reais atraentes ao ingresso do capital externo que ao valorizar a moeda nacional estimulou a substituição da produção nacional por importados, sobretudo os de maior valor agregado e empregos de qualidade.

Por fim, a prevalência do tripé macroeconômico desde 1999, com taxa de câmbio flutuante e metas de superávit fiscal e de inflação, terminou por consolidar a inserção do capital externo no reino da financeirização sustentado por elevadíssimas taxas de juros e crescente desconexão com a antiga relação periférica com os países do nortecentrista. Em realidade, foi implantado o modelo econômico extrovertido, cuja dependência com o exterior determina o dinamismo nacional alimentado por mercado interno contido e asfixiante da produção e consumo de bens industriais, cada vez mais provenientes do exterior.

A reversão desta situação nacional requer pôr em curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo. Ou seja, é necessário o reposicionamento brasileiro na Divisão Internacional do Trabalho da Era Digital, uma vez que o país, enquanto quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, continua sendo importador.

Neste sentido, a recomposição do investimento requer o estabelecimento do antigo tripé dos capitais em novas bases. De um lado, existe a circunstância interna de o Estado brasileiro ter a disponibilidade de recursos financeiros em reservas externas e depósitos internos, ao mesmo tempo em que o capital privado nacional se encontra entesourado em fundos de aplicações financeiros especulativos e de curto prazo.

De outro lado, o imbróglio do capital externo. Aquele derivado dos países ocidentais tem sido declinante na última década, inclusive com a saída de grandes corporações transnacionais. Já o capital derivado dos países orientais, especialmente da China tem sido crescente.

Por conta disso, a preparação para o ingresso no século 21 pressupõe a redefinição política da convergência dos capitais em torno de novo padrão de acumulação para o desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. Isso dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida pela financeirização e superexploração do trabalho resultante da atual presença na divisão internacional do trabalho como país primário exportador.

Comércio Internacional

0

O comércio internacional sempre foi visto, na história da humanidade, como um dos mais ativos instrumentos de enriquecimento das nações, auxiliando na inserção dos países, levando os governos das mais variadas matizes ideológicas a criarem estratégias mais consistentes, políticas efetivas para alavancar suas estruturas econômicas, visando angariar novos mercados, com acumulação de recursos monetários e auxiliando na construção do desenvolvimento dos países, um sonho acalentado para todas as comunidades desde os primórdios da civilização.

Com o incremento da globalização econômica, com impactos variados para todas as regiões da sociedade internacional, uns países ganharam mais e outros, os ganhos foram menores. Nesta competição, percebemos um grande consenso internacional entre os especialistas, que as economias asiáticas foram as grandes ganhadoras, países como o Japão, a Coréia do Sul e a China, se transformaram num polo de forte crescimento econômico, aumentando seus espaços no comércio internacional, angariando recursos monetários, consolidando empresas e conglomerados econômicos, transformando a região que movimenta a economia internacional, despertando protecionismos, estimulando conflitos econômicos, políticos e geopolíticos, que podem culminar em confrontos militares que podem gerar fortes constrangimentos para a comunidade internacional.

A ascensão de um modelo econômico diferente daquele preconizado pelos países ocidentais vem despertando novas narrativas, novos embates e o crescimento de estudos comparativos que buscam compreender e analisar as trajetórias do desenvolvimento econômico das nações. Neste cenário, percebemos o nascimento de um mundo multipolar, com novas oportunidades, novas perspectivas de negócios e novas estratégias de inserção na economia global.

Neste momento, percebemos os grandes projetos de investimentos preconizados pela economia chinesa, a chamada Rota da Seda, que abarca mais de 140 países, um ambicioso projeto de fortes investimentos em infraestrutura global, criando espaços de comércio internacional, fortalecendo laços de integração econômica e produtiva, além de estimular novos horizontes econômicos para as nações, alavancando as regiões e contribuindo para a melhora da economia global.

Destacamos ainda, as novas negociações internacionais que nascem com a ascensão das economias asiáticas, com novos modelos econômicos, que trazem novos horizontes e novos consensos, além de novos acordos comerciais, revitalizando os canais de financiamento, contribuindo com a abertura de novos espaços para outras moedas e novos instrumentos monetários e financeiros. Mesmo percebendo que essas negociações internacionais demandam algum tempo e novas estratégias e planejamentos globais, percebemos que o fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como o “banco dos Brics” que tendem a construir novas oportunidades de negócios com outras moedas, dinamizando essas nações e diminuindo as negociações com a moeda norte-americana. Destacamos ainda, o papel dos EUA impondo sanções econômicas e financeiras para a Rússia, sua exclusão do Sistema Swift gerou incertezas e instabilidades, levando muitas nações a se preocuparem que poderiam ser as próximas nações sancionadas, levando-as a buscarem alternativas ao dólar.

Neste cenário, as nações estão reconfigurando seu papel na economia internacional, buscando a inserção em novos espaços de comércio mundial, mas para isso, faz-se necessário compreender o que queremos nos próximos anos, se queremos ser produtores de produtos de baixo valor agregado ou se almejamos construirmos novos horizontes para sua sociedade, sonhando com uma posição de destaque mundial ou continuaremos com uma soberania limitada, dependente de outras nações e se continuaremos como colônia de novas metrópoles. Mas, para trilharmos novos caminhos será fundamental escolhermos novos cenários, reduzindo os conflitos internos que crescem a algumas décadas e as polarizações políticas que destroem as bases da comunidade, com incremento das violências, dos medos e das desesperanças. Neste momento, precisamos profissionalizar nosso comércio internacional ou perpetuamos nossa dependência e subserviência externa.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/04/2023.

Conhecimento prático-operatório, por Henrique Pereira Braga

0

A Terra é Redonda – 23/04/2023

Comentários sobra as recentes mudanças nos currículos de ciências econômicas

Em matéria publicada no jornal Valor econômico são relatadas as reformas curriculares em cursos de graduação em ciências econômicas, conduzidas por algumas das instituições mais tradicionais no ensino de economia no país.[i] Com o propósito de atrair os jovens, essas instituições de ensino flexibilizaram a grade curricular, ampliando o número de disciplinas optativas; concentraram o ensino da “teoria econômica” nos primeiros dois anos do curso; e inseriram, cada
qual a seu modo, disciplinas relacionadas à análise de dados por meio da tecnologia conhecida como “Big Data”. Celebrada com jubilo pelo jornal, por sua suposta adequação às necessidades do mercado, essas medidas parecem revelar, em nosso juízo, a tecnificação do curso de “ciências econômicas”.

Ao concentrarem as disciplinas “teóricas”, que compreendiam três (ou quatro) anos de estudos, nos primeiros dois anos do curso de graduação, o seu ensino ficou comprometido, para dizer o mínimo, haja vista que não é possível operar essa redução sem alterar os escopos e os conteúdos das disciplinas. Neste sentido, o espaço para crítica (quando existente) fica limitado a algumas pinceladas – por certo reducionistas – que impedem o debate sério e franco das diversas formulações sobre o fenômeno econômico. Não que esse debate ocorra hoje, mas a questão principal é a sua completa interdição.

Um ponto que merece atenção, a meu ver, é que a ênfase dada pelas reformas à análise de dados sugere a subordinação do estudo da teoria à manipulação dos “dados”. Dito de outro modo, as teorias serão ensinadas como um conjunto de princípios heurísticos para manejarem as informações que emergem dos sistemas computacionais complexos. Com isso, o ensino da “ciência econômica” se torna a transmissão de um conhecimento somente prático-operatório, consolidando a ausência do ensino das explicações sobre a natureza e o sentido dos fenômenos econômicos. O que implica tomar como dado, por exemplo, o indivíduo aquisitivo, insaciável e racional – ou mesmo abordar a economia brasileira como desprovida de particularidade oriundas da sua “formação nacional”.

Cabe notar que um conhecimento desta natureza não pode ser denominado de “ciência”, pois se furta ao debate das explicações sobre o fenômeno que se debruça. E, por conseguinte, presta-se a reforçar a forma social em que vivemos – e, não menos importante, somente mitigando suas mais variadas mazelas, que são tomadas como “dadas”. Em suma, a direção das reformas reforça, ao que parece, o pensamento parcial, acrítico e tecnocrático, consolidando uma forma de ensino de economia hegemônica nos departamentos de economia estadunidenses desde meados do século XX, animados pela ideologia do livre mercado e pela perseguição do Macarthismo (MIROWSKI; PLEHWE, 2009).

Outra face dessas reformas está no conjunto de palavras-chave: flexibilidade, itinerário e escolha. São as mesmas palavras utilizadas para caracterizar a reforma do ensino médio iniciada durante o governo Michel Temer (2016-2018). Nessa forma de enquadrar a relação entre a formação do estudante e o mercado de trabalho, coloca-se a causa da queda do interesse pelo curso (de ensino médio ou de ciências econômicas) no currículo engessado e defasado. Contudo, o desinteresse pelos cursos de graduação (em particular nas ciências humanas) resultam de inúmeras razões, sendo uma delas o fato de vivermos numa época de expectativas decrescentes (ARANTES, 2014).

Para os jovens do capitalismo periférico, isso significa, dentre outras coisas, que o futuro que os aguarda será uma luta fratricida pela sua sobrevivência. No caso do curso de ciências econômicas, podemos acrescentar o declínio do emprego nos setores que os economistas tradicionalmente atuavam – como o planejamento e a gerência das indústrias e do governo – fruto dos rumos desse mesmo capitalismo. Com isso, restaram áreas restritas de atuação, disputadas com outros profissionais, que vão da “gestão de portfólio” à aplicação da austeridade na política pública.

Não parece que a inserção da “análise de dados” e “inteligência artificial” dará conta de endereçar esses problemas, uma vez que, de saída, interdita o ensino da crítica ao próprio discurso econômico (e sua prática) que tem contribuído, desde os anos 1990, para o aprofundamento de nossa condição periférica e subalterna. E, por isso, sublinhamos que não se trata de ser contra ou a favor do ensino destas disciplinas; mas, outrossim, de como o seu ensino é desarticulado da reflexão crítica sobre os fenômenos econômicos.

Isso posto, as medidas adotadas certamente atrairão, num primeiro momento, os jovens interessados nas novas tecnologia para esse novo curso de economia. Mas, pelo próprio convívio no campus, os estudantes poderão se questionar: ao invés de fazer um curso no qual a manipulação de dados aparece ao final, não seria melhor ser iniciado nesta investigação desde o começo (como fazem a estatística, a engenharia e outras ciências)?

Os mais críticos poderiam inclusive pensar: em vez de analisar os dados já viesado por certo pensamento econômico, não seria melhor aprender a produção de dados por esses sistemas complexos para não incorrer em erros grosseiros de sua análise? Em suma, para que fazer um curso genérico de manipulação de dados, se eles poderiam fazer os originais, conhecendo, por dentro, a operação destes sistemas?

Quando enfrentarem a concorrência, num mercado trabalho estreitado que caracteriza esse mercado no capitalismo periférico, os questionamentos serão ainda mais viscerais – em particular da parte dos inúmeros derrotados. Sem o aparato crítico para enfrentarem a situação em que se encontrarão, é provável que engrossem as fileiras dos diplomados ressentidos, que são objeto de fácil manipulação pelos discursos de ódio proferidos pela extrema direita.[ii] Por isso, as intenções da reforma podem ser até boas à primeira vista, mas suas consequências podem ser deletérias para a formação profissional dos economistas e, dada a centralidade da economia em nossa vida social, para o país.

Henrique Pereira Braga é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Referências
ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
MIROWSKI, P.; PLEHWE, D. The Road from Mont Pèlerin: the making of the neoliberal thought collective. Massachusetts: Harvard University Press, 2009.

Notas:

[i] “Veja o que as faculdades de economia estão fazendo para atrair os jovens”. Jornal Valor Econômico, 11 de abril de 2023. Disponível em: http://glo.bo/3UTiEe8.

[ii] Não por acaso, as pesquisas de intenção de votos da última eleição presidencial mostraram a inclinação dos votos dos mais escolarizados no candidato da extrema direita.

Os escravos de luxo da Faria Lima, por Giovana Madalosso

0

Por trás das camisas Ermenegildo Zegna que desfilam pelos restaurantes da Faria Lima, existem pessoas submetidas a condições de trabalho degradantes

Giovana Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 24/04/2023

Quem imagina que por trás das camisas Ermenegildo Zegna que desfilam pelos restaurantes da Faria Lima existem pessoas submetidas a condições de trabalho degradantes?

Durante 15 anos, fui redatora publicitária em quatro das maiores agências de propaganda do Brasil, freelancer em outras e, até hoje, convivo com amigos empregados em algumas delas.

Ninguém fala publicamente sobre o que acontece nessas agências porque, se fizer isso, nunca mais arruma emprego. Como agora estou fora desse meio, posso contar.

Em uma das agências em que trabalhei, um diretor de criação que acabara de chegar recomendou que, durante o expediente, eu fizesse o meu trabalho e, depois, fizesse as campanhas destinadas a outros redatores, a fim de provar que era tão boa quanto eles.

Por meses, trabalhei todos os dias das 9h à meia-noite, inclusive aos sábados e domingos. Um colega que vinha trabalhando cerca de 18 horas por dia nessa época chegou a dormir algumas vezes embaixo da nossa mesa porque, segundo ele, não valia a pena ir para casa para dormir só algumas horinhas –e nosso chefe sabia disso.

Parece um caso isolado, mas não é. Todo mundo que trabalha em agência sabe que não há horário fixo. Os turnos se prolongam ao sabor da demanda, podendo ir madrugada adentro (prática normal nas vésperas de apresentações) sem um centavo de hora extra.
Um dos momentos mais deprimentes da minha trajetória foi num dia em que resolvi sair, na hora do almoço, para doar sangue para o pai de um amigo. Quando estava com o elástico pressionando o meu bíceps, o celular tocou.

— Tá onde?
— Tirando sangue.
— A agulha já entrou?
— Não.
— Então levanta porque, se tirar, talvez precise esperar um pouco. E você tem que voltar agora.

O trabalho que urgia por esta profissional não era o parto de um bebê ou um incêndio com vítimas. Era a adaptação de um comercial de 30 para 15 segundos. O que tornava esse comercial tão urgente? A marca que assinava: uma das maiores empresas de telefonia do Brasil. E isso explica tudo: nesse sistema, cuja face mais caricata é a Faria Lima, quem estala o chicote e dá o ritmo é a grana.

Se, na base do organograma está o criativo e, no topo, um CEO chamado Money, quem está no meio?

A direção da agência (e muitas vezes a multinacional e os investidores que a controlam) e os clientes, que sabem muito bem o que se passa dentro daquelas paredes mas seguem cobrando prazos que, eles também sabem, só podem ser cumpridos por uma equipe movida a prestações de Jeep e doses de Rivotril e Red Bull.

As grandes marcas que estão nas telas bancando as boazinhas com o consumidor —subitamente verdes, feministas e antirracistas por pressão do mercado— fecham os olhos para um esquema de exploração e abuso que, muitas vezes, envolve ainda outros tipos de mão de obra, como a produção de campanhas fantasma.

Em busca de ganhar prêmios, as agências correm atrás de produzir peças inovadoras que, por diversas razões, não são produzidas no dia a dia. Para isso, os escravos de Lacoste são convocados a trabalhar de graça nas poucas horas livres que ainda lhes restam –em uma das agências que trabalhei, éramos obrigados a fazer isso nos feriados.

Uma vez criada a campanha fantasma, uma produtora de cinema e uma de áudio são acionadas para fazer a peça, com a promessa de outros trabalhos remunerados no futuro –ou a ameaça velada de nunca fazê-los. O esquema exploratório ganha novas dimensões: diretor de cinema, fotógrafo, editor, produtor de áudio, músico e locutor trabalham totalmente de graça, sem garantia alguma de receber qualquer coisa depois.

Tudo isso com um único objetivo: o dono da agência aparecer com o prêmio na mídia, angariar novos clientes e seguir propulsionando a roda dentada. Uma roda muito maior do que parece. Para trabalhar dia e noite, esses profissionais precisam de empregadas e babás que assumam a sua porção de existência doméstica. Na casa de cada escravo de luxo, há outro sem luxo e, na casa desse, muitas vezes uma menina deixando de estudar para cuidar dos irmãos mais novos. Se nem quem dirige um Renegade tem coragem de abrir a boca, como esperar isso da ponta mais frágil?

Não surpreende que muitos acionistas e executivos das grandes marcas tenham tentado reeleger um ex-presidente que sempre trabalhou com afinco pelo desmonte dos direitos trabalhistas. É preciso reforçar as estruturas desses porões onde a bola de ferro é a promessa de felicidade proporcionada pelo último modelo de Iphone.

Segundo o sociólogo Orlando Patterson, o que diferencia um escravizado de um servo é a ausência de laços sociais. É possível manter laços saudáveis com semelhantes esquemas de trabalho? É possível se manter saudável?

Nos meus anos de agência, vi serem criadas no meu corpo e no corpo dos meus colegas as seguintes campanhas: herpes, cândida, transtorno alimentar, ansiedade, bipolaridade, síndrome do pânico, psoríase, alcoolismo e tricotilomania. Sem falar na morte de um diretor de arte ainda jovem, que ninguém pode provar estar ligada ao estresse da agência, mas, coincidentemente, aconteceu em um período de sobrecarga de trabalho.

Em 2009, ainda numa multinacional, precisei retirar as amígdalas. Um novo diretor de criação tinha acabado de ser contratado e, ao ver o meu pedido de licença médica, avisou: se você sair agora que entrei, pode pegar mal pra você. Como eu estava tendo amigdalite de repetição, achei por bem fazer o procedimento. Quando voltei, poucos dias depois, fui demitida. Desde então, virei freelancer e, aos poucos, fui deixando de trabalhar para as agências. Hoje falo pelos que não tiveram a mesma sorte que eu.