Por que podemos e devemos taxar os super-ricos, por Gabriel Zucman

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Sonegação, evasão e concorrência fiscal são escolhas políticas, não leis da natureza

Gabriel Zucman, Professor de economia na Escola de Economia de Paris e na Universidade da Califórnia (Berkeley), é diretor da EU Tax Observatory; em 2023, recebeu a medalha John Bates Clark da American Economic Association.

Folha de São Paulo, 10/09/2023.

Na semana passada, o governo brasileiro anunciou novas propostas para melhor taxar os super-ricos. Críticos argumentam que isso é ineficiente, porque os ricos deixarão o país e o imposto pode prejudicar o crescimento econômico (“Ser rico não é pecado”, João Camargo, 3/9). Mas a história econômica global e pesquisas econômicas modernas sugerem o contrário.

Comecemos pela história. Uma das mais importantes lições do desenvolvimento global talvez seja a de que investimentos públicos em educação para todos, saúde para todos e infraestrutura são os motores fundamentais do crescimento econômico. Não é por acaso que os países mais prósperos recolhem uma parcela alta da renda nacional em impostos —entre 30% e 50%. Uma sociedade mais educada e saudável beneficia a todos, incluindo os mais ricos.

Esse alto nível de provisão de bens públicos requer impostos significativos sobre os ricos, pelo motivo simples de que eles captam uma parcela grande dos recursos econômicos totais. No Brasil, segundo estatísticas públicas, o 1% dos indivíduos mais ricos possui mais de 45% da riqueza total. Não há como pagar pelos bens públicos que se correlacionam tão fortemente com o crescimento econômico sem fazer os ricos pagarem a sua parcela justa.

O problema é que os mais ricos frequentemente pagam uma parcela efetiva mais baixa de imposto que as pessoas comuns. Isso se aplica especialmente ao Brasil, devido à isenção da receita sobre dividendos —uma fonte crucial de renda dos mais ricos— do imposto de renda individual. Os super-ricos acabam pagando menos, como parcela de sua renda, que enfermeiros, professores ou bombeiros. Isso é injustificável.

A pergunta não deve ser se os impostos sobre os super-ricos devem ser ampliados, mas sim como fazê-lo de modo prático.

Para isso, é muito útil recorrer às pesquisas econômicas modernas. A literatura especializada indica que taxar os ricos de modo efetivo é viável se existe disposição política para tal.

Sonegação fiscal, evasão fiscal e concorrência fiscal não são leis da natureza —são escolhas políticas. No passado, alguns países, em especial na Europa, fizeram más escolhas. Permitiram que a evasão fiscal corresse solta, introduzindo brechas em seus impostos sobre a riqueza e tolerando a evasão fiscal. Mas outras escolhas podem ser feitas.

Um imposto efetivo sobre os super-ricos possui vários elementos fundamentais. Para começar, deve visar a renda e a riqueza, tanto onshore quanto offshore. Graças à troca automática de informação bancária vigente desde 2018, a autoridade fiscal brasileira tem acesso a informação considerável sobre as participações offshore de famílias ricas. Isso faz com que seja muito mais fácil taxar os ricos hoje do que era no passado.

Em segundo lugar, para mitigar a concorrência fiscal, é preciso implementar regras contra o exílio fiscal. Por exemplo, o Brasil pode decidir que vai continuar a cobrar impostos de brasileiros ricos residentes no exterior por alguns anos depois de deixarem o país. Isso reduziria drasticamente os incentivos para eles se mudarem para o exterior para evitar impostos.

Tudo isso ajudaria a garantir que os ricos pagassem um montante mínimo de impostos. Essa ideia não é radical. Na realidade, tem o apoio de quase 300 economistas, decisores políticos e até mesmo milionários de mais de 40 países. Os signatários incluem o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz, dois ex-vice-presidentes do Banco Mundial, 18 ex-presidentes e primeiros-ministros e 120 milionários que estão convocando governos a entrar em ação agora para taxar os super-ricos adequadamente em nível nacional e internacional.

A hora de adotarmos um sistema tributário mais sustentável é agora, e o Brasil pode indicar o caminho.

Tradução de Clara Allain

A taxação dos super-ricos, por Eduardo Borges

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Eduardo Borges – A Terra é redonda – 06/09/2023

“Ser rico não é pecado”. A elite brasileira segue destilando desprezo e insensibilidade nas página da imprensa corporativa, sua privilegiada porta-voz

A elite brasileira, aquela mesma que desfrutou da escravidão por 300 anos, segue destilando desprezo e insensibilidade social nas páginas da imprensa corporativa, sua privilegiada porta-voz. Recentemente o jornal Folha de S. Paulo publicou artigo de um certo João Camargo (Presidente do Conselho da CNN/Brasil) intitulado “Ser rico não é pecado”.

O texto é um completo escárnio com os 21 milhões de brasileiros que passam fome no Brasil números retirados do relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2023”.[i] Isso representa quase 10% da população brasileira. Além disso, pouco importa para João Camargo que entre 2016 (ano do golpe contra Dilma) e 2022 (fim do governo do inelegível) a porcentagem de brasileiros passando fome foi de 1,9% para 32,8 % com um total de 70 milhões de brasileiros sem ter o que comer.

Em 2023, até o momento, os R$ 600 mensais do Bolsa Família, acrescido de R$ 150 por criança de 0 a 6 anos e de R$ 50 em caso de gestação, tem amenizado a situação da extrema pobreza. Mais do que isso, a volta de programas importantes como os do PAC (Minha Casa, Minha Vida, entre outros) certamente vai impactar positivamente na geração de emprego e renda. Para quem não se lembra, no governo do inelegível, o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) foi fechado, sendo retomado agora pelo presidente Lula. Contudo, para o bilionário João Camargo, o que o governo brasileiro tem que se preocupar são com os 1.650 super-ricos cujos fundos exclusivos ultrapassam o patrimônio de R$ 250 bilhões.

O argumento central de João Camargo é mediado pela mesma mentalidade representada simbolicamente no título do artigo: “Ser rico não é pecado” e demonstra claramente não só uma abjeta insensibilidade social, mas uma completa falta de inteligência. Em determinado trecho do artigo, Camargo, buscando explicitamente emparedar o governo, tenta nos convencer, em tom de ameaça, de que taxar os ricaços tende ao fracasso, escreveu ele: “num mundo globalizado, o rico tem uma mobilidade financeira enorme, conseguindo alocar seu dinheiro em lugares mais atrativos de forma quase instantânea”.

Em outras palavras, o “patriota” João Camargo simplesmente nos disse que rico não tem nacionalidade, portanto, para ele, pouco importa que brasileiros passem fome, o que realmente importa é em que lugar do planeta ele vai triplicar seu patrimônio. Aqui João Camargo mimetizou Mario Amato (ex-presidente da Fiesp), seu compatriota de plutocracia, que em 1989 afirmou: “Se Lula ganhar as eleições, aqui o número de empresários que fugiriam não seria menor do que 800 mil. Além disso, deixaríamos de ter investimentos dos países desenvolvidos”. Resultado, em 2002 Lula ganhou a eleição e a plutocracia nunca ficou tão rica.

Camargo segue sua saga argumentativa citando exemplos de países (Alemanha, Holanda, Áustria, Irlanda) que buscaram taxar os super-ricos e aparentemente se arrependeram. Ele só esqueceu de dizer que todos esses países têm índices de desigualdade social infinitamente menores que os do Brasil. Os argumentos de Camargo são rasos e medíocres, típico de uma plutocracia completamente desconectada com a realidade social brasileira e mais preocupada com os salões de Paris ou os cassinos de Punta del Este. Para ele, a taxação dos super-ricos é difícil de fiscalizar e “está sempre sujeita a uma dose de arbitrariedade”. Diriam os especialistas em lacração que o bilionário da CNN está querendo se vitimizar com mimimi de “arbitrariedade”. Um bilionário se dizer vítima de arbitrariedade no Brasil é a quintessência do insulto à nossa inteligência.

Segundo o eminente representante de nossa Casa Grande a taxação dos super-ricos é uma retórica deletéria. O que não é nocivo para ele é morrer de fome, isso faz parte da vida. Talvez, quem morra de fome, seja para ele, alguém que não teve disciplina e força mental suficiente para empreender e enriquecer. Mas João Camargo deixaria a cereja do bolo da boçalidade elitista para a fase final do artigo ao recorrer à retórica da meritocracia liberal burguesa, escreveu ele: “o brasileiro que construiu seu patrimônio deve ser admirado como o protagonista de uma jornada de sucesso. (…) É ele quem investe, empreende, assume riscos, inova, cria riquezas, gera emprego e paga enorme cargas de tributo”.

Mais um pouco e estava eu quase sacando meu poderoso Pix para ajudar este “pobre” e “explorado” empreendedor. Será que João Camargo trocaria comigo (um “privilegiado” assalariado) toda essa dose de “sacrifícios” por ele relatada? Se ele quiser, certamente terá uma fila de brasileiros super interessados em passar pelo “dissabor” de assumir riscos, inovar, criar riquezas, gerar empregos e pagar enormes cargas tributárias. Os argumentos desses bilionários são tão rasos, previsíveis e clichês, que às vezes eu tenho a impressão que eles realmente acham que nós somos otários. Eles não fazem questão sequer de aparentar alguma inteligência argumentativa. São medíocres com todo orgulho.

A fala de João Camargo é o do escravocrata cínico e usurário (sem falar nos fraudulentos – Lojas Americanas) a quem o trabalhador deve agradecer todos os dias por lhe explorar ao máximo a força de trabalho, pagar-lhe salários irrisórios, extrair o máximo de mais-valia e ainda demonstrar gratidão por não ser um dos que por falta de “mérito” teve que “optar” pela amargura do desemprego e da miséria.

Por fim, João Camargo caminhou para fechar seu artigo demonstrando uma pequena crise de consciência e resolveu opinar sobre a desigualdade social brasileira. Para ele a desigualdade deve ser combatida com a recomposição das contas públicas (ou seja, a velha ladainha do Estado gastador), mas que isso fosse feito sem “rasgos de tirania” (um eufemismo para nos deixem lucrar em paz). Qualquer preocupação com baixar taxa de lucro e distribuir riqueza, nem pensar. Por que precisa existir bilionários? Essa pergunta precisa ser enfrentada em um país de maioria miserável como o Brasil. É muito deboche um dono do capital falar em tirania. Não faz muito tempo alguns deles estavam babando por uma intervenção militar.

Fecho esse pequeno artigo/desabafo retomando a frase que intitula o artigo analisado: “ser rico não é pecado”. Certamente que João Camargo deve se considerar um patriota, cidadão de bem e temente a Deus. Recorro, portanto, a alguns trechos das Sagradas Escrituras (que Camargo deve seguir com devoção e fé) para refletir sobre o não pecado de ser rico. Sigamos:
– Eclesiastes 5:10: “Quem ama o dinheiro não se fartará de dinheiro; nem o que ama a riqueza se fartará do ganho; também isso é vaidade”.

– Provérbios 15:16: “É melhor ter pouco com o temor do Senhor do que grande riqueza com inquietação”.

– Timóteo 6:9-11: “Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos. Você, porém, homem de Deus, fuja de tudo isso e busque a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança e a mansidão”.

– Mateus 6:24: “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.
Fechamos com o mais explícito de todos, a ponto de ser confirmado por dois evangelistas (Lucas 18:25 e Mateus 19:24): “E outra vez vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus”.

O interessante é que os trechos bíblicos acima citados são seletivamente “esquecidos” por uma parcela enorme daqueles brasileiros que acreditam cegamente no slogan: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Quanto a João Camargo (nada tenho contra ele pessoalmente, pois não o conheço) seu artigo é completamente equivocado e me faz lembrar do físico suíço Fritz Zwicky, para quem os astrônomos seriam idiotas esféricos ou seja, não importa qual ângulo os olhamos, serão sempre idiotas.

Assim é o artigo de João Camargo.

*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia. Autor, entre outros livros, de Golpe: o golpe como método político da elite brasileira (Kotter)

Tendências globais elevam as apostas para o Brasil, por Iloná Szabó de Carvalho

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Precisaremos navegar por uma era cada vez mais turbulenta, incerta e volátil

Iloná Szabó de Carvalho, Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

Folha de São Paulo, 06/09/2023

Vivemos em um momento no qual uma série de crises sobrepostas e em cascata sobrecarregam nossos governos, empresas e sociedades. Essas múltiplas crises interconectadas estão relacionadas a uma série de tendências aceleradas, que alguns já antecipavam, mas quase ninguém imaginava que estariam convergindo.

Entre as tendências, destaco quatro principais: os choques e estresses climáticos provocados pela tripla crise planetária de disrupção climática, perda de biodiversidade e aumento da poluição; a mudança demográfica; a transformação digital; a competição geopolítica em um mundo multipolar.

A primeira é uma tendência não linear que tem implicações potencialmente catastróficas, envolvendo eventos longos —desde alterações nos regimes de chuva e períodos prolongados de seca até a elevação do nível do mar— e eventos rápidos, como incêndios florestais, inundações e tormentas cada vez mais frequentes. Isso levanta questões fundamentais para o Brasil, incluindo o financiamento da adaptação climática das nossas cidades, que são principalmente costeiras, e a estrutura e capacidade das indústrias de seguros e finanças para incorporar riscos cada vez maiores e mais incertos.

A segunda é o envelhecimento da população do Brasil antes de nos termos tornado um país de renda alta. Isso traz enormes implicações para a força de trabalho, para o sistema previdenciário e de saúde e para o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Em termos de produtividade e desenvolvimento econômico, isso é uma questão crucial.

A terceira é a aceleração da transformação digital massiva. O Brasil possui quase 250 milhões de celulares —1,2 por habitante— e cerca de 150 milhões de pessoasonline. Com os avanços da inteligência artificial, a automação pode acentuar as nossas já imensas desigualdades. A hora de se preparar é agora.

E tudo isso está acelerando a quarta tendência —uma espécie de competição geopolítica da qual o Brasil faz parte. Em um planeta interconectado e globalizado, não é mais possível se isolar, e as tensões entre potências grandes e médias nessa transição para um mundo multipolar está afetando nossa capacidade de resolver coletivamente desafios comuns. O resultado mais catastrófico dessas tensões seria uma guerra nuclear, que exterminaria a nossa espécie.

Essas quatro megatendências elevam o nível das apostas e dos riscos para o Brasil. Precisaremos navegar por essa era cada vez mais turbulenta, incerta e volátil. Devemos aproveitar a janela de oportunidades na qual nos encontramos para dar os saltos que precisamos e nos tornar mais resilientes.

Nosso país se orgulha de ser um dos poucos no mundo a manter relações com todos os Estados nacionais e precisará de muita habilidade para se posicionar dentro dessa multipolaridade altamente tensionada. Precisamos ao mesmo tempo alavancar investimentos para a transição verde e para o desenvolvimento sustentável e, sem negociar valores democráticos, competir de forma responsável, mantendo os fluxos de comércio e investimento. A recente expansão dos Brics exemplifica a complexidade do momento.

Uma coisa é certa: o fortalecimento e a consolidação democrática são ainda mais fundamentais. Um próximo governo extremista não responderá à altura de nenhum dos imensos desafios. Nossos líderes e seus times precisam ter o interesse público como bússola e devem possuir a sutileza e a sofisticação para navegar em um tabuleiro de xadrez complexo de cooperação e competição.

Os desafios daqui para a frente demandam as capacidades de visão e execução, a habilidade de conectar o local ao global e a intermediação de conversas honestas e difíceis.

Isso requer compromisso, ousadia e sonho grande.

SP: ensino técnico ameaçado de desmonte, por Max Luiz Gimenes

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A primeira greve dos docentes das Etecs e Fatecs terminou sem avanços. Categoria denuncia sucateamento e a possível criação de rede paralela, transferindo aulas remotas a faculdades particulares e abrindo via para a privatização

Max Luiz Gimenes – Outras Mídias – 04/09/2023

Quando ouvimos falar em Etecs ou Fatecs, nós logo pensamos em ensino público, gratuito e de qualidade. Mas essa história, que vem lá dos anos 1970 e se tornou motivo de orgulho da população de São Paulo, corre o risco de mudar frente ao cenário de descaso e mesmo de ataques recorrentes à educação nos últimos anos.

E em 2023 tem sido ainda pior. Por isso, os trabalhadores dessas instituições, que são administradas pelo Centro Paula Souza, uma autarquia do governo de SP vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, decidiram entrar em greve no último dia 8 de agosto. Dois dias depois, quase metade das unidades já estavam total ou parcialmente paralisadas (143 de 305), evidenciando, com isso, a insatisfação generalizada da categoria. Mas essa mobilização, infelizmente, mostrou-se insustentável com o tempo, culminando na votação pela saída da greve em reunião realizada logo no dia 21 do mesmo mês.

A pauta de reivindicações do movimento, fechada no final de fevereiro e desde então apresentada ao governo pelo sindicato que representa a categoria, o Sinteps, continha basicamente quatro itens: (i) reajuste salarial, (ii) bônus, (iii) revisão de carreira e (iv) defesa das Etecs.

Mesmo sabendo dessas demandas havia meses, o governo Tarcísio recebeu o Sinteps para conversar somente no dia 3 de agosto. E apenas para pedir que a categoria não entrasse em greve.

A proposta de reajuste salarial do governo de SP para este ano foi de 6% para quase todos os servidores, o que equivale praticamente à inflação medida pelo IPCA para o ano passado (5,8%). Isso é insuficiente para repor as perdas salariais da categoria nos últimos anos, que segundo cálculos do mandato do vereador Paulo Bufalo, do PSOL de Campinas, somam 53,9% na última década (reajuste médio de 15,77% ante uma inflação acumulada de 69,67%).

Além, é claro, de destoar dos 50% de aumento recebidos em silêncio pelo governador e seus secretários e dos 13 a 34% recebidos por alguns setores da segurança pública por iniciativa do governo, discrepâncias que, por si só, evidenciam as prioridades da atual gestão, entre as quais claramente não se encontra a educação.

O índice atualmente reivindicado como referência pelo Sinteps para reajuste é a correção do Piso Nacional da Educação (33,24% em 2022 e 14,95% em 2023 – que juntos, e acrescentando-se a inflação do último ano, dariam um reajuste equivalente ao valor da perda salarial mencionada acima, de 53,9%).

Quanto à bonificação pelos resultados alcançados por cada escola em relação às metas de concluintes e notas estabelecidas pela administração em 2022, o pagamento, que costumava ser feito no primeiro semestre, ainda não aconteceu, nem tem prazo definido para ocorrer. Com a iminência da greve, o governo chegou a anunciar ao sindicato que ele aconteceria até o final de outubro e que haveria um “esforço” de antecipá-lo para setembro, mas nada além disso. E o valor, que no ano passado chegou a corresponder a até 2,4 salários, neste ano voltou a ser limitado a apenas um.

Já a revisão de carreira tem como objetivo corrigir uma série de problemas que a tornam cada vez menos atrativa e estimulante. Entre os muitos exemplos que poderiam ser citados, no caso dos professores é possível mencionar a inexistência de uma jornada de trabalho (o regime vigente é horista), a ausência de promoção imediata mediante a obtenção de títulos (hoje eles só contam após seis anos), a inexistência de vale-refeição e o oferecimento de um vale-alimentação de apenas R$ 12 reais por dia de trabalho (sendo que, para outros setores do mesmo serviço público estadual, esse valor pode chegar a R$ 60) etc.

Por fim, sobre a defesa das Etecs, trata-se de uma reação à ameaça do governo de SP de criar uma rede de ensino técnico paralela, no fundo baseada nos mesmos pilares do modelo que o atual secretário de educação paulista, Renato Feder, já tentou implementar no Paraná quando esteve à frente da mesma pasta por lá: imediatismo eleitoral (produzir uma expansão rápida e barata do ensino técnico, ainda que à custa da qualidade, para usar esses números nas próximas eleições), privatização (no caso paranaense, os 20% de aulas à distância permitidos pela “reforma” do ensino médio de 2017 eram oferecidos por uma faculdade privada) e precarização (ainda no caso paranaense, essas aulas à distância consistiam em salas com quarenta alunos assistindo a um aparelho de televisão – uma triste porém eloquente imagem do que significa o projeto de Feder, de retrocessos com aparência de modernização).

Além de ruim para a educação por si mesmo, esse modelo cria duplicidade de gastos e desconsidera toda uma estrutura preexistente considerada de excelência. Apesar disso, pode levar vantagem na competição por recursos escassos, uma vez que é mais “eficiente” do ponto de vista dos interesses próprios, tanto eleitorais como de mercado, do governo Tarcísio e seus integrantes, o que prejudicaria as Etecs.

A greve, embora seja um instrumento legítimo de luta dos trabalhadores, é medida extrema, que cria incertezas e, portanto, gera insegurança e angústia para os trabalhadores envolvidos. No caso da educação, acaba acarretando também, inevitavelmente, prejuízos imediatos ao processo de ensino e aprendizagem, que podem ser minimizados mas não totalmente eliminados com a reposição das aulas. Ainda assim, ela se mostrava necessária, considerando não apenas o cenário de descaso exposto acima mas também o fato de que, sem mobilização e pressão popular, a educação paulista não apenas vai ficar como está como tende na verdade a piorar bastante, tendo em vista os inúmeros ataques recebidos da atual gestão em apenas oito meses.

Entre os muitos exemplos, é possível citar a desastrada ofensiva para digitalização da educação promovida por Feder, na contramão do que dizem os especialistas, em desacordo com a infraestrutura da maioria das escolas e em claro conflito de interesses com sua própria condição de empresário e acionista de uma empresa da área de tecnologia com contratos firmados com o governo para o oferecimento de aparelhos digitais; o projeto que coloca diretores para vigiar as aulas de professores, sobrecarregando os diretores, tratando os professores como suspeitos e jogando os profissionais do setor uns contra os outros; o plano de reduzir o investimento em educação no Estado de 30% para 25% do orçamento; a instalação sem consentimento de aplicativo no celular de professores e alunos e sua respectiva captação de dados pessoais, como já havia ocorrido no Paraná; uma medida para expulsar alunos com 15 faltas seguidas; as apostilas digitais próprias com erros grosseiros de conteúdo, como a suposta existência de praias na capital paulista ou a assinatura da Lei Áurea atribuída a D. Pedro II etc.

Por razões variadas, que passam pela insegurança dos muitos contratos temporários, o desânimo de uma categoria desvalorizada e o individualismo característico de nossa sociedade contemporânea, a greve não conseguiu avançar na direção do atendimento de suas reivindicações. Mas conseguiu, ao menos, acelerar a apresentação de diretrizes para uma futura revisão da carreira, que contém, entre outros pontos, a possibilidade de mudança do regime horista para a jornada, como defende o sindicato da categoria.

Embora a preferência manifestada pelo governo seja pelo regime de horas, que supostamente seria mais vantajoso também para os trabalhadores por em teoria poder remunerar pouca coisa a mais, na prática a jornada é mais interessante porque melhora as condições de trabalho de uma maneira geral: não forçaria o professor a lecionar em várias escolas diferentes ao mesmo tempo nem o amarraria a uma dedicação exclusiva, uma vez que a jornada seria flexível (10, 20, 30 ou 40h) e poderia ser cumprida em até duas escolas; poderia acabar com as inúmeras janelas não remuneradas entre uma aula e outra, aproveitando o professor que está na escola para o desenvolvimento de projetos; poderia aproximar mais o docente da escola e da comunidade escolar, com a possibilidade de desenvolvimento de projetos de ensino, pesquisa e extensão; poderia proporcionar maior estabilidade e integração do quadro docente, o que indiretamente poderia influenciar, inclusive, as condições de mobilização da categoria para futuros movimentos de reivindicação de melhores condições de trabalho e de defesa da educação.

Mas essa ainda é apenas uma proposta, que acabou de ser colocada em consulta pública, de 24 de
agosto a 1º setembro. Ela ainda precisa passar por todos os trâmites burocráticos, correndo o risco de ser alterada ou mesmo rejeitada no meio do caminho. E o atual governo tem motivos de sobra para não querer aprová-la, uma vez que o regime de jornada é considerado mais caro e também mais perigoso politicamente do ponto de vista de quem não se importa com a educação, ou até se importa, mas apenas como oportunidade de negócio.

Enquanto isso, cabe à população de São Paulo estar alerta para se somar à luta em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade sempre que necessário, como aconteceu de maneira bem-sucedida, recentemente, em relação à defesa do livro didático nas escolas, em que o governo de SP foi obrigado a recuar de um ataque sem precedentes à educação pública ao encontrar forte resistência da sociedade.

*Max Luiz Gimenes é professor do Centro Paula Souza e doutorando em sociologia na USP.

Educação paulista na vanguarda do atraso, por Corti e Jacomini

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Cataclismo curricular multiplica desigualdades e negligencia a formação

Folha de São Paulo, 04/09/2023

Ana Paula Corti, Doutora em educação (USP), é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), membro da Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e da Associação Brasileira do Ensino de Ciências Sociais (Abecs-SP)

Márcia Jacomini, Doutora em educação (USP), é professora do Departamento de Educação da Unifesp, pesquisadora da Repu e do Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud)

No dia 7 de agosto de 2023, o Ministério da Educação anunciou os resultados da consulta pública sobre a reforma do ensino médio e divulgou documento com sugestões para revisão da lei 13.415/2017. Entre as propostas do MEC está o retorno de 2.400 horas para as disciplinas da base comum e a diminuição dos itinerários formativos (conjunto de disciplinas que os estudantes poderão escolher), que passam a ser chamados de Percursos de Aprofundamento e Integração de Estudos.

No entanto, o estado de São Paulo, primeiro a aprovar o novo ensino médio em 2020, já havia se antecipado novamente, anunciando em julho uma nova proposta curricular para a etapa, que mantém 1.800 horas para as disciplinas da base comum —destoando, portanto, da discussão nacional.

A velocidade com a qual a Secretaria da Educação de São Paulo (Seduc-SP) anuncia propostas educacionais e volta atrás é impressionante e altamente prejudicial à qualidade do ensino e à formação dos estudantes. De acordo com os canais digitais da Seduc-SP, em 2024 haverá a redução dos itinerários formativos de 12 para 3 e a introdução de novas disciplinas obrigatórias no currículo: educação financeira, projeto de vida, redação e leitura e aceleração para o vestibular.

Os novos itinerários passam a ser: linguagens e suas tecnologias + ciências humanas e sociais; ciências da natureza + matemática; e ensino profissionalizante. O itinerário profissional, que era realizado em parceria com o Centro Paula Souza por meio do Novotec (programa estadual que oferta cursos técnicos e profissionalizantes gratuitos) foi descontinuado pela pasta, e o ensino profissional será ofertado nas próprias escolas estaduais.

Resta saber como o governo paulista pretende transformar da noite para o dia, e sem investimentos, escolas sucateadas —que não têm professores em número suficiente nem mesmo para a formação geral— em escolas de ensino profissional. Considerando que nem toda escola ofertará o itinerário profissionalizante, muitos estudantes terão que se deslocar para outra unidade, que pode ficar distante de suas residências.

Outras duas medidas foram anunciadas pela pasta: uma portaria em que diretores passam a assistir aulas de professores e encaminhar relatórios à Diretoria de Ensino e a retirada de São Paulo do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Em relação ao PNLD, o governo de São Paulo recuou após a Justiça determinar que a Seduc volte a aderir ao programa. Contudo, ela manterá material próprio digitalizado na forma de slides para os estudantes do 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio.

O que mais impressiona nas medidas anunciadas é que elas não incidem sobre os pontos críticos da educação paulista. Não foram embasadas em evidências de pesquisa nem em pareceres técnicos confiáveis, tampouco no diálogo com os profissionais do magistério e especialistas da área.

Esse conjunto de medidas causou muita insatisfação e indignação na comunidade escolar e na sociedade. Uma reforma curricular ruim, remendada por outra pior, em curto espaço de tempo, irá produzir efeitos nefastos na formação de estudantes que são o balão de ensaio duplo de uma gestão irresponsável.

É fundamental suspender a portaria que atribui ao diretor a tarefa de vigiar os professores e esperar as mudanças que devem ocorrer na lei 13.415/2017, sob pena de a rede fazer uma segunda “reforma da reforma” num período de seis anos.

O avesso do experimentalismo paulista é a multiplicação das desigualdades educacionais e a negligência com a educação de adolescentes, que veem suas chances de ingressar na universidade minguando, e assistem ao rebaixamento de sua formação como cidadãos e futuros trabalhadores.

Estão sendo excluídos do acesso a conhecimentos importantes e seus prejuízos devem ser contabilizados, bem como suas desvantagens frente a alunos de redes privadas, que mantiveram os conhecimentos curriculares.

É um cataclismo curricular o que está acontecendo em São Paulo e, ao contrário dos eventos naturais, ele pode, e deve, ser contido pelas instituições encarregadas de proteger o direito à educação.

‘A economia é baseada no mundo natural, e não sobrevive sem ele’, diz ambientalista indiano

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Para pacifista Satish Kumar, humanidade hoje vive uma fantasiosa separação entre ser humano e natureza

Fernanda Mena – Folha de São Paulo, 04/09/2023

“A economia é baseada no mundo natural e, portanto, se não houver água, solo, madeira, animais, de onde virá a economia?”, questiona o ambientalista e pacifista indiano Satish Kumar, 87, fundador do Schumacher College, uma renomada faculdade de sustentabilidade com sede no Reino Unido.

“A economia é um meio para um fim, e o fim é o bem-estar humano e o bem-estar planetário. Mas não temos isso”, diz o educador, para quem a economia praticada no mundo atual se distanciou tanto de seu sentido original (eco, do grego “oikos”, é lar ou local de morada, e “oikonomia” é sua administração) que deveria se chamar “dinheironomia”.

Crítico dos meios de produção em massa, Satish nomeou sua escola em homenagem ao amigo e economista britânico, nascido na Alemanha, E.F. Schumacher (1911-1977), autor do livro “Small is Beautiful” e para quem a economia é uma subárea da ecologia. As ideias de Schumacher inspiraram movimentos como o “fair trade” (compra justa, em inglês) e “buy local”, de incentivo à compra de produtos locais.

Depois de receber mais de 500 brasileiros no campus do sudoeste da Inglaterra, em 2014 uma unidade da Schumacher College foi aberta no Brasil.

Satish diz que a humanidade hoje vive uma fantasiosa separação entre ser humano e natureza. Para ele, a incompreensão dessa interdependência está na raiz da atual crise climática.
“O homem escravizou a natureza, como se ela não tivesse vida e pudesse ser explorada infinitamente”, diz. “Enxergamos a natureza como algo separado de nós, algo inferior. Só que nós também somos natureza.”

O ambientalista, que se tornou monge jainista aos nove anos, defende a redução do crescimento econômico, da produção e do consumo excessivos. Propõe o que chama de “simplicidade elegante”, um modo de vida de baixo impacto, com foco no “ser” e não no “ter”, que dá título a um de seus poucos livros lançados no Brasil pela editora Palas Athena.

No auge da Guerra Fria, Satish iniciou uma marcha pela paz, inspirada nas ideias de Mahatma Gandhi. Partiu da Índia, sem dinheiro, e atravessou 13 mil quilômetros e três continentes a pé e de barco ao longo de dois anos e meio para encontrar líderes das potências nucleares da época em Moscou, Paris, Londres e Washington.

Sua filosofia é objeto do documentário “Teaching Nature”, de Lucas Barragan, que estreia agora no Brasil na plataforma Aquarius, a mesma que lançará em abril o filme “Amor Radical”, do brasileiro Julio Hey, sobre a jornada de vida do ativista indiano. Satish vem em 2024 ao Brasil para o lançamento e uma série de conferências e encontros.

Satish avalia que o Brasil deve priorizar o combate à fome e a proteção de seus biomas e povos indígenas. “O Brasil não deve destruir suas florestas para exportar alimentos para a China.”

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida à Folha.

Sua escola homenageia um economista que considerava a economia como subárea da ecologia. Por quê?

Porque a economia, sem a natureza, não é economia, e não pode sobreviver. Schumacher disse que a economia é um meio para um fim, e o fim é o bem-estar humano e o bem-estar planetário, mantendo a natureza íntegra, sem poluição, sem desperdício, sem emissões excessivas de carbono. Schumacher disse que a economia está a serviço das pessoas e do planeta, não as pessoas e o planeta a serviço da economia.

O sr. defende uma educação integral e prática. Como esse modelo serve aos desafios do mundo contemporâneo?

Nossa educação convencional, criada durante a Revolução Industrial, está obsoleta. Ela pensa que os jovens não têm corpo nem coração nem mãos nem pernas, e só ensina a cabeça, e apenas metade dela. Todos temos dois hemisférios do cérebro. O esquerdo é o hemisfério racional. O direito é o hemisfério da imaginação, da arte, do relacionamento, da compaixão. Nossa educação tem gastado bilhões apenas educando a metade esquerda do cérebro. Isso é trágico.

A educação não deve ser apenas para empregos, deve ser para a vida. A maioria dos empregos é muito destrutiva. Eles poluem, desperdiçam e só enxergam a natureza como recurso para a economia. Então, precisamos de uma revolução na educação para torná-la centrada na natureza, na vida e na Terra. O livro da natureza é o maior livro que temos, e as crianças têm que experimentar isso: não pode vir dos livros nem da internet, mas da experiência.

Emergências climáticas têm se intensificado, graças, segundo o sr., a uma guerra dos humanos contra a natureza. O que é essa guerra?

A guerra com a natureza é tratá-la como se ela não tivesse vida e pudesse ser explorada infinitamente. Escravizamos a natureza, a vemos como algo separado de nós, algo inferior. Só que nós também somos natureza.

Qual é o papel da pandemia de Covid nessa guerra contra a natureza?

Acredito que a razão pela qual tivemos uma pandemia é porque estamos invadindo e destruindo a natureza selvagem. Os animais selvagens e os vírus selvagens entram na cadeia alimentar, e temos a Covid. Que, portanto, foi produzida pelo homem, pela expansão da agricultura e da monocultura. A natureza não gosta de monocultura, ela prefere a biodiversidade.

Para evitar futuras pandemias, precisamos reduzir nosso impacto no meio ambiente e nosso consumo de carne e ter uma agricultura orgânica, mais humana e em menor escala.

Convenções climáticas tentam engajar países na contenção da temperatura mundial ao crescimento de 1,54° C. Há motivo para otimismo?

É uma coisa boa que a ONU, governos e empresas estejam focando as mudanças climáticas. Mas estão fazendo isso de maneira errada. Em vez de reduzir sua pegada no planeta, querem encontrar soluções tecnológicas. E não se pode resolver o problema com a mesma ideia que causou o problema em primeiro lugar.

Essa ideia de crescimento econômico ilimitado não é possível, mas é o foco de todos os países e empresas. O crescimento se tornou um deus ou uma religião. Não existe crescimento econômico infinito em um planeta finito. Precisamos de crescimento no bem-estar, nas relações humanas, na saúde, na arte. Não temos isso. Temos cada vez mais pessoas doentes, física e mentalmente. Isso não é bem-estar. Nossos oceanos estão cheios de plástico, nossos rios estão cheios de esgoto, nosso solo está cheio de produtos químicos e fertilizantes venenosos.

O sr. prega a simplicidade elegante como parte da solução desse impasse. O que é isso?

Significa que precisamos ter uma vida simples para que os outros possam viver de forma simples. Hoje, uma parte muito rica da sociedade está gastando muito dinheiro em tudo. A sociedade de consumo é o motor do crescimento econômico e, portanto, promove o consumismo.

A indústria publicitária cria desejos por coisas que você nunca soube que precisava comprar e está semeando fome e inadequação, medo e complexo de inferioridade, falta de confiança em si mesmo e ganância. Por que ter tanto se só se pode usar um vestido ou um relógio por vez? Temos dinheiro, temos carros, temos casas, mas não temos tempo.

Se você vive de forma simples, consome menos recursos da natureza. Temos que lembrar que menos é mais: ser mais e ter menos. A simplicidade elegante é boa para a natureza, para a sociedade e para você mesma.

O Brasil foi particularmente afetado nos anos de pandemia, tanto do ponto de vista humano quanto ambiental. Depois de ter sido liderança no campo ambiental, qual é o lugar do Brasil hoje neste debate?

No momento, vocês têm um bom presidente e também têm uma ótima ministra do Meio Ambiente, Marina Silva —ela é maravilhosa. O Brasil é um país muito afortunado, pois possui uma grande extensão de terra e menor população em comparação com a Índia e a China. Portanto, pode se dar ao luxo de ter mais florestas e proteger a Amazônia, plantar mais árvores e ter alimentos perenes. Por que o Brasil deveria destruir sua floresta e seu ambiente para produzir alimentos para a China, os Estados Unidos ou outros países? Especialmente enquanto há brasileiros passando fome.

Ninguém deve passar fome. Todas as outras coisas são secundárias. A produção de alimentos de boa qualidade deve ser prioridade. E, para isso, a agricultura deve ser valorizada. No momento, cultivar alimentos é visto como um trabalho árduo de pessoas sem educação, pobres e atrasadas.

O Brasil deveria levar mais pessoas para o campo, onde estarão mais saudáveis, em contato com a natureza. Os agricultores são o futuro do Brasil porque o alimento é fundamental e vem primeiro.

Se os agricultores estiverem em baixa, o Brasil estará em baixa. Se os agricultores estiverem em alta, o Brasil estará em alta.

E qual é o lugar da Índia, uma das potências do mundo multipolar, e um dos maiores consumidores de carvão do mundo?

A Índia está copiando o sistema ocidental de produção industrial, consumismo e crescimento econômico e se esqueceu de sua cultura. Embora o novo governo [do nacionalista Narendra Modi} exalte que somos hindus, ele deixou de lado as tradições e os valores hindus. O governo é hindu apenas no nome —adotou um chauvinismo hindu. Os valores hindus são simplicidade, não violência, harmonia com a natureza, igualdade. O país acabou de pousar na Lua enquanto crianças estão com fome nas ruas e pessoas vivem em favelas. Não me orgulho disso.


RAIO-X
Satish Kumar, 87, nasceu no Rajastão, estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Aos nove anos, tornou-se monge jainista (religião do século 6º a.C.). Aos 18, integrou movimentos pela reforma agrária na Índia, e, em 1962, iniciou uma marcha pela paz que atravessou três continentes em dois anos e meio de caminhada. Mudou-se para o Reino Unido nos anos 1970, onde fundou a revista Ressurgence & Ecological, referência no campo do ambientalismo, da qual hoje é editor emérito. Em 1991, fundou o Schumacher College, centro de estudos de sustentabilidade que se tornou referência global no assunto. Publicou dez livros, dos quais foram lançados no Brasil “Simplicidade Elegante” e “Solo, Alma, Sociedade”, ambos pela editora Palas Athena, e “Bússola Espiritual” (ed. Pensamento).

Desempenho positivo

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A economia brasileira apresentou melhoras significativas neste ano, os indicadores macroeconômicos apresentados recentemente nos mostram avanços significativos, o ambiente macroeconômico apresentou um desempenho positivo, expectativas interessantes, embora saibamos que são grandes os desafios futuros, gerando comemoração por parte do governo e um alívio no cenário nacional.

A inflação, que vem assolando a sociedade brasileira a alguns anos, está em franca diminuição, as taxas de juros estão sendo reduzidas, embora muito lentamente, percebemos alguns suspiros no varejo, melhora nas vendas, os saldos das contas externas estão melhorando sensivelmente, os investimentos produtivos estão em recuperação, os níveis de desemprego estão caindo, as reformas importantes para o ambiente econômico estão avançando e as perspectivas da economia brasileira estão melhorando.

A economia brasileira apresentou momentos de grandes incertezas e instabilidades desde os anos 1980, combinando momentos de crescimento econômico tímido, crescimento dos preços e fortes retrações nos setores produtivos. Neste momento, caracterizado por grandes volatilidades nos indicadores econômicos internacionais, nosso dinamismo produtivo perdeu espaço no cenário global, a competição externa cresceu de forma acelerada, impactando sobre sua estrutura econômica, perdendo o potencial industrial acumulado anteriormente e nos levou a se caracterizar como uma nação exportadora de produtos agrícolas de baixo valor agregado, tudo contribuiu ativamente para a piora das condições sociais, aumento da degradação do emprego e da precarização do trabalho, impactando negativamente sobre a violência urbana e a desigualdade.

Sabemos que as condições econômicas são ainda precárias, os indicadores ainda apresentam graves distúrbios e necessitam de um redesenho das políticas públicas para recolocar a economia em um cenário de crescimento econômico, vivemos um momento de melhoras, que contribuem para melhorar o ambiente social e adotar políticas efetivas para reduzirmos as polarizações políticas que precarizam as condições de sobrevivência das camadas mais fragilizadas e estimulam um cenário de conflitos crescentes dos grupos sociais, inviabilizando investimentos produtivos externos e internos, fundamentais para a recuperação da economia.

Importante destacar ainda, uma rápida melhora das discussões econômicas, deixando de lado políticas eleitoreiras, desonerações inconsistentes e empréstimos consignados fraudulentos, para a adoção de uma conversação mais adulta, mais madura e imediata, trazendo à pauta discussões econômicas urgentes, referentes às questões tributárias e as políticas fiscais, com a construção de um novo arcabouço fiscal, em substituição ao anterior que limitava o crescimento da economia, além de uma questão sensível para os donos do poder financeiro no país, a proposta da tributação de grandes fundos exclusivos e equiparando-os as regras tributárias entre fundos fechados e abertos.

Destacando as discussões referentes a problemas cotidianos da sociedade brasileira, reconstruindo as políticas públicas que são cruciais para a diminuição da pobreza e da indigência de uma parte substancial da população, retomando projetos de infraestrutura, reconstrução de políticas culturais e refazendo setores ligados as chamadas economias criativas, que estimulam o ambiente da inovação e do empreendedorismo, que podem potencializar o crescimento da economia nacional, deixando de lado conflitos desnecessários com países parceiros, cujo potencial pode auxiliar novos horizontes econômicos, novos investimentos em setores estratégicos, que podem impulsionar a sociedade brasileira num futuro imediato.

Vivemos num momento de mudanças constantes, retomar o crescimento deve ser visto como algo importante e fundamental, mas devemos compreender que os desafios são imensos, as comemorações devem ser deixadas de lado, afinal temos que reconstruir a educação, a saúde pública, a segurança pública, o ambiente de negócio, as pesquisas científicas, dentre outras. Chegamos no momento de escolhas difíceis e substanciais, que sempre foram postergadas, sem estas continuaremos perpetuando nossa dependência e desnudando nossa eterna subserviência.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas, Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Charles Koch: história de um abutre metódico, por Ladislau Dowbor.

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Num livro sobre as entranhas do capitalismo, a trajetória de alguém que agiu sistematicamente para devastar sindicatos, abusar de concorrentes, comprar políticos e financiar a ultradireita. Ele tornou-se bilionário graças a isso

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 31/08/2023

Podemos fazer estudos gerais da economia, analisar mercados, oligopólios, equilíbrios monetários, níveis de emprego e semelhantes. Christopher Leonard pertence a uma linha diferente de análise. Este jornalista do Wall Street Journal e outras mídias, estudou durante anos, de maneira muito exaustiva, o caso da corporação Koch Industries, uma das maiores do mundo, e um símbolo dos organizadores da extrema direita americana, em nome da ética e da liberdade. Ética e liberdade do mais forte, naturalmente.

Charles Koch, (em inglês pronuncia-se kok) que herdou uma empresa modesta de energia do seu pai, transformou a unidade num dos maiores conglomerados do mundo, atuando de maneira extremamente sistemática na quebra de sindicatos para maximizar lucros, mas sobretudo na aquisição ou quebra de possíveis concorrentes, e na organização de uma gigantesca rede de controle da política. A sua filosofia foi detalhadamente explicada num livro ideológico chamado Market-Based Management, MBM, que todos os milhares de funcionários têm de assimilar antes de serem contratados, sendo obrigados a frequentar cursos, até assimilarem um código de conduta de total dedicação, em torno ao objetivo de maximização de lucros da corporação. Tendo lido de jovem Hayek e Mises, expoentes da escola austríaca de economia que nos legou também Milton Friedmann, aderiu à ideia de liberdade total da corporação e à luta contra políticas públicas, contra o “Estado” como opressor, bem como a qualquer autonomia de organização dos trabalhadores.

Até aí pouco o diferencia de tantos novos super-homens da economia, os Bezos, Zuckerberg, Jeff Welch, donos de centenas de bilhões em fortunas, com sistemas organizados de evasão fiscal, em nome da liberdade, do bem-estar, do trickling-down, teoria esta que sugere que quanto mais os ricos enriquecerem mais gotas haverá (literalmente trickling-down) para o resto da humanidade. O que tornou Koch tão dominante, foi o fato de ter gerado sistemas muito disciplinados de organização, baseados na gestão informática sobre a propria empresa, preços, políticos, finanças, tecnologias, mercados, sobre os concorrentes, sobre as fragilidades de empresas que poderiam se tornar presa fácil, sobre as propostas de leis, em particular as de proteção do clima, que poderiam prejudicá-lo. O fato de poder estar dispondo de uma posição central de controle do petróleo, num país com crescente demanda por todos os setores, estratégico para o país, lhe deu uma base forte, em particular porque o petróleo se explora, não se produz, é um bem natural, e estratégico para o país.

Dotou-se de um contrato exclusivo de importação de petróleo mais barato do Canadá, e comprou uma refinaria, o que lhe permitiu gerar imensos recursos, com os quais construiu milhares de quilómetros de tubulações, cobrindo grande parte dos Estados Unidos, além de adquirir uma frota de navios petroleiros, que lhe permitiam importar e exportar petróleo segundo as variações de preços. Sobre essa base que lhe assegurou uma posição de negociador que impõe os seus preços, e que lhe permite variar os seus custos pela ampla rede de aquisição, tornou-se um comprador de empresas de qualquer setor que permitisse lucro. O gás, em particular, se tornou uma fonte de lucros, ao grupo adquirir uma grande cooperativa de produção de fertilizantes (o gás é base do nitrogênio), transformando-a, segundo a sua filosofia, em empresa privada com empregados, permitindo reduzir custos e obrigar os agricultores a pagar os preços. Antes, os agricultores e os operadores da fábrica eram membros da cooperativa.

Um traço marcante do grupo Koch, é que manteve a propriedade privada familiar de todas as suas empresas, sem cotação em bolsa, o que lhe permitia tomar ações diretas, sem consultar acionistas nem fazer relatórios trimestrais, e sobretudo sem precisar pagar aos acionistas os dividendos sobre os lucros. O resultado é que os lucros geraram sim uma fortuna pessoal, mas eram essencialmente reinvestidos na própria empresa. Neste sentido, era uma estrutura tradicional, sem adesão à máquina de dividendos que trava as empresas produtivas, ao desviar os recursos para Wall Street, BlackRock e tantos drenos financeiros.

Charles Koch, mais tarde sucedido pelo filho Chase, trabalhou de forma semelhante a implantação de políticas de extrema direita, no sentido de tentar travar políticas sociais, prestação de contas sobre impactos ambientais, legislação sobre impostos, na linha do ultraliberalismo. Na mesma filosofia de visão sistemática e de longo prazo, e em particular depois de uma emenda constitucional autorizar o financiamento corporativo de campanhas políticas (2010, Citizens United), criou, Estado por Estado, e inclusive em municípios, segundo os seus interesses, uma rede nacional de influência política, em que desempenharam papel fundamental os chamados Think Tanks, como Americans for Prosperity, Cato Institute, Competitive Enterprise Institute, que permitiam levantar fundos, e articular redes interempresariais para favorecer candidatos de extrema direita. A penetração nas universidades, em que financiamentos eram trocados inclusive por se ensinar o MBM da filosofia econômica, política e cultural do Koch, foi igualmente um investimento de longo prazo.

As mídias sociais passaram mais recentemente a desempenhar um papel importante na sua luta política. Nas regiões onde havia gestão de democratas, não de republicanos, a ação não consistia apenas em financiar o oponente republicano, mas sobretudo em montar campanhas histéricas de denúncia do gestor existente democrata, com fake-news, denúncias de corrupção, contratação de bandos para xingar e gritar durante qualquer reunião do político a abater. Funcionou de maneira impressionante, ao apresentar a tantos frustrados do andar de baixo da sociedade, contra quem canalizar os seus ódios. Como tão bem mostra Max Fisher em outro livro, A máquina do caos, mobilizar o ódio funciona mais do que apresentar programas e soluções.

Estou aqui apresentando algumas linhas gerais. Mas queria mesmo é sugerir fortemente a leitura do livro, pois através do histórico detalhado de uma corporação concreta, dos seus embates comerciais, financeiros, políticos, da guerra corporativa curiosamente chamada de liberdade de mercado, é o funcionamento do conjunto da economia, da política, da mídia, dos Think Tanks, das universidades apropriadas, que se passa a entender como funciona a economia realmente existente.

Permite também entender que o que hoje chamamos de ciência econômica, frequentemente apenas serve para justificar interesses.

Charles Koch era muito eficiente, organizado, informado. Era consultado pelos presidentes. Parabenizou Trump quando este liquidou praticamente a instituição de proteção ambiental dos Estados Unidos, e reduziu os impostos corporativos de 35 para 21%. Lucros fabulosos, explorando um produto natural essencial como o petróleo, ou o gás, exercendo poder de monopólio, manipulando a política para obter as leis que o favoreciam. E aos seus diretores, sempre recomendou que cumpram a lei, a 10.000 por cento, ou seja 100 vezes 100 por cento. O importante, naturalmente, é poder fazer a lei que se cumprirá. É uma corporação, ainda que gigante, mas através da vida e da evolução desta corporação é o funcionamento de um sistema e de uma nação que se descortina.

Novo BRICS explode a ordem internacional, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 28/08/2023

Os efeitos e consequências mais importantes da expansão do bloco não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes

A importância histórica da ampliação dos BRICS

De forma muito curta e direta: a incorporação dos seis novos membros do BRICS – Arábia Saudita, Irã, Argentina, Egito, Emirados Árabes e Etiópia – significa uma verdadeira “explosão sistêmica” da ordem internacional construída e controlada pelos europeus e seus descendentes diretos há pelos menos três séculos. Mas seus efeitos e consequências mais importantes não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes.

Exatamente porque o BRICS não é uma organização militar do tipo OTAN, nem é uma organização econômica do tipo União Europeia. Nasceu como um de ponto de encontro – quase informal – e um espaço de convergência geopolítica e econômica, entre países situados fora do núcleo central das grandes potencias tradicionais, concentradas sobre o eixo do Atlântico Norte. Países que não são atrasados, nem, subdesenvolvidos, nem dependentes e que já são, ou se propõem ser grandes potências econômicas e políticas dentro de seus respectivos tabuleiros regionais. Na verdade, o próprio grupo original do BRICS já inclui três das cinco economias mais ricas do mundo, tomando em conta o seu “poder de paridade de compras”.

Chamá-los de “sul global’ me parece ser uma forma anódina e geográfica apenas, de renomear os antigos países do “terceiro mundo”, na sua maioria ex-colônias europeias. Os números estão sendo amplamente divulgados e todos já sabem que depois da incorporação dos seis novos sócios o grupo do BRICS terá mais de 40% da população mundial e cerca de 40% do PIB mundial, o que por si só já fala da importância deste grupo e de sua ampliação decidida na reunião de Joanesburgo.

Agora bem, apesar de que o BRICS tenha tido até hoje uma postura muito mais propositiva do que contestaria, não há dúvida que nos anos recentes, devido a belicosidade crescente entre os Estados Unidos e a China, e devido sobretudo à guerra no território da Ucrânia entre os países da OTAN e a Rússia, o BRICS acabou sofrendo uma mudança de natureza, tornando-se uma organização de resistência, sobretudo, com relação às estruturas e instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados europeus e asiáticos, que operam como verdadeiras armas de guerra nos momentos de intensificação da competição e de acirramento dos conflitos entre esses países reunidos no G7 e os demais países que eles agora chamam de “sul global”, apesar da incorreção geográfica da expressão uma vez que seu principal inimigo neste momento, a Rússia, encontra-se ao norte de quase todos os países do G7.

Seja como for uma coisa é certa, depois de Joanesburgo, o BRICS já é um ponto de referência incontornável dentro do sistema internacional, e dependendo da reação dos Estados Unidos e dos europeus, poderá se transformar nos próximos anos, num grupo de poder com capacidade de estreitar cada vez mais o horizonte da dominação euro-americana do mundo.

Uma nova organização comercial?

Não há dúvida que a partir de 2024 o BRICS+ estará reunindo alguns dos países detentores das maiores reservas de petróleo e gás do mundo, além de incluir alguns dos seus maiores produtores de grãos e alimentos. Para não falar dos recursos minerais estratégicos que se concentram nesses mesmos países, associados às velhas tecnologias nucleares e às novas tecnologia associadas à computação quântica, à inteligência artificial e a robótica. Mas não creio na possibilidade de que nasça daí nenhuma nova organização comercial, até porque seria rebarbativo com relação à OPEP, no caso do petróleo e do gás.

Não creio que seja este o objetivo do grupo, nem creio que seja necessário para que possam exercer de outras maneiras o seu poder de influenciar os mercados globais destes produtos. Mas sim creio que o maior poder e o maio golpe econômico desferido contra os interesses americanos e do G7 virá por outro lado, e atingirá em cheio o poder monetário e financeiro do dólar e dos Estados Unidos.

De fato, a reunião de Joanesburgo não criou uma nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas de forma discreta antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os países-membros do grupo e desses países com todas as suas “zonas de influência”. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, e desde o grande acordo firmado entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando ficou estabelecida e garantida a intermediação do dólar, em todas as grandes operações do mercado mundial do petróleo.
Ação militar

Acho que o Brics nunca se tornará uma organização militar, nem jamais foi ou será este seu objetivo. Do ponto de vista militar, a aliança estratégica da Rússia com a China, que se consolidou nos dois últimos anos, já é por si mesma um contraponto ao poder miliar dos EUA e da Europa. E não creio que China ou Rússia queiram ter qualquer tipo de compromisso com seus novos parceiros, do ponto de vista de sua defesa mútua, como a Rússia tem, por exemplo, com a Bielorrusia.

Uma derrota importante para os Estados Unidos

Por conta disso tem aumentado a cada dia que passa as pressões e promessas do Departamento de Estado, exatamente em cima do Brasil, da Índia, e da África do Sul, três membros fundadores do BRICS. Aliás, deste ponto de vista, tem sido patética a peregrinação recorrente dos senhores Anthony Blinken e John Sullivan, e da onipresente senhora Victoria Nuland, tentando convencer – sem muito sucesso – os governos africanos, latino-americanos, ou mesmo asiáticos a apoiarem as sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos contra a Rússia, por conta da guerra na Ucrânia.

Um sinal inequívoco de perda de liderança que se repetiu agora mesmo no caso do golpe militar do Niger, ocasião em que nem os Estados Unidos nem os europeus conseguiram, até agora pelo menos, convencer algumas de sus ex-colônias africanas a invadirem o Niger, ou seja convence-los a fazer a mesma coisa que atribuem e criticam na Rússia, com relação à Ucrânia.

Lula perdeu com essa ampliação?

Não há nada que sugira que Lula e o Brasil tenham perdido poder ou influência com a ampliação do BRICS, nem tampouco que ele tenha feito algo com que estivesse em desacordo submetendo-se à China ou a quem quer que seja. Pelo contrário, minha impressão é que ele conseguiu recuperar pelo menos em parte o que o Brasil perdeu e se submeteu durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Uma coisa completamente diferente é compreender que o Lula sozinho não tem como transformar o Brasil do dia para a noite numa potência equivalente à China, ou mesmo à Índia, do ponto de via econômico e tecnológico, ou mesmo à Rússia, do ponto de vista militar. Estes países lutaram muitos anos para chegarem a ser potências com capacidade de projeção de sua influência a escala global. O que esta reunião deixou claro é que o Brasil precisará ainda de tempo para chegar onde eles chegaram.

Os demais dão sinais inequívocos de que respeitam o presidente brasileiro e sua liderança ética e carismática mundial, mas isto não muda do dia para a noite a visão que o mundo construiu do Brasil ao ver sua elite política e econômica entregar o seu o seu país e o Estado brasileiro (como está se vendo agora) nas mãos de uma quadrilha de pequenos escroques e ladrões de carteira. E ainda mais, ao saber agora da participação que tiveram membros destacados das Forças Armadas brasileiras em toda a corrupção, e em todas as tratativas golpistas de um presidente que veio das suas próprias fileiras.

O que a imprensa corporativa não consegue entender é que o Brasil saiu da reunião de Joanesburgo do tamanho que tem hoje no mundo, o tamanho com que ficou depois de seis anos de destruição do seu Estado e de sua política externa, corrigido até onde foi possível, e até agora, pelo trabalho incessante da política externa brasileira e pela liderança mundial conquistada pelo presidente Lula.

Os novos integrantes do bloco são “ditaduras”?

Esta separação e polarização entre países democráticos e autoritários foi uma ideia da política externa do governo Biden que não teve maior repercussão internacional. Basta olhar para as duas reuniões que Joe Biden organizou com o objetivo de mobilizar a opinião pública mundial e que foram um absoluto fracasso. Mas o mais importante aqui não é isto, é apenas que o BRICS nunca se propôs a ser um grupo de países democráticos, nem muito menos um grupo missionário pregador da fé na democracia. Trata-se de um grupo pragmático e que tem por princípio a ideia chinesa do respeito absoluto pela autonomia política e cultural de cada um de seus membros e dos seus povos.

Paralelo entre os BRICS e o movimento dos países não alinhados

São propostas e organizações que nasceram em momentos geopolíticos muito diferentes. O Movimento dos Não Alinhados nasceu à sombra da Guerra Fria e da polarização mundial entre o mundo socialista e os países capitalistas ocidentais. Foi um enfrentamento e uma bipolarização com forte conotação ideológica e dimensão global. Já o BRICS nasceu em um mundo que se fragmenta cada vez mais e que é cada vez mais intolerante com relação a todo e qualquer tipo de polarização do sistema mundial.

E agora está se expandindo no espaço aberto justamente pela perda de liderança de liderança dos europeus e dos norte-americanos, sobretudo depois do fracasso de sua tentativa de universalizar suas sanções econômicas contra a Rússia. Afinal, alinharam-se com os Estados Unidos e a OTAN um grupo de apenas 30 ou 40 países, uma minoria dentro do sistema das Nações Unidas. O objetivo das sanções era isolar e enfraquecer economicamente a Rússia, mas acabou isolando o G7 e enfraquecendo a economia europeia, que já foi ultrapassada em poder de compra pela própria Rússia, apesar de que este país esteja sob o mais intenso ataque econômico jamais desfechado contra qualquer outro país do mundo, em qualquer tempo da história.

Impacto sobre a guerra na Ucrânia

Eu acho que a ordem dos fatores é inversa. A simples invasão e resistência russa dentro do território da Ucrânia, frente à mobilização e intervenção direta dos Estados Unidos e de todos os países sócios da OTAN, já rompeu com a “ordem mundial” estabelecida pelos Estados Unidos e seus aliados depois do fim da Guerra Fria.

Além disso, a guerra na Ucrânia acelerou a formação de uma aliança estratégica entre a Rússia e a China, que deu alguns passos diplomáticos gigantescos à sombra da própria guerra, na direção do estreitamento de suas relações econômicas e estratégicas e do alargamento de sua influência sobre o Oriente Médio e a África. Incluindo esta expansão recente e bem-sucedida do BRICS.

As próprias sociedades europeias estão começando a se dar conta e reagir frente ao fato de que os Estados Unidos estão se comportando cada vez mais na defensiva, e atuando de forma completamente reativa, frente à inciativa militar russa, e frente à iniciativa econômica chinesa. Neste sentido, já se pode mesmo dizer que a guerra na Ucrânia apressou o declínio da hegemonia cultural dos valores europeus, e vem encolhendo significativamente o poder do império militar global dos Estados Unidos.

O lugar da Argentina no BRICS

Considero a entrada da Argentina no BRICS uma vitória diplomática do Brasil, e um passo extremamente importante na construção de uma “zona de co-prosperidade” na Bacia do Prata. Uma decisão e um passo cujos efeitos, entretanto, deverão se dar ao longo do tempo, não de forma imediata. Mas não há como enganar-se: este estreitamento da aliança entre o Brasil e a Argentina, como prognosticou o geopolítico americano Nicholas Spykmen, já em1944, será visto hoje como já foi no passado como uma “linha vermelha” para os interesses dos EUA e de sua rede de apoios dentro do continente.

E muito mais ainda, neste caso, em que este estreitamente ocorre dentro de uma organização liderada economicamente pela China, e que conta ainda com a participação do grande “demônio do ocidente” neste momento, que é a Rússia. Desse ponto de vista, é necessário olhar com cuidado para o futuro imediato, porque se as próximas eleições presidenciais argentinas não forem vencidas pelas forças de extrema direita contrárias à participação da Argentina no BRICS, não é impossível que a Argentina entre na linha tiro das chamadas “guerras híbridas” que vão mudando governos e regimes ao redor do mundo que são considerados inimigos ou obstáculo para o projeto de poder global euro-americano

Uma nova liderança global?

Tudo indica que a China não se propõe a substituir os Estados Unidos e seus aliados europeus como centro hegemônico do sistema mundial, pelo menos na primeira metade do século XXI. Nem tampouco a Rússia tem possibilidade de alcançar este objetivo. Mesmo assim, a aliança entre a força militar russa e o extraordinário sucesso tecnológico e econômico da China deve ter um impacto “exemplar” sobre o resto do mundo. Muito mais agora em que a China assumiu de forma explicita e declara a liderança de um projeto “desenvolvimentista global” (ocupada pelos EUA depois da Segunda Guerra Mundial), propondo a construção de um “mundo inclusivo” e de soma positiva entre todos os povos do universo, sem exclusão do Atlântico Norte.

Como se pode observar na própria estratégia de expansão do BRICS, já agora trazendo para dentro da organização representantes de todas as grandes civilizações que dominaram o mundo até o século XVII, e que depois disto foram deslocadas, derrotadas ou submetidas pela expansão vitoriosa do colonialismo europeu, que na segunda metade do século XX foi substituído pelo império militar e financeiro global dos Estados Unidos. Como já dissemos, esse império está se enfrentando com seus limites, estes limites estão aumentando, mas isto não significa automaticamente que a China vá substituir de imediato esta posição de liderança global.

*José Luís Fiori é professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O mito de Babel e a disputa do poder global (Vozes).

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena no site Tutaméia.

Guerra às drogas, por Segadas Vianna

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Segadas Vianna – A Terra é Redonda – 29/08/2023

A segurança pública não pode ser pautada apenas pela ideologia de guerra ou pelo “modelo Bukele”

A direita norteamericana precisava criminalizar e marginalizar ainda mais a população preta e pobre. Aproveitando-se de uma onda de violência pela chegada do crack, principalmente em Miami, declarou, nos anos 1980, nacionalmente o que chamou de ‘guerra às drogas’. Baseada em repressão de usuários e traficantes, muita violência policial e um aumento brutal no número de encarcerados esta guerra que hoje em boa parte do país está amainada por legislações mais modernas comprovou-se ineficaz.

O Brasil que tem como cultura subjacente importar modismos e culturas, principalmente do que a direita brasileira enxerga como ‘a pátria mãe’, os EUA, importa também e utiliza até hoje esta cultura da ideologia de guerra.

Esta ideologia de guerra, ensinada como doutrina nas escolas das polícias militares principalmente, pressupõe obviamente a existência de uma guerra. Havendo esta guerra como em todas as guerras há um inimigo, e o território onde este inimigo vive e atua, assim como a população que ali habita, é considerado hostil.

Nas guerras populações tidas como hostis devem ser tratadas de forma hostil e suas perdas como danos colaterais. Em territórios e junto às populações considerados hostis em uma guerra há sempre violações de direitos humanos e cometimento de barbáries, mas na cultura de guerra isto está implícito. Sintetizando, é desta forma com que nossas polícias, em especial as militares lidam com situações em favelas ou comunidades de baixa renda.

Como esta forma citada acima de lidar com a segurança pública vem vitimando fatalmente a cada dia mais inocentes, especialmente a vida de crianças, a direita que sempre predomina por equívocos e omissão das esquerdas na pauta da segurança traz à discussão a chamada ‘solução Bukele’.

Nayib Armando Bukele Ortez, presidente de El Salvador entendeu que para combater o poder das gangues criminosas, como a Mara Salvatrucha entre outras, decretou um Estado de emergência encarcerando todos os suspeitos de pertencerem às gangues levando às cadeias salvadorenhas 2% da população do pais, tornando El Salvador o país com o maior percentual de encarceramento do mundo. Na verdade além de prisões feitas sem nenhuma base legal execuções também ocorreram às centenas aparentando que a violência apenas e momentaneamente mudou de mãos tornando-se monopólio do Estado.

Mudar este conceito de guerra e dele ser enxergado como solução começa, e a transformação é a médio e longo prazo gostemos ou não, na mudança da missão constitucional das polícias militares que lhes confere e determina o direito e o dever de fazer o policiamento repressivo e ostensivo. Uma polícia que parte do pressuposto de que ela é uma polícia repressiva vai agir assim como primeira reação em qualquer circunstância.

A missão básica e constitucional das polícias militares deveria ser e primar por ser o de fazer o policiamento protetivo e ostensivo. Proteção da população deve ser o que deve ser o primeiro norte da função e da missão do policial que vi estar nas ruas e ter o contato direto com a população em situação de estresse e risco. Sem que isso mude o resto é apenas aplicarem-se novas camadas de tintas e verniz sobre uma estrutura podre e danificada.

Segadas Vianna é jornalista.

Criptomoedas

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Constantemente destacamos as grandes transformações da sociedade contemporânea, onde todas as estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais estão passando por grandes alterações, gerando novos modelos de negócios, novos comportamentos, novas formas de riqueza e novos desafios para toda a comunidade. Nesta sociedade, percebemos o surgimento, cotidianamente, de novos conceitos, novas profissões, novas carreiras e novas oportunidades, exigindo dos indivíduos uma constante transformação, onde os trabalhadores estão tendo que se reinventar todos os dias, sob pena de exclusão social, desemprego estrutural e desesperanças, tudo isso, contribuem ativamente para os medos contemporâneos.

O mundo da tecnologia exige novas estruturas sociais, novas e constantes transformações na educação, desenvolvimento de políticas públicas e instrumentos efetivos de atuação dos setores privados como forma auxiliar da redução dos desequilíbrios crescentes da sociedade, estimulando para que a cooperação ganhe o espaço desta concorrência desenfreada, que beneficiam apenas os detentores dos recursos monetários, das influências políticas e contribuem ativamente para a perpetuação das desigualdades que se espalham na sociedade global.

Neste cenário, os bancos e o sistema financeiro nacional passaram por grandes alterações nas últimas décadas, com o surgimento de novas formas de moedas e novos instrumentos de acumulação de riqueza, recursos monetários, criptomoedas, mineradores, moedas digitais, NFTs, Bitcoins, Open Banking, Ethereum, Blockchaim, bancos digitais, startups, fintechs, dentre eles… Todas estas inovações estão trazendo novos desafios para as Autoridades Monetárias, os chamados Bancos Centrais, responsáveis pela política monetária, o controle do sistema bancário, das taxas de juros e das questões relacionadas a política cambial. Todas estas transformações no mercado financeiro estão gerando constrangimentos para as economias, reduzindo o poder das Autoridades Monetárias, pressionando o surgimento de novos padrões monetários, além da possível redução do poder da moeda norte-americana, o dólar.

As criptomoedas podem ser definidas de forma diferente pelas variadas instituições financeiras, mas podem ser definidas como qualquer forma de moeda que existe digital ou virtualmente e usa criptografia para garantir a realização de transações, destacando ainda que as criptomoedas não têm uma autoridade central de emissão ou regulação, se utilizando de um sistema descentralizado para registrar transações e emitir novas unidades. Desta forma, percebemos que os Bancos Centrais, as chamadas Autoridades Monetárias, com o crescimento das criptomoedas, perdem espaço de regulação e, automaticamente, perdem poder dentro dos sistemas financeiro e monetário, com isso, percebemos que estas instituições resistem ao crescimento do mercado das criptomoedas.

O capitalismo se caracteriza por grandes transformações e inovações constantes, todos os momentos estamos sendo convidados a participar de uma grande revolução, com impactos variados para todos os agentes econômicos e produtivos, com impactos sobre os trabalhadores, os gestores e para todos os consumidores, alterando seus comportamentos, suas necessidades e seus desafios.

Vivemos num momento de grandes alterações dos paradigmas, modificações crescentes e instantâneas, o mundo imaterial vem ganhando relevância em detrimento do mundo material, levando as pessoas a se assustarem com a poder das grandes transformações em curso na sociedade.

Nestas transformações percebemos que estamos bastante distantes dos centros de difusão de novas tecnologias, somos apenas consumidores deste novo ambiente global de inovação, desta forma conseguimos perceber as nossas limitações do mundo da tecnologia. Enquanto as nações mais avançadas do mundo estão discutindo questões sobre processadores de alta geração, investindo fortemente em educação e em novas tecnologias e pesquisas científicas em novas formas de geração de energia, estamos gastando energias vitais em discussões intermináveis e infrutíferas. Já passou da hora de iniciarmos as discussões mais importantes da sociedade brasileira, canalizando esforços para o combate à pobreza e da desigualdade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Criptomoedas, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

A saúde no centro das conversas sobre o clima, por Marcia Castro

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Mudança climática é um dos maiores desafios para a saúde global neste século

Marcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 28/08/2023

Neste ano, independentemente da localidade, é impossível ler as notícias e não se deparar com uma matéria sobre anomalias no clima e suas consequências. Ondas de calor são sentidas nos dois hemisférios, em alguns casos com temperaturas jamais registradas para a época do ano. Incêndios, ciclones, secas, enchentes, chuva de granizo e baixa umidade afetam diferentes partes do planeta.

Apesar de estarmos enfrentando o El Nino que é um fenômeno natural, a magnitude dessas anomalias é intensificada pelas mudanças climáticas induzidas pela ação humana. A rapidez dessas transformações não tem precedentes na história e representa um risco para todas as formas de vida na Terra.

A mudança climática é um dos maiores desafios para a saúde global neste século. As consequências para a saúde já são sentidas em várias partes do planeta e afetam crianças, adolescentes, adultos e idosos, ou seja, todo o ciclo de vida.

A saúde humana é impactada de diversas formas. A transmissão de cerca de 58% das doenças infecciosas conhecidas é vulnerável às mudanças no clima. Riscos de morbidade e mortalidade por doenças não transmissíveis e transtornos mentais também podem se elevar.

Eventos extremos aumentam os riscos de acidentes e as perdas na agricultura (afetando a segurança alimentar) e causam o aumento de doenças transmitidas pela água e o deslocamento forçado. Além disso, o deslocamento populacional pode agravar crises sociais e conflitos e facilitar a propagação de patógenos.

A poluição do ar agrava as mudanças climáticas e afeta a prevalência de asma e de doenças cardiovasculares e respiratórias. O calor extremo pode ser letal e será um dos futuros fatores determinantes das condições de sobrevivência humana em partes do planeta caso as metas do Acordo de Paris não sejam alcançadas.

Entre 1991 e 2018, 37% das mortes globais devido ao calor no verão tiveram como causa as mudanças climáticas resultantes da ação humana. No Brasil a carga foi ainda maior, 67%.

O sistema de saúde também é afetado tanto por eventuais estragos na infraestrutura devido aos eventos extremos, como pelo aumento da demanda por cuidados em função das consequências das mudanças climáticas.

Considerando apenas os eventos extremos, um Atlas publicado pela Organização Mundial de Meteorologia estima que entre 1970 e 2021 quase 12 mil desastres relacionados ao clima foram a causa de 2 milhões de mortes no mundo com uma perda econômica de 4,3 trilhões de dólares. Na América do Sul a perda foi de 115,2 bilhões de dólares, sendo 45% no Brasil.

Um relatório publicado na revista Lancet mostra que os efeitos das mudanças climáticas na saúde da população da América do Sul estão se agravando e afetando desproporcionalmente os mais vulneráveis. Apesar do cenário preocupante, há carência de planos detalhados de adaptação e investimento em ações para enfrentar as mudanças climáticas.

Além dos impactos na saúde, as mudanças climáticas podem colocar em risco inovações no controle de doenças. Um estudo publicado na revista Nature Climate Change mostrou que populações de mosquitos infectados com a bactéria Wolbachia (que ajudam no controle da dengue) podem declinar em um cenário de temperaturas diárias em torno de 35 graus.

Parece óbvio que a saúde deveria estar no centro das conversas sobre o clima. Entretanto, a COP28, que começará no final de novembro nos Emirados Árabes Unidos, será a primeira a organizar um dia dedicado a saúde.

O foco na saúde é necessário! É preciso disseminar o que já se sabe, quantificar os efeitos ainda não mensurados e mobilizar governo e sociedade civil na busca por medidas de mitigação e adaptação.

José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos, por Christian Lynch

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Historiador, um dos mais influentes intelectuais públicos brasileiros, morreu aos 83

Christian Lynch – Folha de São Paulo, 22/08/2023

[RESUMO] José Murilo de Carvalho deixou obra incontornável sobre a construção do Império brasileiro e a formação da sociedade no começo da República, destacando como o país falhou, nesses momentos históricos cruciais, em criar uma cultura cívica que superasse o elitismo, o patrimonialismo e o militarismo. Morto aos 83, o historiador deixa às novas gerações a tarefa de enfim aprofundar a cidadania no Brasil.

José Murilo de Carvalho foi um do mais influentes acadêmicos de sua geração. No campo da ciência política, atuou nos programas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No da história, foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e do programa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Tendo se doutorado na Universidade Stanford (EUA), foi professor visitante em um sem número de outras, como Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. A consagração definitiva chegaria com sua eleição para as mais antigas e prestigiosas instituições culturais do país: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL).

Para quem o conhecia, chamava a atenção o contraste entre a monumentalidade de sua obra e a sua personalidade, referida por Ruy Castro como tímida e modesta. Eu acrescentaria esquiva, especialmente em ambiente mundano. Essa discrição indicava, claro, sua origem de mineiro do interior, de que se orgulhava, mas havia mais que o estereótipo regional.

Nascido em 1939, José Murilo estudou em colégio de padres e militou na Ação Popular, grupo cristão de esquerda, ajudando na organização de sindicatos rurais. Para além da “mineirice”, havia também certo espírito de missionário franciscano, que como cientista social cedo elegeu o Brasil como a comunidade ou “República” a cujo serviço se devotaria.

Ele acreditava que os males do Brasil decorriam da insuficiência do equivalente cívico das virtudes cristãs, que eram as virtudes republicanas. Nada surpreendente, já que desde Tiradentes e Teófilo Otoni a república sempre foi o tema por excelência da intelectualidade mineira.

Para bem servir à república como intelectual público (o equivalente secular do missionário), cumpria conhecê-la em sua formação. As inquietações de José Murilo decorriam do trauma comum a toda a primeira geração de cientistas políticos profissionais, o golpe de 1964.

Eles todos haviam na mocidade embarcado no sonho nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio e JK. Acreditavam, pela leitura dos intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que a modernidade brasileira começou com a urbanização e a industrialização a partir da Revolução de 1930; e que as reformas de base eram o corolário lógico de uma nação que não mais cabia na moldura oligárquica do tempo anterior.

A marcha ascensional para patamares superiores de autonomia e igualdade era inevitável. Daí o choque de 1964, que levaria José Murilo a empregar o melhor de suas energias na revisitação do processo de formação do Estado e da sociedade brasileira anterior a 1930, em busca das causas dos males presentes.

Quem admira José Murilo como historiador deve sempre lembrar que a força de suas análises vinha de sua formação em sociologia e política. A UFMG já possuía um núcleo importante de ciência e sociologia política dentro do curso de direito, em torno de Orlando Carvalho e sua revista. Não foi difícil depois dar-lhe autonomia e profissionalizá-lo.

O tema por excelência da ciência social mineira na época era o coronelismo, que explicava a articulação das modernas instituições políticas brasileiras sobre sua arcaica estrutura socioeconômica fundiária. Sob a influência da obra clássica de Victor Nunes Leal, José Murilo escreveu suas duas primeiras obras: a primeira, sobre a política municipal de Barbacena; a segunda, sobre a criação da Escola de Minas de Ouro Preto.

Já então ele questionava a eficácia do marxismo na compreensão dos fenômenos, preferindo o weberianismo dos primeiros membros do Iseb. Quando José Murilo partiu com uma bolsa da Fundação Ford para fazer seu mestrado e doutorado em ciência política em Stanford, lá conheceu o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Foi um encontro providencial. Wanderley o convenceu a trocar sua projetada tese sobre municipalismo por outra, a respeito da construção do Estado brasileiro no século 19. Deu certo.

Na primeira parte da tese, “A Construção da Ordem”, José Murilo argumentava que, diversamente das elites da América hispânica, as do Brasil conseguiram conservar sua unidade política devido seu maior grau de homogeneidade, uma vez que, enviadas a Coimbra, recebiam a mesma formação ideológica e uma socialização burocrática quase consensual em torno de um projeto de Estado reformista e autoritário.

Na segunda parte, “Teatro de Sombras”, ele revelava a dinâmica tensa entre este Estado modernizador e a sociedade escravista agrária que a ele resistia. Quanto mais o Estado fazia uso de seus instrumentos autoritários para liberalizar a sociedade pelo alto, mais solapava os fundamentos de sua própria legitimidade.

Aqui José Murilo já revelava duas características. A primeira, de caráter formal, passava pelo exame do processo político empírico em perspectiva interdisciplinar, pela articulação entre ciência política, história e pensamento brasileiro. A segunda, de caráter substantivo, assinalava a preocupação com a formação da cultura cívica e das instituições “republicanas”.

Sua tese de relativa autonomia do Estado imperial afrontava a literatura marxista então hegemônica, para a qual a monarquia não passava de braço do latifúndio escravista. Por isso, a recepção inicial da primeira parte dessa análise, “A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial” (1980), foi fria.

Em 1978, José Murilo foi convidado por Wanderley para integrar o corpo docente do antigo Iuperj (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj). Em 1986, ele passou a integrar também os quadros da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Nesse tempo, por ele considerado o mais feliz de sua carreira, Murilo desenvolveu as pesquisas sobre a formação da cultura cívica brasileira que o consagraram e que resultariam em “Os Bestializados” (1987), “A Formação das Almas” (1990) e “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005).

Trata-se de um tríptico que, depois do díptico anterior sobre a construção do Estado imperial, investiga a formação da sociedade no começo da República, concluindo pelo fracasso das elites na constituição de uma cultura cívica republicana, atravessada pelo elitismo, pelo patrimonialismo e pelo militarismo.

Em “Os Bestializados”, José Murilo destacava o descolamento entre povo e elites nas primeiras décadas do regime republicano, desenvolvendo o conceito de “estadania” para designar a concepção deformada de cidadania que só reconhecia direitos ao povo desde que subordinado e encaixado na métrica de “civilizado”.

Em “A Formação das Almas”, ele apontava o relativo fracasso das elites —positivistas, jacobinas, liberais— em criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava em construir a nação.

Já “Forças Armadas e Política no Brasil” se dedicava a compreender a origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada, nacionalista e desinteressada.

Tais reflexões caíam como uma luva à época do centenário da República (1989), quando a efeméride incentivava o público a pensar a história como insumo para dotar o regime democrático de substância para além da forma puramente eleitoral.

José Murilo fez assim da denúncia do nosso déficit republicano seu grande tema como intelectual público. Distinguindo a república como modo de convivência cívica da república como mero regime formal, lhe parecia que as últimas décadas do Império teriam sido marcadas por uma efervescência democrática abortada pelo golpe militar republicano. Este seria o tema de suas pesquisas sobre a campanha abolicionista e de livros mais recentes, como “Clamar e Agitar Sempre: Os Radicais na Década de 1860” (2018).

Para José Murilo, o governante mais republicano do Brasil teria sido dom Pedro 2º, a quem dedicou uma biografia: “Ser ou Não ser” (2007). Depois do impeachment de Collor, ele participou das discussões em torno do plebiscito de 1993 de forma provocativa, defendendo a opção da Monarquia para chamar a atenção para a insuficiência da República.

Em debate realizado à época no salão nobre do Palácio do Catete, José Murilo iniciou sua fala se dizendo constrangido em meio a toda aquela “pompa republicana”. A polêmica da época levaria este republicano empedernido a carregar por décadas a pecha de… monarquista.

“Cidadania no Brasil: O Longo Caminho” (2001) se tornaria a obra síntese de José Murilo em relação ao diagnóstico da má formação cívica brasileira e a necessidade de saná-la. Partindo da tese do sociólogo T. H. Marshall de que a sequência clássica da cidadania moderna começaria pelos direitos civis, seguido pelos políticos e depois pelos sociais, Murilo defendia que no Brasil a pirâmide havia sido invertida —e que o principal déficit da República residiria na falta de acesso à Justiça pela inefetividade dos direitos civis.

A exposição objetiva e clara dessa hipótese, entremeada pela narrativa da história do Brasil desde a Independência até o presente, fez desse livro o seu grande best-seller, adotado em todas as graduações de ciências humanas.

Paralelamente, como complemento de seus livros, José Murilo escreveu dezenas de artigos dedicados a fenômenos políticos e sociais, como o mandonismo, e a personagens da vida intelectual brasileira, como Vasconcelos, Uruguai, João Francisco Lisboa, Alencar, Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, José Veríssimo, Eduardo Prado e Juarez Távora.

Os mais importantes, talvez, tenham sido os dois textos dedicados a Oliveira Vianna, autor que considerava crucial para compreender os problemas das elites republicanas e cuja obra cumpria, portanto, “resgatar do inferno”.

José Murilo concluiu sua conversão pública para “historiador” ao se tornar titular do programa de história da UFRJ, em 1997, mas o essencial de suas pesquisas giraria dali por diante no aprofundamento das teses já expostas nos livros anteriores.

Por meio do projeto Caminhos da Política no Império do Brasil, financiado pela CNPq, ele se cercou de uma rede interinstitucional de excelentes historiadores, cujos trabalhos comuns resultaram em várias coletâneas, como “Linguagens e Fronteiras do Poder” (2011).

Uma mudança importante no período foi a maneira de José Murilo pensar a participação popular. As pesquisas com Lúcia Bastos e Marcelo Basile sobre os panfletos da Independência, que resultaram no livro “Guerra Literária” (2014), o convenceram de que, ao contrário do que se dizia, a revolução de emancipação do Brasil teve considerável participação popular, não sendo restrita às elites.

Nos últimos tempos, porém, a fé republicana de José Murilo sofreu múltiplos revezes. A esperança nos governos do PT tropeçou nos escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. As eventuais expectativas de melhora do padrão de vida cívica se esvaíram quando a bandeira anticorrupção passou às mãos da extrema direita aliada ao militarismo.

A história de sua mocidade parecia se repetir na velhice, reavivando seus traumas e decepções cívicas. Se a campanha udenista que denunciara o “mar de lama” resultara no suicídio de Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964, o moralismo lavajatista desaguara na prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.

Nos últimos anos, José Mutilo parecia mais interessado em tirar a limpo o próprio passado, reatando amizades e concedendo depoimentos sobre sua carreira e instituições de que fizera parte. Evitava entrevistas, porque no final de seu longo apostolado lhe parecia que tudo tinha sido inútil.

Em “O Pecado Original da República” (2017), ele chegava a afirmar que a condição republicana parecia incompatível com a identidade brasileira. Poderia ter desabafado como um de seus mestres, o sociólogo Guerreiro Ramos, em entrevista de 1981: “Este é o país da picaretagem. Não tem ninguém com grandeza, a grandeza de Alberto Torres, do Visconde de Uruguai, do Barão do Rio Branco, de José Bonifácio, Getúlio Vargas. Acabou, o país destruiu a nós todos”.

A missão do homem José Murilo de Carvalho, mineiro tímido e modesto, terminou. Ela segue agora por meio de sua obra monumental e de seus admiradores das gerações mais novas, de cujos visionários o Brasil continua precisando para se republicanizar.
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JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Vida
Nasceu em 1939. Formado em sociologia e política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fez mestrado e doutorado em ciência política na Universidade de Stanford, nos EUA. Foi professor nas duas instituições, assim como, no Brasil, na UFRJ e, no exterior, em Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Fazia parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira de Letras (ABL). Morreu em 13 de agosto, aos 83 anos

Principais livros
“A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial” (1980), “Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República Que não Foi” (1987), “Teatro de Sombras: a Política Imperial” (1988), “A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil” (1990), “A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho” (2001), “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005), “D. Pedro 2º: Ser ou Não Ser” (2007)

Perdendo potencial humano, por Priscilla Bacalhau

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É crucial que os indivíduos sejam capazes de aplicar produtivamente seus conhecimentos

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

Folha de São Paulo, 25/08/2023

Uma nação é feita de pessoas. Apenas oferecendo oportunidades para que os indivíduos desenvolvam seu potencial máximo, será possível atingir um nível desejável de desenvolvimento econômico e social. Para isso, é crucial que os indivíduos sejam capazes de aplicar produtivamente seus conhecimentos, habilidades e experiências para criar valor econômico. Esse potencial individual de aplicar habilidades é conhecido como capital humano e é ele que molda a capacidade de uma sociedade prosperar e inovar.

Atualmente no Brasil, os economistas do Banco Mundial, Norbert Schady e Joana Silva, divulgam seus trabalhos para medir o capital humano das nações. Em recente entrevista na Folha, Schady alertou que, sem investimentos em capital humano, os brasileiros poderiam enfrentar uma drástica redução em sua renda.

O Índice de Capital Humano, desenvolvido pela organização, considera três dimensões: sobrevivência infantil até os 5 anos de idade, anos de escolaridade ajustados pela aprendizagem e sobrevivência na idade adulta. Combinados, os indicadores estimam o quanto uma pessoa nascida hoje será produtiva quando chegar à idade adulta.

Os resultados do Brasil não são nada animadores. De acordo com as estimativas, uma criança brasileira nascida em 2019 atingiria apenas 60% do seu potencial, considerando as condições de saúde e educação a que estavam expostas. O Brasil apresenta déficits significativos em termos de aprendizado, mesmo quando comparado a países de desenvolvimento econômico semelhante. Além disso, o país ainda possui uma parcela considerável de trabalhadores com baixo nível educacional, com retornos limitados ao entrar no mercado de trabalho.

Além de os resultados não serem bons na média, as desigualdades de raça, gênero e região são marcantes, como de praxe no país. Crianças do Norte e do Nordeste, por exemplo, têm a oportunidade de desenvolver apenas metade de todo seu potencial, menos do que crianças no Sudeste. Por outro lado, vários municípios no Nordeste apresentaram grande evolução no índice de capital humano entre 2007 e 2019, puxada principalmente por melhorias nos indicadores educacionais.

Os efeitos da pandemia no acúmulo de capital humano podem ser devastadores, tanto regredindo para níveis de uma década atrás, quanto no aprofundamento de desigualdades. Mas ainda há esperança: pode-se aprender com experiências subnacionais e investir em políticas públicas abrangentes, capazes de promover igualdade de oportunidades para acesso à saúde e educação de qualidade. Apenas investindo no potencial das crianças é que o Brasil pode trilhar o caminho rumo a um desenvolvimento condizente com seu verdadeiro potencial.

O agro não é pop… o agro é lobby!, por André Roncáglia

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É o único setor em que benefícios tributários superam a contribuição ao PIB

André Roncáglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 25/08/2023

A teoria das vantagens comparativas é uma das mais bem-sucedidas abstrações na assim chamada ciência econômica. Elaborada pelo economista britânico David Ricardo, ela visava fortalecer a indústria manufatureira, cujo desenvolvimento era inibido por uma política de proteção à agricultura. Ricardo defendia a abolição das tarifas protecionistas à agricultura para que as importações derrubassem o preço dos grãos. A subsequente queda dos salários e da renda dos proprietários de terra abriria espaço para os lucros impulsionarem a indústria.

Curiosamente, o tom industrializante da aplicação da teoria ao império global da época se inverteu ao cruzar a linha do Equador. Na periferia, a teoria recomendava a especialização na exportação de matérias-primas. O Brasil conta, desde então, com um séquito leal de defensores das vantagens comparativas. Deslumbrados com o poder tecnológico dos países do norte, tornaram-se sócios minoritários abastados do nosso subdesenvolvimento.

Sob o manto protetor dessa “boa teoria econômica”, o agronegócio consolidou seu poder econômico, o que lhe permite financiar meios de comunicação para legitimar seu protagonismo e ocultar seus privilégios. Slogans como “o agro é tech, o agro é pop” lançam um verniz mítico sobre um setor que é, na verdade, fortemente subsidiado e protegido pelo Estado há décadas.

A agropecuária representa 7,9% do PIB e míseros 3% dos empregos formais da economia, mas paga menos de 1,5% da arrecadação total de tributos. É o único setor que abocanha uma fatia dos benefícios tributários (13,5%) maior do que sua contribuição ao PIB. Por comparação, a indústria representa 12,9% do PIB e 15% dos empregos formais, sendo responsável por 31% dos tributos arrecadados e 12,5% dos benefícios tributários.

Além disso, o agro não seria tech sem os pesados investimentos feitos pelo Estado em pesquisa agropecuária. A Embrapa custará R$ 3,7 bilhões aos cofres públicos em 2023. Cerca de 2.500 pesquisadores oferecem inovações que melhoram a produtividade do setor. Em contraste, a Embrapii (Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial) recebe R$ 1,1 bilhão, enquanto a Ceitec, estatal do chip que tira o sono dos liberais, custa R$ 53 milhões ao Orçamento federal.

É uma raridade um empresário do agronegócio reclamar da Selic estratosférica. Sabe por quê? O agro conta com o Plano Safra, que oferece crédito com taxas de juros variando de 7% ao ano até 12,5% ao ano. A Selic pode ir pra Marte que o agro não dará um pio. Dificilmente o agro seria pop se pagasse as taxas de juros que a indústria paga, cujo piso médio está em 20% ao ano.

No período 2023-2024, serão R$ 435 bilhões em crédito subsidiado (apenas R$ 73 bilhões serão destinados à agricultura familiar). Em 2015, o crédito direcionado representava 90% do Plano Safra, caindo para cerca de 50% desde então. O motivo é a captação de crédito via Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e nos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), ambos com isenção do Imposto de Renda sobre os rendimentos financeiros.

Na reforma tributária em debate, o agro conseguiu um desconto de 60% na alíquota dos novos tributos (o IBS e a CBS), mas pressiona os congressistas a elevar o desconto para 80%. Essa “meia-entrada agrishow” deverá ser paga sobretudo pela indústria, mas também pelo comércio e pelos serviços.

Alega-se que o agro traz divisas para o Brasil, o que justificaria os subsídios bilionários destinados ao setor. Se tiver a mesma oportunidade, a indústria também pode fazer isso, com efeitos mais robustos em termos de geração de empregos e inovação tecnológica.

Reverter nossa baixa sofisticação produtiva e nossa pauta regressiva de exportações requer nivelar o campo de jogo entre todos os setores.

Tecnologia educacional: aliada ou vilã? por Débora Garofalo

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Mais que restringir, há de se priorizar vivências, inclusive na produção

Débora Garofalo, Mestra em educação, é professora na rede pública de São Paulo; em 2019, foi a primeira sul-americana a disputar o Global Teacher Prize, sendo considerada uma das dez melhores professoras do mundo

Folha de São Paulo, 25/08/2023

Em relatório divulgado recentemente, dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação; a Ciência e a Cultura) alertam sobre o risco do uso de telefone celular na sala de aula e trazem um panorama sobre evidências escassas de impacto positivo da tecnologia digital na área educacional.

O relatório aborda também a questão do abismo digital; o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas e a adaptação da educação; e a oferta de conteúdo online sem regulamentação suficiente do controle de qualidade e/ou diversidade. Alguns dos apontamentos remetem a discussões já realizadas anteriormente em âmbito nacional. Recaem sobre aspectos importantes da compreensão do papel das tecnologias na educação, como objeto de conhecimento e ferramenta de ensino, e da ausência de regulamentações para uso de aparatos tecnológicos e a ineficiência de políticas públicas para a questão da conectividade.

E como evitar as distrações com o uso das tecnologias digitais em sala de aula? Através da intencionalidade pedagógica, permitindo que os estudantes vivenciem a tecnologia e não sejam apenas consumidores, mas produtores dela. Proibir e/ou restringir não são caminhos: o importante é criar regras e oportunizar vivências. Assim, há necessidade de potencializar o aprendizado da tecnologia como objeto de conhecimento e de ferramenta de ensino, principalmente aos estudantes com deficiência.

Nesse sentido, precisamos encontrar o equilíbrio do seu uso em sala de aula e potencializar sua ressignificação. Um exemplo disso é a cultura maker, que possui potencial desde que utilizada com intencionalidade pedagógica, já que é uma abordagem que incentiva os estudantes a resolverem problemas colaborativamente, criando artefatos usando as mãos, sendo porta de entrada para trabalhar a inovação na educação.

Essa abordagem possibilita novas e significativas experiências ao professor, através de estímulos aos estudantes no desenvolvimento de projetos de maneira prática, usando metodologias ativas ao desenvolver habilidades e competências relacionadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seu complemento sobre computação, habilidades socioemocionais e colaborativas.

Um dos principais objetivos da educação maker é proporcionar que os estudantes consigam colocar em prática os conhecimentos adquiridos em sala de aula. Para isso, precisam ser expostos a variadas possibilidades e soluções para os problemas propostos. Essa abordagem representa estratégia para modificar o processo de aprendizagem, já que promove interdisciplinaridade e oferta oportunidade de realizar avaliações diagnósticas personalizadas, por envolver os estudantes em ações pertencentes e experiências de aprendizagem.

É um equívoco pensar que para colocar a mão na massa é necessário ter um ambiente com equipamentos de alta tecnologia. É possível fazer muita coisa com a sala de aula tradicional, proporcionando um ambiente colaborativo e com atividades desplugadas. O pedagógico deve ser realizado de maneira estratégica, com olhar para o ambiente de aprendizagem, flexibilizando o currículo ao permitir que o modelo educacional seja menos teórico e mais participativo.

Maneiras diferentes de enxergar a tecnologia educacional ajudam a romper barreiras e garantem igualdade, inclusão e equidade.

A criminalização dos políticos, por Segadas Vianna

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Por Segadas Vianna – O Terra é Redonda – 21/08/202As

Jornadas de 2013 abriram as portas para a direita envergonhada

Desde a redemocratização até 2013 a direita brasileira ficava pr.ticamente isolada em dois campos: um se abrigava sob o patrimonialismo e o outro ancorado em figuras aparentemente folclóricas e histriônicas isoladas dentro da vida legislativa. E isso muda de forma radical em 2013.

Manifestações surgidas originalmente no Rio de Janeiro contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus logo se transformaram em manifestações contra o governo, evoluíram para manifestações contra “os políticos” e culminaram em incluir os partidos políticos nessa pauta.

Em pouco tempo a direita percebeu essa larga avenida que se abria para ela, onde várias características do fascismo estavam aparentes e incluiu nas manifestações a luta por um Projeto de Lei que viria a dar mais poderes aos Procuradores da República.

Com esse quadro muito vivo e pujante nascem duas outras questões que foram fundamentais nos alicerces da atual direita bolsonarista. O impedimento da presidenta Dilma Rousseff e o início da Lava Jato, dois marcos na criminalização dos políticos, em especial nos políticos da esquerda e mais especialmente nos políticos do PT.

Estava mais do que pronto o quadro para aquela direita que se ocultava ideologicamente com medo de ser tachada e estigmatizada pela esquerda e pelos libertários como ignorante e atrasada começasse a ter um orgulho doentio das posições que defendia e com o crescimento do fascismo tupiniquim, renascido verde amarelo nas manifestações contra Dilma Rousseff, como todo projeto fascista precisa da idolatria foi criada a figura do “Mito” onde o expoente da extrema direita se consolida como liderança nacional das diversas matizes da direita e investe pesadamente na fanatização das massas.

Explorando dois medos incutido no subconsciente da classe média brasileira, um vindo da formação cristã, que é “o medo do comunismo” (ainda que as massas mal saibam o que é comunismo) e o da segurança pessoal e familiar onde supostamente a esquerda apoiaria a atividade criminosa, tese criada pela direita no Rio de Janeiro nos anos 1980 para combater Leonel Brizola, a direita consegue fazer renascer o conceito de um “salvador da pátria e dos valores da família”.

Voltando às jornadas de 2013 outro fator que contribuiu de forma marcante para que o campo para a direita caminhar fosse pavimentado, de forma consciente ou não, foi a atuação de grupos de Black Blocs que teoricamente agiriam “para defender os manifestantes da brutalidade policial” e para ações anarquistas como a depredação de sedes de instituições financeiras. Estas ações que se transformaram em depredações generalizadas e ataques até mesmo a jornalistas, como o que foi vítima fatal de um explosivo, um “morteiro”, e consolidaram na população em geral medo das esquerdas.

Todo o restante, ocorrido no processo da chegada da direita, especialmente a extrema direita ao poder, nasceu, em nossa opinião, nas chamadas jornadas de julho de 2013 que foram na verdade uma espécie de Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade turbinadas e travestidas em uma versão 2.0.

E hoje a sociedade consciente deve aprender também com isso para não haver repetições ou revivals. Cabe às esquerdas aprender que não basta ganhar eleições e chegar ao poder. Que é necessário educar e informar massivamente a população sobre política de forma correta, pois essa direita que está “ferida”, mas ainda bem viva não volte a criar cenários onde ela reapareça para “salvar o Brasil”.

Segadas Vianna é jornalista.

Reforma militar, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 23/08/2023

Resumo das teses apresentadas no livro recém-lançado “O que fazer com o militar”

O militar fracassou em sua missão precípua. Em que pese o Brasil deter capacidade científica e industrial e dispor de um dos maiores orçamentos de Defesa do mundo, o militar não consegue negar os espaços territorial, marítimo, aéreo e cibernético ao desafiante medianamente preparado.

As mudanças no jeito de guerrear, a dinâmica social e o cuidado com a democracia impõem uma reforma militar. Cabe revisar o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas porque o Brasil precisa inserir-se dignamente na ordem internacional e as novas gerações devem ser poupadas das exorbitâncias do quartel.

O brasileiro não se envolve na Defesa Nacional por ser impatriota, mas porque lhe é reiteradamente passada a ideia de que essa política pública cabe exclusivamente ao militar e também porque é escaldado pelo terrorismo de Estado praticado pelos comandos militares.

Muitos admitem que as corporações devem estar subordinadas ao poder político, mas isso é impossível devido à inexistência de um corpo civil especializado e de um acervo de estudos atualizado. O Brasil precisa de uma Universidade da Defesa Nacional dirigida por um civil.

A sociedade e o Estado devem destituir o militar da condição auto-outorgada de apóstolo do patriotismo e do civismo, que afronta a cidadania, anula o espírito republicano, prepara a tirania e deixa o Brasil indefeso.

O valor do soldado não encerra “toda a esperança que um povo alcança”, como diz a canção do Exército. A reforma militar é necessária para que o soldado respeite a sociedade.

O político não pode reconhecer as corporações armadas como interlocutoras. Soldado é treinado para obedecer e mandar, não para dialogar. Comandantes precisam ser consultados sobre a Defesa, mas a sua concepção e condução cabem ao político.

Há generais e tropas em demasia. A distribuição espacial de efetivos e equipamentos é perdulária e inócua para a Defesa.

É necessário rever o serviço militar obrigatório porque a composição da tropa reproduz a iniquidade da estrutura social: aos mais pobres são reservadas as posições hierárquicas inferiores. O serviço militar, como está organizado, reproduz o legado colonial.

Cabem estudos aprofundados e planejamento para a revisão do serviço militar, que implica redimensionamento do tamanho, da estrutura, do funcionamento das corporações e em revisão da carreira militar.

A reforma militar deve atenuar o isolamento do castro. A “família militar” é uma excrescência.

Perturba a coesão dos brasileiros. O militar não pode ficar à margem da sociedade. Os deslocamentos constantes pelas guarnições não lhe permitem inserção social. A endogenia precisa ser contida. Os colégios militares representam despesas desnecessárias para a Defesa.

Adolescentes devem ser socializados em estabelecimentos civis.

É possível imprimir novos rumos às fileiras sem rupturas institucionais: cabe compatibilizá-las com a Constituição. O militar tem que respeitar o pluralismo político que fundamenta a República. Ao diabolizar a esquerda, pisa na Carta e empobrece o intercâmbio de ideias. A reforma deve eliminar seu pavor às mudanças sociais e comportamentais.

As corporações são importantes para o desenvolvimento socioeconômico. Devem ser equipadas com produtos nacionais. A proposta de Política de Defesa Nacional que tramita no Congresso Nacional propõe parcerias com potências detentoras de tecnologia avançada. É a mesma orientação nociva que prevaleceu durante o século passado e que deixou o país desprotegido.

Não há explicações aceitáveis para a elevada dependência externa do Brasil em material bélico.

Os escritórios das Forças Armadas nos Estados Unidos e na Europa precisam ser desmontados. A subalternidade ao estrangeiro poderoso esvazia a retórica da incolumidade territorial.

Sem reforma militar, não haverá Segurança Pública aceitável. Cumpre distinguir o militar do policial. Manter a ordem e combater criminalidade são missões distintas da luta contra o estrangeiro hostil.

A ideia de combate ao “inimigo interno” precisa ser extinta: alimenta o transtorno de personalidade funcional do militar e do policial. Quando o policial age como militar e o militar como policial, a sociedade fica indefesa e o potencial agressor estrangeiro beneficiado.

A noção de “inimigo interno” pressupõe a guerra civil permanente. Entre inimigos não há generosidade, mas ódio cego. Admitir a existência desse “inimigo” é excluir propensões ao agasalho, à tolerância e ao convencimento, fundamentos da comunidade nacional.

O militar deve ser liberado de tarefas que não lhe cabem. Reposições da lei e da ordem devem ser entregues à Segurança Pública. A utilização das corporações para atender demandas crônicas sugere à sociedade noção enganosa do papel do militar e impede o preparo para a Defesa Nacional.

Quem comanda os instrumentos estatais de força, controla o Estado e a sociedade. O ativismo político do militar foi reforçado pelo uso combinado de instrumento letais e não letais, configurando a “guerra híbrida”, da qual a “guerra jurídica” e as “manobras informacionais” são expedientes.

O militar não pode conduzir a Defesa porque forças de terra, ar e mar não se entendem quanto aos seus papeis. O desentrosamento é oneroso: enseja sobreposição de estruturas, em particular no ensino, pesquisa, assistência médica e produção de armas e equipamentos.

Em mãos castrenses, a formulação da Defesa Nacional será limitada em decorrência da unidade política e ideológica dos oficiais. Essa unidade nega a democracia, que tem como fundamento o pluralismo político. É uma forma de corrupção institucional.

A unidade doutrinária é necessidade para a organização, o preparo e o emprego das Forças, mas a unidade ideológica deixa o militar em confronto com a sociedade, cuja coesão passa pelo embate de ideias.

Se o leque de convicções políticas e ideológicas presente na sociedade não se refletir nas corporações, prevalecerá seu uso instrumental por uma corrente política.

O conceito “poder nacional”, disseminado pelo Pentágono e absorvido pelo militar brasileiro, mantém viva a ideologia que orientou a ditadura. Nos Estados Unidos, esse conceito remete ao exercício do mando planetário. No Brasil, ampara o autoritarismo doméstico.

Cumpre ao político deliberar sem pressão castrense sobre gastos militares. Assessorias legislativas, em matéria de Defesa, devem ser entregues ao corpo civil especializado.

Cabe suprimir a cooptação de agentes públicos e privados pelo militar por meio de concessão de medalhas corporativas.

A propaganda das Forças Armadas nos veículos de comunicação é nociva. Quando o militar disputa a simpatia popular, se confunde com o político.

Reformas sociais são indispensáveis a uma Defesa que tenha como viga mestra a coesão nacional. Disparidades de renda e de oportunidades, bem como desigualdades de desenvolvimento entre as regiões desprotegem o Brasil.

A Constituição ordena a mudança social, mas as corporações rejeitam avanços que contrariem os propósitos de suas existências, condicionem sua forma de ser e agridem as convicções ideológicas de seus integrantes.

O combate à mitologia da “união das três raças”, que tenta encobrir o extermínio dos povos originários e esconde a desumanidade da escravidão, é indispensável à uma Defesa consistente.

Vendo-se herdeiro do colonizador, o militar repele Tiradentes porque participou de seu martírio.

Proclamando-se pacificador da sociedade escravocrata, declina do papel de defensor da nacionalidade. Quem ama o colonizador odeia a pátria e semeia a desavença porque dela se abastece. Quem ama o povo brasileiro quer a inclusão de todos.

Passo decisivo da reforma militar é a reverência aos heróis brasileiros. A exaltação da brutalidade do Estado contra a sociedade expõe as Forças Armadas ao desapreço. Não faz sentido o militar glorificar a repressão enquanto a sociedade reverencia suas vítimas.

Tiradentes deve ser o farol da reforma militar. Quando o enfileirado sentir-se um vingador do mártir, a base estruturante das mudanças corporativas estará constituída. O transtorno de personalidade funcional do militar estará sendo vencido.

O Brasil não logrará desenvolvimento econômico sustentável sem abraçar os vizinhos. Não conseguirá controle sanitário nem proteção ambiental. A proteção da Amazônia será uma quimera.

As ilicitudes nas fronteiras persistirão. A Defesa brasileira será dispendiosa e frágil. O subcontinente patinará na busca de futuro promissor.

A coesão dos brasileiros, sendo a viga mestra da Defesa Nacional, a amizade com os vizinhos representa sua primeira grande escora. O militar brasileiro evita a integração sul-americana para não desagradar Washington.

Não obstante Lula ser favorável à integração sul-americana, a Política Nacional de Defesa em análise no Congresso prioriza alianças estratégicas com potências imperialistas. Os Estados Unidos não largam mão do controle do material de guerra produzido no Ocidente. A busca de cooperação com “nações mais avançadas” revela os fundamentos arcaicos da Defesa Nacional.

O Brasil é um dos poucos países em condições de dissuadir potenciais agressores a partir da construção de um sólido bloco capaz de impor respeito no tabuleiro internacional. O Brasil precisa liderar a integração sul-americana.

O militar foge da discussão sobre a Defesa Nacional. Pede mais recursos públicos com argumentos inconsistentes. As dimensões territoriais do país, o tamanho de sua população e de seu PIB não são motivos para engrossar fileiras: a capacidade de uma corporação militar pode ser inversa ao seu tamanho. Diante de mísseis hipersônicos e drones furtivos, pouco valem homens preparados para a luta corpo-a-corpo.

As premissas do planejamento do Exército brasileiro, “agilidade”, “força” e “presença” são insustentáveis e contrárias a uma Defesa Nacional consistente. Precisam ser revisadas.

A “agilidade”, pressupõe o monitoramento de potenciais ofensores, o uso da aviação de combate e de mísseis de grande alcance e velocidade. O deslocamento rápido de tropas faria sentido diante de uma ocupação territorial difícil de imaginar, por supérflua e desarrazoada.

Caso a ocupação de parte do território brasileiro seja tentada, seria inviabilizada pela interrupção de transporte aéreo e marítimo do invasor. O combatente da “selva” formado pelo

Exército passa ao contribuinte a impressão de capacidade para defender a Amazônia, mas serve essencialmente para combater brasileiros insatisfeitos e alimentar propaganda enganosa.

A premissa “força” é negada pelo emprego dos recursos destinados a Defesa. Se as Forças Armadas pretendessem demonstrar “força”, reduziriam seus gastos com pessoal em benefício da produção autônoma de armas e equipamentos avançados.

Quanto à terceira premissa, “presença”, muitos quartéis e extensas fileiras não dissuadem agressor estrangeiro. O militar precisa chegar em qualquer lugar e a qualquer hora, mas para isso precisa priorizar a Força Aérea.

Por deter grande território e extenso mar, o Estado brasileiro deveria ter menos soldados e grande capacidade aeronaval. A supremacia da Força Terrestre serve para o combate ao “inimigo interno”, não para dissuadir estrangeiro hostil.

Espero que meu livro O que fazer com o militar (Gabinete de Leitura) estimule um debate que não pode ser postergado.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

O consumismo põe em risco a vida na Terra, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 22/08/2023

Não interessam os cidadãos nem seu nível de consciência, menos ainda seus problemas existenciais. Interessa que sejam consumidores

Considerando a história humana constatamos que a fome foi, por séculos, um problema permanente. Por não termos, à diferença dos animais, nenhum órgão especializado que garantisse nossa subsistência, logo no início surgiu a urgência de buscar o necessário para matar a fome, seja extraindo o alimento diretamente da natureza, seja conquistando-o pelo trabalho.

A grande virada se deu por volta de 10 mil anos atrás com a introdução da agricultura de irrigação. Ao longo dos grandes rios do Oriente Médio, do Egito, da Índia e da China começou-se a usar a irrigação para produzir mais produtos a par de domesticar animais como a galinha, o porco, a ovelha e a cabra. Produziu-se o excedente que eliminava a fome. Simultaneamente, é preciso dizer, surgiu a guerra, pois os exércitos levavam comida suficiente para enfrentar o inimigo, como por exemplo, entre os impérios mesopotâmicos e o Egito, as potências políticas da época.

Tudo mudou com o advento da era industrial nos séculos XVII e XVIII em diante até os dias de hoje. Começou a produção em massa com a possibilidade de atender as demandas humanas. Ocorre que esse desenvolvimento técnico-científico se operou no quadro do capitalismo. Nele, desde seu início, se estabeleceu a divisão entre o proprietário, possuidor de terras e dos meios de produção e o trabalhador apenas detentor de sua força de trabalho. Essa cisão foi ao longo do tempo se exacerbando a ponto de nos dias atuais os donos das riquezas naturais e tecnológicas controlarem o sistema econômico globalizado com imensa desvantagem para os assalariados, deixando milhões e milhões sem acesso aos bens fundamentais da vida.

A situação se agravou com a assim chamada “Grande Transformação” pela qual uma economia de mercado se transformou numa sociedade só de mercado. Tudo virou mercadoria desde órgãos humanos, saberes, a verdade, a notícia etc.

A lógica capitalista é de obter lucro com tudo, mediante a exploração ilimitada dos bens e serviços da natureza, através de uma feroz competição entre todos os que estão do mercado, supostamente livre e uma acumulação individual ou corporativa que compete com o Estado na gestão da coisa pública.

A produção procura obviamente atender demandas humanas de alimentação e subsistência, desde que tal processo seja lucrativo. A própria produção é levada ao mercado e ganha seu preço no jogo da concorrência, sem o cuidado para com os recursos naturais e a contaminação do meio ambiente (considerada uma “externalidade” a ser resolvida pelo Estado). Como se trata de gerar riqueza ilimitada começou-se produzir produtos não necessários para a vida, mas importantes para fazer dinheiro.

Assim junto com o consumo necessário, surgiu o consumismo. O consumismo se caracteriza pela aquisição de bens e serviços supérfluos, não necessários para a vida, em vista do ganho econômico. Grande parte da produção se destina na produção de tais supérfluos gestando o consumismo principalmente das classes ricas, mas também da própria sociedade.

Para estimulá-lo usa-se a propaganda, as imagens falantes, os quadros sedutores, as músicas, os youtubes, os filmes bem orientados, para levar às pessoas a consumirem tal e tal produto. Não interessam os cidadãos nem seu nível de consciência, menos ainda seus problemas existenciais.

Interessa que sejam consumidores.

O fato é que se criou a cultura do capital. Grande parte dos produtos (TVs, carros, eletrodomésticos, roupas, tênis e infinitos outros itens) caem sob a obsolescência – são feitos para durar por determinado tempo, obrigando o consumidor a substituí-los, comprar e consumir.

Praticamente todos somos reféns da cultura do capital, obrigando-nos a trocar de tempos em tempos os produtos, ou porque ficaram obsoletos como um computador ou pela obsolescência geral. Sabemos da força intrínseca de uma cultura que nos entra por todos os poros e naturaliza o estilo de vida. Como é difícil e longo o processo de sua superação por outra. É a cultura consumista que continuamente renova e prolonga a perpetuidade do capitalismo.

Entretanto, nos últimos anos nos temos confrontado com os limites da Terra. Um planeta limitado não tolera um consumismo ilimitado. Já agora necessitamos de mais de uma Terra para atender o consumo de 8 bilhões de pessoas e o consumismo de fausto e de luxo das classes opulentas.

Demo-nos conta do assim chamado “Dia da Sobrecarga da Terra” (em inglês The Earth Overshoot Day). Cada ano os organismos que estudam a sustentabilidade do planeta, nos oferecem os dados. Neste ano de 2023 foi identificado no dia 2 de agosto. Isto significa que neste dia, os bens e serviços naturais, essenciais e renováveis para a nossa existência, conheceram o fundo do poço. Logicamente, as árvores, o ar, os solos e as águas estão aí. Mas todos eles cada vez mais minguados, poluídos e insustentáveis.

A Terra, um super ente sistêmico e vivo, ao não nos dar o que lhe exigimos, responde com mais aquecimento, com mais eventos extremos, com mais dizimação da biodiversidade e mais vírus danosos e até letais. A relação toda se define na articulação entre “biocapacidade” e a “pegada ecológica”. A biocapacidade significa a capacidade da natureza de ter resiliência e de se auto-regenerar. A pegada ecológica nos indica o quanto de biocapacidade aquenta aquela região ou país. Quanto mais complexa é a região, com cidades, população e indústrias tanto mais recursos naturais demanda.

Nesse momento, tão grave quanto o aumento do aquecimento global, é a rápida a sobrecarga da Terra. Nosso estilo de vida está esgotando o estoque de bens e serviços necessários para a vida. Urge mudar nosso estilo de consumo tornando-o sóbrio, solidário e autolimitado. Xi Jinping propôs para toda a China o ideal de uma “sociedade suficientemente abastecida”. Devemos aprender a viver com o suficiente e o decente, diminuir o consumo de energia e buscar meios de transporte alternativos e menos poluentes.

Se não fizermos este acordo entre todos, nossa existência nesse planeta será miserável e até impossível.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra (Vozes)

Concorrência e cooperação

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes competições entre todos os agentes econômicos, políticos e sociais, onde a concorrência se transformou na tônica da sociedade contemporânea, neste ambiente, marcado pelo incremento do individualismo, do imediatismo e na busca frenética pelos ganhos monetários, percebemos que a sociedade vem perdendo valores fundamentais para a construção de uma sociabilidade mais consistente, abandonando a solidariedade, a compaixão, a honestidade, a lealdade e a harmonia. A ausência destes valores civilizacionais está no centro das dificuldades da sociedade contemporânea, que estimula a malandragem, o ódio, o ressentimento, a exclusão e a violência que crassa a sociedade.

A estrutura produtiva estimula a competição como espaço de desenvolvimento e como forma de crescimento econômico, acreditando que a concorrência entre todos os atores econômicos faz com que a comunidade se desenvolva, as estruturas econômicas cresçam, melhorando as condições sociais e criando oportunidades para os indivíduos, garantindo novos horizontes para os seres humanos.

A competição entre os atores econômicos pode ser muito positiva para a sociedade, garantindo que todos os indivíduos mostrem todas as suas potencialidades, garantindo espaços para os crescimentos individual e coletivo. O grande problema desta concorrência constante ou deste incremento da competição nesta sociedade é que, numa comunidade altamente desigual e com a ausência de oportunidades para uma parte substancial da sociedade, esta competição crescente acaba degradando as estruturas sociais, econômicas e políticas, gerando cada vez mais exclusões, fomentando desigualdades que caracterizam a sociedade contemporânea, elevando as violências, os medos e as desesperanças.

A concorrência e a competição que caracterizam a sociedade mundial, deveriam estimular a cooperação dos agentes econômicos e sociais, levando-os a trabalharem para reduzir os desequilíbrios na sociedade global, somando esforços para combater o aquecimento global, levando as nações e as comunidades, de todas as vertentes culturais , a colaborarem para acabar com os conflitos militares que geram constrangimentos para todas as regiões, levando a milhões de mortos, destruições na infraestrutura das nações, afastando familiares e criando rancores e ressentimentos.

A globalização da economia criou novos instrumentos de integração entre as nações, o desenvolvimento da tecnologia fortaleceu os processos de interligação entre as comunidades, criando espaços de solidariedade, fortalecendo a harmonia entre as nações mas, percebemos que o crescimento desta competição desenfreada está degradando muitas nações, criando uma concorrência constante, estimulando o individualismo e as incertezas sociais, adoramos o mercado de consumo globalizado marcado por altas tecnologias disruptivas mas, ao mesmo tempo, rechaçamos as mudanças no mundo do trabalho, que fortalecem empregos temporários, com ausência de benefícios sociais e ocupações precarizadas.

A cooperação pode abrir novos horizontes para a comunidade internacional, levando as nações mais desenvolvidas a adotarem políticas de inclusão e de desenvolvimento, respeitando a sustentabilidade e o respeito ao meio ambiente, além de rejeitar os conflitos militares cujas destruições degradam as relações entre as nações, levando os países a respeitar a soberania entre os povos e apagando das memórias recentes de exploração constantes, que contribuíram na construção de um hiato crescente entre países desenvolvidos e nações paupérrimas, onde a concorrência e a competição desigual foi o instrumento para angariar seus enriquecimentos em detrimento da degradação, das desigualdades e das desesperanças entre os países que convivem perpetuamente com condições indignas.

Cooperar deve ser o verbo utilizado para a melhoria da sociedade internacional contemporânea, desta forma, poderemos construir novas bases para a sociedade mundial, onde os valores imediatistas e individualistas devem ser reescritos para os desafios do mundo contemporâneo. Os desafios são elevados e os valores prescindem, urgentemente, de cooperação, respeito e solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Criptomoedas (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.