A história do impeachment de Dilma, por Samuel Pessoa.

0

Segundo Limongi, com erros e acertos, Dilma fez política, mas não silenciou a Lava Jato

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 21/05/2023

Fernando Limongi, professor titular de ciência política da FFLCH da USP e professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, lançou na sexta-feira (19), pela editora Todavia, “Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato”, com a narrativa dos fatos históricos que geraram o impeachment de Dilma, votado na Câmara em 17 de abril de 2016 e no Senado em 31 de agosto.

Limongi, quase que obsessivamente, nos presta um serviço público: por meio de uma narrativa fluente e enxuta em 168 páginas, acompanhamos em ritmo de thriller a sequência detalhada dos fatos. Todas as referências às notícias da imprensa da época que documentam a reconstituição histórica meticulosa de Limongi estão em 649 notas nas 100 páginas a elas dedicadas em letras pequenas no final do livro.

A edição cuidadosa contém referências bibliográficas e um índice remissivo, que facilita em muito a vida do leitor para recuperar fatos e personagens.

A tese principal do livro, sugerida pela reconstituição dos fatos, é que o impeachment de Dilma foi totalmente diferente do de Collor. Se neste o quarteto crise econômica, povo na rua, falta de articulação política e ocorrência de todos esses fatos no início do mandato explica o impeachment, não é o mesmo caso para Dilma.

Dilma conseguiu por pelo menos duas vezes recentralizar seu governo. Em setembro de 2015, após o MBL dispensar os serviços de Ives Granda Martins e “bater à porta de Hélio Bicudo” —que, assessorado pela também jurista Janaina Paschoal, preparou um novo pedido—, Dilma promoveu uma reforma ministerial. O PMDB recebeu duas pastas adicionais —Saúde, para o deputado do Piauí Marcelo Castro, e Ciência e Tecnologia, para o deputado do Rio de Janeiro Celso Pansera.

Como escreveu Limongi, “a reforma ministerial, portanto, marcou a reaproximação de Dilma e Lula, responsável direto pela reaproximação bem-sucedida com o grupo de Jorge Picciani”.

No segundo momento, no início de 2016, em seguida ao Supremo ter, em dezembro de 2015, derrubado o rito estabelecido pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, deixando o processo em suspenso até fevereiro de 2016, houve o afastamento das principais lideranças políticas do impeachment.

Como escreveu Limongi, “o clima político era outro. O impeachment havia saído da pauta. Tudo indicava que o calendário eleitoral seria seguido”.

Nesse momento, voltou-se a tratar da agenda econômica. O governo, por meio do ministro Nelson Barbosa, ensaiou uma reforma da Previdência e um teto de gastos.

Nesse momento de distensão, a Laca Jato contra-ataca. Primeiro com a Operação Acarajé, em 22 de fevereiro, com 51 mandados, entre eles o de prisão para o marqueteiro de Dilma, João Santana. E, em seguida, em 4 de março, com a Operação Aletheia, com o mandado de condução coercitiva de Lula.

Esses movimentos da Justiça deixaram claro para os políticos que a Operação Lava Jato não iria ficar somente nos executivos das empresas nem somente nos políticos petistas. Iria alcançar a todos eles. Em uma ação de salvamento desesperada, o impeachment foi a saída que os políticos encontraram para tentar “estancar a sangria” promovida por Curitiba e pela Procuradoria-Geral da República na pessoa do procurador Rodrigo Janot.

Se entendi corretamente, essa é a narrativa de Limongi. E é nesse sentido que o impeachment de Dilma seria intrinsicamente distinto do de Collor: com erros e acertos, Dilma fez política. O que ela não conseguiu entregar foi o silenciamento da Lava Jato, aliás, produto que Temer também não entregou.

Adicionalmente, o fato de que, após sete anos do impedimento de Dilma, os políticos não se movimentaram para alterar a lei de impeachment de 1950, uma simples lei ordinária, sinaliza que a classe política gosta de ter à mão esse “remédio amargo” de solução de crises políticas agudas.

Indústria, volver. Por Paulo Feldmann

0

Seria irresponsável não investir em biotecnologia, genética e ciências da vida

Paulo Feldmann, Professor de economia da USP, é pesquisador na área de política industrial da Universidade Fudan (China)

Folha de São Paulo, 18/05/2023

A experiência internacional demonstra que é muito raro um país emergente conseguir dar um salto e livrar-se das armadilhas que o prendem ao atraso. Os casos de sucesso mais conhecidos são
Japão, Coréia do Sul e China. Todos têm em comum o foco na indústria: criaram condições para avançar na manufatura e deixaram a condição de países voltados para a produção de commodities.

Interessante observar que, com o Brasil, aconteceu o contrário. Nos anos 1980, estávamos entre os oito maiores produtores industriais do mundo. Éramos um país com uma incrível diversificação industrial. Sabíamos produzir quase tudo, incluindo aviões, computadores, vacinas, qualquer produto eletrônico e seus componentes, como semicondutores. Claro que alguns desses produtos eram mais caros que os análogos feitos em outros países e, por vezes, a qualidade era sofrível —o que gerava muitas críticas.

E nesse clima, em 1989, foi eleito um presidente da República, Fernando Collor, cuja campanha eleitoral criticava a qualidade de nossos produtos, inclusive classificando os automóveis aqui produzidos de “carroças”.

Collor alegava que o produto nacional não prestava, pois não era exposto à competição internacional. O que se dizia à época é que, na medida que o produto brasileiro fosse obrigado a competir com o estrangeiro, sua competitividade melhoraria, e a indústria brasileira iria evoluir em qualidade e sofisticação —e os preços cairiam.

Passados pouco mais de 30 anos, sabemos que retrocedemos. Hoje não estamos nem entre os 17 principais produtores industriais do mundo, e a manufatura, que era a quarta parte do nosso PIB naquela época, atualmente não representa nem 9%.

O fato é que estamos nos tornando, novamente, um país agrícola. Pior: baseado em dados do Banco Mundial, o professor José Oreiro, da Universidade de Brasília, aponta que a desindustrialização mais intensa do mundo ocorreu no Brasil.

O importante é entender qual foi o nosso erro. Evidentemente, não foi simplesmente a abertura das importações, mas sim a forma realizada. O empresário brasileiro não teve tempo para se preparar, pois a abertura foi abrupta, de uma hora para outra. A indústria têxtil, que era altamente exportadora e gerava milhões de empregos, sucumbiu em menos de cinco anos. O mesmo com a de calçados. Se tivessem sido estipulados prazos e condições especiais para que as empresas brasileiras se modernizassem, com oBNDES a oferecer financiamento e crédito, por exemplo, teria sido possível evitar a quebradeira da indústria nacional.

Mas o pior de tudo foi a falta de um plano para o país e de uma estratégia industrial, deficiências que perduram até hoje. Esse plano definiria, para cada segmento da economia, quais as chances de os mesmos avançarem. Concomitantemente, uma avaliação detectaria os setores em que o nosso país teria de fato vocações e habilidades para investimentos —sem despender, assim, tempo e recursos desnecessários.

Para os setores priorizados, há que se começar a formar os respectivos especialistas desde já. A isso se chama política industrial. Há um ano, o presidente dos EUA, Joe Biden, lançou sua proposta: analisou praticamente todos os setores industriais norte-americanos e estabeleceu quais são os mais e os menos prioritários para o desenvolvimento do país nos próximos anos.

Não costumamos planejar nada no Brasil e, por isso, perdemos muitas oportunidades nos mais
diversos setores. Continuar agindo dessa forma seria uma enorme irresponsabilidade, pois poucos países têm uma relação tão íntima com as próximas ondas tecnológicas, como biotecnologia, genética e ciências da vida.

Temos tudo para dar certo, principalmente por conta da nossa riqueza decorrente da biodiversidade da floresta amazônica e do alto nível dos profissionais de algumas áreas ligadas à saúde. Para nos tornarmos protagonistas, precisamos apenas de plano e estratégia. Caso contrário, as empresas privadas não vão se aventurar nessas áreas e não chegaremos a lugar algum —como aconteceu das outras vezes.

Carta Mensal – Abril 2023

0

O mês de abril de 2023 foi marcado por grandes sobre discussões políticas, reflexões sobre diplomacia e questões econômicas, de um lado percebemos uma forte pressão do governo federal para que o Banco Central reduzisse as taxas de juros, cuja Selic está na casa do 13,75%, a maior taxa de juros da economia internacional. As taxas de juros elevadas estão fragilizando a estrutura econômica e produtiva, impactando fortemente os indicadores macroeconômicos, degradando a economia nacional, postergando a recuperação dos investimentos, mantendo elevado as taxas de desemprego e mantendo a renda em declínio.

As taxas de juros elevadas estão gerando endividamento crescente na população, das empresas e variados setores produtivos, com isso, variadas empresas e organizações estão pedindo recuperação judicial, muitas deles estão próximos da bancarrota e, conglomerados gigantescos geradores de milhares de empregos estão percebendo a diminuição de preço de suas ações, um movimento preocupante numa economia que não cresce, sem investimento e fortes instabilidades políticas e sociais.

Neste mês de abril, um dos assuntos mais relevantes foi a viagem do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva para a China, onde foram assinados inúmeros acordos nas mais variadas áreas, desde colaboração econômica, pesquisas energéticas, desenvolvimento da infraestrutura, principalmente setores ligados a transporte público, construção civil, dentre outros acordos.

Essa visita a China gerou graves críticas sobre o presidente Lula, principalmente pela mídia corporativa, criticando a aproximação do Brasil com a potência asiática, que é vista como algo negativo e prejudicial para a economia brasileira, muitos grupos viram a proximidade com a China uma afronta aos Estados Unidos da América, cujos atritos são constantes e tendem a aumentar nos próximos anos, uma luta de hegemonias na comunidade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada pelo forte crescimento da animosidade entre as nações, de um lado os Estados Unidos da América buscam manter seu poderio na sociedade internacional, detentora da mais importante moeda global, o dólar, responsável pela força financeira global.

Do outro lado, a China, uma economia em franco crescimento econômico que, nos anos 1980 estava entre as trinta maiores economias do mundo e, na atualidade, está disputando o primeiro lugar com os EUA, um conflito que tende a perdurar por inúmeros anos. Muitos especialistas acreditam que ao analisar a paridade de poder de compra das moedas, a China já é dona da maior economia global, superando os Estados Unidos.

Neste conflito entre potências que disputam espaços na economia internacional abrem novas oportunidades para as nações em desenvolvimento, como o Brasil. Não precisamos se aliar com uma das nações que buscam a hegemonia, precisamos sim é negociar os melhores caminhos, os países podem conseguir auxílios e transferência de tecnologias e aumentarem os investimentos nestas nações, desde que o governo e a sociedade consiga compreender os desafios contemporâneos, negociando, conversando e buscando parcerias estratégicas.

É importante destacar ainda, que o governo brasileiro está fazendo uma aposta de que as conversações internacionais com variados países podem trazer grandes investimentos estrangeiros, impulsionando a economia e diminuindo as dificuldades produtivas.

As viagens internacionais abrem novos horizontes para atrair novos recursos externos, como as promessas de variadas empresas de investir na economia brasileira, onde destacamos as negociações da empresa chinesa BYD com a Ford para produzir em sua planta industrial em Camaçari que foi encerrada em 2019. Estes investimentos abririam novos espaços de produção para a economia nacional, sabendo que a empresa chinesa é a maior produtora de baterias do mundo, além de variados produtos, como carros, SUVs, trens e ônibus…

Destacamos ainda, no mês de abril, os grandes constrangimentos políticos que o novo governo está passando nas discussões políticas no Congresso Nacional, a busca crescente de uma maioria parlamentar para implementar as propostas discutidas nas eleições estão difíceis, medidas que precisam de aprovação do Legislativo para a recuperação da economia, para angariar novos investimentos para recuperar os indicadores negativos legados pelo governo anterior, como Novo Arcabouço Fiscal que o governo está buscando aprovar como forma de diminuir as restrições do chamado Mercado.

Outro ponto muito discutido no mês de abril foi as questões relativas ao conflito entre Rússia e Ucrânia, que está gerando graves constrangimentos na sociedade internacional, elevando os custos produtivos e aumentando a inflação, principalmente nos alimentos, dos combustíveis, fertilizantes e energias, levando regiões inteiras ao empobrecimento, precarizando as condições sociais e limitando os potenciais econômicos e financeiros das nações.

Tudo isso, contribui para uma animosidade crescente entre os países, levando-os a escolherem lados neste conflito militar, com isso, poucos países refletem sobre a busca crescente pela paz e o fim do conflito militar, cujos custos são elevadíssimos, com milhares de mortos, degradação da infraestrutura e a destruição do futuro de milhões de pessoas.

Destacando ainda, os confrontos gerados pela chamada PL das Fake News, um projeto que gerou graves constrangimentos para a sociedade, uns defendendo uma intervenção mais efetiva sobre as chamadas fake News e outros defendendo uma postura mais superficial, levando várias empresas, grupos políticos e econômicos a se posicionarem, dentre elas o gigante da tecnologia Google e o Telegram, que contribuíram para acirrar os ânimos e seus interesses imediatos.

Outro assunto que devemos destacar, que nos últimos meses, a polarização política está ainda muito elevada na sociedade brasileira, os grupos se digladiam todos os momentos, estimulando notícias falsas, cancelamentos e grosserias crescentes. Nesta seara de discussões ou polarizações políticas, encontramos muitas descobertas que podem gerar graves constrangimentos, investigações e discussões que postergam uma convivência pacífica entre os grupos políticos que podem geram graves na nossa jovem democracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Comércio desigual

0

O processo de globalização da economia aprofundou a interdependência entre as nações, aumentando a integração das estruturas produtivas, aumentando a concorrência entre todos os agentes econômicos, levando as nações a buscarem novos instrumentos de inserção no cenário internacional. Neste novo ambiente econômico, percebemos que os grandes ganhadores desta competição foram as nações asiáticas, principalmente a Coréia do Sul e a China, países que conseguiram dar um salto tecnológico, dominando cadeias produtivas em vários setores, angariando novos investimentos estratégicos, com o crescimento dos dispêndios em educação e um projeto nacional centrado no planejamento do Estado Nacional.

Neste ambiente, essas nações passaram por grandes transformações produtivas, países exportadores de produtos de baixo valor agregado e dependentes de produtos sofisticados foram, paulatinamente, alterando os modelos produtivos, investindo fortemente em capital humano e passaram, num período de quarenta anos, a serem produtores de produtos de alto valor agregado, exportadores de mercadorias sofisticadas e intensivos em tecnologias, com isso, seu capital humano apresentou um incremento salarial, contribuindo para os avanços sociais da sociedade, levando algumas nações a conseguirem acabar com a miséria extrema, melhorando as condições de vida da população e caminhando para a construção de uma nação de renda média, uma transformação pouco vista na história da humanidade num período curto de tempo.

O comércio internacional pode ser visto como um dos instrumentos responsáveis por grandes saltos de desenvolvimento econômico das nações, para isso, esses países investiram fortemente em uma transformação produtiva, canalizando recursos financeiros para a produção, incrementando a produtividade da economia, estimulando a conquista de novos mercados internacionais e fortalecendo as estratégicas diplomáticas para angariar novos parceiros comerciais. Todas estas políticas foram implementadas para angariar novos mercados internacionais, aumentando as exportações, fortalecendo seus setores produtivos e diminuindo a dependência externa de capitais financeiros, na maioria, recursos especulativos que pouco contribuem para o crescimento econômico e geram constrangimentos para as contas externas.

Os países pobres continuam na pobreza porque apresentam grandes limitações estruturais e produtivas, perpetuando sua dependência externa, se eternizando na importação de produtos sofisticados, se concentrando na exportação de produtos primários de baixo valor agregado, com isso, percebemos a perpetuação da dependência dos fluxos financeiros internacionais, que muitas vezes nos levam a manter taxas de juros elevadas para atrair moedas estrangeiras e fechar nossos compromissos financeiros, desta forma criamos uma armadilha que limita nossa soberania nacional.

Numa economia globalizada, como a que vivemos, as nações desenvolvidas estão fortalecendo seus setores produtivos, investindo na sofisticação tecnológica para enfrentar os desafios da sociedade contemporânea, criando riquezas num mundo imaterial como forma de aumentarmos o bem-estar social da população, sem isso, os desequilíbrios tendem a aumentar e intensificar os desajustes internos, levando a desintegração social e conflitos sociais que fragilizam a democracia.

O comércio internacional é um espaço de conflitos constantes, onde os preços das mercadorias são definidos pelos grandes atores econômicos globais. Os grandes conglomerados internacionais trazem em suas retaguardas seus Estados Nacionais, como estamos observando constantemente na sociedade contemporânea, que usam seus instrumentos geopolíticos, sua configuração política e seus instrumentos financeiros como forma de angariar novos espaços de acumulação, além de fragilizar seus competidores e garantir seus lucros crescentes.

Neste cenário, acreditarmos que conseguiremos o desenvolvimento econômico e conquistarmos melhoras sociais para a sociedade enquanto exportadores de produtos primários de baixo valor agregado é mais uma das falácias que continuam em curso da sociedade brasileira. Sem sofisticação tecnológica, sem investimentos maciços em educação e desenvolvimento das vantagens nacionais, continuaremos sobrevivendo numa linha tênue entre a barbárie e o desespero.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Economia e Administração, Especialista da Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/05/2023.

Destruição criativa acelerada dá nova perspectiva à renda básica universal, por Pedro Olinto

0

Impacto social de inteligência artificial e robótica exige atualização de políticas públicas para mitigar problemas e, quem sabe, evitar populismo

Pedro Olinto, Economista sênior do Banco Mundial

Folha de São Paulo, 16/05/2023

O livro “Mortes por Desespero e o Futuro do Capitalismo”, de Anne Case e Angus Deaton, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, aborda como a classe média americana foi prejudicada pelos avanços tecnológicos e pela globalização, levando à desilusão, frustração e até impulsos antidemocráticos que culminaram na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Diante da aceleração da inovação em inteligência artificial e robótica, é fundamental atualizar as políticas públicas para enfrentar efetivamente os impactos sociais dessas mudanças e, quem sabe, mitigar tendências populistas e autoritárias.

O economista austríaco Joseph Schumpeter cunhou o termo “destruição criativa” para descrever o processo em que a inovação e o progresso tecnológico geram ciclos de crescimento e disrupção socioeconômica. No livro “A Segunda Era das Máquinas: Trabalho, Progresso e Prosperidade em uma Era de Tecnologias Brilhantes” (2014), Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee argumentam que o ritmo desses Ciclos Schumpeterianos vem acelerando globalmente em todos os setores.

Diante do avanço da automação e das transformações tecnológicas, é relevante repensar a ética do trabalho convencional e refletir sobre os potenciais benefícios de políticas como a renda básica universal (RBU). No livro “Renda Básica: Uma Proposta Radical para uma Sociedade Livre e uma Economia Sã” (2017), Philippe Van Parijs e Yannick Vanderborght exploram o papel da RBU no enfrentamento dos desafios apresentados pela automação e a aceleração dos Ciclos Schumpeterianos.

Segundo os autores, a RBU possibilitaria a realização de trabalhos mais gratificantes, eliminando a necessidade de se dedicar a atividades repetitivas e monótonas para garantir a subsistência.

Experiências de RBU ao redor do mundo demonstram sua eficácia. Na Finlândia, houve melhoria no bem-estar e saúde mental dos beneficiários. Em Stockton, Califórnia, ao contrário do que muitos temiam, observou-se maior empregabilidade, além da melhora na saúde mental. Em Ontário, os participantes tiveram maior estabilidade financeira e buscaram mais educação e treinamento profissional. No Quênia, o projeto GiveDirecly resultou em aumento do consumo, investimento em educação e saúde e melhor bem-estar psicológico.

Programas focalizados como o Bolsa Família são mais baratos, mas demandam um processo burocrático para a seleção de beneficiários, o que pode ser contraproducente em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e em crises que exigem resposta rápida, como durante a recente pandemia. Em contrapartida, a RBU oferece uma rede de segurança constante que não requer ativação a cada disrupção ou crise econômica aguda. Além disso, a RBU pode se tornar mais focalizada se combinada com um imposto de renda mais progressivo.

A aceleração dos Ciclos Schumpeterianos também tem implicações para as políticas educacionais. É necessário preparar os jovens para um mercado de trabalho em constante evolução. Avanços tecnológicos aumentam o risco de obsolescência do capital humano e geram maior incerteza sobre as perspectivas de carreira. Um estudo da Deloitte projeta que, ao longo dos próximos 15 anos, a demanda por advogados nos Estados Unidos sofrerá uma redução de 10% em decorrência da inteligência artificial.

Para enfrentar esse desafio, é crucial promover a aprendizagem ao longo da vida e o desenvolvimento de habilidades transferíveis, incluindo adaptabilidade, pensamento crítico, criatividade e capacidade de resolução de problemas.

Os Ciclos Schumpeterianos tendem a se acelerar no futuro, tornando-se essencial repensar as políticas de educação e transferência de renda desde já. Fomentando a adaptabilidade, incentivando a aprendizagem contínua ao longo da vida e elaborando políticas de transferências, como a Renda Básica Universal (RBU), é possível construir uma sociedade mais resiliente em um mundo em constante transformação e, talvez, prevenir o fortalecimento de movimentos antidemocráticos.

Concentração de riqueza e evasão fiscal, por Thomas Piketty,

0

A crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico do mundo

Alegrem-se: a American Economic Association (AEA), principal organização profissional para economistas nos Estados Unidos, acaba de conceder a Medalha Clark a Gabriel Zucman por seu trabalho sobre concentração de riqueza e evasão fiscal. Concedido anualmente a um laureado com menos de 40 anos, a distinção recompensa notavelmente o trabalho inovador que demonstra a considerável importância da evasão fiscal por parte dos ricos, inclusive nos países escandinavos, que são rapidamente considerados modelos de virtude.

Dotado de uma imensa capacidade de trabalho, uma rara atenção aos detalhes e um talento inigualável para desenterrar novos dados e fazê-los falar, Gabriel Zucman também revelou a dimensão insuspeita da evasão do imposto de renda de empresas por multinacionais de todos os países.

Hoje diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, ele dedica a mesma energia para encontrar soluções para os males que documenta. Num dos seus primeiros relatórios,[1] o Observatório demonstrou que os Estados-membros da União Europeia podiam optar por ir mais longe do que a taxa mínima de 15% fixada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (demasiado baixa e amplamente contornada), sem esperar pela unanimidade. Ao impor a cada multinacional que pretenda exportar bens e serviços uma taxa de 25% sobre os seus lucros – a mesma que pagam os produtores estabelecidos em território nacional – a França obteria uma receita adicional de 26 bilhões de euros e encorajaria outros países a fazer o mesmo.

O fato da American Economic Association optar por premiar esse trabalho é importante, porque mostra que o coração da profissão começa a se dar conta da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal. Não exageremos: os economistas sempre foram menos monolíticos do que às vezes se imagina, inclusive nos Estados Unidos. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, optou por dedicar seu “discurso presidencial” à questão das desigualdades.

Ele explica sem rodeios aos colegas que a crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico da América, que corre o risco, se não tomarmos cuidado, de se tornar tão desigual quanto a velha Europa (então percebida como oligárquica e contrária ao espírito norte-americano). Irving Fisher mostra-se perplexo com as estimativas publicadas em 1915 por Willford King de que “2% da população possuem mais de 50% da riqueza” e que “dois terços da população possuem quase nada”, o que lhe sugere “uma distribuição não democrática da riqueza” ameaçando os próprios alicerces da sociedade norte-americana.

Victory tax

É nesse contexto que os Estados Unidos aplicaram de 1918-1920 (sob o mandato do presidente democrata Wilson) taxas superiores a 70% no topo da hierarquia de renda, antes de todos os outros países. Quando Franklin D. Roosevelt foi eleito em 1932, o terreno intelectual já estava preparado há muito para a implementação da progressividade tributária em larga escala, com o famoso Victory tax (Imposto da Vitória) de 88% em 1942 e 94% em 1944. Os Estados Unidos aplicarão taxas semelhantes na Alemanha e Japão: no espírito da época, essas instituições tributárias foram vistas como um complemento indispensável das instituições democráticas, caso contrário estas corriam o risco de cair em uma deriva plutocrática.

Essas lições infelizmente foram esquecidas, e os Estados Unidos e grande parte do mundo entraram, desde as décadas de 1980 e 1990, em uma nova espiral oligárquica. Certamente seria um exagero jogar toda a responsabilidade sobre os economistas. Se a contra-ofensiva lançada nos anos 1960 e 1970 por Milton Friedman ou Friedrich Hayek conseguiu dar frutos, é também pela falta de apropriação coletiva das instituições do New Deal por parte dos cidadãos e do movimento social e trabalhista.

A batalha intelectual também foi travada nos departamentos de filosofia: quando John Rawls publicou sua Teoria da Justiça em 1971, lançou as bases conceituais de um ambicioso programa igualitário, mas permaneceu relativamente abstrato em suas saídas práticas. Ao mesmo tempo, Milton Friedman e Friedrich Hayek são perfeitamente específicos sobre seu objetivo de demolição da progressividade tributária.

Desregulamentação e liberalização

O fato é que os economistas têm uma responsabilidade particular no movimento de desregulamentação e liberalização das últimas décadas. Há, claro, os efeitos ligados à busca por financiamento privado, que vira os comentários à direita. Em 2016, quando os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren endossaram propostas ousadas de imposto sobre a riqueza (com taxas subindo de 6% a 8% ao ano acima de US$ 1 bilhão), o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e presidente de Harvard, Larry Summers – grande defensor da liberalização absoluta dos fluxos de capital – quase se estrangula e não hesita em atacar violentamente pesquisadores como Gabriel Zucman que defendem essas propostas (que, no entanto, são simples senso comum, dadas as alíquotas quase zero do imposto de renda pago pelos bilionários) .

Existem também razões estritamente intelectuais ligadas à evolução da disciplina de economia. Para dar a si mesma um fascínio científico autônomo, a economia tendeu a se isolar da história e da sociologia e a naturalizar as instituições estudadas (mercado, propriedade, competição), esquecendo no processo seu enquadramento social e político em sociedades particulares.

Os modelos matemáticos podem ser úteis se forem usados com sabedoria e não como um fim em si mesmos. A técnica estatística pode ser utilizada desde que não se perca de vista o olhar crítico sobre as fontes e categorias. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a economia política e histórica recupere seu lugar de direito no interior das ciências sociais.

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

O colapso atual da ética, por Leonardo Boff

0

Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 12/05/2023

A globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade atingem o coração da ética

Vivemos e sofremos no Brasil tempos sombrios sob o governo de Jair Bolsonaro, onde a ética foi enviada ao limbo e tudo praticamente valia (as fake news, as mentiras, a pregação da violência e a exaltação da tortura). Nos dias atuais assistimos, desolados, a guerra Rússia-Ucrânia. Esta guerra representa a negação de todos os valores civilizatórios, pois uma grande potência nuclear está literalmente destruindo uma pequena nação e seu povo.

Sem perder de vista os dois dados acima referidos, percebo dois fatores principais, entre outros, que atingem o coração da ética: a globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade.

A mundialização do capitalismo, como modo de produção e sua expressão política, o neoliberalismo mostrou as consequências perversas da ética capitalista: seus eixos estruturantes são o lucro ilimitado, acumulado individualmente ou por grandes corporações, a concorrência desenfreada, o assalto aos bens e serviços da natureza, a flexibilização das leis e a redução ao mínimo do Estado em sua função de garantir uma sociedade equilibrada. Tal ética é altamente conflitiva porque não conhece a solidariedade, mas a concorrência que faz de todos adversários, senão inimigos a serem vencidos.

Bem diferente, por exemplo, é a ética da cultura maia. Esta coloca tudo centrado no coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético é criar em todas as pessoas corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos andinos, assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo.

A globalização, inter-relacionando todas as culturas, acabou também por revelar a pluralidade dos caminhos éticos. Uma de suas consequências está sendo a relativização generalidade dos valores éticos. Sabemos que a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental, são os pré-requisitos para qualquer civilização em qualquer parte do mundo.

O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tamanho é o descalabro ético que estamos vendo.

O segundo grande empecilho à ética é mercantilização da sociedade, aquilo que Karl Polaniy chamava já em 1944 de A grande transformação. É o fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade puramente de mercado.

Tudo se transforma em mercadoria, coisa já prevista por Karl Marx em seu livro A miséria da filosofia, de 1848, quando se referia ao tempo em que as coisas mais sagradas como a verdade e a consciência seriam levadas ao mercado; seria um “tempo da grande corrupção e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo.

A economia especialmente a especulativa dita os rumos da política e da sociedade como um todo que se caracteriza pela geração de um profundo fosso entre os poucos ricos e as grandes maiorias empobrecidas. Aqui se revelam traços de barbárie e de crueldade como poucas vezes na história.

Qual é a ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na mesma Casa Comum? É aquela ética que se enraiza naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja universal e possa ser assumida por todos.

Estimo que que em primeiríssimo lugar é a “ética do cuidado”. Consoante a fabula 220 do escravo Higino, bem interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo e detalhada por mim em Saber cuidar, constitui o substrato ontológico do ser humano, valer dizer, aquele conjunto de fatores objetivos sem os quais jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos.

Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vivê-lo e dar-lhe formas concretas, segundo as diferentes culturas. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a competição. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser bio-sócio-centrada.

Outro dado de nossa essência humana é a “solidariedade” e a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pelo bioantropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropóides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem, continua sendo-o ainda hoje.

Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade, é a “ética da responsabilidade universal”. Ser responsável é dar-se conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos pessoais e sociais. Ou assumimos juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida.

O filosofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou O princípio responsabilidade, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começarem a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico.

Importa também resgatar a “ética da justiça” para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa: dignidade e respeito. Especialmente as instituições devem ser justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente no Brasil, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo, mas daquelas elites endinheiradas que não aceitam o direito para todos mas querem preservar seus privilégios.

A justiça não vale apenas entre os humanos, mas também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos e, por isso, devem ser incluídas em nosso conceito de democracia sócio-ecológica.

Por fim, devemos incorporar uma “ética da sobriedade compartida” para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China “uma sociedade moderadamente abastecida”. Isto significa um ideal mínimo e alcançável.

Estes são alguns parâmetros fundamentais para uma ética, válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Caso contrário poderemos conhecer um Armagedon social e ecológico.

*Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Como cuidar da Casa Comum (Vozes).

Desenvolvimento, fenômeno microeconômico, por Samuel Pessoa

0

Se os incentivos não estiverem corretos, a política não funcionará

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 14/05/2023.

O evento econômico mais impactante no século 20 foi a Grande Depressão. Por anos a economia americana conviveu com taxas de desemprego maiores do que 20%.

Em 1936, Keynes revolucionou a economia. Criou um novo campo, a macroeconomia, e estabeleceu as políticas que tirariam as economias daquele equilíbrio ruim. Bastavam políticas fiscal e monetária expansionistas. Solução bem simples.

Como escreveu Krugman no prefácio da edição comemorativa aos 70 anos da publicação da Teoria Geral, a obra magna de Keynes, “Keynes estava certo sobre o problema de sua época: a economia mundial apesentava problema no seu alternador, e tudo o que era necessário fazer para a economia funcionar novamente era um conserto surpreendentemente simples”.

Keynes se deparou com talvez o único problema complexo em ciência social que tinha uma solução simples.

O sucesso do pensamento keynesiano foi tão avassalador que, ao longo de décadas, desde o pós-guerra até os anos 1980, a academia procurou soluções “keynesianas” –isto é, uma correção técnica e delimitada– para o problema do subdesenvolvimento. O diagnóstico era que o subdesenvolvimento, assim como o equilíbrio de uma economia com desemprego aberto, era fruto de uma falha de mercado muito aguda, associada a um grave problema de coordenação. Em geral, algo faltava e o planejamento econômico tinha que prover este algo.

O primeiro candidato foi o capital físico. Por décadas o Banco Mundial calibrava seu programa de ajuda para o desenvolvimento das economias mais pobres a partir da quantidade de capital requerida para atingir uma meta de crescimento econômico. O banco ofertava o capital. A longa experiência é que o crescimento nunca vinha. Em geral virava corrupção e guerra.

Tentou-se com educação e o problema neste caso é que colocar criança na escola não é garantia de aprendizado, como sabemos muito bem. E assim sucessivamente. Algo faltava. Vamos ofertar. Ofertava-se e o resultado não aparecia. Esta história é bem contada por William Easterly em “O espetáculo do crescimento”, de 2004.

A partir dos anos 1980, muito influenciada pelo novo institucionalismo, liderado pelo historiador Douglass North, a academia passou a enxergar o desenvolvimento essencialmente como um problema de governança, isto é, um problema de alinhamentos de incentivos.

Infelizmente, esse aprendizado não tem chegado por aqui. No ciclo petista passado, o diagnóstico foi de que subdesenvolvimento era falta de coisas. Não temos uma indústria naval? Tome BNDES e subsídio para construir uma indústria naval. Ninguém se pergunta os motivos de não termos uma indústria naval e o que fazer para termos uma indústria naval sustentável.

Aparentemente, o novo governo vai pelo mesmo caminho. As palavras mágicas passaram a ser os setores de transição energética e da indústria ligada à saúde, em função da experiência recente com a pandemia, entre outros itens.

Tudo sugere, portanto, que o diagnóstico é de que os erros do ciclo anterior foram essencialmente de foco. Priorizaram-se os setores errados. Não se pergunta se a governança das políticas adotadas estava correta.

Se os incentivos não estiverem corretos, independentemente de se priorizar este ou aquele setor, a política não funcionará. O sucesso da política depende de o foco estar correto e de o desenho microeconômico alinhar incentivos privados com os sociais.

Nada indica que houve esse aprendizado. Voltaremos a apertar os botões do ativismo desenvolvimentista e a desperdiçar escassos recursos públicos.

A lenta colisão EUA-China, por Nouriel Roubini

0

Nouriel Roubini – A Terra é Redonda – 09/05/2023

Os dois países permanecem em rota de colisão e um perigoso aprofundamento da “depressão geopolítica” em curso é quase inevitável

Recentemente, participei do Fórum de Desenvolvimento da China (FDC) em Pequim, um encontro anual de líderes empresariais estrangeiros, acadêmicos, ex-legisladores e altos funcionários chineses. A conferência deste ano foi a primeira a ser realizada pessoalmente desde 2019 e ofereceu aos observadores ocidentais a oportunidade de conhecer a nova liderança sênior da China, incluindo o novo primeiro-ministro Li Qiang.

O evento também ofereceu a Li Qiang a sua primeira oportunidade de se envolver com representantes estrangeiros desde que assumiu o cargo. Embora muito tenha sido dito sobre ter o presidente chinês Xi Jinping nomeado partidários próximos para cargos cruciais dentro do Partido Comunista da China e do governo, nossas discussões com Li Qiang e outras autoridades chinesas de alto escalão ofereceram uma visão mais sutil de suas políticas e estilo de liderança.

Antes de se tornar primeiro-ministro em março, Li Qiang atuou como secretário do PCCh em Xangai.

Como reformador econômico e proponente do empreendedorismo privado, ele desempenhou um papel crucial em convencer a Tesla a construir uma megafábrica na cidade. Durante a pandemia de COVID-19, ele aplicou a estrita política zero-COVID de Xi Jinping e supervisionou um bloqueio de Xangai por dois meses.

Felizmente para Li Qiang, ele foi recompensado por sua lealdade e não transformado em bode expiatório pelo fracasso da política. Seu relacionamento próximo com Xi Jinping também lhe permitiu convencer o presidente chinês a reverter as restrições zero-COVID durante a noite, pois essa política provou ser insustentável. Durante nossa reunião, Li Qiang reiterou o compromisso da China com a “reforma e abertura”, uma mensagem que outros líderes chineses também transmitiram.

A sagacidade notável de Li Qiang contrastava fortemente com o comportamento mais reservado do ex-primeiro-ministro Li Keqiang, que conhecemos nos anos anteriores, quando ele era primeiro-ministro. Durante nossa reunião, ele fez o CEO da Apple, Tim Cook, rir alto ao atribuir seu humor alegre ao vídeo viral de Cook sendo aplaudido pela multidão durante sua visita a uma loja da Apple em Pequim.

Ele até brincou sobre um vídeo de legisladores dos EUA interrogando o CEO da TikTok, Shou Zi Chew, que também se tornou viral naquela semana. Ao contrário de Cook, ele observou, o sitiado chefe do TikTok não estava sorrindo durante sua audiência no Congresso. A piada de Li Qiang incluía uma advertência implícita de que, embora as empresas americanas ainda sejam bem-vindas na China, o governo chinês pode jogar duro se suas empresas e interesses forem tratados duramente nos Estados Unidos.

A ameaça velada de Li Qiang captura a atual atitude chinesa em relação aos EUA. Embora os principais formuladores de políticas econômicas na China frequentemente falem sobre a abertura, as políticas da China ainda priorizam a segurança e o controle sobre a reforma. Qin Gang, o novo ministro das Relações Exteriores da China, adotou uma postura dura durante seu discurso no FDC.

Dando um golpe implícito nos EUA, Qin Gang alertou os participantes ocidentais que, embora a China pretenda manter um regime de comércio global aberto, o país responderia com força a qualquer tentativa de arrastá-lo para uma nova guerra fria.

Em um discurso recente, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, procurou aliviar as preocupações da China de que os EUA estão tentando “conter” sua ascensão, separando também as duas economias. As recentes ações americanas que limitam o comércio com a China, ela esclareceu, foram baseadas em preocupações de segurança nacional – e não em um esforço para impedir o crescimento econômico do país.

Mas preservar a relação com a China será difícil para os Estados Unidos já que planeja introduzir restrições de longo alcance aos investimentos chineses nos EUA e aos investimentos dos EUA na China. Até o momento, as autoridades chinesas não foram receptivas aos esforços de Janet Yellen e do secretário de Estado, Antony Blinken, para estabelecer um diálogo sobre como maximizar a cooperação, minimizar as áreas de confronto e administrar a crescente competição estratégica e rivalidade entre as duas potências.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez recentemente um discurso igualmente pragmático no qual argumentou que a Europa deveria “focar na redução de riscos em vez de se separar” da China, mas também enfatizou as muitas maneiras pelas quais as políticas chinesas representam uma ameaça à Europa e ao Ocidente. O seu discurso não foi bem recebido em Pequim e ela foi efetivamente desprezada quando visitou a China com o presidente francês Emmanuel Macron em abril. O mais complacente Emmanuel Macron, entretanto, recebeu um tapete vermelho de boas-vindas.

A China está atualmente tentando criar uma barreira entre a União Europeia e os EUA. Dado que as empresas sediadas na União Europeia têm interesses significativos na China, muitos CEOs europeus compareceram ao Fórum (FDC), em contraste com a presença limitada de líderes empresariais americanos. E os comentários polêmicos de Emmanuel Macron durante sua visita em abril,
particularmente sua declaração de que a Europa não deve se tornar um “vassalo” dos EUA, sugeriram que o esforço pode ter dado certo. Mas um comunicado subsequente do G7 reafirmou a posição do Ocidente sobre Taiwan e condenou as políticas agressivas da China em relação à ilha, e o apoio tácito da China à invasão brutal da Rússia na Ucrânia provavelmente impedirá a Europa de sucumbir a uma ofensiva de charme.

A corrida para a eleição presidencial dos EUA, juntamente com a suspeita da China de qu
e os EUA estão tentando conter seu crescimento econômico, impedirá os esforços para construir confiança e diminuir as tensões entre os dois países. Com democratas e republicanos competindo para serem vistos como duros com a China, a guerra fria sino-americana provavelmente se intensificará, aumentando o risco de uma eventual guerra quente sobre Taiwan.

Apesar dos esforços das autoridades americanas para estabelecer barreiras para a competição estratégica com a China e da insistência das autoridades chinesas de que não têm interesse em dissociação econômica, as perspectivas de cooperação parecem cada vez mais remotas. A fragmentação e a dissociação estão se tornando o novo normal, os dois países permanecem em rota de colisão e um perigoso aprofundamento da “depressão geopolítica” em curso é quase inevitável.

*Nouriel Roubini é professor de economia na Stern School of Business da New York University. Autor, entre outros livros, de MegaThreats: ten dangerous trends that imperil our future (Little, Brown and Company).

Novos Desafios

0

Vivemos numa sociedade integrada, interdependente e fortemente concorrencial, marcada por grandes transformações em todas as áreas e setores, com novos modelos de negócios, novas formas de acumulação econômica, alterações no mundo do trabalho, com fortes exigências de qualificação, com capacitação constante e medos crescentes das novas tecnologias, como a inteligência artificial, que abre novos horizontes para o mundo do trabalho, das comunicações e geram calafrios para os trabalhadores, principalmente aqueles que carecem de qualificação.

Neste cenário de fortes transformações constantes, percebemos que as nações estão se movimentando rapidamente para compreenderem os novos rumos e os novos desafios da economia contemporânea. Percebemos o nascimento de uma nova sociedade impulsionada pelo período pós-pandêmico, os novos negócios que estão crescendo rapidamente, as qualificações demandadas na sociedade global, os novos valores da comunidade, neste cenário, são imprescindíveis repensarmos a educação, o conhecimento, a ciência e a pesquisa científica, sua importância como um instrumento de conscientização social e fortalecimento político, na chamada Quarta Revolução Industrial.

No momento atual necessitamos de políticas públicas ousadas e inovadoras, lideranças capacitadas para compreenderem os desafios da sociedade contemporânea, que consigam compreender a importância da educação, com investimentos maciços em energias alternativas, fortalecendo a sustentabilidade, priorizando uma reindustrialização da economia, incentivando novas estruturas industriais, deixando de lado investimentos em energias poluidoras, revendo as isenções fiscais e financeiras que poucos benefícios trazem para a sociedade nacional e servem apenas para engordar os grandes conglomerados econômicos em detrimento da sociedade nacional.

Vivemos num momento que caminha a passos largos para uma sociedade multipolar, onde encontramos polos antagônicos que se digladiam para aumentar seus instrumentos de poder e de influência, neste momento, percebemos que a liderança prescinde de uma nova visão geopolítica, observando os contendores, seus interesses e sua capacidade de negociação, seus recursos disponíveis e a disponibilidade de negociação, vislumbrando interesses nacionais, deixando de lado uma visão subalterna, de subserviência e que contribuem para perpetuar nosso subdesenvolvimento.

Os desafios contemporâneos não são apenas econômicos, somos bombardeados por desafios sociais, políticos e culturais. Esses desafios estão presentes em todas as regiões do mundo, todas as nações sentem na pele que os momentos são desafiadores, exigindo uma união constante entre todos os grupos sociais, deixando de lado seus interesses imediatos em prol de uma sociedade mais consciente, mais equilibrada e centrada em valores mais democráticos e republicanos. Nos últimos anos estamos cultivando conflitos variados, estamos degradando nossa estrutura econômica e produtiva, mantendo e incentivando taxas de juros proibitivas que garantem altos lucros financeiros para setores rentistas e financistas que pouco trazem benefícios para a sociedade nacional. Estamos nos degradando politicamente com uma sociedade fortemente polarizada e destrutiva, cada um dos contendores esforça para gritar mais alto e reverberar sua insanidade, deixando de lado uma sociedade em franca decadência, vivendo de migalhas e esmolas de grupos que motivam estas polarizações e enchem seus bolsos com a degradação da sociedade nacional.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades da sociedade mundial, está na hora de refletirmos sobre a fala do grande físico Albert Einstein: “Fazer todos os dias, as mesmas coisas e esperar resultados diferentes é a maior prova de insanidade”. Nos últimos quarenta anos estamos fazendo o mesmo discurso econômico, arrocho salarial, austeridade fiscal, abertura econômica, privatização, desindustrialização, desestímulo a produção e o incentivo crescente do rentismo e da agiotagem, dessa forma a nossa economia perdeu o rumo, nossa dívida social aumentou e nossas perspectivas de sucessos ficaram para trás. Será que, como disse Albert Einstein, somos prova de insanidade?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/05/2023.

Pochmann: Como a Selic deforma o trabalho

0

Os juros muito altos do BC convidam os capitalistas a multiplicar sua riqueza sem produzir. A taxa de investimentos despenca. A indústria e os serviços não se modernizam. Resultado: desemprego e trabalho cada vez mais arcaico e precário

Marcio Pochmann – Outras Palavras – 03/05/2023

Nem sempre as discussões em torno da definição da taxa básica de juros (Selic) e da condução da política monetária consideram os seus efeitos de curto e longo prazo em todas as atividades econômicas, bem como as consequências para o mundo do trabalho. Assim como juros elevados asfixiam o consumo e o investimento produtivo, potencializando ganhos financeiros especulativos e alimentando o rentismo improdutivo, a quantidade e qualidade das ocupações da mão de obra são negativamente atingidas.

Isso porque o trabalho mantém uma relação direta e de intensa tensão com o processo de acumulação de capital, tal qual o binômio Casa-Grande & Senzala, formulado por Gilberto Freyre – algo inseparável, ainda que em oposição, e mesmo que diferente e assimétrico, mantém-se interligado implícita e profundamente um ao outro.

No caso do capital e o trabalho, a relação é inconteste. Se, de um lado, o uso quantitativo do trabalho se encontra associado ao dinamismo econômico, de outro, o grau de sua exploração pelo capital gera profundo e contínuo questionamento por quem trabalha.

Na formulação geral da transformação do dinheiro em capital apresentada por K. Marx (O capital: crítica da economia política), por exemplo, o trabalho encontra a sua forma ou deformação estabelecida. Pela concepção marxista, a conversão do dinheiro em mercadoria e a sua reconversão pelo comércio da mercadoria em mais dinheiro (D-M-D’) constitui o movimento no tempo pelo qual o dinheiro se torna capital.

É para isso que a metamorfose do dinheiro em mercadoria conduzida pelo emprego da forma trabalho assalariado gera valor que se converte em lucro tensionado pela necessidade do pagamento de salário e de outros custos de produção. Do contrário, prevaleceria a simples circulação de mercadorias, expresso pela mera troca de dinheiro por dinheiro (D-D), sem que a valorização do trabalho se traduzisse em capital.

Mas há outra via pela qual o dinheiro se converte em mais dinheiro (D-D’), definida pela condição do capital fictício que se valoriza abreviado pela ausência da intermediação própria da produção de mercadorias. Diferentemente da gênese do dinheiro a partir da mercadoria como um produto do labor humano (relação entre capital e trabalho), o capital portador de juros permite que o empréstimo de uma soma de dinheiro se reverta em valorização de si mesmo, sem a necessidade de passar pelo processo que inter-relaciona extremos da associação do trabalho com o capital.

Neste cenário econômico, as possibilidades do trabalho ter a forma do emprego assalariado protegido por direitos sociais e trabalhistas, por exemplo, são decrescentes. O que tende a ganhar maior dimensão é a deformação do trabalho, pois distante do assalariamento e das condições de acesso aos direitos sociais e trabalhistas prevalece a precarização de uma população crescentemente sobrante aos requisitos capitalistas.

O trabalho produtivo expressando emprego assalariado protegido se encontra integrado ao processo de acumulação de capital quando a dinâmica da produção de mercadoria cria as condições de sua conversão em lucro. Na situação inversa, quando o processo de acumulação de capital ocorre liderado pela dominância do capital fictício, tende a prevalecer o trabalho improdutivo deformado, posto que se impõe o seu alijamento da dinâmica expansionista da financeirização da riqueza.

Para a realidade brasileira de longo prazo, percebe-se como durante o ciclo da industrialização nacional ocorrido entre as décadas de 1930 e 1980, a dominância do capital produtivo foi acompanhada pela elevação do nível do emprego assalariado protegido. Se, na década de 1940, apenas um a cada dez ocupados tinha trabalho assalariado protegido, nos anos 1980 esta forma aproximou-se de dois terços do total da ocupação nacional.

Desde os anos 1990, contudo, o ingresso passivo e subordinado na globalização tornou o capital financeiro dominante no processo de acumulação capitalista no país. A estagnação da renda por habitante indicou os constrangimentos pelos quais a forma trabalho assentada no emprego assalariado protegido passou a conviver.

No seu lugar emergiu o trabalho sem forma, ou melhor, a deformação do trabalho expressa pela variedade de atividades improdutivas aos requisitos capitalistas de produção. Sob a liderança do capital financeiro, os obstáculos à produção se impuseram, com a estagnação do assalariamento protegido em meio à deformação do trabalho pelo desemprego e à difusão de ocupações indeterminadas e gerais rebaixadas por atividades de contida produtividade e rendimento.

Por que nos sentimos tão sozinhos? por Pedro Henrique M. Aniceto

0

Pedro Henrique M. Aniceto

A Terra é Redonda – 07/05/2023

Os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida

Com a revolução técnico-científico-informacional e, por consequência, o avanço expressivo dos meios de comunicação de massa, uma nova realidade se estabeleceu no mundo do século XXI. Nunca antes, na história da humanidade, foi possível se conectar e trocar experiências e informações com o número de pessoas a que temos acesso pelas redes sociais.

A nova forma do capitalismo em que nós, seres humanos, passamos a ser produtos a serem comercializados e consumidos estabeleceu um precedente perigoso em que, por um lado, permite a disseminação de milhões e milhões de informações e conteúdos importantes para a manutenção da vida humana e, por outro, torna-se um instrumento dantesco responsável por um processo de desumanização do ser, o qual deixa de ser sujeito na própria vida e passa a objeto a ser consumido, responsável pela própria servidão, senhor da própria futilidade.

A necessidade pujante e erotizada de estar conectado e criando “conteúdo” para a experiência alheia evidencia um diagnóstico duro e complexo da sociedade contemporânea, o vazio estrutural da consciência moderna. Com isso, evidencia-se o pensamento de Jacques Lacan, um psicanalista francês cuja obra se fundamenta, em parte, na questão “Por que nos sentimos tão sozinhos?”.

Para Jacques Lacan, durante uma fase do desenvolvimento da criança, denominada “fase do espelho”, o indivíduo percebe que é um ente separado do ambiente e é essa distância simbólica que gera o vazio interior que nos torna tão solitários, tornando “necessário” a nós preenchê-lo. É esse, para o autor, o nascimento do ego. Pode-se, nessa conjuntura, tomar por base tal concepção lacaniana para justificar, em parte, o porquê a vida digital, projetada e encenada, é tão valorizada na contemporaneidade.

Isso porque possibilita ao indivíduo tentar reduzir, pelo menos um pouco, a distância entre ele e o mundo, permitindo que se sinta diluído e pertencente a um todo, o que Sigmund Freud chama de “sentimento oceânico”. Assim, numa espécie de “servidão voluntária”, utilizando um conceito de Étienne de la Boétie, os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida.

Nesse sentido, os indivíduos renunciam à liberdade e à privacidade em prol da sensação de pertencimento a um conjunto que, por essência, também tenta consolidar-se como alguém cuja vida exposta – não necessariamente verdadeira – deva ser desejada pela massa. E nesse cenário, marcado por um ciclo vicioso, que cintila a concepção doentia de felicidade contemporânea, em que é preciso, a todo tempo, exaltar uma vida feliz e inexistente a fim de que outros validem esse sentimento como verdadeiro. Para que assim, possa, no âmago do ser, sentir uma ilusão momentânea de integração com mundo que é, rapidamente, substituída por um sentimento de solidão, que move novamente a roda, fazendo com haja novas interações vazias e superficiais que não o preenchem fazendo com que o ciclo se repita.

É, portanto, nesse paradoxo da solidão em meio a muitos que a sociedade o século XXI se baseia, havendo um apagamento do ser enquanto sujeito dono de si e, em seu lugar, consolidando, cada vez mais, zombies gritando dia após dia que são pessoas felizes, enquanto esperam que o restante do mundo repita e ateste para que, assim, possam acreditar, pelo menos por um instante, nessa fantasia que a concepção atual de felicidade.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Há conciliação com a Faria Lima? por Paulo Nogueira Batista Júnior

0

Paulo Nogueira Batista Júnior –

A Terra é Redonda – 05/05/2023

O Banco Central atua como um quarto poder, enquanto os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Estou entre os críticos mais insistentes, mais renitentes da política de juros do Banco Central. Fora o presidente Lula, claro, que é hors concours. Ele tem feito críticas sempre pertinentes, quase sempre certeiras. Volto à carga hoje, acompanhando modestamente os esforços críticos do nosso Presidente.

O tema é vasto, mereceria um ensaio de 50 páginas, no mínimo. Vou tentar ser sintético. Começo com os apelos do ministro Fernando Haddad, que há algum tempo vem pedindo harmonia entre as políticas monetária e fiscal. Faz todo sentido. O termo mais usado na literatura é coordenação fiscal-monetária. Em todos os países razoavelmente organizados, mesmo um Banco Central autônomo se vê obrigado a coordenar as suas ações com as do Tesouro. Isso significa não só a troca regular de informações entre as duas instâncias, mas o cuidado de levar em conta as ações da outra parte na definição e implementação das suas. Se há alguma prevalência, esta é das autoridades fiscais, que representam o governo eleito. Em alguns países, o Tesouro tem até mesmo representação formal nos comitês que definem a política monetária.

Esforços em prol da harmonia fiscal/monetária
O ministro Fernando Haddad, a bem da verdade, não se limita a lançar apelos públicos em prol da harmonia. Vem fazendo o possível para aplacar o Banco Central e, mais importante, a base social da autoridade monetária – a Faria Lima, também conhecida como turma da bufunfa. Não é fácil, leitor, mas o Ministro da Fazenda se esforça. Em janeiro, anunciou um pacote de ajuste fiscal. Em seguida, abandou ou postergou o aumento das metas de inflação, aceitando os argumentos do Banco Central de que isso seria contraproducente. Em abril, anunciou um “arcabouço fiscal” com travas ao gasto público, na esperança de convencer o Banco Central de que o risco fiscal será pequeno daqui para a frente.

Fernando Haddad deu sinais, além disso, de que pretende negociar com o presidente do Banco Central os nomes dos dois novos integrantes da diretoria da instituição. Pela lei de autonomia, é prerrogativa do presidente da República nomear agora dois dos nove integrantes da diretoria do Banco Central e do Copom. Os mandatos de dois diretores venceram em final de fevereiro e o governo, não se sabe bem por que, ainda não indicou os substitutos. No momento em que escrevo, início de maio, as indicações continuam pendentes. Se dependesse apenas da Fazenda, os nomes seriam submetidos à aprovação de Roberto Campos Neto. Não quero ser injusto, mas é a impressão que a Fazenda está passando. Na verdade, o próprio ministro deu declarações nesse sentido há algum tempo. É mais do que apenas impressão, portanto.

Banco Central, um quarto poder
Os apelos de Fernando Haddad em favor da harmonização têm caído no vazio até agora. É que o comando do Banco Central vê a proposta como tentativa velada de suprimir ou condicionar a sua sacrossanta autonomia. O Banco Central brasileiro tem a pretensão extravagante, tudo indica, de definir os seus passos sem considerar a política do Tesouro.

Vamos ser mais claros. A verdade é que o Banco Central se comporta como quarto poder. Não é apenas autônomo, mas independente. Isso ao arrepio do que a lei pretendia. A distinção convencional, incorporada à legislação brasileira, estabelece que o Banco Central autônomo tem a liberdade de buscar o cumprimento de metas que lhe foram fixadas pelo poder político eleito, por meio do Conselho Monetário Nacional (CMN).

Já um Banco Central independente teria a prerrogativa de fixar as próprias metas de inflação. Essa distinção, no caso brasileiro, é mais teórica do que prática. Ocorre que o Banco Central tem um dos três votos do CMN; os dois outros são da Fazenda e do Planejamento. Além disso, o Banco Central exerce a secretaria do Conselho, o que lhe confere poder adicional. Para completar o quadro, a Fazenda e o Planejamento não conseguem ou não desejam, ao que parece, fazer face à ortodoxia do Banco Central.

Sentindo cheiro de sangue, a Faria Lima avançou. O comando do Banco Central já dá repetidos sinais de que pretende enquadrar a política econômica do governo eleito. Veja bem, leitor, não apenas a política fiscal, que deve fazer “o dever de casa” a que se refere insistentemente a ministra Simone Tebet, mas também os bancos públicos federais, que têm sido admoestados pelo Banco Central, em seus comunicados e atas de reuniões, a não adotar políticas que visem estimular a atividade econômica, pois isto reduziria, supostamente, a eficácia da política monetária.

Governo de mãos amarradas
A prevalecer a “harmonia”, tal como entendida pelo Banco Central, o governo ficará de mãos atadas, inerte, provavelmente incapaz de agir para relançar uma economia que está estagnada há dez anos! A política fiscal, limitada pelo arcabouço, conseguirá orientar-se para um papel ativo? O governo poderá determinar ao BNDES, ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica que forneçam um volume de crédito suficiente, a taxas e prazos atrativos, para destravar os investimentos na economia brasileira? Se depender do BC, não, nunca e jamais. Ficarão todas essas instâncias submetidas, harmonicamente, ao objetivo de assegurar a estabilidade monetária e o cumprimento das metas de inflação. O presidente da República, por sua vez, poderá continuar, sossegado, as suas críticas aos juros altos. A harmonia continuará sem sobressaltos.

Repare, leitor, que essa “harmonia” inclui também o direito que se reserva o Banco Central de lançar petardos contra a política fiscal! A política de juros altos, por exemplo, eleva o custo da dívida e o déficit público. Mas essa é uma fonte de “risco fiscal” que, Deus sabe por que, não precisa ser considerada. Os juros altos derrubam, também, os níveis de atividade e de emprego, reduzindo as bases de incidência da tributação e, tudo o mais constante, as receitas do governo.

Em ambiente de desaquecimento da economia, qualquer tentativa de aumentar a arrecadação, ou de tentar mantê-la estável, mesmo sem necessariamente recorrer a novos impostos ou aumentos de alíquotas, como pretende o ministro da Fazenda, encontrará tenaz resistência dos contribuintes, que redobrarão seus esforços para escapar da tributação.

Vamos elaborar um pouco esse ponto. O arcabouço fiscal estabeleceu, como metas centrais, déficit primário zero em 2024 e superávits nos anos seguintes. Se a economia continuar estagnada ou, pior, entrar em recessão, o esforço para alcançar a meta será maior e tenderá a acentuar a tendência à estagnação da economia. A política fiscal será pró-cíclica, em outras palavras. Uma solução para evitar a estagnação/recessão seria adotar medidas fiscais expansionistas.

Mas o arcabouço fiscal dará espaço para uma política antirrecessão? Duvidoso, dadas as travas à despesa pública inseridas no marco fiscal. Outra solução seria acionar os bancos públicos federais para prover o crédito que os banco privados não proveem, especialmente em períodos de juros altos e estagnação. Possível? Em tese, sim, mas o Banco Central já avisou que isso atrapalha a política monetária…

Finalmente, não vamos esquecer do seguinte. Os déficits públicos, desde Keynes, são vistos como admissíveis em períodos de estagnação ou recessão. Nessas situações, recomenda-se deixar os estabilizadores automáticos atuarem (isto é, a retração cíclica da carga tributária e o aumento de certas despesas ligadas à atividade econômica) e inserir componentes anticíclicos na política fiscal, expandindo por exemplo investimentos públicos e transferências sociais, com efeitos em termos de desconcentração da renda e multiplicadores da demanda e da atividade.

Veja o absurdo, leitor. O aumento do déficit público resultante dos juros altos não tem qualquer efeito positivo. Eleva o risco fiscal, sem benefícios em termos de reativação da economia e com efeito concentrador da renda. Só mesmo na Faria Lima essa política merecerá aplausos – e frenéticos. Simples entender por quê.

Os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Beneficiam todos aqueles que têm poupança financeira ou reservas de caixa aplicadas em títulos públicos e outros ativos. Ora, os pobres e remediados, e mesmo a classe média baixa, pouco ou nada possuem em termos de poupança financeira. Quem recebe a renda adicional são os super-ricos – sobretudo os bilionários, as grandes empresas e os bancos que têm aplicações vultosas em títulos públicos e outros ativos líquidos. Vida mansa. Alta rentabilidade, com liquidez e sem risco. O paraíso do rentista.

Esses mesmos aquinhoados não gastam nada ou quase nada da renda adicional que recebem em função da generosa política do Banco Central. O dinheiro recebido fica entesourado e aplicado em títulos públicos e outros ativos. Não circula na economia, nem ajuda a reativá-la.

Concluo aqui essa diatribe que já me saiu longa demais. Já não tenho, confesso, muita esperança de ajudar a modificar o quadro macroeconômico. O que escrevi aqui é apenas o desabafo de um brasileiro que assiste há décadas, revoltado, a repetição dos mesmos absurdos.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

A proposta do Emprego Digno Garantido, por Ladislau Dowbor

0

Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2023

Resenha do livro The case for a job guarantee, de Pavlina Tcherneva, publicado em 2020 pela Polity Press

É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos,
o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação. E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)

De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.

Nada é integralmente sustentável, por Rodrigo Tavares.

0

Será possível ou desejável adotarmos uma visão mais realista da sustentabilidade?

Rodrigo Tavares, Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017.

Folha de São Paulo, 03/05/2023

Nesta semana, o Fórum Econômico Mundial convocou uma entrevista coletiva para dizer várias coisas importantes sobre o futuro do trabalho. Baseado no estudo “O Futuro do Trabalho”, declarou que especialistas em sustentabilidade serão os profissionais mais procurados no mercado global, depois de especialistas em inteligência artificial. Mas e se o mercado estiver objetivamente à procura de especialistas em “insustentabilidade”, não em “sustentabilidade”?

Não é tecnicamente possível para um produto, uma empresa ou uma ação ser integralmente sustentável. A sustentabilidade é um conceito espaçoso, desde que foi cunhado nos anos 1980. Para uma empresa ser sustentável, devemos considerar não só a sua sustentabilidade corporativa interna (por exemplo: segurança laboral, igualdade de gênero, transparência fiscal) como os impactos positivos e negativos dos seus produtos e serviços (pegada carbônica, impactos nas comunidades locais, entre outros). Ou seja, deve contabilizar-se tanto o que uma empresa faz quanto como o faz.

Deve também ser levada em consideração toda a sua cadeia de valores e o conjunto das partes interessadas (stakeholders). Uma empresa é, por definição, um organismo que só sobrevive se estiver em permanente conexão com outras entidades. Uma célula-mãe origina células-filhas, sejam elas clientes, fornecedores ou empregados. Uma empresa isolada e esvaziada não é uma empresa, é um CNPJ.

Aplicando essa visão holística da sustentabilidade, abriremos a porta a contradições e limitações. A busca da totalidade do conceito leva à sua abolição.
Vejamos a descarbonização do planeta.

Praticamente todos os países têm metas de transição energética e de desenvolvimento sustentável. O Brasil, por exemplo, tem como objetivo a neutralidade carbônica até 2050. Essas metas só serão atingidas com fortes investimentos em energias renováveis e eletrificação de automóveis. Mas a tecnologia subjacente a essa transformação depende da extração de minérios.

Segundo o Banco Mundial, será necessário extrair até 3 bilhões de toneladas de minerais e metais raros até 2050 —um crescimento de 500% sobre a capacidade extrativa atual— para atingirmos as metas do Acordo de Paris. Precisaremos da “perversa” indústria de mineração, conhecida assim por muitos ambientalistas, para construirmos uma sociedade ambientalmente sustentável.

De acordo com a Agência Internacional de Energia, um carro elétrico requer seis vezes mais insumos minerais do que um carro movido a combustíveis fósseis, enquanto um parque eólico offshore requer nove vezes mais minerais do que uma usina a gás de tamanho similar. Segundo a União Europeia, só para as baterias dos automóveis elétricos e para o armazenamento energético, a Europa necessitará de 18 vezes mais lítio até 2030 e de até 60 vezes mais até 2050.

Sem lítio, níquel, cobalto, manganês e grafite não haveria fontes de energia limpa, incluindo energia geotérmica, solar, hidrelétrica e eólica. Ou veículos elétricos. A nossa capacidade coletiva de enfrentar as alterações climáticas depende de suprimentos confiáveis de minerais.

A China, com 70% da produção global e 85% da capacidade de processamento, lidera esse mercado. Outros países produtores, como Maláui, Angola, África do Sul ou República Democrática do Congo, também têm baixos índices de proteção dos direitos humanos.

Há alguns meses, a Tesla assinou contratos de US$ 5 bilhões com empresas indonésias para a compra de níquel. O primeiro-ministro de Portugal esteve no mês passado na Coreia do Sul, onde promoveu seu país como a oitava maior reserva de lítio do mundo (e a maior da Europa), com mais de 60 mil toneladas, apagando do cartão de visitas os protestos populares que tem enfrentado contra a exploração do mineral na região norte do país. A mineração pode ter um impacto destrutivo não apenas no meio ambiente como nas comunidades locais.

Mas, mesmo que consigamos aplicar mecanismos de rastreabilidade dos materiais raros e, hipótese igualmente rara, impor práticas responsáveis a mineradores em mercados emergentes, iremos sempre encontrar algum tipo de incongruência no domínio da sustentabilidade –na produção, no processamento, no transporte, na utilização fabril, na utilização pelo consumidor final, no pós-uso desses produtos.

Na cadeia de valores, haverá sempre violações de indicadores ESG, por menores que sejam. A insustentabilidade é uma inevitabilidade, não uma exceção.

E será cada vez mais fácil encontrar quem nos aponte os pecados. Nos últimos dois anos, têm despontado centenas de startups que monitoram as ações das empresas e das suas cadeias de valores, usando internet das coisas, imagens de satélite e inteligência artificial. Medir a insustentabilidade será tão recorrente quanto medir a sustentabilidade de uma empresa.

Para uma empresa, há certamente benefícios em perfilhar a sustentabilidade como objetivo final. Há uma lógica de positividade e de evolução inerente à comunicação, mobilizando funcionários e apaixonando clientes. O mercado está formatado dessa forma. Por isso temos normas técnicas, prêmios, rankings e certificações que premiam o aparente sucesso. Damos destaque a um conselho de administração que atingiu a igualdade de gênero, mas negligenciamos se a cadeia de suprimentos é composta por empresas sem preocupação pelo empoderamento feminino.

A impossibilidade de atingirmos essa meta final leva necessariamente a frustrações e a greenwashing. Um passo para a frente e dois passos para trás. No Brasil, a euforia em torno da sustentabilidade, visível no mercado há poucos anos, não produziu resultados consistentes em todo o ecossistema.

Medir sustentabilidade reflete não apenas uma visão fragmentada da realidade; é também tecnicamente difícil. Cada setor industrial tem as suas próprias práticas em sustentabilidade, cada empresa tem a sua própria cultura e interpretação de sustentabilidade e cada país tem o seu próprio quadro normativo e legal. Para uma empresa brasileira, diversidade de orientação sexual é um fator positivo. Em Uganda ou na Arábia Saudita dá prisão.

Em breve deixaremos de tentar medir a capacidade das empresas de atingir o apogeu da sustentabilidade. Adotaremos, como alternativa, uma lógica semelhante à das análises clínicas.

Para cada indicador ESG, como se fossem eritrócitos ou leucócitos, conheceremos os valores de referências e o nosso histórico.

Hoje nenhum médico parabeniza um paciente por ter o mais alto valor de hemoglobina, tal como nós ainda valorizamos as empresas que têm os mais altos valores ESG. Nem há médicos que analisem apenas o valor da hemoglobina, negligenciando todos os outros elementos que contribuem para a saúde de uma pessoa.

Uma visão holística da sustentabilidade de uma empresa deverá incluir, por isso, as discrepâncias e as imperfeições concretas que acontecem enquanto implementamos os nossos planos de descarbonização. O objetivo de uma organização não será atingir o máximo da sustentabilidade, mas reduzir ao máximo os elementos de insustentabilidade.

Na Europa já se deu o primeiro passo. A partir do próximo mês, todas as instituições financeiras terão que declarar os seus Principais Impactos Adversos (PAIs, na sigla em inglês).

A sustentabilidade total é uma fantasia. A sustentabilidade realista, por outro lado, deverá ser o eixo central da nossa economia e sociedade.

Desigualdade que beira o ridículo, por Ana Cristina Rosa

0

É aviltante o looping de carências dos pobres no Brasil ante a qualidade de vida dos ricos

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 08/05/2023

Uma das características mais cruéis de uma sociedade tão desigual como a brasileira é o menosprezo da elite —que usufrui de todos os direitos, além de muitos privilégios— em relação aos problemas cotidianos da massa de desvalidos que compõem o povo.

Não é de hoje que as classes C, D e E vêm se encalacrando para sobreviver. Diversas pesquisas apontam o endividamento crescente entre os mais pobres, que contraem dívidas até para comprar comida a crédito! Sem falar nos milhares que estão à margem, literalmente passando fome.

Com inflação e juros em alta, a “ralé” vive uma espécie de looping de carências que beira o ridículo de tão aviltante em comparação com a qualidade de vida dos mais ricos.

Hoje, em São Paulo, para comprar uma cesta básica são necessários R$ 794,68, segundo o Dieese. Isso é mais de 60% do valor do novo salário mínimo. Parece até piada, e de muito mau gosto, considerando que o mínimo deveria suprir todas as necessidades básicas de uma família. Mas é a realidade do pobre no Brasil, que inclui o drible das contas do mês. A saída óbvia é escolher o que deixar de pagar.

Na classe C, que representa o universo de brasileiros que recebem entre R$ 5,2 mil e R$ 13 mil mensais, 80% das pessoas estão endividadas! Não é preciso muito esforço para imaginar a situação das famílias das classes D e E, onde os rendimentos não ultrapassam os R$ 5,2 mil.

Também não é demais lembrar que a maioria desses cidadãos é negra, segundo pesquisa recente do Instituto Locomotiva. Por que será?

Nesse cenário bizarro, está cada vez mais difícil encontrar alguém que frequente o comércio e ainda não tenha sido abordado por um desamparado pedindo alguma coisa —não só na entrada, mas também no interior dos estabelecimentos.

Não sei o que é mais triste e constrangedor: a vulnerabilidade dos pedintes; a grosseria dos fiscais das lojas com quem está a esmolar; ou a indiferença dos que são incapazes de acolher um pedido genuíno.

Debates econômicos

0

A sociedade internacional vem passando por grandes transformações estruturais com repercussões em todas as regiões, com alterações nos modelos de negócio, alterações no mundo do trabalho, crescimento da concorrência e a necessidade de uma nova agenda ambiental e de sustentabilidade, exigindo variadas mudanças nas políticas públicas e novas formas de configurações nas estruturas de poder global.

Nesta sociedade, percebemos que o debate econômico se concentra no imediatismo e nas questões de indicadores dispersos, os discursos se limitam a questões cotidianas, deixando de lado as reflexões sobre os ecossistemas econômico e produtivo, com isso, todos os agentes políticos e sociais se sentem capacitados a participarem deste debate e dos rumos da economia contemporâneo.

O debate econômico e as grandes questões relevantes para a sociedade contemporânea estão sendo deixados de lado, os especialistas se escasseiam e as conversas se restringem a questões limitadas e enviesadas, se tornando opiniões centradas na defesa dos interesses de grupos detentores dos grandes conglomerados econômicos e produtivos, limitando os debates econômicos, privilegiando os mesmos profissionais e que defendem seus interesses imediatos. Neste cenário, percebemos que os grupos de mídia corporativa abrem espaço para as mesmas opiniões, fugindo dos contrapontos, dos debates e das reflexões críticas.

Os debates econômicos do século XX eram marcados por grandes embates de pensamentos e variadas visões de mundo, onde dois grupos digladiavam com visões diferentes e defendendo teses variadas. Na história do pensamento econômico brasileiro, encontramos o embate entre Roberto Simonsen versus Eugênio Gudin, um defendendo ideias e teses de industrialização da economia brasileira e, de outro lado, as visões de Gudin que defendia a vocação agrícola nacional, embora todos os contendores vislumbravam um Brasil mais sólido e consistente, embora tinham ideias contrárias, todos defendiam um país mais inclusivo, fortalecido, equilibrado e desenvolvido.

No curso dos debates econômicos internacionais destacamos os confrontos intelectuais entre os economistas J. M. Keynes e o austríaco Friedrick Hayek, teóricos conservadores, um mais intervencionista e outro de raiz liberal, responsáveis por grandes confrontos de ideias e de pensamentos. Destes embates, percebemos o nascimento de uma nova sociedade, novas formas de reflexão política, novos horizontes do pensamento econômico, com o surgimento de novas áreas, impulsionando a teoria econômica e contribuindo para criar novas formas de pensamento, de questionamento e desenvolvimento.

Nesta sociedade percebemos que os grandes embates intelectuais foram se escasseando, as batalhas teóricas se reduziram e todos os grandes grupos se perderam e se entregaram pelo poder do chamado mercado, que passam a controlar os indicadores econômicos, controlando as taxas de juros, escolhendo os responsáveis pelas autoridades monetárias e garantindo que seus serviçais voltem para o mercado depois de exercerem cargos de alta remuneração do setor público. Os especialistas chamam isso de, no jargão econômico, de porta giratória, onde funcionários saem dos governos e ganham empregos em grandes instituições financeiras nacionais e internacionais, como prêmio dos préstimos prestados para seus empregadores, com alta remuneração e inúmeros benefícios.

Os debates econômicos contemporâneos se restringem a uma visão limitada e superficial, os grandes confrontos e embates entre teorias econômicas estão cada vez mais distantes, as conversas se restringem ao crescimento do PIB e da inflação, deixando de lado as questões tributárias, evitando reflexões sobre isenções fiscais que garantem ganhos substanciais para os donos do capital, além de refletir sobre as crescentes desigualdades de renda, além de evitar os abismos financeiros entre os ricos e os pobres. Desta forma, percebemos que os debates econômicos estão distantes da realidade da população, mostrando a irrelevância da ciência econômica para compreendermos as necessidades dos seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista e Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/05/2023.

A urgente reindustrialização na Era Digital, por Marcio Pochmann

0

O Brasil é o quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, mas continua sendo grande importador. Superar dependência requer políticas de desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstruir o sistema produtivo nacional

Marcio Pochman, Economista e Professor da Universidade de Campinas
Outras Palavras – 24/04/2023

O Brasil demorou três décadas para ingressar de fato no século 20, o que somente começou a ocorrer a partir da Revolução de 1930, quando o país se libertou do domínio liberal. Até então, predominou a sociedade agrária que, longeva e primitiva, estava aprisionada aos atrasos do século 19.

Ainda que tardiamente, a modernização capitalista permitiu que em menos de meio século o Brasil
integrasse as 10 principais economias industriais do mundo. Para tanto, a aliança tripartite entre os capitais estatais e privados nacional e estrangeiro foi substancial, especialmente em momentos graves vividos pelo mundo (S. AMIN La desconexion. Hacia un sistema mundial policéntrico, 1988).

Inicialmente, na fase crítica da Segunda Guerra Mundial, o acordo entre Getúlio Vargas (1930-1945) e Franklin Roosevelt (1933-1945) marcou a transferência tecnológica e a participação do capital estadunidense na constituição da indústria de base nacional. Posteriormente, a tensão em torno da Guerra Fria foi utilizada por Juscelino Kubitschek (1956-1961) para atrair um verdadeiro bloco de investimento externo que edificou a industrialização pesada no país (P. Evans A tríplice aliança: as multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro, 1980).

Mas, quando o país se preparava para o ingresso na Era Digital em constituição no final do século 20, com a montagem interna da microeletrônica e o salto tecnológico e informacional em curso com a lei de informática e parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional (M. Pochmann A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial, 2022). O caminho do declínio brasileiro pôde ser quantificado pela perda de sua participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,6% em 2021.

Assim, as últimas quatro décadas configuraram o aprofundamento do grau de dependência externa do Brasil, com o retorno à especialização produtiva e à reprimarização exportadora. A colagem do endividamento externo com a expansão da dívida pública interna herdada dos últimos governos da ditadura civil-militar (1964-1985) demarcou a base pela qual a financeirização da economia ganhou autonomia concomitantemente com o regime de superinflação.

Na sequência do ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal desde 1990, a queda do processo hiperinflacionário transcorreu mediante a renegociação da dívida externa e a implantação do Plano Real. Uma receita mortífera à industrialização, uma vez que a combinação de elevadas taxas de juros reais atraentes ao ingresso do capital externo que ao valorizar a moeda nacional estimulou a substituição da produção nacional por importados, sobretudo os de maior valor agregado e empregos de qualidade.

Por fim, a prevalência do tripé macroeconômico desde 1999, com taxa de câmbio flutuante e metas de superávit fiscal e de inflação, terminou por consolidar a inserção do capital externo no reino da financeirização sustentado por elevadíssimas taxas de juros e crescente desconexão com a antiga relação periférica com os países do nortecentrista. Em realidade, foi implantado o modelo econômico extrovertido, cuja dependência com o exterior determina o dinamismo nacional alimentado por mercado interno contido e asfixiante da produção e consumo de bens industriais, cada vez mais provenientes do exterior.

A reversão desta situação nacional requer pôr em curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo. Ou seja, é necessário o reposicionamento brasileiro na Divisão Internacional do Trabalho da Era Digital, uma vez que o país, enquanto quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, continua sendo importador.

Neste sentido, a recomposição do investimento requer o estabelecimento do antigo tripé dos capitais em novas bases. De um lado, existe a circunstância interna de o Estado brasileiro ter a disponibilidade de recursos financeiros em reservas externas e depósitos internos, ao mesmo tempo em que o capital privado nacional se encontra entesourado em fundos de aplicações financeiros especulativos e de curto prazo.

De outro lado, o imbróglio do capital externo. Aquele derivado dos países ocidentais tem sido declinante na última década, inclusive com a saída de grandes corporações transnacionais. Já o capital derivado dos países orientais, especialmente da China tem sido crescente.

Por conta disso, a preparação para o ingresso no século 21 pressupõe a redefinição política da convergência dos capitais em torno de novo padrão de acumulação para o desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. Isso dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida pela financeirização e superexploração do trabalho resultante da atual presença na divisão internacional do trabalho como país primário exportador.

Comércio Internacional

0

O comércio internacional sempre foi visto, na história da humanidade, como um dos mais ativos instrumentos de enriquecimento das nações, auxiliando na inserção dos países, levando os governos das mais variadas matizes ideológicas a criarem estratégias mais consistentes, políticas efetivas para alavancar suas estruturas econômicas, visando angariar novos mercados, com acumulação de recursos monetários e auxiliando na construção do desenvolvimento dos países, um sonho acalentado para todas as comunidades desde os primórdios da civilização.

Com o incremento da globalização econômica, com impactos variados para todas as regiões da sociedade internacional, uns países ganharam mais e outros, os ganhos foram menores. Nesta competição, percebemos um grande consenso internacional entre os especialistas, que as economias asiáticas foram as grandes ganhadoras, países como o Japão, a Coréia do Sul e a China, se transformaram num polo de forte crescimento econômico, aumentando seus espaços no comércio internacional, angariando recursos monetários, consolidando empresas e conglomerados econômicos, transformando a região que movimenta a economia internacional, despertando protecionismos, estimulando conflitos econômicos, políticos e geopolíticos, que podem culminar em confrontos militares que podem gerar fortes constrangimentos para a comunidade internacional.

A ascensão de um modelo econômico diferente daquele preconizado pelos países ocidentais vem despertando novas narrativas, novos embates e o crescimento de estudos comparativos que buscam compreender e analisar as trajetórias do desenvolvimento econômico das nações. Neste cenário, percebemos o nascimento de um mundo multipolar, com novas oportunidades, novas perspectivas de negócios e novas estratégias de inserção na economia global.

Neste momento, percebemos os grandes projetos de investimentos preconizados pela economia chinesa, a chamada Rota da Seda, que abarca mais de 140 países, um ambicioso projeto de fortes investimentos em infraestrutura global, criando espaços de comércio internacional, fortalecendo laços de integração econômica e produtiva, além de estimular novos horizontes econômicos para as nações, alavancando as regiões e contribuindo para a melhora da economia global.

Destacamos ainda, as novas negociações internacionais que nascem com a ascensão das economias asiáticas, com novos modelos econômicos, que trazem novos horizontes e novos consensos, além de novos acordos comerciais, revitalizando os canais de financiamento, contribuindo com a abertura de novos espaços para outras moedas e novos instrumentos monetários e financeiros. Mesmo percebendo que essas negociações internacionais demandam algum tempo e novas estratégias e planejamentos globais, percebemos que o fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como o “banco dos Brics” que tendem a construir novas oportunidades de negócios com outras moedas, dinamizando essas nações e diminuindo as negociações com a moeda norte-americana. Destacamos ainda, o papel dos EUA impondo sanções econômicas e financeiras para a Rússia, sua exclusão do Sistema Swift gerou incertezas e instabilidades, levando muitas nações a se preocuparem que poderiam ser as próximas nações sancionadas, levando-as a buscarem alternativas ao dólar.

Neste cenário, as nações estão reconfigurando seu papel na economia internacional, buscando a inserção em novos espaços de comércio mundial, mas para isso, faz-se necessário compreender o que queremos nos próximos anos, se queremos ser produtores de produtos de baixo valor agregado ou se almejamos construirmos novos horizontes para sua sociedade, sonhando com uma posição de destaque mundial ou continuaremos com uma soberania limitada, dependente de outras nações e se continuaremos como colônia de novas metrópoles. Mas, para trilharmos novos caminhos será fundamental escolhermos novos cenários, reduzindo os conflitos internos que crescem a algumas décadas e as polarizações políticas que destroem as bases da comunidade, com incremento das violências, dos medos e das desesperanças. Neste momento, precisamos profissionalizar nosso comércio internacional ou perpetuamos nossa dependência e subserviência externa.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/04/2023.

Conhecimento prático-operatório, por Henrique Pereira Braga

0

A Terra é Redonda – 23/04/2023

Comentários sobra as recentes mudanças nos currículos de ciências econômicas

Em matéria publicada no jornal Valor econômico são relatadas as reformas curriculares em cursos de graduação em ciências econômicas, conduzidas por algumas das instituições mais tradicionais no ensino de economia no país.[i] Com o propósito de atrair os jovens, essas instituições de ensino flexibilizaram a grade curricular, ampliando o número de disciplinas optativas; concentraram o ensino da “teoria econômica” nos primeiros dois anos do curso; e inseriram, cada
qual a seu modo, disciplinas relacionadas à análise de dados por meio da tecnologia conhecida como “Big Data”. Celebrada com jubilo pelo jornal, por sua suposta adequação às necessidades do mercado, essas medidas parecem revelar, em nosso juízo, a tecnificação do curso de “ciências econômicas”.

Ao concentrarem as disciplinas “teóricas”, que compreendiam três (ou quatro) anos de estudos, nos primeiros dois anos do curso de graduação, o seu ensino ficou comprometido, para dizer o mínimo, haja vista que não é possível operar essa redução sem alterar os escopos e os conteúdos das disciplinas. Neste sentido, o espaço para crítica (quando existente) fica limitado a algumas pinceladas – por certo reducionistas – que impedem o debate sério e franco das diversas formulações sobre o fenômeno econômico. Não que esse debate ocorra hoje, mas a questão principal é a sua completa interdição.

Um ponto que merece atenção, a meu ver, é que a ênfase dada pelas reformas à análise de dados sugere a subordinação do estudo da teoria à manipulação dos “dados”. Dito de outro modo, as teorias serão ensinadas como um conjunto de princípios heurísticos para manejarem as informações que emergem dos sistemas computacionais complexos. Com isso, o ensino da “ciência econômica” se torna a transmissão de um conhecimento somente prático-operatório, consolidando a ausência do ensino das explicações sobre a natureza e o sentido dos fenômenos econômicos. O que implica tomar como dado, por exemplo, o indivíduo aquisitivo, insaciável e racional – ou mesmo abordar a economia brasileira como desprovida de particularidade oriundas da sua “formação nacional”.

Cabe notar que um conhecimento desta natureza não pode ser denominado de “ciência”, pois se furta ao debate das explicações sobre o fenômeno que se debruça. E, por conseguinte, presta-se a reforçar a forma social em que vivemos – e, não menos importante, somente mitigando suas mais variadas mazelas, que são tomadas como “dadas”. Em suma, a direção das reformas reforça, ao que parece, o pensamento parcial, acrítico e tecnocrático, consolidando uma forma de ensino de economia hegemônica nos departamentos de economia estadunidenses desde meados do século XX, animados pela ideologia do livre mercado e pela perseguição do Macarthismo (MIROWSKI; PLEHWE, 2009).

Outra face dessas reformas está no conjunto de palavras-chave: flexibilidade, itinerário e escolha. São as mesmas palavras utilizadas para caracterizar a reforma do ensino médio iniciada durante o governo Michel Temer (2016-2018). Nessa forma de enquadrar a relação entre a formação do estudante e o mercado de trabalho, coloca-se a causa da queda do interesse pelo curso (de ensino médio ou de ciências econômicas) no currículo engessado e defasado. Contudo, o desinteresse pelos cursos de graduação (em particular nas ciências humanas) resultam de inúmeras razões, sendo uma delas o fato de vivermos numa época de expectativas decrescentes (ARANTES, 2014).

Para os jovens do capitalismo periférico, isso significa, dentre outras coisas, que o futuro que os aguarda será uma luta fratricida pela sua sobrevivência. No caso do curso de ciências econômicas, podemos acrescentar o declínio do emprego nos setores que os economistas tradicionalmente atuavam – como o planejamento e a gerência das indústrias e do governo – fruto dos rumos desse mesmo capitalismo. Com isso, restaram áreas restritas de atuação, disputadas com outros profissionais, que vão da “gestão de portfólio” à aplicação da austeridade na política pública.

Não parece que a inserção da “análise de dados” e “inteligência artificial” dará conta de endereçar esses problemas, uma vez que, de saída, interdita o ensino da crítica ao próprio discurso econômico (e sua prática) que tem contribuído, desde os anos 1990, para o aprofundamento de nossa condição periférica e subalterna. E, por isso, sublinhamos que não se trata de ser contra ou a favor do ensino destas disciplinas; mas, outrossim, de como o seu ensino é desarticulado da reflexão crítica sobre os fenômenos econômicos.

Isso posto, as medidas adotadas certamente atrairão, num primeiro momento, os jovens interessados nas novas tecnologia para esse novo curso de economia. Mas, pelo próprio convívio no campus, os estudantes poderão se questionar: ao invés de fazer um curso no qual a manipulação de dados aparece ao final, não seria melhor ser iniciado nesta investigação desde o começo (como fazem a estatística, a engenharia e outras ciências)?

Os mais críticos poderiam inclusive pensar: em vez de analisar os dados já viesado por certo pensamento econômico, não seria melhor aprender a produção de dados por esses sistemas complexos para não incorrer em erros grosseiros de sua análise? Em suma, para que fazer um curso genérico de manipulação de dados, se eles poderiam fazer os originais, conhecendo, por dentro, a operação destes sistemas?

Quando enfrentarem a concorrência, num mercado trabalho estreitado que caracteriza esse mercado no capitalismo periférico, os questionamentos serão ainda mais viscerais – em particular da parte dos inúmeros derrotados. Sem o aparato crítico para enfrentarem a situação em que se encontrarão, é provável que engrossem as fileiras dos diplomados ressentidos, que são objeto de fácil manipulação pelos discursos de ódio proferidos pela extrema direita.[ii] Por isso, as intenções da reforma podem ser até boas à primeira vista, mas suas consequências podem ser deletérias para a formação profissional dos economistas e, dada a centralidade da economia em nossa vida social, para o país.

Henrique Pereira Braga é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Referências
ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
MIROWSKI, P.; PLEHWE, D. The Road from Mont Pèlerin: the making of the neoliberal thought collective. Massachusetts: Harvard University Press, 2009.

Notas:

[i] “Veja o que as faculdades de economia estão fazendo para atrair os jovens”. Jornal Valor Econômico, 11 de abril de 2023. Disponível em: http://glo.bo/3UTiEe8.

[ii] Não por acaso, as pesquisas de intenção de votos da última eleição presidencial mostraram a inclinação dos votos dos mais escolarizados no candidato da extrema direita.