Melhora econômica?

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O Brasil foi uma das economias que mais cresceram no século XX, crescimento este que alavancou a estrutura produtiva, incrementou a urbanização, fortaleceu as bases dos setores industriais, dinamizando os setores comerciais, impulsionando os setores agroexportadores, transformando as estruturas econômicas e aumentaram os estoques de riqueza na sociedade mas, infelizmente, contribuíram para aumentar a concentração da renda e aumentou a exclusão social, incrementando desequilíbrios que, mesmo no século XXI, ainda expõem feridas que limitam a democracia e aumentam os conflitos sociais, econômicos e políticos.

Em pleno século XXI convivemos com graves desequilíbrios sociais, desemprego elevado, subempregado em ascensão, degradação do trabalho, desesperança na sociedade, inflação elevada, aumento dos preços dos alimentos, redução dos investimentos produtivos, diminuição dos recursos em ciência e tecnologia, cortes sistemáticos nas universidades públicas, institutos federais e diminuição dos repasses na saúde pública… neste cenário preocupante, percebemos a ausência de grandes discussões nacionais, não estamos refletindo sobre o futuro da nação, não estamos refletindo sobre os grandes desafios e oportunidades da sociedade do conhecimento.

Alguns analistas acreditam que estamos vivendo um momento de recuperação econômica, enfatizam os sinais de movimentação econômica, buscam argumentos para justificar os suspiros econômicos e atuam como torcedores e esquecem-se de analisar as estruturas, os investimentos produtivos, a formação bruta de capital fixo, os repasses das políticas públicas, as taxas de câmbio, os recursos canalizados para ciência e tecnologia, as taxas estrondosas de juros que beneficiam a poucos em detrimento da grande maioria e, para piorar, esquecem-se que vivemos numa nação marcada por milhões de endividados, dados recentes divulgados pelo CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), 78% das famílias brasileiras estão endividadas. Neste cenário assustador, como falar em recuperação econômica?

As expectativas do crescimento econômico brasileiro em 2022 ultrapassaram 2,7% ao ano, embora acreditemos que um país como o nosso, que precisa urgentemente acelerar o seu crescimento econômico, para reduzir os passivos sociais e os desequilíbrios econômicos, os dados de crescimento são positivos e devem ser comemorados, mas precisamos nos preocupar com a sustentação deste crescimento, será que esta recuperação econômica deve continuar no ano de 2023? Ou nosso crescimento econômico é mais um dos inúmeros voos de galinha que acompanha a economia nacional, sem estruturas, sem investimentos, sem planejamentos e sem projeto nacional?

O crescimento econômico é sempre imprescindível para qualquer sociedade, traz aumento das riquezas materiais, novas perspectivas de emprego, possiblidades de melhora da renda e dos salários, investimentos produtivos e novos modelos de negócios que impulsionam novos empreendimentos, gerando melhoras consideráveis para a população.
Neste momento, me preocupa os instrumentos utilizados para estimular o crescimento imediato, aumento dos recursos públicos com pouca transparência, consignados para grupos sociais mais vulneráveis com taxas de juros extorsivas que tendem a criar endividamentos no curto prazo, desequilíbrios fiscais contratados para o próximo ano, especialistas em orçamento público calculam mais de 100 bilhões de reais injetados na economia, criando uma verdadeira bomba fiscal para o próximo ano, que deve levar o governo aumentar as taxas de juros e ajustes fiscais rigorosos, reduzindo repasses públicos e aprofundando um ambiente de baixo crescimento econômico e a piora das condições sociais.

Depois de alguns meses de melhora econômica, o Banco Central nos trouxe indicadores preocupantes, o IBC-Br registrou queda de 1,13% em agosto, além do aumento dos preços dos combustíveis e resistência de queda dos preços dos alimentos. Neste momento, devemos nos perguntar: neste cenário estamos crescendo ou estamos nos aproximando de um outro voo de galinha?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/10/2022.

O Brasil profundo, por Rafael R. Ioris.

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Por Rafael R. Ioris. – A Terra é redonda – 24/10/2022

O conservadorismo autoritário sedimenta raízes no Brasil

Tendo sido a maior sociedade escravocrata da história, não surpreende que o Brasil continue sendo uma nação de cultura profundamente hierárquica e autoritária. Só pra lembrar, nos anos 1930s, foi exatamente lá onde existiu o maior de partido de orientação fascista fora da Europa. Da mesma forma, no auge da sua última ditadura militar, no início dos anos 1970, quando a tortura era política de Estado, a ARENA, o partido oficial de apoio ao regime, constava com amplo apoio popular e se gabava de ser o maior partido do hemisfério ocidental em números da filiados.

Não surpreende, portanto, que mesmo após o gradual, controlado e insuficiente processo de redemocratização que o país atravessou ao longo dos anos 1980, a narrativa mano dura, autoritária e salvacionista de políticos populistas de direita tenha sempre conseguido angariar apoio entre crescentes camadas sociais, especialmente em períodos de crise econômica e/ou aumento das taxas da criminalidade. Muitas vezes tal apelo se reduzia a políticos regionais de direita que tendia a assumir cargos nos legislativos estaduais. Mas sempre houve também alguns personagens que embora eleitos por grupos de interesse bem específicos, conseguiam exercer alguma influência no debate mais amplo, mesmo em escala nacional.

Um desses personagens foi o deputado Jair Bolsonaro, eleito pela primeira vez em 1991, com base principalmente nos votos de militares conservadores aposentados do estado do Rio de Janeiro. Após anos quando era visto como uma figura folclórica do Congresso Nacional que defendia de maneira repetitiva a defesa dos crimes da ditadura, uma série de acontecimentos trágicos para a própria consolidação do regime democrático fez com que a figura quixotesca de Bolsonaro conseguisse, contrariando a expectativas de quase todos, se alçar à posição de maior autoridade no país.

Em primeiro lugar, a crise econômica global do final da primeira década do século chegou tardiamente ao Brasil, no final de 2012, erodindo rapidamente aos ganhos importantes dos anos anteriores, especialmente junto a populações de baixa renda que, com a alta do custo de vida, especialmente nas grandes cidades, passam a demandas, em meados do ano seguinte, melhorias no provimento de serviços sociais. Grupos conservadores de classe média – que embora tenham também se beneficiado com a melhora econômica da primeira década, estavam cada vez mais descontentes com o avanço dos grupos populares em espaços sociais e culturais tradicionalmente restritos aos incluídos –, veem nos protestos de 2013 por mais e melhor inclusão uma excelente oportunidade para reorganizarem-se como bloco político.

O país chega em 2014 com uma crescente polarização ideológica, mas ainda dentro dos moldes democráticos da chamada Nova República. Isso mudaria rapidamente quando o partido derrotado da eleição do final do ano se recusa a aceitar os resultados e passa a mobilizar as forças de oposição ao governo petista de Dilma Rousseff para que com todos os meios consiga retirá-la do poder. O processo golpista se acelera com o agravamento da crise econômica ao longo de 2015, culminado no impeachment de Dilma Rousseff no ano seguinte. O governo Termidoriano de Michel Temer, vice-presidente de Dilma Rousseff assume a pauta conservadora em crescente popularidade entre os principais grupos econômicos, políticos, midiáticos e culturais do país e grandes reformar anti-populares são estabelecidas (reforma trabalhista e limite de gastos públicos).

Mas ainda que o establishment estivesse contente com os novos rumos da nação, a discrepância entre uma revivida agenda neoliberal no poder sem um claro mandato popular adquirido nas urnas gerava uma fragilidade ao novo bloco histórico. E quando da eleição de 2018 os partidos tradicionais por trás do golpe parlamentar de 2016, como PSDB e PMDB, são tragados por uma onda reacionária, de forte apelo popular com base na pauta dos costumes e da resolução autoritária dos crescentes problemas sofridos por amplas camadas sociais, em especial as mais desfavorecidas. Ao fim e ao cabo, a medíocre personagem de Jair Bolsonaro se torna o instrumento da condução de um processo turbulento que culmina na consolidação da agenda autoritária reacionária no poder da maior sociedade latino-americana.

No poder, Jair Bolsonaro não surpreendeu e seu desgoverno pode ser melhor representado na sua intencionalmente desastrosa gestão da crise da Covid-19 no Brasil, que causou a morte de quase 700 mil pessoas. Da mesma forma, sua conhecida postura misógina, homofóbica não é apaziguada por estar no poder, e sua promoção pela devastação ambiental se aprofunda como política de estado. Além disso, a falaciosa narrativa de uma maior eficiência dos quadros militares na administração pública leva à maior ocupação por parte de militares de funções civis desde a ditadura, e o perigoso discurso da necessidade do fechamento das instituições de representação política democrática, em especial o Supremo Tribunal Federal. ser normaliza no governo e entre seus apoiadores mais ferrenhos.

Diante de tudo isso, poder-se-ia dizer que o fato de que Jair Bolsonaro tenha ido tão bem na eleição de 2 de outubro passado, tendo conseguido 51 milhões de votos e impedido a eleição de Lula no primeiro turno – forçando assim o país a um segundo turno acirrado, potencialmente violento e perigoso –, seria talvez a expressão mais clara no enraizamento do conservadorismo autoritário em moldes neofascistas na sociedade brasileira. E se em 2018, em meio à maior crise partidária enfrentada pelo país possivelmente desde o final da década de 1970 – talvez mesmo de meados de 1960, quando da eliminação dos partidos pelo novo regime militar –, havia uma forte motivação para “votar em algo diferente”, hoje existe um claro histórico da performance de Jair Bolsonaro e seus asseclas no poder.

De fato, junto a eleição de seus mais próximos aliados, especial da pastora fundamentalista e ministra da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, ao Senado pelo Distrito Federal, e Eduardo Pazzuelo, general do exército, ex-ministro da Saúde durante o desastre da pandemia, como deputado federal pelo Rio de Janeiro, com uma votação enorme, parece claro que para grande parte da população é mais importante manter no poder fiéis escudeiros de uma agenda cultural reacionária, economicamente neoliberal e politicamente autoritária do que ter uma administração pública eficiente no sentido do provimento isonômico de serviços públicos de qualidade.

Poderíamos também dizer que para grande dos eleitores, temas centrais na plataforma de Lula, como proteção ambiental, inclusão de gênero e mesma a democracia não são vistos como tão importantes assim por quase metade da população do país. Em síntese, parece que se em 2018, a narrativa conservadora autoritária que Jair Bolsonaro encabeçava poderia ter tido apelo pelo seu teor de novidade, hoje seu apelo se capitaliza de maneira estrutural em amplas camadas sociais que embora geograficamente não majoritárias em todas as regiões, é sim, cada vez, representativa do que politicamente apoiam grande parte da população brasileira.

Interessantemente, embora não pareça ser tão chave quanto temas de viés mais socio-cultural, como família, patriotismo e religião, especialmente para camadas sociais mais humildes, especialmente nos centros urbanos do país, a agenda neoliberal também implementada por Bolsonaro atende aos anseios de influentes grupos sociais mais abonados, em especial ligados à expansão da matriz agro-exportada, assim como a ideólogos da privatização do estado na grande mídia. Por fim, nas classes médias, o apelo dos novos (e antigos) donos do poder, especialmente militares, se consolida também pela retórica falaciosa e chaunivista do acesso ilimitado às armas pelo homem supostamente provedor da defesa privada dos seus familiares.

O fato é que o Brasil profundo é, sim, ainda muito, talvez mesmo crescentemente, conservador, preconceituoso, organizado de uma maneira estruturalmente hierárquica onde líderes autoritários salvacionistas tendem a ser vistos como soluções fáceis para problemas diários difíceis. E embora Lula tenha boa chance de ganhar no segundo turno, o que significa de há grande mobilização para resistir o aprofundamento e consolidação no poder do neofascismo em curso, seu novo governo enfrenta uma país muito mais polarizado do que no início do século, e seus esforços no poder terão que se centra não em grandes inovações nas políticas sociais, como em 2003 a 2010, mas, sim, na reconstrução da própria democracia brasileira.

Por outro lado, se Jair Bolsonaro ganhar, teremos então a legitimação clara que o preocupante rumo que a sociedade brasileira tem seguido nos últimos é que a maioria dos seus membros aprova e quer dar sequência. Isso poderia mesmo a levar com que Bolsonaro, ao entender que tem poder para isso, poderia tentar destruir de vez a institucionalidade democrática no país, mantendo a aparência da democracia liberal, em um regime de fato autoritário – seu projeto desde sempre.

Por fim, mesmo no caso de derrota de Jair Bolsonaro, o fato é que o conservadorismo autoritário do bolsonarismo foi em grande parte aprovado nas urnas em 2 de outubro e vai continuar a influenciar os rumos do país por um bom tempo. Ou seja, Jair Bolsonaro pode até perder, mas o bolsonarismo veio para ficar.

*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).

‘Guerra santa’ no Brasil de santa não tem nada, é disputa de poder, diz promotora

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Para Livia Sant’Anna Vaz, pauta religiosa da eleição tem outros interesses; ela também defende restrição a discursos que minem o processo democrático

ANGELA PINHO – FOLHA DE SÃO PAULO – 23/10/2022

SÃO PAULO

Ponto central na disputa eleitoral de 2022, a religião não é só uma pauta de costumes no Brasil, afirma Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça na Bahia e especialista em intolerância religiosa.

A atual “guerra santa”, que para ela “de santa não tem nada”, tem como pano de fundo interesses econômicos, avalia.
Em meio a notícias falsas sobre possível fechamento de templos, ela lembra que as crenças que são alvo de perseguição no Brasil não são as cristãs, mas as de matriz africana.

Sem citar nomes, no momento em que proliferam acusações de censura na campanha eleitoral, ela declara que quem menos tem liberdade de expressão no Brasil não é quem está no poder, mas os grupos marginalizados da sociedade.

Doutora em ciências político-jurídicas pela Universidade de Lisboa, ela defende ainda intolerância a discursos que busquem atacar a democracia por dentro. “A ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo democrático”, diz.

Qual é o panorama hoje da intolerância religiosa no Brasil? A intolerância religiosa é um guarda-chuva que pode ter como foco qualquer confissão, mas, no Brasil, há um fenômeno muito peculiar: o racismo religioso. Usamos essa expressão porque é um ódio que se volta especificamente contra religiões de matriz africana. As manifestações dele vão desde ofensas verbais até invasões de terrenos, em práticas cada vez mais corriqueiras no Brasil, principalmente no atual contexto político.

Na atual campanha eleitoral, há um setor com medo de fechamento de igrejas e de perseguição a fiéis das igrejas evangélicas. Isso já aconteceu em algum momento no Brasil? Não contra religiões cristãs. Mas, em relação às religiões de matriz africana, nós temos uma história de violências, desde a legislativa até a agressão, inclusive pelo próprio aparato estatal.

Vou dar alguns exemplos. No Brasil, quando ainda não tínhamos nem ordem jurídica própria, as ordenações filipinas previam no livro dos crimes o de feitiçaria, que poderia ser punido inclusive com pena de morte. Ora, quem eram as pessoas consideradas feiticeiras? Não preciso dizer que era contra pessoas negras. Posso dar exemplos mais recentes. Em 1966, uma lei na Paraíba obrigava os sacerdotes ou sacerdotisas de religiões de matriz africana a passarem por exame de sanidade mental para que pudessem praticar seus rituais religiosos, em um Estado que à essa época já era laico e já tinha garantia constitucional de liberdade de crença.

Em 1976, na Bahia, os terreiros tinham obrigatoriedade de ter um alvará de funcionamento expedido por delegacias de jogos e costumes. Fica muito evidente a criminalização de determinadas práticas e confissões religiosas por conta da origem negra. E não eram raras as operações policiais com interrupção de cultos religiosos de matriz africana.

As religiões de matriz africana são aquelas que até os dias de hoje, em alguns estados do Brasil, ainda possuem objetos sagrados apreendidos e expostos em museus do crime. No Rio de Janeiro, só em 2020 houve a transferência desses objetos sagrados do museu da Polícia Civil para o Museu da República.

Como vê a presença da religião na atual campanha eleitoral? Nós vivemos num Estado laico. A atuação do Estado não deve beneficiar nenhuma religião nem colocar obstáculos a nenhuma delas. Quando falamos em liberdade religiosa, precisamos qualificar esse direito. As religiões de matriz africana no Brasil nunca experimentaram liberdade religiosa. Infelizmente o que existe historicamente no Brasil é uma disputa supostamente religiosa. Uma guerra santa que de santa não tem nada, que, na verdade, é disputa de poder e de território. Esse projeto político de tomada de território já está em execução, com terreiros, comunidades quilombolas e comunidades indígenas invadidas.

Com a criminalização dos movimentos sociais ligados a essas raízes históricas de matriz afroindígena. Estamos vivendo num contexto de disputa que não se resume à questão religiosa. A religião tem sido um pano de fundo para esse debate e, infelizmente, tem provocado o cerceamento de direitos fundamentais de grupos religiosos, sociais e raciais vulnerabilizados.

E o conteúdo do debate sobre religião na campanha, como avalia? Ele tem pautado diversas discussões sobre direitos fundamentais. Isso é muito grave. Vivemos num Estado laico e num Estado democrático de Direito, então um discurso que atenda a determinados interesses de grupos religiosos específicos hegemônicos não pode pautar o acesso das pessoas a direitos. É preciso haver espaço para a representação de todos os grupos, especialmente os vulnerabilizados, nos espaços de poder e decisão, em que vemos sempre os mesmos grupos historicamente privilegiados no Brasil, os privilégios da branquitude em especial.

O Estado é laico, mas as pessoas também têm direito a pleitear políticas públicas alinhadas aos seus valores. Como equilibrar esses dois aspectos? Quando falamos em laicidade do Estado, isso não quer dizer que as pessoas, inclusive os servidores públicos, não possam professar as suas religiões. Isso quer dizer que eles não devem confundir o exercício de suas funções públicas com a sua religiosidade, privilegiando determinadas religiões e causando violência e discurso de ódio em detrimento de direitos para outras religiões. É óbvio que as pessoas têm opiniões, valores e crenças, mas temos uma Constituição que também faz escolhas. Então não são os interesses ou opiniões do grupo A, B ou C que devem prevalecer, mas os valores que estão consagrados no nosso Estado democrático de Direito.

Hoje em dia, são principalmente os bolsonaristas que se dizem tolhidos em sua liberdade de expressão. Na sua visão, quem no Brasil tem menos liberdade de expressão hoje em dia? Quem menos tem liberdade de expressão no Brasil são os grupos que nunca tiveram acesso aos meios para se expressar, os grupos historicamente vulnerabilizados. Nós sabemos muito bem no Brasil quais são os grupos que dominam os meios de comunicação de massa e não são pessoas negras, não são mulheres, não são pessoas indígenas.

Um conceito que você cita é o do “efeito silenciador” de determinados discursos. De que forma a desinformação tolhe a liberdade de expressão das pessoas? A desinformação limita a liberdade de expressão das pessoas a partir do momento em que elas não conseguem acessar elementos necessários para uma manifestação consciente do seu pensamento.

As pessoas acabam repetindo pensamentos, supostamente exercendo uma liberdade de expressão, mas é uma liberdade de expressão manipulada.

É preciso que nós pensemos em ampliar a liberdade de expressão de todas as pessoas. E o que acontece no Brasil hoje é que é uma quase absolutização da liberdade de expressão de grupos hegemônicos.

É fundamental que a gente consiga observar que os inimigos da democracia podem estar na própria democracia. Se você absolutiza a liberdade de expressão, você sobreleva a liberdade de expressão de determinados grupos e causa um efeito silenciador de outros grupos que não possuem o mesmo acesso aos mecanismos para exercer plenamente a sua liberdade de expressão.

Havia uma crença de que, com a internet, iria se democratizar a possibilidade de fala. Hoje isso mudou. Como avalia? A internet pode ser um meio importante para veicular e ampliar a fala, mas ela é uma reprodução da sociedade. Então, se nós temos uma sociedade misógina, racista e LGBTfóbica, isso vai se reproduzir nas redes sociais também. E há várias camadas nessa discussão. Entre elas, o próprio acesso à internet, que não é igualitário. Isso também tolhe a possibilidade de determinados grupos de participar com a igualdade do debate público e da produção de políticas públicas.

Na atual campanha, a Justiça Eleitoral tem decidido pela remoção de conteúdos que considera inverídicos. Como avalia? É uma questão complexa. O que se estabelece em termos constitucionais e de direitos não é a censura prévia, mas a responsabilização pelo conteúdo, incluindo discursos de ódio e informações inverídicas que podem minar o processo democrático. Sem imputar responsabilidades, é muito difícil que a gente consiga um processo democrático que realmente garanta a pluralidade de vozes. Então a gente acaba tendo uma ditadura da liberdade de expressão a favor de determinados grupos.

Como assim? Nenhum direito é absoluto. A liberdade de expressão é um valor muito consagrado nas democracias. O que acontece é que, se a própria liberdade acaba sendo usada como veículo para minar o processo democrático, então acaba sendo uma ditadura da liberdade de expressão, porque ela vai justamente beneficiar quem já está no poder e vai tolher a liberdade de expressão de outras pessoas. A ditadura da liberdade de expressão permite que as pessoas que acessam de maneira privilegiada esse direito dominem o cenário político e as políticas públicas. A ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo democrático.

Lívia Sant’Anna Vaz, 42
Promotora de Justiça no Ministério Público da Bahia, na área de combate ao racismo e à intolerância religiosa. Mestre em direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e doutora pela Universidade de Lisboa. Autora de “A Justiça É uma Mulher Negra” (ed. Letramento) e “Cotas Raciais” (ed. Jandaíra)

Democratas contra a democracia? por Oscar Vilhena Vieira

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Nem todas as pessoas entendem a democracia de uma mesma forma

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 22/10/2022

O que leva uma parcela de eleitores que se manifestam favoráveis à democracia a escolherem governantes autoritários, que desprezam valores democráticos e atacam sistematicamente as suas instituições, como vem ocorrendo em países tão distintos como Estados Unidos, Hungria ou Brasil?

Nada menos que 79% dos brasileiros, conforme o último levantamento realizado pelo Datafolha, apontam a democracia como a melhor forma de governo. Para apenas 5%, a ditadura é melhor regime. Como explicar, então, um apoio significativo a um candidato abertamente autoritário como Bolsonaro?

Duas hipóteses podem ajudar a compreender esse aparente paradoxo. A primeira é de natureza conceitual. Nem todas as pessoas entendem a democracia de uma mesma forma. Para a tradição liberal e também social-democrata, embora as eleições sejam o elemento central do regime democrático, o exercício do poder político deve estar submetido a um sistema de freios e contrapesos, para que não se torne arbitrário, devendo ainda ser exercido em conformidade com os direitos fundamentais, para que todos sejam tratados com igual respeito e consideração.

Para os populistas, no entanto, a democracia se resumiria à escolha de um líder que se identifique com os sentimentos da maioria. Mais do que isso, o sistema de freios e contrapesos e mesmo os direitos fundamentais devem e podem ser removidos ou subjugados, quando constituírem obstáculos à realização da vontade da maioria.
Creio que uma fração significativa dos eleitores brasileiros, que antes não se importavam muito com o regime político ou que se frustraram com o modelo de democracia adotado em 1988, se deixaram seduzir por uma concepção insustentável de democracia populista. Por essa razão, esses eleitores não veem nenhuma contradição em se declararem democratas e ao mesmo tempo apoiarem um candidato que despreza os valores democráticos e detona suas instituições.

Mas essa hipótese sozinha não explica por que parcela significativa dos eleitores, que além de democratas também se veem como pessoas de bem, aceitam votar em alguém destituído das virtudes mais básicas a um governante em um regime democrático, como a demonstração de empatia pelo sofrimento alheio; alguém que pratica o desrespeito às leis como método de governo; assim como alguém que despreza e discrimina a maioria da população, composta por pobres, mulheres e negros.

Creio que a rompante polarização, que substitui a razão e o diálogo pela crença cega e o conflito, pode ajudar a explicar a segunda parte desse paradoxo. Não se trata de uma polarização meramente política ou ideológica. Mas sim de uma polarização visceral e assimétrica, forjada no contexto de grupos de identidade eletiva, que mobilizam o medo e a hostilidade em relação àqueles que não pertencem ou discordam das visões do grupo.

Nesse tipo de polarização, alavancada pelo líder populista, a afiliação ao grupo passa a ser determinante das escolhas individuais, mesmo em assuntos que transcendem os interesses do grupo, subvertendo o senso comum, que nos ajuda a separar o certo do errado, o decente do indecente, a verdade da mentira.

Que a responsabilidade e o bom senso de uma maioria plural, que abraça uma concepção mais liberal e generosa de democracia, prevaleça nas urnas no próximo dia 30.

Crise com queda de Liz Truss lembra que brexit custa caro e isola Reino Unido

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Partido Conservador governa com arrogância travestida de autoconfiança

Carolina Pavese, Doutora em relações internacionais pela London School of Economics e professora da ESPM
Folha de São Paulo – 22/10/2022

A renúncia de Liz Truss, nesta quinta (20), foi recebida com um misto de consternação e resiliência pelos britânicos —afinal, já era em certa medida esperada. Os últimos quatro primeiros-ministros abandonaram o navio em naufrágio. Além de pertencerem ao Partido Conservador, todos também ficaram marcados pela incapacidade de redefinir a identidade do Reino Unido nas relações internacionais pós-Brexit.

Ignorando um contexto em que já não há espaço para grandes impérios, os conservadores instauraram o caos. Após anos de governo dos trabalhistas, o partido se consolidou majoritário nas eleições de 2010, com David Cameron como primeiro-ministro. Cinco anos depois, ele recorreu a discursos nacionalistas e eurocéticos para agradar a certos eleitores, comprometendo-se a convocar um referendo se ficasse no poder. Vitorioso, cumpriu a promessa.
Em junho de 2016, 54% dos eleitores optaram por deixar a União Européia. A campanha vitoriosa foi marcada por narrativas sensacionalistas, disseminação de fake news e discursos xenófobos, revivendo com saudosismo a ideia de um império. Cameron, que ironicamente havia defendido a permanência no bloco, renunciou quando percebeu o problema que criara.

Desde então, foram três novos líderes conservadores (Theresa May, Boris Johnson e Liz Truss), todos reafirmando o discurso de que uma grande potência como o Reino Unido anda melhor sozinha. É justamente essa arrogância, travestida de autoconfiança, o ponto franco da política externa britânica; o erro de análise permeia toda a história das interações entre o país e a União Europeia.

Em discurso histórico na Universidade de Zurique, em setembro de 1946, Winston Churchill argumentou em favor da criação de “uma espécie de Estados Unidos da Europa”, com a participação da França e da Alemanha, mas sem a adesão do Reino Unido. Em 1951, o Tratado de Paris criou o embrião do processo de integração, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, ampliado para mais dois grupos em 1957.

Na década de 1960, os britânicos pleitearam a adesão à então Comunidade Europeia. Charles de Gaulle, presidente da França na época, opôs-se, argumentado que o Reino Unido seria um “cavalo de Troia” —a história mostrou que não estava errado. Finalmente aceitos no bloco em 1973, os britânicos não pareciam convencidos da ideia, e em 1975 realizaram um primeiro referendo sobre a permanência; 67% da população optou por ficar.

Ao longo das quatro décadas que se seguiram, a participação na UE foi marcada por tentativas de frear certas agendas e buscar uma participação seletiva na medida do possível para “preservar sua soberania”. Foi concedido, por exemplo, o direito de o Reino Unido não aderir a um acordo de 1993 e preservar sua moeda. Por outro lado, houve inegável reforço de uma interdependência comercial e econômica e ganhos mútuos em projeção política.

Em 2015, ano anterior ao referendo do brexit, 44% das exportações e 53% das importações de bens e serviços britânicas tinham o bloco europeu como mercado. Mais de 3 milhões de empregos estavam ligados às exportações para a UE, também o maior investidor direto do mercado financeiro britânico (48% dos investimentos em 2014).

A saída do bloco levou à revogação de acesso ao livre mercado. Estudo do think tank europeu Instituto de Pesquisa Econômica e Social estimou que o valor das exportações de Londres para Bruxelas está 16% abaixo do que num cenário sem o brexit, enquanto importações caíram 20%. O resultado na economia é claro.
Continuar ignorando a importância do mercado europeu é insistir no erro. A solução passa exatamente em priorizar o comércio com a UE e se empenhar em derrubar as barreiras impostas pelo brexit. Há, ainda, a necessidade de definir as relações bilaterais com Bruxelas, ancoradas em um acordo temporário e com muitos pontos de tensão, como a questão com a Irlanda do Norte.

A perda de mercado se estende aos mais de 41 acordos comerciais que o bloco possui com cerca de 70 países. Depois do brexit, o Reino Unido se empenhou em estabelecer os próprios acordos preferenciais —hoje são 33, muitos com vigência temporária e poucos com a abrangência dos europeus.

A menor atratividade tem reverberado na dificuldade de celebrar pactos com parceiros estratégicos, como os EUA.

Fica claro que não é possível retornar ao passado glorioso sem abraçar a globalização e enfrentar as contradições do capitalismo. Não há espaço para protecionismo nem nacionalismo, sobretudo em uma economia tão inserida no mercado global e altamente dependente de mão de obra estrangeira.

O que preocupa é que os conservadores continuam inclinados inclinados a reforçar esse discurso populista.

É importante ressaltar que o Reino Unido tem posição de destaque em processos globais de tomada de decisão, como membro de G7, G20, FMI, Banco Mundial, Otan e Conselho de Segurança da ONU. Permanece sendo, apesar da crise, uma das maiores economias do mundo. Assim, é protagonista.

A questão é que agora age sozinho —o que não seria ruim em outro contexto. Diante da crise econômica e da instabilidade política, vê sua reputação comprometida. Na ausência de perspectivas de reverter esse panorama, crescem os custos do brexit.

Ao subjugar a importância da cooperação com a Europa continental, o Reino Unido perde oportunidades de ampliar seu protagonismo nas relações internacionais. Torna-se mais forte a percepção do erro cometido. Era melhor estar mal acompanhado do que só.

Mundo em transe

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É comum discutirmos neste espaço as crescentes instabilidades e incertezas da economia global, os ciclos econômicos se repetem constantemente, gerando momentos de crescimento e quedas abruptas, que geram preocupações, medos e desequilíbrios para toda a comunidade internacional. Neste momento, percebemos que a sociedade mundial passa por grandes transformações, modelos dominantes e consolidados durante décadas estão sendo superados por novos modelos de negócios, gerando poucos empregos, grandes incertezas, medos e preocupações que repercutem sobre as relações sociais, aumentando os conflitos nas estruturas produtivas, desagregações familiares, crescimento da depressão, ansiedades e novos desequilíbrios sociais, psicológicos e emocionais.

A integração econômica ganhou relevância na economia internacional desde os anos 1980, aumentando a competição entre os agentes econômicos, incrementando a concorrência entre empresas, governos e indivíduos, impulsionando a produtividade dos setores produtivos, aumentando a complexidade tecnológica, barateando produtos, mercadorias e serviços. Neste movimento, percebemos uma busca crescente por novos espaços de produção em escala global, os grandes conglomerados passaram a buscar países com mão-de-obra abundante e salários reduzidos, com isso, os países ocidentais perderam empresas e as nações asiáticas ganharam novos investimentos, novos espaços de acumulação, fortalecendo os oligopólios e consolidando um novo modelo produtivo global.

Neste momento surgem as cadeias de produção global, onde as nações orientais ganham espaços na lógica produtiva e os grandes conglomerados econômicos e financeiros passam a pressionar as nações em desenvolvimento, exigindo a adoção de medidas liberalizantes, redução do protecionismo, aumentando a concorrência, gerando a desnacionalização dos setores produtivos, reduzindo benefícios sociais, degradando o trabalho e aumentando os ganhos dos setores financeiros, que ganham lucros crescentes com taxas de juros elevadas em detrimento da fragilidade do poder de compra da população, aumentando a desigualdade e a degradação das condições sociais, um fenômeno desta envergadura se espalhou para a comunidade internacional.

A pandemia aumentou os desequilíbrios econômicos, matando milhões de indivíduos em escala internacional, degradando as cadeias produtivas, impactando sobre a oferta de produtos, elevando os custos produtivos e trouxeram de volta o fantasma da economia mundial, levando os bancos centrais a adotarem choques de juros que aumentam os custos do capital, elevando o endividamento, degradando a renda das famílias, reduzindo as vendas e criando ambientes de fragilidades econômicas.

Dentro deste cenário de incertezas e instabilidades crescentes, o conflito militar entre Ucrânia e Rússia traz de volta um outro fantasma na sociedade internacional, o medo de um conflito nuclear, cujas consequências são impensáveis. A entrada da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito, além dos países europeus e asiáticos, como a China e a Índia, podem levar a sociedade internacional a uma terceira guerra mundial, com dimensões inimagináveis, impensáveis e destrutivas.

Além dos desequilíbrios globais destacamos a fragilização da democracia, levando governos das mais variadas matizes ideológicas a adotarem políticas autoritárias, fragilizando a democracia, criminalizando a política, reprimindo as minorias, aparelhando o judiciário, degradando as instituições de Estado e garantindo ganhos substanciais para setores específicos da comunidade, estimulando o cassino financeiro, culminando num processo de desindustrialização e aumentando a dependência da estrutura econômica internacional.

Neste ambiente de incertezas e instabilidades, marcados por momentos de medos e ameaças de desastres nucleares, precisamos reconstruir os instrumentos para superarmos este momento de desequilíbrios globais. A coesão política interna é fundamental, lideranças conscientes com forte capacidade de aglutinação dos agentes sociais, além da visão estratégica e o planejamento para construirmos um verdadeiro projeto nacional, sem isso, continuaremos fomentando discussões desnecessárias, discursos de ódio e ressentimento, difundindo inverdades e caminhando diretamente para o caos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 19/10/2022.

Xi Jinping deve reassumir China com economia mais lenta e múltiplas crises, por R. Zeidan.

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Guerra da Ucrânia, alta da inflação e desaquecimento do mercado imobiliário chinês são obstáculos para líder do Partido Comunista

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 18/10/2022

Xi Jinping deve ser reconduzido a um terceiro mandato de cinco anos no meio de várias crises: Covid, Guerra da Ucrânia, conflitos comerciais com os EUA, desaquecimento do mercado imobiliário local e aumento global da inflação.

O 20° Congresso do Partido Comunista Chinês começou neste domingo (16). Enquanto nos últimos congressos o clima era de otimismo (e até certa megalomania com o sucesso econômico do país), neste, a determinação das diretrizes econômicas e políticas têm caráter de urgência. Como será que o terceiro mandato do presidente Xi Jinping vai lidar com todas as mudanças mundiais ocorridas desde que ele foi reconduzido em 2017?

No último congresso, em 2017, 2.280 delegados representaram os cerca de 89 milhões de membros do partido. Durante o evento, eles introduziram o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas na constituição do partido e estabeleceram diversos cronogramas concretos para atingir metas de desenvolvimento.

Em agosto de 2021, Xi Jinping introduziu o conceito de “prosperidade comum”, dando a entender que o foco do seu terceiro mandato seria diminuir sobremaneira a desigualdade de renda chinesa, que é bem alta para os padrões asiáticos. Algumas das consequências imediatas foram a reforma educacional, que limitou os “cursinhos”, introdução de impostos sobre propriedade e aumento da contribuição para a previdência social daqueles que ganham maiores salários. Mas, hoje, o foco mudou.

A economia chinesa, pela primeira vez em décadas, vai crescer menos (2,5%) do que os outros países em desenvolvimento asiáticos (5%). É bom lembrar que para muitos países, um crescimento de 2,5% não é tão baixo assim, mas esse não é o caso do gigante asiático. Na China, mais de 500 milhões de pessoas ainda vivem oficialmente em áreas rurais. No momento em que alguém se muda para uma cidade ou a cidade muda para o campo (urbanização, hoje, é muito mais um processo de transformar áreas rurais em cidades do que expandir centros urbanos), sua produtividade triplica. Assim, urbanização por si só praticamente garante que a China deve crescer 2% ou 3% ao ano pelos próximos 10 a 20 anos. Ou seja, a não ser pelo crescimento natural das transformações urbanas, a economia chinesa deve andar de lado neste ano.

Grande parte da razão para isso é escolha. O cordão sanitário continua de pé e o objetivo das autoridades locais continua sendo minimizar a transmissão de Covid pelo país. Os testes quase diários de boa parte da população devem custar U$ 100 bilhões em 2022, ou 0,5% do PIB. Mas os maiores custos são indiretos: a queda da atividade pela diminuição dos movimentos das pessoas pelo país e limitação de vários serviços pelos lockdowns pontuais onde pipocam casos de Covid.

Por exemplo, um amigo está com seu bar em Xuhui, bairro central de Shanghai, fechado desde o início do ano, pois as autoridades locais ainda consideram que é mais seguro manter negócios pequenos fechados. É bom lembrar que as decisões sobre a pandemia são muito descentralizadas no país e mesmo na cidadea maioria dos bares em Xangai só fechou durante o lockdown da cidade que acabou no início de junho).

Mas a tendência do cordão sanitário é de afrouxamento. A quarentena, que era de 14 dias em hotel mais sete dias de monitoramento, agora é de 7+3. Antes, as viagens para a China tinham que ser feitas em voos diretos, se houvesse previsão destes; hoje, é possível fazer escalas. Ou seja, o país deve reabrir as fronteiras lentamente, mas caminha para isso inexoravelmente. Os principais obstáculos do terceiro mandato de Xi Jinping não incluem o vírus.
Internamente, a crise imobiliária vai demorar a ser deglutida pelo sistema econômico, mesmo que não haja risco de crise financeira. E, externamente, o processo de “decoupling” entre EUA e China continua a todo vapor, especialmente depois da nova rodada de sanções impostas pelos americanos.
Em um país em rápida urbanização, a desestabilização do sistema imobiliário reverbera em vários setores. Por exemplo, cerca de 20% das receitas de autoridades locais vêm de vendas de terras públicas para construção de imóveis residenciais e comerciais. Mas neste mandato, espera-se que a arrecadação por esses leilões caia 30% em comparação ao ano passado, no qual o total já foi menor que em 2020. Ainda assim, como o sistema financeiro chinês é isolado do mundo (há fortes controles de capitais e bancos privados quase não podem operar no país), não há risco para a estabilidade do sistema.

Se houver sinais de recuperação, não falta espaço para que o consumo interno volte forte. As taxas de poupança no país, por exemplo, são altíssimas. O FMI estima que se as famílias chinesas consumissem a sua renda da mesma forma que no Brasil, o consumo agregado chinês mais que dobraria.

Mas a grande apreensão para o resto do mundo vem dos rumos da guerra comercial entre EUA e China. Na sexta-feira, dois dias antes do congresso do PCC, os norte-americanos anunciaram o último e maior alvo na guerra comercial contra o gigante asiático. Basicamente, os EUA proibiram a exportação de qualquer componente ou equipamento que possibilite a produção de semicondutores na China a não ser que os produtores tenham uma autorização especial do governo. Mais ainda, o governo americano proibiu cidadãos americanos de trabalhar com empresas chinesas do setor. Dezenas de executivos já tiveram que pedir demissão.

Com todos esses problemas, o clima no congresso do PCC não é de otimismo. O presidente já anunciou que vêm “tempos turbulentos” por aí. Isso inclui, por exemplo, aumentar a segurança alimentar, uma preocupação desde a grande fome do final da década de 50, mas que virou prioridade depois da pandemia e da Guerra da Ucrânia. Isso significa aumento de gastos militares e intervenção na economia. As reformas prometidas no 19º congresso não devem se concretizar.

O governo aposta em um “grande rejuvenescimento”, no qual as indústrias locais seriam suficientes para suprir o desenvolvimento chinês. Mas elas não são. A China foi uma das grandes beneficiárias do processo de globalização, que basicamente foi revertido com a eleição de Donald Trump. No fundo, o governo de Xi Jinping está em uma encruzilhada. A economia é muito maior que quando ele assumiu o poder, assim como o papel geopolítico chinês.

Apesar de o processo econômico não ter se esgotado, a posição dos EUA como adversários assumidos e os problemas internos limitam a gama de ações do governo. Mais do que os anúncios do congresso do Partido, importam as ações do governo nos próximos meses. Como o governo chinês reagirá às sanções americanas? O processo de afrouxamento do cordão sanitário continuará? A China vai mediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia ou vai continuar se abstendo do processo?

No fundo, superestimamos a China no curto prazo e a subestimamos no longo prazo. Um país com 1,4 bilhões de pessoas e com potencial econômico gigantesco ainda pode ser o motor do crescimento mundial. Mas o que parecia ser um destino manifesto se tornou muito mais difícil. O terceiro mandato do Presidente Xi Jinping não começa com poucos obstáculos. Vamos ver como ele lida com eles.

Pochmann: o exemplo chinês

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Em 20 anos, economia do país saltou da 23ª posição para a 2ª. Assume cada vez mais protagonismo na era digital: produz 80% dos painéis solares, 50% dos computadores e 45% dos veículos elétricos. Uma inspiração ao Brasil: é possível superar a pasmaceira

Marcio Pochmann – OUTRAS PALAVRAS – 17/10/2022

A China deslocou o centro dinâmico econômico mundial. Até o século 18, a Ásia, que abrigava as maiores economias da Era Agrária, perdeu posição para o Ocidente, que promovia a nova Era Industrial. Com a primeira Revolução Industrial (1750), a Inglaterra assumiu a centralidade no sistema capitalista de gravidade global e só foi substituída pelos Estados Unidos com o salto gerado pela segunda Revolução Industrial a partir do século 20.

De forma inédita desde os anos 1870, quando superaram o Produto Interno Bruto (PIB) do Reino Unido, os EUA se encontram atualmente diante de um adversário que assumiu a principal responsabilidade pelo dinamismo econômico

global. Depois da crise financeira de 2009, a China passou a responder por mais de 1/3 do crescimento da produção do mundo, assumindo cada vez mais o protagonismo na Era Digital.

Pela medida de riqueza da paridade do poder de compra adotada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia chinesa já ultrapassou o PIB dos EUA em 15%. Os reflexos dessa escalada interferem em diversas dimensões no relacionamento entre a China e os EUA, bem como na reconfiguração do restante do mundo.

Por conta disso, a transformação na geopolítica global é significativa. Ao final da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, somente os EUA representavam quase a metade do PIB global, o que permitiu construir a Ordem Mundial estruturada nos sistemas: monetário de Bretton Woods, comercial de livre comércio (GATT), da gestão econômica (FMI e Banco Mundial) e militar (OTAN).

Ao final da Guerra Fria em 1991, contudo, a presença dos EUA no PIB global havia decaído para 1/5 e, atualmente, para somente 1/6. Com isso, o projeto de modernidade Ocidental parece dar lugar à modernidade Oriental conduzida pela China, cujo marco tem sido o projeto de integração assentado pela nova Rota da Seda. Por ser a base de poder global, o PIB de uma nação termina por refletir, em maior ou menor medida, a expressão das forças tecnológica, monetária, econômica e militar. Neste sentido, a influência da China tem sido proporcionalmente maior na formação e decisão dos assuntos internacionais desde o início do século 21.

Por ter assumido a condição de oficina do mundo, a ascensão da China no setor manufatureiro alterou profundamente a competitividade econômica dos países. Enquanto a economia chinesa entre 2000 e 2020 saltou da 23ª posição para a 2ª (só superada pela Alemanha), os EUA decaíram da primeira para a quarta posição.

A China, que possuía apenas 10 empresas entre as 500 maiores do mundo em 2000, passou a ter 124 destas empresas em 2020, ultrapassando os EUA, que registraram 121 na lista da Revista Fortune. O sucesso chinês se traduz no fato de ser o elo-chave das cadeias de suprimentos globais de valor.

A dependência das economias da China se acelerou ainda mais com a pandemia da Covid-19, chegando a controlar cerca de 45% dos veículos elétricos, 50% dos computadores, 80% dos painéis solares e 90% dos minerais da terra. Em 2021, por exemplo, o superávit comercial da China com o mundo foi de 675 bilhões de dólares, um recorde, considerando que foi 60% superior ao do ano de 2019.

Embora o Brasil tenha perdido posição relativa, diante da retomada do neoliberalismo nos últimos anos, sua participação no PIB global de 2,3% medido pelo poder de compra, levemente abaixo do seu peso na população mundial (2,8%), ainda permite a ele estar na parada da disputa de futuro e avançar na Era Digital. Por mais que o governo atual possa apostar contra o Brasil, a esperança se afirma em relação ao ano que vem, quando o Brasil poderá retomar a via do desenvolvimento sustentável com inclusão social e aprofundamento democrático, superando o que hoje parece ser insuperável.

Terapia de choque na economia mundial, por Michael Roberts.

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A alta dos juros, imposta agora por quase todos os bancos centrais, não pretende reduzir a inflação. Visa criar mais desemprego, esvaziar o poder de luta dos trabalhadores e ampliar os lucros. Não dará certo, e o sofrimento será imenso

Michael Roberts – OUTRAS PALAVRAS – 13/10/2022

O termo “terapia de choque” foi usado para descrever a mudança drástica de uma economia planejada, baseada na propriedade estatal, existente na antiga União Soviética, para um modo de produção capitalista integral, em 1990. Eis que produziu uma grande queda nos padrões de vida, por uma década.

O termo “doutrina do choque” foi usado por Naomi Klein para descrever a destruição dos serviços públicos e do Estado de bem-estar pelos governos a partir da década de 1980. Agora, os principais bancos centrais estão aplicando uma “terapia de choque” na economia mundial: estão aumentando as taxas de juros com a intenção de controlar a inflação, mesmo havendo crescente evidência de que isso levará a uma recessão global no próximo ano.

Veja-se o que dizem alguns de seus porta-vozes. Chris Waller, membro do conselho do Federal Reserve [Fed, o banco central dos EUA] deixou bem clara essa intenção ao afirmar que “não estou pensando em desacelerar ou interromper os aumentos das taxas devido a preocupações com a estabilidade financeira”. Ou seja: mesmo que o aumento das taxas de juros comece a abrir fissuras nas instituições financeiras e em seus ativos especulativos, isso não importa.

Da mesma forma, Joachim Nagel, presidente do Deutsche Bundesbank, está resoluto em manter esse objetivo, apesar de a zona do euro e da Alemanha em particular já entrarem em recessão: “As taxas de juros devem continuar a subir – e de forma significativa”. Veja-se Nagel não quer apenas taxas de juros mais altas; ele quer que o BCE reduza seu balanço, ou seja, que não apenas pare de comprar títulos do governo, para manter os rendimentos dos títulos baixos; mas que, na verdade, passe a vender títulos, aumentando os seus rendimentos e contraindo a liquidez.

Eis o que Nagel afirma: “há um choque no preço da energia, cujos efeitos o banco central não pode mudar muito no curto prazo. No entanto, a política monetária pode impedir que ele salte e se amplie. Dessa forma, estamos quebrando a dinâmica da inflação e trazendo a evolução dos preços para nossa meta de médio prazo. Temos os instrumentos para isso, principalmente a alta das taxas de juros.”

Toda essa conversa machista dos banqueiros centrais esconde a realidade. O aumento das taxas de juros não reduzirá diretamente as taxas de inflação para os níveis pretendidos sem uma grande queda recessiva. Isso ocorre porque as atuais taxas de inflação, as maiores dos últimos de 40 anos, não foram causadas principalmente por “demanda excessiva” – ou seja, por gastos de famílias e governos –, mas devido à “oferta insuficiente”, particularmente na produção de alimentos e energia, mas também em produtos manufatureiros e tecnológicos mais amplamente.

Como se sabe, o crescimento da oferta foi restringido pelo baixo crescimento da produtividade nas principais economias, pelos bloqueios da cadeia de suprimentos na produção e no transporte, os quais surgiram durante e após a queda da covid e, mais recentemente, pela invasão russa da Ucrânia e pelas sanções econômicas impostas à Rússia pelos Estados ocidentais.

Estudos empíricos confirmaram que a espiral da inflação foi liderada pela oferta. Em um novo relatório, o Banco Central Europeu (BCE) constatou que mesmo o aumento do núcleo de inflação, que exclui os fatores de oferta de alimentos e energia, foi impulsionado principalmente por restrições de oferta. Eis o que está dito nesse relatório:

Os gargalos persistentes no fornecimento de bens industriais e a escassez de insumos, incluindo escassez de mão de obra devido em parte aos efeitos da pandemia de coronavírus (covid-19), levaram a um aumento acentuado da inflação… interrupções e gargalos de fornecimento e componentes fortemente afetados pelos efeitos da reabertura após a pandemia contribuíram juntos com cerca de metade (2,4 pontos percentuais) da inflação na área do euro em agosto de 2022.

Em seu último relatório sobre a situação do comércio e do desenvolvimento, a UNCTAD chegou a conclusão semelhante. Os seus técnicos calcularam que cada aumento de um ponto percentual na taxa básica de juros do Fed reduziria a produção econômica nos países ricos em 0,5% e em 0,8% nos países pobres, nos próximos três anos. Anotou, também, que aumentos mais drásticos, de 2 e 3 pontos percentuais, deprimiriam ainda mais a “recuperação econômica já estagnada” nas economias emergentes.

Ao apresentar o relatório, Richard Kozul-Wright, chefe da equipe da UNCTAD que preparou esse relatório, perguntou: “É certo tentar resolver um problema do lado da oferta com uma solução do lado da demanda?”. E respondeu: “Achamos que é uma abordagem muito perigosa.” Exatamente.

Parece claro que os bancos centrais não conhecem as causas do aumento da inflação. Como confessou o presidente do Fed, Jay Powell: “entendemos melhor agora o quão pouco entendemos sobre inflação”. Ora, trata-se na verdade de uma abordagem ideológica por parte dos banqueiros centrais. Toda a conversa deles tem por trás o medo de uma espiral de preços e salários. É isso o que, no fundo, sustentam: à medida que os trabalhadores tentam compensar os aumentos de preços negociando salários mais altos, isso provocará mais aumento de preços, elevando as expectativas de inflação.

Martin Wolf, o guru keynesiano do Financial Times, resumiu essa teoria: “o que [banqueiros centrais] devem fazer é evitar uma espiral de preços e salários, que desestabilizaria as expectativas de inflação. A política monetária deve ser rígida o suficiente para conseguir isso. Em outras palavras, deve criar/preservar alguma folga no mercado de trabalho.” Portanto, dada essa “teoria”, trata-se de evitar que os salários subam, mesmo que isso possa aumentar o desemprego.

O chefe do Fed, Jay Powell, considera, no entanto, que esse resultado pode ser evitado. Segundo ele, a tarefa do Fed consiste “em princípio, (…) em moderar a demanda (…) obtendo uma redução dos salários, assim como da inflação, sem ter que desacelerar a economia e sem uma recessão que aumente o desemprego. Eis que há, pois, um caminho para obter esse resultado”.

Como disse o governador do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey: “não estou dizendo que ninguém vai receber aumento salarial – não me entendam mal. O que estou dizendo é que precisamos de moderação na negociação salarial, pois, em caso contrário, ela ficará fora de controle”.

Considere-se, agora, esta afirmação do principal macroeconomista do chamado mainstream, Jason Fulman: “Quando os salários sobem, isso leva os preços a subir. Se o combustível das companhias aéreas ou os ingredientes alimentares subirem de preço, as companhias aéreas ou os restaurantes aumentarão seus preços. Da mesma forma, se os salários dos comissários de bordo ou servidores subirem, eles também aumentarão os preços. Isso decorre do micro e do senso comum básico”.

Ora, tanto essa “microeconomia básica” quando esse “senso comum” postulados são bem falsos. A teoria e o suporte empírico para a inflação dos custos salariais e a teoria das expectativas de inflação são falaciosos.
Marx contestou a afirmação de que os aumentos salariais levam automaticamente a aumentos de preços há cerca de 160 anos, em um debate com o sindicalista Thomas Weston. Este afirmara que os aumentos salariais eram autodestrutivos, pois os empregadores apenas aumentariam os preços e os trabalhadores voltariam à estaca zero. Marx argumentou – como consta em Valor, Preço e Lucro – que “uma luta por aumento de salários segue apenas o rastro de mudanças anteriores nos preços”. Há muitas outras coisas que afetam as mudanças de preços: “a quantidade de produção, as forças produtivas do trabalho, o valor do dinheiro, as flutuações dos preços de mercado, as diferentes fases do ciclo industrial”.

Como se vê, agora, baixar os salários é a resposta dos bancos centrais ao aumento persistente dos preços. Mas os salários não estão aumentando como parcela da renda nacional ou do valor da produção; pelo contrário, é a participação nos lucros que vem aumentando desde e durante a pandemia.

De acordo com o relatório da UNCTAD, entre 2020 e 2022 “estima-se que 54% do aumento médio de preços no setor não financeiro dos Estados Unidos foi atribuído a margens de lucro mais altas, em comparação com apenas 11% nos 40 anos anteriores”. O que tem impulsionado o aumento da inflação tem sido o custo das matérias-primas (alimentos e energia em particular) e o aumento dos lucros, não dos salários. Não se encontra, porém, uma fala sobre uma possível espiral de lucro-preço, tal como se encontra nas manifestações dos bancos centrais.

Ora, esse foi outro ponto levantado por Marx no debate com Weston: “Um aumento geral na taxa de salários resultará em uma queda da taxa geral de lucro, mas não afetará os preços das mercadorias”. Logo, o que realmente preocupa os banqueiros centrais vem a ser uma queda na lucratividade.

Assim, os bancos centrais continuam aumentando as taxas de juros, passando da flexibilização quantitativa (QE) para o aperto quantitativo (QT). E eles estão fazendo isso simultaneamente em todos os continentes. Essa “terapia de choque”, empregada pela primeira vez no final da década de 1970 pelo então presidente do Fed dos EUA, Paul Volcker, acabou levando a uma grande queda da produção global, entre 1980-2.

A maneira como os bancos centrais estão combatendo a inflação por meio da elevação simultânea das taxas de juros está colocando também uma pressão enorme no sistema financeiro global: à medida que atuam nas economias avançadas, eles afetam também os países de baixa renda.

O que está espalhando o impacto do aumento das taxas de juros na economia mundial é o fortalecimento do dólar norte-americano. Houve uma alta de cerca de 11% desde o início do ano e ela produziu – pela primeira vez em duas décadas – a paridade do dólar com o euro. O dólar está forte porque se apresenta como um porto seguro para o dinheiro diante da inflação e das sanções e da guerra na Europa.

Ora, o dólar se fortalece porque a taxa de juros nos EUA está em alta. Em consequência, moedas importantes de outros países se desvalorizaram em relação ao dólar. Isso é desastroso para muitos países pobres ao redor do mundo. Muitos países – especialmente os mais pobres – não podem tomar empréstimos em sua própria moeda no valor ou nos vencimentos que desejam.

Diante desse quadro, os credores não estão dispostos a assumir o risco de serem pagos de volta nas moedas voláteis desses devedores. Em vez disso, esses países costumam tomar empréstimos em dólares, prometendo pagar suas dívidas em dólares – independentemente da taxa de câmbio. Assim, à medida que o dólar se torna mais forte em relação a outras moedas, esses pagamentos se tornam muito mais caros em termos de moeda nacional.

O Instituto de Finanças Internacionais informou recentemente que “os investidores estrangeiros retiraram fundos dos mercados emergentes por cinco meses consecutivos na maior sequência de saques já registrada”. Este é o capital de investimento crucial que está saindo dos países emergentes em direção à “segurança” das moedas fortes, principalmente o dólar.

Além disso, à medida que o dólar se fortalece, as importações se tornam caras (em termos de moeda doméstica), forçando as empresas a reduzir seus investimentos ou gastar mais em importações cruciais. A ameaça do a inadimplência está crescendo assustadoramente.

Tudo isso está acontecendo por causa da tentativa dos bancos centrais de aplicar uma “terapia de choque” para enfrentar o aumento da inflação global. A realidade é que os bancos centrais não podem controlar as taxas de inflação com a política monetária, especialmente quando ela é orientada para a oferta.

O aumento dos preços não foi impulsionado pela “demanda excessiva” dos consumidores por bens e serviços ou por empresas investindo pesadamente, ou mesmo por gastos governamentais descontrolados. Não é a demanda que é “excessiva”, mas o outro lado da equação de preços, ou seja, é a oferta que está muito fraca. E essa última, os bancos centrais não podem controlar!

Eles podem aumentar as taxas de juros o quanto quiserem, mas isso terá pouco efeito para reduzir o aperto do lado da oferta, exceto talvez para enfraquecê-la ainda mais. Esse aperto de oferta não se deve apenas a bloqueios de produção e transporte ou à guerra na Ucrânia; deve-se também, ainda mais, a um declínio subjacente de longo prazo no crescimento da produtividade das principais economias – ademais, por trás desse decaimento, há o declínio persistente do investimento devido à falta de lucratividade.

Ironicamente, o aumento das taxas de juros reduzirá os lucros. Os analistas já reduziram suas expectativas de ganhos no terceiro trimestre das grandes empresas dos EUA em US$ 34 bilhões, nos últimos três meses. Os analistas agora estão antecipando o menor aumento nos lucros desde o pico da crise do Covid. Eles esperam que as empresas listadas no índice de ações norte-americano S&P 500 registrem um crescimento de lucro por ação de apenas 2,6% no trimestre de julho a setembro, em comparação com o mesmo período do ano anterior.

É uma terapia de choque que afeta a economia global, mas não a inflação diretamente. Quando as principais economias entrarem em queda sincronizada, a inflação deverá cair, mas como resultado da recessão.

Estado e Mercado têm o desafio de superar a semiestagnação juntos, por Lacerda.

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Antônio Corrêa de Lacerda – 16/10/2022

O Estado de São Paulo

A semiestagnação do crescimento econômico e o baixo nível de investimentos no Brasil geraram um passivo social imenso: 24,3 milhões de brasileiros estão fora do mercado de trabalho (subutilizados), o que corresponde a cerca de um quarto da população economicamente ativa; enquanto 125,2 milhões de pessoas convivem com algum grau de insegurança alimentar e outros 33 milhões passam fome diariamente.

A elevação do custo de vida e a deterioração fiscal também são aspectos importantes. Sob o ponto de vista da política econômica, superar nossas mazelas implicará uma profunda mudança de rumos. Os desafios da pandemia de covid-19, os reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia, com nova configuração geopolítica e implicações para as cadeias internacionais de suprimentos, representam também oportunidades.

A semiestagnação do crescimento econômico e o baixo nível de investimentos no Brasil geraram um passivo social imenso: 24,3 milhões de brasileiros estão fora do mercado de trabalho (subutilizados), o que corresponde a cerca de um quarto da população economicamente ativa; enquanto 125,2 milhões de pessoas convivem com algum grau de insegurança alimentar e outros 33 milhões passam fome diariamente.

A elevação do custo de vida e a deterioração fiscal também são aspectos importantes. Sob o ponto de vista da política econômica, superar nossas mazelas implicará uma profunda mudança de rumos. Os desafios da pandemia de covid-19, os reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia, com nova configuração geopolítica e implicações para as cadeias internacionais de suprimentos, representam também oportunidades.

A par das questões de ordem conjuntural, há também questões estruturais. Os investimentos exercem papel muito relevante para a superação da semiestagnação. A média da formação bruta de capital fixo em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que é o total dos investimentos realizados na economia envolvendo, além de infraestrutura, máquinas e equipamentos, é de apenas 17% do PIB, nível bem abaixo da média global, de 26% do PIB, e dos países em desenvolvimento, de 33% do PIB.

É preciso superar a falsa dicotomia entre Estado e mercado. Na verdade, as boas práticas e a literatura internacionais mostram que o papel do Estado é fundamental, mas também o setor privado é muito relevante para o desenvolvimento. O erro estaria em atribuir somente a um deles essa tarefa. Claramente o que se denota é que o Estado tem papéis que são imprescindíveis.

Outra falsa contradição é entre poupança e investimento. A economia tradicional, a teoria ortodoxa, sempre colocou a poupança como um pré-requisito para o investimento. Mas a experiência empírica e a boa literatura têm demonstrado que a poupança é o resultado do processo. O investimento pode ser financiado via crédito e financiamento e, a partir da sua realização e seus efeitos sobre a demanda efetiva, gerar, como resultado, formação de poupança.

As decisões de investimentos respondem à expectativa futura de demanda e à rentabilidade marginal do capital esperada. Um ambiente econômico favorável e uma perspectiva positiva de crescimento da demanda e de retorno do capital estimulam as decisões de investimentos, para os quais a poupança não é pré-requisito, mas resultado do processo.

PROFESSOR-DOUTOR, COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA POLÍTICA DA PUC-SP, É PRESIDENTE DO COFECON

Carta Mensal – setembro 2022

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Neste momento de grandes inquietações e preocupações com relação aos rumos da sociedade brasileira, percebemos que vivemos momentos de escolhas fundamentais, ideias de nação diferentes que opõem princípios e valores que geram receios e fortes indagações para o futuro da nação.

Vivemos momentos de escolhas difíceis que geram medos e preocupações, de um lado percebemos discursos de um grupo político que busca uma redução do Estado na economia, visto como uma forma de impulsionar as atividades produtivas, acreditando que o mercado é o grande gerador de crescimento econômico e a busca pelo desenvolvimento, gerando bem-estar social e melhorias das condições da população, garantindo empregos, salários e novas perspectivas para um ambiente marcado por grandes transformações. Defendendo mais privatização, mais concorrência, menor regulação e menor burocracia, acreditando que o mercado é o setor mais consistente para a construção do tão chamado desenvolvimento econômico.

Do outro lado, encontramos uma forma de enxergar a sociedade, embora acredite que estas visões não sejam antagônicas, acredito que são visões diferentes, onde esta corrente acredita que o processo de desenvolvimento prescinde do Estado Nacional, agente fundamental para construir o planejamento, formular as estratégias para garantir a melhoria e o bem-estar social da população. Nesta visão, o Estado deve incentivar o aumento da renda da comunidade, garantindo mais oportunidade para a população, garantindo empregos e melhora da renda, instrumentos fundamentais para angariarmos melhoras sociais e a empregabilidade.

Esta discussão vem ganhando espaço na sociedade brasileira desde a redemocratização, colocando em campos opostos grupos políticos que se enfrentam na contemporaneidade, representados pelo presidente atual e um ex-presidente, onde devemos destacar os indicadores econômicos, as performances e suas heranças como instrumento de tomada de decisão.

Para piorar as escolhas eleitorais precisamos acrescentar uma pitada de discussões desnecessárias e agressões constantes, discursos de ódios e de ressentimentos, além de políticas centradas em mentiras, as chamadas Fake News, e ataques verbais, onde percebemos o baixo nível das conversações, onde cada grupo usa sua retórica para devastar os opositores, com isso, percebemos o crescimento de discursos oportunistas, agressivos e carregados de ressentimentos.

Destacamos ainda, as agressões e ataques relacionadas as questões religiosas, gerando destruição de imagens, discursos agressivos estimulados por representantes religiosos que fomentam as agressividades, gerando um ambiente de confrontos e conflitos que podem criar constrangimentos e violências no decorrer do pleito e, principalmente, nos momentos finais das eleições, onde os grupos perdedores podem incorrer em convulsões, agressividades e ressentimentos.

O mês de setembro de 2022 foi marcado por grandes inquietações políticas, as eleições poderiam culminar num momento de exaltação na democracia brasileira, momento fundamental da consolidação das instituições nacionais, mostrando para a comunidade internacional que a sociedade brasileira estava madura e consciente da necessidade e importância dos avanços democráticos.

Setembro de 2002 nos trouxe a comemoração dos 200 anos da independência, um momento central da história nacional, mas infelizmente, as comemorações foram abortadas em prol de discursos eleitorais, carregados de ressentimentos, agressões e violências verbais, com isso, percebemos que caminhamos para uma eleição sem propostas, sem discussões relevantes e sem rumo para enfrentarmos os anos vindouros e perpetuando um futuro preocupante.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O ‘apagão’ de professores, por Estadão.

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Ante projeção de que faltarão 235 mil professores na educação básica em 2040, é urgente melhorar atratividade da carreira, hoje opção só de poucos jovens que se sentem vocacionados

O Estado de São Paulo – 15/10/ 2022

O Brasil corre o risco de não ter professores em número suficiente para lecionar na educação básica. O alerta, muito oportuno neste Dia do Professor, foi dado pelo Instituto Semesp (ligado ao sindicato das mantenedoras de ensino superior), que prevê um déficit de 235 mil educadores no País em 2040, se for mantido o atual ritmo de formação docente. A projeção, grave e preocupante, joga luz sobre uma questão central para o presente e o futuro da educação brasileira: a pouca atratividade da carreira do magistério, reflexo dos salários mais baixos do que em outras áreas e das precárias condições de trabalho em muitas escolas.

O estudo foi apresentado na última semana de setembro e analisou uma série de variáveis ao longo da década passada. Primeiro, a evolução do número de ingressantes nas faculdades de licenciatura, como são chamados os cursos de formação de professores, assim como o total de concluintes. O cruzamento dos dados chamou a atenção para outro problema: as elevadas taxas de evasão, já que muitos universitários abandonam o curso antes da formatura.

A desproporção é impressionante. De 2010 a 2020, o número de ingressantes nas licenciaturas cresceu 61%, puxado pelas matrículas em cursos de educação a distância (EAD), enquanto o total de concluintes aumentou apenas 4%. Isso, no entanto, é só a ponta do iceberg: o estudo informa que mais da metade dos concluintes nesse período já era de professores com atuação na sala de aula. Esse dado remete à alarmante constatação de que a quantidade de novos docentes, na verdade, é provavelmente muito mais baixa.

Prova disso é a mudança no perfil etário dos professores em atividade no Brasil. De acordo com o estudo, o contingente de docentes com menos de 29 anos diminuiu 27%, ao passo que o de profissionais acima dos 55 anos aumentou 44% entre 2016 e 2021.

O professor, como se sabe, é o principal fator de aprendizagem dos alunos. Por isso, melhorar a formação docente é um passo indispensável para elevar a qualidade do ensino. O Brasil está longe de superar esse desafio − e um dos obstáculos é justamente a pouca atratividade da carreira do magistério, o que acaba afugentando os melhores candidatos. Tirando quem escolhe lecionar por genuína vocação, e felizmente ainda há gente assim, a verdade é que um vasto contingente de universitários só procura os cursos de licenciatura por suposta incapacidade de ingressar em carreiras em geral mais concorridas e, portanto, com melhor remuneração.

Até aqui, o debate mais amplo em torno da carreira do magistério tinha como foco a qualidade da educação. É consenso que maiores salários, melhores condições de trabalho e a perspectiva de progressão funcional ao longo dos anos são passos necessários para atrair profissionais mais qualificados − estudantes com nota alta o suficiente para ingressar em qualquer outra faculdade, mas que optam por uma licenciatura para serem professores. Pois bem, isso continua válido. A novidade duplamente lamentável agora é que a baixa atratividade da carreira do magistério desponta como empecilho até mesmo para suprir o número mínimo de profissionais nas salas de aula do País.

Sinais disso já aparecem aqui e ali. Neste ano, por exemplo, a rede estadual de São Paulo não conseguiu preencher todas as vagas de professores temporários para o Novo Ensino Médio. Em sua nova organização, o ensino médio passou a ter maior carga horária, o que demanda mais docentes. O mesmo ocorre nas escolas de tempo integral, outro avanço fundamental em andamento em São Paulo e nas redes de ensino de vários Estados. Desse modo, há demanda por mais profissionais, mesmo diante da projetada redução do número de alunos em decorrência da constante queda nas taxas de natalidade.

O alerta, portanto, está dado: ninguém poderá alegar que foi pego de surpresa. Desde já, evitar o anunciado “apagão” de docentes deve ser uma das prioridades dos governantes que tomarão posse em janeiro.

Valorização das startups deve cair, diz autor de livro sobre tecnologia e capital de risco

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Sebastian Mallaby pesquisou como investidores ajudaram a criar empresas como Apple, Google e Facebook

Rafael Balago – Folha de São Paulo – 14/10/2022

Para Sebastian Mallaby, a alta de juros em países como os EUA deve deixar os investidores em startups mais seletivos, o que deve levar a uma queda no valor de mercado de novas empresas que buscam financiamento.
“Esse novo clima financeiro trará ajustes. Em um ambiente no qual as taxas de juro estão a 6%, 7%, é muito caro travar seu dinheiro, pelo custo de oportunidade. Para compensar, investidores de risco devem esperar retornos mais altos, o que significa que eles só apoiariam as melhores empresas, e por um valor de mercado menor”, avalia Mallaby.

“Os preços vão se ajustar. O valor de avaliação das startups terá de ser mais baixo. Mas haverá muitas pessoas querendo investir em capital de risco. Não será como em 2000”, prossegue, citando a grande crise que atingiu o setor de tecnologia.

Mallaby, 58, é jornalista britânico e autor de “A Lei da Potência – Capital de Risco e a Criação de um Novo Futuro” (ed. Intrínseca). O livro conta detalhes da relação entre investidores de risco e a criação de empresas americanas que mudaram a história da tecnologia desde os anos 1950.

A obra, indicada como uma das melhores do ano pelo Financial Times, traz bastidores do surgimento de empresas como Intel, Atari, Apple, Cisco, Yahoo, Google e Facebook, e de como investidores ajudaram a transformar boas ideias em negócios capazes de gerar milhões de dólares em alguns anos.

O escritor conversou com a Folha por videochamada e falou também sobre outras mudanças no cenário atual para startups.

Como vê o cenário atual para o capital de risco, em um momento de alta nas taxas de juros e perspectiva de recessão, especialmente nos EUA? A Nasdaq tem caído bastante. Companhias de tecnologia tendem a crescer rápido, mas são mais voláteis e arriscadas, especialmente em seu estágio inicial. Em um mundo no qual as pessoas estão com medo do risco, o valor de avaliação delas deve cair.

No capital de risco, você está olhando para o dinheiro daqui a sete anos quando investe. Em um cenário onde as taxas de juro estão a 6%, 7%, é muito caro travar seu dinheiro, pelo custo de oportunidade.

Para compensar isso, investidores de risco devem esperar retornos mais altos, o que significa que eles só apoiariam as melhores empresas, e por um valor de mercado menor. Então, com certeza esse novo clima financeiro trará ajustes.
Mas, ao mesmo tempo, desde que o Google abriu o capital, em 2004, as empresas de tecnologia estão em uma sequência extraordinária. Por isso, se espalharam pelo mundo. Minha opinião é que os preços vão se ajustar. O valor de avaliação das startups terá de ser mais baixo, mas haverá muitas pessoas querendo investir em capital de risco. Não será como em 2000, quando a Nasdaq quebrou e o Vale do Silício meio que foi dormir por três anos.

O modelo de “vencedor leva tudo” deve seguir presente? No futuro, esse modelo pode ser menos dominante. Nos negócios que têm efeito de rede, quanto mais pessoas se atende, maior a margem de retorno. É diferente do modelo clássico, em que o custo de produção sobe conforme você produz mais.

Em marketplaces e negócios de rede, como Facebook e Google, quanto mais gente os utilizam, mais inteligentes eles ficam e maior a utilidade para o cliente. Na Amazon, você pode escolher milhões de produtos, e o custo de colocar uma coisa a mais para vender é quase zero. Então, essas redes têm uma propensão ao modelo de vencedor leva tudo.

Mas, se você voltar a um mundo onde o capital de risco apoia companhias que estão produzindo hardware, como baterias elétricas para carros, pode haver efeitos de rede menos fortes. Ainda haverá algum efeito de “vencedor leva tudo” porque quem tiver a melhor tecnologia provavelmente dominará o mercado. E, se uma companhia dominar, outras tentarão ir atrás porque as margens serão gordas para o líder.

O senhor já disse que unicórnios [empresas iniciantes avaliadas acima de US$ 1 bilhão] são o problema, e que a melhor forma de lidar com isso é prevenir a criação de bolhas no mercado. Teria sugestões de como evitar a formação de bolhas? Bolhas têm existido por toda a história das finanças. Não vamos nos livrar delas por completo, mas há falhas do governo com os unicórnios.

As qualidades que um fundador precisa ter para começar um negócio não são as mesmas para tocar uma empresa madura. Frequentemente você tem uma mudança de liderança em algum ponto. Só que os fundadores de unicórnios tem recebido muito poder, por meio de ações com superpoder de voto. E há investidores que não querem exercer a governança nem um assento no conselho. Assim, os fundadores de unicórnios ficam sem amarras e gastam capital como se fosse água. E as pessoas não dizem que o rei está nu.

Na WeWork, isso só ocorreu quando eles abriram o capital. Quando você se torna uma companhia pública, haverá especialistas e jornalistas que olharão tudo com cuidado. Aí todo mundo diz “isso era ridículo”. Mas ninguém diz isso antes porque os donos das ações não estão exercitando a governança e supervisionando o fundador de forma adequada. Essa é uma parte do mecanismo que poderia reduzir a formação de bolhas.

Ainda sobre unicórnios, qual sua análise sobre o modelo de blitzscaling (escalada rápida) hoje? Poderemos ter mais casos como o do Uber, que gastou muito dinheiro para dominar mercados oferecendo descontos aos clientes? Para startups iniciantes, especialmente de software, ter velocidade é apropriado. Quanto mais rápido você escala, mais você terá retornos de margem.Investidores de risco colocam dinheiro e dão seis ou nove meses para as startups decolarem, e você precisa ser rápido para ter resultados a mostrar. Então, é uma boa coisa, que empurra as companhias a serem ambiciosas e conquistar coisas rápido.

Mas há muitos exemplos de companhias que foram muito longe. A blitzscaling pode ser um problema algumas vezes. Na América, hoje, quando as pessoas repetem a frase de Mark Zuckerberg, “mova-se rápido e quebre coisas”, elas fazem isso para rir dele e do Facebook. Mas não acho certo.

Sobre quebrar coisas, depende do que você quebra. Se você lança a versão 1.8 do seu programa e ela não é boa, você só mexe no código e conserta rapidamente. Se você está fazendo hardware e tem que construir uma fábrica, então consertar o erro será mais difícil. E quando o Facebook se torna grande como é, isso tem consequências globais.
Quebrar coisas pode significar quebrar a sociedade. E você não quer isso.

Como governos, como o do Brasil, podem agir para atrair mais investidores de risco? A primeira coisa é ter o governo investindo em treinamento, tecnologia e pessoas. Apoiar os estudantes que querem aprender ciência, tecnologia, engenharia e matemática, e apoiar as pessoas que vão fundar empresas de tecnologia.

A segunda coisa é pensar sobre regras de propriedade intelectual. É importante que, quando algo é inventado em uma universidade, seja possível licenciar a tecnologia e criar uma empresa com ela, de modo que a universidade receba alguns royalties. Mas isso não pode ser muito restritivo, porque queremos que as companhias sejam lucrativas.

Se elas forem muito, muito lucrativas, isso vai, é claro, aumentar a desigualdade. Mas, ao mesmo tempo, há um padrão claro: toda vez que surge um novo unicórnio, as pessoas que trabalham ali desde o começo veem a experiência de crescer, que é realmente excitante, e depois querem fazer de novo. Aí você começa outra empresa, ajuda alguém a fazer isso. Ou se torna investidor. Então, cada unicórnio criado no Brasil será um acelerador para o mundo dos negócios de tecnologia.

E mais uma coisa: se você tornar os detalhes das coisas mais parecidos com os dos EUA, isso tornaria mais fácil a ida de empresas de capital de risco ao Brasil. Essas pessoas têm muita experiência no Vale do Silício e sabem o que estão fazendo. Elas podem ajudar as companhias do Brasil a crescerem e a vender dentro dos EUA. Então, padronizar as coisas no modo americano seria uma boa ideia.

E o que os governos não deveriam fazer? Governos com frequência querem colocar dinheiro direto em investimentos de risco. Isso foi feito em muitos países, e o exemplo de maior sucesso é Israel, onde o governo deu dinheiro para criar fundos de capital de risco, em termos muito generosos. Foi um grande subsídio.

A coisa interessante é que eles pararam de fazer isso muito rápido: uma vez que as empresas de capital de risco tiveram sucesso, eles disseram, “ok, vocês aprenderam. Agora podem fazer sozinhas”. E isso é muito importante. Na Europa, o governo coloca muito dinheiro em capital de risco, de um jeito que bagunça as coisas para o capital privado, porque há todo esse dinheiro do governo, que não precisa necessariamente ter um alto retorno. Não é um dinheiro muito saudável, porque o governo não tem a mesma experiência em aconselhar o empreendedor. Então você tem muitos investimentos ruins e empresas ruins.

É uma boa ideia que os investidores tomem todo o risco no começo. Se perderem, perderão 100% do próprio dinheiro, e os contribuintes não pagam nada. Assim, os investidores têm um forte incentivo para alocar capital com bons empreendedores, pensar bem sobre quais startups apoiar e trabalhar duro para ajudá-las a crescer. Se eles falharem, ficam sem nada. Tudo bem. Isso é capitalismo. Mas se eles tiverem sucesso, têm de pagar impostos, mas não muito, porque eles tomaram todo o risco no começo.

Nos EUA, as sociedades de investimento de risco pagam zero em impostos. Os impostos são pagos só pelos sócios que colocam dinheiro na sociedade. Não há taxação dupla. E há impostos sobre os ganhos de capital. Algo entre 25% e 30% me parece bom.

Teria algum conselho para o leitor que nunca investiu em capital de risco, mas se interessou em fazer isso? É um investimento caro. Você coloca o dinheiro em um fundo, que será tocado por profissionais que entendem tecnologia.

Eles encontram todas essas pessoas que querem abrir empresas e dizem não para a maioria delas. Esse fundo irá cobrar taxas caras, como 2% do capital por ano e talvez 20% dos lucros.

Se você tem uma poupança limitada, provavelmente há coisas melhores a fazer. A primeira regra para investidores individuais é tentar pagar menos tarifas e impostos. Outra é espalhar suas apostas, e o capital de risco pode ser uma delas. Se você tem muitas reservas e é rico, faria sentido colocar algum dinheiro em capital de risco. De outro modo, eu não faria isso.

AIO-X
Sebastian Mallaby, 58
Estudou história moderna em Oxford e fez carreira como jornalista econômico e autor de livros. Foi colunista do Washington Post, editor no Financial Times e chefe da sucursal da revista The Economist em Washington. É membro sênior do Council on Foreign Relations.

O paradoxo da educação, por Rodrigo Zeidan.

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Na China, ser professor dá privilégios; no Brasil, ninguém briga por um sistema educacional melhor

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 15/10/2022

“Professor?”, perguntou o policial quando viu o cartão da universidade depois de ter me parado por estar andando de bicicleta na calçada, algo passível de multa. “Sim”, respondi no meu chinês macarrônico. “Humm…Por favor, não faça mais isso, mas pode ir embora”. Na China, ser professor dá privilégios, pois nenhuma outra profissão é tão respeitada; afinal, é uma honra seguir a carreira de Confúcio.

O respeito se traduz em desenvolvimento econômico. Não é à toa que Coreia do Sul, Japão e China, todos países mais pobres que o Brasil na década de 1950, hoje são mais ricos, seguros e desenvolvidos. Os sistemas educacionais desses países são muito melhores que a média mundial, professores são relativamente bem remunerados, e as famílias se dedicam fervorosamente para garantir que seus filhos entrem nas melhores escolas.

No Brasil, vivemos um paradoxo. No país onde estudar dá mais dinheiro, nenhuma camada da sociedade briga por um sistema educacional de primeiro mundo. E sim, no Brasil, o retorno da educação é altíssimo, resultado de décadas de estrangulamento do acesso ao sistema.

A renda de um brasileiro que termina o ensino médio é 148% (ou seja, 48% maior) que a média daqueles que não o completam. Pior, esse percentual para quem se forma no ensino superior chega a 394%. Para efeito de comparação, na Europa, esses percentuais são de 126% e 192%, respectivamente. Mesmo no México, educação não paga tanto. Lá, terminar o ensino médio resulta, em média, em 133% da renda de quem não termina e, para quem completa a universidade, os valores chegam a 217%. No relatório da OCDE sobre o sistema educacional dos principais países do mundo, em nenhum dos outros 36 países estudados há tal expectativa de ganho.

É comum reclamarmos do sistema educacional brasileiro. Falta tudo: de respeito aos profissionais até estrutura básica para o ensino; e isso mesmo quando os políticos não roubam a merenda. Mas nossos problemas começam em casa.

Valorizamos pouco a educação, seja nas camadas mais ricas ou mais pobres. Na verdade, uma família pobre não valorizar o ensino é racional, embora não a melhor escolha: como investimentos em educação demoram décadas para gerar retorno, a pressão do dia a dia é uma barreira para que os mais pobres se concentrem nos estudos.

O mesmo não pode ser dito das famílias mais ricas. Para muitas, educação em si não tem valor e só importa o diploma. Instrumentalmente, a razão é clara: a histórica dificuldade de acesso aumenta o ganho relativo dos poucos que conseguem se formar. No Brasil, também temos uma situação sui generis: faculdades que querem vender diplomas, alunos que querem comprá-los, e professores que se esforçam para atrapalhar a negociação. No Brasil, também é ilegal a venda de diplomas; à vista. Já a prazo?

Nesse dia dos professores, precisamos nos perguntar: qual dos dois candidatos pode nos tirar desse péssimo equilíbrio, no qual as condições dos professores são ruins e as famílias não valorizam o ensino? Sistemas educacionais não mudam da noite pro dia, mas a resposta é clara. Entre um governo que tentou expandir sobremaneira o sistema, mesmo com várias medidas que desperdiçaram recursos, e outro que considera professores doutrinadores e cujo MEC está sendo desmontado, a resposta é clara: Lula, por mais que tenha defeitos, levou a sério a educação brasileira. E sem educação, não teremos futuro.

Como as democracias morrem, por Levitsky e Ziblatt.

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LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
Clayton Mendonça Cunha Filho*

Lançado em 2018 nos Estados Unidos e traduzido para o português, no Brasil, ainda no mesmo ano, pela editora Zahar, o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é certamente um caso de best-seller imediato. Embora bastante recente, o livro já recebeu mais de cem citações da sua versão brasileira e quase oitocentas da sua versão original e segue suscitando debates e recebendo elogios ao redor do mundo, impulsionado por um Zeitgeist mundial em que a democracia enfrenta visíveis processos de erosão e ruptura.

O livro busca mostrar como a democracia pode e é frequentemente subvertida por dentro, pelas mãos de líderes e atores de tendência autoritária que, navegando através de suas mesmas instituições e poderes, terminam por transformá-la em um regime distinto e autocrático, sem necessariamente precisar utilizar das forças armadas ou de um golpe de Estado clássico. Segundo os autores, a morte da democracia atualmente viria principalmente através de medidas anunciadas com nobres intenções, tais como combate à corrupção ou segurança nacional, e coberta de vernizes democráticos, frequentemente avalizadas por instituições como parlamentos ou cortes de justiça.

A subversão democrática na maioria das vezes se daria através de medidas graduais e se iniciaria, na verdade, já através de medidas simbólicas e discursos polarizadores que buscam construir a ideia de ilegitimidade dos opositores. E prossegue através da captura ou neutralização de instituições de controle, tais como Procuradorias, Cortes de Justiça ou Tribunais de Contas, removendo seus membros mais independentes e/ou preenchendo-as com lealistas fanáticos, tanto para diminuir os riscos e limitações que tais instituições representariam aos objetivos do autocrata, quanto pelo potencial que representam na coerção dos adversários, que passam a enfrentar um campo de atuação cada vez mais desnivelado. E, apesar de as tendências autoritárias de líderes autocráticos serem frequentemente reconhecíveis e por vezes mesmo explicitamente anunciadas, desde muito antes de suas chegadas ao poder, tais líderes acabam sendo “normalizados” por parte de elites políticas que neles enxergam a possibilidade de se livrar de adversários incômodos. Minimizando os riscos ao próprio regime democrático, aproveitam-se de maneira interessada dos abusos contra seus adversários e terminam na maioria das vezes engolidos pelo avançar do processo.

O livro consta de nove capítulos e uma introdução bem encadeados entre si, nos quais os autores alternam entre a apresentação de suas teses ilustradas com casos ao redor do mundo, em distintos tempos, e capítulos onde as aplicam a episódios da história estadunidense. Assim é que, após resumir as teses do livro na Introdução, Levitsky e Ziblatt descrevem no Capítulo 1 os processos de chegada ao poder de outsiders autoritários em alianças com atores da elite política que pensavam instrumentalizá-los e se veem por eles engolidos. Já no Capítulo 2, focam em episódios semelhantes da história política dos EUA em que, no entanto, tais outsiders se viram barrados antes da presidência pelo papel de guardiões democráticos que atribuem aos partidos políticos e suas elites; e, no Capítulo 3, prosseguem com a análise das mudanças introduzidas no sistema de primárias dos partidos do país e que as teriam tornado potencialmente mais porosas à passagem de líderes dessa natureza, sendo Trump uma espécie de culminação do processo.

Nos Capítulos 4 e 5, por sua vez, retornam às ideias mais gerais acerca da morte democrática, descrevendo em detalhes, no quarto capítulo, os processos internos de tomada gradual de poder pelos autocratas eleitos através da cooptação das instituições de controle e da perseguição e afastamento dos principais adversários; e, no quinto, desenvolvem sua tese principal. Para os autores, além de boas constituições e instituições eficientes, a democracia para funcionar necessitaria do que eles chamam de regras não escritas que a protejam. Uma cultura política de tolerância mútua entre os adversários e o que eles chamam de reserva institucional (forbearance), ou seja, o “ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito” (p. 107) constituiriam as grades de proteção necessárias à sobrevivência da democracia. Sua ausência implica polarizações excessivas, transformando adversários em inimigos essenciais e a competição democrática em um confronto sem meios-termos possíveis em que predominaria o oposto da reserva, chamada por eles de jogo duro constitucional (constitutional hardball), cujo resultado último não pode ser outro que a aniquilação da própria democracia.

Nos três capítulos seguintes, Levitsky e Ziblatt voltam novamente suas atenções ao caso estadunidense, descrevendo no Capítulo 6 as origens e o desenvolvimento das grades de proteção nos EUA, bem como momentos em que as mesmas foram ameaçadas ou mesmo ruíram, como durante a Guerra Civil, e seu processo de reconstrução após o fim da ocupação dos estados derrotados do Sul e que teriam então resistido firmemente pelo menos até os anos 1980. Os autores, no entanto, admitem, ao fim do capítulo, que devem “concluir com uma advertência perturbadora. As normas que sustentam nosso sistema político repousavam, num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a desdemocratização do Sul e a consolidação das leis de Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no século XX” (p. 140). Após as políticas de inclusão dos anos 1960 que desmantelaram a segregação racial sulista, o país teria finalmente se democratizado plenamente, mas a polarização política e as ameaças às grades de proteção voltaram a crescer cada vez mais. No Capítulo 7, então, passam a descrever com exemplos concretos o abandono cada vez maior das regras não escritas sobretudo por parte do Partido Republicano, que passa a se enraizar cada vez mais nos conservadores estados do Sul, incrementando significativamente a polarização. Anteriormente, a heterogeneidade constitutiva dos partidos políticos estadunidenses, com democratas conservadores no Sul racista, mas progressistas no Norte liberal, e republicanos conservadores no Norte, mas progressistas no Sul, conferia certo equilíbrio e proteção ao sistema, segundo sua interpretação. Por fim, no Capítulo 8, os autores se concentram em descrever as sucessivas violações de Donald Trump às grades de proteção do país e as possíveis consequências nefastas que daí adviriam para o futuro democrático estadunidense.
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evitsky e Ziblatt concluem o livro no Capítulo 9, “Salvando a Democracia”, o qual iniciam admitindo mais uma vez que a excepcionalidade democrática dos EUA estivera ancorada na exclusão racial e que as tentativas de superá-la no século XX teriam trazido de volta a polarização e os ataques às grades de proteção que estariam ameaçando a democracia no país atualmente. Tentando, talvez, passar um tom algo mais otimista, voltam-se em seguida a listar alguns países ao redor do mundo em que a democracia estaria sendo aumentada ou pelo menos ainda plenamente preservada, e que seriam, segundo eles, ainda a “vasta maioria”, embora a lista apresentada pareça duvidosa ao incluir o Brasil entre os países em que a democracia ainda “permanece intacta” (p. 195). Mesmo que o livro tenha sido publicado em 2018 e, portanto, os autores não tenham podido considerar os efeitos trazidos pela presidência do claramente autocrático (pelos critérios do livro) Jair Bolsonaro, é imperdoável para pesquisadores do quilate dos dois autores considerar que o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o qual se utilizou eminentemente das táticas de jogo duro constitucional por eles apontada no Capítulo 5, não tenha sequer arranhado nossa democracia.

Levitsky e Ziblatt, então, passam a conjecturar três possíveis cenários para os EUA pós-Trump: um cenário otimista e considerado improvável, em que os esforços autoritários do presidente são plenamente derrotados e restaura-se a democracia com todas as suas grades de proteção e respeito às regras não escritas; um outro cenário pessimista, considerado por eles como possível, mas ainda não tão provável em que Trump triunfa plenamente e mata de vez o que resta de democracia no país; e uma terceira possibilidade, que consideram a mais provável no futuro imediato, em que a democracia dos EUA passa a viver sem as regras de contenção e com efeitos perigosos e imprevisíveis no longo prazo. Os autores terminam o capítulo e o livro tentando apontar caminhos para a restauração democrática e insistem na reconstrução da tolerância mútua e na reserva institucional como parte fundamental dos mesmos, apresentando como casos de sucesso a reconstrução da direita alemã no pós-Guerra e a ampla coalizão chilena da Concertação que teria permitido o regresso do país à democracia após a ditadura pinochetista.

Como visto, embora traga de fato exemplos concretos de atores e processos que minaram a democracia por dentro em várias épocas e lugares distintos – da Alemanha nazista ao Peru de Fujimori, passando pela Venezuela chavista, as Filipinas de Marcos, e a contemporânea Hungria de Orbán, entre alguns outros casos – e tenha um título “genérico” sobre a morte democrática, levando a crer tratar-se de uma obra de foco teórico geral, o livro é, na verdade, fundamentalmente uma análise do caso estadunidense sob a presidência de Donald Trump (2017-). Embora isso possa vir a frustrar em alguma medida alguns leitores que eventualmente cheguem ao livro buscando uma abordagem mais “universal”, não constitui exatamente um problema na medida em que um foco mais restrito, de fato, frequentemente permite uma análise mais aprofundada de qualquer fenômeno concreto. Além disso, se é correta a tese dos autores de que a democracia estadunidense se encontra atualmente em perigo devido a processos iniciados nas últimas décadas e exacerbados pela presidência Trump, tampouco se trataria de qualquer caso, visto que os EUA representam para muitos, com ou sem razão e dentro ou fora dos próprios EUA, uma representação simbólica da própria ideia de democracia e exercem influência desproporcional ao redor do mundo.

O problema é que os autores parecem não levar às últimas conclusões o alcance do argumento desenvolvido e uma análise aprofundada do mesmo pareceria indicar um veredicto ainda mais pessimista acerca da preservação da democracia no atual contexto mundial do que eles parecem considerar. Se toda a grande pax democrática estadunidense esteve baseada, como eles mesmos admitem, na exclusão racial e as grandes rupturas dessa estabilidade vieram da adoção de políticas de inclusão, não seria um grande wishful thinking a proposta de preservação democrática por meio de amplas coalizões interpartidárias em que os atores voluntariamente freiam suas iniciativas para não derrotar completamente a oposição? O livro é repleto de metáforas esportivas, o que certamente facilita sua leitura pelo público leigo e isso é extremamente positivo, mas será mesmo possível salvar a democracia apenas pela adesão voluntária dos vencedores à reserva institucional como numa partida de basquete de rua, como sugerem Levitsky e Ziblatt?

Extrapolando os achados dos autores para outros países, recorde-se que quando do início da redemocratização da América Latina, nos anos 1980, as perspectivas de sua consolidação aos olhos da Ciência Política eram invariavelmente pessimistas devido a sua extrema desigualdade socioeconômica. Quando a persistência democrática nos anos 1990-2000 colocou em questão tal diagnóstico pessimista, autores como Kurt Weyland (2004) consideraram que a ampla adesão ao neoliberalismo na região havia contribuído para essa estabilidade por retirar da agenda política questões redistributivas que historicamente tinham melindrado as elites da região e ensejado rupturas democráticas, embora reconhecendo que isso, ao mesmo tempo, diminuíra a qualidade de nossas democracias. As décadas seguintes do novo milênio trouxeram a vários países da região questionamentos a essa hegemonia neoliberal, com experimentos redistributivos e intervencionistas em geral bastante moderados, mas que, mesmo assim, propiciaram o retorno da polarização, e mesmo golpes de Estado manu militari, como na Venezuela (2002) e Honduras (2009), ou interdições parlamentares, como no Paraguai (2012) e Brasil (2016). Seria então realmente possível imaginar a preservação democrática apenas pela autorrestrição dos atores políticos em contextos em que há realmente grandes questões em jogo, em que, se talvez não sejam plenamente de soma zero, é preciso que alguém perca algo para que outros grupos possam superar sua situação de exclusão?

Voltando ao caso dos EUA, nas últimas páginas do livro, os autores analisam – e rejeitam – sugestões de superação da polarização política no país por meio do abandono, pelo Partido Democrata, dos interesses de minorias e das políticas de identidade em geral em prol de “recapturar a assim chamada classe trabalhadora branca” (p. 213), propondo em vez disso a adoção de políticas sociais universalistas de combate às desigualdades estruturais do país para fortalecer a democracia e gerar bases para coalizões interpartidárias que restaurassem as grades de proteção.

Mas o quão factível seria realmente a proposta se ele dependesse, para sua execução, da anuência do mesmo Partido Republicano cada vez mais sólido na defesa de interesses econômicos das megaelites econômicas? De fato, infelizmente, a proposta acaba soando mais como utopia do que como concretude, sobretudo se lida à luz de relatos como os de Wolfgang Streeck (2018) sobre o abandono progressivo pelo Grande Capital dos compromissos democráticos que sustentaram a Era de Ouro do Estado do Bem-Estar na Europa e que tanto contribuíram aos desgastes e desencantos cidadãos para com a democracia, a partir de meados dos anos 1980.

Em suma, o livro de Levitsky e Ziblatt oferece uma narrativa sucinta e em linguagem acessível acerca dos processos contemporâneos de erosão democrática e constitui-se em leitura importante, no momento, tanto para pesquisadores do tema quanto para o público em geral. Contudo as soluções sugeridas parecem fundamentadas muito mais em um normativismo voluntarista do que na análise plena dos desdobramentos das teorias e fatos relatados ao longo do livro. É um bom ponto de partida para a discussão de como as democracias morrem, mas, longe da palavra final, sobretudo se de salvá-las se trata.

REFERÊNCIAS
STREECK, W. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.
WEYLAND, K. Neoliberalism and Democracy in Latin America: a mixed record. Latin American Politics and Society, v. 46, n. 1, p. 135-157, Spring 2004.

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* Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Mestrado em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

O Supremo não pode ter dono, por Oscar Vilhena Vieira.

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Estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas

Oscar Vilhena Vieira – Folha de São Paulo – 12/10/2022

A proposta de ampliação do número de ministros do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de “esquadrar o judiciário”, nas palavras do líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, constitui uma gravíssima ameaça à sobrevivência de nossa democracia constitucional.

A captura dos tribunais constitucionais e outras esferas de aplicação da lei é uma medida reiteradamente adotada no processo de consolidação de regimes autocráticos. Quem explica a lógica dessa estratégia é Adolf Hitler.

Ao prestar juramento em 1930 perante o tribunal de Leipzig, discorreu de maneira cristalina sobre a estratégia de seu partido: “A Constituição apenas estabelece o mapa da batalha… Nós ingressaremos nas instituições jurídicas e desta forma transformaremos nosso partido numa força decisiva… quando nos assenhorarmos do poder constitucional, iremos moldar o Estado de acordo com aquilo que entendermos conveniente”.

Embora não se queira estabelecer qualquer paralelo com o nazismo, a estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas.

Após a derrubada da Primeira República, uma das primeiras medidas do governo provisório de Vargas foi ampliar de 11 para 15 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, cassando ministros insubordinados a partir de 1937. Da mesma forma, o regime militar, instaurado em 1964, decidiu ampliar de 11 para 16 o número de membros do Supremo, por meio do AI nº 2, de 1965, que também suspendeu as garantias dos magistrados. Posteriormente promoveu a aposentadoria compulsória de seus mais proeminentes membros, como Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.
Para que não pareça que apenas os autoritários brasileiros se deixaram inspirar por essa ideia torpe, cabe lembrar os casos da Venezuela, Turquia e Hungria, três autocracias contemporâneas, em que a captura dos tribunais constitucionais foi parte central do processo de erosão democrática.

Após ascender ao poder por via eleitoral, em 1999, Hugo Chávez convocou uma assembleia constituinte que, em menos de dez meses, produziu uma nova Constituição. Descontente com a atuação independente do Supremo Tribunal de Justiça, que ousava contrariar seus interesses, em 2004, ampliou de 20 para 32 o número de membros do tribunal. O general Mourão, que serviu como adito militar brasileiro na Venezuela, certamente conhece o desfecho dessa história.

Na Hungria, após conquistar a maioria absoluta do parlamento, em 2010, o primeiro-ministro Viktor Orbán, promoveu uma ampla reforma constitucional, complementada por duas emendas à Constituição que ampliaram o número de membros do então independente Tribunal Constitucional, assim como restringiram o acesso dos cidadãos à corte, que deixou então de importunar o primeiro-ministro.

No mesmo ano, Recep Erdogan, então primeiro-ministro da Turquia, aprovou uma emenda constitucional ampliando o número de juízes da proeminente Corte Suprema do país. Em 2015, já presidente da República, determinou a prisão de nada menos que 2.745 juízes e promotores, consolidando seu regime autocrático.

Para se proteger de um processo de erosão democrática, como os acima mencionados, a Corte Constitucional colombiana declarou, em 2010, a inconstitucionalidade de uma proposta de emenda que permitiria ao presidente Uribe, embalado pela ampla popularidade, concorrer a um terceiro mandato.

Para a maioria do tribunal o “poder de emendar a Constituição não inclui a possibilidade de derrogar, subverter ou substituir a Constituição na sua integridade”. E a possibilidade de um terceiro mandato permitiria, entre outras coisas, que o presidente nomeasse a maioria dos membros de tribunais, ameaçando a independência do judiciário, elemento central do edifício democrático. Com isso, salvou a democracia colombiana de uma maioria eventual que buscava sequestrá-la.

Como foi taxativamente colocado pelo ex-ministro Celso de Mello, a proposta de ampliar o número de membros do Supremo Tribunal Federal, oriunda de um governo que tem feito emprego sistemático de medidas infralegais voltadas a subverter o Estado de Direito e desacreditar nossa Corte Suprema, afronta a independência do Poder Judiciário, colocando em risco a integridade de nossa democracia. E numa democracia o Supremo não tem dono.

A Constituição de 1988, seguindo o exemplo da Lei Fundamental de Bon, de 1949, estabeleceu que determinados pilares do Estado democrático de Direito, como o sistema de separação de Poderes, o voto direto, secreto e universal, a federação, além dos direitos e garantias fundamentais, não podem ser objeto de supressão, mesmo que por meio de emendas constitucionais.

Ao impedir que o poder constituinte reformador possa deliberar sobre emendas tendentes a abolir as premissas básicas da nossa democracia constitucional, as cláusulas pétreas nos protegem de maiorias autoritárias contingentes.

São, paradoxalmente, limitações habilitadoras da democracia, pois proíbem que uma geração, eventualmente seduzida pelo canto mortal do populismo autoritário, furte da próxima geração o direito de conduzir de forma autônoma e democrática o seu próprio destino.

Risco financeiro permanece um desafio de política pública, por Armínio Fraga.

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As contribuições dos vencedores do Nobel de Economia a um problema ainda não completamente resolvido

Armínio Fraga, Sócio-fundador da Gávea Investimentos, presidente dos conselhos do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), ex-presidente do Banco Central e colunista da Folha

Folha de São Paulo, 11/10/2022

Recebi com alegria a notícia de que Bernanke, Diamond e Dybvig ganharam o Nobel de economia deste ano. Tive a boa fortuna de ler, como aluno de doutorado em Princeton no inicio dos anos 80, as contribuições seminais agora merecidamente agraciadas com o prêmio. O tema foi nada mais nada menos do que uma faceta desconcertante e recorrente das economias de mercado: as crises bancárias e financeiras. Desde então, uma parte importante de minha vida profissional lidou com o assunto, como bem demonstra a minha careca.
Ben Bernanke, ex-presidente do Federal Reserve Board, o BC americano, publicou em 1983 um artigo que caracterizou o decisivo papel causal que a crise bancária que ocorreu nos Estados Unidos no início do anos 30 teve no que viria a ser a Grande Depressão. O que se viu foi um exemplo das externalidades negativas e de rede inerentes ao funcionamento de um sistema financeiro.

Trata-se de um fenômeno de fácil compreensão: bancos (e, hoje em dia, o sistema não bancário também) captam depósitos a curto prazo e resgatáveis ao valor de face e emprestam a prazos mais longos, tipicamente financiando o setor produtivo. Se, por qualquer razão, houver um aumento da demanda por liquidez no sistema e os intermediários financeiros não conseguirem financiar os seus balanços, pode se instalar uma espiral de venda de ativos e mais demanda por liquidez, que trava a circulação do dinheiro e deprime a economia.

A não identificação tempestiva desse processo contribuiu para transformar uma recessão em uma duradoura depressão. Em 2008, Bernanke, na cabine de comando do Fed, rapidamente diagnosticou o caso e expandiu agressivamente a política monetária, evitando assim o que poderia ter sido uma outra depressão. Foi um caso raro de um trabalho acadêmico influenciar na prática o seu próprio autor.
Praticamente ao mesmo tempo em que Bernanke escrevia o seu artigo premiado por abordar aspectos macroeconômicos do tema, a dupla Douglas Diamond e Philipp Dybvig desenvolveu o arcabouço analítico microeconômico que revolucionou o entendimento das corridas bancárias e fenômenos similares.

Partindo de premissas bastante intuitivas, os autores construíram um modelo que mostra que corridas bancárias podem ocorrer mesmo em circunstâncias tidas como seguras. Diamond em particular, sozinho e em parceria com Raghuram Rajan, estendeu esse modelo em várias e importantes direções, que enriqueceram ainda mais o entendimento do funcionamento de sistemas financeiros.

Crises financeiras têm uma longa história, que a partir do século 19 inspiraram inúmeras respostas de política pública. A primeira foi a pioneira transformação do Banco da Inglaterra em emprestador de última instância, com a missão de reduzir a instabilidade do sistema, até então mais regra do que exceção. No século 20, sobretudo a partir da Grande Depressão, surgiram outros mecanismos de defesa contra corridas bancárias, com destaque para o seguro de depósitos bancários, que reduziu o incentivo de sacar recursos dos bancos ao menor sinal de perigo.

Mas nem tudo se resolveu. Ao mesmo tempo em que foram introduzidas defesas contra corridas bancárias e pânicos, as instituições financeiras, se sentindo mais seguras, foram aumentando o nível de risco de suas operações. Uma primeira resposta a esse aumento foram as exigências de níveis mínimos de capital, conhecidas como as regras da Basileia. Mesmo assim, em função de brechas nas regras e no crescimento do segmento não regulado do mercado, os níveis de risco dos intermediários (e portanto do sistema como um todo) seguiram em sua trajetória de alta.

Essa tendência fica clara quando se observa que os empréstimos dos bancos subiram de cerca de 3 a 5 vezes seu capital no século 19 e chegaram aos inimagináveis 50 a 100 vezes às vésperas da grande crise de 2008. Claramente esse assunto permanece um grande desafio de política pública que, quem sabe, talvez os três ganhadores do prêmio possam nos ajudar a encarar.

Inovação

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As transformações geradas pela globalização da economia impulsionaram as estruturas produtivas, alterando as relações entre trabalhadores e empresários, reduzindo os instrumentos de intervenção dos Estados Nacionais, alterando os interesses nacionais e novas formas de autonomia, criando oportunidades promissoras, desafios inéditos, repensando as estratégias das organizações e criando novas formas de planejamento.

Neste momento de grandes inquietações, incertezas e instabilidades no sistema econômico global, reencontrei-me com os escritos e as reflexões do economista austríaco Joseph Schumpeter, autor de clássicos da ciência econômica “Capitalismo, Socialismo e Democracia” e “Teoria do Desenvolvimento Econômico”, obras fundamentais para refletirmos e compreendermos conceitos que ganharam espaço na sociedade, tais como destruição criativa e empreendedorismo.

Para o economista austríaco, o empreendedor deveria ser visto como o agente do desenvolvimento econômico, responsável por grandes inovações que impulsionava a sociedade, garantindo novos espaços de acumulação, criando novos modelos de negócios, gerando riquezas maiores, possibilitando novas formas de acumulação, promovendo o crescimento econômico, transformando o ambiente econômico e produtivo.

No pensamento de Schumpeter, o sistema capitalista tem como característica inerente, uma força que ele denomina de processo de destruição criativa, fundamentando-se no princípio que reside no desenvolvimento de novos produtos, novos bens e novas mercadorias, além de novos métodos de produção e novos mercados; em síntese, trata-se de destruir o velho para se criar o novo, gerando conflitos entre ganhadores e perdedores, instabilidades sociais e preocupações constantes, neste momento, faz-se fundamental a intermediação e a construção de novos consensos políticos, estimulando o surgimento de líderes com capacidade de administrar e evitar desequilíbrios generalizados.

Nos últimos anos percebemos o crescimento, na sociedade internacional, das discussões sobre o empreendedorismo, visto como um processo de criação de algo novo ou diferente, que agrega valor, que exige dedicação e esforço, e que incorre em riscos financeiros, psicológicos, emocionais e sociais, cujo retorno, na maioria das vezes, é a satisfação econômica e pessoal. Embora entendamos a importância do empreendedorismo para a sociedade contemporânea, percebemos que empreender depende de inúmeros fatores que devem atuar conjuntamente, exigindo políticas públicas concatenadas como forma de identificar as oportunidades, investimentos maciços em educação, além da construção de instrumentos de viabilização econômica, viabilizando instrumentos de financiamento, transformando ideias e pensamentos difusos em espaços de inovação e a geração de valor.

Pela definição de Schumpeter, o agente básico desse processo de destruição criativa está na figura do empreendedor, indivíduo que vislumbra novos horizontes, novas oportunidades, dotado de grande criatividade, sensibilidade, visionarismo e imaginação. Nesta visão, o empreendedor é dotado de grande capacidade de criação, estimulando a geração de empregos, aumentando a riqueza material e impulsionando o sistema econômico e produtivo, desenvolvendo novos modelos de negócios e contribuindo para o desenvolvimento econômico. Seguindo os conceitos descritos pelo economista austríaco, estamos distantes de construirmos um ambiente propício para a inovação e para o empreendedorismo. O estímulo do empreendedorismo e da inovação são fundamentais para a competitividade da economia
e da melhoria das condições de vida da população, mas não devemos nos esquecer que vivemos em uma sociedade marcada por uma educação precária e fragilizada, com taxas de juros escorchantes, investimentos produtivos limitados, diminuições crescentes de investimentos em ciência e tecnologia, centros de pesquisa e de inovação sendo fechados, infraestrutura degradada, desemprego elevado, informalidade dominante e desempregos camuflados, fome em ascensão e renda declinante.

Sem resolvermos estes desequilíbrios, criaremos uma sociedade centrada no individualismo, no imediatismo, no hedonismo e num verdadeiro darwinismo social, sem solidariedade, sem dignidade, com salários degradantes, jornadas de trabalho escorchantes e alguns acreditando que isso é meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/10/2022.

Qual economia para o futuro? por Dom Odílio Scherer

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Na terra de São Francisco, o papa conclamou jovens economistas à reflexão diante de uma realidade que lhes diz respeito.

Dom Odilo P. Scherer, Cardeal-Arcebispo de São Paulo – O Estado de S. Paulo – 08/10/2022

O papa Francisco reuniu-se no dia 24 de setembro passado com jovens na cidade de Assisi, terra de São Francisco, para refletir com eles sobre a economia e as alternativas para os modelos econômicos adotados atualmente pela maioria dos países. Cerca de 1.500 jovens de mais de cem países, geralmente economistas, compareceram ao encontro, depois de uma preparação de três anos em suas comunidades de origem.

Talvez o evento não tenha despertado muita atenção dos especialistas em teorias econômicas e na gestão da economia dos países e organismos nacionais e internacionais. Não foi a esses que o papa se dirigiu, chamando apenas alguns poucos deles para ajudarem na reflexão. Francisco quis tratar a questão com os jovens, por dois motivos principais: por serem eles os maiores interessados no futuro da economia e nos desdobramentos da sua atual gestão; e porque eles ainda não estão demasiadamente comprometidos com os sistemas vigentes, sendo capazes de ousar e de sonhar com alternativas possíveis.

No seu discurso, o papa referiu-se a algumas situações que questionam os atuais rumos da economia: as persistentes crises sociais, a pobreza e a miséria endêmicas em muitos países e regiões do mundo; a crise sanitária desencadeada pela pandemia de covid-19, que pôs de joelhos a economia; as migrações e as crises humanitárias decorrentes de guerras, como acontece na Ucrânia e em várias regiões da África, da Ásia e da América Central. Francisco referiu-se, também, ao sério desafio ambiental e climático que o mundo enfrenta, em boa parte como consequência de modelos econômicos que avançam de maneira predatória sobre a natureza.

É preciso reconhecer, refletiu o papa, que com o modelo de economia e a ideia de desenvolvimento econômico atualmente em voga, o ambiente, nossa casa comum, está sendo descuidado. A enorme riqueza produzida não chega a beneficiar a grande família humana, não resolve o problema da miséria e da fome nem assegura a justiça e a paz. Francisco questionou os modelos de desenvolvimento econômico que levam à destruição do ambiente e produzem e consolidam desigualdades e injustiças sociais e internacionais. Os rumos da economia não estão bem e algo precisa ser feito, antes que seja tarde demais! Como passar de uma economia que mata a uma economia que gera vida e a ampara? De uma economia que gera tensões e sofrimentos a uma economia que esteja a serviço da paz?

O papa já havia tratado do conceito da “economia que mata” na exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG, 2013), o primeiro grande documento magisterial do seu pontificado. A economia mata quando produz exclusão e desigualdade social; quando descarta alimentos para manter certa política de preços, em vez de os colocar à disposição dos pobres; ou quando a competitividade no mercado é buscada mediante a supressão de postos de trabalho, deixando na insegurança os trabalhadores. A economia mata quando considera o próprio ser humano um bem de consumo usável e descartável; ou quando tem no seu centro o lucro e o acúmulo de bens, mesmo ao preço dos valores da justiça e da dignidade humana.

A economia gera vida quando o ser humano é o centro e o objetivo final de toda atividade econômica, quando está a serviço do homem, e não o contrário; onde as leis da economia e da finança deixam de ser tiranos impessoais, aos quais todos precisam se submeter e obedecer, querendo ou não (cf EG 53-56).

A própria noção de crescimento econômico, sempre presente nos discursos e nas preocupações dos governantes e gestores da economia, foi questionada pelo papa em sua fala aos jovens. Qual crescimento econômico, com quais critérios e a quem interessa? É possível pensar num crescimento econômico indefinido e infinito? Existe outra forma de pensar o crescimento econômico, sem que ele aconteça à custa da depredação ambiental e da exclusão social? E quem será responsável pela reparação dos danos já causados pela atual orientação da economia mundial? Quem justificará, diante das futuras gerações, o mundo depauperado e insalubre que lhes será deixado em herança?

Esses questionamentos do pontífice aos jovens na terra de São Francisco podem parecer nada ortodoxos e pouco realistas. Não era intenção do papa confirmar alguma teoria econômica, nem propor receitas para resolver as questões abordadas. Ele conclamou os jovens à reflexão diante de uma realidade que lhes diz respeito, convidando-os a serem protagonistas na busca de alternativas de esperança para uma economia que está produzindo morte e comprometendo o seu futuro. E convidou-os a olharem para São Francisco, que viveu um estilo de vida simples, sóbrio e solidário, em harmonia com a natureza e em fraternidade com as demais pessoas, considerando todos como irmãos e irmãs.

Seria demais sonhar que a economia das nações tivesse na sua base esses critérios? As sementes foram lançadas no coração de jovens economistas. O futuro da economia e da nossa casa comum é deles. Que sonhem alto!

Saúde: uma questão vital, por Fábio Giambiagi.

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Por mais ser austeros os governos, a democracia fará com que gastar mais com o setor se torne imposição

Fábio Giambiagi, Economista pela FEA/UFRJ, com mestrado no Instituto de Economia Industrial

Estado de São Paulo – 07/10/2022

Recentemente, com Rudi Rocha e Miguel Lago, organizei A Saúde do Brasil, publicado há poucas semanas pela Editora Lux, com 15 capítulos e participação de 28 autores da mais alta qualidade. O livro abre com uma epígrafe do dr. Adib Jatene, que é uma espécie de adaptação para a área médica da fábula da “Belíndia”, do economista Edmar Bacha, acerca do velho dualismo brasileiro: “Temos de ser contra a distorção a que estamos assistindo, da coexistência do mais alto nível de assistência médica e do mais baixo nível de assistência à saúde, na mesma cidade e no mesmo local”. Com os condicionantes impostos pela limitação de espaço, sintetizo o que poderia ser um roteiro dos principais ensinamentos que deixa a leitura do livro.

i) O Serviço Único de Saúde (SUS) é uma conquista civilizatória que deve ser preservada e aperfeiçoada por qualquer governo que tiver a saúde da população como prioridade.

ii) O sistema de saúde representa uma política pública que, inequivocamente, reduz o grau de desigualdade da sociedade brasileira.

iii) A chave para o aperfeiçoamento do sistema passa pelo aprimoramento da cooperação federativa, que falhou terrivelmente na pandemia de covid-19.

iv) A descontinuidade administrativa, em qualquer dos níveis de governo, é um dos maiores traços de nosso subdesenvolvimento como nação.

v) O êxito do combate às doenças e a mudança no perfil epidemiológico da população trazem como resultado uma mudança dos desafios a enfrentar. Por exemplo, quando se consegue evitar que adultos morram cedo por doenças infecciosas, teremos, no futuro, mais pessoas sofrendo de câncer, de problemas cardíacos e, mais tarde, de outras doenças, como o Alzheimer.

vi) A demografia conspirará contra os esforços de contenção fiscal: por mais austeros que sejam os governos, a mudança do perfil etário da população fará com que gastar mais com saúde se torne uma imposição da realidade.

vii) Saúde não tem ideologia: na gestão do sistema, o pragmatismo é fundamental para que os setores público e privado possam conviver da forma mais harmônica possível e com o melhor desempenho.

viii) O País precisa que a política pública de saúde tenha um braço voltado para a ampliação da autonomia tecnológica.

ix) E a maior digitalização do sistema de saúde, especialmente da atenção primária, com o uso adequado da ciência de dados, bem como da telemedicina, será chave para o aumento da eficiência – e é um elemento central de uma estratégia de superação dos problemas do setor.