Por jovens com direito a futuro, por Claudia Costin.

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Contar apenas com ensino médio não será suficiente para ter acesso a trabalhos dignos

Claudia Costin Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

Folha de São Paulo – 07/01/2022

Pesquisa recente da consultoria Idados mostra que o Brasil conta com 12,3 milhões de jovens entre 18 e 29 anos que nem estudam nem trabalham, um número que aumentou depois do advento da Covid-19 em 2020. Mesmo com a reabertura das escolas e a busca ativa dos alunos que não voltaram às aulas, ou ainda, no mesmo sentido, com a incipiente recuperação econômica, o número dos chamados “nem-nem” se mantém superior ao do primeiro semestre de 2019.

Alguns motivos para essa situação estão estreitamente ligados à pandemia. “Se não há oferta de aprendizagem remota na educação básica, como ocorreu em 18% dos municípios e ainda em várias universidades pelo país, a tendência entre os jovens é A de perder o vínculo e se desengajar dos estudos.” e ainda em várias universidades pelo país, a tendência entre os jovens é de perder o vínculo e se desengajar dos estudos. Além disso, se o discurso de autoridades públicas é o de que universidades são para poucos —e diante da ausência de conectividade, livros ou equipamentos—, por que se empenhar para prosseguir estudando?

Outro elemento importante foi a crise econômica associada à Covid, que explica a elevada evasão no ensino superior privado e que tornou necessário o trabalho precarizado de muitos jovens.

Mas, dirão alguns, com a plena retomada das atividades produtivas, os que estão excluídos das escolas e dos postos de trabalho logo estarão de volta. Sim, a expectativa é que assim seja, mas há uma mudança no mundo do trabalho que precisa ser levada em conta para construir um futuro mais sustentável e inclusivo. Com o advento da inteligência artificial e de uma automação acelerada, entre outras transformações na economia, contar apenas com ensino médio, como bem mostra Michelle Weise em seu interessante livro de 2021 “Long Life Learning” (aprendizado por toda a vida, em tradução livre), não será suficiente para oferecer aos jovens trabalhos dignos.

Com a rápida substituição de gente por máquinas, mesmo que novos postos laborais sejam criados, eles demandarão outras competências, o que obrigará novas gerações de profissionais não apenas a concluir uma educação pós secundária, como constantemente se recapacitar. Afinal, os postos de trabalho serão extintos e criados em ondas sucessivas, não de uma vez só. E não me refiro aqui só a atualizações dentro da mesma profissão, mas eventualmente a “reinvenções” profissionais.

Neste sentido, precisamos nos assegurar que os jovens continuem estudando, não apenas até o final do ensino médio. Além disso, será necessário que a qualidade da formação oferecida os conecte novamente com a aprendizagem e lhes ensine a navegar num mundo ainda incerto e imprevisível. Afinal, o Brasil só será melhor se eles tiverem direito a um futuro!

Ventos externos

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A pandemia está gerando grandes transformações na sociedade mundial, deixando claro as deficiências das nações desenvolvidas, mostrando fraturas sociais elevadas, desigualdades obscuras, elevada concentração de renda, fragilidades institucionais, pobrezas generalizadas, conflitos sociais crescentes e a necessidade de construirmos uma nova agenda econômica.

Neste ambiente de instabilidades e incertezas, percebemos a chegada de novas variantes do vírus, com impactos variados para a economia global, exigindo a construção de estratégias conjuntas para combater esse inimigo externo. Não podemos aceitar que numa região do mundo, grande parte da população esteja vacinada e, numa outra, poucos indivíduos estejam imunizados. Neste cenário, as desigualdades se mostram mais nítidas e colocam em risco toda a comunidade global, podendo surgir variações do vírus, mais letais, mais preocupantes e mais assustadoras.

Neste ambiente, percebemos o surgimento de novos ventos econômicos nos países desenvolvidos, com impactos generalizados para toda a comunidade internacional. Instituições multilaterais que sempre pregaram a contração de gastos públicos, a redução das intervenções estatais e as desestatizações, estão defendendo novos preceitos econômicos, incentivando os gastos públicos e novas formas de intervenções públicas na economia, uma verdadeira revolução no pensamento econômico.

A pandemia está gerando novos consensos nos países desenvolvidos, a Europa está injetando trilhões de euros para estimular suas estruturas produtivas, alavancando os investimentos em ciência e tecnologia e retomando proteção de setores considerados estratégicos para o futuro da Europa. Nos Estados Unidos, vistos por muitos como um dos centros do liberalismo econômico, o Estado Nacional está despejando trilhões de dólares na economia para investimentos em variadas áreas, desde gastos em infraestrutura, segurança, educação, ciência, tecnologia, pesquisas científicas, dentre outras, visando recuperar o terreno perdido pela concorrência dos países asiáticos que passaram a dominar setores estratégicos e ganharam espaços de empresas norte-americana, gerando conflitos e ressentimentos geopolíticos.

Os ventos intervencionistas cresceram rapidamente nos países asiáticos e contribuíram para reconfigurar as economias da região, auxiliando na transformação das estruturas produtivas, passando de países importadores de tecnologias e exportadores de produtos de baixo valor agregado e, na atualidade, a região se tornou exportadora de produtos de alta tecnologia, com fortes investimentos em ciência e tecnologia, liderança em setores estratégicos, investimentos sólidos em educação que garantiram espaços na economia internacional, gerando constrangimentos com as economias ocidentais e conflitos abertos pela busca da hegemonia global.

Neste momento, percebemos que um dos setores mais estratégicos da economia do século XXI é aquela vinculada à indústria dos chamados semicondutores, ou popularmente chamada indústria dos chips, cuja liderança é exercida pelos Estados Unidos e seguida por países asiáticos, como Taiwan, China e Coréia do Sul. Estes países investem trilhões de dólares liderados pelos seus Estados Nacionais para ganhar a concorrência nestes setores de alta tecnologia, são investimentos de altíssimo risco e grandes incertezas, demandam riscos que prescindem dos investimentos governamentais.

Depois que os investimentos forem maturados, as incertezas e os riscos forem reduzidos, as empresas privadas passam a fazer novos investimentos, angariando novos lucros e retornos crescentes e, desde então, passam a esquecer a centralidade e a importância do Estado.

Neste ambiente, percebemos conflitos crescentes entre os Estados Nacionais para defenderem suas estruturas produtivas, a geração de novos empregos qualificados, fortalecendo suas vendas externas/internas e maiores retornos para sua sociedade, gerando riqueza e bem-estar social. O enriquecimento das nações só foi possível graças a uma estratégia conjunta entre Estados e Mercados na reconfiguração da estrutura produtiva, enquanto isso, no Brasil, o governo está fechando a Ceitec, a única empresa brasileira produtora de chips na América Latina. Que pena, aqui os ventos externos demoram para chegar!

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/01/2022.

Minha única expectativa para 2022 é sair do lugar, por Lúcia Guimarães.

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Depois de dois anos de isolamento, que o ano novo chegue com movimentos, mas sem amnésia

Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

Folha de São Paulo – 30/12/2021

Quem já não sonhou que está correndo, fugindo de uma ameaça, mas não consegue sair do lugar? É um sonho comum e é compreensível, antes de qualquer interpretação freudiana. O estágio de sono que nos permite sonhar é acompanhado de atonia, a paralisia de braços e pernas, daí a sensação de imobilidade que inunda o sonho.

Já o pesadelo que vivo acordada há dois anos é fruto de imobilidade imposta, nos Estados Unidos e no Brasil.

A disparada de casos de Covid-19 com a variante ômicron foi provocada pela desigualdade vacinal que permitiu ao vírus desenvolver novas cepas em populações não imunizadas nos países mais pobres —uma tragédia anunciada por epidemiologistas. Aqui, o público que escolheu recusar a vacina continua incapaz de aprender com as cenas de horror nas UTIs, morrendo duas vezes mais do que as pessoas triplamente vacinadas.

Dois anos de ataques à democracia, aumento de violência racial e religiosa nos EUA nada ensinaram aos brasileiros que votaram num Trump mais depravado e pavimentaram o terreno para a morte de 620 mil pessoas. E não importa os números deixarem claro que a grande maioria quer ver o monstro do Planalto pelas costas: 47% do empresariado brasileiro prefere mais morte, fome, desemprego, genocídio indígena e massacres em favelas —qualquer coisa para não eleger seu espantalho de estimação.

O comentariado pusilânime da imprensa política nada aprendeu com seu papel, em 2018, de conferir legitimidade à candidatura de um jagunço do baixo clero que planejou plantar bombas em quartéis antes de ser defenestrado com um tapinha na mão pelo Exército. Não se envergonha de ter manufaturado um ministro competente na figura de um fantasista medíocre, pinçado do merecido desdém que despertava entre pares economistas.

Os mesmos absolutistas que selecionam o reizinho da vez fazem marketing eleitoral escancarado para um santarrão de pau oco que não sai de um dígito nas pesquisas, nunca geriu sequer uma barraca na feira livre e abusou do Judiciário para interferir na eleição de 2018.

Não aprendem nada.

Viver nesse Brasil é correr o tempo todo sem sair do lugar. Somos reféns da soberba de uma elite niilista que detesta o país e promove uma permanente queima do estoque —das florestas, dos corpos jovens perfurados por balas, dos cérebros que fugiram para o exterior.

Depois de dois anos de isolamento e sucessivos planos cancelados de reencontrar a família, minha única expectativa para 2022 é sair do lugar. Para isso é preciso remover os obstáculos de toda ordem e, acima de tudo, derrotar nas urnas o autor de crimes contra a humanidade.

Mas é importante também clamar por Justiça para os cúmplices nesta matança intencional de brasileiros (consultem a lista do Renan Calheiros); resistir aos sociopatas que acham que nos infectar numa pandemia é exercer liberdade individual; e não compactuar com a degradação da minha profissão, cujo dever é defender a democracia, não inventar candidatos sob medida para manter o Brasil atolado no que pior se tem produzido na vida pública.

Sair do lugar não é seguir em frente com amnésia. Nenhum dos sonsos nos três Poderes, os que acharam normal o avanço do Partido Militar sobre a nossa democracia, os falsos arrependidos que voltam a pedir para comprar fiado no nosso balcão, nenhum deles merece perdão da dívida que contraiu com o Brasil.

A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias., por Marisa de Oliveira.

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Comentário sobre o livro de Luiz Carlos de Freitas

O livro A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias, do professor da Faculdade de Educação da Unicamp Luiz Carlos de Freitas, foi lançado em 2018, pouco depois da homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) brasileira para os ensinos Infantil e Fundamental. Antes da eleição presidencial de 2018, assim, não aborda os desatinos que nos assombram desde então.

No entanto, sob o circo armado pelo ministério da Educação do governo Bolsonaro em torno de suas pautas esdrúxulas, vigoram as linhas gerais da concepção de educação que vinha ganhando espaço no MEC e na sociedade há décadas e se impôs com mais força após o golpe de 2016. É dessa concepção, que mira a instauração de um clima de autoritarismo social, prevalência de ideias individualistas e implantação de uma dinâmica econômica ultraliberal, que trata a obra.

Freitas apresenta o conjunto de ideias e políticas que configuram a “reforma empresarial da educação”, expressão cunhada por estudiosos estadunidenses críticos ao processo de padronização da educação que nos Estados Unidos encontra-se em estágio avançado, a ponto de já estar sendo questionado e revisto.

Já nas primeiras páginas, o autor ergue a sua bandeira – a da defesa de uma educação pública de gestão pública – e reitera que o projeto de país e de vida por construir, no qual a educação pública e de gestão pública se inscreve como meio e fim, opõe-se radicalmente ao atual, que visa à formação de indivíduos aptos para o trabalho na indústria 4.0 e resignados – empregados ou não – a uma vida precária em todos os seus níveis.

Além de tomar partido, o autor despoja da pretensa capa de “apolítico” o partido que se opõe à escola pública de gestão pública. Para tanto, descreve e analisa com rigor os elementos que constituem o quadro de implantação da reforma e alguns de seus resultados, sobretudo nos Estados Unidos e no Chile, mas também no Brasil.

A referida reforma insere-se em um contexto mais amplo, em que ocorre uma paulatina conversão de todos os direitos sociais em serviços. Teóricos do liberalismo mais radical como James Buchanan, Chicago boy sustentado pelos irmãos Koch que colaborou na redação da Constituição da ditadura chilena, seriam os articuladores políticos desse assalto aos direitos sociais em escala global.

Essa proposta se assenta, grosso modo, nas premissas de que somos todos irremediavelmente individualistas, de que o Estado é um mau gestor (mas bom financiador) e de que os “vencedores”, ao serem obrigados a pagar tributos e acatar regulações que protegem os subalternos, são penalizados por seus méritos.

Desses pressupostos desdobra-se todo um programa de mudança nos termos das relações entre empresariado, governo e classe trabalhadora, em alguma medida beneficiado pela crise econômica do fim dos anos 1970 e a ascensão de figuras como Ronald Reagan e Margareth Thatcher ao poder. Na América Latina, houve alguma resistência ao modelo, decorrente sobretudo das condições de vida brutais que este impunha em um cenário de desigualdades profundas. No Brasil, porém, o ultimato foi dado em 2016, com o golpe que destituiu Dilma Rousseff – e a coalização que o autor chama de “capitalista desenvolvimentista” – da presidência. Retorna ao poder a coalizão de centro-direita (PSDB e PFL/DEM), e aumenta a velocidade de um processo que já vinha se desenvolvendo desde a década de 1990.

A frente política nesse programa econômico e ideológico é de grande importância, na medida em que imprime a desregulamentação do trabalho na lei e colabora para a reprodução da ideia de que estamos todos contra todos, dentro e fora da escola.

Nesse cenário de completa desregulamentação e reiteração de que as desigualdades socioeconômicas são irreversíveis e até aceitáveis, a escola é meio e fim: meio de difusão do ideal concorrencial e um negócio lucrativo em si mesmo, desde que gerida como empresa.

Base curricular, avaliação, responsabilização: gestão privada e financiamento público
O autor enfoca o papel das bases curriculares e das avaliações em larga escala, associadas ao princípio de accountability, ou “responsabilização”, no processo de incorporação das escolas, sobretudo públicas, ao jogo do mercado. O pressuposto é sempre o de que o que está fora do mercado tende ao abandono e à “ineficácia”, sem ressalvas sobre as condições em que essas instituições operam. De acordo com esse modelo, existe um conjunto de conteúdos, habilidades e competências, definido nas bases nacionais comuns curriculares, que o estudante precisa dominar, independentemente das especificidades de seu contexto.

O cumprimento dessa norma é verificado por meio de avaliações igualmente padronizadas, cuja função é tachar escolas e estudantes como “eficientes” e “ineficientes”. As escolas “eficientes” fazem sucesso na mídia e junto aos pais; já as “ineficientes” passam por reestruturações que envolvem de fechamento a imposição de uma gestão privada, via terceirização ou privatização propriamente dita. Quanto aos estudantes das escolas “reformadas”, aqueles considerados inadequados são levados a abandonar os estudos, enquanto os que se adaptam têm ganhos acadêmicos pouco significativos – o professor cita pesquisas baseadas em metadados que revelam resultados acadêmicos discutíveis (mesmo sob a perspectiva empobrecedora da escola neoliberal) e tentativas de justificá-los sem pôr em risco a credibilidade da reforma junto à opinião pública.

Contorcionismos no processo educacional que passam a focalizar o sucesso dos alunos nas avaliações a despeito de todas as outras dimensões da experiência escolar não afetam apenas os estudantes. Sob a gestão privada, professoras e professores vivem sob a pressão de metas que não dialogam com a realidade. O “aprimoramento” do docente segundo os termos da reforma passa a ser condição de empregabilidade, o que abre campo fértil ao mercado de cursos, formações, consultorias e outros empreendimentos que prometem preencher lacunas que a própria reforma cria, em um processo incessante de distorções e correções igualmente distorcionantes.

O autor salienta que o discurso da escola pública “eficiente”, da educação “de qualidade” sem mais considerações sobre o que significa “eficiência” e “qualidade”, seduz um espectro mais amplo que o da direita, espraiando-se para a centro-esquerda. Os testes padronizados e seus resultados tendem a ser tratados como informação inconteste sobre a eficácia do processo educacional como um todo. Como se o conteúdo destes e a interpretação dos dados que geram fossem imunes à ideologia, como o seriam as palavras “liberdade”, “responsabilização” e “inovação”, além das já citadas “eficiência” e “qualidade”, e também “educação”.

Em suma, trata-se de um livro comprometido com a educação emancipadora, que só é possível, como demonstra o autor, se for pública de gestão pública. Oferece uma análise de práticas e discursos difusos que têm tomado conta do debate, e um posicionamento assertivo contra a ofensiva neoliberal sobre a educação e as demais dimensões da vida.

Em passagem em que trata do inevitável choque entre o currículo nacional e a unidade escolar, o professor Freitas afirma: “Há vida inteligente no interior das escolas, suficiente para submeter à crítica as ideias que rondam a reforma empresarial da educação.” O quadro apresentado nesse livro revela que os que estão nas escolas, e não só estes, precisam contar com essa vida inteligente, precisam ser essa vida inteligente.

*Marisa de Oliveira é professora de língua portuguesa.

Referência

Luiz Carlos de Freitas. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo, Expressão Popular, 2018, 160 págs.

EUA: a admirável “greve geral não declarada”, por Sonali Kolhatkar.

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Frente a baixos salários e empregos de merda, multiplicam-se as autodemissões, às vezes performáticas; e espalham-se as greves, algumas com grandes vitórias. Há algo surpreendente no coração do capitalismo – mas a velha mídia não quer ver

Por Sonali Kolhatkar, no Alencontre | Tradução: Vitor Costa
OUTRAS PALAVRAS – 25/12/2001

Em 14 de setembro de 2021, uma jovem da Louisiana chamada Beth McGrath postou no Facebook um vídeo em que trabalhava no Walmart. Sua linguagem corporal mostra uma forte tensão quando ela cria coragem para anunciar, pelo microfone, sua demissão aos compradores da loja. “Todo mundo aqui está com excesso de trabalho e é mal pago”, ela começa, e continua questionando alguns gerentes por seus comportamentos impróprios e desrespeitosos. “Espero que vocês não falem com suas famílias da mesma forma que falam conosco”, disse ela antes de terminar com um “foda-se este trabalho!”.

Talvez Beth McGrath tenha se inspirado em Shana Ragland, de Lubbock, cidade do Texas, que quase um ano atrás apresentou uma demissão pública semelhante em um vídeo de TikTok que ela postou da loja Walmart onde trabalhava. As queixas de Shana Ragland eram semelhantes às de Beth McGrath, pois ela acusava os gerentes de insultar constantemente as trabalhadoras. “Espero que você não fale com suas namoradas do jeito que fala comigo”, disse ela pelo microfone da loja, antes de concluir com um “fodam-se os responsáveis, foda-se essa empresa”.

As demissões dessas duas jovens viralizaram e resumem bem um ano de grande instabilidade na força de trabalho estadunidense, que os economistas batizaram de “A Grande Demissão”. As mulheres, em particular, são vistas como as pioneiras dessa tendência.

A grande demissão
A gravidade da situação foi confirmada pelo último relatório do Bureau of Labor Statistics (BLS de 12 de outubro de 2021), que indica que uma porcentagem recorde de 2,9% da força de trabalho deixou seus empregos em agosto de 2021, o equivalente a 4,3 milhões de demissões.

Se essa alta taxa de demissões ocorresse em um momento em que os empregos são abundantes, isso poderia ser visto como um sinal de uma economia próspera, onde os trabalhadores poderiam escolher seus empregos. Mas o mesmo relatório do BLS mostrou que as vagas também diminuíram, sugerindo que algo mais está acontecendo. Uma nova pesquisa da Harris (também de 12 de outubro) com pessoas que estão empregadas, descobriu que mais da metade dos trabalhadores deseja se demitir. Muitos deles citam a falta de atenção e cuidados por parte do empregador e a falta de flexibilidade no planejamento dos horários de trabalho para justificar o desejo de deixar o emprego. Em outras palavras, milhões de trabalhadores na América simplesmente estão de saco cheio.

A turbulência no mercado de trabalho é tão grave que Jack Kelly, um colaborador sênior da Forbes.com, uma mídia favorável às empresas, definiu a tendência como uma “espécie de revolução e levante de trabalhadores contra maus chefes e corporações que se recusam a remunerar adequadamente e que exploram seu pessoal” (publicada em 8 de outubro de 2021). No que pode ser uma referência a vídeos virais como os de Beth McGrath e Shana Ragland – e a tendência crescente de postagens com a hashtag #QuitMyJob – Jack Kelly continua: “Os que se demitiram estão fazendo uma declaração poderosa, positiva e assertiva, dizendo que eles não aguentarão mais esses comportamentos abusivos”.

Ainda assim, alguns consultores sugerem combater a raiva dos trabalhadores por meio de “exercícios de vínculo”, como “compartilhamento de reconhecimento” e jogos. Outros sugerem aumentar a confiança entre trabalhadores e chefes – ou “exercer uma curiosidade empática” com os funcionários. Mas essas abordagens mais superficiais ignoram totalmente o problema principal.

Essas demissões devem ser vistas em conjunto com outra poderosa corrente que muitos economistas ignoram: o desejo crescente dos trabalhadores sindicalizados de entrar em greve.

As grandes greves
Em 13 de outubro de 2021, as equipes de filmagem da indústria cinematográfica anunciaram que poderiam parar em breve porque 60 mil membros da Aliança Internacional de Teatro e Funcionários de Palco (IATSE) haviam convocado uma greve nacional. (No lançamento do movimento, no domingo, 17 de outubro, foi obtido um acordo para melhorar a condição das equipes de filmagem; o espectro de uma paralisação pesou na decisão).

Cerca de 10 mil trabalhadores da John Deere (máquinas agrícolas), representados pelo United Auto Workers (UAW), também estão se preparando para entrar em greve após rejeitarem uma nova tentativa de acordo. A rede de clínicas Kaiser Permanente deve enfrentar uma greve de pelo menos 24 mil de suas enfermeiras e outros profissionais de saúde nos estados do oeste devido à piora dos salários e das condições de trabalho. E cerca de 1.400 trabalhadores da Kellogg em Nebraska, Michigan, Pensilvânia e Tennessee já estão em greve por causa de salários e benefícios (como plano de saúde e aposentadoria) insuficientes.

As greves anunciadas são tantas – e acontecem tão rápido – que o ex-secretário do Trabalho dos EUA (1992-1997, na gestão Bill Clinton) Robert Reich chamou a situação de “greve geral não-oficial” (The Guardian, 13 de outubro de 2021).

Ainda assim, a representação sindical permanece extremamente baixa nos EUA, resultado de décadas de esforços combinados das empresas para minar o poder de negociação dos trabalhadores e trabalhadoras. Hoje, apenas 12% dos trabalhadores e trabalhadoras são sindicalizados.

O número de greves e de trabalhadores e trabalhadoras em greve poderia ser muito maior se mais deles fossem sindicalizados. Trabalhadoras não sindicalizadas como Beth McGrath e Shana Ragland, contratadas por empresas historicamente antissindicais como o Walmart, poderiam ter conseguido organizar seus colegas de trabalho em vez de recorrer a demissões individuais divulgadas nas redes. Embora as mensagens de demissão nas redes sociais tenham um grande impacto nas discussões sobre o descontentamento dos trabalhadores e trabalhadoras, elas têm pouco impacto direto nas vidas dos colegas que permaneceram em seus empregos.

Um exemplo de como a organização sindical faz uma diferença concreta nas condições de trabalho é o acordo ratificado recentemente por 7 mil trabalhadores e trabalhadoras das farmácias Rite Aid e CVS (Consumer Value Store) em Los Angeles. A seção local da United Food and Commercial Workers negociou um aumento salarial de quase 10% para os trabalhadores e trabalhadoras, assim como benefícios sociais e padrões de segurança aprimorados.

E quando as empresas não atendem às demandas trabalhistas, os funcionários têm mais poder quando atuam como um coletivo unido numa negociação solidária do que como indivíduos. Vejamos o caso dos trabalhadores da Nabisco que entraram em greve em cinco estados neste verão. A Mondelez International, empresa controladora da Nabisco, registrou lucros recordes durante a pandemia graças ao aumento nas vendas de seus salgadinhos e biscoitos. A empresa ficou tão rica que pagou ao seu CEO uma remuneração anual de US$ 16,8 milhões e gastou US$ 1,5 bilhão na recompra de ações no início deste ano. Durante esse tempo, o salário médio de um trabalhador era de US$ 31.000 por ano, uma quantia muito baixa. Muitos dos empregos da Nabisco foram transferidos para o México, onde a empresa pôde reduzir ainda mais os “custos” com mão de obra.

Após semanas de piquete (iniciado em 10 de agosto de 2021), trabalhadores e trabalhadoras em greve da Nabisco, representados pelo Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Panificação, Confeitaria, Tabaco e Moinhos de Grãos, voltaram ao trabalho (em 18 de setembro de 2021) após terem obtido aumentos retroativos de 2,25%, bônus de US$ 5 mil e um aumento nas contribuições do empregador para seus planos de aposentadoria. A empresa, cujo faturamento cresceu 12% no início do ano, pôde arcar com essas medidas e muitas outras ainda.

Essas demissões em massa, assim como essas greves de trabalhadores, revelam um profundo descontentamento em relação ao trabalho nos EUA, processo que já remonta a décadas. As empresas exerceram forte controle sobre a política, gastando parte de seu dinheiro para fazer lobby junto ao governo a fim de garantir lucros ainda maiores à custa dos direitos dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o poder dos sindicatos caiu – uma tendência diretamente ligada ao aumento das desigualdades econômicas (desigualdades que refletem o fortalecimento das formas de exploração).
Empresas e legislação

Mas agora, na medida em que os trabalhadores fortalecem sua posição, as empresas estão preocupadas.

Na esteira dessas greves e demissões, parlamentares estão tentando ativamente fortalecer as leis trabalhistas federais existentes. Mas grupos empresariais estão pressionando os democratas para enfraquecer as medidas pró-trabalho incluídas na lei Build Back Better (BBB), que está atualmente sendo debatida no Congresso.

Atualmente, os empregadores podem violar as leis trabalhistas sem grandes consequências, já que o National Labor Relations Board (NLRB) não tem o poder de impor multas aos infratores. Mas os democratas querem dar ao NLRB o poder de impor multas de US$ 50 mil a US$ 100 mil a empresas que violem as leis trabalhistas federais. O projeto Build Back Better também inclui o aumento de multas para empregadores que violarem os padrões do Occupational Safety and Health Administration (OSHA), órgão do governo federal cuja missão é prevenir acidentes, doenças e mortes no local de trabalho.

A Coalizão por um Local de Trabalho Democrático, um grupo de lobby empresarial que quer tudo, menos democracia no local de trabalho, está muito preocupada com as mudanças propostas. Ela enviou uma carta aos parlamentares sobre esse tema. Resta saber se os lobistas corporativos terão sucesso, dessa vez, em manter as leis trabalhistas bem fracas. Mas como os trabalhadores continuam a pedir demissão e as greves entre os trabalhadores sindicalizados se multiplicam, os empregadores estão ignorando os sinais de raiva e frustração generalizadas por sua conta e risco.

Perspectivas econômicas

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Mais um ano está chegando ao final. Depois de imensos desafios e oportunidades gerados pelo incremento da pandemia, os números assustadores de mortes em decorrência da covid-19, o crescimento da inflação e os desajustes das cadeias produtivas nacionais e internacionais, a economia brasileira sente os sinais claros do baixo crescimento econômico, dos reduzidos investimentos produtivos, da queda da renda, do incremento da pobreza, de indicadores sociais sofríveis e dos conflitos políticos que se aceleram continuamente, as perspectivas econômicas para o comportamento da estrutura produtiva são pouco agradáveis.
Os indicadores de emprego são assustadores, temos na atualidade quase cinquenta milhões de trabalhadores em situação de degradação laboral, neste ambiente, percebemos desempregados, subempregados, desalentados e um grande contingente de trabalhadores na informalidade. Neste ambiente, a massa de renda se reduz, o consumo está em queda, os investimentos produtivos não se recuperam, postergando a recuperação da economia e piorando, os já degradados, indicadores sociais.

O crescimento dos preços diminui o poder de compra da população, reduz a renda agregada, contraindo os salários, levando o governo ao aumento nas taxas de juros, piorando as expectativas econômicas e seus impactos são imediatos. Os investimentos produtivos se reduzem, a economia se retrai e se aproxima da recessão, postergando o incremento da esperança e degradando as condições sociais e as instabilidades políticas. No momento que escrevo, a perspectiva do chamado mercado é de um crescimento de 0,5% do produto interno bruto, se estes valores se efetivarem a renda per capita se reduz mais uma vez, tornando a população cada vez mais pobre e os indicadores econômicos mais tenebrosos.

No cenário fiscal as condições são preocupantes, impactando sobre os investidores externos que fogem da economia brasileira, atraindo apenas os investimentos de riscos, que buscam altas rentabilidades, taxas de juros atraentes e ganhos elevados, com isso, o país entra na rota dos grandes especuladores internacionais, garantindo retornos altos e, em contrapartida, percebemos a destruição dos setores produtivos nacionais. O resultado evidente deste cenário, é o incremento da desindustrialização da economia brasileira, um setor que já representou quase 30% do produto interno bruto e, na atualidade, apresenta apenas 10%, gerando empregos de baixo valor agregado, salários baixos, reduzindo consumo e queda brutal na renda dos trabalhadores.

Os desafios econômicos são elevados e exigem consensos políticos fundamentais, os grupos econômicos, financeiros e políticos mais relevantes precisam construir novas perspectivas para o futuro imediato. A construção, ou reconstrução, exige visão estratégica, planejamento econômico, mão de obra capacitada, investimentos em ciência e tecnologia, estratégias geopolíticas consistentes, deixando de lado interesses imediatos e ganhos corporativos, unindo forças entre todos os atores da comunidade. Sem esta unidade, sem a integração entre Estado e Mercado, o país se aproximará, novamente, de uma nova década perdida, com altos custos sociais que perduram durante muitas décadas e se aprofundou nos últimos quarentas anos, quando os países desenvolvidos inauguraram a chamada terceira e, posterior, revolução industrial e no Brasil, ainda nos perdemos em algum momento da segunda revolução industrial, levando o país a um retrocesso enorme, com perda de relevância na economia internacional, atrasos institucionais e dificuldades de competir no, cada vez mais, competitivo mercado global.

O próximo ano nos trará desafios conhecidos por todos os estudiosos da sociedade brasileira. Os desafios brasileiros não são novos, são conhecidos por todos os cidadãos, os desafios são econômicos, são políticos e são sociais cuja superação exige, antes de mais nada, união, solidariedade, liderança, autonomia e esperança. Conceitos fundamentais que não conseguimos construir neste ano que estamos deixando para trás.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/12/2021.

Onde está o mérito? por Michael França.

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Resultados obtidos por uma pessoa estão correlacionados com o local de nascimento

Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 28/12/2021

Existe uma intensificação em torno do debate relacionado à meritocracia. No contexto americano, isso não se limita a um grupo ideológico. A discussão atravessa todo o espectro político. Sai da esquerda até chegar à direita.

Se por um lado premiar as pessoas pelo talento, esforço e desempenho tem seus aspectos positivos, por outro um sistema que não procure lidar com as diferenças nas trajetórias individuais na obtenção de resultados pode discriminar sistematicamente os menos favorecidos.

O dinheiro e as conexões facilitam o progresso daqueles que nasceram com melhores condições financeiras e os impulsionam na escalada da hierarquia social. Estudos têm demonstrado que os resultados alcançados por uma pessoa estão altamente correlacionados com o local do seu nascimento.

Indivíduos com piores origens socioeconômicas têm cada vez mais dificuldade para competir com aqueles oriundos da elite. Enquanto as famílias de alta renda costumam deixar consideráveis legados para as futuras gerações e investem pesadamente na formação de seus filhos, as mais desfavorecidas não têm a mesma disponibilidade de recursos e podem apresentar baixo interesse nesse tipo de investimento.

Educação pública de qualidade é uma saída. Porém, existem limites para o que ela pode fazer. Os progressos educacionais têm vários impactos positivos, como por exemplo, permitir maior acesso a bons empregos e melhorar a produtividade.

Entretanto, a riqueza herdada dos pais pode ter mais impacto na acumulação de capital e manutenção do poder intergeracional do que os ganhos gerados no mercado de trabalho. A contínua passagem de vantagens para os descendentes acaba deixando pouco espaço no topo para aqueles que não nasceram com boas condições financeiras.

Na sociedade brasileira, a transmissão do status socioeconômico da família ocorre de maneira quase automática. No entanto, a construção de uma economia mais competitiva e de uma sociedade mais próspera requer que haja maior mobilidade social.

As pessoas deveriam prosperar de acordo com seus esforços e não amplamente amparadas pela influência familiar. Apesar de revolucionária, essa ideia é difícil de ser colocada em prática em lugares com grandes desigualdades sociais.

Na teoria, muitos gostariam de ter um país mais justo e sem pobreza. Na prática, o brasileiro “cordial” tende achar que o grupo favorecido é sempre o outro. Apesar do desafio, é necessário avançar em reformas estruturais no funcionamento do Estado e encarar de frente a batalha para diminuir os privilégios herdados.

Em um país conservador, sempre há muitas resistências às mudanças. Contudo, a consciência social a respeito das desigualdades de oportunidades tem aumentado. Os avanços na educação foram abaixo do ideal nas últimas décadas, mas permitiram a ascensão de vozes antes excluídas.

Velhas narrativas estão sendo contestadas. Novas surgiram. O futuro tende a ser caracterizado por muita agitação social. Deste modo, continuar com a reprodução do status quo poderá não ser mais facilmente tolerado. Assim, espero.

Esse texto foi uma síntese de algumas discussões que procurei realizar nesse primeiro ano como colunista. Agradeço às leitoras e aos leitores que me acompanharam até aqui. Todas as críticas, sugestões e apoios estão sendo fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.

O fracasso do mundo pós-soviético

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Lógica neocolonial ganhou desenvoltura inédita

Breno Altman, Jornalista e fundador do site Opera Mundi

Folha de São Paulo, 26/12/2021

No dia 26 de dezembro de 1991 deixava de existir a União das Repúblicas Socialistas (URSS). O capitalismo fora vitorioso, ao menos provisoriamente, na batalha iniciada em 1917, quando os bolcheviques chegaram ao poder a bordo de uma revolução que mudaria o mundo.

O colapso soviético, nos últimos 30 anos, foi decisivo para a consolidação da fase neoliberal do sistema capitalista. O desaparecimento do campo político, econômico e militar que media forças com o bloco liderado pelos Estados Unidos provocaria realinhamentos profundos na geopolítica mundial e na vida interna das sociedades.

A restauração da economia de mercado, nos primeiros momentos, afetou prioritariamente os povos do leste europeu, desmontando mecanismos de proteção social. Os novos Estados oligárquicos-burgueses foram tragados pela concentração de renda e riqueza, acompanhada pela precarização de direitos e o empobrecimento das classes trabalhadoras. Ainda que setores médios emergentes tenham se beneficiado de maior abertura econômica, essas nações voltaram a ser abocanhadas pelas principais potências imperialistas, sequiosas por ampliar mercados, exportar plantas industriais e ter acesso à mão de obra mais barata.

A implosão da experiência socialista, carcomida por erros e contradições, inibiu a resistência contra o ressurgimento capitalista. Tornou-se avassaladora a hegemonia das ideias liberais, com promessas de democracia e prosperidade. Sequer a reconstrução da Rússia, sob o nacionalismo de Vladimir Putin, alterou esse cenário, com evidentes sinais de degeneração, como os emitidos pela ascensão do neofascismo na Polônia, Hungria e Ucrânia.

Mas os reflexos do desaparecimento da URSS se estenderiam também ao Ocidente. Sem a ameaça de um sistema que, no pós-guerra, forçou o capitalismo à concessão de amplos benefícios aos trabalhadores dos países centrais, governos conservadores se viram de mãos livres para começar o desmonte dessas conquistas. A social-democracia europeia aceleraria sua adesão ao neoliberalismo, desprovida da condição de muro reformista para contenção do avanço soviético.

A esmagadora maioria dos partidos comunistas ou revolucionários foi demolida, desorganizando o movimento operário e sindical, já acossado por mudanças tecnológicas. Boa parte dessas organizações e lideranças capitulou à ideia de que a história chegara ao fim, com a perenidade do capitalismo, restringindo seu próprio papel à contenção de danos mais dolorosos.

A onda de retrocesso atingiria com maior impacto as nações periféricas, condenadas a uma divisão internacional do trabalho na qual deveriam aceitar sua função de provedora agroextrativista. Sem a URSS, a lógica neocolonial adquiriu inédita desenvoltura.

Excluída a China da contabilidade, o mundo tem assistido à decadência de alguns dos principais índices sociais, inclusive nas nações desenvolvidas, como os Estados Unidos. Também se eleva o número de guerras e conflitos armados, além da degradação ambiental.

O capitalismo, sem freios, empurra a humanidade para a barbárie. Oxalá sua crise estrutural abra nova janela histórica para que seja enterrado um sistema no qual a riqueza de 1% representa o patíbulo para todos os demais.

Globalizantes e Globalizados

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A globalização da economia transformou a sociedade internacional nos últimos quarenta anos, criando novas estruturas produtivas, novos modelos de convivência social, novos desafios para o mundo do trabalho, novas oportunidades e grandes instabilidades, que geram ansiedades, medos e incertezas cada vez maiores. Neste ambiente de crescimento da concorrência entre os atores econômicos, motivados pela globalização, os indivíduos precisam reinventar sua sobrevivência, sob pena de serem descartados e desumanizados, gerando inquietações sociais e políticas.

A globalização estimulou o consumismo, a busca crescente pelos valores monetários e imediatistas, contribuindo para uma crescente competição entre os atores sociais, uns ganham com este ambiente, angariando maiores lucros e ascensão social e econômica e, em contrapartida, muitos grupos são relegados ao esquecimento, perdem espaços no mercado de trabalho, são descartáveis e percebemos o aumento dos desequilíbrios emocionais, os transtornos, as depressões, as ansiedades e as desagregações.

Nesta nova sociedade, percebemos o incremento da tecnologia, o conhecimento ganha espaço e as inovações crescem de forma acelerada, motivando fortunas e riquezas, ações crescem e criam novos milionários, gerando novos atores no cenário internacional. Empresas gigantes perdem espaço na nova economia, atores marginais crescem, ganham robustez e se transformam em grandes conglomerados, novos modelos de negócio suplantam modelos tradicionais que exigem reestruturações, novas tecnologias e novas formas de compreensão do mundo dos negócios. Neste momento, percebemos que a globalização em curso na sociedade internacional está criando atores, os Globalizantes e os Globalizados. Os primeiros são descritos como os atores mais consistentes, mais inovadores, investiram e investem rapidamente em novas tecnologias, desenvolvem novos modelos de negócios, criam ambientes de empreendedorismo e inovação e atuam diretamente na construção de uma nova sociedade, centradas no conhecimento, na ciência e na pesquisa. Do outro lado, percebemos que os globalizados estão perdendo espaço na sociedade, investem pouco em inovação, reduzem os investimentos na educação, em ciência e tecnologia e colhem o ostracismo, a estagnação e a perpetuação das desigualdades sociais.

Os Globalizantes constroem espaços de consenso na coletividade e, com isso, ganham espaço na sociedade e perceberam a importância da industrialização como forma de angariar espaços no comércio internacional, garantindo o crescimento na escada tecnológica, se especializando em produtos de alto valor agregado e garantindo melhoras na qualidade de vida da população. Os Globalizados, a grande maioria das nações, se perdem em conflitos desnecessários, naturalizando a autodestruição, estimulando confrontos internos e, constantemente, se colocando como vítimas de um ambiente hostil, não conseguindo planejar e construir ações no longo prazo e se comprazem com a degradação do cotidiano, convivendo com a pobreza moral e a animosidade das relações sociais.

A globalização inaugurou um novo modelo de sociedade, trazendo ganhos e perdas para todas as nações, os setores que conseguiram crescer e ganhar espaço nesta nova sociedade foram os capazes de pensar na comunidade e nos interesses de todos os grupos sociais, criando novos vínculos políticos, reconstruindo a solidariedade em contrapartida a uma sociedade centrada no imediatismo e na alienação. Os ganhadores da globalização foram aqueles que investiram nos seres humanos, elegendo o capital humano como prioritário, garantindo novas oportunidades para todos os cidadãos, diminuindo os privilégios de poucos grupos sociais que vivem alardeando a meritocracia, mas cotidianamente, se esquecem que seus privilégios garantem a perpetuação de sua pseudo meritocracia.

O ambiente globalizado exige profissionalismo dos atores econômicos, as nações precisam construir diferenciais para se inserirem neste ambiente de concorrência crescente, seguindo os exemplos dos países que conseguiram alavancar seu desenvolvimento econômico, sem medidas concretas vamos continuar chafurdando na fome, na indignidade e no recuo civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/12/2021.

O socialismo do século 21, por Elias Jabbour.

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Experiência chinesa exibe novas e superiores formas de planificação econômica

Elias Jabbour, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-Uerj), é autor, ao lado de Alberto Gabriele, de “China – O Socialismo do Século XXI” (ed. Boitempo, 2021)

Folha de São Paulo, 20/12/2021

Alguns dados espantam. Neste exato momento cerca de 2 milhões de engenheiros e economistas estão trabalhando freneticamente em algum órgão público chinês com a missão que vai além de elaborar e executar projetos. Sobre seus ombros repousam as tarefas de assegurar autossuficiência tecnológica ao país e, de forma simultânea, garantir que 13 milhões de empregos urbanos sejam criados todos os anos. Além de uma clara combinação entre ciência e arte, trata-se de um interessante retrato de uma engenharia social de novo tipo.

Essa engenharia social pode ser observada como uma nova classe de formações econômico-sociais que emerge na China com o advento das reformas econômicas de 1978, momento aquele em que as reformas rurais levaram o socialismo chinês a se reinventar através de instituições de mercado. Desde então, mercado e plano na China são parte de uma totalidade, não opostos que se repelem. Nossas pesquisas apontam que a dinâmica deste “socialismo de mercado” é baseada em ondas de inovações institucionais que levaram, por exemplo, à formação de um poderoso núcleo produtivo e financeiro de caráter público (96 grandes conglomerados empresariais estatais sob coordenação da Sasac—sigla em inglês para Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais do Conselho de Estado— e cerca de 30 bancos de desenvolvimento). Um pujante setor privado não passa de ancilar e receptor dos efeitos de encadeamento gerados pelo core estatal da economia.

Duas questões ao debate: existe na história algum país que sob os cuidados de seu Estado nacional está o papel de coordenar a execução de milhares de projetos simultaneamente, desde uma ponte até grandes plataformas do nível de um computador quântico? Seria alguma heresia afirmar que nenhuma democracia ocidental que tenha a economia baseada na propriedade privada seja capaz de realizar algo próximo ao que os chineses estão realizando? Às duas questões a resposta é não. O poder político do Partido Comunista e a hegemonia da propriedade pública sobre a grande produção são a explicação mais plausível à capacidade do Estado chinês de entregar o que promete. Inclui-se neste pacote histórico o enfrentamento às grandes contradições surgidas como resultado de seu processo de desenvolvimento.

Não interessa a ninguém esconder os problemas sociais e ambientais chineses, diga-se de passagem. Afinal, não seria o processo de desenvolvimento algo caracterizado por saltos, de um ponto de desequilíbrio a outro?

Nesse sentido, o que seria o “socialismo do século 21”? O conceito se manifesta do movimento real. Ou seja, a forma histórica que emerge da experiência chinesa é um mix entre uma democracia não liberal e o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica. À disposição dos citados 2 milhões de profissionais estão inovações tecnológicas disruptivas como o 5G, o big data, a inteligência artificial.

Nunca, em nenhum momento da história humana, as condições à construção consciente do futuro estiveram presentes em um mesmo lugar.

O fim da pobreza extrema, a melhoria constante das condições de vida de seu povo e ambiciosos planos em matéria de redução de emissões de carbono expressam uma forma histórica caraterizada pela transformação da razão em instrumento de governo. Eis a forma histórica sintetizada na experiência chinesa: o socialismo do século 21, expressão embrionária de um projeto emancipatório e civilizacional, em sua forma histórica mais completa. Uma sociedade amplamente guiada pela ciência.

Nesse aspecto, o socialismo enquanto “razão no comando” é interessante contraponto ao irracionalismo por trás da ascensão da extrema direita justamente no coração da civilização ocidental, supostamente “superior”.

A China de 2021 em quatro ideias, por Tatiana Prazeres.

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Ano marca mudanças de trajetória com impacto no futuro do país asiático

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 17/12/2021

Rédeas curtas para o setor privado, regulação de algoritmos e proibição de criptomoedas. A crise energética e a pressão sobre metas climáticas. A crise imobiliária. A flexibilização da política do filho único. A diplomacia das vacinas contra a Covid e o anúncio de fornecimento de 1 bilhão de doses para a África. Uma estação espacial em construção. Um pouso em Marte. A preocupação com tecnologia e autossuficiência. O centenário do Partido Comunista Chinês.

O ano de 2021 foi intenso para a China. No entanto, mais do que fazer uma retrospectiva, vale refletir sobre o que realmente importa. A tarefa é arriscada no calor dos acontecimentos, mas aqui vão quatro possíveis pontos de inflexão. Os fatos estão associados a 2021, mas marcam mudanças de trajetória com impacto na China dos próximos anos.

1) 2021 foi o ano em que tensões geopolíticas mudaram de vez os cálculos de Pequim sobre sua atuação externa. Com a União Europeia, um acordo de investimentos assinado e celebrado em dezembro de 2020 foi colocado na geladeira. Em relação aos EUA, evaporaram quaisquer ilusões de que com Joe Biden o relacionamento bilateral melhoraria. Com a Austrália, submarinos nucleares entraram em cena. Em relação ao Japão e à Índia, aumentou a desconfiança mútua.

A China prepara-se para um cenário internacional mais resistente à sua ascensão —sabe que, mais do que antes, preocupações geopolíticas sobrepõem-se a interesses econômicos em algumas capitais. Ao mesmo tempo, reforça seus vínculos com a Rússia e com o mundo em desenvolvimento, que, em grande medida, quer distância da rivalidade geopolítica dos grandes.

2) 2021 foi o ano em que Taiwan voltou ao centro das atenções internacionais —e o assunto não vai desaparecer. A possibilidade de um confronto passou a ser discutida possibilidade de um confronto passou a ser discutida em diferentes locais. ainda que com boa dose de exagero, alimentando perigosamente uma profecia que pode se realizar.

Neste ano, Biden flertou com a mudança da postura dos EUA sobre Taipé, algo que vale há quatro décadas. Como nunca antes, Pequim deixou claro que o objetivo de rejuvenescimento nacional, meta para o centenário da República Popular da China em 2049, inclui a reunificação do país.

3) 2021 foi o ano em que a China dobrou a aposta na política de tolerância zero em relação à Covid-19. Pequim apertou os parafusos do controle, com resultados impressionantes no combate à pandemia.

A história ainda está sendo escrita, mas o saldo hoje é altamente positivo para as autoridades chinesas, a despeito dos problemas do início, reconhecidos à boca pequena entre locais, e dos sacrifícios individuais onde surgem surtos esporádicos.

O combate à Covid possivelmente será visto como um marco no aumento da confiança dos chineses em seu modelo político, com impactos significativos sobre a legitimidade do regime —e isso é altamente subestimado fora da China.

4) 2021 foi o ano em que Pequim corrigiu rumos na economia, podando o que via como excessos. De olho em ganhos a longo prazo, a China pareceu disposta a grandes sacrifícios imediatos. Empresas do país perderam mais de US$ 1 trilhão em valor de mercado neste ano, afetadas por um festival regulatório surpreendente.

Muitas dessas medidas têm como pano de fundo a ideia de prosperidade comum —forte candidata a expressão do ano na China. O interesse em fortalecer a classe média e reduzir desigualdades não é novidade. Mas poucos antecipavam tantas mudanças, tão significativas e em tantos setores ao mesmo tempo.

Quando historiadores olharem para a China de 2021, saltará aos olhos o fato de que, no debate entre fazer o bolo crescer e reparti-lo melhor, Pequim neste ano fez sua escolha.

Menos moral e mais políticas públicas, por Marta Machado

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O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminin

Marta Machado, Professora da Escola de Direito da FGV-SP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

Folha de São Paulo – 16/12/2021

Excelente reportagem de Fernanda Mena e Mathilde Missioneiro desta semana expôs a situação dramática de meninas que se casam e engravidam precocemente. O Brasil é o quinto país do mundo no ranking de casamentos precoces e tem o segundo maior índice de gravidez na adolescência —acima da média da América Latina e do Caribe e atrás apenas da África Subsaariana.

Altas taxas de fecundidade entre meninas e adolescentes estão relacionadas a situações de vulnerabilidade, violência sexual, falta de informação, acesso restrito a educação sexual, métodos anticoncepcionais e serviços de saúde reprodutiva. Ocorrem principalmente entre meninas negras, indígenas, de baixa renda e residentes em áreas rurais.

Além de riscos para a saúde e graves efeitos psicológicos, a maternidade precoce agrava o ciclo de vulnerabilidades e determina diversos desfechos na trajetória de vida das adolescentes: abandono ou menor rendimento escolar, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, maior risco de violência e aumento da pobreza.

Tal negação de direitos e perspectivas de vida para meninas e adolescentes está diretamente relacionada à falta de políticas públicas de educação e saúde, cenário agravado no governo Bolsonaro.

Sob o manto da defesa da família tradicional, o governo promove o fim de campanhas educativas, a exclusão da educação sexual dos currículos escolares, a interrupção da distribuição de anticoncepcionais e a imposição de entraves a programas de saúde reprodutiva. Em meio ao aumento dos casos de violência sexual na pandemia, portarias do Ministério da Saúde burocratizaram ainda mais o acesso ao serviço de aborto legal, de oferta já minguante nos hospitais públicos.

Ao destrinchar a aliança entre conservadorismo e neoliberalismo, Wendy Brown (2019) chama a atenção para o papel estratégico do mercado e da moral diante da retirada do Estado. A defesa da família tradicional anda de mãos dadas com a privatização e o desinvestimento em políticas de saúde, seguridade social e educação.

Na comemoração do “Dia Nacional da Família”, a secretária nacional de Família expôs publicamente a adesão a tal estratégia: a “cultura da família vai se expandindo”, ao passo que “o Estado protetor desincha e diminui o gasto público”. Afinal, “as políticas públicas familiares custam pouco e podem fazer muito”.

O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para a falta de investimento em políticas públicas e para a negligência em relação à infância e adolescência de meninas. Serve ao aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminina.

SUS revolucionou saúde brasileira, mesmo com má gestão e pouco dinheiro, por Dráuzio Varella.

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Dobre a língua antes de xingar o sistema público nacional, que oferece assistência médica como nenhum outro

Dráuzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo – 16/12/2021

Na abertura da Olimpíada de Londres, os britânicos colocaram três letras no centro do gramado: NHS. Referiam-se ao National Health Service, orgulho maior do país. Imagine as críticas, prezada leitora, se tivéssemos feito o mesmo: SUS, no meio do campo naquele espetáculo que foi cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro.

O SUS é a instituição mais vilipendiada da vida brasileira. Só fizemos alguma ideia da sua importância quando nos demos conta de que sem ele a pandemia teria causado uma tragédia ainda mais devastadora.

O NHS, entretanto, é um sistema pequeno comparado ao SUS. É bem mais fácil organizar a saúde num país com 67 milhões de habitantes, dono de um império colonial até ontem, com um dos níveis educacionais mais altos do mundo e renda per capita quase quatro vezes superior à nossa.

Quero ver é levar a saúde para 213 milhões de pessoas, das quais, segundo o IBGE, 52 milhões são pobres e 13 milhões vivem abaixo da linha da pobreza, espalhadas por um território de dimensão continental, com desigualdades de renda abissais. Se somarmos os brasileiros pobres com os que estão na miséria, chegamos à população do Reino Unido.

Digo essas coisas, prezada leitora, por causa de uma reportagem que li no jornal The Guardian, cujo título é “Quase 6 milhões de pessoas estão na lista de espera por tratamento hospitalar na Inglaterra”.

A lista de espera por tratamentos não urgentes inclui cirurgias de joelhos, próteses de fêmur, cataratas e muitas outras. Em outubro último, havia 5.975.216 pessoas na fila, portanto um em cada dez cidadãos do Reino Unido.

Segundo a Constituição do NHS, não menos do que 92% dos pacientes devem ser hospitalizados no máximo em 18 semanas, contadas a partir do dia em que o médico generalista pediu a internação. No entanto, 34% (mais de 2 milhões) continuam à espera além desse prazo. Pior, 312 mil aguardam vaga há mais de um ano.

Os trabalhistas acusam o governo conservador de erros administrativos na condução do NHS, que teria entrado na pandemia já com déficit de 100 mil profissionais nos serviços de saúde e 112 mil na assistência social.

Associações que reúnem médicos, enfermeiras e gestores têm alertado que a segurança dos pacientes está em perigo. O Royal College of Emergency Medicine estima que ocorram 6.000 mortes anuais por atendimento inadequado, nos serviços de emergência superlotados. O número de pessoas obrigadas a aguardar mais de 12 horas para conseguir um leito nas emergências ultrapassa 10 mil.

Caro leitor, não apresento esses dados para desmerecer o sistema britânico, um dos melhores do mundo, que foi implementado há mais de 70 anos, mas para mostrar como é difícil oferecer como é difícil oferecer assistência hospitalar universal.

O Brasil dispõe de cerca de 500 mil leitos. No SUS, há dois leitos para cada mil habitantes; número que chega a 3,5 na Saúde Suplementar. Como a Organização Mundial da Saúde considera três leitos por mil habitantes o mínimo necessário, os técnicos calculam que faltam cerca de 150 mil leitos ao sistema público, enquanto sobram vagas nos hospitais particulares.

Internações custam caro e afastam os doentes dos familiares e da comunidade. A tendência moderna é a de investir na atenção primária, para evitar que as pessoas adoeçam e oferecer tratamento domiciliar para as que necessitarem.

O Brasil tem um dos programas de atenção primário mais elogiados do mundo: o Estratégia Saúde da Família, com mais de 42 mil equipes formadas por até 12 agentes de saúde, um auxiliar de enfermagem, um enfermeiro, um médico, um dentista ou técnico em saúde bucal.

Cerca de dois terços da população recebem visitas mensais dos 265 mil agentes de saúde que atendem de casa em casa. Temos mais agentes espalhados pelo país do que soldados nas Forças Armadas. Esse contingente, em contato com as 43 mil Unidades Básicas de Saúde, tem diminuído e poderá reduzir ainda mais o número de hospitalizações, problema que até um país rico como a Inglaterra não consegue resolver.

Com apenas 33 anos de vida, o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, diante dele o Bolsa Família é uma pequena ajuda.

É um sistema em construção que exige participação ativa de todos nós. Financiamento insuficiente, má gestão e problemas administrativos não lhe faltam, mas ele fez a maior revolução da história da medicina brasileira. Antes de xingá-lo, dobre a língua.

‘Auxílio Votos’, por Ricardo Viveiros.

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Fome eleitoral no Brasil é tão grande quanto a fome por comida

Folha de São Paulo – 15/12/2021

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de ‘A Vila que Descobriu o Brasil’ (Geração), ‘Justiça Seja Feita’ (Sesi) e ‘Pelos Caminhos da Educação’ (Azulsol)

Há um grave problema contra o qual vários países do mundo lutam: a fome. Embora o Brasil não sofra com terremotos, furacões, tsunamis, vulcões e guerras, tendo muitas terras agriculturáveis sob clima ainda favorável, grande parcela da sua população enfrenta a crueldade da fome.

Eis uma solução simples, digna e eficaz para o problema da segurança alimentar: cultura e educação. Proporcionando acesso a esses bens com qualidade, governos podem garantir que, por mérito próprio, as pessoas sustentem suas famílias. Sem a necessidade de qualquer tipo de assistência governamental ou privada.

Quando faltam cultura e educação, diante da realidade da fome faz-se necessário amparar os que são vítimas dessa desumana condição. Programas de transferências de renda são políticas sociais existentes em algumas partes do mundo para reduzir e combater a miséria. Não são “paternalismos”; são puro respeito humano. Como no poema “Trem da Leopoldina”, de Solano Trindade, a recomendação é: “Se tem gente com fome, dá de comer!”.

No final da década de 1990, apenas três países atuavam em programas assim: Bangladesh, México e Brasil. Depois, outras nações passaram a oferecer transferência de renda. Hoje há programas similares na Turquia, Camboja, Paquistão, Quênia, Etiópia, África do Sul, Gana, Indonésia e Egito.

Até em países supostamente ricos, como os EUA, encontramos programas de renda mínima, como o que existe desde 2007 em Nova York, o Opportunity. Inspirada no Bolsa Família do Brasil, a ação norte-americana inova ao estabelecer condicionalidades para que se rompa o ciclo da pobreza com dignidade, motivando os beneficiados para o crescimento social com ensino técnico e reciclagem profissional.

Tais programas não são novidade no Brasil, nem têm os “donos” políticos que a maioria imagina. No início dos anos 1950, o brasileiro Josué Apolônio de Castro, médico e nutrólogo pernambucano, tornou-se presidente do Conselho da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Naquela oportunidade, disse: “No Brasil, ninguém dorme em razão da fome. Metade porque está com fome, e a outra metade porque tem medo de quem tem fome”. E sugeriu um programa contra o problema.

Quanto ao Bolsa Família, o idealizador do programa foi o sociólogo brasileiro Herbert José de Souza, o Betinho, inspirado em projeto anterior —o Bolsa Família (2001), criado pelo educador Cristovam Buarque quando governador do Distrito Federal (1995-1998). Os diferentes programas sociais “bolsa” foram unificados por Ruth Cardoso no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e oficializados no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Uma das principais promessas da campanha de Jair Bolsonaro (PL) quando disputou a Presidência da República era a de que não faria a “velha política”. Além de descumprir o prometido quando candidato, acaba de praticar um dos marcos da mais antiga ação eleitoreira: mudou o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil às vésperas de um ano eleitoral no qual pretende candidatar-se à reeleição.

Medida populista e inconsistente, sem clara fonte de recursos, será usada nas eleições para obter apoio dos menos esclarecidos. É o “Auxílio Votos”. A fome por votos é tão grande no Brasil quanto a fome por comida, que segue longe de ser zero…

Liberal de araque, por Lygia Maria.

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Se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra às Drogas, não veríamos ministro e presidente falando bobagem sobre liberdade e liberalismo

Lygia Maria Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Folha de São Paulo – 15/12/2021

Ao justificar por que é contra a exigência de passaporte vacinal nos aeroportos do país, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que é “melhor perder a vida do que a liberdade”. O presidente da República também já proferiu argumento semelhante, ao concordar com pessoas que não querem se vacinar, os chamados antivax.

Seria o caso, então, de perguntar ao ministro e ao presidente quando o governo legalizará as drogas. Afinal, não há lei que atente mais contra a liberdade do que aquela que proíbe o indivíduo de fazer o que quiser com seu próprio corpo.

O filósofo liberal John Stuart Mill (1806-1873) disse: “A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”. Se o governo se coloca como arauto do liberalismo, não faz sentido manter a criminalização das drogas; ou melhor, só de algumas drogas, pois outras (álcool e tabaco) são comercializadas livremente. Ou seja, temos aqui um liberalismo de araque.

A frase de Mill não implica que não deva haver leis. Para o liberalismo, o indivíduo é soberano para fazer mal a si mesmo, não aos outros. Ora, esse é justamente o caso da vacina contra Covid-19 e da exigência do passaporte vacinal.

Estudos mostram que o risco de pessoas vacinadas transmitirem o vírus é até 70% menor do que o de pessoas não vacinadas. Logo, o indivíduo que não se vacina e o governo que não fiscaliza a vacinação nos aeroportos colocam a saúde e a vida das pessoas em risco. Não há nada de liberal em alegar liberdade para infectar alguém.

Já o uso de drogas prejudica apenas o usuário. Por isso, vários pesquisadores de vertente liberal são a favor da legalização. Por exemplo, o economista Milton Friedman —a propósito, muito citado por bolsonaristas ditos liberais— defendia a legalização das drogas desde os anos 70. Pode-se alegar que drogas geram violência, mas o que gera violência é o tráfico e esse surge com a ilegalidade.

Leis de mercado básicas: produtos proibidos ficam mais caros (durante a Lei Seca, por exemplo, o preço da cerveja subiu 600%, e o uísque, 310%); quanto maior o risco, maior o lucro; o risco leva à aquisição de armas e disputas de mercado entre facções rivais; o preço elevado não leva necessariamente à diminuição robusta do consumo pois há demandas elásticas e inelásticas.

Uma política pública deve ser uma alocação de recursos escassos com base em evidências. A pergunta básica é: para cada real gasto com a proibição das drogas, ganha-se um real de volta? Onde mais esse dinheiro poderia ser investido?

Talvez, se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra as drogas, não veríamos um ministro e um presidente da República falando tanta bobagem sobre liberdade e liberalismo.

Financeirização

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A pandemia está gerando transformação no ambiente internacional, gerando questionamentos sobre a estrutura econômica das nações, o dinamismo de suas sociedades, a solidariedade entre os grupos sociais e as perspectivas para os próximos anos, marcados por inúmeros desafios, oportunidades e grandes mudanças no cenário global. Neste ambiente, a sociedade brasileira precisa repensar suas estratégias, buscando novos espaços de inserção na nova economia do conhecimento, construindo ativamente o desenvolvimento de tecnologias, planejando setores que contribuam para ultrapassar novas fronteiras tecnológicas e deixando de ser consumidora de produtos importados, cujos preços são elevados e contribuem para a perpetuação de uma dependência de outros países.

Até os anos 1980 a estrutura econômica e produtiva brasileira estava em grande ascensão, saímos de um país agroexportador, com baixa alfabetização e uma educação precária, baseada no meio rural, dependente de produtos primários de baixo valor agregado e nos tornamos uma economia em franco crescimento econômico, ganhando espaço no mercado internacional.

Desde então, a estrutura produtiva brasileira perdeu espaço no cenário global, países que viam o país como um exemplo de determinação e dinamismo econômicos superaram nosso país e ganharam espaços preciosos no altamente competitivo mercado global. Diante disso, a pergunta mais intrigante que precisamos responder é: o que aconteceu com a economia nacional nestes últimos trinta anos onde o país perdeu espaço e respeitabilidade no internacional?

Para responder esta indagação, precisamos perceber que a economia internacional, a partir dos anos 1980/1990, passou por grandes alterações, setores menos significativos perderam espaços na agenda econômica e se transformaram em setores dominantes, impondo seus interesses imediatos e altamente lucrativos, contribuindo para a desindustrialização de suas economias e garantindo altos ganhos na financeirização. Este cenário de crescimento das finanças da estrutura econômica garante altos lucros para poucos setores, mesmo nos momentos de crise econômica e de depressão, isso acontece porque estes setores vivem da intermediação de recursos e dependem das altas taxas de juros praticadas na economia, angariando bilhões de reais que garantem lucros elevados e usam sua estrutura política para garantir a isenção tributária, com isso, conseguimos compreender como os ricos ficam cada vez mais ricos, desde os períodos de bonança econômica até nos momentos de turbulência financeira, como vivemos no Brasil contemporâneo.

O assunto é árido e de difícil compreensão, diante disso, percebemos a dificuldade de analisar este fenômeno que não se restringe a países como o Brasil, mas perpassa a sociedade global, sendo que algumas nações já perceberam os impactos negativos da financeirização sobre a estrutura produtiva. Podemos definir a financeirização como um processo do capitalismo onde o dinheiro é usado como mercadoria, usando do dinheiro para fabricar dinheiro, levando ao processo de desindustrialização e da falta de desenvolvimento, onde a indústria se volta para as Bolsas de Valores e ao mercado financeiro, dominando a sociedade e impondo sua agenda, centrada no imediatismo, na instabilidade e nos lucros financeiros em detrimentos do emprego e do desenvolvimento da nação.

Existe uma alta correlação entre o crescimento da financeirização da economia e baixo crescimento econômico. Os países que cresceram no pós-1990 foram aqueles que conseguiram dominar os ganhos exagerados da intermediação financeira, em contrapartida, aqueles que se entregaram à sanha dos agentes financeiros, seu crescimento econômico reduziu expressamente, aumentando as desigualdades de renda e de oportunidades, gerando um retrocesso civilizacional de suas nações. O desenvolvimento econômico deve garantir uma melhora substancial na renda e na oportunidade de todos os cidadãos, garantindo melhoras para todos, não apenas para uma pequena casta de iluminados e dotados do “espírito empreendedor”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/12/2021.

Bolsonaro usará STF e pauta moral em cruzada para se reeleger, diz cientista político

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Para Fernando Abrúcio, presidente trocou retórica de golpe por promessa de colocar ‘os nossos’ na corte

JOELMIR TAVARES – FOLHA DE SÃO PAULO, 14/12/2021

O cientista político e professor Fernando Abrucio relaciona a vitória de Jair Bolsonaro (PL) na indicação de André Mendonça para ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) com o tema central da campanha do presidente à reeleição em 2022.

“O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro”, afirma à Folha o acadêmico, que vê o uso político-eleitoral da corte como sinal de enfraquecimento da democracia.

Para Abrucio, o mandatário vai explorar a promessa de colocar no STF mais ministros cristãos e conservadores, no intuito de acenar ao eleitorado evangélico e reforçar o que chama de cruzada contra valores progressistas associados à esquerda.

O docente da FGV em São Paulo considera um segundo turno contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o cenário mais provável, à luz do quadro atual e das pesquisas mais recentes. “O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro turno”, diz.

Abrucio afirma que, se Bolsonaro vencer, será por uma margem apertada, o que o deixará enfraquecido já no início do eventual segundo mandato. Segundo o professor, isso abriria margem para o debate sobre o semipresidencialismo, sistema defendido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

O que os bastidores da indicação de Mendonça antecipam sobre a campanha de Bolsonaro à reeleição? O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro. Um segundo vértice é o discurso de destruição do inimigo, e nisso a campanha vai ser muito pesada, atingindo várias frentes: comunismo, “extrema imprensa”, retorno da esquerda. E outro eixo serão as políticas públicas, mas o resultado nessa área é muito pequeno, com a crise econômica e social e as ações desastrosas de saúde e educação.

O STF então vira uma das trincheiras da campanha? Sim. Não é mais só dizer: “Vamos fechar o Supremo”, “o Supremo não deixa governar”. Isso fracassou, felizmente para o país. A estratégia agora é a ideia de colocar “os nossos” lá, os que defendam “os nossos valores”.

É um importante argumento eleitoral, possui algum grau de eficácia. Nos Estados Unidos, os republicanos vêm, até mesmo antes da eleição de Donald Trump, fazendo isso de usar a Suprema Corte [hoje com maioria conservadora entre os juízes].

Podemos nos preparar para uma eleição presidencial com o STF no foco? Sim, mas não o STF no sentido de Poder, algo institucional. Para Bolsonaro, o STF será uma espécie de símbolo. Tudo aquilo que ele puder usar para prometer avanço nessa agenda de valores em prol da pátria e da família, ele vai usar. O argumento dele se baseia na justificativa de que o Brasil é um país eminentemente cristão.

Bolsonaro confirmou essa estratégia ao dizer há alguns dias que, se for reeleito, indicará mais dois ministros evangélicos? Isso será constante agora e na campanha. Mas eu diria que essa fala é mais uma promessa do que uma possibilidade.

Por quê? Acho muito difícil que Bolsonaro consiga colocar no Supremo algum conservador muito radical. Não passa no Senado, em hipótese nenhuma. E acho que o Senado na próxima legislatura não vai estar muito diferente do que é hoje, ou seja, ele não terá maioria.

É preciso pontuar que Mendonça pertence a uma denominação moderada [Igreja Presbiteriana], e foi esse o perfil da atuação dele nos últimos anos em Brasília, talvez à exceção do período em que ele foi ministro da Justiça.

Mas, pensando na campanha, apelar para as questões religiosas e de comportamento funcionará para vencer? Ao pregar esse avanço sobre o STF, o argumento é o de que [os conservadores] precisam ter o domínio do controle das instituições. Esse jogo é até mais inteligente politicamente do que ter a Sara Winter pregando fechamento do Supremo. Vamos lembrar que o pessoal que propôs invadir o STF foi todo rifado pelo Bolsonaro.

É uma reciclagem da retórica que vigorou até o 7 de Setembro? É uma mudança, na verdade. Até o 7 de Setembro, era para dar o golpe. E o golpe fracassou. Não acho que o bolsonarismo raiz tenha desistido por completo do golpe. Eles guardaram na gaveta e podem ressuscitar algum dia.

A questão do Supremo hoje é uma estratégia eleitoral, e algo até mais racional do que a proposta de golpe. O objetivo é dizer que o presidente fará uma série de ações para fortalecer a maioria cristã do país.

Em que medida é legítimo levar ao Supremo representantes de segmentos? Não é um argumento ilegítimo, mas precisa estar associado a outra dimensão. O que se espera de um ministro do STF é que, independentemente de ser judeu, cristão ou ateu, ele seja um bom ministro. O aspecto religioso é irrelevante.

Algumas críticas feitas a André Mendonça foram equivocadas. O que deveria impedi-lo é a gestão dele como ministro da Justiça, que foi desastrada para a democracia, com autoritarismo e perseguições. Isso constitui falta de reputação ilibada, nos quesitos de comportamento ético e de respeito à democracia. Mas ele não tem menos qualificações técnicas do que outros ministros, como Dias Toffoli.

O STF também aparece na pré-campanha de Sergio Moro, mas pela via do combate à corrupção, com as críticas do ex-juiz a decisões da corte. A pauta da corrupção, aparentemente, não será relevante nesta eleição. Moro pode até crescer com esse discurso e chegar a uns 15%, mas esse pode ser o teto dele também.

As pessoas vão olhar e dizer: mas ele foi ministro do Bolsonaro, e ficou muito tempo [no governo]! Aliás, essa ligação entre eles será explorada ao máximo pelo Bolsonaro, que já o ridicularizou, por exemplo, por ficar calado nas reuniões de ministérios.

O que essa questão do STF como trincheira político-eleitoral revela sobre o sistema partidário e político brasileiro? Isso mostra um enfraquecimento da democracia brasileira. É um uso equivocado do sentido das instituições, e não é só com o STF.

Como o sr. avalia a relação hoje de Bolsonaro com os evangélicos? É bem provável que ele tenha menos voto dos evangélicos em 2022 do que teve em 2018, porque a crise econômica e social está brava, e o evangélico mediano é pobre e negro. Grande parte dessa fatia não vai votar no Bolsonaro.

No entanto, a situação dele para ir ao segundo turno é mais tranquila do que muitos imaginam. É preciso dizer que, caso ele ganhe a eleição, será por uma margem estreita. O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro
turno.

A pauta moral será suficiente para Bolsonaro se manter competitivo? Ele vai fazer uma campanha, digamos, pró-cristãos. É um dos poucos argumentos do Bolsonaro que sobraram. Com essa linha, ele consegue manter uma quantidade de cristãos que se soma aos conservadores e armamentistas, totalizando algo em torno de 15%. Esse bolsonarismo raiz é o que ainda segura o presidente.

Se ele tiver mais 10%, distribuindo dinheiro, pagando Auxílio Brasil, com a capilaridade do centrão, ele está no segundo turno, que é o que ele quer. E aí no segundo turno é tudo ou nada, naquela cantilena já conhecida: “Lula é comunista”, “o país vai ser dominado pelos chineses” etc.

A guerra cultural será a tônica da campanha de Bolsonaro? É plataforma de campanha e de governo. Afinal, o que tem para mostrar? O Posto Ipiranga [ministro da Economia, Paulo Guedes], o que entregou? Na educação, o que se tem é a agenda evangélica, a batalha contra a tal ideologia de gênero. E na saúde? É liberdade para você morrer? Se fizer um balanço das políticas públicas, não tem nada, é zero. Ele não construiu, só destruiu.

O país está economicamente muito mal, e não acredito que vá melhorar tão cedo. Vai piorar, na verdade. Para quem está na pobreza e buscando formas de comer e sobreviver, os valores cristãos não vão adiantar [na hora de decidir voto].

Vê chances de Bolsonaro estar no segundo turno? Ele precisa de 25% para estar no segundo turno. E ir para o segundo turno contra Lula significará pintar o petista como a ameaça maior ao país. É algo como “Deus contra o Diabo”. É muito difícil que Lula, ainda que derrotado, tenha no segundo turno menos de 45% dos votos. Bolsonaro começaria o governo muito enfraquecido.

Ele fica refém do Congresso e, na primeira crise, instala-se o debate sobre o semipresencialismo. Essa é a ideia do Arthur Lira, que é hoje o homem mais importante da República. Lira sabe que um presidente fraco é bom para o Congresso.

O nível do debate em 2022 será assustador e violento. Vai ser uma campanha suja, no estilo das eleições mexicanas na época do PRI [Partido Revolucionário Institucional], com atentados, assassinatos de candidatos e clima de terror.

Existe alguma forma de evitar isso? Bolsonaro fará uma cruzada pela vitória. Isso é o que deveria dar mais juízo a Lula e à terceira via, no sentido de buscar uma frente ampla, a mais diversa possível, já que o que há do outro lado é alguém que pode, ganhando ou perdendo, dilacerar o país.

Quem assumir em 2023 pegará uma terra arrasada. É sobre isso que o país deveria pensar. As pessoas não estão percebendo o grau de desestruturação do tecido social nos últimos anos. É um declive muito acentuado, desde 2013, o impeachment [de Dilma] e a Lava Jato, acentuado superlativamente sob Bolsonaro. Para consertar, o Brasil vai precisar de mais gente unida do que desunida.

Vê chance de união na chamada terceira via, que ostenta o discurso da convergência? Acho difícil que essa unificação se dê em torno do Moro. Tanto Moro quanto João Dória são filhos da crise de 2013, que produziu a polarização entre Lula e Bolsonaro e acabou engolindo todo o resto.

RAIO-X
Fernando Luiz Abrucio, 52
Doutor em ciência política pela USP, é professor e pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp) e foi pesquisador visitante no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). É autor dos livros “Barões da Federação: Os Governadores e a Redemocratização Brasileira” (1998) e, em parceria com B. Guy Peters e Eduardo Grin, “American Federal Systems and Covid-19” (2021)

Negacionismo na academia, por George Matsas

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Fecham-se os olhos diante de ‘questões mais urgentes’

Folha de São Paulo, 11/12/2021.

George Matsas, Professor do Instituto de Física Teórica da Unesp e membro titular da Academia de Ciência do Estado de São Paulo

Em níveis globais, a varíola foi erradicada, e a Aids, controlada. Para dar exemplo mais próximo a nós, segundo dados do IBGE, a expectativa de vida de brasileiros e brasileiras aumentou 30 anos em seis décadas. Portanto, diante destes e de tantos outros avanços científicos, é incompreensível que ainda haja negacionistas no mundo.

Ainda mais incompreensível (e tremendamente escandaloso) é o fato de eles grassarem por vielas escuras da academia.

Por mais incrível que pareça, a academia abriga negacionistas do aquecimento global, da eficiência das vacinas, da evolução das espécies e de sabe-se lá mais o quê. Isso seria anedótico não fosse o fato de que as universidades públicas são sustentadas pela sociedade para serem santuários da lógica e da razão.

No Brasil, argumentos sussurrados nos corredores da academia alegam que o acionamento dos comitês de ética para denunciar negacionistas —cujo papel se assemelha ao de uma quinta-coluna — poderia ser visto como “caça às bruxas”.

Afirmações descabidas, sem dúvida. Afinal, a Inquisição teve origem em preconceitos e crendices, não no pensamento racional.

Outro sofismo diversionista: comparar sanções de comitês de ética —órgãos democraticamente eleitos— a censuras arbitrárias decretadas por regimes ditatoriais. A liberdade acadêmica não é passaporte para negar a própria missão da universidade, e a academia não tem o direito de fechar os olhos para isso.

Então, o que explicaria a inação da academia?

Em primeiro lugar, o salário dos negacionistas não é pago pelos demais acadêmicos —ah, sim, porque a primeira coisa que qualquer um faria se descobrisse que a pessoa que pensou ter contratado como contador é, na verdade, um estelionatário seria demiti-la por justa causa.

Assim, não impactando no bolso destes, nem prejudicando a própria carreira e a de colegas, parece sempre conveniente recorrer a um lugar-comum: há outras questões mais urgentes. Ora, sempre há! No Brasil, autocrítica é matéria rara, e a academia, onde ela deveria ser exercida por dever de ofício, não é exceção. Em segundo lugar, há o instinto de corporativismo. A história tem mostrado que não é fácil lutar contra ele.

Como consequência do corporativismo, a academia é rápida em criticar cortes de verbas, usando o discurso coerente de que isso vai prejudicar a sociedade no curto e médio prazo. Também é ágil, por meios de suas sociedades representativas e profissionais, em criticar malfeitorias de outras instituições, corrupção na administração pública e maus políticos, por exemplo.

Mas é lenta em cortar na própria carne, por mais que isso seja igualmente necessário para defender a sociedade, a qual ela alega ser sua prioridade. Isso não está certo.

A permissividade da academia diante da existência de negacionistas confessos em suas fileiras é irracional do ponto de vista lógico e inaceitável do ponto de vista ético.

Mudanças climáticas são oportunidade de reformular política, diz historiadora

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Para Tatiana Roque, pactos entre ciência, sociedade e poder precisam ser refeitos

Cristiane Fontes
Marcelo Leite

Folha de São Paulo – 09/12/2021

OXFORD E SÃO PAULO
A matemática, filósofa e historiadora Tatiana Roque acaba de lançar “O Dia em que Voltamos de Marte: Uma História da Ciência e do Poder com Pistas para um Novo Presente”. No livro, ela detalha os avanços tecnológicos e disputas em torno dos paradigmas científicos nos últimos 400 anos.

“Nós vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais”, afirma. Para Roque, um dos principais problemas do neodesenvolvimentismo latino-americano, como no caso do PT, é o de se apoiar numa concepção historicamente datada, uma vez que a crise climática coloca em xeque justamente o modelo industrial do pós-guerra.

“Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós”, defende. “Ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.”

Para ela, o mais interessante da COP 26 (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas) foi o contraponto de uma sociedade civil brasileira ativa a um governo catastrófico, com destaque para o movimento negro colocando o racismo ambiental como uma questão central.

A questão é como transformar essa movimentação social em renovação político-partidária, não só de pessoas, mas de agendas. “Vejam os discursos incríveis que Lula fez na Europa, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro!”

O que levou você a escrever “O Dia em que Voltamos de Marte”? O que a história diz sobre os caminhos que nos trouxeram até aqui? Resolvi escrever um livro histórico, porque a história presente não encontra paralelos. Nós
vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais.

Esse é um dos argumentos principais do livro, tentar mostrar que nós vivemos tempos que não têm comparação com nada que a gente já viveu anteriormente e, portanto, esses pactos entre ciência e sociedade, entre ciência e poder, precisam ser refeitos e não vão mais se refazer imitando ou reproduzindo aquilo que foi feito em outros momentos históricos.

Portanto, não há paralelos. Mas aí, qual passa a ser o guia? Essa é uma dificuldade que a gente precisa reconhecer para encontrar soluções. No livro, uso muito o historiador Dipesh Chakrabarty, que fala sobre essa interseção entre duas histórias.

A gente sempre costumou pensar as mudanças atmosféricas e geológicas como mudanças que se localizavam num tempo muito longo, incompatível com o tempo da vida humana. Agora, a gente está vendo esses dois tempos se cruzarem, e o homem passou a ser uma força geológica. Como se servir de guias do passado quando a gente vive esse momento em que a vida humana está ameaçada de extinção pela ação da própria humanidade?

Você diz no livro que é preciso repensarmos a vida na Terra. A partir de que pistas a gente tem de enfrentar essa empreitada? O principal guia é o combate às mudanças climáticas. Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós.

Ou seja, não é ver as mudanças climáticas como um empecilho, como algo que a gente precisa ultrapassar para continuar vivendo como sempre viveu, é ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.

Como agir no presente para cuidar do futuro considerando uma sociedade como a brasileira, que tem enormes desigualdades sociais e grave e longa crise política e econômica? O Brasil se identificou bastante e por muito tempo com esse mito do país do futuro. Isso nos atrapalha muito, porque as soluções são sempre jogadas para depois.

Existe uma relação com o tempo que acaba nos impedindo de resolver esses problemas, porque a questão da desigualdade depende de alguma coisa por vir, não é o desafio principal presente.

A gente precisa inverter essa temporalidade e pensar que a gente tem de, primeiro, combater as desigualdades e pensar a partir daí em um novo modelo de desenvolvimento.

O que saiu de mais interessante na COP6, e o que mais preocupa no que foi discutido e definido em Glasgow? No caso do Brasil, a gente mostrou que tem uma sociedade civil ativa, apesar de o governo ser uma catástrofe. Do ponto de vista das negociações, acho que é muito aquém daquilo que a gente precisa. Temos um problema de governança global, não é só na COP, e quase todo mundo reconhece isso.

Esse modelo em que tomadores de decisão assumem compromissos voluntários, em que eles podem cumprir ou não, em que não há nenhuma forma de regulação, é algo que já mostrou bastante insuficiente.

Quais são os temas mais urgentes para o Brasil, considerando as eleições presidenciais do próximo ano? Pensar um modelo de desenvolvimento que não deixe a questão climática e ambiental em segundo plano. A gente tem um longo caminho para renovação da esquerda brasileira e latino-americana. A esquerda tem uma tendência a ser um pouco nostálgica do paradigma do New Deal.

Como recuperar um paradigma industrialista e baseado em um Estado de bem-estar social que funcionou em algumas partes do mundo e não funcionou totalmente nos países do sul? Como recuperar esse paradigma em um momento de crise climática, que coloca em xeque o modelo industrial do pós-guerra? Acho que o problema do neodesenvolvimentismo é justamente se apoiar em uma concepção historicamente datada em face da questão climática.

A ciência continua sendo fundamental para a superação de qualquer crise, especialmente, da crise climática. Como restabelecer a confiança na ciência dentro do fortalecimento do negacionismo e do desmantelamento das políticas públicas de ciência e inovação no Brasil? Acredito que, no Brasil, a crise da confiança na ciência não seja muito profunda. O exemplo das vacinas é muito bom. A gente tem grande confiança nas vacinas, justamente porque as políticas públicas de vacinação têm histórias de sucesso, das campanhas atingirem muita gente, disso ser algo reconhecido pela população.

A confiança na ciência não se dá no vazio. Essa valorização depende de como as pessoas enxergam o impacto da ciência nas suas vidas. Algumas pesquisas sobre confiança na ciência com as quais venho trabalhando mostram justamente isso, que a confiança tem uma correlação com o impacto que as pessoas percebem ou não no seu cotidiano.

Talvez a gente precise se mirar nisso para tratar a ciência de um modo mais implicado na sociedade.

A crise climática finalmente deixou de ser um assunto só da ciência e agora é também um assunto político, econômico, das artes. Quais as pistas para o novo modelo que você aponta? No Brasil, sem dúvida alguma, quem aponta novos paradigmas são os povos indígenas, que apresentam outros modos de vida e formulações muito impactantes, como as que estão no livro “A Queda do Céu”, do [Davi] Kopenawa ou “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, do Aílton Krenak.

Fora isso, tem toda a organização da sociedade civil, o movimento negro, os quilombolas, se organizando e trazendo o racismo ambiental como questão essencial para organizar essas agendas.

O que falta é a gente saber como essa mobilização social e as contribuições científicas, que no Brasil são muitas e muito importante para a questão climática, podem servir para uma renovação política. Ela não vai acontecer sem uma renovação político-partidária, e isso tem de chegar nas agendas dos candidatos, dos partidos.

O campo que tem condições de produzir essas transformações é o da esquerda, mas a gente ainda não conseguiu renovar as nossas lideranças. Vejam os discursos que Lula fez na Europa, incríveis sob muitos pontos de vista, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro! Falou da nossa produção de automóveis e nem mencionou transição energética, carro elétrico, nada disso.

RAIO-X
Tatiana Roque, 51
Professora de matemática, história das ciências e filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi presidente do sindicato docente da UFRJ e liderou campanhas contra os cortes de verbas para as universidades e a ciência. Foi candidata a deputada federal pelo PSOL em 2018.

Fome é produto de um governo que junta incompetência e improviso, por Bruno Boghossian.

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Gestão Bolsonaro desmonta programas e recorre a gambiarras para combater problema crônico

Bruno Boghossian Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Folha de São Paulo, 08/12/2021

No início de maio, alguém avisou a Jair Bolsonaro que o país atravessaria um período de estiagem aguda. O presidente olhou para os reservatórios das usinas hidrelétricas e soltou um lamento. “Estamos vivendo a maior crise hidrológica da história. Eletricidade. Vai ter dor de cabeça”, avisou a seus apoiadores.

Duzentos e onze dias depois, o Brasil parece ter superado o risco imediato de um apagão, mas há gente correndo atrás de lagartos para não passar fome no Rio Grande do Norte. Reportagem da Folha mostrou que metade do estado enfrenta uma situação de “seca grave”, expondo uma população desamparada por um governo incapaz de fazer o mínimo para enfrentar a miséria.

Nessa área, a gestão Bolsonaro exibe uma rara união entre incompetência, desinteresse e improviso. O presidente e seus auxiliares fazem definhar programas consolidados, ignoram consequências visíveis da crise econômica e recorrem a gambiarras para combater um problema crônico como a pobreza.

Em busca de dividendos eleitorais, Bolsonaro rebatizou o Bolsa Família e inventou um benefício adicional que pode valer apenas até o fim de seu mandato. Para completar, o governo barrou uma articulação que acabaria com a fila de espera do programa. Com a manobra, pelo menos 3 milhões de famílias pobres ou miseráveis devem continuar sem receber os pagamentos.

A gestão Bolsonaro ainda fez murchar um programa de enfrentamento à seca que chegou a instalar 100 mil cisternas num único ano. Agora, o governo se arrasta para chegar à marca de 3.000 unidades em 2021, enquanto a estiagem agrava a fome no semiárido. Entidades estimam que mais de 350 mil famílias da região ainda precisam ser atendidas.

A falta de uma rede de proteção social oferecida pelo governo faz com que a fome e a seca voltem a ser problemas políticos. Além das preocupações abrangentes com “a economia”, o país chegará ao debate eleitoral de 2022 diante da miséria que atinge muitos brasileiros.