Desigualdade sistêmica faz famílias pobres deixarem legado de miséria, por Michael França.

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O progresso tecnológico aumenta as vantagens de quem nasce em ambientes privilegiados

Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 19/10/2021

No passado, o esforço individual permitiu que milhões de jovens de baixa renda ascendessem socialmente ao redor do mundo. Diversas profissões não requeriam deles elevado nível de qualificação. Predominava o trabalho braçal.

Nesse contexto, era mais factível para os desfavorecidos prosperar e criar melhores condições de vida para suas famílias. Entretanto, esse cenário mudou.

Com o passar do tempo, o mundo do trabalho se transformou. O progresso tecnológico aumentou a demanda por mão de obra altamente qualificada e portadora de habilidades complexas. Para atender às novas exigências do mercado, famílias de alta renda passaram a investir intensamente na formação de seus filhos.

Contudo, na ausência de um sistema educacional público de qualidade, investimentos privados na educação representam consideráveis vantagens para os descendentes da elite adquirirem melhor qualificação e, assim, ocuparem os empregos que apresentam maiores remunerações.

Fora do mercado de trabalho, eles também têm altas chances de obter posições de prestígio em praticamente todo contexto socioeconômico. Na política, sabe-se que países com expressiva desigualdade tendem a apresentar maior concentração de poder em determinados grupos ao longo do tempo.

O caso brasileiro é emblemático. Algumas poucas famílias tradicionais detêm considerável poder para manter suas vantagens e, até mesmo, para influenciar nos rumos do país.

Além disso, deve-se pontuar que o progresso tecnológico aumentou a disponibilidade de produtos e serviços. Porém, dado que nem todos possuem capacidade financeira para comprar as facilidades da vida moderna, as vantagens daqueles que nascem em ambientes privilegiados aumentaram com o passar do tempo.

Isso tem profundas implicações na transferência de renda intergeracional. Os filhos dos ricos tendem a acumular cada vez mais recursos e aumentar o patrimônio familiar que será herdado pelos descendentes.

Nesse contexto, tem-se que na parte de cima da pirâmide social brasileira existem poucas famílias competindo pelos espaços de poder e usufruindo de uma estrutura social que permite a manutenção de seu status socioeconômico ao longo do tempo de maneira quase automática.

Na base da pirâmide o cenário é outro. Existem milhares de famílias batalhando pela sobrevivência. Por sua vez, a desigualdade nas oportunidades que um indivíduo terá na vida começa antes mesmo do seu nascimento.

A literatura acadêmica mostra que filhos de mães que não tiveram cuidados adequados durante a gravidez apresentaram resultados significativamente piores na vida. Quando nascem, muitas dessas crianças vivem em ambientes e famílias desestruturadas.

O baixo nível educacional dos pais e do círculo social em que a criança está inserida afeta negativamente o seu desenvolvimento individual. Nas escolas, ela não consegue aprender o suficiente e a taxa de evasão é acentuada.

Adicionalmente, muitas delas sofrem tanto com preconceito racial quanto com o de classe.
Na falta de melhores oportunidades, os descendentes das famílias desfavorecidas vão obter baixo nível educacional e, consequentemente, não conseguirão desenvolver as habilidades necessárias para um mercado de trabalho cada vez mais competitivo.

Sem perspectivas no trabalho, o custo de ter filhos quando se é relativamente jovem é pequeno. Assim, dada a baixa mobilidade social brasileira, o que se percebe é que as famílias de baixa renda acabam transferindo para as futuras gerações o legado de sua miséria.

Nesse mês o Google Fotos me lembrou que faz um ano que me mudei da favela São Remo em São Paulo, lugar onde morei por oito anos. Assim, não poderia deixar de escrever um pouco mais sobre desigualdade de oportunidades. Por fim, o texto é uma homenagem à música “A cidade”, de Chico Science, interpretada conjuntamente com Nação Zumbi.

Fome

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Depois de um início de século de grandes transformações sociais, políticas, culturais e econômicas, a pandemia desnudou uma realidade assustadora para a sociedade brasileira, somos um dos maiores produtores de alimentos, garantindo grandes ganhos no agronegócio e, ao mesmo tempo, estamos percebendo o retorno da fome no país, os dados recentes nos mostram que mais de 20 milhões de brasileiros declaram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer em alguns dias, mais de 24 milhões não tem certeza de como se alimentarão no cotidiano, levando-os a reduzir a quantidade e qualidade do que comem. Neste cenário 74 milhões de pessoas vivem inseguros sobre se vão acabar passando por isso, vivendo num momento de grandes inquietações, instabilidades, incremento de fome e da exclusão social.

Vivemos num momento de grandes calamidades, a economia perdeu força e a recuperação se mostra cada vez mais distante, percebemos espasmos de recuperação de alguns indicadores positivos, alguma melhora nos investimentos externos e, ao mesmo tempo, percebemos uma degradação dos indicadores mais consistentes, tais como a inflação, aumento na fome e na exclusão social. Com inflação em ascensão o Banco Central aumenta as taxas de juros, geradas pela desvalorização cambial e a desagregação das cadeias globais de produção. Com taxas de juros maiores a economia se reduz, diminuindo os investimentos produtivos, retraindo o consumo e piorando os indicadores de emprego e renda, com isso, os indicadores econômicos agregados pioram, aumentando a degradação social e incrementando a exclusão social.

Desde os escritos de Josué de Castro, médico, cientista social, geógrafo e intelectual de várias denominações acadêmicas, a questão da fome e da exclusão social ganharam espaço nas discussões nacionais, onde destacamos os estudos sobre ecologia e a fome no nordeste brasileiro, contidos nos livros Geografia da Fome e Geopolítica do Fome. Todas estas obras tocaram em um tema urgente para a sociedade brasileira, mostrando os grandes desafios sociais e políticos para o combate da situação de penúria e de degradação social, destacando os setores da sociedade que ganham com esta situação de indignidade e de destruição da alma nacional.

A pandemia nos mostra nossas indignidades, nossas heranças de degradações sociais nos mostram como perpetuamos e naturalizamos as condições de destruição da sociedade nacional, neste momento, precisamos rever modelo econômico, investigando as condições que nos levaram a situação de degradação que vivemos na contemporaneidade, estimulando uma reflexão de todos os grupos sociais, criando condições para que os grupos mais degradados tenham acesso ao orçamento público. Neste momento, precisamos repensar as políticas públicas, todas que apresentarem resultados negativos devem ser reestruturadas, àquelas que beneficiam apenas grupos sociais e econômicos dominantes precisam ser repensadas e novas políticas públicas devem ser desenvolvidas e devem estar centradas na redução das desigualdades, da geração de empregos dignos, propiciando cidadania e acesso ao mercado de consumo de massa.

Não seremos uma nação desenvolvida se não nos preocuparmos com todos os setores da sociedade, garantindo oportunidades para todas as classes sociais, garantindo progresso material e imaterial. A história nos mostra que todas as nações que conseguiram alçar o desenvolvimento econômico, antes de mais nada conseguiram inserir a população ao mercado do consumo e garantindo cidadania e dignidade.

Num momento de escassez e de rivalidades crescentes no ambiente global, marcados por incertezas e instabilidades, a construção do desenvolvimento das nações deve ser o objetivo maior da sociedade brasileira, superando a dualidade nacional, acabando com a fome, reduzindo a desigualdade e construindo um projeto nacional, sem isso, seremos sempre vistos como o país do futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 20/10/2021.

Todos contra a exclusão escolar, por Alexandre Schneider.

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É preciso que a agenda de políticas públicas tenha como diretriz combater o nível de desigualdade educacional brasileira

Alexandre Schneider – Folha de São Paulo, 18/10/2021

O Brasil tomou um trem veloz em direção ao passado. Inflação, juros, desemprego, desigualdade, fome, trabalho infantil, evasão escolar, desmatamento, agressões ao meio ambiente e pobreza crescentes ou em níveis presentes há 30 anos nos dão o tamanho do atraso e do desafio multidimensional que nosso país deverá enfrentar nos próximos anos.

Na educação, palco dos maiores retrocessos, é preciso que a agenda de políticas públicas tenha como diretriz combater um mal que não é novo, mas que foi elevado durante a pandemia: o nível de desigualdade educacional brasileira. O retrato mais claro, além das diferenças no desempenho dos estudantes medidos por exames padronizados, está nos indicadores de exclusão escolar.

Um estudo recente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e do Unicef traçou o panorama da exclusão escolar e nos trouxe dados alarmantes. Em 2019, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, cerca de 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória estavam fora da escola, a maioria deles nas faixas etárias de 15 a 17 anos (629 mil) e de 4 e 5 anos (384 mil).

Pretos, pardos e indígenas formam o maior contingente de excluídos da educação, correspondendo a cerca de 71% dos estudantes que estavam fora da escola antes da pandemia. O principal motivo apontado pelos estudantes para abandonar a escola foi o de desinteresse em estudar (37% das crianças e adolescentes entre 11 e 14 anos e 38% dos adolescentes entre 15 e 17 anos).

No fim do ano letivo de 2020 o número de excluídos chegou a mais de 5 milhões de alunos. Temos, portanto, um quadro de desigualdade educacional pré-pandemia que se intensificou durante este período, com um maior número de crianças e adolescentes fora da escola. Garantir o direito à educação exigirá políticas educacionais e políticas de apoio à educação no curto e médio prazo nos três níveis de governo e nas escolas.

No curto prazo todas as redes públicas do país devem instituir uma política de busca ativa de crianças e adolescentes que estão fora da escola. Além da busca ativa, o desenho de protocolos simples de acompanhamento da frequência e da participação dos estudantes na escola, antecipando possíveis evasões é uma medida muito eficaz e fácil de ser implementada.

Investir em programas de saúde mental dos estudantes e educadores, na ampliação do acesso à internet e na organização dos tempos e espaços de aprendizagem para a garantia de apoio aos estudantes em situação mais vulnerável são estratégias capazes de fortalecer o vínculo destes estudantes com a escola e evitar sua exclusão.

Também é fundamental a instituição de uma rede de proteção social articulando as áreas de saúde, educação e desenvolvimento social no acompanhamento dos estudantes e suas famílias.

A agenda educacional brasileira ainda está presa ao que foi proposto e implementado nas gestões de Paulo Renato Souza e Fernando Haddad. É inegável sua contribuição e o avanço promovido pelas políticas engendradas por ambos, mas hoje é necessário um passo além. Não vamos superar as desigualdades educacionais brasileiras com um sistema em que todos os incentivos existentes contribuem para manter ou até mesmo ampliar a exclusão.

Uma nova agenda exige a instituição de metas e indicadores voltados à redução das desigualdades educacionais e não à variação da média dos resultados, cujo sucesso muitas vezes se dá fechando a porta da escola aos mais vulneráveis.

Esta agenda requer a instituição de um Sistema Nacional de Educação, que organize um regime de colaboração entre a União, Estados e Municípios, dando aos últimos mais autonomia. O fortalecimento dos municípios e a ampliação da autonomia das escolas são medidas capazes de facilitar a aproximação entre a comunidade e a educação públicas. As pessoas “vivem nas cidades” e os professores de seus filhos às vezes habitam o mesmo quarteirão. O prefeito e os gestores educacionais são figuras mais próximas do que as autoridades estaduais e federais.

Por fim é necessário operar uma mudança que vá além da implementação dos currículos. Formar os professores para o uso de metodologias e práticas centradas no estudante, construir uma escola mais humana, que respeite os saberes comunitários, aproxima a aprendizagem da realidade de seus estudantes. Em um cenário de alta exclusão de pretos, pardos e indígenas, por exemplo, não basta cumprir a lei que obriga o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira. É preciso que as escolas sejam ativamente antirracistas e que todos os seus profissionais sejam formados para tal.

O combate à exclusão escolar, chaga antiga que ganhou contornos ainda mais inaceitáveis por conta da pandemia de Covid-19, deve ser a meta mais importante nos próximos anos. A missão da escola pública não é apenas alcançar excelência educacional. É a de garantir que todos estejam na escola, na idade certa, aprendendo. Apoiar a escola pública nessa missão deveria ser nosso mais importante compromisso como brasileiros.

O marxismo de Lênin, por Elias Jabbour.

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Xi Jinping e o “marxismo de Lênin”, por Elias Jabbour

Ao deslocar as teorias do desenvolvimento (estruturalismo latinoamericano e anglosaxão) e de Estado Desenvolvimentista à explicação de um fenômeno novo em prol do conceito de formação econômico-social, abriu-se um relevo de possibilidades intelectuais.

Jornal GGN – 16 de outubro de 2021

Tenho trabalhado com a ideia de que emergiu na China em 1978 uma nova classe de formações econômico-sociais, o socialismo de mercado. O “marxismo de Lênin” foi fundamental na minha recente trajetória intelectual. O que chamo de “marxismo de Lênin” é o marxismo que alça o conceito de formação econômico-social ao grau de conceito de fronteira das ciências humanas e sociais. Esse conceito, um tanto quanto obscuro em Marx e Engels, e ganha forma e conteúdo em Lênin e seu livro “Quem são os amigos do povo e como lutam contra a socialdemocracia?”. São inúmeras as contribuições de Lênin e outros pensadores à construção deste conceito. Destaco Mao Tsétung, Mariátegui e, no Brasil, Ignacio Rangel.

Eu e Alberto Gabriele em “China: o socialismo do século XXI” e ser lançado em breve pela Boitempo Editorial trabalhamos, aprofundamos e tentamos inaugurar uma visão inovadora sobre a China tendo este conceito como chave.

Uma homenagem ao “marxismo de Lênin” sob forma de uma inovadora e polêmica construção de uma visão do socialismo e do capitalismo nos últimos 100 anos e posicionando a formação econômico-social que emerge na China em 1978 como parte desta nossa construção teórica. O que tem a ver Xi Jinping com isso tudo? Xi Jinping inaugura uma era em que mudanças institucionais intentam transformar qualitativamente os esquemas de propriedade do país. Isso não é um ato isolado, uma simples virada política. Tem luta de classes, mas tem conceito.

Ao deslocar as teorias do desenvolvimento (estruturalismo latino-americano e anglo saxão) e de Estado Desenvolvimentista à explicação de um fenômeno novo em prol do conceito de formação econômico-social, abriu-se um relevo de possibilidades intelectuais. Uma formação econômico-social é algo em constante movimento. É algo que abriga diferentes modos de produção de diferentes épocas históricas operando em unidade de contrários, porém hegemonizado pelo poder político de novo tipo e suas respectivas formas de propriedade públicas.

O caráter desigual do processo de desenvolvimento de uma formação com diferentes “camadas geológicas” que se combinam, dando origem a novas, nos levou a buscar o cerne de sua dinâmica. O chamado universal no particular que as grandes terias não nos entregam. Essa desigualdade no processo interno de desenvolvimento demandava a constante construção de instituições capazes de mediar as relações entre os diferentes modos de produção, historicamente distantes. Mas territorialmente próximos, em processo de combinação.

O processo de desenvolvimento econômico em meio esta dinâmica depende da capacidade de resposta institucional do Estado. É colocar constantemente as relações de produção em concordâncias com as novas forças produtivas que surgem. O universal no particular na experiência chinesa pode ser percebida nesta capacidade de mudanças institucionais rápidas que explicam o crescimento ininterrupto chinês. Recolocar o Estado e o setor privado em diferentes papeis ao longo do tempo.

Assim foi se desenvolvendo essa nova formação econômico-social. Em meio a inúmeras contradições. Como o movimento e a contradição são as lógicas fundamentais, não é de se estranhar o avanço do setor privado sobre o estatal na década de 1990, por exemplo. Observando em dinâmica. A urbanização elevou a capacidade de organização dos trabalhadores que passaram a ser voz mais ativa, empurrando para frente aquela experiência e dando forma a um Estado nada weberiano. Uma nova teoria do Estado é necessária para compreender aquela dinâmica. Está aí mais uma lacuna a ser enfrentada. Conto com a inteligência de Eduardo Costa Pinto para isso.

Mudanças institucionais cíclicas e luta de classes são uma totalidade. Xi Jinping capitaneia uma nova onda de inovações institucionais, mais profunda e ativa. Esquemas novos de propriedade surgem, novas formas históricas de propriedade hegemonizadas pelo setor público, idem. A síntese disso é o surgimento, também, de uma nova dinâmica de acumulação, com leis e regularidades próprias a serem descobertas, que chamamos de “Nova Economia do Projetamento”.

Trata-se da forma histórica do socialismo em nossa presente época.

Enfim, as ideias são assim. Não podemos requentar o que autores europeus e norte-americanos, inclusive marxistas, falam e escrevem sobre a China. Podemos mais. Podemos elaborar mais e melhor. Coragem e força a quem enfrenta, de verdade, este debate em alto nível.

Elias Jabbour, professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ

Brasil conviverá com real mais fraco por bastante tempo, diz Pastore em novo livro.

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Economista também afirma que país precisa romper com passado e buscar terceira via em 2022

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO, 16/10/2021

O Brasil deve permanecer por bastante tempo com um câmbio depreciado, fator que dificulta o combate à inflação e que não resolverá sozinho o problema de falta de competitividade da indústria brasileira.

A afirmação é do ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, que está lançando seu novo livro, “Erros do passado, soluções para o futuro: A herança das políticas econômicas brasileiras do século 20”.
Para ele, um novo superciclo de commodities e um forte fluxo de capital estrangeiro para o Brasil, como vistos na primeira década do século 21, não vão se repetir. Mas o país pode aproveitar o câmbio depreciado para mitigar o impacto inicial de uma necessária revisão de mecanismos de proteção à indústria que só geraram ineficiência.

Pastore diz também que o país corre o risco de perpetuar alguns desses erros do passado caso reeleja o presidente Jair Bolsonaro ou o ex-presidente Lula. Ele se diz otimista com uma terceira via social-democrata, com um modelo econômico de Estado provedor e que reduza desigualdades.

“Sou muito cético em relação ao Brasil com um desses dois ganhando a presidência. Não sou cético em relação à terceira via”, afirma.

Dividida em sete capítulos, a publicação trata de temas como hiperinflação, milagre econômico, crise da dívida externa, câmbio e o “eterno problema fiscal”. Em todos os casos, coloca à prova as narrativas históricas sobre esses temas ao confrontá-las com dados e trabalhos acadêmicos.

Sobre o uso do câmbio no desenvolvimento do comércio exterior, por exemplo, Pastore afirma que uma moeda subvalorizada é apenas um facilitador do aumento da competitividade, mas não um substituto de medidas que aumentem a eficiência da indústria.

Ele também faz uma análise das políticas econômicas da época do milagre econômico brasileiro (1968-1973), na qual destaca um modelo de promoção de exportações por meio de subsídios fiscais e creditícios que, em vez de abrir a economia ao comércio exterior, acentuou distorções e gerou problemas muito semelhantes aos do modelo de substituição de importações.

O autor também resgata a discussão da sua tese de doutorado, de 1969, quando questionou o pensamento da época de que a agricultura de um país subdesenvolvido como o Brasil não conseguiria alcançar um alto nível de desenvolvimento e produtividade, algo facilmente desmentido na atualidade.

Pastore também alerta que o país evoluiu muito em relação à independência do BC, algo que impediu o país de combater a inflação com eficiência até a construção do Plano Real. Mas afirma que o problema do país na área fiscal atrapalha a política monetária e reverte os ganhos obtidos desde a criação do teto de gastos.

Para ele, esse limite de despesas foi praticamente abandonado. “O governo resolveu que, para não descumprir na aparência o teto de gastos, vai aprovar uma emenda constitucional que posterga o pagamento de precatórios. Ele muda a Constituição para dizer que cumpriu. O mercado financeiro não é ingênuo”, afirma.
Veja abaixo os principais trechos da conversa com o economista.

Inflação
Estamos muito mais aparelhados hoje para combater a inflação do que no passado. O Brasil não tinha um Banco Central ou, quando passou a ter, durante muitos anos não tinha autonomia. Nós progredimos. Essa lição, aprendemos. Mas o Brasil não conseguiu resolver o seu problema fiscal, de forma que ele interfere na política monetária e conduz a um tipo de solução [aumento maior de juros] que é muito mais custosa para a sociedade.
Câmbio

Quando os EUA reagiram à Covid com uma política monetária extremamente estimulativa, isso provocou um enfraquecimento do dólar, que produziu valorizações em todas as moedas. O Brasil, devido ao risco fiscal, não se beneficiou disso. O real permaneceu depreciado. Você está vendo o real hoje, depois de várias intervenções do Banco Central, rodando a R$ 5,40, que é uma taxa completamente depreciada e com comportamento muito divergente do de outros países.

O câmbio se depreciou. Parte é gerada por fundamentos. Há uma depreciação acima dos fundamentos, exagerada, provocada pelo prêmio de risco.

Teto de gastos
Em 2016, para criar um fato político que geraria uma onda a favor de reformas, o governo resolveu aprovar a emenda constitucional que fixa o teto de gastos. A partir daí, as taxas de juros começaram a cair. Só que esse teto de gastos virou hoje uma coisa praticamente inexistente.

Olha o que está acontecendo na questão dos precatórios. A regra do teto não está sendo cumprida, o governo não está fazendo as reformas e não está controlando os gastos.
Isso vai para prêmio de risco. Esse prêmio de risco se manifesta em juros mais altos sobre a dívida pública e câmbio mais depreciado. Com câmbio mais depreciado, a inflação sobe e a sociedade paga um custo que é ter de suportar juros mais altos e crescimento mais baixo para controlar a inflação. Tínhamos um problema fiscal, encaminhamos uma solução, mas abandonamos isso e estamos colhendo um resultado muito negativo.
Indústria ineficiente

O Brasil criou na indústria um protecionismo absolutamente gigantesco, o que gera ineficiência no setor produtivo. O governo não tem de defender só o interesse privado, tem de defender também o interesse da sociedade como um todo.

A retórica diz que tem de compensar o custo Brasil, então vamos arrumar um câmbio mais depreciado. O que tem de arrumar é reduzir o custo Brasil, não é depreciar o câmbio.

Dólar mais caro
Eu prevejo [no livro] um período de câmbio continuamente depreciado. Portanto, há aqui uma oportunidade ímpar para o país promover uma redução de tarifa, de proteção aduaneira para indústria, sem penalizar a indústria. Esse período deveria ser usado a favor do país. Isso seria uma oportunidade para fazer um processo de liberalização e aumentar a eficiência produtiva da economia brasileira.

Bolsonaro e Lula
Nem com Lula nem com Bolsonaro. Eles já mostraram o que são. As pessoas esquecem o que foi mensalão, o “petrolão”, o segundo mandato do Lula e o erro dele de manter a Dilma no poder, o que nos colocou em uma crise econômica da qual não nos recuperamos.

Há uma chance, mas ela não está com os dois tidos como os que vão ficar para o final [segundo turno]. Se for por aí, sou muito cético em relação ao Brasil.

Terceira via
Estamos falando de algo que se traduz em políticas econômicas com essa característica do capitalismo social-democrata, no qual o Estado seja um provedor de seguros para a sociedade. Não seguros que deixem todos sem incentivo para aumentar a eficiência, mas que permitam eliminar injustiças.

Um governo tem de se preocupar com reformas que produzam crescimento econômico, mas não é só crescimento econômico. Não estamos apenas tentando reproduzir no Brasil um capitalismo liberal meritocrático assemelhado ao dos EUA, com Estado mínimo. Gosto muito mais do modelo europeu.

Agora, depende de nós, da sociedade civil. Não podemos sentar na beira da calçada e chorar porque estamos indo mal, chamando a mamãe como fazíamos quando crianças. Os eleitores são adultos. Cada indivíduo tem a obrigação de vir ao debate, colocar suas ideias e a fazer pressões para que os políticos se organizem e enfrentem com mais chance de vitória esse desafio.

Rompimento com o passado
O Brasil vai ter de humildemente reconhecer os erros do passado. A razão pela qual escrevi o livro é a gente conhecer nossa história, saber onde erramos. A história não se repete, nem como farsa. Portanto, não posso usar suas lições na sua amplitude e totalidade. Mas posso aprender que há momentos em que temos de fazer um rompimento.

Estamos diante da oportunidade de ter um rompimento com o passado. Em vez de ficar nessa escolha entre duas experiências extremamente frustradas, temos obrigação de buscar alguma coisa nova e que esteja fundamentada em cima de princípios éticos, econômicos, de bem-estar, que permita o crescimento do país. Quero convidar as pessoas para esse tipo de reflexão, para ver se a gente consegue obter algum tipo de acordo a respeito dos caminhos do país.

“ERROS DO PASSADO, SOLUÇÕES PARA O FUTURO”
Preço Impresso: R$ 79,90 / e-book: 39,90
Autor Affonso Celso Pastore
Editora Portfolio-Penguin/Editora Schwarcz

A mais importante disrupção é preparar novas gerações de professores para utilizar tecnologias

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Edtechs abusam da ideia sebastianista de que uma inovação possa, no final da formação do estudante, apagar anos de lições de casa não feitas

Luiz Alvares Rezende de Souza, Presidente da Numbers Talk – Business Analytics

Oscar Hipólito, Professor titular da USP, é assessor educacional da Numbers Talk – Business Analytics e diretor acadêmico da Cintana Education (Brasil)

Folha de São Paulo, 13/10/2021

Estabelecida há pouco mais de um século e meio, a máxima evolucionista da seleção contínua dos indivíduos mais adaptados foi claramente revolucionária. Natura non facit saltum é o enunciado resgatado por Charles Darwin dos pensadores gregos: a natureza não dá saltos. Por alguns já foi classificada como reacionária. Liberal, outros disseram. E chegou mesmo a ser rotulada de progressista em algumas ocasiões.

Nem reacionária e tampouco liberal, ela é pragmática e, no estilo de Richard Dawkins, implacável em suas modernas leituras. A tese da macroevolução aplica-se a espécies, empresas, e também a ideias. A cada geração, indivíduos com maiores chances de sobrevivência reproduzem seu DNA e adquirem maior participação na população. O resto do trabalho é puro crescimento exponencial, um modelo matemático que a pandemia da Covid-19 conseguiu demonstrar de maneira didaticamente macabra para as gerações atuais.

Assim tem sido com as edtechs: elas ajudam a selecionar mutações bem-sucedidas nas soluções de problemas ligados ao setor educacional. E o segmento abusa da ideia sebastianista de que uma inovação empreendedora-disruptiva possa, no final da formação do estudante, apagar anos de lições de casa não feitas. Infelizmente esse tipo de ideia encontra ambiente extremamente favorável para se propagar em nossa sociedade de tradição ibérica.

Não temos evidências de que inovações disruptivas em educação foram capazes de produzir impactos em larga escala para melhoria de indicadores como analfabetismo, resultados no PISA, permanência escolar, renda média per capita ou medidas de ganho de produtividade nas populações atingidas.

Ao contrário, são fartas as evidências de que um bom ensino de língua(s), raciocínio lógico e matemático, atividades práticas bem planejadas e conduzidas, compromisso com os fundamentos teóricos dos cursos desde seu início, e ações focadas em engajamento dos estudantes no seu processo de ensino-aprendizagem contribuem inequivocamente para melhores resultados.

Também são abundantes os estudos que relacionam aumento de níveis médios de resultados educacionais associados à posterior elevação nos indicadores de produtividade da economia, e consequente aumento de renda das gerações que foram alvo desse tipo de política.

Em outras palavras, temos referências conhecidas e países que seguiram com sucesso esses caminhos. Saber interpretar os resultados de evidências de programas bem-sucedidos em edtechs, ou em centenas de projetos disponíveis nas redes pública e privada, e identificar os que possam ser escalados para compor soluções, sem dúvida é o grande desafio da gestão da inovação em educação. Será que hoje temos essa “leitura organizada”, para poder evoluir nosso sistema educacional?

Certamente é a evolução de estratégias provadas em educação e sua adaptação ao ambiente e sistemas de ensino existentes, e não a crença em soluções mágicas, isoladas ou pretensamente disruptivas que deve receber nossa atenção. O uso massivo de vídeos (curtos), sala de aula invertida, linguagem youtuber, project based learning e tantas outras pirotecnias que encantaram professores de primeira hora, e principalmente investidores em busca do próximo grande projeto de alto crescimento, não são páreos para uma lição de casa diária, bem planejada e bem-feita.

Em uma visão objetiva baseada em evidências, se as soluções mais eficientes de ensino-aprendizagem e com escala passam necessariamente por tecnologia, então elas também, necessariamente, passam pelo seu bom uso por parte significativa dos professores. Talvez a grande e mais importante disrupção esteja aí: preparar novas gerações de professores para utilizar múltiplas tecnologias (a maioria ainda está por vir!) e para habilitar nossos alunos a trilhar de maneira mais eficiente o percurso de aprendizagem, como vem acontecendo em países como Singapura, Finlândia, Coreia do Sul, Canadá, Estônia entre outros.

“Entre a tecnologia e o bom professor, eu escolho o último” disse Salman Khan fundador e CEO da EdTech Khan Academy em uma entrevista publicada pela Revista Telos 114, em setembro de 2020. Ele resumiu o que há de mais importante no processo de ensino aprendizagem: o Professor.

Nesse sentido, alguns pontos precisam ser levantados para que se possa equacionar e solucionar as questões que têm comprometido negativamente a qualidade da Educação. Quantos de nossos professores atuais conseguem de fato usar recursos de trabalho colaborativo durante uma aula por videoconferência? Quantos professores conseguem executar uma avaliação voltada para aprendizagem? Terão eles condições de formar alunos para atuar em um mercado de trabalho global e altamente competitivo? Quando nossos governantes e em especial o Ministério da Educação, MEC, levarão a bom termo os programas de capacitação dos professores bem como sua valorização e reconhecimento necessários para melhorar os resultados da aprendizagem dos alunos e otimizar sua formação? Será que o investimento no quadro de professores é capaz de gerar taxa de retorno privada, e atrair esforços, ou não seria essa a inovação mais importante que deveríamos estar buscando em educação?

Certamente as respostas a essas questões jogarão um pouco de luz nos pontos críticos que precisam ser revistos para a melhoria do desempenho do sistema de ensino. Professores bem formados aliados ao uso de inteligência de dados e análise de evidências tanto na aprendizagem dos estudantes quanto na gestão acadêmica são fundamentais se quisermos tirar a educação, em todos os níveis, do estado de mediocridade em que está.

Byung-Chul Han: ”O celular é um instrumento de dominação. Age como um rosário”

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Filósofo sul-coreano, uma das estrelas do pensamento atual, se aprofunda em sua cruzada contra os smartphones. Acredita que se transformaram em uma ferramenta de subjugação digital que cria viciados. Em entrevista, Han afirma que é preciso domar o capitalismo, humanizá-lo

Por Sergio C. Fanjul – Carta Maior – 11/10/2021

Com certa vertigem, o mundo material, feito de átomos e moléculas, de coisas que podemos tocar e cheirar, está se dissolvendo em um mundo de informação, de não-coisas, como observa o filósofo alemão de origem coreana Byung- Chul Han. Não-coisas que, ainda assim, continuamos desejando, comprando e vendendo, que continuam nos influenciando. O mundo digital cada vez se hibridiza de modo mais notório com o que ainda consideramos mundo real, ao ponto de confundirem-se entre si, fazendo a existência cada vez mais intangível e fugaz. O último livro do pensador, Não-coisas. Quebras no mundo de hoje, se une a uma série de pequenos ensaios em que o pensador sucesso de vendas (o chamaram de rockstar da filosofia) disseca minuciosamente as ansiedades que o capitalismo neoliberal nos produz.
Unindo citações frequentes aos grandes filósofos e elementos da cultura popular, os textos de Han transitam do que chamou de “A sociedade do cansaço”, em que vivemos esgotados e deprimidos pelas inapeláveis exigências da existência, à análise das novas formas de entretenimento que nos oferecem. Da psicopolítica, que faz com que as pessoas aceitem se render mansamente à sedução do sistema, ao desaparecimento do erotismo que Han credita ao narcisismo e exibicionismo atual, que proliferam, por exemplo, nas redes sociais: a obsessão por si mesmo faz com que os outros desapareçam e o mundo seja um reflexo de nossa pessoa. O pensador reivindica a recuperação do contato íntimo com a cotidianidade – de fato, é sabido que ele gosta de cultivar lentamente um jardim, trabalhos manuais, o silêncio. E se rebela contra “o desaparecimento dos rituais” que faz com que a comunidade desapareça e que nos transformemos em indivíduos perdidos em sociedades doentes e cruéis.

Byung-Chul Han aceitou esta entrevista como EL PAÍS, mas somente mediante um questionário por e-mail que foi respondido em alemão pelo filósofo e posteriormente traduzido e editado.

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Como é possível que em um mundo obcecado pela hiperprodução e o hiperconsumo, ao mesmo tempo os objetos vão se dissolvendo e vamos rumo a um mundo de não-coisas?

Há, sem dúvida, uma hiperinflação de objetos que conduz a sua proliferação explosiva. Mas se trata de objetos descartáveis com os quais não estabelecemos laços afetivos. Hoje estamos obcecados não com as coisas, e sim com informações e dados, ou seja, não-coisas. Hoje somos todos infômanos. Chegou a se falar de datasexuais [pessoas que compilam e compartilham obsessivamente informação sobre sua vida pessoal].

Nesse mundo que o senhor descreve, de hiperconsumo e perda de laços, por que é importante ter “coisas queridas” e estabelecer rituais?

As coisas são os apoios que dão tranquilidade na vida. Hoje em dia estão em conjunto obscurecidas pelas informações. O smartphone não é uma coisa. Eu o caracterizo como o infômata que produz e processa informações. As informações são todo o contrário aos apoios que dão tranquilidade à vida. Vivem do estímulo da surpresa. Elas nos submergem em um turbilhão de atualidade. Também os rituais, como arquiteturas temporais, dão estabilidade à vida. A pandemia destruiu essas estruturas temporais. Pense no teletrabalho. Quando o tempo perde sua estrutura, a depressão começa a nos afetar.

Em seu livro se estabelece que, pela digitalização, nos transformaremos em homo ludens, focados mais no lazer do que no trabalho. Mas, com a precarização e a destruição do emprego, todos poderemos ter acesso a essa condição?

Falei de um desemprego digital que não é determinado pela conjuntura. A digitalização levará a um desemprego maciço. Esse desemprego representará um problema muito sério no futuro. O futuro humano consistirá na renda básica e nos jogos de computador? Um panorama desalentador. Com panem et circenses (pão e circo) Juvenal se refere à sociedade romana em que a ação política não é possível. As pessoas se mantêm contentes com alimentos gratuitos e jogos espetaculares. A dominação total é aquela em que as pessoas só se dedicam a jogar. A recente e hiperbólica série coreana da Netflix, Round 6, em que todo mundo só se dedica ao jogo, aponta nessa direção.

Em que sentido?

Essas pessoas estão totalmente endividadas e se entregam a esse jogo mortal que promete ganhos enormes. Round 6 representa um aspecto central do capitalismo em um formato extremo. Walter Benjamin já disse que o capitalismo representa o primeiro caso de um culto que não é expiatório, e sim nos endivida. No começo da digitalização se sonhava que ela substituiria o trabalho pelo jogo. Na verdade, o capitalismo digital explora impiedosamente a pulsão humana pelo jogo. Pense nas redes sociais, que incorporam elementos lúdicos para provocar o vício nos usuários.

De fato, o smatphone nos prometia certa liberdade… Não se transformou em uma longa corrente que nos aprisiona onde quer que estejamos?

O smartphone é hoje um lugar de trabalho digital e um confessionário digital. Todo dispositivo, toda técnica de dominação geram artigos cultuados que são utilizados à subjugação. É assim que a dominação se consolida. O smartphone é o artigo de culto da dominação digital. Como aparelho de subjugação age como um rosário e suas contas; é assim que mantemos o celular constantemente nas mãos. O like é o amém digital. Continuamos nos confessando. Por decisão própria, nos desnudamos. Mas não pedimos perdão, e sim que prestem atenção em nós.

Há quem tema que a internet das coisas possa significar algo assim como a rebelião dos objetos contra o ser humano.

Não exatamente. A smarthome [casa inteligente] com coisas interconectadas representa uma prisão digital. A smartbed [cama inteligente] com sensores prolonga a vigilância também durante as horas de sono. A vigilância vai se impondo de maneira crescente e sub-reptícia na vida cotidiana como se fosse o conveniente. As coisas informatizadas, ou seja, os infômatas, se revelam como informadores eficientes que nos controlam e dirigem constantemente.

O senhor descreveu como o trabalho vai ganhando caráter de jogo, as redes sociais, paradoxalmente, nos fazem sentir mais livres, o capitalismo nos seduz. O sistema conseguiu se meter dentro de nós para nos dominar de uma maneira até prazerosa para nós mesmos?

Somente um regime repressivo provoca a resistência. Pelo contrário, o regime neoliberal, que não oprime a liberdade, e sim a explora, não enfrenta nenhuma resistência. Não é repressor, e sim sedutor. A dominação se torna completa no momento em que se apresenta como a liberdade.

Por que, apesar da precariedade e da desigualdade crescentes, dos riscos existenciais etc., o mundo cotidiano nos países ocidentais parece tão bonito, hiperplanejado, e otimista? Por que não parece um filme distópico e cyberpunk?

O romance 1984 de George Orwell se transformou há pouco tempo em um sucesso de vendas mundial. As pessoas têm a sensação de que algo não anda bem com nossa zona de conforto digital. Mas nossa sociedade se parece mais a Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Em 1984 as pessoas são controladas pela ameaça de machucá-las. Em Admirável Mundo Novo são controladas pela administração de prazer. O Estado distribui uma droga chamada “soma” para que todo mundo se sinta feliz. Esse é nosso futuro.

O senhor sugere que a inteligência artificial e o big data não são formas de conhecimento tão espantosas como nos fazem crer, e sim mais “rudimentares”. Por que?

O big data dispõe somente de uma forma muito primitiva de conhecimento, a saber, a correlação: acontece A, então ocorre B. Não há nenhuma compreensão. A Inteligência Artificial não pensa. A Inteligência Artificial não sente medo.

Blaise Pascal disse que a grande tragédia do ser humano é que não pode ficar quieto sem fazer nada. Vivemos em um culto à produtividade, até mesmo nesse tempo que chamamos “livre”. O senhor o chamou, com grande sucesso, de a sociedade do cansaço. Nós deveríamos nos fixar na recuperação do próprio tempo como um objetivo político?

A existência humana hoje está totalmente absorvida pela atividade. Com isso se faz completamente explorável. A inatividade volta a aparecer no sistema capitalista de dominação com incorporação de algo externo. É chamado tempo de ócio. Como serve para se recuperar do trabalho, permanece vinculado ao mesmo. Como derivada do trabalho constitui um elemento funcional dentro da produção. Precisamos de uma política da inatividade. Isso poderia servir para liberar o tempo das obrigações da produção e tornar possível um tempo de ócio verdadeiro.

Como se combina uma sociedade que tenta nos homogeneizar e eliminar as diferenças, com a crescente vontade das pessoas em ser diferentes dos outros, de certo modo, únicas?

Todo mundo hoje quer ser autêntico, ou seja, diferente dos outros. Dessa forma, estamos nos comparando o tempo todo com os outros. É justamente essa comparação que nos faz todos iguais. Ou seja: a obrigação de ser autênticos leva ao inferno dos iguais.

Precisamos de mais silêncio? Ficar mais dispostos a escutar o outro?

Precisamos que a informação se cale. Caso contrário, explorará nosso cérebro. Hoje entendemos o mundo através das informações. Assim a vivência presencial se perde. Nós nos desconectamos do mundo de modo crescente. Vamos perdendo o mundo. O mundo é mais do que a informação. A tela é uma representação pobre do mundo. Giramos em círculo ao redor de nós mesmos. O smartphone contribui decisivamente a essa percepção pobre de mundo. Um sintoma fundamental da depressão é a ausência de mundo.

A depressão é um dos mais alarmantes problemas de saúde contemporâneos. Como essa ausência do mundo opera?

Na depressão perdemos a relação com o mundo, com o outro. E nos afundamos em um ego difuso. Penso que a digitalização, e com ela o smartphone, nos transformam em depressivos. Há histórias de dentistas que contam que seus pacientes se aferram aos seus telefones quando o tratamento é doloroso. Por que o fazem? Graças ao celular sou consciente de mim mesmo. O celular me ajuda a ter a certeza de que vivo, de que existo. Dessa forma nos aferramos ao celular em situações críticas, como o tratamento dental. Eu lembro que quando era criança apertava a mão de minha mãe no dentista. Hoje a mãe não dá a mão à criança, e sim o celular para que se agarre a ele. A sustentação não vem dos outros, e sim de si mesmo. Isso nos adoece. Temos que recuperar o outro.

Segundo o filósofo Fredric Jameson é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O senhor imaginou algum modo de pós-capitalismo agora que o sistema parece em decadência?

O capitalismo corresponde realmente às estruturas instintivas do homem. Mas o homem não é só um ser instintivo. Temos que domar, civilizar e humanizar o capitalismo. Isso também é possível. A economia social de mercado é uma demonstração. Mas nossa economia está entrando em uma nova época, a época da sustentabilidade.

O senhor se doutorou com uma tese sobre Heidegger, que explorou as formas mais abstratas de pensamento e cujos textos são muito obscuros até o profano. O senhor, entretanto, consegue aplicar esse pensamento abstrato a assuntos que qualquer um pode experimentar. A filosofia deve se ocupar mais do mundo em que a maior parte da população vive?

Michel Foucault define a filosofia como uma espécie de jornalismo radical, e se considera a si mesmo jornalista. Os filósofos deveriam se ocupar sem rodeios do hoje, da atualidade. Nisso sigo Foucault. Eu tento interpretar o hoje em pensamentos. Esses pensamentos são justamente o que nos fazem livres.

The Economist: A era da economia da escassez

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Desencadeado pela pandemia de covid-19, o desabastecimento substitui o excesso de oferta como maior obstáculo para o crescimento global

The Economist – 10/10/2021 – Publicado O Estado de São Paulo

Durante uma década, após a crise financeira, o problema da economia mundial foi a redução de gastos. Famílias preocupadas pagaram suas dívidas, governos impuseram austeridade e empresas restringiram os investimentos, enquanto contratavam funcionários de um aparente infinito conjunto de trabalhadores. Agora, os gastos voltaram com força, conforme os governos estimulavam a economia.

O aumento repentino na demanda é tão intenso que os estoques têm dificuldade em dar conta. Os motoristas de caminhão ganham bônus ao assinar contratos, uma frota de navios porta-contêineres ancorada ao longo da Califórnia espera os portos serem liberados, e os preços da energia sobem vertiginosamente. À medida que a inflação assombra os investidores, a abundância da década de 2010 dá lugar à economia da escassez.

A causa imediata é a Covid-19. Cerca de US$ 10,4 trilhões em estímulo global à economia desencadearam uma forte recuperação, porém desigual, na qual os consumidores estão gastando mais do que o normal com bens, aquecendo cadeias de suprimentos globais famintas. A demanda por produtos eletrônicos disparou durante a pandemia, mas a escassez dos microchips necessários para a fabricação deles atingiu a produção industrial em algumas economias exportadoras, como Taiwan. A propagação da variante Delta fechou fábricas de roupas em partes da Ásia.

No mundo rico, a mudança de emprego está baixa, as ajudas financeiras rechearam as contas bancárias, e poucos trabalhadores têm vontade de deixar empregos menos populares, como vender sanduíches nas cidades, para outros com demanda, em armazéns, por exemplo. Do Brooklyn a Brisbane, os empregadores estão em uma disputa louca por mãos extras.

A economia da escassez também é resultado de duas forças mais profundas. Primeiro, a descarbonização. A mudança do carvão para a energia renovável deixou a Europa vulnerável ao pânico do fornecimento de gás natural que, em um momento desta semana, fez os preços à vista subirem em mais de 60%.

Um aumento no preço do carbono no esquema de comércio de emissões da União Europeia dificultou a mudança para outras formas mais poluentes de energia. Regiões da China enfrentaram cortes no fornecimento de energia enquanto algumas das províncias do país lutavam para cumprir rígidas metas ambientais. Os preços altos do transporte de mercadorias e de componentes de tecnologia estão elevando as despesas de capital para expandir a capacidade.

Enquanto o mundo tenta se desabituar da energia “suja”, o incentivo para investimentos de longa duração na indústria de combustíveis fósseis é fraco.

A segunda força é o protecionismo. A política comercial não é mais elaborada com a eficiência econômica em mente.
Esta semana, o governo de Joe Biden confirmou que manteria as tarifas de Donald Trump sobre a China, em média em 19%, prometendo apenas que as empresas poderiam solicitar isenções (boa sorte na batalha com a burocracia federal). Em todo o mundo, o nacionalismo econômico está contribuindo para a economia da escassez. A falta de motoristas de caminhão na Grã-Bretanha foi exacerbada pelo Brexit. Após anos de tensões comerciais, o fluxo de investimentos entre países por empresas caiu para mais da metade em relação ao PIB mundial desde 2015.

Tudo isso pode parecer uma reminiscência dos anos 1970, quando muitos lugares enfrentavam filas nos postos de gasolina, aumentos de preços de dois dígitos e crescimento lento. Há cinquenta anos, os políticos cometeram um grave erro com a política econômica, lutando contra a inflação com medidas fúteis, como controle de preços e a campanha Whip Inflation Now (algo como “Derrote a Inflação Já”) de Gerald Ford, que incentivava as pessoas a plantar seus próprios vegetais. Hoje, o Federal Reserve (Fed) está debatendo como prever a inflação, mas é consenso que os bancos centrais têm o poder e o dever de mantê-la sob controle.

Por enquanto, uma inflação fora de controle parece improvável. Os preços da energia devem diminuir depois do inverno no hemisfério norte. No próximo ano, o avanço com vacinas e novos tratamento para a covid-19 devem reduzir os transtornos. Os estímulos fiscais serão encerrados em 2020: Biden está tendo dificuldades em passar sua proposta de orçamento gigante pelo Congresso, e a Grã-Bretanha planeja aumentar impostos. O risco de quebra no setor de habitação da China significa que a demanda poderia até cair, trazendo de volta as condições fracas da década de 2010. E um aumento nos investimentos em algumas indústrias acabará se traduzindo em mais capacidade e maior produtividade.

As forças mais profundas por trás da economia da escassez não vão desaparecer, e os políticos podem facilmente acabar adotando medidas arbitrárias. Um dia, tecnologias como o hidrogênio devem ajudar a tornar a energia verde mais confiável. À medida que os custos com combustível e eletricidade aumentam, poderia haver uma reação negativa.

Se os governos não garantem alternativas verdes adequadas aos combustíveis fósseis, eles podem ter de suprir a escassez flexibilizando voltando a usar fontes mais poluentes. Os governos, portanto, terão de planejar como lidar com os custos mais altos de energia e o crescimento mais lento que resultarão da eliminação de emissões. Fingir que a descarbonização resultará em um milagroso boom econômico certamente levará à decepção.

A economia da escassez também pode reforçar o apelo do protecionismo e da intervenção estatal. Os transtornos muitas vezes levam as pessoas a questionar dogmas da economia. O trauma da década de 1970 causou uma rejeição bem-vinda do “grande governo” intervencionista e keynesianismo rudimentar. O risco agora é que certas tensões na economia provoquem a rejeição da descarbonização e da globalização, com consequências devastadoras a longo prazo.

Essa é a real ameaça apresentada pela economia da escassez.

Estado tem de fazer match para saber do que os pobres precisam, diz economista

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Para Laura Muller Machado, prioridade no combate à pobreza deve ser acessar quem de fato necessita de apoio

FERNANDO CANZIAN – FOLHA DE SÃO PAULO, 08/10/2021

Para a economista e coordenadora do Núcleo de Gestão Educacional do Insper, Laura Muller Machado, o Estado brasileiro precisa fazer uma espécie de “match” com os mais pobres para identificar e tentar atender suas necessidades.

Para isso, deveria usar os chamados Cras (Centros de Referência de Assistência Social), presentes em mais de 95% dos municípios.

Muller Machado defende também que o Brasil interrompa o atual ciclo de pobreza intergeracional, que leva filhos de pais pobres a se tornarem, no futuro, pais de filhos pobres.

O Brasil é um dos países do mundo que menos gasta com crianças em relação aos idosos. Para cada R$ 6 destinado em políticas públicas (como Previdência) para os mais velhos, apenas R$ 1 é endereçado às crianças. No Japão, reconhecido por tratar bem os idosos, essa proporção é de R$ 3 para R$ 1.

O que leva a pobreza a ser tão persistente no Brasil, apesar do nível significativo de gasto social, de 25% do PIB? O que fazer a respeito?

O que não temos é um programa focalizado mais abrangente, além do Bolsa Família. Não conseguimos identificar e fazer todos esses recursos chegarem a quem realmente precisa. A primeira coisa a ser feita é acessar quem de fato precisa de apoio. Hoje, damos uma quantidade pequena de recursos a uma quantidade muito grande de pessoas, que não conseguem superar a situação de pobreza ou extrema pobreza.

É um problema de “matching”. Temos os recursos, mas não conseguimos chegar a essas pessoas.

Um exemplo é a pandemia. Identificamos de uma hora para outra um volume muito grande de pessoas que estavam invisíveis aos olhos do Estado. Houve um chamamento do Estado e as pessoas foram atrás desses recursos. Não seria o caso de o Estado ter procurado antes essas pessoas, por meio de um programa, para ver se faltava algo essencial?

Um exemplo clássico são mães que não trabalham porque não tem com quem deixar seus filhos, além de outras necessidades. Temos uma ampla rede com os Cras, que podem fazer esse papel perfeitamente.

Mas, para isso, a gente depende de um Estado que converse com essas pessoas, que conheça e forneça o que elas precisam. Seja o Bolsa Família, creches, centro-dia para cuidar de idosos. Mas não temos ideia do que os mais pobres precisam.

Em outubro de 2020, identificamos que tínhamos cerca de 13 milhões de desempregados e mais uns 12 milhões que saíram da população economicamente ativa. Isso dá mais ou menos 25 milhões de pessoas. Mas fornecemos auxílio emergencial a cerca de 70 milhões.

Num primeiro momento, talvez tenha sido uma boa ideia socorrer todo mundo, para que ninguém passasse necessidade. Mas um ano se passou e fizemos uma nova rodada do auxílio [embora menor]. Nesse período, não conversamos com essas pessoas.

Isso não poderia ser feito minimamente por meio do Bolsa Família?
O Bolsa Família é um programa muito bom, com volume de quase R$ 35 bilhões anuais. Mas com o auxílio emergencial gastamos cerca de R$ 300 bilhões. Foram dez anos de Bolsa Família e acessando todo mundo. E muita gente não precisava dos recursos.

O problema do Bolsa Família é que não está acoplado a um programa de inclusão produtiva, para que a pessoa se torne autônoma. É auxílio de socorro, mas que não vem com apoio para que a pessoa deixe de depender dele no futuro. O Chile Solidário, por exemplo, tem essa característica.

Os R$ 35 bilhões do Bolsa Família também são um valor muito pequeno [equivalente a menos de 0,5% do PIB]. Isso é muito menos do que os 25% do PIB que usamos em todos os nossos programas sociais. Temos muitos outros. Como o abono salarial, auxílio-creche, auxílio-leite.

Não seria melhor mapear todos esses benefícios sociais que pagamos e focalizá-los? Pois o Bolsa Família em si é muito pequeno se comparado ao restante. Temos um mar de programas espalhados e sem foco, um pouco bagunçados. Seria muito bem-vinda uma rediscussão de tudo isso.

Em que sentido deveríamos encaminhar essa discussão?
Todas as sociedades tem crianças e jovens, adultos e idosos. Crianças e idosos tipicamente não geram renda para seu sustento. O papel do Estado é taxar os trabalhadores adultos e garantir que todos tenham uma renda mais ou menos uniforme.

Muito preocupada com isso, a ONU criou o National Transfers Account, que estuda como os países vêm alocando seus impostos para diferentes idades. E o Brasil é o único país estudado pela ONU e pela Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe] em que para cada R$ 1 alocado em suas crianças, há R$ 6 ou R$ 7 destinados a idosos [sobretudo via Previdência].

O próximo país que faz uma alocação desproporcional é o Peru, de R$ 1 para R$ 4. No Japão, a proporção é de R$ 1 para as crianças e R$ 3 para os idosos.

O argumento de que criança é mais “baratinho” que idoso não se sustenta na experiência de outros países. Seria muito bem-vindo um debate em nossa sociedade sobre esse desequilíbrio. Sabemos que idosos votam, e crianças, não. Mas precisamos discutir questões como essa.

Estamos mais cientes, por exemplo, de nosso problema com o racismo e a desigualdade de gênero. Não sei se sabemos tanto sobre os nossos problemas intergeracionais. Não discutimos isso, e a diferença entre o que gastamos com crianças e idosos deveria ser analisada.

A sociedade só vai combater um problema quando ela reconhecer sua existência. Como sociedade, me parece que queremos evoluir e ser mais igualitários. Mas isso depende de termos consciência plena do problema. A questão intergeracional não está presente no debate.

Queimar livros, espalhar ódios e construir ressentimentos

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Durante séculos os seres humanos esconderam informações, excluindo dados e estimularam a falta de transparência como forma de dificultar a busca de conhecimentos, construindo exércitos de ignorantes, pessoas subservientes e pessoas escravizadas e estimulando as mais variadas desigualdades, gerando medos crescentes, rancores elevados e o incremento de ressentimentos, conflitos sociais, econômicos e culturais.

A história da humanidade é marcada por grandes constrangimentos, coletividades estimulando os confrontos, mortes em guerras fratricidas, países explorando povos inteiros como forma de transformar estas sociedades em espaços de crescimento de lucros monetários e interesses materiais, criando dores inenarráveis nos corações humanos e mostrando valores frágeis e centrados nos donos da hegemonia, da ambição e da cobiça dos seres humanos.

Os livros sempre foram vistos como espaços de reflexão e um instrumento de construção das realidades da vida, elementos centrais para o desenvolvimento das análises que deveriam embalar a sociedade, estimulando o conhecimento, fortalecendo a imaginação, estimulando os seres humanos vivenciarem as experiências da humanidade, conhecendo personalidades, episódios cotidianos e construindo narrativas que nos alentam e fatos históricos, além de gerar constrangimentos, medos e desesperanças.

Os livros nos mostram histórias de conquistas, sobrevivências emocionais, superação psicológicas e, ao mesmo tempo, nos mostram desequilíbrios sentimentais, emocionais e psicológicos, auxiliando na compreensão dos seres humanos, suas passagens e as perspectivas mais íntimas, mostrando-nos como indivíduos, dotados de sonhos, medos e esperanças.

As trajetórias dos livros nos auxiliam a viajar sem sair de casa, a vivenciar novas experiências do cotidiano, nos levam a compreender os conflitos contemporâneos, ao mesmo tempo que, nos levam a sobreviver sobre civilizações da história, seus confrontos mais íntimos, os amores inatingíveis, as relações mais degradantes e os sentimentos mais confusos e esdrúxulos, mostrando os seres humanos como demasiadamente humanos.

Os livros nos mostram oportunidades de compreensão das dores do mundo, os clarões dos horizontes mais escuros, nos auxiliam na compreensão das dificuldades emocionais que permeiam a humanidade, diante disso, os livros tem grande potencial para o crescimento da sociedade, seu papel é libertador, nos auxiliam na compreensão dos instrumentos de controle, os espaços de alienação, os grupos sociais mais abastados, seus lixos, suas ostentações e, ao mesmo, nos mostram a vida dos desfavorecidos, as pobrezas materiais, as limitações das esperanças, os medos da fome, da exclusão e dos preconceitos que crescem e se tornam, cada vez mais, um espaço de degradação e construção de incivilidade. Os livros nos mostram realidades inimagináveis, verdades que muitos não queremos enxergar e podem cultivar espaços de solidariedade, de amor e de gratidão.

Nesta trajetória de séculos, os livros sempre foram vistos como instrumentos de construção de realidades perigosas, diante disso, os livros eram queimados, os livros eram degradados, os livros eram vistos como subversivos, os livros eram vistos como libertadores, por isso, os livros são assustadores. Como instrumento libertador os livros eram perseguidos por governos autoritários, os detentores dos livros eram maltratados pelos donos do poder, os donos de livros eram torturados, eram humilhados, eram massacrados e, muitas vezes, eram mortos. Os livros eram queimados, isso acontecia porque os poderosos das sociedades eram covardes e tinham medo das conversas e das reflexões, eram pessoas que exerciam o poder utilizando-se da força física e acreditavam nos poderes materiais. Infelizmente não percebiam que estes poderes eram materiais e imediatos, acreditavam nos poderes da destruição e dos ganhos do dinheiro e nas forças dos poderes da matéria. Para esses, o segundo plano, a existência da vida pós-morte era algo inimaginável, não refletiam sobre questões imateriais e na existência do espírito, se compraziam com os gozos materiais e valorizavam os prazeres do dinheiro e do poder. Quando chegavam ao mundo espiritual se encontravam em trevas, sentindo dores e assustados, choravam e se sentiam amargurados, abandonados e envergonhados.

São inúmeros momentos de atuação dos donos do poder da sociedade, alguns exemplos de autoritarismo, onde pessoas eram espancadas e reprimidas, outros casos foram mais sutis, onde bibliotecas foram destruídas, livros queimados e memórias foram esquecidas e personagens foram detratados.

Um dos casos mais conhecidos de queima de livros aconteceu em 1861, a exatamente cento e sessentas anos atrás, quando aconteceu o episódio denominado de Auto da Fé em Barcelona. Naquele momento, o editor sr. Maurice Lachâtre encomendou diretamente de Allan Kardec uma remessa de livros espíritas, que comercializaria em sua livraria. Foram despachados dois caixotes de livros, contendo um total de trezentos livros, onde todas as custas de remessa de importação, todos os requisitos legais da alfândega espanhola foram seguidas corretamente e toda a burocracia foi respeitada, mas sua liberação foi sustada, sob a alegação do bispo de Barcelona, Antônio Palau y Termens (1806-1862), um inquisidor espanhol, demonstrando o poder das autoridades religiosas católicas.

Os argumentos da censura foram expostos pelo bispo espanhol: “A Igreja Católica é universal; e sendo estes livros contra a fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países”. Neste momento, faz-se necessário, destacar que todas as ideias novas que chegam na sociedade devem impactar para toda a comunidade, os detentores do poder se sentem ameaçados pelos novos pensamentos e usam seus poderes para fragilizar os pensamentos nascentes, utilizando todos os meios para criar constrangimentos e reprimir as novas teorias, detratar os teóricos das novas ideias e ridicularizar seus integrantes.

Novo episódio descrito acima, o Auto da Fé em Barcelona serviu como uma grande propaganda para Allan Kardec e, principalmente, para a Doutrina Espírita, servindo como um espaço para a divulgação do pensamento espírita, aumentando a curiosidade da coletividade e incrementou as vendas e na difusão do ideário da doutrina espírita.

Queimar livros, queimar sonhos, queimar sentimentos e queimar seres humanos é um passo crescente para a incapacidade de construirmos uma sociedade centrada em valores humanos, desenvolvendo uma ética do respeito e da empatia. Sem estes valores estamos construindo uma civilização centrado no imediatismo, na concorrência e nos poderes materiais, valores materializados e distantes dos valores do espírito.

Esses expedientes são utilizados constantemente, além de instrumentos de detração religiosas, como o citado acima, destacamos os comportamentos de grupos políticos que usam seu poder para reprimir novos grupos políticos, estimulando guerras culturais, ameaçando espancamentos e agressões físicas e violências emocionais e psicológicas, que culminam em período de autoritarismo e regimes ditatoriais, que fragilizam estruturas democráticas e criam espaços de agressões e ressentimentos.

Na sociedade contemporânea, uma grande quantidade de livros, artigos científicos e discussões acadêmicas e políticas estimulam os estudos da democracia, que se espalham para todas regiões do mundo, dentre os livros destacamos Como as democracias morrem, dos cientistas americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que mostra que a democracia passa por um momento de receios, incertezas e instabilidades, que podem marcar o início de um momento de maior fragilidades democráticas e preocupações com autoritarismo crescentes em variadas regiões da comunidade internacional.

Os paraísos fiscais são buracos negros de concentração de riqueza, por Carol Proner.

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Advogada e doutora em direito internacional, Carol Proner fala sobre o escândalo Pandora Papers

iG Último Segundo – 06/10/2021

Sobre paraísos fiscais e o escandaloso caso dos Pandora Papers, antes de mais nada é preciso destacar a relação direta entre pobreza extrema e evasão fiscal, problema debatido por pensadores do alteromundismo desde o final dos anos 90 e mesmo antes, desde que vai se tornando explícito o funcionamento do capitalismo de acumulação extrema e sem concessões à democracia.

Os paraísos fiscais são buracos negros do capitalismo que se retroalimentam e garantem a hiperconcentração da riqueza em mãos privadas, livres do controle do Estado e de suas instituições. Se o capitalismo financeiro funciona como um cassino, os paraísos fiscais são os cofres do cassino, guardados pelo segredo que é, em si, a alma do negócio.

Há, portanto, algo axiomático, inegavelmente amoral, quando analisamos a existência desses lugares paradisíacos do mundo financeiro, diretamente proporcionais à produção da miséria em escala planetária.

E para além da amoralidade, há a propensão para a criminalidade. Ao contrário do que defendem os dealers do mercado, destacando o papel das offshores como importantes incentivos para a atração de capital, os bancos em zonas livres de regulação criam muros instransponíveis que propiciam, além da acumulação de divisas, condições ideais para o cometimento de toda a sorte de crimes transnacionais que se beneficiam do “secreto”.

A evasão fiscal é um deles, mas a rede fantasma permite o cometimento de crimes mais perversos, como o narcotráfico, o tráfico de mulheres e crianças, de órgãos e tudo o que a mente humana for capaz de fabricar como forma de gerar lucros sob o véu da invisibilidade e do anonimato.

Os paraísos fiscais se caracterizam por ao menos três ocultações: a falta de transparência, de comunicação e de fiscalização. Como consequência do acobertamento de ativos, toda uma economia paralela é construída e representa, segundo dados da OCDE-ONU, 40% dos investimentos que circulam no mundo atualmente.

Naturalmente, a preservação do sigilo dos correntistas é condição de preservação do modelo. Eis a importância do trabalho de jornalistas que, ao revelarem escândalos como o do Panamá Papers e agora do Pandora Papers, permitem à cidadania conhecer como funcionam esses superesquemas de injustiça econômica e social e quem é beneficiado.

As revelações do escândalo no Brasil trazem um elemento criminoso adicional. Não apenas indivíduos do setor privado aparecem como usuários das contas fantasma, mas também o ministro da economia e o presidente do Banco Central.

Ambos possivelmente cometeram crimes associados ao evidente conflito de interesse a partir da produção de benefícios gerados por informações privilegiadas produzidas por eles próprios.

No caso de Paulo Guedes, sabe-se que, de quando foi criada a conta em 2014 até o presente, o seu patrimônio passou de 8 milhões para 51 milhões de reais ao câmbio de hoje.

O esquema revela um grau de cinismo tão extremo quanto o é o acúmulo de riqueza pessoal em detrimento do interesse público. Trata-se do cinismo do riso triunfal que parte da certeza da impunidade e é compreensível que Paulo Guedes se sinta assim. Em um governo com instituições colapsadas e com a mídia corporativa atuando como fiadora do esquema de máxima acumulação, não apenas o Ministro estará a salvo como poderá ser condecorado pela artimanha de sentar na cadeira de operador dos próprios interesses.

O descaramento de Paulo Guedes faz lembrar outro personagem nefasto de nossa história recente, um ex-juiz, atual advogado, que em proveito próprio sentou na cadeira de Ministro da Justiça para melhorar a relação de colaboração privilegiada com seus futuros empregadores nos Estados Unidos. Aliás, poderíamos estender e recordar o papel de cada um dos ministros do governo de Jair Bolsonaro e do favorecimento de esquemas privados na saúde, no meio ambiente, no turismo, nas relações internacionais e por aí vai.

Por enquanto, diante da inação dos órgãos de controle, nos cabe – como o fez parte da imprensa e setores institucionais comprometidos como a Federação Nacional do Fisco, reunindo 32 sindicatos e 37 mil servidores públicos fiscais filiados – denunciar e reagir contra a atuação de funcionários do governo que traem os interesses do povo brasileiro.

E quando o Brasil voltar a ser um país consequente com seus próprios interesses, poderemos discutir, como fazem a França, a Alemanha, a Espanha, bem como a ONU e o Banco Mundial, os efeitos danosos da falta de fiscalização tributária causados pela evasão de divisas. E a importância de instituir impostos sobre grandes fortunas e tributação sobre dividendos como forma de fortalecer o Estado social e democrático de direito.

Carol Proner é Advogada, Doutora em Direito Internacional, Professora da UFRJ, integrante da ABJD e do Grupo Prerrogativas

É totalmente insensato dizer que falta dinheiro para dar aos pobres, diz Ricardo Paes de Barros

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Economista afirma que prioridade do Bolsa Família deveria ser dar mais para quem mais precisa, e não ampliar beneficiários

FERNANDO CANZIAN – FOLHA DE SÃO PAULO, 06/10/2021

SÃO PAULO

O Brasil gasta 25% do PIB em políticas e programas na área social, como em saúde, educação e Previdência.
Mas o principal programa de transferência de renda aos mais pobres, o Bolsa Família, custa só 0,5% do PIB —e o governo aumentou o Imposto sobre Operações Financeiras para financiar sua ampliação em novembro, quando deve ser rebatizado como Auxílio Brasil.

“É totalmente insensato dizer que não existe dinheiro para transferir aos mais pobres”, afirma o especialista em programas contra pobreza e desigualdade Ricardo Paes de Barros.
“Se melhorarmos a focalização do gasto público, vai transbordar recursos para os pobres.”

Barros argumenta que neste momento talvez nem faça sentido ampliar o número de beneficiários no Bolsa Família. A
prioridade deveria ser dar mais para quem mais precisa.

O economista defende uma espécie de revolução na identificação e no acompanhamento dos mais pobres, com a utilização de uma ampla estrutura que já existe, como os dados do Cadastro Único e os centros de assistência social espalhados em praticamente todos os municípios do país.

O aumento da educação e da produtividade são considerados chave para reduzir a pobreza. Mas o histórico recente parece mostrar que mais ênfase deveria ser dada aos fundamentos macroeconômicos, sobretudo a sustentabilidade fiscal, não? Isso não ficou claro na discussão sobre como obter recursos para ampliar e reajustar o Bolsa Família?

Se for boa, o que a política social faz, a partir da otimização dos recursos disponíveis, é que os mais pobres se encaixem na economia. É como se a política social fosse um vagão que se conecta a um trem. Mas, se o trem não anda, o vagão também não.

Sem estabilidade, crescimento econômico e produtividade, não existe política social que possa fazer com que a remuneração dos trabalhadores aumente sistematicamente.

Sobre o Bolsa Família, nem acho uma boa ideia aumentar o número de beneficiários agora. O melhor seria elevar o benefício para quem mais precisa e melhorar a sua focalização.

O Brasil coleta um volume gigantesco de impostos [com carga tributária equivalente a cerca de 33% do PIB]. É totalmente insensato dizer que não existe dinheiro para transferir aos mais pobres, que recebem menos de 1% do PIB em benefícios, enquanto o gasto social total alcança 25% do PIB.

Não precisamos criar novos impostos para aumentar o Bolsa Família, mas remanejar os recursos que já temos. Se melhorarmos a focalização do gasto público, vão transbordar recursos para os pobres.

Dados da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, da ONU] mostram que o gasto público per capita entre idosos é seis vezes o correspondente ao entre crianças e adolescentes. Como você diz, há dinheiro. Mas a mais recente tentativa de fazer algum remanejamento, usando recursos do abono salarial, foi atacada pelo presidente Jair Bolsonaro ao dizer que não tiraria dinheiro “dos pobres para dar aos paupérrimos”. Pois é. Isso é como se a gente tivesse um programa de vacinação maluco, em que jovens fossem imunizados antes dos idosos. Claro que iria faltar vacina. É preciso organizar a fila. Se não quisermos fazer isso, a política social sempre vai acabar fora do controle orçamentário.

Não tirar do pobre para dar ao paupérrimo é o mesmo que dizer que não vamos adiar a vacina de quem tem 50 anos para dar a quem tem 80. Na vacinação, não foi isso o que fizemos.

Temos dinheiro para dar para os pobres? Legal. Mas primeiro precisamos dar aos paupérrimos. É um princípio básico de organização do gasto público.

Mas reduzir o número de beneficiários do Bolsa Família e aumentar o benefício para os mais pobres talvez não seja a coisa que, politicamente, dê mais votos. Pois vamos reduzir o total de beneficiários. Então é mais “legal” aumentar o número de beneficiários, mesmo que a gente acabe dando muito pouco para quem realmente precisa.

Se pegarmos apenas 1% do PIB e dermos para os 15% mais pobres do Brasil, vamos dobrar a renda deles. Eu não preciso dos 25% [total do gasto social]. Eu preciso de 1%. Se aumentarmos o Bolsa Família em R$ 10 bilhões ou R$ 15 bilhões por ano, de uma maneira organizada e evoluindo, poderíamos fazer isso.

Também acredito que o Bolsa Família precisa estar vivo. Todo programa precisa que seu desenho seja revisto e aprimorado continuamente. Senão, depois vamos ficar reclamando que o Bolsa Família está mal desenhado.

Quais mudanças seriam necessárias? Há duas pontas do Bolsa Família que precisam ser melhoradas. Uma é a focalização. É preciso levar em conta que a pobreza é muito menor hoje do que quando o programa começou [a taxa caiu de 28% da população, em 2003, para 13% neste ano, segundo a FGV Social, considerando renda domiciliar per capita mensal abaixo de R$ 261].

Se usarmos de uma maneira mais sábia os recursos que já temos, dá para ter um impacto gigante na pobreza. Mas é preciso melhorar a focalização.

Avançamos muito com o Cadastro Único [sistema nacional de informações para fins de inclusão em programas sociais] e com o Sistema Único da Assistência Social. E temos atualmente Cras [Centros de Referência de Assistência Social] em todos os lugares do Brasil. Temos 250 mil agentes sociais no território [onde estão os pobres].

Portanto, temos melhores condições de identificar essas pessoas do que tínhamos há 20 anos. Muitas vezes, a inserção de uma família é resolvida com acesso a uma creche, ou com um óculos. Precisamos identificar essas coisas.

Precisamos aproveitar essa estrutura e, na questão dos recursos, organizar a fila, dando mais dinheiro para um número menor de pessoas. É preciso dar mais para quem mais precisa. A ideia é essa mesmo: tirar do pobre para dar ao paupérrimo.

Temos condições muito melhores hoje de identificar os pobres. Ao contrário do que o governo muitas vezes diz, o pobre não tem nada de invisível. É só ir a qualquer comunidade que eles estão todos lá, e temos como identificá-los.

Dado que o Sistema Único da Assistência Social chega hoje a todas as comunidades pobres do Brasil, e que a sociedade civil quer colaborar para identificar quem são os mais pobres, temos a capilaridade e todos os controles, com conselhos de assistência social, proteção dos direitos das crianças, dos idosos.

Temos uma quantidade muito grande de conselhos em nível local. Temos que nos basear em visitas domiciliares, usar plenamente o Cadastro Único, a comunidade para validar a lista do Cras, os arquivos nacionais administrativos para validar essa escolha e os dados do IBGE para dizer quantos pobres existem naquele lugar.

Precisamos usar todo o poder do Cadastro Único em vez de fazer essa coisa ridícula que fazemos até hoje, de basear o Bolsa Família puramente na renda declarada da família.

É preciso avançar muito na melhoria da focalização. Como a gente fez com a vacina. Tínhamos pouca vacina? Começamos por quem mais precisa. É o básico.

E a outra ponta? É a saída do programa. Precisamos torná-la amigável. O cara que consegue um emprego formal, ele pode sair do Bolsa Família, mas teria de ter um retorno garantido no caso de perder esse emprego.

Isso tem de ser verdade, e a população tem de acreditar nisso, para que ela possa aceitar o emprego formal e perder o Bolsa Família. É possível ter vários mecanismos para fazer essa transição de forma mais suave.

Ele pode perder um décimo do benefício a cada mês, por exemplo. Se nesse período perder o emprego, volta para o programa normal.

Outro problema é que o benefício para a superação da pobreza é um imposto de 100%. Ou seja, para cada real que uma família consegue receber trabalhando [e estando no programa], é descontado R$ 1 [do Bolsa Família]. Se você ganhar R$ 10 a mais e declarar para o Bolsa Família, o programa vai reduzir seu benefício em R$ 10. Isso é imposto de 100%. Não é muito compatível para estimular alguém a ter uma renda maior se ele sabe que 100% do que ele receber será imediatamente taxado.

Tem maneiras clássicas de se fazer isso, como no Imposto de Renda, que tem uma “rampa”, que vai mudando de inclinação. Para quem é muito pobre, se ganhar R$ 10 a mais, podemos deixar a pessoa com R$ 8 e tirar R$ 2 do Bolsa Família. Tem que ser algo suave.

Embora haja muitos recursos, mesmo que mal aplicados, o Brasil está em meio a uma crise fiscal aguda. Alguns especialistas defendem a diminuição de benefícios tributários a empresas e setores, hoje em mais de R$ 300 bilhões ao ano, para reforço de políticas sociais. Como vê a questão fiscal e essa alternativa? O Brasil entrou numa rota meio doida em que paramos de pensar em projetos. Ficamos discutindo receita e gasto, sem olhar para o projeto em si. Cada gasto do governo brasileiro deveria ser precedido de um projeto. Na hora em que temos uma crise fiscal, em vez de sair cortando, era preciso estudar quais os projetos. De novo, é uma questão de focalização.

É preciso ver quais os projetos que têm melhor custo-benefício e manter. Acho muito difícil, mas vai que alguns desses projetos com benefícios tributários são bons.

O Brasil precisa colocar projetos na frente dos gastos. O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), por exemplo, que era uma coisa boa no passado, se tornou algo cego. Pois hoje discutimos dinheiro para a educação sem olhar para o tipo de projeto que temos para a área.

Empresas pegam dinheiro emprestado não para gastar, mas porque elas têm um projeto. O Brasil também pode pegar emprestado com as gerações futuras [por meio do endividamento público], mas desde que tenha um projeto. Agora, pegar dinheiro das gerações futuras para gastar com um auxilio emergencial que não sabemos nem direito para quem foi, não faz o menor sentido.

Não deveríamos aumentar o gasto com o Bolsa Família antes de ter um projeto. Qual é o projeto, de A a Z, do Bolsa Família?

Nosso ajuste fiscal é o de sempre botar rédea curta exatamente porque ninguém tem projeto. Quando se percebe que tem muita gente gastando dinheiro, sem saber exatamente por quê, começam a cortar as asinhas de todo mundo.

A partir do segundo governo Lula [2007-2010], houve grande aumento da oferta de vagas no ensino federal. Há hoje mais servidores ativos em universidades e institutos técnicos federais [269,7 mil] do que na máquina pública federal tradicional [208 mil]. O PT também criou o Pronatec, mas os resultados dessas iniciativas são muito controversos, não? De novo: quem vai ser contra o Brasil investir em conhecimento e educação? Certamente ninguém.

Mas não adianta dar o dinheiro e gastar de qualquer jeito.
Mesmo que se tenha uma ideia e não se faça um planejamento adequado sobre bases empíricas, é preciso ter uma estrutura de avaliação e monitoramento para ver o que dá certo. E para interromper no caso de não estar dando certo.

O ex-presidente Lula criou várias universidades federais e se orgulhava disso. Mas não estavam nada claros os motivos de isso ser uma boa ideia. Embora Lula tenha feito muitas coisas legais, não sei se essa foi uma boa ideia.

O Fies [Fundo de Financiamento Estudantil, do Ministério da Educação] foi uma boa ideia, mas não como foi feito. Todo país do mundo tem um sistema de financiamento à educação superior, mas isso tem de ser muito bem desenhado para não dar em besteira. Não adianta só dizer que vai gastar com a educação, tem de gastar bem.

No Pronatec, em vez de darmos dinheiro para quem não está ocupado fazer um curso, seria melhor dar dinheiro para quem está trabalhando. É meio absurdo que o Brasil acredite que os trabalhadores vão sobreviver no século 21 sem algum tipo de formação continuada a cada ano.

O que proponho é dar para cada trabalhador 60 ou 80 horas por ano, via um cupom, que pode ser usado desde que ele tenha um emprego.

O trabalhador combina com o empregador de usar o cupom para desenvolver a competência dele, em algo que o empregador precise e que o trabalhador tenha interesse. Não vai ser aleatório para, depois, ver qual o posto de trabalho o empregado vai encontrar.

É muito mais uma formação continuada em serviço do que uma formação inicial para o sujeito que não tem um empregador. Ele pode fazer o curso num momento de baixa na produção da empresa onde trabalha; e não na hora que o Pronatec decidir. Mesmo porque muita gente saía do Pronatec quando conseguia um emprego.

A pobreza e a desigualdade aumentaram com a pandemia e o crescimento está em xeque em 2022. Além de medidas emergenciais, o que pode ser feito? O PIB do Brasil não caiu tanto assim e nossa capacidade de arrecadação [de impostos] não é pequena. Arrecadamos uma enormidade.

Nosso problema é como descongelar os recursos. Se pudermos desindexar os gastos e passar a alocá-los de acordo com projetos claramente bem argumentados e reconhecidos como adequados, e avaliar depois esses projetos para modificá-los quando for preciso, as coisas podem andar.

Somos um país até relativamente rico e com um Estado grande. Temos todas as condições de dar jeito no que tiver pela frente. É só ver nosso programa de vacinas, que começou muito mal e agora é um dos melhores do mundo. Temos essa capacidade.

Nossa crise não é de recursos, é de má alocação. De incapacidade de remanejar recursos. De um país que já gasta 25% do PIB no social e tem de aumentar imposto para elevar o valor do Bolsa Família.

Mas sou otimista em relação ao Brasil, porque tem todo o potencial. A questão é se nossa liderança vai levar o Brasil a ser um país racional. E não irracional, quando dedicamos os melhores cérebros para tirar uma casquinha do Orçamento aqui e outra ali.

Em vez de nos concentrarmos em aumentar o PIB, fica todo mundo querendo pegar um pedaço do PIB. Esse é o desafio. Um desafio de liderança, de gerenciar de maneira racional esse país.

RAIO-X
Ricardo Paes de Barros, 66
Graduado em engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica, com mestrado pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada e doutorado em Economia pela Universidade de Chicago. Fez pós-doutorado na Universidade de Chicago e em Yale. Integrou o Ipea por mais de 30 anos e foi subsecretário de Ações Estratégicas da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Negociação e soberania

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Vivemos um momento de apreensão crescente, neste instante, percebemos novas oportunidades, novas prioridades e novos desafios que podem mudar os rumos nacionais e internacionais. Neste ambiente, precisamos de sobriedade, visão estratégica e grande ousadia, sob pena de continuar e perpetuar nossas deficiências e se nos acomodarmos com a mediocridade que permeia a sociedade, naturalizando com o crescimento da fome, da exclusão social e da degradação dos indicadores negativos que crescem cotidianamente.

Na sociedade global, percebemos os confrontos entre os dois grandes atores da economia internacional, EUA X China, onde alguns analistas acreditam que rumamos para uma nova guerra fria, criando constrangimentos, preocupações e alinhamentos imediatos. Neste cenário, precisamos definir os rumos que, como país soberano e independente, devemos trilhar neste conflito que está se aproximando nos próximos anos, alterando comportamentos, adotando providências urgentes, atuação geopolítica e conscientização de todos os atores internos, sob pena de perdermos espaços no novo cenário global, marcados pela concorrência entre todos os atores nacionais e internacionais.

O mundo pós pandemia aprofundará a concorrência entre os atores econômicos, buscando solidificar suas estruturas produtivas, garantindo a capacidade de novas tecnologias e fortalecendo seus setores internos, criando espaços de desenvolvimento de tecnologias e criando instrumentos para reduzir a dependência de outras nações. A pandemia nos trouxe inúmeros legados, onde destacamos a busca crescente de autonomia tecnológica, todos os países que abriram mão de sua estrutura produtiva e de seu fortalecimento industrial tiveram fortes dificuldades para adquirir tecnologias para suprir as necessidades de suas populações. O Brasil é um exemplo claro, anteriormente éramos pioneiros em alguns desenvolvimentos científico e tecnológico, participávamos em consórcios internacionais e, atualmente, perdemos a relevância no mercado internacional, perdermos a relevância no cenário internacional e mostramos mais dependentes, mais fragilizados e mais subalternos dos interesses dos grandes atores externos.

Neste ambiente de ampla competição, os gestores públicos devem construir instrumentos para melhorar seus indicadores científicos e tecnológicos, fortalecendo as parcerias com os maiores atores internacionais e utilizando sua capacidade de negociação, buscando transferências tecnológicas e estimulando a construção de setores intensivos nacionais, valorizando os produtos nacionais e reconstruindo as indústrias nacionais. Neste ambiente, devemos negociar novos espaços internos de desenvolvimento, exigindo dos países desenvolvidos que se interessarem pelo mercado brasileiro, fortalecendo as negociações com os grandes conglomerados externos e uma forte contrapartida de tecnologias que contribuíssem para o incremento da ciência nacional, garantindo novos espaços no comércio internacional e diminuindo a dependência dos setores agroexportadores de baixo valor agregado. Os países que conseguiram alçar novos espaços de desenvolvimento econômico, anteriormente adotaram fortes investimentos na educação, na formação de capital humano e em grandes dispêndios em ciência e tecnologia e, ao mesmo tempo, construíram instrumentos de planejamento do Estado, garantindo proteção, compras internas, aumento da produtividade e o ganho de mercados externos, aumentando sua participação no comércio internacional e no incremento da complexidade econômica, deixando a dependência de produtos primários de baixo valor agregado e a construção de setores intensivos em tecnologia e em conhecimento.

Os embates entre as maiores economias crescem, exigindo uma diplomacia profissional, defendendo os interesses nacionais e utilizando os interesses e os desejos do mercado nacional como instrumento de construção de contrapartidas. O ambiente internacional está alterando rapidamente, desde a crise de 2008, da ascensão chinesa e da pandemia, a atuação do Estado cresce de forma acelerada. Neste ambiente, a Europa, os Estados Unidos e os países asiáticos perceberam a importância do Estado para reconstruir suas sociedades, infelizmente no Brasil insistimos em discussões ultrapassadas, desnecessárias e equivocadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia,06/10/2021.

‘Os países crescem com instituições inclusivas’, diz Pastore

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Em livro que será lançado nesta semana, economista analisa políticas do passado e aponta o que mudar

Entrevista com Affonso Celso Pastore

Adriana Fernandes, O Estado de São Paulo – 03/10/2021

Quando completou 80 anos, Affonso Celso Pastore teve o impulso de escrever um livro para reunir as notas acumuladas ao longo de mais de 50 anos como professor, integrante de governo, consultor e analista da cena política e econômica do País. Dois anos depois, o ex-presidente do Banco Central lança nesta semana o livro Erros do passado, soluções para o futuro: a herança das políticas econômicas do século XX. Publicado pela Portfolio-Penguin, da Editora Schwarcz, com prefácio do economista Marcos Lisboa, faz uma incursão pela história para saber o que levou o Brasil a entrar numa fase de estagnação a partir dos anos 80.

Desde o final da segunda guerra até os anos 80, o Brasil teve taxas de crescimento muito fortes, 7,5% ao ano, talvez, em média. Foram 30 anos de crescimento forte. Um período de grande transformação estrutural da economia, com aumento da industrialização. O Brasil deixou de ser um País eminentemente agrícola, se urbanizou. Tinha uma renda per capita superior a da China, da Coréia, e vinha se aproximando da dos Estados Unidos. A partir dos anos 80, reduzimos enormemente o crescimento. Nos afastamos da renda per capita dos EUA e fomos superados por vários outros países. Entramos numa fase de estagnação. A motivação é simples: saber o que fizemos de errado nesse período que levou a isso. Essa é a temática e os capítulos que analisam cada um dos principais episódios com a incursão que eu fiz na história para saber onde nós erramos e o que deveríamos corrigir daqui para frente.

Por que o Brasil foi pego nessa armadilha do lento crescimento e perdeu esse dinamismo e continua errando? A raiz do problema é política?
Não tem uma causa única. É evidente que existe uma questão que é a das instituições. A teoria do desenvolvimento econômico vem evoluindo ao longo do tempo e, nos anos recentes, alguns economistas brilhantes, como Daron Acemoğlu que está no MIT, começaram a olhar as razões pelas quais há países que crescem e os que não crescem. Ele diz o seguinte: crescem os países cujas instituições econômicas e políticas permitem o crescimento. Quando são inclusivas e não são instituições extrativistas, os países crescem. Caso contrário, se perdem. É evidente que para entender que instituições falharam é necessário fazer uma análise mais profunda. Parte das instituições são as estacas do processo democrático, como é o Judiciário, o Executivo e o Legislativo, que tem checks and Balances (pesos e contrapesos), e são independentes entre si. E parte das instituições são as leis, as regras do jogo.

Como elas influenciam?
Há países que conseguem montar essas regras de tal forma a canalizar o esforço da sociedade para o crescimento. E há países que se perdem no meio do caminho e acabam gerando políticas econômicas que respondem a interesses de grupos, interesses privados, que no fundo auxiliam quem se beneficia daquele tipo de instituição. Mas não produzem o crescimento do País. Há uma interação entre os problemas econômicos e políticos. Não há dúvida nenhuma que uma boa parte da deterioração das nossas instituições foi de caráter político. Hoje, temos vários desenhos no sistema político, talvez maiores do que existiam no passado, que em grande parte são responsáveis pela incapacidade que temos de crescer.

O livro começa logo com um capítulo sobre a agricultura e o desenvolvimento econômico. Por que a agricultura brasileira é uma das mais produtivas no mundo e a nossa indústria não é?
Quando eu comecei a minha vida profissional, as pessoas achavam que a agricultura não tinha função no processo de crescimento. De fato, ao longo do processo de crescimento, a contribuição dela no PIB tende a cair. Não porque ela perde eficiência, mas porque outros setores crescem muito mais depressa. A nossa agricultura, não obstante a isso, se manteve extraordinariamente eficiente. É um setor sempre exposto à competição internacional. O que fez a grande diferença é que tivemos inovações tecnológicas e uma tradição de fazer pesquisas. Existe um papel importante da inovação tecnológica. Caso contrário, trava o crescimento. Conseguimos fazer isso na agricultura e nunca perdemos.

O segredo foi o capital humano que nas universidades e na Embrapa produziram todas as inovações.
Apesar de ser bem-sucedida, a agricultura tem sofrido atualmente muitas críticas pelo fato de o Brasil ser um dos maiores exportadores de alimentos, mas não resolveu o problema da fome que aumentou na pandemia. O que deu errado?

O Brasil não resolveu o problema da fome porque não resolvemos o problema da distribuição de renda. É claro que tivemos certas tentativas de favorecer os excluídos. O Bolsa Família foi isso, porém, existe uma população que está num nível de pobreza absoluta que não está tendo oportunidade de crescer e melhorar a sua perspectiva.

Desenvolvimento econômico não pode ser olhado no agregado, no crescimento do PIB. Tem que olhar taxas de crescimento que permitam que se vá reduzindo o grau de desigualdade. Quando a sociedade não consegue resolver o problema, num dos extremos, que é o da pobreza absoluta, aparece a fome. Mas isso não é culpa da agricultura. É culpa das políticas públicas que não conseguiram gerar incentivos eficientes para dar capacidade da renda dos mais pobres crescer mais depressa.

O livro tem um capítulo sobre a crise de petróleo da década de 10. Hoje, o mundo corre o risco de uma crise mundial de energia depois da pandemia da covid-19. É possível fazer correlações desses dois momentos históricos?
Lá atrás, estávamos saindo do regime de Bretton Woods, que era de câmbio fixo. A crise do petróleo aconteceu em 1973, quando terminou a guerra do Vietnã. Como todas as guerras, foi financiada pelos Estados Unidos com a emissão de moeda, gerando lá uma inflação que virou uma inflação mundial. Essa inflação levou a taxas de juros baixas no mundo, que gerou oportunidade do Geisel endividar o Brasil. O que levou à crise da dívida externa. Hoje, temos uma crise energética no mundo diferente daquela. Não é mais a Opep que está fazendo a crise. Na Europa, tem a Rússia, fornecedor de gás, que resolveu subir o preço e criou uma crise energética na Europa. Está tendo falta de gasolina no Reino Unido. Tem uma subida de preço de petróleo provocada em parte por problemas geopolíticos como esses. Não é mais o EUA gerando um aumento na oferta mundial, o que induziu a OPEP a subir o preço e gerar a crise do petróleo. São outros problemas, mas o efeito é de subida de preço. O mundo aprendeu a se financiar melhor e não vai ter uma crise como aquela. Mas a economia mundial tende a se desacelerar com esse efeito que estamos vendo no mercado de energia hoje. Desacelera a Europa, os Estados Unidos, a China e desacelera o Brasil.

Em um dos mais importantes capítulos, o sr. analisa o episódio da crise da dívida externa, momento histórico no qual participou. O livro traz uma revisão desse período?
Quando estava na presidência do Banco Central, eu fazia parte do governo do Figueiredo (79 a 85), o último governo do ciclo militar do Brasil. Evidentemente, tudo que esse governo fizesse era criticado. Isso é natural. Eu tenho muitos amigos hoje e eram amigos antes que foram extremamente críticos com relação à forma como conduzimos a negociação da dívida naquele período. Existe uma frase do George Orwell que diz que a história é sempre contada pelos vencedores. Felizmente os vencedores daquele período foram os caras que estavam a favor das eleições livres.

Aí, eu aplaudo. Mas eles contaram a história sobre a crise da dívida que era politicamente interessante naquele momento . O que eu mostro é que não havia fórmula de fazer a negociação a não ser como ela foi feita. Em 1980, a dívida externa em dólares estava em 60% do PIB. Quando eu entrei no BC, em 1983, o nível de reserva de caixa do Brasil estava em menos de US$ 2 bilhões. Não tinha reservas. O Brasil teve que parar de pagar a dívida. Teve que ser publicada uma resolução no BC que centralizava o câmbio.

Essa parada brusca produziu uma recessão profunda?
Eu sou presidente do comitê de datação de ciclos econômicos da FGV. Datamos o início daquele ciclo no começo dessa crise da dívida. Foi a maior queda da renda per capita que aconteceu, uma redução de 12%. Uma recessão extremamente longa. Tudo parou. Se tem um sujeito que parou de respirar, você vai fazer respiração artificial, massagem cardíaca, vai botar oxigênio. Não adianta dar remédio para dor de cabeça. A prioridade era renegociar e obter dinheiro novo para ter recursos para fazer a economia voltar a funcionar. Naquele período não tinha mercado de títulos, bonds, os empréstimos estavam todos na carteira dos países. Foi uma crise que atingiu os países, mas foi uma crise bancária sistêmica em nível internacional. Tinha que navegar nesse ambiente hostil com extrema cautela.

Uma das condições era produzir receitas de divisas, tinha que produzir uma forte depreciação do câmbio real. Só a economia estava indexada e não tinha âncora porque o BC não tinha capacidade de operar a taxa de juros. Quem operava isso era o Conselho Monetário. Eu mostro que isso gerava uma inflação totalmente descontrolada que só foi dominado muito lá na frente com o Plano Real. Num dos capítulos, eu discuto primeiro o erro do Geisel de tentar uma reedição do processo de substituição de importação com dívida externa. E como isso levou à crise da dívida e como essa crise, somada a toda fragilidade institucional que tínhamos no campo monetário, levaram à hiperinflação dos anos 80.

O livro fala do eterno problema fiscal brasileiro que ainda não está resolvido.
O Brasil tem um problema que vem desde a Constituição de 1988, que criou uma série de direitos com despesas públicas, que até termos o teto de gasto, cresciam a 6% em termos reais ao ano. Acontece que não tem crescimento de PIB de 6% no Brasil. O nosso crescimento potencial é 2%, 2% e pouco. Se a despesa cresce a 6% e a receita a 2%, a dívida pública não vai parar de crescer e fica insustentável. Tem que fazer uma reforma fiscal que permitisse resolver. Tentou aqui e de lá. Esse problema foi jogado para frente durante o governo Fernando Henrique porque ele gerou um aumento de imposto contínuo que fez com que a receita crescesse junto com o aumento da despesa. Era o período do tripé, quando havia um aumento de carga tributária que gerava superávit primário grande para evitar o crescimento da dívida. Só que aumento de carga tem custo econômico, retarda o crescimento e gera um custo de bem-estar para a população.

Em 2016, o governo criou o teto de gastos. Mudou algo nesse cenário?
Em todos os processos de controle de gastos, o custo de recessão e queda do PIB é muito menor do que via aumento do imposto. Todos os experimentos que fizeram austeridade por controle de gastos terminaram com uma relação dívida PIB menor. Em princípio, foi a opção correta, não necessariamente o teto, o controle de gastos. O Brasil tem que controlar gastos e nós tivemos algum sucesso na reforma da Previdência. Não posso dizer que ficamos parados, mas não conseguimos ir adiante nisso. Nunca conseguimos fazer uma reforma administrativa.

No final do capítulo, o sr. analisa o impacto político sobre as contas públicas. Como é isso?
Com o fracionamento partidário que o Brasil teve nos últimos anos é praticamente impossível ter um presidencialismo de coalizão que permite no fundo atacar os problemas fundamentais do Brasil, Fica preso a uma luta de partidos, que são muito heterogêneos, e linhas diferentes em cada partido que pioram extraordinariamente a qualidade da política econômica. Para atender os objetivos dos partidos, não têm capacidade de atender o objetivo da sociedade como um todo.

O impasse que o País vive para abrir espaço no Orçamento para um programa social mais robusto é decorrente desse problema político?
Essa é uma das dimensões do problema que estou falando. Em primeiro lugar, temos um governo muito fraco. Ele não tem um programa consistente e é fraco no apoio político. E temos um Congresso que depende do Centrão, que não é um grande partido de centro, mas um grande conglomerado de partidos fisiológicos que no fundo estão olhando uma forma de minimizar danos aos seus grupos eleitorais. Essa combinação é extremamente negativa do ponto de vista da eficácia da política econômica.

Em mais de 50 anos como economista, o sr. viveu boa parte da história política recente. qual o maior erro?
Não pode dizer um erro. Foram muitos erros. Fica mais fácil listar os acertos. O primeiro ano do governo Fernando Henrique conseguiu reformas importantes e corrigiu o erro da fragilidade institucional brasileira, do BC, do domínio da inflação. Isso tudo foi corrigido no primeiro ano. Isso e mais as privatizações foram uma marca profunda. Mudou o curso do Brasil. Mas ele cometeu dois erros muito ruins. Ele criou o financiamento empresarial de campanha e a reeleição. Não resistiu ao sucesso do primeiro mandato e foi para a reeleição e ali começou o presidencialismo de coalizão a entrar em colapso.

Qual o maior erro que o sr. vê agora?
O Brasil está em frangalhos porque o Bolsonaro está em campanha eleitoral 100% do tempo. Esse governo deveria começar a governar, o que acho que não começou até agora. Está em campanha.

Olhando os erros do passado, dá para consertar o futuro, como agora depois da pandemia da covid-19? Dá para fazer mudanças com o olho no retrovisor?
Não estou dizendo que as soluções que resolveram o passado são as que resolvem agora. Não se pode pegar diagnósticos de lá (do passado) e aplicar aqui. É preciso deixar claro que a teoria econômica não é a física. Ela não tem uma resposta imutável para qualquer tipo de problema. Depende do contexto histórico no qual se está. Tanto que eu digo no livro que não se pode nunca parar de estudar economia porque ela é uma ciência em contínua evolução.

Os economistas hoje em dia dão um peso muito grande aos modelos matemáticos. Só que eles esquecem a história.

Esse é o caminho do novo livro?
Eu sou um sujeito mais velho e quando abrir o livro vai ver que as lições da história são muito importantes.

Aprende-se como as pessoas interagem, os grupos de pressão e o governo, e que tipo de solução foi encontrada. A história é um receptáculo de experiência, algumas válidas positivamente e outras negativamente, mas todas muito válidas que ajudam a fazer escolhas no presente. Revisitar o passado nos faz conhecer porque se fez a bobagem que levou ao problema. Reconhecer onde está o problema é o primeiro passo para tentar resolvê-lo. É um tipo de exercício que caiu em desuso. As pessoas hoje olham menos para isso tudo. Mas é preciso ter um pouco de humildade para tentar ir buscar na história um pouco mais de informação para como resolver os problemas. Eu me propus a fazer um exercício como esse.

Qual foi o gatilho para começar a escrever o livro? A situação atual do País

O gatilho foi o seguinte. Fiz 80 anos e os meus amigos resolveram me homenagear daqui e dali e eu falei que ainda estou ativo. Tenho uma história vivida, tanto na academia, na pesquisa, como dentro do governo, e ao longo do tempo fui acumulando muitas notas em cima de tudo isso. Num fim de ano, eu estava na casa da minha enteada em Bolonha, na Itália, e comecei a juntar isso e disse ‘eu tenho a impressão que tenho um livro’. Em dois anos, ele acabou saindo.
São reflexões. Tem muita experiência e análise e que, no fundo estão escondidas em notas que valia a pena trazer a público para discussão

Robótica na reorganização da desigualdade global, por Márcio Pochmann.

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Márcio Pochmann – Carta Maior, 29/09/2021

As consequências da pandemia da Covid-19 para a economia global seguem ainda sem ser plenamente conhecidas, especialmente em relação à considerável inflexão transcorrida no curso das cadeias globais de valor impulsionado por grandes corporações transnacionais. Pela recente recuperação do nível de atividade econômica, percebe-se a persistência do projeto de automação e demanda crescente no uso de robôs estimulada através da reestruturação produtiva desde o final do século passado.

Somente no ano de 2020, por exemplo, mais de 12 milhões de unidades robóticas estavam em operação em todo o mundo. Nos mais diversos setores de atividade econômica, a automação e a robótica avançam (automóveis autônomos, auto-cozimento, manutenção domiciliar, segurança e robôs de vigilância etc).

Nesse sentido, o salto das inovações tecnológicas que se explicita pelo processo de automação conectado com a robótica colaborativa, a inteligência artificial, a impressão em 3 D, a internet das coisas, da big data e outros. Através da automação, os usuários dispõe de processos robóticos que podem operar ininterruptamente, mais rápido, confiável e de precisão.

Denominada por manufatura avançada (indústria 4.0), a reorganização global da produção ganhou força associada à definição de fábricas inteligentes, com máquinas cada vez mais integradas por circuitos e sensores que avançam na autonomização, com a aprendizagem, armazenamento e descentralização da gestão. De acordo com os dados da Federação Internacional de Robótica, o estoque de robôs operando atualmente na produção industrial se situa no patamar mais alto da história.

Ainda que em 2020 houvesse a desaceleração para 12% de expansão nas vendas de robôs, especialmente motivada pelas indústrias automotiva e eletroeletrônica, o acumulado na segunda metade da década passada foi de quase 85% no mundo. Pelo surto da pandemia da coronavírus, muitos hospitais passaram a implantar robôs para melhor ajudar no enfrentamento da COVID-19.

Além de países como Itália, Índia, Tunísia, Estados Unidos, a China se destacou pela adoção da robótica na saúde. Também em outros segmentos do terciário, como serviços de limpeza, entregas variadas, educação, entretenimentos, armazenamento e distribuição, entre outras, avançaram na utilização de várias tecnologias assentadas na robotização.

Em função da expansão da demanda mundial, os investimentos no domínio da robótica se diversificam, embora cada vez mais concentrados em poucos países. No ano passado, por exemplo, o mercado global de robótica atingiu o valor de R$ 76,6 bilhões, sendo projetado o crescimento médio anual ao redor de 18%, podendo alcançar a quantia de R$ 177 bilhões até 2025.

Apesar disso, o Brasil tem conseguido avançar muito pouco em relação à automação e robótica, sobretudo na produção industrial. No ano de 2019, por exemplo, o país detinha 15,3 mil robôs industriais em operação, o que equivaleu a 0,6% do total de robôs industriais do mundo, enquanto em 2003 eram 2,1 mil robôs na produção manufatureira, representando apenas 0,3% do total de robôs no mundo.

Para o mesmo período de tempo, a China passou de 3,6 mil robôs industriais em operação no ano de 2003 (0,4% do total do mundo) para 783 mil robôs em 2019 (29% dos robôs do mundo). Enquanto a Cingapura possuía 918 robôs por 10 mil ocupados na produção industrial no ano de 2019, o Brasil registrou apenas possui 20,1 robôs por 10 mil ocupados na produção manufatureira.

Dentro dessa perspectiva, constata-se o quanto o avanço nos processos de automação e robótica termina por confirmar e reproduzir um conjunto de elementos já conhecidos pela denominação do desenvolvimento desigual e combinado. A desigualdade que se fundamenta no distanciamento tecnológico aprofunda a dependência a reforçar o próprio subdesenvolvimento.

Isso porque atualmente somente cinco países (Alemanha, China, Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul) concentram cerca 87% dos mais de 2,7 milhões de robôs em operação na produção industrial do mundo, enquanto em 2008, por exemplo, os mesmos países respondiam por menos de 73% do total de 1 milhão de robôs em funcionamento. A persistência da agenda neoliberal não altera o curso da desigualdade, muito menos a dependência e o subdesenvolvimento, reafirmado pela autonomização dos mercados.

Marcio Pochmann é professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Ufabc

Qual indústria vai sobreviver no Brasil? por Mendonça de Barros e Gomes de Oliveira.

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O centro de uma nova fase na indústria deve ser focado na inovação, no desenvolvimento tecnológico, na produtividade e na internacionalização

José Roberto Mendonça de Barros e João Fernando Gomes de Oliveira*

O Estado de S. Paulo – 02/10/2021

É fartamente conhecido que a proteção excessiva não conseguiu construir uma indústria competitiva no Brasil. Pelo contrário, fomos ficando isolados do mundo, obrigados a usar bens de produção ultrapassados e matérias-primas caras ou de difícil acesso, enquanto a manufatura global seguiu avançando em alta velocidade. A agenda de proteção não só isolou os “protegidos”, mas também atrapalhou aqueles que dependiam de mais internacionalização.

Mas há uma outra resposta para o desafio de se desenvolver a indústria no Brasil. Ela envolve elementos de competitividade que sejam capazes de suplantar as dificuldades do ambiente de negócios. Temos estudado esse universo, avaliando casos de indústrias de sucesso no Brasil. Trata-se de um caminho inverso ao clássico. Em vez de apenas analisar profundamente os problemas do ambiente de negócio, podemos estudar quais elementos do sucesso industrial permitem ganhos de competitividade que nos posicionem no patamar internacional.

Esse exercício tem sido realizado em reuniões e discussões com especialistas e executivos dessas empresas bem-sucedidas, que não são poucas. Observamos três pilares comuns em praticamente todos os casos de sucesso: 1) Intensa agenda de desenvolvimento tecnológico e produtividade; 2) Forte inserção internacional e 3) Sólida estrutura de capital. Tem sido interessante observar que os casos estudados justificam seu sucesso por esses três aspectos e não por qualquer tipo de proteção que lhes tenham beneficiado.

Vamos então entender melhor cada um deles: a agenda de desenvolvimento tecnológico e o conceito de produtividade são prioritários e bastante amplos nas indústrias bem-sucedidas no Brasil. Produtividade deve ser um conceito entendido de maneira estendida, pois seus resultados são influenciados a partir da conceituação do produto industrial, tanto pela sua capacidade de criar valor no mercado, quanto pela eficiência de sua rota de produção, de seus processos industriais, da logística, de sua facilidade de manutenção e de sua sustentabilidade ou aspectos do fim de vida, como a remanufatura, reúso ou reciclagem. Para se obter essa produtividade ampla, as indústrias bem sucedidas priorizam esforços consistentes e persistentes no desenvolvimento tecnológico em todos os aspectos listados, levando a ganhos contínuos e sólidos de produtividade.

Observa-se também que o sucesso inclui o aproveitamento de vantagens comparativas brasileiras, combinadas com avanço downstream nas cadeias de valor. São exemplos os recentes desenvolvimentos do uso de Nióbio em baterias automotivas pela CBMM, dos novos materiais no setor de árvores plantadas (IBA), os movimentos downstream industrial do agro (como a Companhia Lilla) e outros inúmeros exemplos onde o Brasil oferece diferencial competitivo construído (como a Aeris). As indústrias brasileiras de sucesso, sem exceção, desenvolvem visão de longo prazo, portfólios de produtos, road mapping tecnológico, ou seja, dedicam-se a um caminho contínuo e obsessivo para encontrar saídas inovadoras, frente aos nossos desafios e oportunidades.

Parece óbvio que só é possível desenvolver essa produtividade lato sensu com uma agenda de desenvolvimento de padrão mundial. Nesse ponto, observamos que a conexão com as melhores práticas do mundo, ou a internacionalização do negócio, é elemento essencial e presente em praticamente todas as empresas bem-sucedidas. Aqui, internacionalizar não significa apenas exportar, mas explorar as melhores oportunidades que o mundo globalizado pode oferecer em benefício da nossa indústria e pode incluir: investimentos diretos no exterior, ganhos com novos mercados, colaboração com os melhores parceiros para projetos de desenvolvimento industrial ou de P&D e ainda a ligação com as cadeias internacionais de suprimentos, via contratos de tecnologia ou investimentos no exterior, criando-se a capacidade de utilizar os melhores insumos e sistemas de produção.

Dessa forma, as agendas de produtividade e internacionalização claramente não combinam com a pauta protecionista ou o isolamento de nossa indústria. Hoje, temos muitos exemplos de que o protecionismo gerou produtos industriais ultrapassados, caros e de baixa qualidade. Isso é mais grave ainda quando a pauta protecionista atinge os materiais básicos, como o aço, por exemplo. O Brasil manteve um sistema de proteção da indústria siderúrgica nacional, cujo resultado foi a manutenção de preços internos acima do mercado internacional em cerca de 20%. Para indústria de manufatura metalomecânica isso tem sido fatal, uma vez que nesse universo industrial o valor da matéria-prima chega a contar cerca de 50% do preço do produto acabado. Hoje, podemos afirmar que proteção do aço foi um dos componentes mais importantes para o desmantelamento do setor de manufatura metalomecânica no Brasil.

É importante destacar que setores beneficiados por uma pauta de internacionalização não são apenas os que têm potencial de exportar. Há de se considerar os setores industriais que dão suporte à crescente produção de commodities que fortalecem a pauta de exportação do Brasil. Por exemplo, o crescente sucesso do agronegócio brasileiro depende de insumos industriais para o plantio, colheita e processamento/transporte das safras. Em trabalho que um dos autores realizou para o IEDI, em 2018, mostrou-se que 30% dos produtos considerados na pesquisa industrial do IBGE têm relação direta com o setor. E isso não considera o uso pela agropecuária de produtos para construção civil, caminhões, reboques e carrocerias e equipamentos de informática e produtos eletrônicos. A competição nesse setor é global e intensiva de tecnologia e, portanto, uma empresa brasileira só deverá ter sucesso com os melhores padrões de produtividade e qualidade, mesmo que venda prioritariamente no mercado interno.

Por fim, uma boa estrutura de capital, facilitada nos últimos anos pelo desenvolvimento dos mercados de capitais, sem detrimento das fontes tradicionais, tem sido um aspecto relevante nos negócios industriais bem-sucedidos. O mercado de capitais vai continuar ampliando sua importância no financiamento das empresas, via aberturas e aumentos de capital e a colocação de instrumentos de crédito junto ao mercado, como debêntures e outros certificados.

Poderemos ter, pela primeira vez, crédito relativamente barato para todos e não apenas para os amigos do rei.

Esse fenômeno vai exigir um importante ajuste na estrutura de capital das empresas e na sua governança. Quem avançar nestas áreas obterá posição competitiva, como já estamos vendo durante a pandemia. O real deixa de ser uma moeda atraente para arbitragem (“carry”), resultando num menor fluxo de dinheiro quente. Deverá se manter mais desvalorizado, também pela crise fiscal e outras incertezas, como vem ocorrendo.

A união de todos esses elementos em mercados onde temos vantagens comparativas tem gerado ganhos capazes de se sobrepor aos riscos inerentes ao nosso ambiente de negócios. É isso que temos observado nos inúmeros casos que estudamos. Parece-nos que o “custo Brasil” vai demorar para ser resolvido e mesmo que seja mais rapidamente, não se exclui essa pauta de busca por uma competitividade global.

O centro de uma nova fase na indústria deve ser focado na inovação, no desenvolvimento tecnológico, na produtividade e na internacionalização. Tudo com base em uma sólida estrutura de capital. Além disso há de se explorar mais a criação de valor a partir dos recursos naturais, onde temos óbvias vantagens. Temos inúmeros nichos valiosos que contemplam simultaneamente nossas vantagens comparativas com a sustentabilidade lato sensu, o que pode ser uma marca forte para uma indústria de sucesso no Brasil. O caminho é desafiador, mas possível.

*MENDONÇA DE BARROS É ECONOMISTA É SÓCIO DA MB ASSOCIADOS; GOMES DE OLIVEIRA É PROFESSOR DE MANUFATURA DA ESCOLA DE ENGENHARIA DA USP DE SÃO CARLOS

Tempestade de terra em Franca me fez ter vergonha de ser do interior paulista, por Reinaldo J. Lopes.

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Só uma degradação ambiental indescritível seria capaz de produzir um haboob nesta terra antes verdejante e aprazível

Reinaldo José Lopes Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”.
Folha de São Paulo, 02/10/2021

Eu realmente gostaria de evitar que esta coluna se transformasse num espaço monotemático de autoflagelação, choro e ranger de dentes, mas o mundo real não deixa.

As imagens aterradoras (e bota “terra” nisso; me desculpem pelo trocadilho infame e amargo) da tempestade de poeira engolindo Franca (SP) na semana passada me fizeram ter vergonha de ter nascido e crescido no interior paulista.

Trata-se de uma emoção inaudita, ao menos no meu caso. Passei uma década e meia na capital, mas fiz questão de voltar para cá assim que pude. Quis criar meus filhos em solo caipira. E sempre estufei o peito, cheio de orgulho, ao dizer que era do interior de São Paulo.

É da natureza humana amar o que os poetastros chamavam de “torrão materno”, mas eu costumava achar que meu amor por este chão era bastante justificável.

Eu amava o fato de termos construído uma semelhança de sociedade do conhecimento nesta terra roxa, com algumas das maiores universidades do Brasil e da América Latina plantadas aqui (e duas delas só na minha cidade natal!): UFSCar, USP, Unicamp, Unesp.

Amava a capacidade de transformar esse conhecimento em crescimento econômico: a força das indústrias, nosso papel na criação de combustíveis renováveis made in Brazil, os avanços agropecuários trazidos pela Embrapa.

Ainda amo o R retroflexo que a gente emite entre vogais e consoantes, o fato de que cidades com 200 mil ou 300 mil habitantes ainda têm a cordialidade e o calor humano de comunidades muito menores.

Mas o vento que despejou em cima de Franca o que restava do solo fértil dos arredores mostrou, sem disfarces, o que eu já andava intuindo há algum tempo. Nós, caipiras, gastamos o nosso cheque especial ecossistêmico como se não houvesse amanhã –e está chegando a hora de pagar os juros. Spoiler: se não criarmos vergonha na cara, e rápido, vamos ter de penhorar até as calças.

Quando os ventos arrancaram as escamas dos nossos olhos, algumas coisas ficaram claras.

Ficou patente que a pujança do nosso agronegócio não passa de ganância e insensatez; que a água farta que rega nossos jardins e enche nossas piscinas é pura esbanjamento. A imprevidência com que tratamos as bases mesmas daquilo que nos garante o que beber e o que comer deveria ser capaz de fazer corar até uma nação de selvagens, mas isso nem nos passa pela cabeça.

“Crianças, vocês vivem em um deserto. Vou lhes contar como foram deserdadas”, diz a voz profética do historiador Warren Dean (1932-1994) em seu clássico “A Ferro e Fogo”, em que documenta a saga da destruição da mata atlântica.

O interior de São Paulo teve e continua tentando um papel inglório nesse processo, e essa frase, como propõe Dean, deveria ser a primeira a sair da boca dos professores na primeira aula de história das escolas deste estado.

“Deserto”, aliás, é tecnicamente o termo exato. Na precisa reportagem do colega Phillippe Watanabe sobre a nuvem, descobridor que se trata de um haboob (em árabe, algo como “rajada”). É algo comum… no Saara e no Sudão. Ou seja, só uma degradação ambiental indescritível seria capaz de produzir isso nesta terra antes verdejante e aprazível.

Seria engraçado, se não fosse enfurecedor, ler algumas justificativas para esse absurdo. Um representante dos produtores de cana disse à BBC Brasil que “o setor tem os melhores especialistas, os melhores consultores em solo” e que “foi uma coisa acima do normal”.

Outro spoiler: os anos “acima do normal” estão se tornando a regra. Chama-se crise do clima. Precisamos das florestas de volta.

Rumores externos

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A sociedade internacional vem passando por grandes transformações e incertezas em todas as cadeias produtivas, com impactos nos preços e pressões inflacionárias, impactando sobre o consumo, sobre os investimentos, sobre os empregos e as perspectivas de recuperação econômica, aumentando as instabilidades e as preocupações, gerando problemas sociais, quebras econômicas e degradação política.

Para piorar este cenário, a economia internacional acordou sobre as perspectivas da falência de um dos grandes conglomerados imobiliários da China, Evergrande, cujo potencial pode ser gigantesco, com impactos sobre a economia, a demanda global de produtos importados e desestruturação do sistema financeiro, com desemprego, queda na renda e a dificuldade de recuperar os indicadores econômicos, tão degradados em momentos de pandemia.

O mercado imobiliário na China é gigantesco, nos últimos dez anos mais de 130 milhões de pessoas saíram do campo para viver nas cidades, sendo construídos mais de 70 milhões de apartamentos, apenas para absorver esta demanda de uma economia que cresce de forma acelerada. Com este crescimento, o setor se alavancou rapidamente, gerando bolhas de créditos que levaram o governo a costurar novas regulações e impactaram sobre as compras, diminuíram o crescimento econômico, reduzindo lucros e estimularam as dificuldades atuais.

Os dados sobre a empresa chinesa são assustadores, emprega mais de 200 mil funcionários, o endividamento da empresa chegou a mais de US$ 300 bilhões, sendo que mais de 100 bancos emprestaram a empresa e correm o risco de prejuízos altíssimos, gerando preocupações e descontentamentos. Apesar destes dados, não devemos esperar uma crise financeira como a do mercado imobiliário norte-americano em 2008. Desde o começo do ano as ações da Evergrande caíram mais de 80% e a empresa está tentando queimar estoques para pagar juros dos títulos que estão vencendo.

Embora alguns analistas acreditem que a crise da empresa chinesa pode impactar sobre o sistema internacional, é importante destacar que o sistema financeiro chinês não é integrado ao resto do mundo e as autoridades possuem instrumentos para garantir a liquidez do sistema, não importando o tamanho do buraco. Devemos destacar ainda, que mais de 80% do endividamento da empresa é em moeda local e os grandes credores são bancos públicos.

Países como o Brasil podem sentir a crise na queda das exportações para o mercado chinês, cuja demanda por commodities podem reduzir e impactar sobre o setor produtivo, principalmente pelos setores ligados ao minério de ferro e, em menor escala sobre os produtos do agronegócio, mas os riscos não devem ser descartados e nem desprezados.

Alguns analistas acreditam que a China caminha para a fragilização do modelo implementado no começo dos anos 80, outros teóricos acreditam que a crise do mercado imobiliário era esperada e deve reestruturar alguns modelos de negócios e o combate dos monopólios devem ser aperfeiçoado, pois a concentração de poder impacta negativamente para a coletividade, nesta visão, a crise da Evergrande deve ser vista como uma forma de repensar a atuação do Estado, como estamos vendo em países desenvolvidos, com maior intervencionismo governamental e maior regulação.

Neste ambiente de crises crescentes que caracterizam o mundo, marcados pelas incertezas e instabilidades geradas pela pandemia, as dificuldades das cadeias produtivas com aumento nos custos e do incremento da concorrência em escala global, faz-se necessário, construir espaços de atuação conjunta com todos os atores do desenvolvimento econômico. Deixando de lado os crescentes conflitos e confrontos desnecessários que limitam a confiança, a melhora do ambiente dos investimentos, a geração de emprego e a melhoria do bem-estar da sociedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/09/2021.

Crise na China evidencia risco de manter “crescimento fictício”

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Por Marcelo Ninio – 25/09/2021

Para levar adiante seu plano de frear a oferta de crédito fácil, é preciso aceitar uma queda significativa nos números do PIB, abrindo mão do “crescimento fictício”. Mas essa é uma ação que esbarra em grande resistência política, afirma Pettis, que há anos alerta para os riscos do excesso de endividamento para a economia chinesa.

Como a situação chegou a esse ponto?
Por muito tempo as incorporadoras cresceram rápido demais. Seu sucesso era puxado por três fatores: alto endividamento, muita liquidez e grandes lucros brutos. O problema é que nos últimos anos a liquidez desacelerou, chegando a ser negativa em agosto. O governo passou a ficar tão preocupado com o volume de endividamento no setor imobiliário que começou a impor limites. Não é a primeira vez que isso acontece. Há anos o governo fala em tomar medidas. Mas toda vez que tentava frear o crescimento das incorporadoras havia recuos, porque isso afeta a economia, reduz o preço dos imóveis e desacelera o setor imobiliário, que tem enorme importância na economia chinesa. Eles representam 25% do PIB e empregam milhões de pessoas, direta e indiretamente. Só a Evergrande tem 200 mil funcionários. Por isso é muito difícil exercer controle. Não há uma saída fácil. A Evergrande significa um grande dilema para os reguladores. Se querem eliminar a cultura da dívida é melhor não intervir. Mas sem uma intervenção há o risco de os problemas se alastrarem rapidamente e afetarem a população. Quanto maior a intervenção mais difícil será solucionar o problema. Acho que os reguladores se surpreenderam com a rapidez com que a economia ficou sob risco e estão ansiosos para aplicar uma solução que ponha um fim nisso.

Se uma intervenção parece inevitável, porque o governo ainda não se pronunciou?
É muito complicado. Se o governo faz um anúncio é para cessar o pânico. Isso significa que é preciso pensar em todos os componentes. O que fazer com as pessoas que investiram em ativos da Evergrande? O que fazer com os funcionários da Evergrande? O que fazer com as pessoas que pagaram adiantado por imóveis da Evergrande que não estão finalizados? O que fazer com a indústria de tinta, que está prestes a falir por ter fornecido enormes quantidades à Evergrande e não foram pagos? O que fazer com as construtoras que trabalhavam para a Evergrande e suspenderam os pagamentos a seus operários? Há muitos elementos nessa equação e é preciso encontrar uma solução para todos. Uma solução pela metade não serve. Quando o governo entrar em cena deve ser para acabar com o pânico.

Há vários tipos possíveis de intervenção, da máxima, em que o governo garante todos os pagamentos e acaba com a crise ao outro extremo, em que não há intervenção alguma. O governo deverá escolher algo no meio, mas qual? Uma solução política melhor talvez leve a uma solução econômica pior e vice-versa. É muito difícil apresentar uma resposta que agrade a todos. Na realidade não há tal saída, é preciso encontrar uma solução que basicamente agrade a Xi Jinping, Liu He [principal assessor econômico] e as pessoas em torno deles.

Sabia-se que o setor imobiliário chinês era “viciado em dívida”. Porque o governo não agiu com mais firmeza para reduzir essa dependência?
Por que as bolhas crescem? Politicamente é muito difícil esvaziá-las. Quem faz isso é acusado de destruir algo que estava funcionando. É muito difícil argumentar que se a bolha não for esvaziada em algum momento ela explodirá e causará grandes danos. É algo muito difícil de provar. Como disse um presidente do Fed [BC americano], o trabalho do Banco Central é cortar a bebida quando a festa está ficando animada. Fica todo mundo furioso, porque enquanto estão bebendo as pessoas não costumam pensar na ressaca do dia seguinte.
Evergrande para promover as correções necessárias, ao impor no ano passado limites à alavancagem das incorporadoras, as chamadas “três linhas vermelhas?

As três linhas vermelhas são o gatilho, não a causa. A causa é o vasto e excessivo endividamento do setor imobiliário. Em algum ponto isso ia ter que parar, seja por medidas regulatórias ou porque a situação ficou tão fora de controle que haveria uma crise. Os reguladores decidiram botar um fim nisso, mas não havia meio de fazê-lo sem causar danos. Há anos as autoridades têm tentado colocar um freio, mas toda vez que eles agem há prejuízos e torna-se politicamente inaceitável e eles recuam.

O governo está disposto a aceitar um crescimento menor do PIB para frear o endividamento?
Claro que as pessoas que podem responder a essa questão jamais irão discuti-la. Meu palpite é que o crescimento real é menor do que eles pensam. Portanto, mesmo se eles acreditam que é possível abrir mão do crescimento fictício gerado pelo setor imobiliário, o custo político de uma queda no PIB pode ser difícil de aceitar. E mesmo se conseguirem se livrar do mau crescimento, parar de construir apartamentos que ficarão vazios e não trazem nenhum valor econômico, de construir pontes desnecessárias e estender ferrovias a lugares que não fazem sentido, qual será o crescimento real da China? Eu acho que será bem menor do que eles esperam. Por muitos anos o crescimento do PIB foi maior que o da renda das famílias. Então em teoria hoje poderia haver uma grande queda no crescimento do PIB sem uma queda drástica no crescimento da renda. Politicamente é muito difícil.

Quais os riscos da crise na Evergrande para a economia mundial?
Acho que são bastante limitados. O perigo de um contágio financeiro é pequeno. O sistema financeiro chinês ainda é em grande medida fechado. A razão de os mercados terem reagido tão mal à crise da Evergrande é que há muita confusão sobre a China. Então sempre que algo acontece na China a reação dos mercados é recuar. Se a Evergrande forçar um reajuste na economia chinesa, com menos investimento e mais consumo, tudo o que a China importa para investimento, como minério de ferro, terá uma demanda menor [com impacto sobre exportadores como o Brasil]. Não quer dizer que isso se dará imediatamente, mas em algum momento isso acontecerá. A China não pode continuar tendo o maior nível de investimento da história, isso já há 20, 30 anos. Se a Evergrande é o que levará a essa mudança nós não sabemos, é esperar para ver.

O governo tem capacidade de promover essa mudança?
Tem, mas lembre qual o papel da dívida. A dívida vem crescendo rapidamente na China desde os anos 1980, mas isso não era muito notado porque o PIB crescia na mesma velocidade. Só nos últimos dez ou 15 anos a dívida acelerou e o PIB desacelerou. E a razão disso é que a dívida foi usada em investimentos desnecessários. O Brasil passou pelo mesmo nos anos 1970. O papel da dívida é manter os investimentos em alta, que por sua vez são necessários para manter o crescimento do PIB, empregos, etc. Mas se você quer se livrar da dívida é preciso aceitar um nível bem menor de investimentos e um crescimento do PIB muito mais baixo. É sempre um problema político. Todos querem ter altas taxas de crescimento, o problema é que num certo ponto não dá mais para jogar esse jogo e os ajustes se tornam extremamente perigosos. Por isso, quanto antes os ajustes são feitos, melhor.

Combate ao autoritarismo requer união tática de forças antagônicas, diz Anne Applebaum

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Em livro, jornalista partiu de rupturas pessoais para aprofundar compreensão de como autocratas vêm persuadindo cada vez mais pessoas

FERNANDO CANZIAN – FOLHA DE SÃO PAULO, 22/09/2021

Em “Twilight of Democracy – The Seductive Lure of Authoritarianism” (crepúsculo da democracia – o apelo sedutor do autoritarismo), a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum, 57, parte de rupturas pessoais com familiares e amigos para aprofundar como líderes autocratas vêm persuadindo cada vez mais pessoas comuns para o campo antidemocrático.

Em um sobrevoo global, a autora esmiúça as estratégias comuns desses líderes e oferece sugestões de como enfrentá-los. Sobre a forma e o conteúdo do governo brasileiro de Jair Bolsonaro, Applebaum afirma que ele não difere dos demais e que, por antecipação, já copia os momentos finais da Presidência Trump nos EUA.

Para a vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção em 2004 pelo livro “Gulag: Uma História” (Ediouro), o combate aos autocratas deve passar necessariamente pela união tática de forças políticas antagônicas, mas que tenham o objetivo comum de se livrar deles.

“É preciso que haja uma trégua, onde sejam colocadas de lado as diferenças para que se possa concordar sobre algo bem mais importante”, afirma Applebaum, que fará uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento em 29 de setembro.

Políticos populistas e antidemocráticos têm usado o mesmo roteiro na Europa e nos EUA. No Brasil, Bolsonaro procura desqualificar as instituições e ataca a mídia. Se o roteiro é sempre parecido, já não é tempo de as democracias aprenderem formas eficientes de combater essas ameaças? Concordo que existe um padrão nesses ataques à democracia, com os candidatos a autocratas não liberais imitando uns aos outros e estudando o que funciona em cada país. No Brasil, vemos o presidente Bolsonaro imitando Trump mesmo antes do resultado das eleições [de 2020], ao dizer que, caso ele não vença, elas terão sido fraudadas. O ponto é que os opositores a esse tipo de político precisam estar preparados, pois isso não é algo que os Estados democráticos necessariamente tenham como combater. Tem de partir das pessoas que defendem a democracia e seus valores liberais.

Essas pessoas, no Brasil, nos EUA e na Europa, deveriam se reunir e aprender também uns com os outros as táticas de combate, para que isso não volte a acontecer no futuro. No caso dos autocratas, não existe uma aliança ou uma rede, mas eles estão aprendendo uns com os outros.

Mas não tenho certeza de que seus oponentes estejam fazendo a mesma coisa. Embora sofram do mesmo mal, eles normalmente estão divididos em centro-direita, centro-esquerda e verdes. Representantes de sindicatos e associações empresariais também tendem a não gostar uns dos outros. Mas é preciso que sejam formados novos tipos de alianças e relacionamentos para confrontar essa ameaça.

A senhora afirma que o autoritarismo atrai pessoas que não toleram a complexidade, que são alérgicas a debates intensos. Os progressistas deveriam se apropriar das mesmas táticas de comunicação dos autoritários? A grande questão para os oponentes de figuras autoritárias é exatamente essa. Quando temos sociedades profundamente polarizadas, como nos EUA, na Polônia ou Brasil, o que é mais efetivo? Mobilizar a sociedade para o enfrentamento unindo partidos antagônicos [com um objetivo comum] ou utilizar uma linguagem mais raivosa e direta?

Não existe uma fórmula. A melhor campanha talvez tenha de usar os dois caminhos. Um tipo de linguagem que vai unir as pessoas de vários campos políticos e, ao mesmo tempo, ter certeza de que as pessoas estarão suficientemente motivadas.

Em sua pergunta, você usou o termo progressistas. Mas é importante lembrar que a luta não deve ser feita apenas pela esquerda ou pelos progressistas. Ela deve incluir a centro-direita, empresários e mesmo aquela parte da população que se considera conservadora e está incomodada com as táticas dos autocratas. É preciso que haja uma trégua, em que sejam colocadas de lado as diferenças, para que se possa concordar sobre algo bem mais importante.

Como a mídia pode contribuir para trazer mais racionalidade ao debate político? Muitas vezes a mídia, especialmente as TVs, embora isso também ocorra nos jornais, acabam refletindo os argumentos que as pessoas estão usando no Twitter. Isso ocorre particularmente porque muitas empresas de mídia, desde o advento da internet, estão fragilizadas. Na busca por mais leitores e audiência, acabam caindo nessa armadilha de usar o sensacionalismo ou uma linguagem raivosa para conquistar leitores.

Ando envolvida em algumas discussões com jornais italianos, além de outros, para entender se a mídia pode analisar melhor o que vem fazendo. E isso pode até levar a um novo modelo de negócio, de construção de consensos, unindo mais lados do espectro político.

Podemos pensar em nós mesmos não apenas como parte de uma cruzada [contra autocratas] ou como a representação de apenas uma linha de pensamento. Podemos pensar em nós mesmos como provedores de conteúdo para um número bem maior de leitores de vários lados, além de formadores de consensos.

A senhora afirma no livro que políticos autoritários bem-sucedidos costumam usar as melhores pessoas da elite intelectual em seus propósitos. No Brasil, temos uma administração que nem sequer disfarça a ignorância em temas básicos. Seria motivo de otimismo para os brasileiros que discordam do governo? Não conheço a política brasileira o suficiente para comentar a natureza das pessoas que fazem parte do governo Bolsonaro, mas deve ser o mesmo que ocorre na Polônia [risos].

Mas lembre-se que, muitas vezes, as pessoas que trabalham nas campanhas desses líderes autoritários são muito bem formadas. Em muitos casos, podem ser pessoas frustradas que se sentiram pouco reconhecidas e recompensadas em governos anteriores e que não necessariamente se enxergam como sem talento. Pelo contrário. Muitas consideram que enfim estão conseguindo o que merecem.

Infelizmente, o resultado desse processo é que instituições que deveriam se manter neutras ao longo do processo acabam se politizando.

O economista francês Thomas Piketty e outros especialistas em desigualdade argumentam que o aumento da disparidade de renda deixou os eleitores mais vulneráveis a mensagens populistas. Qual sua opinião? Concordo que o aumento da desigualdade causa um efeito de distanciamento nas pessoas, que acabam por se sentir fora do sistema. Dependendo do país, isso pode ser muito marcante.

Mesmo porque os autocratas agem de maneira a oferecer uma espécie de filiação a algo. “Somos os verdadeiros brasileiros ou americanos!”, dizem. Mas é preciso ser muito cuidadoso em pensar que essa é a única razão e que, acabando com o problema da desigualdade, as coisas estarão resolvidas.

Claro que devemos diminuir a desigualdade. Mas, no caso dos EUA, muitos dos que votaram em Trump não foram necessariamente os mais pobres, que vivem de seguro-desemprego ou de outros tipos de ajuda social. Muitos de seus eleitores são extremamente ricos. E Trump conseguiu um apoio bastante grande entre membros da classe média. [A ascensão dos autocratas] não é apenas um fenômeno econômico. Mas concordo que isso acaba contribuindo para um sentimento de alienação de parte da sociedade.

No geral, como a senhora avalia o atual estágio das democracias liberais ocidentais? É uma situação bastante frágil internamente, em vários países. Mas há aí também um componente externo importante, pois as democracias liberais têm de lidar agora com um grande desafio: a China, país que não só consegue crescer rapidamente como está exportando seu modelo para o resto do mundo.

De uma maneira falsa, mas que tem apelo, os chineses oferecem uma alternativa para o desenvolvimento. Isso tem ressonância, particularmente, entre os autocratas. Eles podem dizer: “Veja, criando um sistema de partido único, acabando com a oposição política e controlando a internet podemos conseguir desenvolvimento e crescimento”. Isso esconde vários elementos da ascensão da China, especialmente o fato de que o país só começou a crescer depois que permitiu a adoção de modelos de negócios privados.

A coisa mais importante que temos a fazer é consertar internamente nosso próprio sistema. Isso passa por regular melhor o que é produzido na internet e nas redes sociais; aumentar o controle sobre o sistema financeiro internacional, que se tornou bastante cleptocrático, permitindo alimentar os autocratas; e modernizar nossas próprias democracias nessa era digital.

ANNE APPLEBAUM, 57
Formada em história e literatura pela Universidade Yale e mestre em relações internacionais pela London School of Economics, é escritora e integrou o conselho editorial do jornal The Washington Post. Vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção pelo livro “Gulag: Uma História” (2004)