O fim da hiperglobalização, por Ricardo Abramovay

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A Terra é Redonda – 18/03/2022

A ideia de uma comunidade global regendo todas as interações do planeta e abolindo interesses geopolíticos regionais ruiu

A ciência econômica, tal como ela se consolidou desde o final do Século XIX, afastou de seu horizonte intelectual e cultural a discussão sobre os valores ético-normativos que regem a maneira como as sociedades humanas usam os recursos materiais, energéticos e bióticos dos quais dependem. Este afastamento se radicalizou com o domínio daquilo que um número cada vez maior de economistas vem denunciando como o ultraliberalismo que marcou a disciplina, sobretudo a partir de meados dos anos 1970.

A ideia central desta vertente era que os mercados tinham uma inteligência necessariamente superior à de qualquer planejador. Esta presunção não se referia apenas ao Estado, mas ao próprio setor privado. Quem deveria ditar a forma de as empresas se organizarem não era sua direção e sim os mercados e, especialmente, os mercados financeiros. Os acionistas e os investidores deveriam ter a palavra final, expressa em números, no valor das ações e dos ativos das empresas.

As decisões empresariais seriam, por esta visão, permanentemente submetidas ao escrutínio descentralizado não de uma burocracia administrativa com interesses próprios, mas sim de uma instância sobre a qual ninguém tem controle.

A organização empresarial do século XXI extirparia, assim, o parasitismo das administrações convencionais, seria mais leve, operaria em rede e ganharia agilidade para aproveitar as oportunidades, propiciando assim maior crescimento econômico. Neil Fligstein, um dos autores mais importantes da sociologia econômica contemporânea descreveu este processo num livro fundamental publicado em 2001.

Esta ficção, que se impôs globalmente desde meados dos anos 1970, começou a desabar com a crise de 2008, mas ainda sobreviveu com impressionante arrogância, até o início da pandemia. A invasão da Ucrânia fincou definitivamente os pregos em seu caixão. A ideia de que os interesses dos indivíduos e os das empresas poderiam se exprimir numa espécie de comunidade global, onde a inovação e a eficiência seriam condições necessárias e suficientes para ampliar a riqueza, promovendo então a convergência entre os países e a abolição de interesses geopolíticos regionais, esta ideia ruiu. E com ela, ruiu igualmente outra crença ingênua, a de que a democracia resulta da capacidade de as sociedades respeitarem os mercados e prosperarem a partir deste respeito.

Dani Rodrik, professor da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard em entrevista a Daniel Rittner, no Valor Econômico, exprime bem esta ideia: “A hiperglobalização, diz Rodrik, foi um mundo no qual presumimos que preocupações geopolíticas e de segurança poderiam não apenas ser administradas, mas enfraquecidas ou até eliminadas graças à integração econômica e financeira”. A China, por exemplo, se aproximaria do Ocidente e ficaria mais democrática, graças ao poder da integração econômica, dos mercados.

Esta ilusão é igualmente denunciada por Timothy Snyder, historiador da Universidade de Yale e autor de The Road do Unfreedom no que ele chama de “política da inevitabilidade, um sentimento de que o futuro consiste em mais do próprio presente, que as leis do progresso são conhecidas…que a natureza trouxe o mercado, que trouxe a democracia, que trouxe a felicidade”.

O desabamento deste mundo e a decomposição dos mitos em que ele se apoia traz duas consequências fundamentais para o futuro das sociedades contemporâneas. Em primeiro lugar, como a pandemia já havia mostrado, a aposta na eficiência das cadeias globais de valor para a provisão dos bens e serviços necessários ao crescimento econômico, pertence ao passado. Os blocos regionais serão fortalecidos e a dependência com relação a circuitos longos será colocada sob suspeita. A geopolítica, mais que a economia, terá papel decisivo nas relações comerciais e, de forma geral, nas relações internacionais. É claro que este horizonte inspira medo, sobretudo diante da ameaça real de que os conflitos de interesse descambem para a agressão nuclear.

Mas há uma segunda consequência que, de certa forma, se contrapõe à primeira. O desabamento do que Tymothy Snyder chamou de política da inevitabilidade, do vínculo mágico entre mercado, democracia e felicidade este desabamento recoloca a discussão sobre valores ético-normativos no cerne tanto da teoria como das decisões econômicas. Aumenta de maneira impressionante a pressão para que as iniciativas das empresas e as infraestruturas planejadas pelos governos sejam norteadas não mais pela ambição geral e abstrata de promover o crescimento econômico e sim pela urgência de levar adiante o tríplice combate à crise climática, à erosão da biodiversidade e ao avanço das desigualdades.

Oferecer bens e serviços demandados pelos diferentes mercados será cada vez menos suficiente para legitimar a licença social para operar das empresas. A União Europeia já decidiu que não mais comprará commodities vindas de áreas desmatadas a partir de dezembro de 2020. A declaração de trinta e quatro organizações brasileiras que pertencem ao Observatório do Clima, propondo que as restrições europeias se apliquem não só à Amazônia, mas também ao Cerrado, à Caatinga, ao Pantanal e ao Pampa é uma importante indicação sobre a incontornável presença de valores ético-normativos (no caso, a urgência em se garantir os serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos) no interior dos mercados.

Outro exemplo na mesma direção e que se contrapõe à ideia de que possa existir um mecanismo automático, descentralizado capaz de assegurar um vínculo construtivo entre economia, democracia e prosperidade, vem do Banco Central Europeu que acaba de divulgar um relatório mostrando que nenhum dos 109 bancos por ele supervisionados tinha um nível satisfatório de transparência com relação às mudanças climáticas: “um montão de barulho branco e nada de substância real”, diz o relatório do BCE. Apenas 15% dos bancos divulgam dados sobre as emissões das companhias por eles financiadas.

A vantagem do fim da hiperglobalização é que ela vai exigir dos cidadãos, dos consumidores, das empresas, das organizações da sociedade civil e dos governos que todas, absolutamente todas as suas decisões sejam tomadas com base em valores ético-normativos. E como estes valores não são, felizmente, unânimes, está aberto o caminho pelo qual democracia e vida econômica poderão passar por uma construtiva fertilização recíproca. É nosso maior e fascinante desafio depois que o fanatismo fundamentalista for afastado do Planalto e da Esplanada dos Ministérios.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Estagflação, preço do petróleo escalando e dólar questionado: anos 2020, ou anos 1970?

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A Terra é redonda – 20/03/2022

Por LEDA MARIA PAULANI*

Não é apenas a névoa da guerra que impede se vejam as coisas com clareza

Nos corredores da faculdade não se fala de outra coisa: o mundo em estagflação e a ascensão meteórica dos preços do petróleo. Para completar, especulações frequentes em torno da capacidade do dólar americano de continuar a desempenhar o papel de meio de pagamento internacional.

Uma cena desse tipo poderia estar expressando o estado das artes da economia mundial hoje, mas se passa quase cinquenta anos atrás. Eu a presenciei, nos corredores da FEA-USP, nos primeiros anos de minha graduação em Economia. Dado o caráter cíclico do processo de crescimento capitalista, poderíamos ficar tentados a pensar que se trata de fato do retorno a uma situação substantivamente similar àquela experimentada décadas atrás. Não poderia haver engano maior.

Por trás da estagflação dos anos 1970, havia quase três décadas de estupendo crescimento econômico, espraiado por praticamente todo o globo. Por trás da estagflação de agora, quatro décadas do regime de baixo crescimento inaugurado pela difusão das práticas neoliberais no início dos anos 1980, além de uma colossal crise financeira há década e meia.

Por trás do questionamento do dólar, tínhamos o esgotamento do sistema de Bretton Woods e do padrão dólar-ouro, arranjo que começava a pesar demais para a economia americana. Por trás das dúvidas atuais, várias décadas do exorbitante privilégio detido pelos EUA de emitir uma moeda inconversível demandada pelo mundo todo, apanágio só posto em xeque agora pelas escaramuças da geopolítica.

Por trás da impressionante elevação dos preços do petróleo, estava a própria desvalorização da moeda americana, consequência da desvinculação entre dólar e ouro operada por Nixon e que reduzira abruptamente, em termos reais, os preços da commodity (para não mencionar as conjecturas de que a formação da Opep, que viabilizou o choque de preços, teria sido estimulada pelos próprios americanos para atormentar a vida de Alemanha e Japão, que davam então uma surra na indústria americana e eram bem mais dependentes que os EUA das importações do produto).

Por trás do crescimento de agora, uma indústria de petróleo e de energia desestruturada e desorganizada pela pandemia, inclusive logisticamente, situação agravada sobremaneira com o aumento da tensão na Europa e com o início do conflito entre Rússia e Ucrânia (para não falar dos crescentes problemas ambientais).

Isto posto, cabe perguntar o que se pode esperar desse novo capítulo da história do capitalismo, que parece, mas não é, um remake (indesejado e de mau gosto) de uma velha película. Nos desdobramentos daqueles buliçosos anos 1970, tivemos aquilo que o economista francês François Chesnais chama de “levante neoliberal”, com a difusão, mundo afora, dos preceitos do livre mercado: a demonização do Estado e dos serviços públicos, as políticas de austeridade, a intensa abertura financeira, a prescrição generalizada para privatizar o que quer que fosse que o
Estado ainda produzisse, etc.

Mas o final dos anos 1970 trouxe também aquilo que Conceição Tavares denominou, numa expressão feliz, de “diplomacia do dólar forte”, a saber, o choque de juros provocado por Paul Volcker, então presidente do FED. A brutal elevação da taxa básica americana aspirou a riqueza financeira do mundo, fazendo desaparecer da noite para o dia a especulação em torno da “fragilidade” do dólar e de sua condição de se manter como dinheiro mundial.

Os desdobramentos que se podem esperar da situação hoje vivenciada são muito diferentes e mesmo opostos. Por mais que isso não seja explicitamente dito, é evidente que o coronavírus colocou de novo o Estado no centro da arena, pois não se combate uma pandemia senão de forma coletiva, com políticas públicas, saúde pública, orientações preventivas, campanhas de vacinação. Além disso, em inúmeros países, o Estado foi chamado em socorro de parte substantiva da população, para que as quarentenas pudessem ser respeitadas. Por fim, a eclosão de um conflito militar aberto dentro do continente europeu parece jogar por terra de vez o conto da carochinha de que a globalização e o livre fluxo de capitais levariam o desenvolvimento a todos, irmanando nos mesmos interesses, sob a batuta do capital, todas as nações. Como esperar o fortalecimento do discurso e da prática neoliberais depois desse terremoto?

Com relação ao dólar, ainda que o governo americano mantenha em mãos as mesmas armas que antes, o ambiente não é dos mais favoráveis a uma nova rodada de diplomacia do dólar forte. Em meio à estagnação mundial agravada pela incerteza produzida pela guerra, adotar tal prática significaria dar um tiro no pé, pois seria o mesmo que adotar uma política de enfraquecimento planejado da economia real americana, já muito pressionada, principalmente no campo tecnológico, pela gigante China.

Ademais, do ponto de vista de sua hegemonia, não parece haver resultado bom para os EUA neste imbroglio europeu.

Se, por um milagre qualquer, se consegue impor uma derrota militar a Vladimir Putin, é evidente que isto vai aproximar o grande país da Europa do colosso chinês (que já vinha se aproximando, aliás, independentemente do resultado da guerra), o que não parece nada bom para a continuidade do domínio americano, incluindo-se aí o poderio do dólar. Se, como é mais razoável presumir, Putin se sustenta e consegue alguma concessão do bloco Otan/EUA, então vai se tornar explícita a derrota americana em seu papel de liderança mundial, com consequências similares no que tange à arena econômica e monetária.

Considerados todos esses elementos, não há como esperar um grande fortalecimento da moeda americana no próximo período. Ao contrário, tudo parece jogar do lado oposto. Mas será que se pode então simplesmente considerar que se trata aí da inversão pura e simples do que aconteceu nos desdobramentos da crise dos anos 1970, ontem demonização do Estado, hoje revigoramento do Estado, ontem fortalecimento do dólar, hoje enfraquecimento do dólar?

A análise seria bem mais fácil se assim fosse, mas o mundo não é tão simples. Entre um e outro ponto do tempo, uma crise de sobreacumulação sistêmica irresolvida se agravou sobremaneira. Assim, mesmo com a multiplicação e a proliferação mundo afora de expedientes espoliativos e cortes aos direitos de trabalhadores, não foi possível impedir, ao final da primeira década do novo século, a eclosão de uma crise financeira internacional de dimensão só comparável ao sismo de 1929-30. A forma de reagir à crise por parte dos Estados centrais só fez aprofundar as contradições que estão na base do sistema, pois implicou a continuidade do crescimento profundamente desequilibrado entre riqueza real e riqueza financeira que o caracteriza pelo menos desde os anos 1980.

A brutal elevação da desigualdade intra e inter países e a financeirização de tudo são apenas as expressões mais visíveis desses movimentos tectônicos da acumulação. Eis o pano de fundo sob o qual se deve analisar as consequências dos eventos de hoje. Sendo assim, uma série de outras variáveis precisam entrar em cena se quisermos falar do futuro do dólar e dos Estados nacionais. É preciso lembrar aí sobretudo o domínio inconteste das formas sociais capitalistas produzido por quatro décadas de desenfreada pregação neoliberal, auxiliada pelo empurrão decisivo da mídia corporativa em todo o globo.

Se Karl Marx estava certo ao chamar a atenção para o fetiche da mercadoria e ao indicar o capital financeiro como a forma acabada desse fetiche, o mundo talvez experimente atualmente a forma de existência mais adequada a esses conceitos que já se teve oportunidade de experimentar. Nunca o mundo foi tão visto como hoje pelos olhos da forma mercadoria, nunca a transformação do capital numa coisa que parece autogerar seu próprio crescimento foi um processo tão difundido. Assim, não é apenas a névoa da guerra que pode impedir que se vejam as coisas com clareza.

As brumas produzidas pela supremacia da mercadoria capital podem ser ainda mais oclusivas.

*Leda Maria Paulani é professora titular (e sênior) da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Rússia impõe também a guerra do cereal, por Mathias Alencastro.

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Moscou usa diplomacia do trigo para tentar unir o sul global

Mathias Alencastro, Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

Folha de São Paulo, 21/03/2022

A batalha sangrenta pelo controle de Mariupol ocupou as manchetes da imprensa internacional na última semana.
Face ao fracasso da sua estratégica inicial, que passava pela captura rápida e triunfal de Kiev, o Exército russo concentrou os seus esforços na ocupação da cidade portuária de 400 mil habitantes. Ela é porta de entrada para o mar de Azov, um dos dois pontos de acesso do comércio marítimo da Ucrânia, o quinto maior exportador mundial de trigo em 2019.

Se a indústria de petróleo e gás é a face mais visível da economia da guerra, porque ela organiza as relações entre a Rússia e o Atlântico Norte, a outra, o agronegócio, importa talvez ainda mais para
o futuro do sul global.

Rússia e Ucrânia voltaram a ser potências globais do agronegócio nos últimos 20 anos, depois de recuperarem a infraestrutura deixada em ruínas nos anos 1990.

Juntas, elas correspondem a um terço da exportação global de cereais. Para a Rússia, controlar o mar de Azov e os portos ucranianos do mar Negro a colocaria no comando de cerca de 30% da produção de trigo mundial e fortaleceria a sua posição na África e no Oriente Médio.

Em árabe egípcio, o pão é sinônimo de “vida”, e a região do mar Negro é a base da alimentação da bacia do Mediterrâneo desde a Grécia antiga. Mas, na África do Norte e Subsaariana, pelo menos desde 2011 o pão também é sinônimo de política.

A Primeira Árabe, ou a onda de protestos que derrubou regimes e desencadeou guerras civis, teve, na sua origem, a inflação dos preços dos produtos alimentares.

Se nos petro-Estados de Argélia, Nigéria e Angola o aumento do preço de grãos pode ser compensado pelo crescimento da renda de petróleo e de gás, todos os outros regimes dependem da Rússia para a sua sobrevivência política.

Analisando os votos na ONU, já é possível constatar que a questão alimentar pesa no cálculo dos países do sul global na hora de se posicionarem sobre a guerra. Junto com a batalha da informação, que a Rússia está vencendo fora dos países ocidentais, a diplomacia do trigo está dividindo a comunidade internacional.

Resta saber se a estratégia russa vai resistir à devastação causada pela guerra.

Por enquanto, a tensão comercial gira em torno dos milhões de toneladas de trigo que estão bloqueados nos portos do mar Negro. Mas é o impacto do conflito na capacidade produtiva ucraniana que vai determinar o preço dos bens alimentares para os próximos anos e décadas.

Com a sua “operação especial”, a Rússia transformou os agricultores em refugiados ou soldados. Seus tanques estão devastando as plantações e seus mísseis destruindo a infraestrutura. Não seria a primeira vez que o setor agrícola ucraniano seria sacrificado.

O Holodomor foi uma fome politicamente organizada por Stálin, que esfomeou propositadamente os ucranianos em 1932-33 para alimentar a força de trabalho soviética em outras latitudes e regiões. Anos depois, a operação Barbarossa, de 1941, tinha como principal motivação a conquista das regiões produtoras de cereais da Rússia pela Alemanha nazista.

Estaríamos assistindo a uma repetição da história, mas desta vez com 8 bilhões de espectadores-consumidores.

Martin Wolf: ‘Democracias e autocracias passarão a entrar em conflito’

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Em entrevista, o comentarista-chefe de economia do jornal Financial Times avalia ser inevitável uma divisão do mundo em dois blocos

Entrevista com Martin Wolf, comentarista-chefe de economia do ‘Financial Times’

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 20/03/2022

A globalização atingiu seu pico e começa, agora, a regredir, sobretudo com o impacto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, avalia o comentarista-chefe de economia do jornal Financial Times, Martin Wolf. Diante desse cenário, é inevitável que o mundo se divida em dois blocos – um liderado por Europa e EUA e outro, por China e Rússia. “Começamos a nos mover para uma era de conflitos geopolíticos entre democracias e autocracias. E isso pode durar bastante tempo.”

Para Wolf, o Brasil deverá ser um dos menos afetados por esse novo panorama. “Pelo tamanho e por suas exportações, o País será capaz de continuar comercializando com ambos os lados.” O comentarista diz ainda que o destino do Brasil depende apenas das decisões feitas por sua população e diz se preocupar com as opções de candidatos à Presidência. “Gostaria de ver um líder mais jovem, competente, que diz a verdade aos brasileiros e tenta uni-los para usar o imenso potencial que o Brasil tem.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Comparação com anos 70
É razoável imaginar que o choque energético e seu impacto econômico serão um pouco menores, porque a intensidade do uso do petróleo diminuiu. Parece improvável que a inflação suba tanto quanto naquela época. Mas temos um novo elemento: a alta no preço dos alimentos. Assim, para países importadores de alimentos e de energia, pode ser pior do que nos anos 1970. Não está claro quanto tempo esse choque inflacionário vai durar, e não sabemos qual será o impacto financeiro.

Na última vez, países como o Brasil foram incentivados a tomar emprestado dinheiro para gerenciar o problema do preço do petróleo. Isso levou à crise da dívida dos anos 80. Não estamos vendo nada disso por enquanto. Devo adicionar que essa guerra é mais preocupante do que qualquer coisa que aconteceu nos anos 70. Para mim, o uso de armas nucleares parece mais perigoso agora. De qualquer modo, tenho certeza de que veremos mudanças geopolíticas e geoeconômicas decorrentes da guerra nos próximos 10 ou 15 anos que agora não conseguimos antecipar.

Estagflação
O mais óbvio para mudar essa tendência de estagflação é reverter a alta do preço da energia e dos alimentos, que já vínhamos vendo e que se acelerou na guerra. Para isso, a guerra teria de acabar e as sanções teriam de ser retiradas. Além disso, as restrições na produção de energia, que já existiam antes da guerra, teriam de ser superadas. Isso teria de incluir a aceitação, pelos europeus, da dependência do gás e do petróleo russos indefinidamente. Acho que nada disso é provável. Para mim, parece claro que a estagflação – a combinação de crescimento fraco, se não recessão, com inflação alta – durará pelo menos dois anos. E tem uma boa probabilidade, devido a uma segunda rodada de efeitos, que se prolongue mais.

Globalização
A abertura da economia em todo o mundo, isto é, a tendência para o comércio crescer mais rápido que o PIB mundial, foi uma força poderosa entre 1980 e a crise de 2008. A maior parte dos países foi afetada por isso em um grau significativo. O Brasil, pouco, mas, na Ásia, a globalização foi incrível. Desde 2008, nós não ‘desglobalizamos’, mas o comércio internacional deixou de crescer mais rápido do que o PIB global. Isso aconteceu em parte porque o ritmo de crescimento das importações chinesas diminuiu, mas também porque a globalização das redes de fornecimento atingiu um grau meio exaustivo, dado que a política de liberação do comércio meio que parou. O último grande evento da liberação do comércio global foi a entrada da China na OMC há 21 anos. Aí, é claro, a crise de 2008 desacelerou a globalização financeira. Houve um enorme aumento da detenção transfronteiriça de ativos financeiros. O investimento estrangeiro direto continuou, mas não cresceu como antes. Isso em parte por causa do choque da crise financeira e, em parte, nos últimos sete anos, porque cresceu a tensão entre o Ocidente e a China.

A China é o principal ator no processo de globalização, e a relação comércio internacional e PIB da China está diminuindo desde 2008, porque negócios, pessoas e governos estão se tornando mais desconfiados uns dos outros. A disposição para se envolver no comércio internacional e criar cadeias internacionais de suprimentos, principalmente na China, diminuiu. Finalmente, tivemos a covid, que também foi um choque para as cadeias de fornecimento. Já bem antes da guerra, o processo de globalização está mais lento, se não parado. Se você considerar tudo isso, atingimos o pico da globalização, e isso está diminuindo. Agora temos a guerra. Guerras aumentam a ideia de que precisamos de autonomia estratégica e de estar assegurados de redes de fornecimentos.

Rússia e China
A Rússia não é um país muito importante economicamente, exceto pelas commodities. Mas a China tem apoiado a Rússia. Isso está tornando europeus e americanos mais hostis do que antes. A maior mudança será na Europa, porque os americanos já eram hostis. Na Europa, vinha havendo um comprometimento para a abertura de fronteiras. Os europeus acreditam que o comércio internacional seja uma base para a paz. Os alemães, principalmente, acreditavam que o comércio com a China era lucrativo e geopoliticamente frutífero, assim como eram suas crenças com a Rússia em relação à energia. Isso começou a ser questionado no último ano.

Os europeus estão mais preocupados com a propriedade chinesa de negócios europeus e a propriedade intelectual chinesa. A agressão russa, os consequentes embargos e a indicação dos chineses de que o apoio à Rússia é inevitável vão deixar a Europa desconfiada em relação à China. Esse processo está reforçando os laços entre os EUA e a Europa, fortalecendo a Otan. Não vejo uma harmonia ocidental tão grande desde o começo dos anos 80. Por isso, acho que haverá uma ‘desglobalização’ entre os países ocidentais e a Rússia e a China. Haverá dois blocos emergindo, um ocidental-central e outro de países próximos à China e à Rússia. Os outros países terão de decidir como vão manter relações comerciais. A maioria vai querer uma boa relação com ambos. O Brasil vai querer isso por razões comerciais, preservando sua autonomia. Vai ser uma confusão. Mas começamos a nos mover para uma era de conflitos geopolíticos entre democracias e autocracias. E isso pode durar bastante tempo e ser muito profundo.

Brasil
O Brasil deve ser uma das economias menos afetadas por esse cenário. É um país grande, que está longe dos atores principais. O país mais próximo é os EUA, e os EUA não vão interferir diretamente no Brasil. A China também não.

Pelo tamanho e por suas exportações, o País será capaz de continuar comercializando relativamente livre com ambos os lados. O Brasil nunca se tornou um país muito globalizado, sua economia industrial tem sido pouco dinâmica e pouco integrada. Minha visão sempre foi a de que 90% do que determina o sucesso do Brasil são as decisões feitas pelos brasileiros: a qualidade de seus líderes.

Há, porém, alguns perigos que o Brasil tem de evitar. O setor financeiro pode ficar instável. As empresas não devem se endividar em dólar. O Brasil precisa preservar a estabilidade monetária, não permitir que se escorregue para a inflação. O País tem ido bem nessa área, mas não sei quanto isso vai durar com o populismo. E, claro, o Brasil precisa de uma liderança melhor. Não acho que exista dúvida em relação a isso e me preocupo com os candidatos à Presidência.

Futuro governo
Esperaria que um novo governo Lula fosse melhor do que um novo governo Bolsonaro, que acho que é o pior que um governo consegue ser. Bom, claramente pode ser ainda pior, como um governo Putin. Nos primeiros anos do Lula, acreditei que ele estava fazendo basicamente tudo certo. Acho que as pessoas ficaram muito confiantes em relação a isso. E ele não fez o suficiente. Não tenho a mesma esperança que tinha por Lula há 20 anos. Gostaria de ver um líder jovem, com as ideias certas, competente, que diz a verdade aos brasileiros e tenta uni-los para usar o imenso potencial que o Brasil tem.

Brasil praticamente legaliza corrupção, diz executivo da Transparência Internacional.

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Chefe da ONG no Brasil vê desmanche de políticas pós-Lava Jato e questiona ampliação do fundão eleitoral para R$ 5 bilhões

Felipe Bachtold – Folha de São Paulo, 20/03/2022

A elevação do financiamento público aos partidos e o afrouxamento de controles sobre eles geram uma situação de corrupção “quase legalizada” no país, afirma o chefe no Brasil da Transparência Internacional, Bruno Brandão.

O braço brasileiro da ONG divulgou no último dia 9 um documento pedindo que organismos estrangeiros pressionem para que o país reveja o que chama de retrocessos institucionais, frisando a questão anticorrupção.

O documento cita, por exemplo, a ampliação do fundo eleitoral público deste ano para R$ 5 bilhões e a falta de transparência nos gastos e de mecanismos de prestação de contas.

No ano passado, a reformulação da Lei de Improbidade Administrativa, aprovada no Congresso, estabeleceu que os partidos não podem mais ser processados com base nessa legislação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tentou ainda fazer uma megarreforma no Código Eleitoral, que foi travada no Senado.

Brandão é crítico da abordagem ao tema da corrupção dada pelas três principais candidaturas à Presidência neste ano. Diz que a pauta está obstruída e “intoxicada por disputas narrativas e de interesses”.

Sobre o ex-juiz e pré-candidato Sérgio Moro (Podemos), diz que ele hoje se restringe ao falar de sua experiência pessoal, sem propostas concretas de políticas públicas.

O relatório da entidade, de 37 páginas, critica os três Poderes e menciona a anulação de casos da Lava Jato por causa do alegado elo com crimes eleitorais e uma série de medidas do governo Jair Bolsonaro (PL), como o pagamento das emendas de relator a parlamentares.

Quais as chances de o Brasil sofrer de fato retaliações internacionais por causa das questões citadas no relatório? Não é uma possibilidade: já está sofrendo. Em 2020, em medida sem precedentes, o grupo de trabalho antissuborno da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) criou um subgrupo para monitorar a situação do Brasil [em relação ao enfrentamento da corrupção]. Na próxima reunião plenária, em junho, entregará um relatório sobre esse monitoramento. Pode ter impactos muito relevantes do ponto de vista da inserção internacional do país.

Algumas das medidas questionadas [na OCDE] são fruto de um debate acalorado nos últimos anos sobre abusos da Lava Jato. É o caso da Lei de Abuso de autoridade e a reformulação da Lei de Improbidade. A Lava Jato não mostrou a necessidade de freio de arrumação em pontos em que ocorreram abusos? Certamente essa experiência trouxe lições importantes de vários aspectos que deveriam ser corrigidos. O próprio modelo de forças-tarefas [de investigação] é institucionalmente frágil. Haveria muito o que aprimorar. O que vimos não foi uma correção de erros, foi um desmanche.

A força-tarefa da Amazônia estava fazendo um trabalho importantíssimo e também foi desmantelada.
Vemos isso em uma escala assustadora. São marcos legais que o país levou décadas para construir.

Existe uma ideia disseminada de que o clamor anticorrupção de anos atrás gerou o enfraquecimento da política e consequentemente as crises institucionais de hoje. Como o sr. vê? Um sistema político baseado na corrupção sistêmica, de financiamento ilícito de campanha, distorce a representação democrática. Torna o sistema político uma ferramenta de atuação em prol de interesses de grupos privados. O resultado é um quadro de país campeão mundial da desigualdade social.

Sobre os efeitos da Lava Jato, o setor privado se adaptou rapidamente. Identificou uma mudança no ambiente de risco, das novas leis, e transformou suas práticas. Pouquíssimas empresas tinham sistemas de conformidade.
Óbvio que ainda há muito a avançar, mas houve uma transformação, o que não ocorreu no sistema político, que parece que não aprendeu nada.

Ou aprendeu a lição equivocada, de como se tornar mais imune à aplicação da lei. Os partidos não mudaram suas práticas, a democracia interna, de transparência. Ao contrário: passaram leis que reduziram ainda mais os controles sobre a utilização de recursos públicos pelos partidos.

Ampliaram enormemente o financiamento público [de campanhas]. Ele reagiu a toda a essa experiência da Lava Jato criando mecanismos para que se blindasse disso tudo, quase que legalizando a corrupção. É uma corrupção institucionalizada, por meio da explosão [da quantidade] de recursos públicos e da redução absurda dos mecanismos de controle.

Em 2018, a corrupção foi o grande tema da eleição, o que não deve se repetir neste ano. Qual foi o saldo, não só na figura do presidente, mas das bancadas, governadores eleitos na onda? País nenhum do mundo verdadeiramente avançou na luta anticorrupção apenas na via penal. É um processo muito mais amplo de transformação das relações entre o Estado, a sociedade e o setor privado. É fundamentalmente um processo de construção de cidadania.

Isso nunca esteve no debate, nas propostas desses grupos que se aproveitaram da indignação com a corrupção. Foram incapazes de promover um debate sério sobre reformas, sobre políticas públicas.

E quais as perspectivas para esse debate na eleição de 2022? Será muito mais olhando para o passado do que para o futuro. Será uma disputa de acusações, de narrativas sobre o que aconteceu em anos passados. Com muito pouco espaço para uma discussão de reconstrução de marcos legais e institucionais.

Vemos um revisionismo, em uma disputa de interpretações do passado.

A candidatura do PT poderia valorizar o seu histórico. Foi muito por crédito de seus governos que o Brasil fortaleceu mecanismos institucionais para o combate à corrupção. Hoje, as propostas vão no sentido de questionar esse próprio legado e adotar medidas de menor independência das instituições.

O governo Bolsonaro não tem nada mais do que uma retórica populista e autoritária para esse e outros grandes temas. Seu legado foi um desmanche sem precedentes da capacidade do país de enfrentar a corrupção.

As propostas desse grupo da Lava Jato são extremamente baseadas na experiência limitada desses atores no campo do enfrentamento penal do problema. E com pouquíssimas referências naquilo que é mais relevante: a construção institucional e de políticas públicas.

A atuação política do ex-juiz Moro, destacando seu papel no Judiciário, não prejudica a credibilidade do trabalho feito, já que politiza a questão? O primeiro movimento [dele] de participar de um governo com as credenciais de Bolsonaro, explicitamente autoritário e antidemocrático, já foi algo que prejudicou muito o legado dos feitos como juiz.

Não é bom para o sistema político e nem para o sistema judicial que exista a migração tão abrupta do Judiciário.

A própria Transparência Internacional defende medidas que impõem quarentena para diversas autoridades que almejem cargo no Supremo Tribunal Federal ou para entrar no sistema político.

O problema é que essa discussão é feita no Brasil a partir de interesses de ocasião para inviabilizar uma determinada candidatura, não pensando no modelo institucional.

O sr. considera que havia motivação política nas autoridades da operação desde o começo do trabalho? Não acredito que houvesse motivação originária. São agentes que dedicaram suas vidas a essa causa. Experimentaram a realidade do
nosso sistema de impunidade.

A operação parece ter feito cálculos políticos em alguns de seus movimentos porque as defesas eram políticas. E isso acabou levando a grandes erros e excessos.

O contra-ataque para destruição do legado da operação empurra também nesse salto dos agentes para o sistema político.

É muito prejudicial para o nosso sistema judiciário porque abre uma imensa brecha para questionamentos e deteriora a credibilidade, a independência das atuações.

A Transparência Internacional questiona no relatório a interferência do governo na Polícia Federal. O diretor-geral

já foi trocado pelo presidente quatro vezes. Houve queda na produtividade? Na chegada ao poder de forças populistas autoritárias, o que primeiro fazem é capturar as instituições de controle porque são limitadoras do governante. Bolsonaro seguiu à risca o roteiro de captura do Estado.

Isso tem um impacto gigantesco para o enfrentamento da corrupção.

Muito mais grave é o controle político de um braço armado do governo federal, que pode fazer ameaças muito além,
para nosso regime democrático.

O sr. se refere à possibilidade de se tornar, digamos, uma “polícia política”? É grande a preocupação que temos hoje, não só em relação à Polícia Federal, mas a outros órgãos, que ultrapassaram o patamar de blindagem de aliados e alcançaram o patamar muito mais grave, e perigoso, de perseguição de adversários.

Sempre houve disputa de espaços dentro das instituições, mas hoje se observa de maneira explícita um movimento de retaliações contra agentes que tentam confrontar interesses. Perdem suas funções, cargos, são expostos a sindicâncias. Isso assumiu um grau alarmante.

[Há] atuação de inteligência clandestina, ilegal, que monitora membros da oposição, vozes críticas na sociedade. O grande risco que temos é a utilização desse aparato de inteligência, de espionagem, sem controle no contexto eleitoral. Pode ser o pior cenário que tenhamos que nos preocupar.

É preocupante a utilização cada vez mais disseminada de instrumentos de vigilância digital, sem os marcos adequados de controle democrático. A legislação brasileira é muito falha para o controle dessas ferramentas. Permite a aquisição sigilosa delas. Não se sabe o que hoje está em posse das Polícias Civis, do Ministério Público nos estados. Não se tem um inventário do que é utilizado como ferramenta de monitoramento, vigilância e espionagem pelo Estado brasileiro.

Na série de reportagens chamada Vaza Jato [sobre diálogos de procuradores no aplicativo Telegram], um site publicou reportagem afirmando que havia uma aliança da Transparência Internacional com o então procurador Deltan Dallagnol.

O sr. faz algum reparo em relação ao contato que havia com ele? A Transparência Internacional tem diálogo e cooperação com os órgãos anticorrupção do Ministério Público em mais de cem países. Seria impensável que não tivesse com o Ministério Público brasileiro no contexto da Lava Jato. Assinamos um acordo de cooperação formal com o Ministério Público Federal para capacitação técnica, campanhas contra a corrupção, pelo controle social.

O foco da atuação da Transparência Internacional no contexto da Lava Jato foi na formulação de propostas de reformas, de políticas públicas, que levamos à discussão da sociedade. Não temos contato hoje porque são pré-candidatos.

BRUNO BRANDÃO, 39
Economista, é diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil desde 2016. É mestre em gestão pública pela Universidade de York e em relações internacionais pelo Instituto Barcelona de Estudos Internacionais

A quase irrelevância da ONU, por Oded Grajew.

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Na prática, organização é dirigida pelos cinco países que têm poder de veto

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do programa Cidades Sustentáveis e da Rede Nossa São Paulo

Folha de São Paulo, 17/03/2022

No último dia 28 de fevereiro, reportagem publicada nesta Folha trazia o título: “Embora sem ações efetivas contra a guerra na Ucrânia, ONU ainda é relevante, dizem analistas”.
Será? A Organização das Nações Unidas foi criada em 1945, logo após a 2ª Guerra Mundial, para “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, unir forças para manter a paz e a segurança internacionais e promover o progresso econômico e social de todos os povos” (trechos do preâmbulo da Carta da ONU).
Por que as Nações Unidas têm falhado tanto no cumprimento de sua missão? Vejamos.

Os órgãos principais da ONU são a Assembleia-Geral (AG), que reúne todos os países membros, e o Conselho de Segurança (CS), composto por 15 membros, dos quais 5 são permanentes: China, Reino Unido, França, Rússia e Estados Unidos. Cada um dos membros permanentes tem direito de vetar qualquer resolução do CS. Por ironia, os cinco países encarregados de manter a paz no mundo têm os maiores orçamentos militares e são os maiores fabricantes de armas do planeta.

O CS é, de longe, o órgão mais poderoso da ONU. É o conselho que recomenda à Assembleia-Geral admissão de novos membros e suspensão ou expulsão de integrantes. O secretário-geral da ONU é indicado pela AG mediante recomendação do CS.

Quando é de interesse de qualquer membro permanente do CS, até a Carta da ONU é desrespeitada. O artigo 27 do documento determina que, nas decisões do Conselho de Segurança, o país que estiver envolvido nas resoluções não poderia votar. A Rússia, contudo, votou contra a resolução que condenava sua invasão à Rússia e a derrubou por ter direito a veto.

As decisões que têm efeitos jurídicos e práticos cabem apenas ao CS. Na prática, a ONU é dirigida por cinco países onde cada um, por seu direito a veto, tem o poder de aprovar ou rejeitar qualquer ação ou medida proposta por outros países ou até pela maioria das nações. Tal governança paralisa e torna a ONU quase insignificante no cenário internacional.

Digo “quase” porque a ONU tem o potencial, por suas estruturas, conhecimentos acumulados e qualidade dos seus integrantes, de ser um ator relevante na governança global. Criou agências e instituições, elaborou propostas e convenções em muitas áreas. Tem um orçamento para 2022 de US$ 3,12 bilhões.

Entretanto seria necessário rever a sua Carta para torná-la uma organização democrática, ganhando legitimidade e legalidade para implementar suas decisões. Basta aplicar o artigo 109, que determina a instalação de uma grande conferência, para reexaminá-la. É uma grande oportunidade. Mesmo que as resoluções desta conferência (e qualquer mudança na Carta) tivessem, novamente, que ser aprovadas pelo CS, a força política das decisões barraria qualquer resistência às mudanças.

O mundo, mais do que nunca, precisa de uma ONU relevante, capaz de cumprir a sua missão, sua própria razão de existir.

O desmanche da Petrobras, e como pará-lo, por Antônio Martins.

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Um feixe de políticas esdrúxulas está desmembrando e inviabilizando a empresa pública que mais pode contribuir com a reconstrução do Brasil. O PPI, que fez os combustíveis dispararem, é a ponta de um iceberg. Vamos examiná-lo a fundo

Antonio Martins é editor de Outras Palavras

Outras Palavras – 15/03/2022

Talvez nada expresse tão bem o declínio da política institucional brasileira como a ausência de um debate real sobre os preços dos combustíveis e a Petrobras. As consequências do mega-aumento da última semana estão explodindo em toda parte. Em São Paulo, um botijão de gás chegava a ser vendido, no sábado, por R$ 150 – o que equivale a dois dias e sete horas de trabalho, dos que ganham salário mínimo. Quem foi a uma feira livre no fim de semana deu-se conta de que os preços subiram entre 10% e 20% e a relação entre a alta e a gasolina estava na boca de todos, nas barracas. Mas você não encontrará, nos jornais brasileiros ou na agenda de debates do Parlamento – nem agora, nem no momento de sua implantação — o mínimo sinal de um exame efetivo a respeito da política de Preço de Paridade de Importação, o PPI, que determina estes reajustes.

Ela está relacionada a outro assunto desaparecido: o desmonte da Petrobras. Vamos examiná-lo explorando a fundo quatro movimentos aparentemente esdrúxulos e fora de qualquer lógica, inclusive a empresarial e as “de mercado”.

São eles: a) os preços estratosféricos dos combustíveis; b) os lucros descomunais de nossa estatal petroleira; c) a transferência da quase totalidade destes lucros para os acionistas privados, especialmente fundos internacionais; d) como resultado final, a redução drástica dos investimentos da empresa e o abandono, por ela (na contramão do que fazem todas as suas congêneres), das atividades econômicas que podem garantir seu futuro. A essência do neoliberalismo, no plano político, é naturalizar as decisões, apresentando-as como “as únicas possíveis”. “Não há alternativas”, ensinou Margaret Thatcher. Nosso breve estudo tentará demonstrar o contrário.

* * *

Adotado em outubro de 2016, quando Michel Temer governava e Brasil e Pedro Parente dirigia a Petrobras, (PPI – preço de paridade de importação – elevou os preços dos combustíveis entre 71,5% (botijão do gás de cozinha) e 73,67% (diesel), desde então1. Os índices são 2,3 vezes maiores que a alta da inflação no período (30,87%), medida pelo IBGE. Apesar desta enorme disparidade, o PPI parece ter se tornado uma espécie de vaca sagrada. Bolsonaro afirma não ter poderes para alterá-lo. Nenhum dos projetos em tramitação no Congresso, sobre preços de combustíveis, o questiona (o PL 1.472/2021, aprovado pelo Senado em 11/3, chega a incorporá-lo em lei. O economista Nelson Barbosa, visto pela mídia como voz influente entre os conselheiros econômicos de Lula, julga sua lógica correta.

Este aparente consenso baseia-se num conceito ilusório e num truque retórico. Afirma-se a existência de um “preço internacional dos combustíveis”. E sustenta-se que contrariá-lo significaria oferecer “subsídios” – ou seja, levar o conjunto da sociedade a pagar por produtos que, além de mais consumidos pelos mais ricos, contribuem para o colapso climático. Diante da elevação internacional das cotações de petróleo, na sequência da guerra na Ucrânia, o país deveria, ainda que contrariado, resignar-se.

Ocorre que “preço internacional dos combustíveis” é uma ficção. Há, é claro, um preço de mercado para as compras e vendas internacionais de petróleo bruto. Mas esta tabela demonstra que os preços internos dos derivados praticados por cada país têm enorme variação entre si. Ainda que excluídos Venezuela, Irã e Líbia (onde as cotações são irrisórias), a gasolina, por exemplo, oscila entre US$ 0,13 [R$ 0,63] por litro e US$ 2,831 [R$ 14,43]. Ou seja, a variação se dá numa escala de 1 para 23. É óbvio, portanto, que não existe nem sombra de um preço “natural” para os combustíveis.

Um exame mais atento da tabela permite enxergar, grosso modo, dois padrões. Os países que dependem do petróleo importado – em especial os localizados na Europa – cobram caro pelos derivados. É o caso, por exemplo, da Suécia (US$ 2,294 ou R$ 11,69, por litro da gasolina), Alemanha (US$ 2,183 ou R$ 11,13), Itália (US$ 2,116 ou R$ 10,79), França (US$ 2,095 ou R$ 10,68), ou Espanha (US$ 1,90 ou R$ 9,69). Os Estados Unidos, que produzem e consomem muito, estão numa espécie de meio-caminho (US$ 1,178, ou R$ 5,70). Vale notar que, em todos estes países, embora mais alto nominalmente, o preço do combustível é muito inferior ao brasileiro, se ponderado o poder aquisitivo de cada sociedade2.

Mas nos países que exportam ou são autossuficientes em petróleo, as cotações são totalmente distintas. É o caso de Angola (US$ 0,337 ou R$ 1,71), Rússia (US$ 0,373 ou R$ 1,90), Nigéria (US$ 0,40 ou R$ 2,04), Malásia (US$ 0,491 ou R$ 2,50 ) Iraque (US$ 0,514 ou R$ 2,62 ), ou Colômbia (US$ 0,624 ou R$ 3,18)3.

Em que grupo está o Brasil? A descoberta das jazidas do pré-sal produziu, a partir de 2013, um grande salto da produção – de 2 para 2,9 milhões de barris por dia, em apenas oito anos. Mas esta formação geológica, onde estão algumas das descobertas petrolíferas mais importantes das últimas duas décadas, pode conter, segundo estudos independentes, 176 bilhões de barris ou mais – o que colocaria o país na condição de dono da terceira maior reserva do mundo. Graças a ela, nos tornamos, a partir de 2014, importantes exportadores de petróleo: vendemos 1,3 milhão de barris por dia, em 2021.

E há duas condições especiais. A primeira é a abundância incomum do pré-sal, de onde vêm cerca de 70% do petróleo brasileiro. Um dos campos, o de Búzios, tornou-se o maior do mundo em águas profundas. Só dele foram extraídos 674 mil barris num único dia de junho de 2020 – mais que toda a produção da Índia, ou do Egito. A previsão é chegar, em alguns anos, a 2 milhões de barris de petróleo ultraleve, o de melhor qualidade.

A segunda condição é a excelência tecnológica e capacidade de inovação da Petrobrás, reconhecida por seguidos prêmios internacionais. Em Búzios, por exemplo, a extração teve de vencer uma lâmina d’água de 1.900 metros. Graças a estes dois fatores, o petróleo é retirado a preços extraordinariamente baixos: entre US$ 5 e US$ 6 por barril no pré-sal – contra mais de US$ 40 do petróleo extraído por fragmentação rochosa (fracking) nos Estados Unidos.

Com base nestes fatos, o vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Felipe Coutinho, estimou, em novembro do ano passado, a gigantesca diferença entre os preços de produção do petróleo brasileiro e os impostos à sociedade pelo PPI. Coutinho notou que o preço médio de extração (lifiting) subia, após o acréscimo dos impostos e custos de frete, a US$ 20,16 o barril. Somando-se refino, chegava-se a, no máximo, US$ 27 o barril.

Sabendo que este equivale a 159 litros e que a cotação do dólar, à época, era semelhante à de hoje (R$ 5,10), chegava-se ao custo médio, nas refinarias da Petrobras, de R$ 0,90 por litro de derivado de petróleo. Com o aumento do último dia 10, a companhia passou a cobrar, dos distribuidores, R$ 3,86 pela gasolina e R$ 4,51 pelo diesel. Sua margem de ganho atingiu, respectivamente 328% e 401%.

* * *

Fica claro, por estes números, como é absurda e interesseira a ideia de que é preciso subsidiar os combustíveis, para reduzir o preço final pago pela população. Basta anular o PPI e adotar uma política de preços que leve em conta fatores como o poder aquisitivo dos brasileiros, o controle da inflação, a necessidade de desestimular o transporte individual e transferir recursos para a transição energética e, obviamente, o justo lucro da Petrobras.

Os preços baixarão de modo expressivo, sem que a sociedade tenha de dispender, para isso, um único centavo.
Mas quais seriam, então, os objetivos do PPI? Ele expressaria um desejo sádico do ministro Paulo Guedes, de obrigar 14 milhões de famílias a voltar no tempo e a cozinhar com lenha? Ou de impor novas perdas a categorias já submetidas a trabalho exaustivo – como os motoristas de aplicativos e os caminhoneiros?

Nos próximos capítulos, veremos que não. O PPI é a ponta de lança de um conjunto de políticas aparentemente disparatadas – mas necessárias, em seu conjunto, para eliminar o caráter de empresa pública da Petrobras. O efeito mais imediato é desnacionalizar o refino de petróleo. Os preços abusivos estimulam, desde já, empresas estrangeiras a importar combustíveis (o que é totalmente desnecessário). Mais adiante, viabilizarão a venda das refinarias brasileiras, já alardeada pela direção da estatal e iniciada, com a venda da RLAN baiana ao fundo Mubadala Capital, do emirado de Abu Dhabi.

Os objetivos a longo prazo são ainda mais graves e também estão sendo executados. Se perder seu caráter de empresa pública – se continuar afastando-se de atividades essenciais à sociedade, como a petroquímica, a produção de fertilizantes, a distribuição de combustíveis, a pesquisa científica, o estímulo à indústria nacional ou a transição energética — a Petrobras perderá, mais que a viabilidade econômica, o sentido de existir. A descoberta do pré-sal terá sido, para a empresa, a maldição que a destruiu. E, como veremos à frente, o Brasil terá se privado das imensas possibilidades que a riqueza petroleira oferece para a reconstrução nacional.

Eliminar esta brecha – matando a Petrobras – é um objetivo que Jair Bolsonaro já explicitou. Para alcançá-lo, precisa de Paulo Guedes, da aristocracia financeira e… do PPI. Aqui está um calcanhar-de-Aquiles: a derrota do bolsonarismo pode salvar a Petrobras. Mas a defesa da empresa pública, do que ela foi e principalmente do que pode vir a ser, é parte essencial da disputa decisiva que o Brasil viverá este ano. A ela se dedica esta série de textos

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1 Em outubro de 2016, o botijão custava R$ 69,21; a gasolina, R$ 4,458 e o diesel, R$ 3,76. A Agência Nacional de Petróleo ainda não divulgou os valores médios dos combustíveis, no varejo, após o mega-aumento. Para o cálculo, utilizamos os valores anteriores, acrescidos dos percentuais de reajuste nas refinarias determinado em 10/3 pela Petrobras.
2 A rende per capita dos norte-americanos é 5,95 vezes maior que a dos brasileiros. A dos suecos, 5,27 vezes maior; a dos alemães, 4,49 vezes; a dos franceses, 3,91 vezes; a dos italianos, 3,25 vezes; e a dos espanhóis, 2,87 vezes.
3Há uma única exceção, entre os grandes exportadores: a Noruega, em que os derivados estão dentro do padrão europeu devido ao uso consciente – e maciço – da riqueza petrolífera para financiar a transição energética.

Riscos do conflito

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A situação da economia internacional se deteriora todos os dias, depois de dois anos de grandes incertezas e instabilidades geradas pela covid-19, que culminou em milhões de mortes em todas as regiões do mundo, percebemos que as destruições tendem a aumentar em decorrência de uma guerra com potencial devastador, com destruições familiares, desestruturações produtivas, falências de empresas e grandes conglomerados e o incremento das exclusões sociais, com impactos negativos para quase toda a comunidade internacional.

Neste ambiente macroeconômico percebemos pressões inflacionárias em todas as regiões do globo, geradas pela desestruturação das cadeias produtivas, falta de matérias primas dos setores industriais, elevação dos custos de produtos alimentares e aumento dos preços dos combustíveis, cujos impactos são generalizados, gerando queda na renda agregada dos trabalhadores, redução dos salários e levando a diminuição do consumo interno, postergando a recuperação econômica e criando um ambiente de instabilidades e incertezas.

O aumento dos preços dos combustíveis tende a impactar sobre todas as cadeias produtivas, elevando custos de produção, encarecendo os transportes e os fretes, reduzindo os ganhos dos trabalhadores, inviabilizando modelos de negócios e gerando instabilidades que tendem a elevar as taxas de juros, encarecendo o crédito, contraindo os investimentos produtivos, postergando as contratações e materializando um ambiente recessivo. Numa economia, como a brasileira, combalida pelos desequilíbrios recentes gerados pela pandemia e a incapacidade do governo de criar agendas consistentes, os impactos da guerra tendem a gerar cenários preocupantes com fortes custos sobre a sociedade que se materializam em mais desemprego, mais exclusão e maior degradação social.

O ambiente global está marcado por grandes incertezas, o incremento do conflito militar e as sanções econômicas impostas pelas economias ocidentais podem gerar mais constrangimentos para a economia russa, levando-os a se aproximarem dos chineses e abrindo espaço para a reestruturação da geopolítica internacional, abrindo espaço para outros modelos monetários e fragilizando algumas nações e redesenhando o cenário internacional. Estamos vivendo um momento de grandes instabilidades políticas, desafios econômicos e os riscos de conflitos nucleares não podem ser desprezados.

Além do incremento dos preços do petróleo, cujos valores estão crescendo de forma ascendente, os alimentos, os fertilizantes e os insumos que entram na confecção de produtos primários devem passar por momentos de instabilidades, isto acontece porque a região em conflito é forte produtor de commodities, gerando aumento dos custos, além da redução das ofertas e pressão sobre os preços, impactando os produtores e os consumidores, reduzindo a entrada de divisas e fragilizando os setores produtivos.

O mundo globalizado aproxima todos os agentes produtivos em grandes cadeias de produção, integrando as finanças, dinamizando o comércio exterior, uniformizando costumes e comportamentos e aproximando as comunicações, todas estas conquistas estão ligadas aos avanços tecnológicos, que integram as nações, aumentam a concorrência e expõem os setores produtivos a grande competição. Neste cenário, os novos desafios econômicos estão claros, exigindo maior planejamento, aumento substancial em investimentos em capital humano e repensar a inserção da economia globalizada.

A pandemia e a guerra estão mostrando as deficiências estruturais da sociedade brasileira, somos uma nação rica, dotada de grandes riquezas naturais com forte potencial de crescimento econômico e possibilidade de melhorarmos as condições de vida da população. Neste cenário, precisamos construir uma nação centrada em um projeto de país, com clareza e consistência, deixando de lado políticas eleitorais inconsistentes e com forte degradação fiscal, que aprofunda nosso subdesenvolvimento e mostra nossa indigência moral que reproduz a desigualdade e compactua com as mais variadas formas de exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/03/2022.

Derrotar autoritários como Bolsonaro é prioridade, diz Steven Levitsky

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Autor que estuda fim da democracia defende coalizão ampla para oposição garantir vitória acachapante na eleição

Uirá Machado – Folha de São Paulo – 15/03/2022

Autor do celebrado “Como as Democracias Morrem”, o cientista político Steven Levitsky, 54, afirma que a presença de um líder autoritário no comando de países como Brasil ou Estados Unidos é uma situação emergencial e que removê-lo do poder deve ser a prioridade.

No caso do Brasil, segundo Levitsky, isso deve ser feito por meio de uma coalizão ampla, com partidos da esquerda à direita, para eliminar o risco de o presidente Jair Bolsonaro (PL) contestar o resultado e contar com o respaldo das Forças Armadas.

“A melhor maneira de garantir que os militares não fiquem tentados a embarcar numa aventura é por meio de uma derrota acachapante de Bolsonaro”, diz o professor da Universidade Harvard.
Para ele, os estragos causados por Bolsonaro nas instituições democráticas foram menores do que os provocados pelo ex-presidente Donald Trump. Mas não por um compromisso do brasileiro com a democracia, e sim por ter faltado a força necessária.

Enquanto Trump contou com o Partido Republicano, Bolsonaro passou a maior parte do governo sem legenda e sem base no Congresso, diz Levitsky.

A democracia sobreviveu em ambos os casos, pelo menos até agora, mas, para ele, isso não necessariamente significa sinal de vitalidade das instituições.

“Acho que às vezes nós botamos muita fé nas instituições. Tanto no Brasil como nos EUA, tivemos muita sorte de os autoritários que elegemos não terem construído maiorias como Rafael Correa [no Equador], Alberto Fujimori [no Peru], Vladimir Putin [na Rússia], Hugo Chávez [na Venezuela].”

No livro “Como as Democracias Morrem”, o sr. dizia não ter certeza de que a democracia americana sobreviveria a Trump. Ela sobreviveu. Foi uma surpresa? Bem, não. Os EUA têm um grande número de fatores que favorecem a sobrevivência democrática e dificultam a vida de um presidente autoritário. Temos uma oposição forte com instituições fortes, incluindo um Judiciário independente, uma mídia poderosa, o federalismo.

Mas é importante dizer que, após quatro anos de governo Trump, a democracia americana emerge muito, muito mais fraca do que antes. Ela não sobreviveu intacta. Estamos hoje numa situação mais precária do que estávamos quando o livro foi publicado, e a democracia americana está mais ameaçada.

Não seria possível argumentar que a reação institucional à invasão do Capitólio demarcou um limite claro e mostrou que a democracia não está em questão? A insurreição foi um sintoma da polarização extrema. Muitos países enfrentaram algum tipo de levante violento na história, e o fator relevante para o desfecho é a reação do sistema político, dos principais partidos.

Onde eles fazem uma defesa inequívoca da democracia, os perpetradores dos atos violentos tendem a ficar marginalizados e enfraquecidos. Foi o que aconteceu na Espanha em 1991 e na Argentina em 1987.

Mas onde os principais partidos políticos se omitem, toleram, perdoam, justificam ou até apoiam os que atacam as instituições, a democracia tende a se enfraquecer. Foi o que aconteceu na França em 1934.

Nos EUA, a resposta do Partido Republicano importa muito, e infelizmente não está parecendo boa.

O que se pode dizer do Brasil, onde pessoas que se manifestam contra a democracia recebem apoio do próprio presidente? Existem diversos paralelos entre o Brasil e os EUA. Bolsonaro parece que, de forma consciente, imitou Trump ao longo dos anos. Nós elegemos uma figura autoritária de direita em 2016, vocês fizeram o mesmo dois anos depois. Vivemos uma confusão, mas sobrevivemos e conseguimos removê-lo do poder, e tem uma boa chance de que os brasileiros façam o mesmo em 2022.

Mas também existem muitas diferenças. A principal é que Bolsonaro não tem um grande partido político por trás dele.

Ele conseguiu comprar apoio do centrão e de legendas pequenas de direita, mas não tem um partido bolsonarista verdadeiro e forte. Trump tinha 1 dos 2 maiores partidos dos EUA, o que o tornou muito mais perigoso.

Por outro lado, o controle do presidente do Brasil sobre os militares é maior do que nos EUA. Então existe a possibilidade de Bolsonaro mobilizar aliados militares de uma forma que Trump não conseguiu. Por enquanto, não parece que isso vá acontecer.

Quatro anos atrás, o sr. Disse em entrevista à Folha que era mais otimista sobre o futuro da democracia no Brasil do que muitos brasileiros. Continua otimista? Basicamente, sim. Mas, mesmo num cenário em que Lula vença, Bolsonaro não seja capaz de dar um golpe e um governo democrático se instaure, isso não vai ser a solução para os problemas do Brasil.

Isso elimina uma das maiores ameaças, mas um governo Lula teria muito trabalho a fazer para persuadir a maioria dos brasileiros de que o sistema funciona e de que a elite política pode atender as demandas da população.
Ou seja, se digo que estou otimista, não significa que o Brasil esteja a ponto de se tornar uma Suécia, mas eu acho que o regime democrático brasileiro vai sobreviver.

E quanto a um cenário em que Bolsonaro perca, não aceite o resultado e tenha o Exército a seu lado nessa contestação? Essa é a grande interrogação. Nos EUA, Trump não pôde contar com os militares, ao passo que, no Brasil, Bolsonaro talvez possa. A resposta a essa interrogação vai determinar o destino da democracia brasileira. Eu acho que há razões para acreditar que os militares vão se comportar como nos EUA.

Líderes militares no Brasil têm mostrado preocupação com a politização das tropas, houve renúncias no ano passado e eles não participaram da mobilização contra o Supremo Tribunal Federal. E, mais importante, militares em geral não intervêm na política se não tiverem um apoio social generalizado. Se Bolsonaro perder de maneira expressiva, ele vai estar muito isolado para atrair os militares.

Por isso sempre digo que Lula precisa construir uma coalizão muito grande. A melhor maneira de garantir que os militares não fiquem tentados a embarcar numa aventura é por meio de uma derrota acachapante de Bolsonaro.

Quando Bolsonaro era candidato, o sr. afirmou que ele pontuava em todos os quesitos como um líder autoritário. Essa análise mudou com ele como presidente? Não, mas é interessante notar que Bolsonaro atacou menos as instituições democráticas do que Trump. Trump controlou um partido grande, e isso lhe deu muito poder. O equivalente no Brasil seria ter uma base grande no Congresso, mas Bolsonaro ignorou isso na primeira metade do mandato.

Bolsonaro provocou danos inimagináveis à sociedade brasileira na saúde pública, na questão ambiental e em muitas outras áreas, mas ele não provocou tanto dano às instituições democráticas. Pelo menos não ainda. Mas não porque a gente tenha subestimado seus compromissos com a democracia, e sim porque ele tem sido um presidente muito fraco para causar grandes estragos.

A expressão “as instituições estão funcionando” se mostra acertada? Bem, as instituições funcionam até que elas deixem de funcionar. As instituições brasileiras são muito fortes. Elas estão entre as mais robustas da América Latina. Mas não é só que as instituições estejam funcionando. É que Bolsonaro, até agora, não teve a força necessária, ou talvez a habilidade necessária, para subordiná-las ou manipulá-las.

A sobrevivência da democracia não significa necessariamente que as instituições tenham funcionado. Acho que às vezes nós botamos muita fé nas instituições. Tanto no Brasil como nos EUA, tivemos muita sorte de os autoritários que elegemos não terem construído maiorias como Rafael Correa [Equador], Alberto Fujimori [Peru], Vladimir Putin [Rússia], Hugo Chávez [Venezuela].

Em seu livro, o sr. cita duas regras não escritas fundamentais para a democracia: a tolerância mútua [reconhecer a legitimidade dos adversários políticos] e a reserva institucional [comedimento no uso dos poderes]. Como zelar por essas normas quando o presidente é o primeiro a desrespeitá-las? Quando você tem um autoritário no poder em uma democracia presidencial como a brasileira ou a americana, você está em uma situação emergencial. Você está além de se preocupar com a erosão de regras não escritas. Você precisa se preocupar com a sobrevivência da própria democracia.

Então, antes de perguntar o que é possível fazer por essas normas, é preciso remover o presidente autoritário. Quando o presidente está violando essas duas regras de forma flagrante e reiterada, até que ele seja um ex-presidente, não há como restaurá-las.

Sempre que uma democracia conviver com uma força política expressiva que seja antidemocrática, discussões sobre normas de tolerância mútua precisam ir para o segundo plano até essa força ser isolada e derrotada.

O lugar onde essas normas não escritas podem ser reconstruídas é dentro de uma coalizão de oposição aos autoritários. Eu defendo a construção de uma coalizão da esquerda à direita contra as forças autoritárias tanto nos EUA como no Brasil.

Bolsonaro recentemente visitou Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, dois líderes autoritários. Isso sinaliza algo sobre o que o presidente brasileiro pretende fazer? É um sinal preocupante. Estamos num período de realinhamento no Ocidente e, dependendo de como a guerra na Europa evoluir, pode haver uma mudança geopolítica significativa. Vemos nas democracias ocidentais a ascensão de uma direita antiliberal que, cada vez mais, tem desafiado a ordem democrática.

Essa direita iliberal é transnacional. Seus líderes e ideólogos se falam, entram em contato com extremistas da América do Sul e do Leste Europeu. Tudo isso é assustador e diz muito sobre quão extremista o Bolsonaro é e sobre quão limitado é o seu comprometimento com as instituições democráticas liberais. Mas isso não nos diz quão bem-sucedido ele vai ser, porque nem Putin nem Orbán virão salvar Bolsonaro.

Em seu livro, o sr. dizia que uma crise poderia fortalecer líderes autoritários, mas a pandemia parece ter indicado o oposto para Trump e Bolsonaro. Houve casos em que alguns líderes se aproveitaram da crise para concentrar poder, como nas Filipinas, na Índia, na Hungria e em El Salvador, mas você está certo em relação a Trump e Bolsonaro. Essa crise de saúde pública não só não os beneficiou como parece tê-los prejudicado bastante.

Historicamente, crises econômicas, crises que tiram do governo a capacidade de entregar resultados para a população, elas tendem a enfraquecer tanto líderes democráticos como autoritários.

Nessa crise [da Covid], a melhor resposta provavelmente dependeria de aceitar o que dizem especialistas e dar poder a eles, mas Trump e Bolsonaro não admitem fazer isso. E o fato de eles terem recusado a expertise os levou a abdicar da possibilidade de concentrar poder e impor restrições, por exemplo.

Os dois tiveram uma das piores respostas do mundo. Nem todos os autocratas reagiram assim, mas o caso deles nos mostra que nem todas as crises têm o mesmo efeito em relação a líderes autoritários.

Muita coisa mudou desde que seu livro foi publicado e o sr. está escrevendo o próximo. Vai ser uma continuação? Vai ser um pouco mais concentrado nos EUA, embora também tenha uma dimensão comparativa. A questão principal é: por que partidos políticos tradicionais se viram contra a democracia? Nós argumentamos que, nos EUA, o desenvolvimento gradual de uma democracia multirracial nos últimos 50 anos provocou uma radicalização do Partido Republicano e o levou para um caminho autoritário.

Nós também olhamos para instituições contramajoritárias nos EUA. Os EUA têm uma enorme quantidade de instituições que minam a vontade da maioria. Então nós fazemos um apelo por uma reforma constitucional em direção a uma democracia mais democrática nos EUA.

Steven Levitsky, 54
Cientista político, mestre pela Universidade Stanford e doutor pela Universidade da Califórnia, Berkeley, é professor de governo na Universidade Harvard, onde também atua no Centro Weatherhead para Relações Internacionais e no Centro David Rockefeller para Estudos Latino Americanos. É autor, entre outras obras, de “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 2018), escrito com Daniel Ziblatt.

Imprensa usa o horror das imagens de sofrimento na guerra das narrativas, por Pondé.

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A sensibilidade idiota das redes tomou conta do jornalismo profissional

Luiz Felipe Pondé, Escritor e ensaísta, autor de “Notas sobre a Esperança e o Desespero” e “Política no Cotidiano”. É doutor em filosofia pela USP.

Folha de São Paulo, 13/03/2022

Uma pena que a cobertura da guerra da Ucrânia esteja, em grande parte, entregue à sensibilidade de classe média. Os jornalistas mais choram do que pensam.

É verdade, claro, que há uma violência em curso: um país agredido por outro, muito mais forte. Vidas civis destruídas. Mas o que há para além de “Putin, assassino”?

O Ocidente achou que conflitos importantes não mais aconteceriam —só na periferia desgraçada do mundo—, assim como até 2020 também se acreditou —ao menos os incautos— que pandemias tampouco matariam milhões.
Monumentos com as cores da Ucrânia, cantar “Imagine” numa praça em Budapeste —num país que vive sob um ditador que, aliás, é parte da Otan—, tudo isso é a prova de que a sensibilidade idiota das redes tomou conta do jornalismo profissional.

Guerras nunca levaram em conta o sofrimento civil. A sensibilidade barata das redes sociais faz parecer que profissionais de Estado pensam como a classe média, postando crianças e grávidas sofrendo.

Na verdade, eles usam essa sensibilidade de classe média a favor deles quando ela tem valor estratégico. Usam o horror das imagens de sofrimento humano para onerar o inimigo na guerra das narrativas. A Rússia já perdeu a guerra no Instagram.

Um dos argumentos mais comuns utilizados por Putin é que o Ocidente mente sobre seus bons sentimentos morais. Quando a Otan invadiu o Afeganistão ou o Iraque, não se trouxe à tona a destruição causada a população civil daqueles países porque esta era de interesse dos Estados Unidos.

Quando os americanos patrocinaram massacres nas guerras durante a Guerra Fria, tampouco isso importou.

Mesmos as misérias das ditaduras latino-americanas a serviço dos EUA na Guerra Fria não levaram em conta sentimentos morais. A Coca-Cola boicota ditadores africanos?

No caso das investidas da Otan junto aos países que antes eram da esfera do império russo e depois da União Soviética, o argumento dos russos encontra alguma racionalidade geopolítica.

Quando em 2008, em Bucareste, a Otan convidou a Geórgia a fazer parte de seu clube, a Rússia invadiu a Geórgia.

Quando, já na segunda década do século 21, a Otan ensaiou levar a Ucrânia para o seu clube, Putin retomou a Criméia. Ele anunciava sua resposta à Otan já ali, naquele início de 2014.

Países como Hungria, Romênia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, quase todos na fronteira oeste russa, sempre um tanto porosa ao longo de séculos, todos fazem parte da Otan. A argumentação de Putin é que os EUA usaram o desmonte da União Soviética para cercar a Rússia e torná-la um player irrelevante na geopolítica europeia e mundial. Para os russos, isso foi uma demonstração da pouca importância que os EUA atribuíam à possibilidade da Rússia se reerguer da derrocada da URSS.

Nada disso justifica a agressão a Ucrânia do ponto de vista moral. Mas é este mesmo ponto de vista moral bradado pelo Ocidente como seu trunfo que os russos entendem como uma mentira estratégica. Tudo que os americanos querem é manter a Rússia na condição de uma potência enfraquecida, à deriva do poder americano.

Para Putin, é como se os russos pusessem armas e exércitos no México, no Canadá e em Cuba —como aliás fizeram em 1962, na baía do Porcos. Na época, a Otan tinha mísseis na Turquia e considerava isso “normal”. A Turquia, país bem duvidoso do ponto de vista dos “valores ocidentais”, fazia fronteira com a URSS, e esta era a razão dela ter sido alçada ao clube dos notáveis do Atlântico Norte —ainda que ela esteja no Mediterrâneo.

Veremos se o ataque frontal de empresas ocidentais e do sistema financeiro internacional à Rússia conseguirá conter a violência na Ucrânia. Há que ver se a tentativa de cancelamento de uma potência militar —para alguns, detentora do maior arsenal nuclear no mundo— e econômica como a Rússia não causará danos terríveis à economia global e forçará o Ocidente a reduzir seu tom. A conta do boicote a Rússia chegará.

Putin parece disposto a escalar a situação. Ousado como é —para alguns, um louco—, ele aposta que o fraco governo Biden não tem condição de ir tão longe quanto a Rússia nessa guerra de nervos.

A incultura internacional do bolsonarismo, por Guilherme Casarões.

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Há quem veja genialidade, mas é só incompetência

Guilherme Casarões, Cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo)

Folha de São Paulo, 13/03/2022

Li com interesse o artigo do deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) nesta Folha (“O gênio estratégico de Bolsonaro”, 7/3). Trata-se, afinal, de uma rara defesa da errática política exterior do governo Jair Bolsonaro (PL). Chama a atenção o texto não ter sido escrito pelo chanceler. Ou pelo assessor internacional. Ou pelo ministro da Defesa. Mas que bom que alguém teve essa coragem.

O que, na superfície, parece uma discussão relativamente sóbria sobre política externa, não passa de um amontoado de ideias no melhor estilo bolsonarista: elogios ao chefe e críticas à imprensa embalados em palavras rebuscadas e temperados por teorias conspiratórias. Tudo para, no fim, fazer uma defesa sorrateira da invasão russa — e das reais predileções do presidente.

O mote central do artigo —de que nações se movem não por ideologias, mas por interesses— não está errado. Essa é a primeira lição de quem se envereda profissionalmente pelas relações internacionais. Não à toa diplomatas, acadêmicos e analistas se revoltam diariamente com a displicência do governo ao substituir considerações estratégicas, de longo prazo, pelos devaneios ideológicos de um populista e sua trupe.

Estamos diante do presidente que mais banalizou a política externa: antagonizou parceiros históricos por serem “comunistas” ou “globalistas”, fez campanha eleitoral para os colegas de extrema direita e retirou o país de todos os debates multilaterais relevantes a nosso povo. Isso para não dizer do negacionismo sanitário que nos envergonha diante do mundo.

É curioso o porta-voz do governo que fez do Brasil um pária internacional vir falar em interesse nacional como se sempre o tivesse defendido. Dá a sensação de que, às vésperas de uma eleição em que a derrota é quase certa, quisesse —mais uma vez— reescrever a história e adaptar a narrativa que anima a militância. Outro dia Jair Bolsonaro (PL) era o messias que levaria a paz para o Leste Europeu. Hoje, o presidente é o “gênio estratégico” que transita, habilidosamente, entre Washington, Pequim e Moscou.

Afirmações como essa desafiam a inteligência das pessoas. Não precisa ser íntimo do presidente para reconhecer seu desprezo pelo conteúdo e pela forma da diplomacia. Bolsonaro sempre falou o que lhe deu na telha, no tom virulento costumeiro com que se posiciona nas redes sociais ou no cercadinho do Alvorada.

E fico me perguntando se alguém da base governista realmente crê que os líderes das três maiores potências militares do mundo se deixam enganar pelas declarações vagas e ambíguas do mandatário brasileiro. É quase tão ingênuo quanto acreditar que as chancelarias estrangeiras já não estejam em compasso de espera para 2023, quando o próximo presidente tomará posse.

No afã de oferecer uma lição sobre realismo político, Feliciano, nosso chanceler de ocasião, se esquece do segundo mandamento das relações internacionais: na diplomacia, não há nada pior que a incerteza e a inconstância. Países querem saber o que esperar dos parceiros. No Brasil de hoje, nem o próprio governo sabe quem fala pela política externa. Há quem chame isso de genialidade. No fundo, é a mais pura incompetência.

Há quem veja genialidade, mas é só incompetência

Guilherme Casarões, Cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo)

A guerra na Ucrânia e a deriva da Europa, por Boaventura de Sousa Santos.

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Provocar Putin e incitá-lo a agir militarmente sempre foi o plano de Washington. Assim, poderia emparedar a Rússia frente à opinião pública e sabotar um entendimento eurasiático. União Europeia, sem liderança, caiu na armadilha…

Boaventura de Sousa Santos – OUTRAS PALAVRAS – 11/03/2022

Porque não soube tratar das causas de crise da Ucrânia, a Europa está condenada a tratar das suas consequências. A poeira da tragédia está longe de ter poisado, mas, mesmo assim, somos forçados a concluir que os líderes europeus não estavam nem estão à altura da situação que vivemos. Ficarão na história como as lideranças mais medíocres que a Europa teve desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Esmeram-se agora na ajuda humanitária, e o mérito do esforço não pode ser questionado. Mas fazem-no para salvar a face ante o escândalo maior deste tempo. Governam povos que nos últimos setenta anos mais se organizaram e manifestaram contra a guerra em qualquer parte do mundo onde ocorresse.

E não foram capazes de os defender da guerra que, pelo menos desde 2014, germinava dentro de casa. As democracias europeias acabam de provar que governam sem o povo. São muitas as razões que nos conduzem a esta conclusão.

Esta guerra estava a ser preparada há muito tempo tanto pela Rússia como pelos EUA. No caso da Rússia, é notória a acumulação de imensas reservas de ouro nos últimos anos e a prioridade dada à parceria estratégica com a China, nomeadamente no plano financeiro, com vista à fusão bancária e à criação de uma nova moeda internacional, e no plano de trocas comerciais onde são enormes as possibilidades de expansão com a Iniciativa do Cinturão e Rota por toda a Eurásia. Nas relações com os parceiros europeus, a Rússia revelou-se um parceiro credível, ao mesmo tempo que foi tornando claras as suas preocupações de segurança. Preocupações legítimas, se por um momento pensarmos que no mundo das superpotências não há bons nem maus, há interesses estratégicos que devem ser acomodados. Foi assim na crise dos mísseis de 1962 com a linha vermelha posta pelos EUA a não querer mísseis de médio alcance instalados a 70 km da sua fronteira. Não se pense que foi apenas a União Soviética a ceder. Os EUA também desistiram dos mísseis médio alcance que tinham na Turquia. Cedência recíproca, acomodação, acordo duradouro. Porque não foi possível o mesmo no caso da Ucrânia? Vejamos a preparação do lado dos EUA.

Confrontados com o declínio do domínio global que têm tido desde 1945, os EUA buscam consolidar zonas de influência a todo o custo, que garantam facilidades comerciais para as suas empresas e o acesso às matérias primas. O que escrevo a seguir pode ler-se em documentos oficiais e de think tanks pelo que se dispensam teorias da conspiração.

A política do regime change não visa criar democracias, apenas governos fiéis aos interesses dos EUA. Não foram estados democráticos que emergiram das sangrentas intervenções no Vietnã, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia. Não foi para promover democracia que incentivaram golpes que depuseram presidentes democraticamente eleitos em Honduras (2009), no Paraguai (2012), no Brasil (2016), na Bolívia (2019), para não falar do golpe de 2014 na Ucrânia. Desde há algum tempo, o rival principal é a China. No caso da Europa, a estratégia dos EUA tem dois pilares: provocar a Rússia e neutralizar a Europa (sobretudo a Alemanha). A Rand Corporation, conhecida organização de estudos estratégicos, publicou em 2019 um relatório elaborado a pedido do Pentágono, intitulado “Extending Russia”. Nele se analisa como provocar países de modo a que a provocação possa ser explorada pelos EUA. No que respeita à Rússia, lê-se: “Analisamos uma série de medidas não violentas capazes de explorar as reais vulnerabilidades e ansiedades da Rússia como meio de pressionar o exército e a economia da Rússia e o estatuto político do regime no país e no estrangeiro. Os passos que analisamos não teriam a defesa ou a dissuasão como objetivo principal, embora pudessem contribuir para ambas. Pelo contrário, tais passos são pensados como elementos de uma campanha concebida para desestabilizar o adversário, forçando a Rússia a competir em campos ou regiões onde os Estados Unidos têm vantagem competitiva, levando a Rússia a expandir-se militar ou economicamente, ou levando o regime a perder prestígio e influência nacional e/ou internacionalmente”.

É preciso saber mais para perceber o que se está a passar na Ucrânia? A Rússia provocada a expandir-se para depois ser criticada por fazê-lo. A expansão da OTAN para leste, contra o que tinha sido acordado com Gorbachev em 1990, foi a peça-chave inicial da provocação. A violação dos acordos Minsk foi outra peça. Note-se que a Rússia começou por não apoiar a reivindicação da independência de Donetsk e Lugansk depois do golpe de 2014. Preferiu uma forte autonomia dentro da Ucrânia, como está estabelecido nos acordos de Minsk. Estes acordos foram rasgados pela Ucrânia com o apoio dos EUA, não pela Rússia.

Quanto à Europa, o princípio é consolidar a condição de parceiro menor que não se aventure a perturbar a política das zonas de influência. A Europa tem de ser um parceiro fiável, mas não pode esperar reciprocidade. É por isso que a UE, para surpresa ignorante dos seus líderes, foi excluída do AUKUS, o tratado de segurança para a região do Índico e do Pacífico entre EUA, Austrália e Inglaterra. A estratégia do parceiro menor exige que se aprofunde a dependência europeia, não só no plano militar (já garantido pela OTAN) mas também no plano econômico, nomeadamente no plano energético. A política externa (e a democracia) dos EUA é dominada por três oligarquias (não há apenas oligarcas na Rússia e na Ucrânia): o complexo militar-industrial; o complexo do gás, petróleo e mineração; e o complexo bancário-imobiliário. Estes complexos têm lucros fabulosos graças às chamadas rendas de monopólio, situações privilegiadas de mercado que lhes permitam inflacionar os preços. Os objetivos destes complexos são manter o mundo em guerra e criar maior dependência dos fornecimentos de armas norte-americanos. A dependência energética da Europa em relação à Rússia era algo inaceitável. Do ponto de vista da Europa, não se tratava de dependência, tratava-se de racionalidade econômica e de diversidade de parceiros. Com a invasão da Ucrânia e as sanções, tudo se consumou como previsto, e a imediata valorização das cotações das ações dos três complexos tinham o champagne à sua espera. Uma Europa medíocre, ignorante e sem visão estratégica cai desamparada nas mãos destes complexos, que agora lhe vão falar dos preços a cobrar. A Europa empobrece e desestabiliza-se por não ter tido líderes à altura do momento. Ainda por cima, apressa-se a armar nazis. Nem se recorda de que, em dezembro de 2021, a Assembleia Geral da ONU aprovou, por proposta russa, uma resolução contra a “glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que promovem racismo, xenofobia e intolerância”. Dois países votaram contra, EUA e Ucrânia!

As negociações de paz em curso são um equívoco. Não faz sentido serem entre a Rússia e a Ucrânia. Deviam ser entre a Rússia e EUA/OTAN/União Europeia. A crise dos misseis de 1962 foi resolvida entre a URSS e os EUA. Alguém se lembrou de chamar Fidel Castro para as negociações? É cruel ilusão pensar que haverá paz duradoura na Europa sem cedências do lado ocidental. A Ucrânia, cuja independência todos queremos, não deve entrar para a OTAN. A OTAN foi até agora necessária à Finlândia, à Suécia, à Suíça ou à Áustria para se sentirem seguras e se desenvolverem? De fato, a OTAN devia ter sido desmantelada logo que acabou o Pacto de Varsóvia. Só assim a UE poderia ter criado uma política e uma força militar de defesa que respondesse aos seus interesses, e não aos interesses dos EUA. Que ameaça havia para a segurança da Europa que justificasse as intervenções da OTAN na Sérvia, em 1999, no Afeganistão, em 2001, no Iraque, em 2004, na Líbia, em 2011? Depois de tudo isto, será possível continuar a considerar a OTAN uma organização defensiva?

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

China ajudará Rússia até o ponto que não atrapalhe negócios com os EUA, diz analista.

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Para Kishore Mahbubani, Brasil poderia participar mais da mediação de conflitos internacionais

Rafael Balago – Folha de São Paulo, 12/03/2022

O fortalecimento recente da relação entre China e Rússia tem um motivo em comum: conter a pressão dos EUA. No entanto, o apoio de Pequim à Moscou, em um momento em que a economia russa sofre sanções pesadas, deve ser limitado pelos interesses da própria China, como não perder acesso ao mercado americano, avalia Kishore Mahbubani, pesquisador sênior do Asian Research Institute.

“A China tem bancos que negociam apenas com yuans, sem conexão com dólares. Esses bancos não podem ser alvo de sanções dos EUA. Mas os chineses precisam ser cuidadosos para garantir que suas empresas não entrem em conflito com as sanções americanas”, avalia.

Mahbubani aponta que os chineses devem estar analisando de perto como as punições à Rússia estão sendo aplicadas, para pensar como se proteger de medidas similares no futuro. “A China acelerará seus esforços para reduzir a dependência do dólar e se tornar menos vulnerável às sanções dos EUA. Quanto mais você usa o dólar como arma, mais você cria incentivos para países se afastem dele.”

Ex-diplomata de Singapura que chefiou o Conselho de Segurança da ONU, Mahbunani, 73, é autor de vários livros sobre a geopolítica da Ásia. Seu título mais recente, “A China Venceu?” (ed. Intrínseca), foi lançado no Brasil em 2021.
Ele conversou com a Folha por vídeochamada, a partir de Singapura.

Como avalia a aproximação recente entre China e Rússia? Os dois países estão sob grande pressão dos EUA. Conforme a China se torna mais forte, é natural que os EUA tentem pará-la. É uma regra pétrea da geopolítica, há 2.000 anos.

No caso da Rússia, há uma relação muito difícil com os EUA, porque ela sente que os americanos estão expandindo a Otan em seu quintal. Os dois países têm seus próprios problemas com os EUA e podem tentar cooperar entre si.

Ao combinarem esforços, elas podem aumentar a pressão sobre os Estados Unidos. Assim, uma parceria forte entre as duas é compreensível. Mas é importante enfatizar que esta relação não é uma parceria de defesa como a Otan, onde há mecanismos automáticos de defesa mútua.

A parceria é forte conforme a convergência de interesses. A China ainda acredita na integridade territorial dos países, mas não é do interesse chinês ver o colapso da Rússia, porque, se isso acontecer, a China ficará sozinha para lidar com os EUA. Mas, ao mesmo tempo, é uma vantagem para a China que a Rússia desvie a atenção dos EUA, de certa forma.

Quão longe a China pode ir para ajudar a Rússia, em questões como lidar com as sanções, por exemplo? A China tem um comércio muito maior com os EUA do que com a Rússia. E o mercado americano é muito mais importante para a China do que o russo.

Assim, de um lado, acho que a China cumprirá as sanções onde for preciso, como nos bancos chineses que negociam com dólares. Se eles negociarem com bancos russos, poderão ser sancionados também. Ao mesmo tempo, a China tem bancos que negociam apenas com yuans, sem nenhuma conexão com dólares. Esses bancos não podem ser alvo de sanções dos EUA.

Eles não são obrigados pela leis internacionais a aplicar as sanções americanas contra a Rússia, porque são sanções bilaterais, não multilaterais. Mas os chineses precisam ser cuidadosos para garantir que suas empresas não entrem em conflito com as sanções americanas.

A China tem condições de permanecer neutra neste conflito? A China está tentando ter um papel de mediadora. É algo muito importante, porque há poucas partes hoje que podem falar com Rússia e Ucrânia e terem a confiança de ambas. A Índia pode ter um papel similar também.

O conflito pode mudar o equilíbrio de poder entre EUA e China no futuro? É muito cedo para dizer. Você pode ter um cenário em que a Rússia fracassar por completo e colapsa como resultado da invasão falha da Ucrânia. A União Soviética colapsou em parte por falhar na invasão do Afeganistão. Ou pode-se ter um cenário em que a Rússia vença e saia mais forte.

Apesar disso, uma coisa que podemos dizer é que a China está estudando, muito cuidadosamente, cada sanção aplicada pelos EUA à Rússia e indo para a próxima questão lógica: como a China responderia a uma sanção similar? Por exemplo, uma das sanções que geram mais dano é o congelamento de reservas do Banco Central russo no exterior. Isso nunca havia sido feito antes. E as reservas da China são muito, muito maiores do que as da Rússia.

Neste sentido, penso que a China acelerará seus esforços para reduzir a dependência do dólar em seu comércio internacional, para se tornar menos vulnerável às sanções dos EUA. Quanto mais você usa o dólar como arma, mais você cria incentivos para países se afastem dele. E se o dólar perder seu papel de moeda para reservas globais, os EUA perderão seu exorbitante privilégio e não serão mais capazes de viverem além de seus meios, como têm feito.

O que o Brasil e outros países podem fazer para tentar resolver esta crise? É importante que o resto do mundo fale mais claramente e explique para EUA e Europa que os esforços para expandir a Otan até a Ucrânia são muito imprudentes. Em teoria, obviamente, o povo da Ucrânia tem o direito soberano de decidir seu tipo de governo. Mas há realidades geopolíticas que precisam ser levadas em conta. A grande lição da Ucrânia é que, quando países como Rússia e China dizem de forma muito clara que há linhas vermelhas que não devem ser cruzadas, elas devem ser respeitadas se você quer prevenir uma guerra.

Faz falta no mundo hoje que países poderosos como Índia, Brasil e outros Brics tenham um papel de mediação. Eu apoio o esforço do Brasil para se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. E o melhor meio de o Brasil aprimorar sua campanha por isso é se envolver em grandes responsabilidades internacionais, como tentar prevenir um conflito como o da Ucrânia.

Um eventual sucesso da Rússia em tomar a Ucrânia pode estimular a China a tentar algo em relação a Taiwan? As situações são muito diferentes. A Ucrânia é um país independente, membro da ONU, e com soberania reconhecida pela maioria dos países. Taiwan não é reconhecido como um país soberano e independente pela maioria dos países. E muitos governos que estabeleceram relações diplomáticas com a China, como o Brasil, reconhecem que China e Taiwan pertencem ao mesmo país. Neste sentido, você não teria o mesmo impacto gerado pela invasão da Rússia na Ucrânia. Ao mesmo tempo, a China será muito cuidadosa e não começará uma guerra em Taiwan de modo imprudente, a menos que Taiwan resolva declarar independência.

E como vê a aproximação dos EUA com Austrália, Japão e Índia, com a formação do grupo Ouad? Isso pode incomodar a China? O Quad é um grupo muito estranho. Oficialmente, ele nega ser uma aliança de defesa contra a China. Diz ter outras metas, como compartilhar vacinas, mas ninguém duvida que é um clube desenhado para contrabalançar a China.

A questão é: é melhor tentar isso com três ou quatro países? Ou criar grupos multilaterais maiores, como a Asean [Associação de Nações do Sudeste Asiático] está tentando fazer? A Asean tem buscado incluir a China em grupos multilaterais, e a experiência mostra que, quando você inclui a China, fala com ela, tem mais chances de ter a China como um membro responsável do sistema global, em vez de tentar excluí-la ou isolá-la. É uma abordagem mais sábia.

É como o modelo da União Europeia, de aproximar os países para evitar conflitos entre eles. Sim, mas a Asean é uma organização regional muito mais fraca do que a UE, embora tenha tido mais sucesso em prevenir guerras e conflitos na região. Nos últimos 30 anos, vimos mais guerras na Europa e em seus arredores, como na ex-Iugoslávia, na Líbia e agora na Ucrânia.

A União Europeia tem sido muito boa em preservar a paz dentro de suas fronteiras, mas muito ruim em compartilhar essa paz com os vizinhos. Nisso a UE pode aprender lições com a gente. A Asean tem sido muito boa em criar e integrar os países e seus grandes vizinhos em estruturas mais cooperativas. Suas reuniões de Cúpula da Ásia Oriental incluem EUA, Rússia, China, Japão, Índia, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. É uma melhor abordagem para o mundo se inspirar.

Kishore Mahbubani, 73
Nascido em Singapura, foi diplomata do país de 1971 a 2004 e ocupou postos nos EUA e na ONU, órgão no qual chegou a presidir o Conselho de Segurança. Depois, tornou-se professor da Universidade Nacional de Singapura e pesquisador do Asia Research Institute. Escreveu oito livros sobre relações internacionais, incluindo “A China Venceu?”.

A guerra é a economia por outros meios, por Raquel Varela.

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Raquel Varela – A Terra é redonda – 10/03/2022

O neoliberalismo é isto, Estado econômico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar

A entrada formal da OTAN nesta guerra implicaria o começo de uma terceira guerra mundial, em que não só não seriam salvos os ucranianos, como morreriam milhões de pessoas: uma catástrofe. Quem olha com desdém ou como ingénuos os internacionalistas que, como eu, se opõem a Vladimir Putin, à União Europeia e à OTAN, defendendo a solidariedade entre os povos, quem acha que a OTAN é uma solução, está, de fato, queira ou não, a defender uma chacina mundial.

Por isso devemos exigir que os nossos Estados não enviem tropas nem armamento nem decretem sanções – são atos de guerra que só levianamente e com total desconhecimento da história da Europa se podem apoiar.

O significado das sanções: empobrecimento geral dos trabalhadores no mundo

As sanções econômicas são uma arma de guerra que empobrece os povos. Abatem-se sobre todo o povo russo, ucraniano e europeu, penalizam as oposições na Rússia, castigam o povo ucraniano que aí vive – dois milhões; punem aqueles que na Europa lutam pela paz. Ajudarão, quiçá, a reforçar o nacionalismo grão-russo e a liderança de Vladimir Putin. O papel das sanções, bem como a anunciada venda de armas da União Europeia à Ucrânia têm um significado político central que pouco tem a ver com a ajuda humanitária ou a preocupação por parte da União Europeia com regimes autoritários, os apregoados “valores europeus” (que na Palestina, na Arábia Saudita, na Líbia, na Síria, na Polónia e na Hungria são metidos na gaveta e desaparecem amiúde dos media). As sanções são um sinal claro de que a União Europeia, dirigida pela Alemanha e sob a égide da OTAN, entrou indiretamente nesta guerra, e nós não fomos consultados.

A Rússia não é o Irã. Estima-se que as sanções impliquem uma contração de 11% do PIB na Rússia e de quase 1% no mundo, sendo que a massa de capitais ardidos acaba por ser maior a nível mundial – uma contração de 11% na Rússia é uma quebra de 150 mil milhões de dólares; de 1% no mundo são 750 mil milhões. O capital arde na fogueira da geoeconomia… Destroem empresas pequenas, aumenta a venda de armas; não há pão, sobram canhões. Uns choram, outros vendem lenços.

Esta contração implicou já que o preço do trigo subiu 50% e o barril de petróleo supera os 110 dólares. Num quadro de ausência de lutas do mundo do trabalho isto significa fome, devastadora nos países periféricos. E queda geral dos salários na Europa Ocidental.

As sanções não são boicotes organizados pelos trabalhadores da produção ou da cultura, e com alvos específicos. Como o seriam uma greve nas fábricas de armamento, ou se os estivadores ou os camionistas se recusassem a carregar armamento para a guerra, ou um grupo recusar-se a cantar na Rússia. Vieram atreladas ainda à censura, de jornalistas, de filmes e até de livros.

Guerra e economia ou economia de guerra

O capitalismo implica uma luta entre patrões e trabalhadores. Mesmo quando não se expressa em greves ou revoluções, exprime-se no dia a dia na luta pelos contratos, ou contra a exaustão laboral. Mas também implica uma luta entre empresas, corporações. E entre Estados que defendem as suas empresas. Ao contrário do que afirmavam os teóricos da globalização, os Estados não perderam força face a um panfletário “capital sem rosto”. Nesta competição doentia que arrasta toda a sociedade, impedindo a cooperação, os Estados são o instrumento fundamental quando a guerra passa a ser a economia por outros meios.

As sanções deixaram de fora 70% das exportações russas – petróleo, gás e combustíveis – de que depende a indústria alemã; são uma forma de expropriação dos bilionários russos (ontem eram “empresários” bons para investir, agora são “oligarcas” a expropriar). A suspensão do código Swift tem um efeito na Rússia – empurrá-la para fora da Europa (a Rússia é parte da Europa!) para uma aliança com a China –, o que encaixa com a visão expansionista da OTAN, que desenvolve no mar da China, com a Austrália, um cerco militar à China, semelhante ao que desenvolve na Europa de Leste com a expansão da OTAN. Os EUA acabaram de aprovar o maior orçamento militar da sua história (US $778 mil milhões), e só a duplicação do orçamento militar alemão anunciado (mais 50 mil milhões) coloca a Alemanha com mais investimento militar do que o orçamento militar russo total (60 mil milhões).

Ironia previsível da história: sob o governo mais “verde” da Alemanha anuncia-se na União Europeia a energia nuclear como verde (ficou claro agora que enquanto houver guerras a energia nuclear é uma ameaça à humanidade) e a remilitarização do país condutor da União Europeia. A restruturação produtiva (“transição verde”) “para fazer face
à crise de 2008, a ser levada até ao fim, implicaria a implosão dos direitos conseguidos pelos trabalhadores, do Estado social, a pretexto dos subsídios públicos às “energias limpas”, que – mesmo com externalização da parte suja para outros países – seriam insustentáveis. É neste quadro que, segundo vários pensadores alemães, surge a remilitarização da Alemanha – restruturação verde se possível, militar se necessário.

Uma Ucrânia entre os EUA, a União Europeia e a Rússia

A história é a chave da compreensão do mundo. Mas o segredo desta chave, desde a revolução industrial, é a teoria do valor-trabalho. A Ucrânia tem um governo neoliberal, com uma das populações mais pobres da Europa, onde se aplicaram as receitas do FMI (onde estão à mesma mesa EUA e Rússia). A Ucrânia perdeu 8 milhões de pessoas em dez anos para o exílio económico (emigrantes). Tem um PIB anêmico, porque é um país com 14% da população na agricultura, pequenos camponeses, e com a região industrial da bacia do Donbass em guerra civil, da qual fugiam investidores. A Ucrânia tem umas das terras mais produtivas do mundo (1/4 das terras negras do mundo), e, até 2020, era proibida a venda dessa propriedade, o que mudou então com Volodymyr Zelensky. Está em marcha um megaprocesso de venda e concentração de propriedade dessas terras superprodutivas.

A Ucrânia, que aprovou uma legislação que impõe o ucraniano como língua, num país bilíngue, também tem os seus “oligarcas” e o Governo é cúmplice da extrema direita – a Ucrânia é a base de treino militar europeu da extrema direita. Ao lado está a Polônia, cujo governo, apoiado pela extrema-direita, recebe agora o apoio militar da União Europeia e da OTAN, e que anunciou há dois meses a construção de um muro contra os refugiados. Pouco antes tinha-se aí realizado a conferência europeia da extrema direita.

Nada disto autoriza a conclusão de que a Rússia está em mera autodefesa ou a “desnazificar” a Ucrânia. A proteção dos russos de Donetsk e Lugantsk foi apenas uma desculpa perfeita e ansiada pelo Estado russo. Este vê-se a braços com a ameaça da sua própria desintegração e diminuição da sua área de influência. Acabou de esmagar, com a felicitação pública dos EUA, a revolta popular do Cazaquistão – no Ocidente chamaram-lhe “pacificação”. O Estado russo convive bem com a sua própria extrema direita, que em Moscou não é perseguida, ao contrário dos ativistas anti-guerra.

Não existe paz na guerra

Os impérios são antigos, mas o imperialismo é novo. Nasceu na época contemporânea em que o capitalismo passou de concorrencial a monopolista, no fim do século XIX, quando todos os espaços da Terra tinham sido conquistados e divididos – a partir da divisão colonial no congresso de Berlim de 1885 –, e tudo culminou na Primeira Guerra Mundial, que “ia acabar no Natal” e durou quatro anos. Até a Revolução Russa lhe ter posto termo. Imperialismo quer dizer que um capitalismo não pode sobreviver sem avançar sobre o outro.

Os que apoiam Putin, de um lado, ou a OTAN, de outro, vivem segundo o modelo da Guerra Fria, acreditam que revoluções são uma miragem ou contraproducentes, e que por isso a ameaça permanente da guerra seria condição para a paz. Ignoram que enquanto existirem impérios, dois, três, ou um, a guerra e o terror serão a realidade porque o imperialismo implica sempre, no quadro da concorrência, o expansionismo.

À crise de 2008, às medidas de gestão da pandemia e à ascensão da China junta-se uma crônica crise de superprodução (na Idade Média as crises eram de escassez, no capitalismo são de superprodução) que dura desde a década de 1970 e que foi sendo matizada com o brutal crescimento das dívidas públicas (o fim de Bretton Woods), os investimentos estatais nas empresas e a abertura do mercado chinês, que duplicou a força de trabalho à escala mundial. O neoliberalismo é isto, Estado econômico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar. Os liberais e a direita, que nunca saíram à rua por um direito trabalhista ou social, foram os primeiros a fazer rufar os tambores da guerra, pedindo a intervenção da OTAN.

Quando entre 2008 e 2012 estive, com vários colegas do mundo inteiro, em conferências de análise da crise (algumas na Alemanha), e dizíamos que a única forma de transformar o dinheiro impresso em 2008 em capital era com uma produção militar à escala de uma guerra mundial, éramos olhados como extraterrestres. A guerra e as revoluções aceleram a história – hoje estamos à beira de uma guerra mundial, e todos acham normal pronunciar-se a mais sórdida de todas as expressões: guerra mundial.

Erradicar a fome com uma economia planificada e dirigida às necessidades custaria ao mundo 45 mil milhões de dólares/ano, metade do que a Alemanha vai investir agora em armamento. Não foi Franklin D. Roosevelt que terminou com a crise de 1929. As taxas de desemprego de 1929 só foram revertidas na totalidade quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, em 1941. Foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, forças produtivas em fábricas de máquinas de destruição, que reverteu a crise de acumulação. Em 1937 o New Deal passou a War Deal, cortaram-se 800 milhões de dólares ao seguro social e aos trabalhos públicos, e aumentaram-se os gastos militares, que cresceram 400 milhões de dólares em 1939.

No meio desta imensa complexidade o essencial é isto. Nenhuma liberdade chegará na boleia de um tanque, russo, alemão ou americano. Foi assim em 1956 na Hungria, em 1968 em Praga, foi assim no Afeganistão e na Líbia, é assim na Palestina. É assim hoje na Ucrânia. Enquanto aceitarmos que os Estados são os únicos atores da história e não entrarem em cena as resistências populares e de trabalhadores, o que teremos é mais guerras. Os Estados são os responsáveis, não as populações.

*Raquel Varela, historiadora, é pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve História da Europa (Bertrand).

The Economist: Por que o declínio da indústria é mais acentuado no Brasil

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Em muitos países, a indústria também perdeu participação e reduziu os postos de trabalho, mas no Brasil a mudança não foi acompanhada de ganho de produtividade

The Economist, O Estado de S. Paulo – 06/03/2022

O povo de São Bernardo do Campo uma cidade próxima a São Paulo, é chamado de “batateiro”, ou plantador de batata.

No entanto, eles são mais conhecidos pela sua indústria. Quase um século atrás eles fabricavam móveis. Na década de 1950, começaram a produzir carros. Logo, a região que inclui a cidade, conhecida como ABC pelas iniciais de seus maiores municípios, tornou-se a maior zona industrial da América Latina. Um trabalhador de lá, Luiz Inácio Lula da Silva, chegou ao topo do sindicato dos metalúrgicos e, mais tarde, ao topo da política brasileira.

Mas quando a Urban Systems, uma consultoria, elegeu a cidade como o melhor lugar do Brasil para fazer negócios na indústria no ano passado, muita gente se surpreendeu. Em 2013, o ABC tinha 190 mil postos de trabalho formais na indústria (que inclui manufatura e processamento). Em 2019, tinha 140 mil, ou quase um terço menos. Placas empoeiradas de “vende-se” marcam algumas das 127 áreas industriais ociosas que a pesquisadora Gisele Yamauchi contabilizou em São Bernardo. Em 2019, a montadora americana Ford disse que estava deixando São Bernardo depois de quase um século no Brasil. Em 2021, o setor industrial formal da cidade se manteve estável, com quase tantos empregos criados quanto perdidos. Mas a transição para uma economia de serviços é clara.

De fato, São Bernardo faz parte de uma tendência mais ampla no País. Na década de 1980, a indústria atingiu o pico de 34% de participação no PIB do Brasil. Em 2020 foi de apenas 11%.

Em outros países, a importância relativa da indústria também diminuiu. À medida que as fábricas se tornam mais eficientes, menos pessoas são necessárias para fabricar cada produto, e o emprego na indústria tende a cair mesmo com o aumento da produção. Mas o que é notável no Brasil é que o crescimento da produção também foi medíocre. Entre 1980 e 2017, o valor agregado da indústria em termos reais cresceu apenas 24%, em comparação com 69% na vizinha Argentina e 204% no mundo.

As indústrias de base científica do Brasil também perderam participação no PIB mais rapidamente do que o esperado.

Na década de 1980, o Brasil produzia 55% dos insumos farmacêuticos que utilizava. Em 2020, isso caiu para 5%.

Quando a pandemia de Covid-19 criou uma enorme demanda por vacinas, o Brasil foi pego de surpresa. A falta de materiais atrasou o lançamento do imunizante.

Abertura
À medida que o comércio global se liberalizou depois de 1990, o Brasil abriu o que havia sido uma economia ferozmente protegida. Mas apenas um pouco. O país continuou protegendo grande parte de sua indústria doméstica da concorrência estrangeira, diz Fabiano Colbano, do Banco Mundial. Sucessivos governos se concentraram em alimentar a demanda doméstica, em vez de aumentar a produtividade. As empresas falharam em se integrar nas cadeias de suprimentos globais. As tarifas de importação foram mantidas altas e a regulamentação continuou a incomodar.

O prefeito de São Bernardo tenta tornar a cidade um lugar mais fácil para fazer negócios. Durante a pandemia, ele cortou a burocracia, baixou impostos e construiu mais estradas. Ele assegurou promessas de investimento em logística e em outras áreas que favorecem a indústria no valor de US$ 1,75 bilhão para 2021 e 2022 (o orçamento da cidade para 2022 é de US$ 1,2 bilhão). Mas em outras partes do Brasil, a covid-19 acelerou a queda da indústria.

O aumento dos preços das commodities ajudou o Brasil a atingir um superávit comercial recorde. Mas isso mascara um déficit de US$ 53 bilhões (ou 3,3% do PIB) em bens manufaturados. De fato, a dependência de commodities, cujas exportações no Brasil equivalem a 8% do PIB, normalmente tende a acelerar o declínio da manufatura ao fortalecer a moeda local, o que torna as importações mais baratas. A China há muito prefere comprar matérias-primas brutas e processá-las em casa. Em 2009, a China importou produtos alimentícios primários do Brasil no valor de US$ 7 bilhões, em comparação com produtos alimentícios processados no valor de quase US$ 600 milhões. Em 2019, os números foram de US$ 23 bilhões e US$ 5 bilhões, respectivamente.

O Brasil não precisa necessariamente de um grande setor industrial para prosperar. Em São Bernardo, os chãos de fábricas foram transformados em shopping centers e muitos moradores encontraram empregos como operadores de telemarketing. Alguns economistas argumentam que o declínio da indústria deu ao Brasil uma oportunidade de aproveitar seus pontos fortes na agricultura e na produção de petróleo.

No entanto, outros sentem que esse otimismo é equivocado. “O Brasil é o pior exemplo de desindustrialização prematura do mundo”, argumenta Rafael Cagnin, da Iedi, uma associação do setor. Os trabalhadores mudaram para empregos de serviços de baixa qualificação, em vez de empregos de alta tecnologia e qualificados. Em média, sua produtividade e renda caíram, diz ele. Em São Bernardo, os maiores salários de todos os trabalhadores com carteira assinada permanecem na indústria automobilística. Os salários médios reais em São Bernardo têm diminuído a cada ano desde 2017, inclusive nele.

Uma crise econômica entre 2014 e 2016 deu um choque tão grande no Brasil que qualquer tentativa de separar os efeitos da política industrial é difícil. Mesmo antes da covid-19, o desemprego estava no nível mais alto em 50 anos, segundo o Banco Mundial.

O declínio industrial pode ter consequências políticas. Nos Estados Unidos, a perda de empregos na indústria do Meio-Oeste pode ter levado alguns eleitores a votar em Donald Trump em 2016. No Brasil, as eleições de 2018 foram dominadas pela corrupção e as consequências da recessão, mas um estudo de dois pesquisadores brasileiros descobriu que as áreas mais afetadas pela liberalização do comércio na década de 1990 eram as mais propensas a votar em Jair Bolsonaro, o presidente populista. Ele até ganhou no antigo reduto de Lula em São Bernardo.

A próxima eleição presidencial, em outubro, pode ser crucial para a indústria. Bolsonaro não fez do estímulo à indústria uma prioridade, embora no final de fevereiro tenha prometido um corte de impostos para produtos industriais. Lula, que provavelmente concorrerá contra ele, disse que, embora as commodities sejam importantes, o Brasil precisa “ser forte na indústria, na ciência e na tecnologia”. Os próximos meses provavelmente envolverão uma corrida para conquistar os corações e os votos de lugares como São Bernardo.

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O Brasil e a guerra na Ucrânia, por Paulo Batista Júnior

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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é Redonda – 07/03/2022

Não cabe ao Brasil tomar partido nesse complicado conflito. E não é o que tem feito
Qual deve ser a posição brasileira diante da guerra na Ucrânia? Em sua maior parte, a mídia corporativa brasileira, seguindo caninamente a mídia ocidental, já escolheu um lado. Vem demonstrando uma parcialidade escancarada, comprometendo a sua obrigação de informar.

É um grave equívoco. Não cabe ao Brasil tomar partido nesse complicado conflito. E não é o que tem feito Brasília. Mesmo os adversários mais renhidos de Bolsonaro, entre os quais me incluo, precisam reconhecer que é correta a posição inicial do governo brasileiro, em especial do Itamaraty. Bolsonaro, como sempre, dá suas derrapadas. Resiste, porém, à pressão dos EUA e da mídia tradicional brasileira para que se alinhe ao lado ocidental.

Para entender o que está em jogo, é fundamental se dar conta de que o que estamos vendo não é primordialmente uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim uma guerra entre a Rússia e os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança militar comandada pelos Estados Unidos. A Ucrânia, coitada, entrou de gaiato no navio. Está lutando por procuração. Foi levada por lideranças nacionais levianas e incompetentes a uma confrontação com a segunda maior potência militar do planeta.

O Brasil não pode, evidentemente, apoiar a invasão de um país por outro. Precisamos nos ater à nossa posição tradicional de defender a busca de solução diplomática e pacífica para as desavenças entre países. Mas precisamos, também, entender o lado da Rússia. Como este tem recebido pouca atenção na mídia brasileira, vou tentar explicá-lo brevemente, sem a pretensão de cobrir todos os aspectos de uma questão que é, insisto, de extraordinária complexidade.

Toda a confusão começa com a ampliação da OTAN para o Leste da Europa desde os anos 1990, como vem sendo crescentemente reconhecido no Brasil. Em etapas, aproveitando a fraqueza da Rússia na época, a aliança militar ocidental foi incorporando países antes pertencentes ao bloco soviético (Polônia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária) e até mesmo países que resultaram da dissolução da União Soviética (Lituânia, Letônia e Estônia). Olhem o mapa da Europa e coloquem-se no lugar dos russos.

A crise se aguçou em 2014, quando o governo ucraniano de Viktor Yanukovich, próximo a Moscou, foi derrubado por um golpe de Estado, umas daquelas revoluções coloridas, semelhante à que se organizaria no Brasil e levaria à derrubada de Dilma Rousseff. Muito mais violenta, mas parecida. Não se engane, leitor, sobre o seguinte ponto:

houve ativa participação dos EUA (governo Obama) na derrubada de Yanukovich.

A pretensão americana de incorporar a Ucrânia à OTAN foi o passo fatal. Perseguida por Kiev depois do golpe de 2014, essa pretensão não poderia ser aceita por Moscou sem colocar em risco a segurança nacional da Rússia. Olhem de novo o mapa e vejam a distância que separa a fronteira com a Ucrânia da capital russa. Como se não bastasse a Estônia estar praticamente na esquina de São Petersburgo, a segunda maior cidade russa!

Mesmo assim, volto a dizer, o recurso da Rússia à violência e à invasão da Ucrânia é deplorável. Não pode ser coonestado pelo Brasil. Temos que ser solidários ao povo da Ucrânia, que passa por uma experiência terrível.

Pode-se perguntar: o fato de o Brasil não poder apoiar a Rússia e condenar a invasão prejudica os BRICS? Alguns apressados, já decretaram o fim do agrupamento. Isso não tem o menor cabimento. Posso dar o testemunho de alguém que participou do processo de formação dos BRICS desde o início, em 2008: os BRICS nunca foram, nem pretenderam ser, uma aliança política – ponto que explico detidamente no meu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, especialmente na segunda edição.

Os BRICS são um clube ou mecanismo de cooperação com propósitos muito importantes, mas limitados. O grupo avançou mais do que outros grupos semelhantes, tendo chegado a criar o seu próprio banco de desenvolvimento e o seu próprio fundo monetário. Mas é um mecanismo circunscrito primordialmente à área econômico-financeira. A Rússia sabe perfeitamente disso e não espera uma adesão do Brasil a suas posições políticas.

A posição inicial do governo Bolsonaro após a eclosão da guerra tem sido basicamente correta, como disse, mas não se deve esquecer que este governo deu um tremendo passo em falso num tema correlato, passo em falso que não tem sido muito lembrado agora. Refiro-me ao fato de que, em 2019, quando Donald Trump ainda era presidente dos EUA, Jair Bolsonaro celebrou a designação do Brasil como “aliado extra-Otan”. Isso não fazia sentido nenhum na época, e faz menos ainda hoje em face da confrontação Rússia-OTAN.

O Brasil deve ser um país não-alinhado. O que isso significa? Várias coisas. Precisamos, por exemplo, voltar a ser participante ativo dos BRICS, algo que se perdeu nos governos Temer e Bolsonaro. Temos que retomar e fortalecer as nossas relações com a América Latina e África, sem parti-pris ideológico, isto é, sem se preocupar se os governos dos outros países são de esquerda, direita ou centro. No entanto, essa abertura para o chamado Sul político não implica relações hostis com os Estados Unidos, a Europa ou o Japão. Ao contrário, o Brasil deve buscar relações, não digo de amizade, uma vez que, como dizia Charles de Gaulle, as nações têm interesses e não amigos, mas relações positivas e construtivas com todas as nações.

Claro que pouco ou nada disso será possível no governo Bolsonaro, em que pese os esforços do Itamaraty, que melhorou a sua atuação depois da substituição de Ernesto Araújo por Carlos Alberto França. Porém, sob novo comando a partir de janeiro de 2023, o Brasil poderá fazer tudo isso e muito mais. Poderá até desempenhar, se houver interesse das partes, um papel de pacificação do conflito no Leste da Europa, conflito que, infelizmente, não será resolvido tão cedo.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta capital, em 4 de março de 2022.

A nova etapa da gestão da barbárie brasileira, por Márcio Pochmann.

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Nas últimas décadas, proteção social foi deslocada do Estado para igrejas, ONGs e emendas parlamentares. Hoje, sem políticas públicas robustas, uma multidão de vulneráveis está sob o controle dos fuzis de grupos criminosos e milícias

OUTRAS PALAVRAS – 07/03/2022

A derrota imposta ao movimento das Diretas Já em 1984 circunscreveu a transição política para a democracia nos limites do colégio eleitoral definido pela ditadura civil-militar. Com isso, a agenda de reformas, conforme antecipadas pelo documento “Esperança e Mudança” de 1982 foi abandonada.

Tanto assim que as eleições de 1986 não foram chamadas para a elaboração exclusiva da nova Constituição. Embora cidadã, conforme muito bem definida por Ulysses Guimarães, a Constituição de 1988 foi dirigente, mas dependeu de sua regulamentação a ser realizada posteriormente, sem garantias de sua efetiva implementação, a depender das vontades do Centrão.

Ao mesmo tempo, a combinação imposta pela reestruturação no centro do capitalismo mundial, especialmente a partir dos EUA ao longo da década de 1980 com o fim da Guerra Fria (1947-1991), terminou por esvaziar as possibilidades de continuidade do desenvolvimento na periferia capitalista. Se adicionar ainda a forma mal feita com que o Brasil aderiu à globalização neoliberal desde 1990, chega-se às razões que levaram à ruína da sociedade industrial no país.

Naquele cenário, o papel do ciclo político da Nova República (1985-2016) se moveu em direção a diferentes fases de gestão da barbárie que resultaria da decadência da estrutura produtiva e, por consequência, do desemprego, das subocupações e imobilidade social que se seguiram à desestruturação da incompleta sociedade industrial. A primeira fase decorreu do acordo político de 1988 que viabilizou a Constituição cidadã, colocando para o Estado a centralidade das ações de promoção e proteção social (seguro-desemprego, universalização da previdência social, transferência direta de renda, entre outras).

A segunda fase transcorreu a partir dos anos 1990, com a regulamentação neoliberal da Constituição de 1988. Para tanto, o Estado foi submetido ao modelo gerencialista, que transferiu para o setor privado através de terceirização, privatização e organismos não governamentais, o compartilhamento da gestão da barbárie na forma de novos negócios.

Uma espécie de governo dentro do governo passou a operar no Brasil, dirigindo parte do gasto público e suprimindo, por consequência, a soberania popular sobre políticas públicas através de OSCIPs, ONGs, igrejas e até do crime organizado e das milícias. Além disso, o poder econômico privado foi se travestindo cada vez mais em poder político, cujos interesses diretos assumiram maior peso eleitoral e domínio sobre o legislativo.

A terceira fase emergiu das inéditas atividades do parlamento brasileiro, que passou a assumir as funções de gestor e fiscalizador do gasto público. Isso porque o avanço nas várias formas de emendas parlamentares, inclusive do chamado orçamento secreto, concedeu aos parlamentares a função de gestores de parcela crescente do orçamento público.

Em associação com instituições públicas e, sobretudo, privadas, grande parte dos representantes do poder legislativo nos três níveis (federal, estadual e municipal) passaram a manter relações diretas e crescentes do gasto público com os votos necessários para manter a reprodução dos seus próprios mandatos. Com isso, deu-se a rápida transformação do parlamento em câmara federal de vereadores, concentrada nos problemas locais, de suas bases políticas, cada vez mais deslocada das questões nacionais.

A quarta fase da gestão da barbárie gerada pela ruína da sociedade industrial provém da ação armada dos interesses dos negócios dominados pelo crime organizado e pelas milícias. Dado o controle que passaram a deter das populações vulneráveis, a gestão da barbárie parece seguir a força da violência patrocinada pelo fuzil.

A recente ampliação das regras para aquisição de armas e munições parece confirmar o quanto a dramaticidade da barbárie brasileira deslocou a gestão delas do Estado e do setor privado tradicional. Em alta, o poder do novo sistema jagunço se impõe no meio urbano, comandado pela convergência do banditismo social com o fanatismo religioso. Até quando?

Márcio Pochmann, Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

Recessão Global

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A economia internacional passa por grandes instabilidades e incertezas que tendem a gerar uma recessão com impactos desconhecidos, além da pandemia que degradou as cadeias globais de produção, aumentou os preços relativos e espalhou a inflação para todas as nações, degradando a renda e o salário dos trabalhadores, além disso, a guerra na Ucrânia está acelerando a degradação da economia global, aumentando as incertezas que podem culminar em um caos financeiro, desemprego em ascensão, destruição de empresas e de grandes conglomerados financeiros .

Neste ambiente, precisamos repensar políticas inócuas, fortalecendo as cadeias produtivas locais, integrando os setores estratégicos, renovando políticas energéticas limpas, recuperando o meio ambiente e construindo novos conceitos de sustentabilidade, combatendo setores econômicos degradantes, consolidando os investimentos produtivos e reconstruindo a noção de planejamento econômico. Momentos como este percebemos a importância da elite pensante que gerencia a nação, estes setores são fundamentais para repensarmos o crescimento econômico, abandonando discussões desnecessárias e vislumbrando um país melhor, mais sustentável e dotado de perspectivas melhores.

Neste momento percebemos que somos imensamente dependentes de setores internacionais, somos grandes produtores de produtos agrícolas, não definimos os preços das mercadorias que vendemos e somos vistos como um dos celeiros do mundo e, ao mesmo tempo, deixamos de produzir produtos fundamentais para angariar forças produtivas e diminuir nossa dependência externa. Precisamos de fertilizantes, máquinas, equipamentos e adubos que adquirimos externamente, dependemos de chips produzidos nos ambientes externos, dependemos de tecnologias que adquirimos globalmente e somos dependentes dos grandes produtores globais e pior, acreditamos que estamos no caminho certo.

Ganhamos grandes somas de recursos para adquirir produtos de luxo, mercadorias caríssimas para ostentar suas riquezas e, penalizamos o mercado interno com lucros elevados para os acionistas externos em detrimento da população, que empobrece a olhos vistos e se distancia do tão sonhado desenvolvimento econômico, aquele desenvolvimento que se caracteriza pela melhora das condições de vida da população, será que estamos na hora de repensarmos nosso futuro?

As crises são momentos de repensarmos as escolhas, neste momento devemos construir uma estratégia de desenvolvimento econômico, investindo nas capacidades construídas anteriormente, aproximando as universidades dos centros de pesquisa e dos setores produtivos, estimulando a reconstrução do complexo da saúde integrado as demandas do Sistema Único da Saúde. Além de valorizar órgãos públicos e privados que contribuem para o crescimento da economia, deixando de lado setores que falam constantemente das ineficiências estatais e são verdadeiros chupins que sobrevivem de incentivos e subsídios que garantem mais de 350 bilhões de reais anualmente, sem critérios, sem transparência e sem contribuir para o desenvolvimento da sociedade.

O mundo globalizado é marcado por grande concorrência, a competição é global e prescinde de estratégias claras de sobrevivência, a guerra em curso mostra a importância de repensarmos o modelo de inserção na economia global. Precisamos reconstruir estruturas produtivas sólidas e consistentes, necessitamos aproveitar o capital humano desenvolvido no decorrer dos anos, garantindo empregos de qualidade, salários dignos e decentes, garantindo condições decentes de sobrevivência, sem estas transformações estruturais o sonho do desenvolvimento estará cada vez mais distante e a indignidade da população estará mais presente no cotidiano da população nacional.

A crise gerada pela guerra demonstra os valores construídos pela comunidade internacional, nestes valores valorizamos o imediatismo dos ganhos materiais, da aparência física, da ostentação, do hedonismo e dos lucros crescentes da especulação financeira. Rememorando Adam Smith, o pai da Economia Política: “A ambição universal dos homens é viver colhendo o que nunca plantaram“.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/03/2022.

Produção Global

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O ambiente global está cada vez mais agitado e agressivo, de um lado percebemos o aumento das medidas protecionistas, novos subsídios de governos nacionais, a construção de instrumentos de planejamento e de intervenções crescentes nas estruturas econômicas e, ao mesmo tempo, percebemos o aumento dos preços relativos, com impactos inflacionários em todas as regiões, conflitos militares e desestabilizações geopolíticas, impactando toda a comunidade internacional.

Vivemos num momento de grandes instabilidades, medos e ressentimentos crescentes e a ausência de lideranças sensatas e com visão de longo prazo, ao contrário percebemos um excesso de voluntarismos, populismos fiscais e a incapacidade de compreender as dificuldades da sociedade global.

O mundo globalizado construiu uma nova realidade, os avanços científicos e tecnológicos estão moldando uma nova sociedade, a produção não é mais local, mas global. As economias estão todas interconectadas, a produção local viaja para todas as regiões do mundo, suprindo necessidades locais e, neste ambiente, as exigências são variadas e crescentes, exigindo alterações rápidas e imediatas, flexibilidades e agilidades constantes para acompanhar as transformações destas novas tecnologias.

As transformações em curso na sociedade global levaram os países asiáticos ao topo do cenário industrial, levando muitas nações industrializadas a perderem espaço neste cenário de grande competição e concorrência crescentes, criando caos em muitas nações, levando a desindustrialização em muitos países, gerando graves constrangimentos e desestruturação no mercado interno, alastrando o desemprego, aumentando o subemprego e a informalidade das condições de trabalho. A desestruturação produtiva está abrindo espaço para o desenvolvimento da uberização das relações de trabalho, sem direitos, sem perspectivas dignas, com rendimentos aviltantes e marcados pela precarização e pela degradação das condições de vida dos trabalhadores. Neste ambiente, percebemos o incremento de desequilíbrios emocionais, desajustes afetivos, transtornos psicológicos, além do aumento da depressão e do suicídio que crescem vertiginosamente.

A produção globalizada é feita em vários locais, cada região fica responsável por parte da produção, os insumos são importados e montados em algum país que tenha mão de obra barata e abundante, destacamos ainda, que o centro tecnológico dos produtos está concentrado nos países centrais, garantindo lucros elevados, maiores autonomia e soberania num mundo centrado na concorrência e na busca crescente por lucros estratosféricos.

A pandemia e as instabilidades políticas estão gerando grandes incertezas na economia internacional, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando os desequilíbrios geopolíticos que culminaram em conflitos militares, com isso, percebemos o incremento dos preços globais, gerando maiores custos produtivos nos setores alimentícios, combustíveis, fertilizantes e energia, levando as nações a repensarem as novas estratégias de inserção da economia mundial. Estamos num momento de grandes incertezas, os desafios são elevados e exigem lideranças altamente capacitadas para compreendermos a situação inédita que a economia internacional está atrasando.

Os exemplos são claros e evidentes, neste momento de caos nas cadeias produtivas, os países estão reconstruindo laços de industrialização, canalizando recursos para aumentar os investimentos produtivos, adotando políticas protecionistas, deslocando trilhões de dólares para garantir a autonomia de suas economias e retomando a sua soberania e o controle sobre seus setores produtivos.

A pandemia colocou em xeque o modelo produtivo global, aumentando a terceirização das atividades produtivas e aumentando a dependência de outras nações, fragilizando os Estados Nacionais e os trabalhadores, contraindo os salários, reduzindo as classes médias e empobrecendo as comunidades locais e contribuindo para o incremento das desigualdades que se caracterizam por todas as nações, gerando instabilidades e incertezas que alimentam as degradações econômicas, passou da hora de repensarmos os modelos econômicos dominantes.

Ary Ramos da Silva Júnior, formado em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/03/2022.

A posição chinesa, por Elias Jabbour

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A Terra é Redonda – 26/02/2022

A posição chinesa à crise na Ucrânia, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso

Compreender a posição chinesa no recente conflito ucraniano passa por perceber ao menos dois fatos que marcam nossa época. O primeiro, relacionada à meteórica ascensão chinesa e o surgimento do que chamamos de uma “nova formação econômico-social”, centrada em uma imensa base produtiva e financeira públicas cujas lógicas de funcionamento escapam a qualquer teoria do desenvolvimento. O segundo acaba de ocorrer, mas que vem sendo desenhado desde o fim de 2021, quando a Rússia decidiu colocar seus próprios termos à mesa em relação ao destino da Ucrânia como última fronteira de expansão da OTAN.

A combinação entre os dois fatos/fenômenos nos apresenta uma dupla desmoralização do Ocidente: a Covid-19 expôs os limites do capitalismo financeirizado frente à força do socialismo chinês; e a atual cartada russa marca a desmoralização política e militar dos EUA e, consequentemente da OTAN. Estaríamos, assim, diante de condições objetivas ao surgimento de um nova Paz Vestfália – inclusive já proposta pelas chancelarias russa e chinesa. No documento apresentado pelos dois países, fica evidente uma proposta à opinião pública de “refundação” do sistema internacional criado pelos europeus há quatro séculos.

É no contexto desta carta que os chineses – pedindo cautela aos envolvidos e sugerindo distância aos EUA – se posicionam. Sem alardes, sem palavras de ordem. Apenas levando à reflexão do quão é inaceitável e sem lógica racional as ondas de expansão da Otan. Qual seria a reação da opinião pública internacional caso Rússia posicionasse mísseis e armas nucleares em direção à Washington, utilizando-se das fronteiras dos EUA com o México, Canadá ou reabrindo uma base militar em Cuba?

E a ação militar russa. Ficamos entre a estática e a dinâmica. A estática é a preferência dos analistas e jornalistas ocidentais. Em dinâmica, a posição chinesa é no mínimo certeira. “Acredito que a operação militar da Rússia é uma reação de Moscou à pressão dos países ocidentais sobre a Rússia por um longo tempo”, disse Yang Jin, pesquisador associado do Instituto de Rússia, Europa Oriental, e Estudos da Ásia Central sob a Academia Chinesa de Ciências Sociais, ao jornal chinês Global Times.

A chancelaria chinesa é ainda mais objetiva. Segundo sua porta-voz, “as preocupações legítimas de segurança da Rússia devem ser levadas a sério e tratadas”. Há relatos de que Putin considera que a melhor solução é que a Ucrânia se recuse a aderir à OTAN e permaneça neutra. A opinião convergente não diz respeito somente ao caso ucraniano, mas também às constantes ameaças à soberania nacional chinesa impostas pela presença militar ocidental.

A China de hoje não é mais aquele país que recebia capital estrangeiro e fazia engenharia reversa. Acabou o tempo do low profile. Na mesma proporção, os legítimos interesses chineses em matéria de segurança nacional têm sido violados pelos EUA. Taiwan continua se armando e sendo atiçada a declarar sua independência. Uma aliança militar foi formada por EUA, Austrália e Reino Unido para conter (sic) um tal de “expansionismo chinês”. Novamente a broma.

É como se porta-aviões chineses estivessem passeando impunemente pelo golfo do México, mas ocorre o oposto. A China é constantemente provocada no estreito de Taiwan e no mar do sul da China.

Após a completa derrota e desmoralização dos EUA no Oriente Médio, e com a China ocupando rapidamente o espaço econômico aberto pelo lastro de destruição deixado pelo “ocidente”, restou ao atlantismo uma jogada arriscada e nada inteligente: unir a China e a Rússia em um jogo que nada tinha a ver com a conveniência ideológica pós-1949, cujas fissuras foram muito bem contra a URSS. O movimento hoje é oposto. Uma união eurásica está sendo imposta de fora para dentro dos territórios russo e chinês.

A posição chinesa, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso. Se a ascensão chinesa em si já era o grande fato de nosso tempo, junta-se a ela o xeque-mate de Putin sobre os EUA e a OTAN. Uma nova história começa no mundo. Talvez uma nova Vestfália.

*Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo)