Ascensão chinesa

0

Nos últimos anos percebemos grandes alterações geopolíticas internacionais, levando países coadjuvantes ao protagonismo, alterando as bases da sociedade global, mudando a estrutura de poder político e o arranjo produtivo. A globalização reestruturou as nações, alguns países estão perdendo espaço e outras nações estão ganhando força, gerando preocupações, medos e constrangimentos.

Dentre as economias que vem ganhando espaço na sociedade global, destacamos a China. De um país intermediário no cenário global, os chineses se tornaram, em curto prazo, um dos grandes jogadores internacionais. A transformação começou no final dos anos 70 com a adoção de um modelo de abertura econômica, atraindo investimentos estrangeiros em parcerias com grupos locais, onde os estrangeiros se comprometeram a transferir tecnologia em troca de um mercado consumidor de mais de 1 bilhão de pessoas. Destas parcerias, pensadas e construídas pelo governo, a China começou a se transformar no grande competidor internacional. Inicialmente nos mercados industriais de baixo valor agregado e, posteriormente, nos produtos de alta tecnologia, ganhando espaço, escala e produtividade, inundando mercados e tornando-se o maior exportador da economia global, desbancando países com tradição exportadora, como a Alemanha e os Estados Unidos.

A ascensão chinesa deve ser compreendida como a construção de um modelo que comunga forte intervenção estatal, políticas pragmáticas em comércio internacional, câmbio desvalorizado, fortíssimos investimentos em ciência e tecnologia, fortalecimentos das empresas estatais, enfoque no cenário global e a busca crescente de incremento de produtividade. Todas estas políticas foram somadas aos fartos empréstimos concedidos por instituições governamentais, com condições favoráveis, taxas de juros reduzidas e pagamentos no longo prazo.

Quarenta anos atrás a China não possuía nenhum conglomerado econômico e financeiro internacionais, atualmente os chineses contam com mais de noventa grandes conglomerados produtivos. Empresas inexpressíveis anteriormente se tornaram grandes grupos econômicos, nomes como Alibaba, Tencent, Baidu, Lenovo, Chery, Huawei, Sinopec, Xiaomi, ICBC, PetroChina, dentre outras. Muitas destas empresas o público brasileiro nunca ouviu falar, são grandes conglomerados econômicos e financeiros dotados de força política e grande capacidade produtiva, que contribuíram para que a China se tornasse o maior setor industrial mundial, com capacidade produtiva de mais de 4 trilhões de dólares. A China não é mais um país exportador de quinquilharias e produtos de baixo valor agregado, neste momento percebemos que os chineses são grandes atores econômicos e que buscam a liderança na economia internacional.

O crescimento econômico da China está transformando a geopolítica internacional, gerando medos e preocupações de países que estão amedrontados com o crescimento chinês. A ascensão chinesa está criando novas oportunidades para países como o Brasil, dono de grandes estoques de produtos primários e commodities, produtos necessários para garantir a segurança alimentar do parceiro asiático. Neste momento, cabe ao Brasil construir uma estratégia para garantir espaços privilegiados de comércio com o gigante chinês, exigindo transferência de tecnologia e fortes investimentos internos no desenvolvimento científico e tecnológico. Cabe a sociedade o fortalecimento de setores estratégicos, estimulando políticas industriais, exigindo contrapartidas viáveis e imediatas e a consolidação de instituições políticas.

Nos anos 80 os chineses vieram conhecer o modelo econômico que garantiu grande crescimento econômico para o Brasil no pós-guerra, desde então os chineses adotaram políticas parecidas com o modelo brasileiro, colhendo crescimento e espaços na geopolítica internacional. Neste ínterim o Brasil se perdeu na ortodoxia, esquecendo da produção e dos setores industriais, abrindo espaço para o crescimento das finanças especulativas, garantindo grandes lucros para os rentistas e nos transformando num paraíso dos juros altos e um inferno para os empreendedores e dos vocacionados para o desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 12/05/2021.

O Estado tem um papel na inovação? Por Ronaldo Lemos

0

Faz sentido o Brasil abrir mão de fabricar chips quando esse mercado está aquecido?

Ronaldo Lemos, Folha de São Paulo, 10/05/2021.

Uma das crises mais impressionantes dos tempos atuais é a escassez de microchips para a fabricação de equipamentos eletrônicos, computadores, celulares e mais. Essa crise deriva principalmente da batalha entre Estados Unidos e China em torno do avanço tecnológico.

No ano passado, os EUA baniram a Huawei e outras empresas chinesas de terem acesso a qualquer chip fabricado com equipamento ou propriedade intelectual americana.

O resultado dessa política foi um frenesi por parte das empresas chinesas adquirindo e estocando chips agressivamente, enquanto ganham tempo para desenvolver seu próprio parque industrial capaz de fabricar de forma autônoma esses componentes.

Essa briga tem tido desdobramentos inusitados. Por exemplo, o governo de Boris Johnson decidiu há poucos dias interromper a aquisição da gigantesca empresa de chips inglesa Arm pela americana Nvidia.

A história da Arm é incrível.

A empresa surgiu na cidade de Cambridge puxada por um esforço da BBC de promover educação digital nos anos 80. Esse esforço não só formou um contingente enorme de pessoas capazes de trabalhar com tecnologia, como criou um computador doméstico estatal de enorme sucesso na época, o BBC Micro, com chips fabricados pela empresa.

Esse primeiro esforço levou a inovações maiores. Na sequência a Arm desenhou o revolucionário chip Risc. A arquitetura desse chip está hoje presente nos componentes de praticamente todos os smartphones. Vale dizer que foi desenhada por Sophie Wilson, cientista da computação transgênero —pouco lembrada— que literalmente criou as bases para o mundo contemporâneo.

A Arm é hoje a joia da coroa do mundo dos chips. Isso porque especializou-se em desenhar chips, que são então fabricados por empresas no mundo todo. O governo de Boris Johnson —eminentemente liberal— não só impediu a aquisição pela Nvidia como está considerando uma possível aquisição estatal da empresa, isto é, reestatizá-la.

Esse movimento da Inglaterra, que simboliza estados nacionais entrando pesado em investimentos em inovação, virou tendência. A China já vinha colhendo sucesso atrás de sucesso derivado dos seus planos nacionais de desenvolvimento tecnológico, visíveis no Tik Tok ou no Clubhouse.

Os EUA agora entraram pesado no mesmo jogo. O plano do presidente Joe Biden vai na mesma linha, prevendo investimentos estatais massivos em tecnologia e inovação. É como se além dos esforços do GovTech (do uso da tecnologia por governos) o mundo esteja caminhando para um TechGov, a promoção massiva de tecnologias por governos, como aconteceu nos anos 1980.

Já no Brasil a notícia é em sentido diametralmente oposto. O governo federal decidiu simplesmente liquidar a Cietec, estatal que é a única empresa de chips do país e de toda a América Latina.

Faz sentido o Brasil abrir mão totalmente de fabricar chips quando esse mercado está enormemente aquecido? Faz sentido abrirmos mão do know-how e da logística desenvolvida pela Cietec? Faz sentido abdicarmos de uma planta fabril capaz de ser embrião para saltos maiores, como outras empresas como a Arm fizeram no passado?

Espero realmente que essas perguntas tenham sido feitas antes de se decidir pela liquidação da única empresa de chips do país.

Um país de covardes, por Lygia Jobim.

0

O que nos faz aceitar passivamente sermos a chacota do mundo e o gozo de um psicopata?

Lygia Jobim – Carta Maior – 09/05/2021

A julgar pelo que aconteceu no dia 06 de maio no Jacarezinho, quando uma operação da Polícia Civil, realizada apenas 12 horas após Jair Bolsonaro ter se encontrado com Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro e digno sucessor de Wilson Witzel, aquele que queria atirar na cabecinha, covardes não nos faltam, pois somos cada um de nós.

A operação deixou vinte e nove mortos, vários feridos e inúmeras crianças com traumas psicológicos que as acompanharão pelo resto da vida. O Governador defendeu a ação da polícia ao dizer que foi apenas um “fiel cumprimento de mandados”. Aqui temos a primeira dúvida: o determinado nos mandados era a execução sumária de pessoas que já não tinham capacidade de reação?

Segundo a Secretaria de Polícia do Rio de Janeiro a Justiça expediu 21 mandados de prisão de pessoas acusadas de tráfico de drogas. Dos nomes que ali constavam, sempre segundo essa Secretaria, apenas três foram presos e três foram mortos. Ora, se o número de mortos, excluindo-se o policial, foi 28, como explicar as outras 25 vítimas fatais? Cabe à Polícia Civil e ao Governador do Estado nos dizer o que ocorreu. Não queremos ficar na dúvida entre uma ação desastrosa por falta de preparo, ou uma ação bem sucedida de milicianos, seguindo ordens que numa cadeia de comando, tem origem no morador da Casa de Vidro.

O General Braga Netto, que em 2018 comandou a intervenção no Rio de Janeiro, conhece na intimidade, e melhor do que ninguém, o esquema das milícias e suas ligações com a Primeira Família. Nós sabemos apenas o que é de domínio público – as condecorações a milicianos presos, a vizinhança promíscua, os elogios públicos, os empregos à custa dos cofres públicos e os depósitos em conta de familiares. Bolsonaro também sabe o que ele sabe. Talvez por isso o mantenha por perto, mesmo quando, desobediente, vai tomar vacina escondido. Mas o General fica bem perto, mesmo vendo que, o que ele sabe cada vez é mais despudoramente exibido pelo Comandante Supremo das Forças Armadas ao adotar um linguajar miliciano e falar por exemplo em CPFs cancelados.

O General Mourão, ao saber do resultado da operação, antes de terem sido revelados os nomes das vítimas declarou que eram todos bandidos. Não, General. Isso é uma inverdade. Dos 21 nomes que deveriam ter sido presos – e não mortos -, segundo o El País, 15 ainda não foram identificados e devem ter fugido. Aqui me vem mais uma dúvida. General, o senhor errou apenas por preconceito ou por lhe ser, ao que parece, difícil identificar quem é bandido?

Cada dia se faz mais necessário afastar do poder, pela via constitucional, a erva daninha que nele se instalou e que vem se alastrando, lentamente, por alguns setores do país. A omissão de Rodrigo Maia e Artur Lira em aplicar o remédio previsto em lei é também responsável não só pela Chacina do Jacarezinho como pelas 420.000 mortes causadas, até esta data, pelo Coronavírus-Covid19.

Que medo é esse que nos transformou em poltrões? De onde saiu essa paralisia que nos faz cair mortos como moscas e não fazermos nada para fugir da triste situação de vítimas de um genocida. O que nos faz aceitar que a maioria da população se desloque para o trabalho espremida em latas de sardinha, às quais nos habituamos a chamar de ônibus, respirando o vírus que mata cada vez mais? O que nos faz aceitar trabalharmos confortavelmente em home office enquanto nos queixamos de sermos interrompidos pelas nossas crianças ou por afazeres domésticos? O que nos faz aceitar passivamente sermos a chacota do mundo e o gozo de um psicopata?

Responsáveis e covardes também somos nós que não os pressionamos, ordeira e pacificamente, nas ruas e nos contentamos em emitir notas de protesto e falar bonito para quem pensa igual. Temos que romper o medo de nos infectarmos e, com as precauções sanitárias que se fazem necessárias neste momento, ocuparmos as ruas com nossa indignação, como fazem nossos irmãos latino-americanos.

Plano Biden

0

Nos últimos dias a comunidade acadêmica, a mídia e os formadores de opinião estão se debatendo sobre a política apresentada pelo novo presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, suas limitações, seus desafios e seus impactos sobre os norte-americanos e para toda sociedade internacional, gerando questionamentos e reflexões sobre economia. Os bastidores dos grandes templos da economia mundial mostram a construção de um novo consenso, deixando de lado as ideias da ortodoxia e da austeridade para momentos de maior intervenção nos Estados Nacionais.

O Plano Biden está sendo comparado com as políticas intervencionistas nos anos 30, quando a Crise de 1929 alterou toda a dinâmica do sistema econômico, exigindo um novo consenso econômico, diante disso, surgiu um Estado mais interventor, com políticas mais ativas, com maior crédito e maiores investimentos em infraestrutura que auxiliou a recuperação da economia norte-americana, com impactos internacionais.

A política desenhada pelo presidente preconiza a criação de empregos para a classe média e trabalhadores com menor qualificação, apoiar as pequenas empresas, ampliação da educação pública, melhorar o acesso à saúde, prolongar o seguro desemprego, aumentar a vacinação, além de consertar rodovias, reconstruir pontes, atualizar portos, revitalizar o setor industrial com o intuito de superar a concorrência chinesa, criar empregos bem remunerados e treinar os trabalhadores para os empregos do futuro. O plano é bastante ambicioso, os gastos são estimados em mais de 4 trilhões de dólares.

A nova política econômica norte-americana está reformulando o pensamento econômico, com impactos para todas as regiões, retomando as atuações do Estado Nacional e estimulando os investimentos produtivos que tendem a alavancar a economia e atuar como um verdadeiro motor para a economia internacional. A perda de espaço dos Estados Unidos motiva esta política que, nos últimos anos foi vitimado por três fenômenos que enfraqueceram a economia: a crise de 2008, a pandemia e a ascensão da China.

Os recursos para os investimentos nos moldes do Plano Biden sairão do aumento da tributação de grandes empresas, algo em torno de 2,3 trilhões de dólares, que, no governo anterior, estes conglomerados foram agraciados com redução de impostos, ou seja, o governo Biden está apenas retomando às alíquotas de impostos adotadas anteriormente.

A reestruturação do sistema tributário é fundamental para garantir recursos para os serviços públicos, garantindo valores para os investimentos produtivos, reduzindo as desigualdades tributárias, estimulando emprego e crescimento da renda e do consumo, garantindo melhores condições de vida e perspectivas mais saudáveis para a coletividade. A sociedade internacional já se conscientizou de onde sairá os recursos para as políticas públicas que a sociedade demanda, infelizmente aqui, as políticas estão sempre em ritmo lento e seguindo por caminhos equivocados, incrementando a ortodoxia, reduzindo investimentos públicos, diminuindo repasses para a educação e limitando as pesquisas.

Internamente, estamos seguindo caminhos diferentes como os dos países desenvolvidos, reduzindo os auxílios emergenciais e limitando nossas potencialidades. No mundo desenvolvido, norte-americanos, sul-coreanos, japoneses e chineses, se digladiam na guerra da indústria de semicondutores, investindo trilhões em pesquisas e novas tecnologias, aqui, no Brasil, estamos liquidando a única empresa estatal de semicondutores e nos contentando com o papel de coadjuvante e importadores de tecnologias.

No mundo desenvolvido, a pandemia está alterando a agenda econômica, aumentando os tributos de grandes conglomerados econômicos e financeiros. Na sociedade brasileira deveríamos deixar de lado velhas ideias e pensamentos atrasados e perceber que o mundo está caminhando em outras direções, a contemporaneidade exige novos consensos, deixando de cultivar o atraso, a intolerância e a desigualdade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/05/2021.

Outra Década Perdida

0

Vivemos uma das maiores crises na sociedade brasileira, ao mesmo tempo, estamos no centro de várias crises sanitária, política, econômica e social. Diante deste momento de desagregação, exigimos políticas concatenadas e orquestradas entre todos os agentes econômicos e políticos, sem esta, dificilmente conseguiremos superar o maior desafio de nossa geração. O enfrentamento da situação exige maturidade da sociedade e, com isso, buscarmos compreender o que queremos para o futuro e, ao responder esta indagação, construiremos os consensos necessários para uma sociedade melhor e mais capacitada para este mundo de instabilidades e incertezas.

Sem a atuação do Estado dificilmente superaremos este momento de desagregação, necessitamos de políticas inclusivas, investimentos em ciência e tecnologia, obras públicas e combate às desigualdades, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatistas que se enriquecem em detrimento da maioria da sociedade. Estamos no momento de construirmos novos consensos, deixando ideias retrógradas e ultrapassadas, fortalecendo os serviços públicos e estimulando o retorno dos investimentos do Estado, tributando setores que sobrevivem com isenções elevadas e canalizando estes recursos na reativação das demandas e os consumos, sem estas medidas o país caminha para mais uma década perdida.

A adoção destas medidas de incentivo econômico, estímulo direto a demanda agregada, investimentos produtivos, incremento de recursos para a pesquisa, enfatizando saúde e educação, todas estas medidas devem criar um ambiente mais saudável para a atração dos investimentos e a reconstrução da confiança dos agentes, com impactos diretos sobre o sistema econômico. Se o governo adotar políticas de estímulo, como os países desenvolvidos estão adotando, no começo de 2022 a economia conseguirá dar sinais de crescimento consistente, mas ao observar a composição da equipe econômica, estas medidas de estímulo estão longe de ser prioridades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia (Unesp/Araraquara), professor da Unirp, coordenador do curso de Gestão Pública, modalidade EaD/Unirp e das Faculdades de Tecnologia de Catanduva e Rio Preto.

Bobagens de Guedes sobre saúde e pobres, por Vinícius Torres.

0

Ministro nada sabe sobre política pública e vive de fantasia caricata reacionária

Folha de São Paulo, 01;05/2021

“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.

Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.

O setor público gasta por ano 3,9% do PIB de saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS).
Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).

O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.

Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.

O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).

Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.

A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, na África ou na América Central.

O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.

Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.

Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.

O homem certo, por Sílvio Almeida

0

Bolsonaro e Guedes são feitos do mesmo material

Silvio Almeida Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 30/04/2021

A cada entrevista ou pronunciamento fica mais evidente que Paulo Guedes é o homem certo. Suas ideias, seu comportamento, sua gestão à testa do Ministério da Economia provam a cada dia que outro homem não estaria à altura —ou à baixeza, no caso— exigida para esse cargo. Nenhum outro ministro representa de forma tão essencial as forças políticas que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República.

O presidente da República e o ministro da Economia são absolutamente complementares e encarnam, ainda que em corpos distintos, um só espírito. São, portanto, apenas aparentes as suas contradições.

De um lado um sujeito cuja falta de modos é lida como “autenticidade”. Manda jornalistas se calarem, desdenha do sofrimento da pandemia e agride quem dele discorda. Encarna o autoritário, que muitos pedem.

Na outra ponta, o “intelectual”, reconhecido pelo mercado como grande gestor e homem de sucesso. É o campeão da liberdade, que o mercado deseja. Mas nada como os momentos de crise para erodir as aparências e fazer emergir das profundezas a natureza gemelar dos dois personagens. Quando acossados, o ódio que nutrem a pobres, a trabalhadores, a pequenos empresários e a aposentados emerge de forma primordial e sem freios.

Mas que espírito é esse que no governo brasileiro habita dois corpos e que tem o poder de se apresentar simultaneamente como defesa intransigente da liberdade e ameaça à democracia? Há alguns anos as ciências sociais, nas mais variadas áreas, têm se esforçado para compreender o fenômeno que alguns denominam como neoliberalismo autoritário. Acho que nenhum outro termo pode explicar melhor o “bolsoguedismo”.

O uso do termo neoliberalismo autoritário é controverso. O termo se refere às condições objetivas e subjetivas surgidas com as transformações no regime de acumulação e no modo de regulação do capitalismo provocadas pelas crises do fordismo e do Estado de bem-estar social. Tais mudanças levariam à atualização das formas de regulação estatal na economia e a processos de reorientação ideológica conduzidos pelas exigências da concorrência de mercado.

O que os mais diversos autores têm apontado é que desde as suas origens o neoliberalismo esteve relacionado com o esvaziamento da democracia, já que medidas para limitar o poder econômico são consideradas interferências políticas que ameaçam à liberdade.

A liberdade, na visão dos considerados teóricos do neoliberalismo, se materializa na ordem da concorrência, e não no contrato social. Trata-se, portanto, de construir o mercado blindado das demandas democráticas e de redistribuição igualitária, “livre” de constrangimentos sobre o investimento e a lucratividade capitalista. Isso explicaria o movimento para desmantelar os sistemas de proteção social, a oferta pública, gratuita e universal de saúde e educação e a facilitar a captura do orçamento público por interesses privados.

Mas há os que considerem um absurdo a vinculação entre autoritarismo e neoliberalismo e, para tanto, fornecem exemplos de governos e países democráticos que adotaram o receituário neoliberal.

Pierre Dardot denuncia a confusão teórica daqueles que acusam essa incompatibilidade. Segundo o autor francês, é preciso distinguir: 1) autoritarismo como regime político; 2) autoritarismo político neoliberal e 3) a dimensão autoritária irredutível do neoliberalismo. O primeiro não é exclusividade de governos neoliberais. O segundo é resultado da acomodação das políticas neoliberais a distintos regimes políticos, democráticos ou autoritários, o que é determinado pelas circunstâncias históricas. Já o terceiro é o que Dardot chama de “restrição do deliberável”, o que, em outras palavras, é a decomposição das instâncias de participação popular por meio de “reformas” e uso de medidas jurídicas excepcionais, especialmente no que se refere a decisões econômicas.

Guedes e Bolsonaro personificam a versão brasileira do centauro do neoliberalismo, que é metade liberdade econômica para o andar de cima da pirâmide social e metade repressão e violência para o andar de baixo. De vez em quando somos forçados a lembrar que é um único ser, com os mesmos projetos e o mesmo negacionismo da realidade social. No fundo, quem quer a liberdade de Guedes pede por autoritarismo; quem quer o autoritarismo de Bolsonaro é porque demanda a liberdade de Guedes.

Terceira via é miopia, por Ricardo Semler

0

A ideia de aproveitar caras novas num setor sórdido nunca deu certo

Ricardo Semler
Empresário, sócio da Semco Style Institute e fundador das escolas Lumiar; ex-professor visitante da Harvard Law School e de liderança no MIT (EUA)

Folha de São Paulo, 27/04/2021

Vez ou outra, eu dava um pulo no centrão de São Paulo para botar a prosa em dia com o Antônio Ermírio de Morais.

Saíamos para andar do jeitinho que ele gostava, de braços dados. Ele contava que a pior experiência da sua vida tinha sido se candidatar ao governo do estado. E dizia: “Não sei ser freira em bordel”.

A ideia de aproveitar caras novas para insuflar ar fresco num setor sórdido não é nova. E nunca deu certo. Acelera-se agora a corrida por um salvador da pátria, alguém que evite essa “escolha perversa”. Serve o Luciano Huck, mas serve também o Danilo Gentilli —em breve, o Felipe Neto.

Os governadores famintos, sejam eles paulista ou gaúcho, também se oferecem. Ocorre que preparo para a Presidência requer 15 ou 20 anos de experiência profunda com deputados, juízes, polícia, povo. Significa comer muita empadinha no morro.

Por isso, Antônio Ermírio não era opção, Olavo Setúbal foi um prefeito biônico que não deixou marca alguma e palhaços como Berlusconi e Sarkozy, ou mesmo o sério Bloomberg, maldizem o dia em que viraram terceira via.

Agora, com o sapo barbudo afiando a lâmina, a coisa entortou de vez. Ninguém imaginava mais um embate do PT com a direita.

Este país continua rodando no mesmo lugar há décadas. Somos agora o 85º no mundo em renda real per capita —com dólar a quase R$ 6— e éramos o 76º, com dólar a R$ 3, nos tempos do PT. Uma vergonha, tanto lá como cá. Parte dessa culpa é da elite, que sugou renda para si e financiou conservadores para lhes representar desde 1964. Emprestou uma bula simplória: fazer o bolo crescer para cada fatia ser mais gorda, para todos. O chamado “trickle-down economics”, que caducou desde a era “tech”.

O empresário costuma ser bom vendedor e ter uma inteligência lógica alta. Quase sempre com uma inteligência emocional e afetiva constrangedoras. Soa pitoresco achar que essa camada, de cultura rasa e visão política limitada, seja capaz de propor um candidato de terceira via.

Exemplo: 1500 representantes da elite econômico demoraram mais de um ano para escrever um portentoso manifesto que sugere máscaras e distanciamento. Ora, em vez disso poderiam ter feito uma única reunião e dedicado exatos 11 dias de lucro das empresas da Fiesp e da Febraban para comprarem 500 milhões de vacinas. Em agosto do ano passado.

Teriam gerado retorno de 20 vezes no PIB deste ano. Ou seja, falta até inteligência lógica-matemática.
Não é diferente quando empresários ovacionam o presidente, não precisando sequer do Zé Carioca da Havan como “cheerleader”.

O Brasil só tem uma solução: redistribuição de riqueza enquanto cresce e não depois. Seja por impostos sobre fortunas, seja por pisos mínimos de seguridade social. Este é um país que precisa de caminhos socializantes, no sentido europeu.

Quem ainda usa o termo comunista é um Neandertal —não existe mais um sequer no Brasil, nem no PSOL. Comunista é a China, que tem 150 cidades novas e modernas com 1 milhão de pessoas cada, pobreza em queda vertiginosa e uma economia que irá desbancar os EUA como a maior das potências.

Os mais desinformados acham que o PT inventou a corrupção e querem evitar a sua volta. Foi, sim, uma decepção imensa o PT, ou o PSDB, terem sido covardes e persistido na tentacular corrupção que já existia —mas que continuou inalterada desde então, ainda hoje com o Centrão S/A Balcão de Negócios no poder absoluto.

O governo atual vai se beneficiar da recuperação econômica que virá em 2022, polarizando com o PT. Fica a sugestão para colegas de elite: hora de repensar se o antiquado urdimento de uma terceira via ainda é uma estratégia inteligente. Afinal, tem como colocar um candidato modernizante sem se acertar com os partidos mais corruptos do país, dando ministérios em troca —onde poderão roubar à vontade? Isso é melhor do que o PT? em que sentido?

Querem morar numa Índia ou Nigéria e esquiar na Suíça ou finalmente terem orgulho de um país que avança? Proteger o seu capital é tirar pirulito dos pobres —nós, do dinheiro, fomos ironicamente muito bem durante a pandemia. Usem uns óculos de modernidade, gente: o Brasil é hoje um dos lugares mais chatos do planeta, mas colocar um animador de auditório não vai mudar nada.

O Congresso traiu a sociedade, Delfim Netto.

0

Havia espaço no Orçamento, mas foram acolhidos interesses menores e paroquiais

Delfim Netto – Folha de São Paulo, 28/04/2021

A lambança produzida no Orçamento aprovado pelo Congresso é conhecida: acotovelaram-se R$ 49 bi em emendas parlamentares, mais de R$ 30 bi delas de caráter não obrigatório, em detrimento de um maior espaço às urgências da população pelos efeitos do recrudescimento da pandemia sobre a saúde e a renda, além da retirada do auxílio emergencial do teto de gastos.

Sancionado na semana passada pelo presidente, após muito ruído e diz que me diz, a peça órfã trouxe algum corte nas emendas (R$ 11,9 bi) e nas despesas do Executivo. Retiraram-se do alcance do teto os gastos diretos com a pandemia, como o programa de corte de jornadas e salários e o de acesso a crédito pelas pequenas empresas, ambos a um custo total estimado de R$ 15 bi, embora, formalmente, não tenham sido estabelecidos limites –um mau presságio.

É falso, portanto, que não havia espaço no Orçamento, mas sim que, acolhidos os interesses menores e paroquiais, não couberam as necessidades maiores. Por mais que não se discuta a urgência das despesas estritamente relacionadas à pandemia, e até a eventual necessidade de excetuá-las do teto em 2021, como convencer a sociedade de que o Orçamento não comportava dois programas cujo custo é cerca de 30% do montante destinado às emendas parlamentares?

Como convencê-la de que o Brasil precisa continuar voando às cegas em suas políticas públicas, pois não foi possível acomodar R$ 2 bi para a realização do Censo? Como dizer que era infactível melhorar a dotação do Bolsa Família para, no segundo semestre, dar conta do fim auxílio emergencial? Como explicar para os 2.700 doutores aprovados por mérito no último edital do CNPq, entre os 4.300 que pediram bolsa, que apenas 400 deles serão contemplados pois “não tinha onde cortar”? Como dizer que foi inevitável passar a tesoura em R$ 1,35 bi da agricultura familiar (Pronaf)?

Como os espectros que produziram tal acordo político no Legislativo e no Executivo irão convencer seus eleitores de que tudo foi feito na melhor tentativa de representar os seus interesses? Como (e quando) irão prestar contas dos recursos gastos em tais emendas, muitas vezes de maneira pouco transparente?

Como explicar que os recursos federais repassados a alguns estados em 2020 foram utilizados para pagar despesas de custeio e 13º salário de funcionários públicos? Como racionalizar que foi possível derrubar um veto de 2009 e gerar uma despesa de R$ 2,7 bi para a União em 2021 ao permitir uma reestruturação de carreiras na Receita Federal?
Como encarar os brasileiros que perdem familiares, amigos, renda e emprego há mais de um ano? Como?

Finanças e Desenvolvimento

0

O setor financeiro é fundamental para o desenvolvimento econômico de uma nação, devendo atuar como intermediário de recursos monetários e estimulando a produção, gerando emprego e incrementando o investimento produtivo. Nas últimas décadas percebemos o aumento no setor financeiro que pouco contribuiu para o crescimento econômico e produtivo, transformando a economia em um verdadeiro cassino que garante ganhos altíssimos para um pequeno grupo de privilegiados que ganham com taxas de juros elevados que limitam o crédito do longo prazo e rentabilidade imediata, deixando de lado o planejamento econômico e a construção de uma nação.

O fortalecimento dos setores financeiros na sociedade brasileira tem um papel central na ausência das grandes discussões econômicas, assuntos relacionados a planejamento e a construção de um projeto nacional perdem espaços para assuntos imediatistas e limitantes, tais como as taxas de juros, inflação e câmbio. Embora estes assuntos sejam importantes, devem ser pensados dentro de uma estratégia maior de fortalecimento do país e da construção do desenvolvimento econômico.

No mundo contemporâneo, precisamos reconstruir os valores da civilização, trocando a competição econômica exagerada pela cooperação produtiva e o compartilhamento social. A pandemia que assola a sociedade global exige uma transformação estrutural no modelo econômico, privilegiando o conceito de nação, que foi deixado de lado devido aos interesses financeiros, materiais e imediatistas.

Os setores produtivos devem ser estimulados como agentes do progresso econômico, gerando emprego, incrementando a renda, movimentando o consumo e, posteriormente, impulsionando toda a economia e o produto interno bruto. Desde os anos 1980 a economia brasileira vem perdendo espaço na economia global, desde então o país vem se desindustrializando, perdendo a participação no mercado internacional e piorando as relações de trocas, perdendo dinamismo industrial e estamos caminhando, a passos largos, a se tornarmos uma economia agroexportadora, insuficiente para gerar o desenvolvimento de um contingente populacional de mais de duzentos milhões de pessoas.

As finanças devem retornar sua centralidade na economia brasileira, criando as bases para o financiamento, levando recursos monetários e financeiros para aumentar a capacidade produtiva, gerando emprego e renda, investindo no empreendedorismo e na inovação. Os setores financeiros devem retomar a capacidade de correr risco e estimular o crédito para movimentar o sistema econômico. No caso nacional, historicamente, o sistema financeiro nacional foge dos riscos e espera os grandes investimentos estatais, exigindo altas taxas de retornos, cobrando juros elevados que inviabilizam os investimentos produtivos. Percebendo uma grande contradição nacional, um sistema financeiro com lucros elevados e uma sociedade carente de crédito, empresários endividados e famílias sem perspectivas, inviabilizando a construção de um mercado interno de crédito e perpetuando a degradação dos setores produtivos.

O setor financeiro de um país é fundamental para a construção do desenvolvimento da nação, ativando o sistema econômico e produtivo, levando recursos em forma de créditos com juros baixos e condições condizentes, garantindo investimentos nos setores produtivos, impulsionando empregos, movimentando renda, consumo e produção. Sem o impulso dos setores financeiros dificilmente as nações desenvolvidas conseguiriam alcançar o tão almejado desenvolvimento econômico. As finanças hipertrofiadas limitam o crescimento das economias, reduzem os recursos para os setores dinâmicos da economia, fragilizando o empreendedorismo e perpetuando desigualdades sociais e limitando o “espírito animal” dos empresários e garantindo lucros abissais para seus acionistas em detrimento do empobrecimento da economia e da perpetuação das indignidades e de subserviência. Passou da hora de as finanças auxiliarem os rumos do crescimento e do desenvolvimento econômico brasileiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/04/2021.

A pandemia e seus efeitos na informalidade trabalhista

0

Para enfrentar desemprego e pobreza, países devem manter e ampliar políticas de assistência social

LatinoAmerica21 – FSP, 23/04/2021

Mais de um ano após o início da crise sanitária, o equilíbrio em termos sociais para a região mostra um cenário complexo. De acordo com estimativas do Fundo Monetário Internacional, a América Latina e o Caribe é a região mais atingida pela pandemia, pois sua economia se contraiu em aproximadamente 7,4% em 2020. Esta deterioração se refletiu num aumento do desemprego, tanto formal quanto informal, o que levou a um aumento drástico da pobreza.

No mercado de trabalho, um importante retrocesso é evidente em toda a região. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), quase 3 milhões de empresas fecharam durante a pandemia. Isto levou ao desemprego, que afetava 8 de cada 100 pessoas antes da crise sanitária, e em 2020 passaram a afetar quase 11.

Mas o desemprego não afetava apenas os trabalhadores formais. Nos meses de maior confinamento e paralisação da atividade econômica, entre abril e junho do ano passado, um importante segmento de trabalhadores informais ficou desempregado ou inativo. Os dados da Cepal mostram uma redução anual para o segundo trimestre de 2020 no emprego informal de 35% no Chile, 20% no Brasil e 31% na Costa Rica.

Esta redução do trabalho não declarado afetou principalmente o setor rural, devido à precariedade do trabalho agrícola na região. Além disso, as mulheres no trabalho informal foram mais afetadas do que os homens devido a sua maior participação em setores mais afetados, como hotéis e turismo, serviços domésticos e comércio.

Com a reativação gradual da produção, as taxas de emprego informal na região estão aumentando. No México, por exemplo, este indicador foi de 48% para 55% entre abril e agosto de 2020. E espera-se que quando a situação voltar ao normal e os latino-americanos retornarem à procura de trabalho, o caminho mais direto será a informalidade, com empregos de menor qualidade e salários em queda.

De acordo com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), aproximadamente 7,5 milhões de pessoas se juntarão ao enorme grupo de latino-americanos que trabalham sem seguridade social este ano. E, nos próximos anos, a porcentagem de pessoas trabalhando informalmente aumentará de 56% antes da pandemia para 62%.

Embora a medida da informalidade varie de país para país, este tipo de emprego é um fenômeno latente e constante nas economias da América Latina e do Caribe.

Além disso, o trabalho não declarado é distribuído desigualmente com uma presença desproporcional de mulheres, jovens, pessoas com baixos níveis de educação e moradores rurais.

O QUE É TRABALHO INFORMAL E POR QUE É INFORMAL?
De acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), este tipo de emprego é caracterizado pelo fato de não proporcionar acesso a contratos, licenças, férias, compensações, bonificações e, principalmente, acesso à seguridade social. E seu caráter estrutural na região se deve à incapacidade das economias de gerar empregos em condições adequadas e formais, fraqueza institucional, corrupção, amplas lacunas educacionais e sociais, e até mesmo discriminação, seja por etnia, gênero ou condição socioeconômica.

Portanto, a incidência deste fenômeno, tanto antes como durante a pandemia, varia drasticamente entre os países.

Enquanto no Uruguai a informalidade afeta 1 em cada 4 pessoas ou no Chile 3 em cada 10, em países como Honduras, Guatemala ou Bolívia ela afeta cerca de 8 em cada 10 trabalhadores. Em outras palavras, ter um contrato é algo para os privilegiados.

OS DESAFIOS DA RECUPERAÇÃO
Um aumento dos níveis de informalidade implica, a nível social, em um aumento da população em situação de pobreza, da desigualdade e uma deterioração geral das condições de vida. No nível macroeconômico, a consequência é uma redução na demanda e no consumo doméstico e, portanto, na atividade econômica em geral.

A fim de enfrentar o aumento da informalidade, desemprego, pobreza e a recuperação econômica, é essencial que, a curto prazo, os países mantenham e, se possível, ampliem as políticas de assistência social adotadas em 2020.
Também é necessário implementar medidas destinadas a gerar emprego formal e reativar pequenas empresas.

A médio e longo prazos, a América Latina e o Caribe enfrentam o desafio de fortalecer suas instituições, melhorar a produtividade, corrigir desigualdades estruturais, fechar brechas sociais e ampliar seus sistemas de proteção social e previdência social. Somente desta forma eles serão capazes de mitigar tanto as causas quanto as consequências da informalidade trabalhista.

Recuperação econômica esconde o perigo de um mundo dividido, por Martin Wolf.

0

Nada seria mais tolo que os políticos dos países ricos se esquivarem dos desafios globais

Financial Times – FSP, 21/04/2021

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

A grande história das últimas reuniões do FMI (Fundo Monetário Mundial) e do Banco Mundial é que a economia mundial está se recuperando substancialmente mais depressa do que se esperava apenas seis meses atrás. Mas a recuperação da economia global como um todo esconde o que está acontecendo com a população mundial. Tanto dentro dos países como entre eles, os menos favorecidos parecem sofrer recuperações mais lentas. Além disso, essa casa dividida pode não se manter de pé: o que está acontecendo –acima de tudo a lenta distribuição das vacinas– agravará as perspectivas para todos.

A característica marcante das novas previsões do FMI é que o crescimento acumulado do PIB 9Produto Interno Bruto) global per capita entre 2019 e 2022 hoje está previsto em apenas 3 pontos percentuais abaixo da previsão feita em janeiro de 2020. Isso é muito melhor que os 6,5 pontos percentuais a menos do ano passado e os 4 pontos a menos deste ano. Essa é então a imagem de uma economia mundial em uma recuperação ao mesmo tempo mais forte e melhor do que se esperava.

Ainda mais notável, porém, é a divergência. As economias avançadas têm hoje previsão de crescimento acumulado do PIB per capita entre 2019 e 2022 apenas 1 ponto percentual a menos que em janeiro de 2020. Mas os mercados emergentes e os países em desenvolvimento de baixa renda têm previsão de sofrer golpes no crescimento do PIB per capita de 4,3 (5,8 sem a China) e 6,5 pontos percentuais, respectivamente. Para os que têm, será devolvido. Mas dos que não têm será tomado até o pouco que tinham: em janeiro, o Banco Mundial relatou um aumento no número de pessoas em extrema pobreza no ano passado, em consequência da Covid-19, entre 119 milhões e 124 milhões. Diante das terríveis previsões, parece improvável que essa calamidade seja revertida em breve.

Na essência, o FMI hoje prevê que as economias avançadas e a China sairão da crise, de modo geral, ilesas economicamente, com a economia dos Estados Unidos até um pouco maior que as previsões anteriores, enquanto os países emergentes e em desenvolvimento sofrem um grande e prolongado golpe. Mas lembre-se que dois terços da humanidade vivem nestes últimos.

É o contrário do que aconteceu depois da crise financeira global de 2007-09. Isso é em parte porque ela teve origem nos países de alta renda. E também porque a recuperação da China em 2009 foi tão forte. Mas o maior motivo para a diferença hoje é que os países de alta renda possuíam e a capacidade de administrar esse choque e a empregaram de maneiras que poucos outros países puderam (sendo a China a principal exceção): os países ricos conseguiram amortecer o golpe econômico e social com respostas excepcionais de política monetária e fiscal; e puderam desenvolver, produzir e entregar vacinas em alta velocidade.

Segundo o Monitor Fiscal do FMI, “nos últimos 12 meses, os países anunciaram US$ 16 trilhões em ações fiscais”. Mas o grosso disso foi nos países avançados. O deficit fiscal das economias avançadas aumentou 8,8% do PIB entre 2019 e 2020, para 11,7%. Ainda será 10,4% em 2021. Nas economias emergentes, o deficit fiscal aumentou 5,1% do PIB entre 2019 e 2020, para 9,8%. Mas nos países de baixa renda em desenvolvimento ele aumentou só 1,6% do PIB, para 5,5%.

Além disso, salienta o Monitor, “o aumento dos deficits nas economias avançadas e várias economias de mercados emergentes resultou de aumentos aproximadamente iguais em gastos e queda de receitas, enquanto em muitas economias de mercados emergentes e países em desenvolvimento de baixa renda eles foram basicamente consequência do colapso das rendas causado pela crise econômica”.

Seria desaconselhável tomar como garantida a previsão de forte recuperação das economias avançadas. É possível que novas variantes invulneráveis às vacinas de hoje percorram o mundo. É altamente provável que seja impossível reabrir as fronteiras em breve. É possível, também, que as políticas monetárias e fiscais tenham sido fortes demais, especialmente nos EUA, como afirmou Larry Summers, gerando um forte aumento da inflação, expectativas de inflação e taxas de juros reais. Nesse caso, os formuladores de políticas seriam obrigados a pisar nos freios, o que poderia gerar crises de dívida entre mutuários vulneráveis nos EUA e no exterior.

Além disso, mesmo que os países de alta renda, a China e alguns outros tenham uma forte recuperação, muitos países emergentes e em desenvolvimento provavelmente continuarão em grande dificuldade em consequência da distribuição dolorosamente lenta das vacinas, problemas na administração da dívida, as tensões causadas pelo agravamento da pobreza e o espaço limitado para políticas. As economias que dependem de viagens e turismo terão uma recuperação especialmente lenta, sobretudo se continuarem surgindo novas variantes. Nada disso é ajudado pelo fato de que muitos governos são corruptos, ineficazes ou ambos. Isso sempre importa. Em tempos anormais como estes, importa ainda mais.

Nada seria mais tolo que os formuladores de políticas nos países ricos darem um suspiro de alívio e desviarem os olhos dos desafios globais que os confrontam. Eles devem em vez disso fazer o que é necessário para vacinar o mundo inteiro até o fim do próximo ano e apoiar o desenvolvimento de vacinas de reforço para todos, se necessário. Eles devem fazer o que é preciso para garantir que todos os países tenham os recursos necessários para enfrentar esses choques sanitários e econômicos. Eles também devem fazer o que é preciso para garantir que, se surgirem crises de dívida, eles saibam quem são os credores –oficiais e privados– e como administrar a negociação resultante.

Finalmente, mas não menos importante, eles devem aprender as lições desta pandemia. Ela matou até agora 3 milhões de pessoas e infligiu um grande choque econômico. A próxima poderá facilmente ser muito pior nesses dois tristes aspectos. Ilhas de suposta segurança não prosperarão em um mundo de doença ameaçadora.

Contradições

0

Vivemos numa sociedade marcada por grandes contradições, sistemas econômicos marcados por grandes desigualdades, preservamos uma estrutura econômica marcadamente concentradora, que privilegia uma pequena classe social. Grupos privilegiados controlam as estruturam políticas e colocam seus apaniguados em setores chaves, donos de currículos vistosos e salários elevados, são prepostos da casa e da senzala. Ganham milhões transformando as estruturas sociais em verdadeiros negócios monetários e financeiros, sem se preocupar com os interesses da coletividade, sempre pensando em seus interesses imediatos e seus pomposos recursos monetários.

A pandemia está colocando em xeque pensamentos imediatistas. Estes cidadãos se especializaram nos ganhos financeiros particulares e deixaram de lado interesses mais amplos da sociedade, trabalham pelos prazeres monetários, se esquivando do planejamento econômico e da construção de um verdadeiro projeto de país. Neste momento, percebemos que este pensamento imediatista está levando o país para o caos e a ingovernabilidade, criando bolsões de miséria cercada por pequenas ilhas de progresso, luxos e artificialismo exagerados.

Recentemente foi publicado o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, pesquisa realizada pelo grupo Alimento Para Justiça, da Universidade Livre de Berlim, em parceria com universidades brasileiras, que destacou que até o final do ano passado, 59,4% dos brasileiros enfrentavam algum grau de insegurança alimentar, retratando uma população que convive novamente com a fome, na verdade, essa realidade sempre existiu na sociedade nacional. Nesta pesquisa, passamos a conhecer os números escandalosos da degradação em que vivemos, onde 125,6 milhões de brasileiros não tem o que comer, outros grupos comem inadequadamente ou convivem com receio de não terem a próxima refeição. A pesquisa nos mostra a miséria da sociedade brasileira, somos um dos maiores produtores de alimentos do mundo, dotados de instrumentos tecnológicos, máquinas e equipamentos de última geração e, ao mesmo tempo, convivemos com um contingente de cidadãos, ou pseudocidadãos que não tem alimentação digna, um verdadeiro escárnio.

A fome, impulsionada pela pandemia, cresce na sociedade brasileira, uma calamidade nacional que abarca grupos sociais fragilizados e, neste momento, a fome e a desigualdade são escolhas políticas. Os governos e as classes políticas se sucedem, a democracia está se fragilizando e as condições sociais de parcela significativa da população se encontram em situação de degradação. As políticas públicas precisam ser efetivas, precisam de investimentos produtivos, um combate sistemático ao desemprego e abrindo novas oportunidades, evitando a convulsão social que se avizinha, misturando incompetência e arrogância.

Na sociedade brasileira muitos teóricos estudaram e se dedicaram na construção de estratégias de combate a fome e a desigualdade social, dentre eles destacamos o trabalho pioneiro de Josué de Castro, médico, geógrafo, diplomata e político, cujas pesquisas mostravam a existência de um Brasil profundo, marcado pela desigualdade, pela pobreza e pela subnutrição, estes pensadores contribuíram para a compreensão das condições indignas existentes na sociedade.

Neste momento de pandemia e indignação, faz-se necessário refletir sobre os grandes estudiosos brasileiros, seus estudos e contribuições, cujas pesquisas levaram Jean Ziegler, relator da ONU sobre o direito à alimentação, ao referir ao se Josué de Castro, que deveríamos “ter um monumento em cada cidade do país, porque é um dos maiores pensadores do século XX”. Somos um país que não preserva as suas memórias, um país que não aprende com os equívocos do passado, estamos sempre cometendo os mesmos erros, aumentando os constrangimentos, o resultado onde tudo isso é mais atraso, mais desigualdade e mais degradação social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 21/04/2021.

Carta a elite econômica, por Oded Grajew.

0

Diminuir as desigualdades e a pobreza é, também, um ato de inteligência

Folha de São Paulo, 20/04/2021

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis, da Oxfam Brasil e da Rede Nossa São Paulo

Prezados senhores e senhoras:

Primeiramente, gostaria de relembrar alguns indicadores sociais do nosso país. Apesar de sermos um dos mais ricos e uma das maiores economias do mundo, 52 milhões de brasileiros vivem na pobreza (renda de até R$ 436 mensais) e 13 milhões na extrema pobreza (renda de até R$ 151 mensais).

Mais de metade dos brasileiros de 25 anos ou mais não concluiu a educação básica, e 33,1% não terminaram o ensino fundamental. Cem milhões de brasileiros não têm acesso a sistemas de esgotamento sanitário, e 35%, à água tratada. Quarenta e quatro mil brasileiros são assassinados por ano, a maioria de negros e pobres. O Brasil está em 105º lugar no ranking da mortalidade infantil, o principal indicador da infância.

Somos o sétimo país desigual do mundo, superado apenas por algumas nações africanas. As nossas desigualdades são escandalosas. Entre homens e mulheres, entre brancos e negros. Os 5% mais ricos auferem 95% da renda nacional, e 10% possuem 74% das riquezas. Em São Paulo, a cidade mais rica do Brasil, a diferença da idade média ao morrer entre o distrito mais pobre e o distrito mais rico é de 24 anos! Em plena pandemia, o Brasil tem 20 bilionários à mais (revista Forbes), enquanto a fome atinge 9% da população!

Vários de vocês ajudaram a eleger um presidente que, ainda como candidato, proclamava sua admiração pela ditadura militar e fazia apologia à tortura. Assistiram calados aos desmandos dos dois primeiros anos do seu governo, que nos conduziram à maior calamidade sanitária do mundo e de nossa história.

Países de primeiro mundo que vocês tanto admiram chegaram à simples e óbvia conclusão: para qualquer coletivo dar certo, as empresas ou um país, é fundamental ter uma relação harmoniosa entre as pessoas. E o que causa a desarmonia, os conflitos, é a injustiça, a desigualdade. Portanto, é necessário construir uma sociedade com menores desigualdades possíveis. Para isso, governo e sociedade, com apoio de empresários conscientes, elaboraram uma agenda: democracia participativa (mais democracia, menos desigualdades), educação pública de qualidade para todos, sistema tributário progressivo, políticas públicas que, sem exceção, buscam reduzir as desigualdades etc. Foi isso que, por exemplo, aconteceu nos países escandinavos, que eram muito pobres e hoje lideram todas as classificações mundiais, em qualquer área.

Vocês têm enorme poder econômico e, portanto, político. Têm acesso privilegiado aos políticos. Ações filantrópicas que alguns de vocês praticam são muito bem-vindas. Melhoram a vida dos beneficiários. Mas o que transforma um país, pela escala, são as políticas públicas.

Vocês deveriam usar vosso poder para que sejam implementadas legislações e políticas que reduzam as desigualdades. Por exemplo, poderiam aproveitar a reforma tributária para termos uma renda mínima universal, financiada por um sistema tributário progressivo. No Brasil, pobres pagam proporcionalmente mais impostos que ricos, que vocês!

Diminuir as desigualdades e a pobreza é, também, um ato de inteligência. É uma estupidez não construir um mercado interno muito maior.

Tenho o privilégio de conviver com empresários que têm essa visão. Infelizmente, são uma minoria. Vocês deveriam se juntar a eles.

Vocês, da nossa elite econômica (da qual faço parte), deveriam se sentir constrangidos por nossos indicadores sociais, pelas vergonhosas desigualdades em nosso país. Vossa responsabilidade é proporcional ao vosso poder. Mesmo que tardiamente, é hora de agir para construir um futuro melhor e mais honroso para o nosso país.

Tempos nebulosos e ideias ultrapassadas

0

Vivemos um momento de crescimento da desesperança, os grupos sociais estão envoltos em medos e preocupações, a pandemia está incrementando os desesperos dos trabalhadores e dos empresários, principalmente os micros e pequenos, percebendo que as novas transformações tendem a gerar desestruturações, instabilidades e incertezas generalizadas. Para aumentar as preocupações, a pandemia agrava as condições sociais, incrementando as instabilidades econômicas e as incertezas políticas. Diante deste ambiente, a saúde pública pede socorro, as depressões crescem rapidamente, as ansiedades se tornam mais evidentes e os suicídios aumentam, levando a desestruturações familiares e convulsões sociais.

O ambiente destacado anteriormente é um dos mais sombrios da sociedade brasileira nas últimas décadas, desde os anos oitenta, um mercado de forte degradação econômica e inflação em ascensão, precarização social em elevação e variados problemas políticos, o país não passava por uma crise de escala tão surpreendente, com décadas perdidas e atrasos em gerações, preocupações, medos e desesperanças.

O ambiente em curso na sociedade brasileira gera medo no mundo do trabalho, levando pessoas a preocupações constantes, inúmeras reestruturações produtivas e alterações financeiras estão impactando os trabalhadores e gerando mais desempregados estruturais. Empresas transnacionais anunciam o fechamento de unidades seculares, como o encerramento das atividades da Ford Motors, uma montadora tradicional, responsável pela criação do modelo de produção, o Fordismo, que embalou as atividades produtivas em todas as regiões do mundo. Através desta estratégia global da montadora norte-americana, a empresa anunciou a demissão de milhares de profissionais da unidade do ABC, levando muitos trabalhadores ao desespero, ao medo e a revolta silenciosa.

Diante desta situação, os editoriais dos jornais e os pseudoespecialistas, se anteciparam para destacar que as medidas anunciadas pela montadora são geradas pelo péssimo ambiente de negócio, alta carga tributária, mão de obra com baixa produtividade e taxas de juros elevadas, destacando as condições de competitividade sistêmica inexistência na empresa, como se a empresa pouco conhecesse o mercado nacional.

A Ford Motor chegou no país a mais de 100 anos para produzir e criar vínculos duradouros com a sociedade brasileira, estes pseudosespecialistas esquecem que os verdadeiros motivos destas medidas é o empobrecimento da população nacional, o país está ficando cada vez mais pobres, a classe média está diminuindo e perdendo relevância no cenário nacional. Estamos acumulando duas décadas perdidas num período de menos de quarenta anos, numa situação de descalabro que vivenciamos na contemporaneidade, outras empresas tendem a fechar suas unidades, reduzindo investimentos e a geração de empregos e reduzindo os impactos positivos sobre o desenvolvimento do país.

A situação está tão preocupante que, além da Ford Motors, outras empresas anunciaram o fechamento de empresas no Brasil, como a Audi e a Mercedes-Benz. Outras empresas estão desistindo de produzir no mercado nacional, como a japonesa Sony e a sul-coreana LG, empresas de sucesso no mercado global que deixaram um rastro de desemprego, desesperos e degradação social.

O processo de desindustrialização brasileiro está nos acompanhando desde o final dos anos 80 e início dos anos 90, desde então, a economia vem perdendo o dinamismo industrial e, ao mesmo tempo, percebemos que outros países e regiões, ganharam protagonismo no cenário global, onde destacamos os países asiáticos, com um arranjo pragmático envolvendo os governos nacionais fortemente protecionista e empresas privadas estimuladas e empreendedoras. O resultado é o fortalecimento da região como o polo dinamizador da estrutura industrial do mundo, desbancando regiões tradicionais e destruindo indústria em ascensão, como as de países latino-americanos, como os setores industriais brasileiros.

Enquanto os países latino-americanos foram alunos prendados e esforçados na adoção da cartilha de Consenso de Washington, no final dos anos 80, adotando medidas liberalizantes, reduzindo as políticas protecionistas, incrementando as privatizações e diminuindo o papel do Estado na economia, os países asiáticos foram alunos relapsos, abandonando as cartilhas dos países defensores do neoliberalismo e colheram frutos diferentes. Enquanto os seguidores do Consenso colheram destruição industrial, fragilização de suas estruturas econômicas e produtivas, os países asiáticos colheram fortalecimento das estruturas industriais e a construção de empresas fortes e consolidadas no ambiente global.

Neste momento percebemos que grandes grupos nacionais foram vendidos ou desnacionalizados, perderam a autonomia de suas estruturas econômicas e produtivas, os países asiáticos construíram empresas de ponta no capitalismo internacional. Atualmente o capitalismo global passou a conhecer grandes conglomerados produtivos e industriais, tais como as chinesas Tencent, a Baidu, a Chery, a Huawei, a Lenovo, a Alibaba; as sul coreanas Samsung, a LG, a Hyundai, a Kia; as Taiwanesas Acer, HTC, dentre outras. O processo de industrialização gerou grandes conglomerados que competem com os grandes grupos ocidentais, gerando confrontos geopolíticos, como os que estamos observando nos conflitos entre as grandes economias da economia internacional, Estados Unidos e a China, um grande embate na busca pela hegemonia, tendo nos setores de semicondutores um dos setores mais competitivos, onde cada um dos países se organizam para garantir a liderança neste mercado,

As experiências exitosas dos países asiáticos foram fortemente planejadas com os Estados Nacionais, um conluio entre os grandes agentes econômicos e políticos, uma estratégia construída entre Estados e Mercados. Esta atuação conjunto entre os setores está distante de países como o Brasil, vivemos um conflito entre estes entes, gerando instabilidades políticas com impactos negativos dos setores econômicos, reduzindo os investimentos produtivos, criando desconfiança crescente e perpetuando uma condição de subserviência de estratégias bem construídas centradas nos interesses nacionais.

Nesta semana, o criador do Consenso de Washington, John Willianson, morreu nos Estados Unidos, aos 82 anos, suas ideias impulsionaram o pensamento neoliberal. Neste momento da contemporaneidade, o neoliberalismo vem perdendo espaço na agenda dos países desenvolvidos e dos países asiáticos. Infelizmente no Brasil, esta agenda ainda está na ordem do dia, perpetuando o atraso intelectual de uma elite que pensa, primordialmente, nos interesses econômicos imediatistas, deixando de lado os interesses da sociedade nacional.

De um lado, percebemos uma pressão dos grupos empresariais, das mídias corporativas, dos grandes escritórios de advocacias, das grandes consultorias e dos grupos de pensadores do capital que ganham impulsionando as vendas de ativos públicos, dilapidando patrimônio em prol de interesses imediatistas, transformando tudo em verdadeiros negócios. Mesmo sabendo que o pensamento neoliberal vem perdendo espaço, no Brasil esta presente em mentes e corações de muitos teóricos cosmopolita.

A redução do Estado deve ser estimulada em setores ineficientes e pouco estratégicos, vendendo setores que não atuem de forma condigna. Mas precisamos refletir sobre as desestatizações, sem planejamentos e sem pensamentos estratégicos, por este, vem criando verdadeiros vácuos produtivos, transferindo os centros de poder e estruturação globais, contribuindo para a desestruturação da economia nacional.

A pandemia deixou claro que os países que conseguiram preservar setores de centro de tecnologia, pesquisas e conhecimento científico, estão conseguindo sair melhores neste momento e se mostram mais capacitados e qualificados para vacinar sua população, retomando o crescimento da economia e melhorando os indicadores macroeconômicos.

Percebemos que muitos grupos não perceberam que as privatizações e a redução do Estado terão impactos negativos para os grupos privados nacionais, os mesmos setores que bradam menos intervenção do governo na economia serão os mais prejudicados pela redução da atuação do Estado, isto porque, olhando a história brasileira e dos empresários nacionais, percebemos que os grandes grupos privados necessitam dos favores e das benesses dos governos de plantão, sendo de direita, de esquerda e de centro.

Este é o modo de atuação dos capitais privados nacionais, sempre imediatistas e buscam lucros elevados, querem menos intervenção estatal para garantir mais benefícios e direitos sociais reduzidos para os trabalhadores, mas ao mesmo tempo, exigem mais Estados para subsidiar seus recursos financeiros, taxas de juros elevadas para valorizar seus investimentos improdutivos e o protecionismo da concorrência dos grandes grupos globais.

Neste momento de pandemia, faz-se necessário aos grandes grupos sociais, econômicos e políticos, repensarem o que queremos para o Brasil nos próximos anos, reconstruindo as estruturas produtivas que estão sendo destruídas e repensar o papel do país na sociedade internacional, aumentando a autonomia, investindo maiores recursos em saúde, educação e na construção de políticas públicas inclusivas, abrindo espaços para a diversidade. A contemporaneidade exige mais criativa, mais espírito empreendedor e maior capacidade de tomar risco, buscando a transformação que sempre estamos esperando desde a independência nacional, lá se vai uns 200 anos…

Agravado por pandemia, desastre na educação exige mobilização já

0

É urgente focar ensino público e combater retrocesso, diz Priscila Cruz

Priscila Cruz, Mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA), é presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos Pela Educação

Folha de São Paula, 16/04/2021

Vivemos um desastre silencioso, a morte lenta de uma geração, que será sentida por décadas. Já passamos de um ano de escolas fechadas em razão do descontrole da pandemia, provocado, principalmente, pelo desprezo do atual governo federal. A estimativa mais recente, da FGV (Fundação Getulio Vargas), é de um retrocesso de quatro anos na aprendizagem, mas tenho convicção de que é muito mais que isso.

Acrescento ao cenário a explosão da evasão, a insuficiência alimentar, os impactos perversos no desenvolvimento cognitivo, físico, emocional e social das crianças e dos jovens em idade escolar.

Para aprofundar o fosso, temos um Ministério da Educação liderado por oportunistas de visão curta, acuados pela própria incompetência, que cometem absurdos que levarão anos ou décadas para serem corrigidos: intervenção ideológica em livros didáticos, enfraquecimento das políticas de expansão da educação integral e de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apoio ao “homeschooling”, militarização da educação e perseguição a professores. E o mais grave de tudo: a completa omissão no enfrentamento dos efeitos da pandemia na educação básica.

Devemos agir e corrigir estruturalmente os rumos da educação e lançar os alicerces de um projeto para o Brasil que tenha como base a escola pública. Essa base será reforçada por dois pilares muito sólidos: a capacidade da educação de unir os democratas deste país e a clareza que há hoje em relação aos caminhos que devemos percorrer para chegarmos à necessária educação de qualidade para todos.

A educação une porque não compete com nenhuma outra área. Pelo contrário, fortalece cada uma delas: educação pela ciência/ciência pela educação; educação pelo meio ambiente/meio ambiente pela educação; educação pela economia/economia pela educação; educação pela justiça/justiça pela educação —e muitas outras.

O conhecimento do que precisa ser feito nos próximos cinco, dez, 15 anos para assegurar uma educação de qualidade, democrática, antirracista, acolhedora e integral se baseia na evidência consolidada das experiências exitosas efetuadas tanto no Brasil como em outros países. Basicamente, está nos campos da primeira infância; ampliação da educação integral; contínuo aprimoramento curricular e de implementação da BNCC; desenvolvimento profissional docente (atratividade, formação, carreira e condições de trabalho); gestão das escolas e das redes de escola; distribuição mais justa dos recursos educacionais (avançaremos muito com o novo Fundeb); colaboração entre estados e municípios para a alfabetização na idade certa; modernização do ensino médio e expansão da educação profissionalizante; ampliação do uso da tecnologia para fortalecer o trabalho dos professores e da gestão; e governança federativa mais alinhada aos propósitos de qualidade e de equidade educacional.

Esses dois pilares juntos —o engajamento de todos e o compromisso de seguirmos as evidências— constituem a saída para um país próspero para todos e construído pelas e para as pessoas.

Há, portanto, um imperativo moral e estratégico de reconstrução e renovação da educação brasileira. Para isso, precisamos reverter a profunda descrença que temos a respeito de investir nas pessoas e abraçar a ideia de que nós, todos nós, vamos reconstruir este país, superando as consequências brutais da pandemia e da passagem do governo federal mais incompetente da nossa história.

Nenhuma instituição, por melhores que sejam seu desenho e seus propósitos, será capaz de enfrentar esses imensos desafios sem as pessoas. As instituições, públicas ou privadas, não são autômatos; elas são essencialmente constituídas pelas suas pessoas —que formulam, gerem, implementam, corrigem rumos, fazem ciência, ensinam, cuidam, constroem, empreendem, defendem direitos, plantam e colhem, criam.

Observo, entretanto, debates sobre combate à corrupção, retomada do crescimento, prevenção de doenças, proteção do meio ambiente, preservação e fortalecimento da democracia, promoção de maior equidade e justiça social, entre outros, sem que se dê centralidade à necessária solidez na formação das pessoas, à educação.

Creio que a dificuldade em dar centralidade à educação, incluindo este período de pandemia, é nosso maior erro histórico, e explica o atraso no nosso desenvolvimento social e econômico. A origem desse equívoco foi estudada pelo professor Renato Colistete, da FEA-USP. Suas pesquisas mostram que a educação era valorizada pela população de baixa renda tanto no Império quanto na República. Há registros abundantes de escravizados, recém-alforriados e trabalhadores demandando escolas para seus filhos.

O que não havia era interesse nem ação de quem comandava o país em provê-las: a instrução formal dos trabalhadores não era considerada necessária, e os filhos da elite é que usufruíam as poucas —embora suficientes para eles— faculdades de medicina e direito que havia no Brasil, ou até mesmo as universidades europeias.

A estrutura econômica, a arquitetura institucional e federativa, os avanços tecnológicos, o consumo e as demandas sociais mudaram radicalmente desde a escravidão, mas a baixa prioridade dada à educação como vetor de transformação do país resiste, como se fosse possível construirmos uma sociedade mais próspera e justa sem que as pessoas tenham os conhecimentos e competências necessários: vivemos numa sociedade do conhecimento sem dar a devida centralidade à escola pública.

Não há a mais remota chance de crescermos, distribuirmos renda, criarmos mais empregos qualificados, combatermos afrontas democráticas, reduzirmos a violência e a intolerância, desenvolvermos ciência, cuidarmos da natureza e de uns aos outros sem priorizar a educação básica pública. Não é por outra razão que o Brasil está nessa espiral de baixo desenvolvimento há séculos, com suspiros esporádicos.

Manteremos o erro de ter apenas uma ínfima parte da população preparada para o século 21? A pandemia e esse governo federal um dia vão passar. Deixarão muita destruição, e precisamos nos preparar para a reconstrução. Os países que optarem pela educação estarão maiores e melhores em alguns anos. Espero que tenhamos a sabedoria de corrigir o maior erro histórico do nosso país.

Convido o campo democrático, que está refletindo sobre como podemos sair deste pântano em que estamos mergulhados, a formular um projeto de nação que rompa de vez com esse passado e tenha a coragem e a generosidade de dar passos firmes na direção da escola pública como eixo de uma estratégia para um futuro maior, mais justo e mais feliz. Lembro aqui Anísio Teixeira, que faleceu há 50 anos. Ele costumava dizer que a máquina que prepara as democracias é a escola pública.

Vamos honrar Anísio. Acima de tudo, vamos honrar o fato de sermos brasileiros. Que a educação de qualidade para todos ainda tenha seu merecido lugar na história —aquela que queremos contar um dia aos nossos filhos, netos e bisnetos.

Risco fiscal impede que Brasil surfe na onda chinesa

0

Responsabilidade fiscal piora desde 2015, mesmo com as amarras de disciplina fiscal como o teto de gastos

Roberto Dumas Damas

É professor de economia do Insper, mestre em economia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e mestre em economia pela Universidade Fudan, na China

Folha de São Paulo, 17/04/2021

Ninguém pode dizer que o crescimento de 18,3% da economia chinesa durante o primeiro trimestre desse ano em comparação com igual trimestre do ano passado, quando a economia havia recuado 6, 8%, não foi bom. Foi excelente, se olharmos sob essa perspectiva temporal.

Claro que ao analisar números vindos da China, os analistas acabam ficando mal-acostumados, sempre esperando números estelares —e eles vieram na base de comparação anual, apesar de terem crescido apenas 0,6% se comparado com o quarto trimestre de 2020.

Durante o primeiro trimestre de 2020, enquanto ainda havia expectativas de que a economia mundial cresceria um pouco e a então pandemia seria controlada, a China já sofria pesados efeitos em seu crescimento econômico.

Notadamente e sem muita discussão, o país decretou um lockdown draconiano, sem brainstorming político ou com a população, e um controle enorme sobre os infectados, até que logrou controlar a pandemia em sua casa.

Enquanto isso, outros países batiam cabeça. Avaliavam se deveriam fazer lockdowns, se poderiam se abraçar, afinal esse é um direito de todos, e se poderiam espirrar no rosto dos outros sem máscara, afinal parece que tal proteção causa um certo desconforto. Ah vá!

Enfim, o fato é que a China logrou recuperar rapidamente sua economia, não apenas devido às restrições ditatoriais, mas com uma presença forte do Estado “sugerindo” que os governos locais investissem pesadamente em novos projetos de infraestrutura —para lá de duvidosos em relação às suas verdadeiras necessidades e possibilidades de retorno financeiro.

O setor imobiliário chinês acabou também se beneficiando enormemente desse expansionismo. Com esse impulso monetário e fiscal sutil, canalizado pelos principais bancos chineses nesses investimentos, a produção industrial, principalmente de aço, logrou crescer mais de 24% no ano.

Ponto positivo para as commodities metálicas, como o minério de ferro, cobre, zinco, mas que, provavelmente, não continuará com todo esse ímpeto durante o segundo semestre deste ano.

Além disso, com a peste suína ceifando mais de 350 milhões de cabeças de porcos, a China precisou desesperadamente de proteína animal e grãos para alimentar seus novos plantéis. Novamente, ponto positivo para as commodities agrícolas e proteína animal, como soja, milho, carne bovina e suína.

Do lado das importações, a China também se aproveitou da pandemia e do novo modus operandi do “fique em casa” e aumentou seus bens vendidos para o exterior, como equipamentos de proteção individual e produtos eletrônicos —com uma alta de 31% apenas em março deste ano.

Mas, e o Brasil? Com essa bonança nas commodities, por que será que não estamos surfando essa onda como testemunhada nos anos de 2006 e 2007? Por que nosso câmbio insiste em continuar tendo um dos três piores desempenhos, entre os países emergentes, desde o início da pandemia?

A resposta não poderia ser outra a não ser o nosso crescente risco fiscal.

Enquanto durante os anos de 2006 a 2008, a nossa dívida pública bruta em relação ao PIB não passava de 57% e ainda conseguíamos apresentar superávits primários, hoje em dia estamos um pouco mais arriscados, com uma dívida pública beliscando os 91%, déficits primários e manobras do legislativo para furar o teto de gastos com emendas parlamentares, fazendo uso de PECs para ajustar PECs já aprovadas.

Como diz a economista Zeina Latif: “embora a regra do teto esteja sendo cumprida no momento, o espírito do regime fiscal se perdeu”.

E isso não é de agora. Já vem desde 2015 e continua piorando mesmo com as amarras de disciplina fiscal como o teto de gastos, o qual determina que as despesas e os investimentos públicos fiariam limitados ao mesmo valor gasto no ano anterior, ajustado pela inflação.

Como não parece que as novas coligações com o centrão tem se mostrado muito preocupadas com o espírito da lei, os detentores de títulos da dívida pública e investidores —como eu, você, que temos nosso suado dinheirinho investido em fundos de investimentos, tipo DI, multimercado, seguradoras, previdência privada— acabam pedindo maiores retornos, dado o maior risco que corremos com essa dinâmica explosiva da dívida pública.

Maior risco, maior retorno requerido, maiores juros na ponta do consumidor, limitando mais ainda o consumo das famílias e os investimentos.

Para aqueles não contentes com o retorno observada na curva de juros, acabam fugindo e deixando na porta de saída uma pressão cambial, que para deteriorar o cenário, acaba piorando a nossa inflação “importada”, resultado do aumento do preço de commodities em dólares multiplicado pela cotação cambial.

Para segurar esse repasse dos preços de atacado ou do produtor para o consumidor, tome Selic e sua trajetória de alta, restringindo mais ainda o crescimento econômico do Brasil. O Brasil é nosso e os problemas também.

Josué de Castro mostra o paradoxo mais gritante e obsceno do país

0

Gilberto Felisberto Vasconcellos – ESPECIAL PARA A FOLHA – 11/08/2001 – CADERNO ILUSTRADA

Não há entre nós assunto mais baixo astral do que a fome. A miséria da fome. É o paradoxo mais gritante e mais obsceno da civilização brasileira.

Somos o país do alimento, mas a maioria da população não tem o que comer. Resulta daí a nossa tragédia existencial e política, inclusive estética, porque a existência da fome é o fenômeno mais irracional da nossa sociedade.

Médico, marxista, terceiro-mundista, filiado ao PTB vargojanguista, perseguido pelo golpe de 64, Josué de Castro nasceu no Recife, “Hong Kong da América com sua miséria acumulada”, escreve neste livro memorialístico e romanceado sobre a promiscuidade dos homens e caranguejos passando fome na lama dos mangues: um engolindo o outro.

Parafraseando a linguagem dos sociólogos e economistas, Castro fala em “ciclo do caranguejo” ou em “sociedade dos caranguejos”. Mocambos. Polis dos mocambos.
Vindo de família abastada, o Engels de Pernambuco, que em 1935 escreveu “As Condições de Vida das Classes Operárias do Recife”, conceitua a fome pelo ângulo da qualidade, ou seja: a carência dos alimentos indispensáveis ao equilíbrio da saúde. Não é a falta de alimento que leva o indivíduo à morte. Nesse sentido a totalidade da sociedade no Brasil é marcada pela condição esfomeada.

Foi nos mangues do rio Capibaribe que Castro tomou consciência do drama da fome, que é uma praga criada pelos homens e cujas raízes encontram-se no processo da colonização, de modo que o colonialismo é que engendra o fenômeno da fome: latifúndio, monocultura e mercado externo.

A forte impregnação visual e aderência à geografia tem a sua explicação biográfica nesta narrativa dos anos de infância de Castro: “Foi o rio o meu primeiro professor de história do Nordeste, da história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos”.

O autor sublinha que compreendeu a angústia da fome, não na Sorbonne parisiense, mas nos mangues e bairros inóspitos do Recife. Pobres coitados alimentados com caranguejo e farinha de mandioca. Mais nada.

Nesse livro aparece a grande loucura da sociedade brasileira, loucura que nos persegue ainda hoje: um povo faminto que não sabe de onde vem a fome e quer ocultá-la ou senão disfarçá-la. E mais: os alimentados não entendem os famintos e vice-versa. E mais: o chamado público letrado não aprecia os intelectuais e artistas que denunciam a irracionalidade da fome popular brasileira.

Novo líder empresarial terá de reduzir foco financeiro e buscar legado, diz diretor de escola de negócios

Para Antonio Batista da Silva Junior, da Fundação Dom Cabral, chefes de empresas devem sair com nova postura da pandemia

Painel Folha de São Paulo, 14/04/2021 – Joana Cunha

Como vocês chegaram à conclusão sobre o perfil de foco financeiro dos líderes atuais?

A gente precisa compreender a evolução da sociedade para poder direcionar nossas ações educacionais. A educação vai para onde vai o mundo.

Uns cinco anos atrás, nós saímos num périplo, conversando com mais de 250 CEOs para entender a angústia, as dores, a percepção deles.

As empresas que vão sobreviver ao final do século 21 são aquelas às quais a sociedade conferir legitimidade para operar. E esse é um mal-estar, porque o executivo que tradicionalmente foi educado e preparado para ser um executivo de entrega de resultado econômico e financeiro, hoje, tem uma nova demanda, que é a de construir legados.

Hoje, o executivo vai ter que ser menos escravo do resultado, e ser mais um agente de progresso. Ele vai ter que saber conciliar performance e progresso, porque as empresas precisam ser produtivas, eficientes e terem lucro, mas não é só isso.

Essa é uma mudança grande no mundo corporativo. É uma demanda nova, um paradigma que está em transição, que vai exigir novos comportamentos.

É um profissional que consegue olhar para as desigualdades?

A pergunta que você faz para um executivo é: ‘através dos produtos e serviços que você faz, qual o problema da humanidade que você tenta resolver?’.

Aí entram problemas de desigualdade social, de clima, de educação, de água, do meio ambiente.
E é possível mudar essa mentalidade? Em quanto tempo?

Claro que eu acho possível. Esse é o nosso papel. A educação é transformadora. E isso é urgente, tem que começar imediatamente.

Fica mais urgente com a pandemia?

Sem dúvida, a pandemia escancarou. Ela aumentou as diferenças sociais e agravou um problema que já era existente no mundo inteiro. Essa dívida social cresce de maneira acelerada. O problema de saúde está rebatendo no problema econômico.

A pandemia vai ter que acelerar essa percepção [de mudança] dos vários setores, do governo e das empresas. Eu acho que o líder não sai incólume dessa pandemia. Ele vai ter que sair com uma nova visão, uma nova postura, uma nova ação.

As novas gerações são muito voltadas para propósito, para emoção, para paixão com ideias. Então, as empresas têm que vincular emocionalmente seu propósito com o propósito da nova geração, que são os funcionários e os consumidores.

É uma tendência no mercado brasileiro e fora?

Acho que sim. É uma tendência mundial. Ainda que o Brasil seja uma economia muito desintegrada do comércio global e que o país tenha perdido sua presença nas grandes pautas como agente protagonista do mundo, o que acontece lá fora acontecerá aqui também mais cedo ou mais tarde, numa velocidade maior ou menor.

Acho que nós temos problemas específicos. Um deles é o grande fosso social. A distribuição da renda no Brasil é criminosa.

com Mariana Grazini e Andressa Motter

A geração dos jovens que não verão país nenhum, por Vinícius Torres Freire.

0

Na vida adulta, geração que chega aos 30 só viu país empobrecer e se barbarizar

Folha de São Paulo, 14/04/2021.

As projeções de crescimento da economia para o ano que vem começam a cair para a casa do 1%. É apenas chute vagamente informado, mas essa bola deve cair mesmo no pântano em que vivemos faz tempo. Em 2022, bicentenário da Independência, serão nove anos de pobreza piorada. Ainda estaremos colonizados pelos nossos piores monstros.

Imagine-se uma brasileira que teve a boa sorte de terminar a faculdade no último ano antes da catástrofe, em 2013, nos seus 21 anos. “Boa sorte” porque apenas 1 de cada 4 jovens de 18 a 24 anos está no ensino superior ou concluiu este curso. Há quem tenha largado a escola muito antes e terá vida pior. No ano que vem, essa brasileira fará 30 anos. Terá passado a primeira parte de sua vida adulta em um país em destruição. É apenas um símbolo de uma catástrofe duradoura, uma de várias gerações perdidas.

No ano que vem, o país ainda será mais pobre do que era em 2013: a renda (PIB) per capita deve ser ainda 7,5% menor. Pelas estimativas atuais, voltaremos a 2013 apenas em 2027. Mas chute econômico não é destino. Assistir bestificado à presente destruição vai nos garantir futuro tenebroso.

Mal ou bem, países do centro do mundo planejam a reconstrução depois da epidemia. São grandes projetos de economia verde e pesquisa científica e tecnológica, como biotecnologia e inteligência artificial.

Qual o lugar do Brasil nesse futuro? Uma zona de catástrofe ambiental e sanitária, talvez por isso objeto de sanções econômicas e políticas.

Nossos produtos industriais logo serão ainda mais obsoletos em termos tecnológicos e ambientais. Talvez não queiram também nossos grãos, ferro e petróleo, por prevenção ambiental ou porque a China passou a plantar soja na África ou porque o país é infecto ou avilta o trabalhador. Com o troco que nos sobrar, compraremos produtos “verdes” ou máquinas inteligentes reais e virtuais etc. inventados com pesquisa subsidiada no mundo rico.

O plano Bolsonaro é o avesso podre dos planos de reconstrução: é devastação ambiental e da Educação, sob mando de um adepto do espancamento de crianças. São tempos de dr. Jairzinho e dr. Jairzinho.

Desmontam-se agências e a participação democrática nos conselhos de Estado, avilta-se ou se assedia o corpo técnico de servidores, perseguem-se professores, acelera-se a destruição da pesquisa científica. Capangas oficiais e paramilitares, milícias, talvez colaborem para a implantação de um autoritarismo temperado por farisaísmo, fundamentalismo religioso, patriotada militaresca e ignorância lunática.

Nos acostumamos aos quase nove anos de catástrofe econômica assim como nos acostumamos agora aos 3 mil mortos por dia ou aos crimes de responsabilidade semanais de Jair Bolsonaro. Resta força apenas para combater o regresso autoritário. O Brasil se acostumou a não ter futuro.

É pior do que nos anos perdidos para o horror social e a inflação dos 1980/90. Então se tentava reconstruir um país: Constituição, estabilidade econômica, alguns direitos sociais.

Ainda assim, nossos desastres vêm de longe, pelo menos desde a recessão que começou em 1981, desatino final da ditadura militar. Desde então até 2019, o PIB per capita do Brasil cresceu 36%. O dos países já ricos (OCDE), 85%.
O do mundo, 75%. É o aspecto econômico de um fracasso longo e maior. A diferença agora é que morreu ou está para morrer, sem UTI, a ideia de sucesso ou de progresso.

“Não Verás País Nenhum”, dizia o título do romance presciente de Ignácio de Loyola Brandão (aliás de 1981). Tratava de um Brasil em que a Amazônia se tornou um deserto, em que São Paulo fede a cadáveres e em que militecnos comandam um governo autoritário.