Flexibilizar o teto, já. Por Monica De Bolle.

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A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

O Estado de S. Paulo/29 de abril de 2020.

Na semana passada, o governo apresentou o plano Pró-Brasil. Tratava-se do anúncio de uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura para o País. O plano foi duramente criticado por razões acertadas e outras não tão acertadas assim. Entre as justificadas críticas estava o fato de o plano consistir em não mais do que meia dúzia de slides sem qualquer detalhamento sobre as áreas prioritárias para obras públicas. Foi citada a cifra de R$ 30 bilhões em investimentos públicos, que muitos sabemos ser insuficiente para cobrir as inúmeras carências e os variados gargalos do Brasil. Mesmo assim, houve quem tenha resolvido chamar o plano de Segundo PND de Bolsonaro, ou de PAC do seu governo, numa clara tentativa de demonizar o investimento público.

O anúncio deu margem a respostas histriônicas da equipe econômica, verdadeiros chiliques, por exemplo quando alguns de seus membros disseram à jornalista Miriam Leitão que o plano era uma ameaça ao teto de gastos e que, fosse o teto flexibilizado, muitos deixariam o governo. Talvez seja a hora mesmo de buscarem a porta de saída. Afinal, a responsabilidade desses indivíduos deveria ser com o País, e não com uma medida que sofre de diversas falhas desde seu desenho original.

Em 2016, quando se iniciou a discussão sobre o teto, fui favorável à ideia, mas não ao desenho. Nesse espaço e em outros veículos discuti por que a formulação do teto brasileiro estava em completo desalinho com a boa prática internacional e afirmei que mais cedo ou mais tarde pagaríamos por isso. Minha visão à época, como agora, era a de que o teto era excessivamente rígido, não permitindo ao governo qualquer margem de manobra para a adoção de medidas contracíclicas, quando necessárias. Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de 1% ao ano. Há quem argumente que a sua adoção acabou retirando financiamento do SUS, na contramão do que se falava em 2016. No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes sobre o qual tenho falado.

No início de março, após a epidemia ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e começar a derrubar mercados e economias, disse em entrevista à Globonews que o teto precisaria ser flexibilizado para acomodar o investimento público, fundamental não para o enfrentamento da crise de saúde pública, mas para o que dela sobreviria. Alguns reputaram estapafúrdia a ideia, embora naquele momento eu já enxergasse não apenas o drama que hoje atravessamos, como também a crise crônica que haverá de seguir à atual, mais aguda. Mas, para além disso, a inclusão do investimento público no teto de gastos é anacrônica do ponto da vista da experiência internacional. Estudo publicado pelo FMI em 2015 mostra que há alguma variância entre os diferentes tipos de tetos de gastos, mas todos tendem a excluir o investimento público e/ou ter cláusulas de escape para a adoção de medidas econômicas, quando necessárias.

Queiram os técnicos do governo ou não, o teto é profundamente inadequado tanto para a fase aguda da crise de saúde e da crise econômica quanto para a fase crônica que lhe seguirá. Teremos de continuar a conviver com o vírus, e, por essa razão, tenho insistido que a recuperação será volátil e lenta. Assim seria mesmo que não tivéssemos acrescentado aos nossos problemas a atual crise política e institucional com a saída de Sergio Moro. Dada a conjunção de crises e a dinâmica da economia brasileira, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado não retornará tão cedo em situação de volatilidade. Para tanto é preciso pensar simultaneamente em três linhas de frente: as prioridades para o investimento; o detalhamento dos projetos, para que não tenhamos os fracassos vistos em governos anteriores; e a necessária flexibilização do teto. A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Estado forte, por Delfim Netto

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Economia de mercado separou os homens em duas classes

A economia política é um conhecimento que desde tempos imemoriais acumula observações para tentar entender os estímulos que levam os homens a se comportarem na sua atividade diária e como organizam a divisão do trabalho para produzir, no território que ocupam (como “seu”!), a sua subsistência material, ou seja, o total de bens e serviços produzidos coletivamente e quanto cada um receberá como “quota” pela sua cooperação no que foi produzido.

Nela, os problemas são sempre os mesmos: 1º) o que e como produzir, que depende das necessidades da sociedade e das “técnicas” para atendê-las, e 2º) como se distribuirá o produzido, se pela força de uma autoridade ou pelo consenso obtido numa negociação política. O que muda são as tentativas de resolvê-los.

Ao longo de sua história, o homem vivenciou múltiplas alternativas organizacionais, num processo de seleção quase biológico para encontrar qual lhe daria maior “liberdade” junto com maior “segurança”. Foi assim que chegou à concepção de um Estado forte, controlado por uma Constituição consensualmente construída que imponha —pela Lei— uma estrutura de poder republicano e garanta o Estado democrático de Direito, como já temos no Brasil.

Dito isso, é preciso lembrar que o que chamamos de “economia de mercado” foi descoberto (não inventado) pelos economistas nas feiras da antiguidade quando o poder local lhes dava proteção e garantia a propriedade privada. Talvez a contribuição mais importante dos economistas à civilização tenha sido dar àquele instrumento – o mercado — cada vez mais eficiência no uso dos fatores de produção disponíveis, mas sempre escassos para atender à demanda de todos.

O custo disso foi a separação dos homens em duas classes: a dos que comandam o processo (os que detêm o capital) e a dos que não têm outra alternativa a não ser servi-los, o que gera uma disparidade de poder insuportável.

Desde a autópsia de Marx (e da contribuição de Stuart Mill, o liberal), ficou claro que a “economia de mercado” tem três graves problemas: 1º) é incapaz de eliminar a pobreza dos menos favorecidos pela sorte; 2º) produz imensas desigualdades de renda, que são corrosivas para a coesão social, além de criar dúvidas sobre o processo democrático; 3º) as flutuações que lhe são ínsitas e promovem a “insegurança” dos trabalhadores pela variação do emprego, que inspirou as políticas keynesianas, vítimas, como Marx, de “vulgatas” da economia de “cordel”.

Foram esses fatos que levaram à necessidade de um Estado forte, que, nas crises agudas, se transforma, provisoriamente, no “garante” de última instância de nossa “segurança”.

‘O trauma da pandemia não vai nos redimir’, diz filósofo Mario Sergio Cortella.

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Para o filósofo, educador e escritor best-seller, apesar de coronavírus gerar temor coletivo comparável ao das bombas atômicas, muitos só vão querer voltar à vida normal

Jairo Marques

SÃO PAULO

Completando 45 dias de isolamento social nesta segunda-feira (27), o filósofo, escritor e educador Mario Sergio Cortella, 66, afirma não ter grandes desafios pessoais a serem enfrentados com a quarentena. Isso porque ele, na juventude, passou cerca de três anos enclausurado: pertencia à ordem católica dos carmelitas descalços.

Um dos palestrantes mais disputados do Brasil na atualidade, Cortella, que lançou recentemente, em coautoria com o historiador Leandro Karnal, o profético —estava pronto desde o ano passado— “Viver, a que se Destina?” (Papirus 7 Mares, R$ 39,90, 128 págs.) está se dedicando agora à releitura de “Criação”, de Gore Vidal, e “O Físico”, de Noah Gordon.

“Temos vivido tempos de silêncios internos. Quando me vem algum, recorro ao meu inventário de memórias construídas ao longo da vida para pensar sobre os passos que dei, que dou e que darei. Cada um de nós precisa buscar maneiras de não deixar um oco dentro de si neste momento, para evitar que a situação, que é difícil, se torne assustadora”, diz.

Cortella, autor de cerca de 40 obras e conhecido por arrastar uma multidão de fãs com suas falas relativas à valorização da vida, das diferenças humanas e de preceitos éticos, não é um entusiasta da ideia de que as pessoas serão transformadas positivamente após o fim da pandemia.

“Não creio numa redenção. Creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas, quando se olha a humanidade, ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, vai nos redimir.”

Há amigos, parentes, gente próxima morrendo com a Covid-19. Como lidar com o medo de a fatalidade chegar cada vez mais perto de casa?

A natureza colocou em nós dois mecanismos de proteção: medo e dor. Quando perdemos qualquer um dos dois, ficamos num estado de vulnerabilidade muito extenso. O risco maior, neste momento, é não ter medo de nada, porque isso nos deixaria desatentos. À nossa volta estão rondando coisas com um nível de fatalidade e de desconhecimento que não pode ser desprezível. O maior perigo hoje é achar que não há perigo.

Um ser que, do ponto de vista da ciência, é chamado de não vivo, um vírus, ainda assim, consegue nos produzir um dano fortíssimo. Ele se aproxima da ideia, um pouco infantil, do medo de fantasma: aquilo que a gente não vê, mas nos ameaça.

Como lidar com a angústia da incerteza? Não se sabe se o confinamento vai durar mais algumas semanas ou se estenderá por anos, por exemplo.

Fomos desentronizados como humanidade, especialmente as camadas mais intelectualizadas, mais escolarizadas, mais marcadas por algum tipo de poder político ou econômico. Desabamos do pedestal no qual nos houvéramos colocado. Imaginávamos que, com o triunfo, no final do século 19, da ciência nas formas de progresso, que começou a se expandir, chegando ao final do século 20 com o mundo cheio de invenções e tecnologias inéditas, com novas formas de contato e comunicação, estávamos no controle.

Bastaram duas décadas do século 21 para que entrássemos num estado de entorpecimento e surpresa, provavelmente com nossa petulância anterior, de supormos que o triunfo de Prometeu —da mitologia grega— estava colocado em campo, que a racionalidade nos garantiria uma visão nítida dos próximos passos da vida.

De repente, chega uma circunstância inédita, em relação a seu modo de ação, sem indicativo de solução rápida em um mundo de instantaneidade e simultaneidade. Estamos habituados hoje a satisfazer nossos desejos de maneira quase imediata. Estamos surpresos agora com esse retardo das soluções. O tempo todo aguardamos o passo imediato da cura, da vacina, da saída, do pico da doença, como num passe de mágica.

Informações científicas nunca circularam com tanta rapidez e para um público tão amplo. Mas isso também gera insegurança. Ora aparece um medicamento salvador, ora se divulga que não há certeza sobre a imunidade contra o vírus. O que pensar?

A ciência não é infalível, mas é menos falível que a não ciência. Ninguém pode colocar na ciência uma fé inabalável. Ela também se equivoca, tem seus descaminhos históricos, mas eles são menores que seus acertos e sua capacidade de nos orientar. O esforço coletivo hoje, no campo científico, em todo o planeta, para encontrar uma solução que preserve a vida humana é inédito.

Temos dois momentos históricos de um grande temor da morte coletiva —desconsiderando as grandes pestes, que foram mais localizadas. A explosão das bombas nucleares, que trouxeram para nós um pensamento muito concreto de fim da humanidade, é o primeiro. O segundo é este que estamos vivendo, da pandemia do coronavírus, que, 75 anos depois, nos coloca em alerta máximo novamente.

O mundo do ataque nuclear, da Guerra Fria, que poderia acabar com a vida na Terra, era um efeito da ação da ciência. Agora, estamos lidando com o inverso, a ciência unida para enfrentar aquilo que não foi criado por nós, que não está sob o nosso controle, tentando nos salvar.

Como a ética e a filosofia abraçariam os profissionais essenciais que vivem o conflito de servir ao público nesta batalha e, ao mesmo tempo, têm de proteger a si mesmos e a suas famílias?

Pessoas diferentes fazem arranjos diferentes para o que entendem como seu propósito de vida, para que possam ir adiante. Não me estranha que alguém que esteja na linha de frente dessa batalha tema contaminar os seus e recue. E recuar não significa fugir. Às vezes, é uma proteção diante de uma outra condição.

Por outro lado, há os trabalhadores essenciais que reorganizaram a própria vida para cuidar dos outros, para darem conta de seus serviços que entendem como fundamentais. E muitos fazem isso sem se achar heróis, mesmo uma grande parte de nós não tendo o mesmo desprendimento.

Falar sobre isso sem estar diretamente envolvido na questão é sempre mais fácil. Mas não tenho dúvidas de que, se um dos meus ficar doente, se alguém do meu círculo de amizades precisar de mim para cuidar dele, eu o farei, mesmo sabendo que há risco. Tomarei todos os cuidados, mas o farei, porque eu ficaria envergonhado se, de alguma maneira, me acovardasse diante daquilo que, podendo fazer, não fiz. Mas insisto que não é um juízo moral imaginar que quem teme recue porque quer preservar a si ou a outros.

A questão ética é entre o poder e o dever. Aquele que deve, pode e não faz furta-se à tarefa que tem. O que deve, mas não pode, tem uma diminuição do conflito ético. Aquele que pode, mas não deve, está fazendo a escolha em ser contributivo.

A Covid-19 impõe o isolamento do paciente no hospital, que é apartado de todo tipo de contato com familiares. Dá para alentar quem está na solidão?

Tenho visto muita gente tentando romper a ausência de pontes, buscando conexão com quem precisa. Quando Guimarães Rosa criou o título “Grande Sertão: Veredas”, ele acertou em cheio a ideia de que a vida é grande sertão e nele a sua percepção é de abandono, que você está sozinho, mas também há veredas. Muita gente, pelo mundo afora, está se colocando como vereda de outras pessoas, mesmo que de forma limitada.

As ameaças do vírus também estão fazendo com que corpos sejam enterrados quase sem despedidas da família, sem cerimônias. Qual a consequência disso?

É uma situação inédita para uma geração que nasceu depois de 1945 e não viveu em realidades de guerras, em que não há tempo de enlutar. Ainda não tivemos tempo de avaliar o impacto que essa condição atual irá ter, até porque estamos tendo de lidar também com a sobrevivência.

Nossas grandes marcas de humanidade, quase sempre, estão ligadas a rituais que nos conectam com nossos mortos, sinais de túmulos, de fogueiras, de cinzas, paredes gravadas.

As cerimônias, como os velórios e sepultamentos, são para nos confortar, para ganharmos força. Neste momento, muita gente está tendo de encontrar força sozinho. É muito mais doloroso, não há nem o tempo de se dar conta da perda. Infelizmente, acho que o impacto dessas perdas não compartilhadas será conhecido dentro de alguns meses.

Muita gente tem dito que todos sairemos dessa pandemia transformados em algum sentido. Você crê nisso? O efeito pode ser coletivo?

Não creio nisso. Não acho que a humanidade irá se converter à solidariedade. Este tipo de perspectiva é muito mais marcada por um desejo de que isso tenha seu lugar no mundo. Também não acho que ficaremos do mesmo modo, que olharemos as coisas da mesma forma.

Foi impactante ver as pessoas transformarem algo que deveria ser comum, como o pôr do sol espetáculo que tivemos em São Paulo na terça-feira (14), que foi até manchete de jornal, em um momento de alegria, de satisfação.

Mas acontece que, quando vemos o arco-íris muitas vezes seguidas, ele vai deixando de ser deslumbrante para ser comum. O olhar habitual sobre as coisas nos amortece um pouco. Não há dúvida de que, quando essa penumbra se dissipar, não vamos olhar do mesmo modo algumas coisas, mas não será um modo inédito de olhar.

Não creio numa redenção, creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas, quando se olha a humanidade ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, nos redime. As lições são aprendidas por uma parte, mas há uma outra parte que só quer voltar ao normal.

Antes da pandemia, o Brasil estava em uma polarização profunda na política, nas relações sociais. A crise pode restabelecer laços?

A crise, que deixou a vida em geral entre parênteses e nos deixou perplexos com a nossa tibieza de reação e nossa indigência de proposição, pode reduzir um pouco a extensão e frequência das polarizações, mas não as inserirá em trilhas de convergência, dada a agudização que tiveram na retórica furiosa sobre responsabilidades e alternativas durante a própria crise. Contudo as urgências para a regeneração das estruturas e fundamentos da sobrevivência econômica nos deixarão tão atarefados que pode ser que várias das contendas inúteis sejam colocadas como aquilo que são: inúteis.

 

Corremos o risco de repetir o erro de 2008, diz economista eleito um dos grandes pensadores.

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Mohamed El-Erian afirma que coordenação contra o vírus está menor do que na crise financeira global

19.abr.2020 –Folha de São Paulo

O maior risco econômico atual não é a recessão que será causada pela pandemia da Covid-19, mas a repetição de antigos erros na coordenação de políticas globais, que podem evitar uma retomada inclusiva do crescimento após a crise.

A opinião é de uma das vozes mais respeitadas do mercado financeiro global, a de Mohamed El-Erian, conselheiro econômico-chefe da seguradora Allianz e presidente da Queens College, uma das faculdades da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

“Até agora, o nível de coordenação das políticas tem sido menor do que vimos em 2008 e 2009 [na crise financeira global]”, diz El-Erian.
“Várias políticas, em alguns países, têm sido, explicitamente, inclinadas contra o resto do mundo”, afirma ele.

A falha dos formadores de políticas públicas em dar uma resposta conjunta às consequências da crise de saúde, diz, tende a exacerbar o sentimento antiglobalização, que já vinha aumentando nos últimos anos.

“Isso nos leva à possibilidade desconfortável de que terminemos repetindo o grande erro de 2008/2009. Ou seja, ganharmos a guerra contra a depressão global, mas falharmos em garantir um ritmo de crescimento rápido, inclusivo e sustentável.”

El-Erian concordou em falar com a reportagem da Folha na semana passada, desde que fosse por email, pois se descreveu “inundado de trabalho” nestes dias.

Antes de assumir o cargo na Allianz, ele foi presidente-executivo da Pimco, uma das maiores empresas de gestão de investimentos do mundo, com foco, principalmente, em mercados emergentes.

O economista liderou também o Conselho de Desenvolvimento Global do ex-presidente americano Barack Obama. Além disso, foi eleito pela revista Foreign Policy um dos grandes pensadores do mundo por quatro anos seguidos, entre 2009 e 2012.

Há algumas semanas, o sr. mostrou preocupação com a falta de coordenação de políticas globais para combater os efeitos desta pandemia. Isso melhorou? 
Infelizmente, não o suficiente, e isso é um problema real. Ninguém pode negar que esta é uma crise global que requer uma resposta globalmente coordenada.

Também está se tornando claro que o mundo está enfrentando um golpe econômico maior do que o da crise financeira global. Ainda assim, pelo menos até agora, o nível de coordenação das políticas tem sido menor do que vimos em 2008 e 2009. Além disso, várias políticas, em alguns países individuais, têm sido muito voltadas para dentro e, explicitamente, inclinadas contra o resto do mundo.

De forma mais geral, em termos das interações econômicas globais e da coordenação de políticas, esse é o terceiro golpe a todo o conceito de globalização. Os outros dois foram a forte reação contrária à globalização devido à marginalização de segmentos da população e a guerra comercial. Em cima deles, esse terceiro golpe pode alimentar um processo de “desglobalização” ao longo de muitos anos.

Tudo isso nos leva à possibilidade desconfortável de que terminemos repetindo o grande erro de 2008/2009. Ou seja, ganharmos a guerra contra a depressão global, mas falharmos em garantir um ritmo de crescimento rápido, inclusivo e sustentável.

Países com restrições fiscais e dívidas elevadas sofrem mais em recessões globais. Isso voltará a ocorrer? 

Infelizmente, sim. Esses dois problemas limitam a capacidade dos governos de conter a dor e o sofrimento reais ligados à economia por causa do confinamento.

Que países estão condenados a sofrer mais e que problemas deverão enfrentar? 
Aqueles com flexibilidade fiscal e monetária limitados, baixas reservas internacionais, alto endividamento, dinâmica de crescimento pobre, grandes descasamentos de moedas e muita dívida de curto prazo.

E estou me referindo apenas aos problemas econômicos e financeiros, deixando de fora questões políticas, institucionais e sociais. Se não forem ajudados por apoio estrangeiro por meio de concessões grandes e rápidas, esses países enfrentam um risco alto de uma “trifecta” [situação em que um apostador acerta a ordem dos três primeiros ganhadores em uma corrida] envolvendo uma crise de saúde, um colapso econômico e disrupções financeiras.

É possível que haja um aumento de calotes de dívidas soberanas e financeiras? 
Sim, por esses motivos que já citei. Muito dependerá da vontade dos credores de conceder alívio às dívidas e aumentar os financiamentos concessionais. Infelizmente, não podemos esperar que os fluxos de investimento financeiro direto aumentem no curto prazo.

Como o sr. vê a situação econômica do Brasil, que já não era boa, no contexto desta pandemia? 

Como todos os países, o Brasil enfrenta o risco de sair desta crise com alto endividamento, menos reserva monetária e um golpe em sua produtividade. É crucial para todos os países ter isso em mente e centrar seu radar na tela de políticas para conter o estrago às suas perspectivas de crescimento.

Líderes têm reagido de formas diferentes à pandemia. Alguns aderiram rapidamente ao isolamento social severo. Outros, como o presidente Jair Bolsonaro, minimizam os riscos de saúde, preferindo isolamentos menos radicais. O mercado deve reagir de forma distinta a essas posições diversas? 

As circunstâncias dos países variam, assim como variam seus julgamentos em relação ao balanço entre os riscos de saúde e os riscos econômicos. Isso é conhecido no mercado como o balanço entre vida e subsistência.

O atual impacto generalizado nos mercados vindo do que os economistas chamam de “fator global comum” tende a abrir lugar para mais diferenciações dos países ao longo do tempo.

Depois desta crise, muitos países estarão em uma situação fiscal muito pior. Como os mercados devem digerir isso? 
​É difícil generalizar, já que muito dependerá da capacidade e do desejo de cada país tanto de sustentar altos pagamentos de dívidas como de reduzir seu elevado endividamento

A educação de elite, a educação sucateada e o fosso social no Brasil, por Dora Incontri.

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Essa semana saiu a notícia de uma escola no Rio, para a elite da elite – 3.800,00 reais por mês – inspirada nos badalados métodos de educação da Finlândia. O principal acionista da escola é Paulo Lemann, dono do Burger King.

Dora Incontri

Para quem milita por uma educação de qualidade e inovadora para todos os brasileiros e brasileiras, essa notícia tem um sabor amargo, num momento em que a escola pública está sofrendo o seu último desmonte. Fechamento de escolas em Estados e municípios, anúncios de terceirização da educação em escolas estaduais, bloqueio federal de investimentos na Saúde e Educação por 20 anos, mexida reducionista e autoritária no currículo, extirpando-se ou diminuindo-se significativamente as matérias que ensinam a pensar e a entender o mundo, como História, Geografia, Filosofia e Sociologia… – são alguns dos retrocessos lamentáveis do momento em que vivemos no Brasil. Retrocessos acompanhados de outros, referentes aos direitos da classe trabalhadora. Ou seja, é o avanço para o achatamento cultural da população e da sua escravização no trabalho. Tudo combinando: menos escola, menos matérias que ensinam a pensar, menos ou quase nenhum direito no trabalho. Os poderes econômicos nacionais e internacionais querem todos escravos, ignorantes e submissos.

Mas a elite… a elite tem colégios como esses do Rio, como tantos em SP, alguns onde se aprende até mandarim (talvez já se pensando na aliança com o próximo Império, quando o Império americano ruir, afinal as elites sempre fazem alianças vantajosas para si com os que dominam o mundo e traem a população de seu pais – lembremos por exemplo de Herodes, aliado dos romanos dominadores, para recuarmos na história antiga). Mas esses, cujos filhos estudam até mandarim, pagam o preço de uma faculdade para crianças em pré-escola.

Elite muitíssimo instruída, plugada internacionalmente e o povão com escola sucateada, com ensino medíocre (de preferência numa Escola sem Partido, que, ao invés do que se pensa, não é a escola neutra – que aliás não existe – mas a escola em que não se pode pensar e discutir e entender as estruturas históricas e sociais que nos condicionam).

A classe média fica espremida entre os dois extremos, na maioria das vezes, sem se incomodar com o sucateamento da escola pública, porque ela dá a vida para pagar uma escola razoável para os filhos.

O método de ensino na Finlândia é promovido pelo Estado, para todos os cidadãos. Aí que está a graça da escola. É um projeto pedagógico pensado a partir da realidade local e uma oportunidade igualitária de desenvolvimento humano da população e não uma moda importada para servir de marqueting para uma escola para pouquíssimos privilegiados.

A diminuição das funções do Estado é algo que está se dando no mundo inteiro, pelo sistema hegemônico do neoliberalismo, que prega o Estado mínimo, o que menos gasta – ou não gasta nada – com benefícios sociais. É o modelo norte-americano, é o cada um por si. Se você consegue emprego (sem férias e nenhuma garantia), você paga a escola do seu filho, o convênio médico, a casa própria e tudo o mais. Se você não consegue… azar seu! Você não se esforçou o bastante. Se perde o emprego, azar, e se não consegue mais pagar o convênio, morra; se não consegue mais pagar a casa, vá para a rua (como tantos vivem em treilers nos EUA).

Se você já veio de uma situação de desvantagem – cresceu numa favela, ou é de uma etnia que foi historicamente marginalizada, como os afrodescendentes no Brasil e nos Estados Unidos, é deficiente físico ou ficou órfão de pai e mãe, você tem que esforçar mais. Se não conseguir, azar seu. Afinal, todo um continente – a África, que foi roubada, violentada, escravizada, durante séculos, está abaixo da linha da pobreza… azar dos africanos. É a lei do mais forte. É a chamada meritocracia – que na verdade é o mérito dos que já têm privilégios, mais dinheiro e mais poder.

Assim é o sistema capitalista no seu auge neoliberal. É a expulsão cada vez maior do Estado de todo benefício social, que vinha no último século tentado corrigir minimamente o desbalanceamento econômico nos países e proteger os mais fracos, os mais em desvantagem, os mais historicamente desmerecidos e conter os abusos das corporações.

O Estado está de joelhos diante do capital. As chamadas democracias são comandadas por políticos corruptos – não só no Brasil e não só de um partido!! – porque vendidos aos interesses das grandes corporações. O Estado sempre esteve comprometido com os ricos e os poderosos. Mas, durante um século, com o chamado Estado do bem-estar social, houve uma honesta tentativa de consertar um tanto as injustiças do sistema. Em alguns países essa tentativa foi bem sucedida e por isso ainda restam Estados, como a Finlândia ou a Alemanha que, embora tenham diminuído seus benefícios, ainda conservam muito do que foi construído, porque está solidamente assentado. No Brasil, havíamos conquistado muito – o SUS, por exemplo, por mais críticas que tenhamos, é um sistema que salva muitas vidas e atende à população, os EUA não tem SUS. A escola pública, por pior que fosse, ainda é uma possível porta de acesso a uma faculdade. A CLT, uma proteção aos trabalhadores dos abusos dos empregadores.

Por pior que tenham sido as tão criticadas últimas gestões, programas como bolsa-família (que aliás era condicionada às crianças irem à escola, o que colocou milhões de crianças dentro do processo de escolarização), a cota por pobreza ou etnia, os financiamentos para o estudo superior, o incentivo à casa própria… foram ajustes sociais que possibilitaram maior equalização de oportunidades.

Agora, está tudo ruindo. Estamos caminhando para um período de privação de direitos básicos e de aprofundamento do fosso social no país.

E o que fazer?

Tenho minhas dúvidas, como anarquista que sou, que possamos recuperar esse Estado de bem-estar social. Forças econômicas e militares poderosíssimas estão por trás desse desmonte mundial de Estados de Direito, dessa escravidão generalizada – basta ver as crianças trabalhando pelas indústrias de chocolate na África, basta saber que quase todos os produtos que usamos vêm de uma China, onde o trabalhador não tem praticamente nenhum direito…

Mas penso que há o que se fazer!

Temos que começar a nos organizarmos em sistemas de troca, de ajuda mútua, de cooperativas – e isso serve para escolas, sistemas de produção, bancos de crédito… Ou seja, temos que dispensar o Estado e resistir ao capital. Utópico? Nem tanto, porque esse sistema não se sustenta. Afinal, se grande parte da população mundial for sendo progressivamente escravizada e empobrecida, quem vai consumir? O sistema é autofágico. Então, temos que nos preparar para quando ele ruir. Estarmos solidariamente organizados para isso.

Castells debate pandemia, Público e Educação

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Para o pensador catalão, agora ministro espanhol das Universidades, o eurocentrismo e o projeto liberal entram em crise profunda. Mas a quarentena ajuda a refletir sobre o Comum – e o aspecto libertador da internet pode ressurgir

Entrevista a Álex Rodríguez e Carina Farreras, em La Vanguardia | Tradução: Antonio Martins

Sua vida é um laboratório. Analisa e conclui. Sociólogo honoris causa por inúmeras universidades, prêmio Holberg, considerado por alguns o Nobel das Ciências Sociais, Manuel Castells, aos 78 anos, é agora ministro das Universidades da Espanha. Nesta entrevista, defende uma governação global e lamenta que nos deparemos a covid-19 divididos.

Um vírus colocou o mundo em xeque. Por que acredita que não estávamos preparados para enfrentá-lo? Que lição é possível tirar, para o futuro?

Subjetivamente, por arrogância, por acreditar que nossa tecnologia pode tudo. Objetivamente, pelos cortes substanciais nos orçamentos dos sistemas de Saúde, durante as políticas suicidas de “austeridade” após a crise de 2008. A principal lição é que a Saúde é nossa infraestrutura de vida e requer cooperação global.

A pandemia pilhou o Ocidente e o mundo sem liderança clara, já que os EUA de Trump recusaram-se a exercê-la.

Trump é um nacionalista norte-americano. Pretende liderar o mundo mas para proveito exclusivo dos Estados Unidos, de modo que perde a condição de ser um líder mundial.

A China, onde nasceu o novo coronavírus e onde não há praticamente um momento da vida cotidiana que escape à vigilância digital, parece ter sob controle a situação. Será a nova superpotência?

A China não foi capaz de superar, mas sim de controlar a pandemia. Ainda assim, pode crescer 2% este ano. E tem capacidade para produzir, exportar e até doar material de Saúde ao resto do mundo. É preciso reconhecer isso. Já é uma superpotência, mas não a única – porque não pode comparar-se militarmente aos Estados Unidos.

Os cidadãos da Coreia do Sul e de Taiwan aceitaram ser monitorados, através do uso da tecnologia e da inteligência artificial, para combater a pandemia. Perderam liberdades e privacidade? O mesmo ocorrerá no Ocidente? Estas concessões perdurarão? É preciso perder liberdades para estar seguros?

Historicamente, em todas as situações de emergência, os Estados restringem os direitos das pessoas, por necessidade e, em alguns casos, aproveitando-se da situação. E os cidadãos aceitam por convicção ou por medo. Mas até um certo limite, que é perigoso ultrapassar.
Ninguém no Ocidente pareceu intuir o perigo que representava a covid-19, até que ele entrou na sala de suas casas. Por que?

Porque a paralisação da economia e da vida social é algo que muda tudo e não se pensava necessário, até que uma boa parte da população foi infectada. Dizia-se: “não somos a China”. Mas não se avisou ao vírus.

A Itália enfrenta a situação de uma maneira, a Alemanha e a França, de outra. Também a Espanha, o Reino Unido, os Estados Unidos, o Brasil. O vírus é o mesmo, mas as políticas contra ele diferem muito em cada país. Seria necessária uma governação global?

Sim – nisso como em tudo. Um sistema global interdependente requer governação global – não necessariamente um governo global. Mas os Estados-Nação resistem a perder seu poder e cada um utiliza mecanismos de governança supostamente globais para defender seus interesses nacionais.

Na Europa, reabre-se a brecha norte-sul. Que lhe parece a maneira de agir da União Europeia diante da crise? Será que ela não alimenta o desencanto entre os cidadãos, que veem como se dilui o princípio de solidariedade, um dos que supostamente fundou o projeto europeus?

Estamos outra vez no mesmo debate colocado na crise financeira de 2008, o que demonstra a ausência de identidade europeia, exceto em alguns setores sociais, mais escolarizados e jovens.

Algo que estudo e sobre o que publico há muito tempo. Desta vez, ao menos, o Banco Central Europeu e a Comissão europeia adotaram uma postura mais solidária – mas o Reino Unido está fora e a Alemanha e seus aliados mais próximos querem intervir nas políticas econômicas de todos os países que resgatam. Obviamente, a Europa do sul e a França não aceitam e, portanto, enfrentamos desunidos a ameaça mais grave com que a humanidade se depara desde a II Guerra Mundial.

Você acredita que seria possível fazer algo para que situações com a que estamos atravessando não voltassem a ocorrer, ou para que ao menos estivéssemos melhor preparados?

Levar a sério os aplausos das sacadas, ao pessoal da Saúde, e traduzi-los em políticas de financiamento, de formação, de equipamento, de investigação científica e de prevenção. É nosso salva-vidas no mundo em que entramos. Qualquer que seja o custo, é mais barato que a morte e o colapso econômico.

A covid-19 emergiu como pandemia num momento de auge da ultradireita e das democracias liberais. Você que pensa que isso vai se aprofundar, ou que um dos grandes perdedores desta crise será a democracia liberal?

Publiquei um livro recente sobre a crise da democracia liberal, que foi perdendo legitimidade entre a cidadania por razões profundas, comuns a todas as sociedades. A extensão da pandemia em intensidade e tempo pode colocar ainda mais em xeque um sistema político que havia trazido relativa civilidade a nossa vida institucional.

Não houve revoltas na crise de 2008, porque os aposentados e a família ajudaram a suportar situações desesperadas. Agora, recomenda-se que não se coloque em respiradores os pacientes com mais de 80 anos. Que reflexões isto suscita?

Miséria da espécie humana que, se for de fato assim, talvez não mereça sobreviver. Em alguns setores, há pouca solidariedade com as gerações futuras, como mostra a indiferença diante da mudança climática. E agora há indícios, minoritários, de que começa a faltar solidariedade com os velhos. Por sorte, a maioria das pessoas mostra generosidade e empatia. Ainda apoiam as famílias, mas protegendo sobretudo aos seus.

Como você acredita que o mundo mudará?

Já mudou, e nunca voltará a ser como aquele em que vivemos. O que não sabemos é como será. Talvez o melhor seria que o decidíssemos e o construíssemos, em vez de nos resignarmos ao destino

As universidades a distância cresceram nos últimos anos e você foi professor de uma delas, na Catalunha. Acredita que a covid-19 ampliará os estudos online, e que eles substituirão progressivamente os estudos presenciais?

A pandemia mostrou a extraordinária utilidade da internet em todos os âmbitos. E particularmente nas universidades, que completarão seus cursos, principalmente, por meio do ensino online de qualidade. Houve um processo acelerado de formação prática de estudantes e professorado neste sentido, em poucas semanas, e sobre isso podermos construir coisas novas no futuro. Não apenas para emergências, mas para um sistema em que ambas modalidades se complementem em todas as universidades. O ensino presencial nunca desaparecerá, porque sua largura de banda é muito maior que a da rede de fibra ótica. Esta articulação deve ser um projeto de futuro imediato, quando acabe a guerra.

Muitas universidades tiveram de se adaptar da noite para o dia para dar aulas não presenciais, com dificuldades tecnológicas e de preparação dos professores. É possível garantir um mínimo de qualidade às titulações neste contexto?

Na Espanha, isso será controlado e garantido, de modo coordenado, pelas agências de qualidade de cada região autônoma, e pela Aneca, a agência do Estado espanhol. Não tenho a menor inquietude sobre este assunto, que sigo de perto.

Você acredita que, nesta situação, todos os universitários tenham igualdade de oportunidades? Não há alunos que enfrentam carências tecnológicas?

Há desigualdade tecnológica como há desigualdade social em todos os âmbitos. E portanto, as universidades terão de levar em conta estas situações particulares e ajudar os estudantes desfavorecidos. Porém a difusão da internet é muito ampla, assim como o uso de computadores. E, algo em que não se pensa, a imensa maioria dos estudantes tem um computador no bolso, que chamamos de telefone celular. A questão é desenvolver protocolos de ensino que possam ser adaptados ao uso destes aparelhos como terminais. O que chamamos m-learning. Neste processo estão várias universidades – por exemplo, segundo minha informação, a de Barcelona.

Que rastros a covid-19 deixará nas universidades?

A capacidade de liberar o potencial de ensino virtual, que estava injustamente menosprezada, e a exigência de uma digitalização mais avançada do conjunto do sistema universitário. Uma grande fronteira de inovação pedagógica e de investimento em ensino.

Nível de coordenação do Estado brasileiro contra o coronavírus é zero, diz Sérgio Lazzarini

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Professor do Insper diz que, com estratégia, poderia haver incentivo para a fabricação de máscaras e aumento da infraestrutura de leitos

ÉRICA FRAGA – FSP – 12/04/2020 – SÃO PAULO

A redução dos danos que a Covid-19 causará à saúde pública e à economia demanda uma estratégia de expansão rápida e muito bem planejada do Estado, incluindo critérios para a reversão futura das medidas adotadas.
O nível de coordenação do governo brasileiro nessa direção, até agora, é zero, segundo o pesquisador Sérgio Lazzarini, do Insper, que estuda esse tema.

Em trabalhos como o livro “Capitalismo de Laços”, Lazzarini tem demonstrado que conexões entre os setores público e privado, forjadas algumas vezes em momentos de crise como o atual, podem gerar custos altos e desnecessários para a sociedade.

Em co-autoria com o economista mexicano Aldo Musacchio, ele acaba de escrever um artigo que alerta para o risco de repetição desse cenário caso governos não reajam adequadamente à pandemia.

Intitulado “Leviathan as a Partial Cure? Opportunities and Pitfalls of Using the State-Owned Apparatus to Respond to the Covid-19 Crisis”, o texto será publicado, em breve, pela Revista de Administração Pública, da FGV.

O setor privado conseguiria oferecer, sozinho, as respostas para a crise atual?
Não. Precisamos de uma infraestrutura de crise, como lugares em hospitais e produção de máscaras, respiradores. A pergunta é: o mercado dá conta disso? Os mais liberais dirão que precisamos criar regulamentações nesta direção. Isso, realmente, é necessário. Melhor deixar o setor produtivo produzir em caráter de urgência emergencial, sem restrições sobre poder ou não produzir máscara, por exemplo. Essa é uma discussão mundial. Nos Estados Unidos, foram afrouxadas uma série de regras.

Mas isso é suficiente? Não, porque é necessário um esforço de coordenação. Estamos vendo empresários se comprometendo a produzir determinadas coisas, expandir os hospitais privados. Mas, no fim do dia, os governos estão precisando ir atrás de hotéis para conseguir leitos. As ações não precisam ser, exclusivamente, estatais. Podem ocorrer parcerias público-privadas.

O que deverá sobreviver dessa nova atuação estatal?
A gente vai se perguntar se temos uma estrutura mínima de proteção para esses eventos mais relevantes e difíceis de prever. A incerteza na economia aumentou a tal ponto que evidenciou o risco já existente desses eventos. Qual a probabilidade de haver outra pandemia dessas? Vai ficar claro que não sabemos.

A gente vinha em uma linha de “surgiu o Uber, um monte de profissionais autônomos, deixa eles, deixa o mercado funcionar”. Agora estamos pensando: “calma, que rede de proteção esse pessoal tem contra esses eventos extremos?”

E podemos falar de eventos extremos de forma bem ampla, incluindo crises políticas e de outras naturezas. Isso nos levará a pensar em estrutura de segurança que incluirá o Estado porque, de novo, o setor privado não tem interesse nisso. Mas precisamos também considerar que isso terá custos, que muitos dos investimentos serão ineficientes.
Como reduzir esses custos?

O que aprendemos com eventos anteriores, como a crise financeira global em 2008, é que há momentos em que a expansão do Estado é inevitável, mas precisamos definir estratégias de saída e de acompanhamento contínuos.
Por que vocês se opõem ao resgate de setores afetados inteiros?

Se você falar que precisa resgatar o setor aéreo, virá o de hotéis, e teremos de considerar: por que não hotéis? Aí virá o de restaurantes, o de shows. Vamos fazer uma discussão interminável. O BNDES anunciou discussões com o setor aéreo e está uma briga sobre qual será o preço. Eu não faria esse tipo de discussão setorial, eu faria uma discussão horizontal. Firmas com necessidades serão avaliadas de acordo com determinados critérios preestabelecidos.

Quem fez algo nessa linha foi o KfW [banco de desenvolvimento alemão]. Criou uma linha para empresas com dificuldades financeiras. Elas podem pegar empréstimo, expandir atividade, rolar sua dívida. Empresas grandes, de forma geral, não deveriam ser prioritárias, apenas as de médio porte para baixo.

Vocês ressaltam que é importante considerar também que ocorrerão mudanças de hábitos. Por quê?
O setor aéreo passará por uma queda de demanda, as pessoas vão mudar seus estilos de vida, de forma talvez permanente. Na China, os restaurantes reabriram, mas as pessoas estão reticentes, o formato de vendas está migrando para entregas, com detalhamento sobre a forma de preparo e de higienização da comida, sobre as credenciais do produtor, e assim por diante. Novos formatos de negócios serão testados.

A gente pode querer tentar salvar o setor aéreo, mas ele será diferente. Então, certas discussões serão inócuas e há um risco de que terminem favorecendo os setores mais organizados e, não necessariamente, os negócios mais eficientes.
Esse é outro motivo para termos critérios mais horizontais.

Por que é importante que o governo aja rápido?
Os modelos estão nos indicando que para controlar essa pandemia precisamos agir o quanto antes. A melhor estratégia parece ser o isolamento social rápido e, ao mesmo tempo, expandir a estrutura de suporte, criar uma estrutura de proteção para que as pessoas tenham renda neste período.

Se você demorar muito, vai estender a crise e as dificuldades financeiras das empresas, aumentando a chance de precisar resgatá-las, dar mais crédito, dar mais renda, no futuro.

Se você não usar o Estado agora inteligentemente, terá de usá-lo mais no futuro, com um custo elevadíssimo lá para a frente.

Mas também precisamos estabelecer as condições de saída. O que são elas? Se o governo precisar assumir o capital de uma empresa, tem de deixar claro quanto tempo isso vai durar, assim como monitorar indicadores preestabelecidos de seu progresso.

As ações de transferência de renda têm de ser condicionais à evolução dos programas de isolamento e as próprias curvas de contaminação. Depois, terão de ser suspensas. Senão, teremos pedidos intermináveis. Isso precisa estar claro desde o início.

Depois da crise de 2008, expandimos o Estado. Fizemos com que o BNDES ampliasse suas operações, mas ele continuou se expandindo porque foi criada uma mentalidade de que o Estado resolve tudo, sempre. Essas condições de saída, com cláusulas de término, são essenciais para a gente evitar que isso se repita.

Essa tendência brasileira de apego a um Estado grande pode dificultar a reversão futura da expansão atual?
Sim. Nosso arranjo institucional ainda é muito permeável a interesses, mesmo sem considerar corrupção. Há setores e grupos mais organizados que exercem maior poder de influência sobre governos, que vão dizer que a vida está ruim, difícil. Não precisam ser grandes empresas. Podem ser, por exemplo, os caminhoneiros.

Imagine um cenário em que acabou a crise e grupos venham dizer que sofreram muito e precisam de compensações. Por isso, o estabelecimento de métricas, indicadores, prazos, condições é, absolutamente, fundamental. É uma forma de, agora, você se comprometer a cumprir os objetivos necessários para amenizar os efeitos da crise, mas evitando que a expansão do Estado seja indefinida. Mas, para que esse processo seja bem sucedido, é necessária uma grande coordenação de política pública.

Que nível de coordenação o Estado brasileiro tem demonstrado?
Zero. A gente tem conflitos entre governos, na esfera federal e estadual, sobre a estratégia de achatar a curva. Não estamos em um uníssono na direção de achatar a curva agora, ter uma estrutura de proteção de renda e recuperar a economia mais para a frente.

Estamos batendo cabeça, o que é muito ruim. Há algumas iniciativas inteligentes. O BNDES e o Banco Central anunciaram uma linha de crédito para a folha de pagamento das empresas, garantida pelo Tesouro [Nacional]. É uma iniciativa engenhosa, de liquidez e garantia de emprego. Mas esse tipo de iniciativa ainda é isolado.

A partir do momento em que temos claro que a estratégia nacional é o isolamento social e medidas preventivas, damos um norte para a produção. Isso cria incentivo para a fabricação de máscaras, produtos de higiene e o aumento da infraestrutura de leitos. Aí poderíamos criar, de forma mais acelerada, mais linhas de crédito especificas.

Em que estágio de reação à crise o Brasil está?
Estamos em um processo grave, uma briga do governo federal com os governos estaduais e municipais. Não se pode nem falar em coordenação. Vamos coordenar o que? Para qual direção? Não sabemos nem se o ministro da Saúde vai continuar no cargo até amanhã.

Caminhamos, então, para arcar com custos maiores dessa crise no futuro?
Acho que não estamos no cenário ideal de tomada de iniciativas mais rápidas. Na verdade, estamos nos distanciando disso. Se a gente continuar batendo cabeça, descoordenados, vamos reduzir bastante a chance de ser um processo curto.

Saldo pode ser a volta da credibilidade da ciência’, diz Cortella sobre pandemia.

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Filósofo vê chance de retomada da crença na mídia durante pandemia e sugere transparência e didatismo aos políticos
Entrevista com Mario Sergio Cortella, filósofo e escritor

Adriana Ferraz, O Estado de S. Paulo. 

05 de abril de 2020

Autor de mais de 40 livros, o filósofo Mário Sérgio Cortella, de 66 anos, acredita que o enfrentamento da pandemia do coronavírus pode deixar alguns legados para a sociedade, além dos problemas sanitários e econômicos. Para ele, a ciência e a mídia devem recuperar sua credibilidade, e o distanciamento social pode ser uma oportunidade para fazer coisas que o “cotidiano atribulado” não permite. 

Ao responder sobre o que acha da atuação do presidente Jair Bolsonaro na crise, Cortella lembra que é importante, neste momento, que as lideranças políticas sejam didáticas e transparentes ao se comunicar com a população. “Não estamos tendo ainda esse conjunto virtuoso por parte de quem deveria”, disse na entrevista, respondida por e-mail. O filósofo diz que tem seguido as orientações para ficar em casa e que, desde que começou seu distanciamento, só saiu de carro duas vezes.  

Leia os principais trechos da entrevista: 

O sr. acha que vivemos uma situação de guerra? Nessa situação, o coronavírus é o único inimigo? Ou também devemos combater a negação à ciência e a propagação de fake news?

O vírus já resulta em malefício suficiente sem que precisemos perder energia lidando com negações contínuas que tentam nos enganar ou que implicam má e falsa informação. Ainda assim, um saldo menos virulento deste momento será uma maior seletividade de fontes e uma retomada da confiabilidade e credibilidade de instituições, como a ciência e a mídia decentes.

As pessoas esperam uma liderança do presidente da República nesse momento? Acha que a atuação de Jair Bolsonaro, quando ataca medidas de restrição de circulação adotadas em todo o mundo, pode frustrá-las?

Toda liderança precisa, acima de tudo, ser didática, transparente e nítida nas trilhas que sugere e nos esforços que estimula. Não estamos tendo ainda esse conjunto virtuoso por parte de quem deveria.

A que o sr. atribui a lentidão na tomada de decisão de alguns presidentes, como Bolsonaro, Donald Trump e López Obrador, e como vê o desprezo pela ciência?

A ciência, de modo geral, não é infalível. É preciso submeter intenções, processos e resultados à análise crítica dos pares e, inclusive, admitir ser desmentido, advertido ou ultrapassado, sem que soe como ofensa ou desacato. Nem todas as pessoas têm permeabilidade intelectual para tais requisitos, e, por isso, costumam menosprezar e subestimar a validação que ultrapasse a opinião vulgar. 

Como o senhor vê esse suposto dilema entre salvar vidas e salvar a economia?
Relegar qualquer um dos polos à penumbra será funesto. Não há pessoas vivas sem economia operante e não há economia sem pessoas salvas. O crucial agora é discernir quais procedimentos são prioritários. 

Nos últimos dias, vimos panelaços contra o presidente e também carreatas a favor do fim do isolamento social. A crise desperta essa ideia de separação – e não só a da solidariedade? 

A crise não inaugura personalidades oportunistas e dissimuladas. A crise apenas as revela e alicerça naquilo que já eram capazes de ser e fazer, independentemente de a crise existir.  

Que influência as redes sociais têm nessa polarização?

Toda polarização inútil neste instante dificulta e delonga alternativas de solução e torna-se aliada poderosa do vírus. Assim, urge avaliar se devemos mesmo empregar nosso escasso tempo em fomentar um viés deletério nas redes sociais, que podem e são frequentemente colaborativas.  

Como essa crise pode afetar as relações entre pessoas? 

Estivemos e ainda estamos colocando à prova nossa sensibilidade de convivência e tendo de manejar com mais habilidade a idiossincrasia e os melindres individuais. Em outras palavras, o necessário e compulsório isolamento social nos remeteu para um nicho familiar que não permite tanto o famoso “vou sair para esfriar a cabeça” ou o, agora arriscado, “não estou nem aí com você”. Entendo que o núcleo familiar terá um número maior de sinergias e fissuras. Se a segunda vencer, o vírus carregará mais esse dano.  

O que de positivo pode ser tirado do distanciamento social?

Alguma reclusão, sem que implique em solidão, é bastante benéfica, pois possibilita um uso mais liberado e seletivo do tempo disponível. Neste instante, o distanciamento servirá também para múltiplas ações que o cotidiano atribulado não permite com intensidade, desde convivências até reorganizações dos espaços e coisas. Além, claro, da dedicação ao ócio recreativo. 

O senhor tem 66 anos, faz parte do grupo de risco para o vírus, e dá aula, palestras, escreve livros. Que cuidados tem tomado?

Desde o dia 16 de março estou em reclusão organizada, tendo saído de carro por algumas horas em dias distantes, sem contato inseguro com outras pessoas, para duas tarefas imprescindíveis e salvaguardadas. Afinal, embora me saiba mortal, quero adiar essa ocasião no limite máximo da minha saudabilidade e consciência livre.  

O que a pandemia pode nos ensinar sob a ótica da filosofia?

Que a nossa eventual e iludida soberba como espécie encontra mais guarida no campo do nosso desejo do que naquilo que a natureza é capaz de erigir. 

‘Temos governos que não acreditam na ciência’, diz Joseph Stiglitz.

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Para economista, crise causada pelo coronavírus explicita a postura desastrosa de líderes como Trump e Bolsonaro

Entrevista com
Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia

Breno Pires, Estadão, 05/04/2020.

O economista Joseph Stiglitz avalia que líderes que emergiram da negação da política mostram-se, nesta pandemia do coronavírus, oportunistas e focados em seus projetos eleitorais, com posturas hesitantes que trarão consequências desastrosas. Prêmio Nobel de Economia em 2001, ele critica a atuação do americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro para defender um novo contrato entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. Em entrevista ao Estado, o professor da Universidade Columbia afirma que a atual crise destaca a importância de um equilíbrio da economia e da ciência, que precisa pautar os governos. “É notável a rapidez com que conseguimos analisar o vírus e descobrir de onde ele veio, desenvolvendo o teste. E toda a ciência é baseada em apoio governamental”, observa. “No Brasil e nos Estados Unidos, temos governos que não acreditam em ciência e estamos vendo as consequências.” As avaliações de Stiglitz também serão detalhadas num livro que o economista lançará, em setembro, no Brasil: People, Power and Profit (Pessoas, Poder e Lucro, numa tradução literal – ainda não tem título em português). 

Existe um dilema entre salvar a economia e salvar vidas?
O fato é que, se você não salvar as pessoas, a economia será devastada. Pessoas não irão ao restaurante, ficarão nervosas quanto a ir ao trabalho, não irão voar por aí, haverá medo no ar. Basicamente, a economia se encaminhará para a paralisia se não pararmos a pandemia. Por isso, é uma boa decisão colocar a prioridade nas pessoas e controlar a pandemia. Fizemos isso nos EUA depois de pressão dos democratas e para criar as condições para ressuscitar a economia quando a pandemia estiver sob controle. Mas ainda há buracos. 

O sr. costuma afirmar que a economia capturou a política. É possível que líderes que emergiram da negação da política, como Trump e Bolsonaro, de alguma forma tenham terminado sendo representantes ideais das grandes corporações?

Em primeiro lugar, pessoas como Trump são interessadas na sua própria reeleição, no seu próprio poder, e isso torna difícil descobrir o que de fato apoiam. Não apoiam nada. Não há um princípio conservador. Não há princípios. Trump ganhou apoio da grande indústria, então, não surpreende que ela esteja no topo da sua agenda. A primeira resposta dele foi o corte de impostos para corporações, apesar de não ter nada a ver com a crise. Devemos enxergar o que eles têm feito não como algo baseado em um conjunto de princípios ideológicos coerentes, mas como um oportunista tentando lidar com a situação. No começo ele pensou que poderia apenas negar, dizer que está tudo bem. A razão de o avanço da doença estar tão grave é porque não fizemos nada por muito tempo. 

Qual é a consequência desse comportamento de Trump em relação às políticas para conter o coronavírus?

As consequências, francamente, são desastrosas. E seriam piores se não fosse o fato de termos uma burocracia tão dedicada. Instituições como o nosso Centro para Controle de Doenças, que são muito profissionais, e médicos, que de alguma maneira nos salvaram. Também fomos salvos pela intervenção de governadores, mas eles não podem resolver o problema da oferta, da falta de máscaras, de equipamento de proteção e de ventiladores. E a falta de testes – de responsabilidade do governo federal, que não faz seu papel. Faltou fazermos testes por semanas a fio e o resultado, francamente, é que existe sangue nas mãos de Trump. As pessoas estão morrendo porá sua causa de inação.

O sr. inclui Jair Bolsonaro na mesma posição que Trump?

Não tenho seguido os detalhes do que está acontecendo no Brasil, mas penso que o País poderia estar em situação pior se não tivesse uma burocracia dedicada, médicos dedicados. 

Nesse ponto, o sr. vê semelhança entre o Brasil e EUA?

Nós temos sido salvos pelas nossas instituições. 
No Brasil, o presidente se colocou contra orientações do próprio Ministério da Saúde, foi a uma manifestação de rua e criticou fechamento de escolas e templos.
Essas ações são custosas em muitos aspectos. De uma maneira mais ampla, é muito difícil para indivíduos manter distância, pessoas querem interagir, então é essencial dizer às pessoas que é perigoso se aproximar de outras pessoas para impedir a propagação da doença. É para isso que precisamos de liderança. E nós não temos essa liderança (nos EUA). E vocês (no Brasil) têm uma liderança ainda pior. 

Qual a importância do financiamento estatal de despesas nesse momento?

Crucial. A única forma de evitar o colapso do sistema é o dinheiro governamental. Para conter a pandemia, a saúde é o mais importante e isso tem de ser priorizado em termos de orçamento. A grande diferença em relação aos mercados emergentes é que nos EUA não nos perguntamos se podemos bancar isso.

Ampliamos o déficit de US$ 1 trilhão, 5% do produto interno bruto, em US$ 2 trilhões, 15%. Podemos explodir o orçamento sem nos importarmos com isso. A maioria dos países em desenvolvimento não pode. 

E quanto isso atrapalha a tomada de medidas emergenciais pelo Brasil?

Bastante. E certamente exige uma “repriorização”, pelo menos temporária. Talvez exija um corte temporário em parte das pensões, com uma renda mais alta. Um aumento temporário nos impostos de pessoas com maior renda. Vai ser necessário estabelecer novas prioridades pelo menos neste ano e provavelmente para os próximos dois anos. O Brasil e outros países vão sofrer restrições orçamentárias, então precisam levantar dinheiro. A comunidade internacional deveria fornecer mais apoio a países em desenvolvimento e aos mercados emergentes. 

O sr. vai lançar seu próximo livro em setembro no Brasil. O que o País, que tem vivido instabilidade na política e na economia ao longo da década, pode aprender com seu livro?

Primeiro, deixe-me tentar fazer uma conexão entre o que vai acontecer e o livro. Isso é relevante para o Brasil, é relevante para os EUA. O livro apresenta dois pontos muito relevantes: que precisamos de um novo contrato social, um novo equilíbrio entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. Nós nos voltamos para o governo quando temos uma crise. O mercado não avaliou adequadamente os riscos, não lidou adequadamente com os riscos de uma pandemia, com o risco de mudanças climáticas, todos os riscos sociais. Isso destaca o papel central do governo em nosso bem-estar. E, quando temos escassez, como temos nos EUA, de máscaras, ventiladores e testes, é um fracasso do mercado. Precisamos da intervenção do governo e, quando ele não intervém, nós sofremos. A realidade é que confiamos demais no setor privado e, em países como os EUA, onde o governo não funcionou, estamos vendo as taxas de mortes. Em países como a Coreia do Sul, onde o governo fez seu trabalho, a pandemia foi controlada rapidamente. Isso mostra o papel crítico do governo. A segunda parte é o papel da ciência. É notável a rapidez com que conseguimos analisar o vírus e descobrir de onde ele veio, desenvolvendo o teste. E toda a ciência é baseada em apoio governamental. Esse é outro exemplo da importância do governo. E no Brasil e nos EUA, temos governos que não acreditam em ciência. E nós vemos as consequências. 

O sr. afirma que o conceito de capitalismo progressista que defende é mais importante que nunca para o bem-estar dos povos?

Sim. O mundo do século XXI é um em que o governo terá de assumir um papel maior do que no passado – a razão pela qual eu defendo um capitalismo progressista. Quero enfatizar que os mercados ainda serão importantes. Mas não podem ser os mercados irrestritos do neoliberalismo. A desigualdade cresceu. E é por isso que nossa política ficou tão feia. O Brasil tem os mesmos problemas. Vocês progrediram na redução da desigualdade, fornecendo educação, em governos de centro-esquerda e de centro-direita, com (Fernando Henrique) Cardoso e Lula. Mostraram que poderiam crescer com prosperidade compartilhada e diminuir a desigualdade. Mas Bolsonaro está indo na direção oposta e isso significa que a proteção do meio ambiente será pior, e você estará exposto a mais doenças, e a educação será prejudicada. O futuro do Brasil está sendo colocado em risco. Eu escrevi minha mensagem em parte em resposta ao dano que Trump está causando aos EUA. Precisamos dessa visão como uma alternativa à destruição de Trump à nossa democracia, economia e sociedade. Mas essas mensagens são ainda mais relevantes para o caso do Brasil.

Keynes volta a galope, Hayek no limbo da história por André Motta Araujo

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Jornal GGN, 03/04/2020

A História é fruto das grandes crises, dos cataclismas religiosos, bélicos, sanitários, da luta pelo poder, das ondas migratórias, das fomes provocadas por fenômenos naturais, fatores incontroláveis, gigantescos, muito maiores que ciclos econômicos naturais, processos menores apesar de aparentarem serem protagonistas da História.

O que é a China de hoje senão a expressão geopolítica produzida pela Revolução Comunista de 1949, que unificou um país até então dilacerado por senhores regionais, os “warlords” de Chiang Kai Shek roubando até o último grão de arroz dos camponeses? Os grandes cataclismas moldam a História e por causa, e gerado por eles, nascem gigantes com um Lord Keynes, que salvou a economia mundial nos anos 30. Parece que as crises criam seus grandes homens, produzidos antes, mas revelados pela crise.

KEYNES, UM HUMANISTA

Ao contrário do espirito mesquinho e pequeno de Hayek, apostando uma ideologia econômica em um vício do ser humano, a ganância, Keynes não tinha ideologia, pensava e agia de acordo com as circunstâncias, podia ser conservador e no momento seguinte ser heterodoxo inovador, depois voltando a ser ortodoxo mas sempre com inteligência, o Keynes do New Deal era um criativo de ideias novas e, em 1944, em Bretton Woods, inventou a catedral da ortodoxia econômica, o Fundo Monetário Internacional.

Como o costureiro capaz de desenhar vestidos longos para as grandes damas e na semana seguinte produzir uma coleção “pret a porter” ou o pianista clássico que também sabe tocar bossa nova, Keynes fazia parte das MENTES ECLÉTICAS, as únicas que representam a inteligência natural do ser humano. Os cérebros com ideias fixas, como os neoliberais de Hayek, não são inteligentes, são meros crentes de uma ideologia congelada no tempo e que nunca foi valiosa e muito menos é universal, uma receitinha que serve em algumas épocas e em alguns territórios, descartável quando aparecem os cataclismas como o vírus e as guerras dilacerantes.

Como o mundo pode aceitar pela boca de Mrs.Thatcher um sistema econômico baseado em DEFEITO do ser humano, um modelo baseado na ganância?

O homem deve visar seu aperfeiçoamento moral e não seu pecado como se esse fosse qualidade. O neoliberalismo é um mecanismo vicioso, mau na essência, porque não é lastreado no humanismo e na solidariedade, é calçado na ambição egoísta, apresentada como virtude, uma torção intelectual inaceitável, o que é ruim não pode virar bom.

A fragilidade moral do neoliberalismo é seu buraco no caso, no limite o excesso de ganância afunda o barco, todos não podem ser gananciosos ao mesmo tempo. O neoliberalismo é um aleijão social e moral que no fim de cada ciclo gera uma crise que, além de financeira, é também moral, provocada pelos excessos do egoísmo de mercado.

PENSAMENTO ECONÔMICO IDEOLÓGICO É UM CONTRASSENSO HISTÓRICO

Friedrich von Hayek, cientista político austríaco criou a ideologia do “mercado” como antídoto contra as tiranias que geraram a Segunda Grande Guerra. Em 1944 fundou a Sociedade do Monte Pelerin e publicou o livro-base O CAMINHO DA SERVIDÃO, bíblia dos avôs dos atuais neoliberais, movimento dos anos 70 lastreado em Hayek e apresentado como ideário contra o Estado Social Democrata Europeu. O grande defeito desse conjunto de ideias que formam a IDEOLOGIA DO LIVRE MERCADO é que não prevê crises.

Com crises tanto financeiras, como as de 2008, como epidêmicas, como a atual ou com guerras de todos os calibres, a ideologia neoliberal não funciona. E não funciona porque o ferramental da grande política, onde se insere uma política econômica, NÃO TEM IDEOLOGIA, depende das circunstâncias. Essa foi a grande visão de Keynes.

É infantil alguém pretender operar a economia a partir de uma ideologia universal, que serve para todas as geografias físicas e humanas, para todos os contextos políticos e sociais, a gestão da economia depende do território, de tipologia humana e social, do nível de educação, da índole do povo, cada contexto um tipo de política.

Keynes não foi o único grande pensador eclético em economia. Hjalmar Schacht, economista alemão era tão eclético quanto Keynes, mas queimou sua biografia ao servir ao nazismo como Ministro da Economia do Terceiro Reich. O mesmo cérebro era ultra ortodoxo ao liquidar com a hiperinflação alemã de 1923, um trabalho brilhante que serviu de base ao Plano Real brasileiro e foi ultra heterodoxo ao criar os mecanismos monetários para tirar a Alemanha da recessão em 1933, muito antes dos EUA, de um desemprego de 40% em 1933 chegou a pleno emprego em 1936, financiando sem dificuldades a recuperação da indústria alemã e o enorme rearmamento do Reich.

Processado em Nuremberg, Schacht foi absolvido e teve uma terceira e bem sucedida carreira de consultor econômico para países.  Que contraste desses grandes cérebros com um medíocre Hayek, cozinheiro de um prato só, propondo um sistema que inevitavelmente produz crises, como as de 2008, a serem resolvidas pelo mesmo Estado que ele propõe reduzir.

A CRISE DO NEOLIBERALISMO É ANTERIOR AO CORONAVÍRUS

A “economia de mercado” já estava em crise mundial antes do Coronavírus. A absurda concentração de renda e riqueza provocada pelo encolhimento das políticas públicas, a liberdade licenciosa para os “mercados” operarem contra o interesse geral da sociedade, caso das FUSÕES de empresas onde só ganham os acionistas e perdem todos os demais interessados, dos consumidores aos empregados, enquanto executivos nadam em bônus indecentes, banqueiros faturam comissões sobre riqueza papel fictícia e advogados jogam na mesa faturas de milhões de dólares, a sociedade é quem paga a conta como perdedora nesse processo.

O Coronavírus apenas apressará a liquidação desse modelo vicioso reciclado por Hayek e repaginado por Mrs.Thatcher e o Presidente Reagan, país do modelo renascido nos anos 7O. Nada disso sobreviverá após o Coronavírus porque agora volta com toda a força o Estado para refazer os estragos antigos e novos, da crise do modelo e da crise da saúde.

Pascácios neoliberais acham que tudo volta ao normal depois da crise sanitária. Ledo engano. A operação keynesiana nos países ricos e suas vertentes nos emergentes vai mudar a geografia do dinheiro e contas serão apresentadas.

O derrame de liquidez a partir dos EUA vai provocar mudanças nos canais mundiais do dinheiro, para o bem ou para o mal. Modelos serão revistos, nasce um novo mundo.

Mais do que nunca, como no pós-guerra de 1945, os Estados serão demandados para resolver monumentais crises sociais e econômicas, adeus neoliberais, fiquem na saudade.

Chegou a hora de o andar de cima colaborar, por Paulo Feldman.

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Imposto emergencial de 4% para o 1% mais rico da população seria decisivo

Folha de São Paulo, 04/04/2020

Claro que o problema mais sério decorrente da pandemia são os doentes e as vidas que estão indo embora —e que, infelizmente, vai aumentar. Mas o país precisa derrotar o vírus da Covid-19 com todas as suas forças, inclusive econômicas. E as projeções sobre a necessidade de recursos ultrapassam os R$ 300 bilhões.

Uma quantia gigantesca, mas fundamental para melhor equipar nossos hospitais públicos, o SUS e dotar os mais necessitados e desempregados de alguma renda básica para sua sobrevivência durante os meses de crise mais aguda.

Como resolver essa questão? Sem esses gastos 2020 já fecharia no vermelho, com um déficit fiscal previsto em R$ 150 bilhões. Agora, com esse montante adicional, o governo federal terá um rombo da ordem de meio trilhão de reais. Para resolver o colapso econômico pós-vírus, teremos que enfrentar alguns anos de recessão.

A solução existe e está em se fazer algo que nunca fizemos: taxar a riqueza. Dados recentemente divulgados pela Receita Federal e Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) mostram que a riqueza total do país —ou seja, patrimônio, imóveis, propriedades, aplicações financeiras e ações em poder das famílias brasileiras— atinge R$ 16,3 trilhões, sendo que 49% deste valor (R$ 8 trilhões) estão na mão de apenas 1% das famílias. Um imposto emergencial de 4%, aplicável apenas a essas famílias super-ricas, conseguiria eliminar todo o rombo acima mencionado.

Alternativa mais branda seria taxar apenas as aplicações financeiras. Nesse caso, segundo dado de 2019 divulgado pelo respeitado Banco Credit Suisse, existem no Brasil 259 mil famílias com aplicações superiores a R$ 5 milhões.

São chamadas pelos bancos de famílias milionárias ou super-ricas. Mas, em média, cada uma dessas famílias possui o dobro deste valor. Se resolvêssemos taxar apenas essa categoria, e com a mesma alíquota de 4% acima exemplificada para o patrimônio total, então conseguiríamos arrecadar cerca de R$ 100 bilhões; ou seja, um terço do que o país vai precisar. Claro, já seria uma ajuda considerável na guerra contra o vírus.

Taxar a riqueza é algo trivial nos países mais desenvolvidos, e precisamos caminhar para isso, pois estamos entre as nações mais desiguais do mundo. Da lista divulgada no último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, estamos entre os dez piores, ao lado de países africanos muito pobres. Aliás, entre esses países paupérrimos, somos o único que tem alguma importância na economia mundial.

A proposta de taxar a riqueza é necessária apesar de a desigualdade nos países ser medida mais pela renda e menos por propriedade e patrimônio. Mas, quando consideramos a renda, a situação também é calamitosa: o 1% mais rico da população possui 28% da renda total. Só existe um outro país no mundo com tamanha aberração. É o Qatar, uma nação pequena de xeiques e emires.

A verdade é que o Brasil não possui um sistema tributário adequado. Aliás, não fosse o coronavírus, a discussão da reforma tributária estaria efervescente no Congresso neste exato momento. Entre as mudanças necessárias está a necessidade de fazer com que pessoas físicas que possuem lucros em suas empresas ou ganhos em aplicações financeiras e ações voltem a pagar impostos. Como era antes de 1996.

Ao taxarmos os ricos e as grandes fortunas vamos não apenas vencer a guerra contra o novo coronavírus, mas também evitar o colapso econômico iminente. Chegou a hora de o andar de cima colaborar.

Paulo Feldmann
Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas)

De onde veio o dinheiro?, por Nelson Barbosa.

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O dinheiro contra a crise já existia, devido ao desemprego e à ociosidade da economia

A crise da Covid-19 produziu um raro consenso entre economistas. Acostumados a divergir em várias coisas, hoje quase todos nós achamos necessário um aumento temporário e substancial do déficit público para salvar vidas e evitar uma queda maior da economia.

Quase que em um passe de mágica, besteiras como “acabou o dinheiro” ou “PIB público versus PIB privado” desapareceram do debate público. Hoje somos todos keynesianos contra crise.

Diante da mudança de opinião por parte de vários colegas, sinto-me no dever de explicar de onde apareceu tanto dinheiro para combater a Covid-19.

O dinheiro já existia havia algum tempo, devido ao alto desemprego e à alto desemprego e à elevada ociosidade da economia desde 2016, mas vários colegas escondiam esse fato, pois do contrário não poderiam defender um ajuste fiscal draconiano.

Vamos por partes.

O governo financiará suas políticas anticrise com emissão de dívida. O Tesouro colocará mais títulos no mercado, retirando moeda da economia. Ato contínuo, o Tesouro gastará os recursos, reinjetando moeda na economia.

No fim do processo, a dívida pública em poder do mercado subirá, isto é, a sociedade terá emitido uma obrigação contra si mesma, criando poder de compra hoje para ser pago com resultado primário no futuro.

Quanto? A resposta depende do próprio sucesso da política de estabilização. Se as iniciativas derem certo e o PIB se recuperar rapidamente, a sociedade demandará mais moeda, e o Banco Central o poderá criá-la comprando parte dos novos títulos emitidos pelo Tesouro. Como o BC é 100% do Tesouro, isso significa cancelamento de dívida pública por emissão não inflacionária de moeda. O governo não é uma dona de casa.

O restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito, pois o governo não é uma dona de casa. Nesse processo, talvez o resultado primário nem precise subir muito no futuro, se a taxa real de juro cair bastante e o crescimento da economia subir de modo duradouro.

Mas sejamos conservadores. Assumamos que será preciso elevar bastante o resultado primário mais à frente para pagar parte da dívida emitida hoje. Quando?

O ajuste fiscal poderá ser abrupto ou gradual. Se for muito rápido, ele poderá prejudicar a própria recuperação da economia. Se for muito lento, ele também poderá atrapalhar a retomada, consumindo recursos com juros elevados. A arte da política econômica é achar a velocidade ideal e, em breve, nós, economistas, voltaremos a divergir nesse ponto.

Porém, dado que hoje todos corretamente admitem isolamento social para achatar a curva de contágio da Covid-19, espero que a mesma lógica seja aplicada no pós-crise, para achatar o custo social do ajuste fiscal que será necessário.

Por fim, voltando ao tamanho do ajuste em si, tudo depende da taxa de juro real e do crescimento da economia, o que nós, economistas, chamamos de “r menos g” (eu sei, eu sei).

Se a taxa de juro cair de modo duradouro, a conta de juros será menor e, portanto, será necessário menos resultado primário para estabilizar e depois reduzir o endividamento público no futuro.

Mais importante, se a recuperação econômica for mais rápida, parte dos juros será paga com o aumento da arrecadação sobre um PIB maior, diminuindo a necessidade de ajuste fiscal por razões financeiras.

Persistirá a necessidade de ajuste fiscal por questões sociais, para promover justiça tributária e diminuir desigualdade, mas isso é outra história, para outra coluna.

Paro por aqui para respeitar nossa ortodoxia enquanto ela se recupera de keynesianismo pós-traumático.
Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research

Avanços e retrocessos da sociedade brasileira no século XXI: uma análise dos governos petistas e sua herança econômica.

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O artigo faz uma reflexão sobre os governos petistas, dando ênfase do Governo de Dilma Rousseff, seus desafios, impactos e características. Este artigo foi publicado, em quatro mãos, com a professora Deise Maria Marques da Silva Ramos, na Revista Olhar Tecnológica, Volume 5, número 1/2019, ISSN 2358-470X.

 

Leia o artigo completo aqui!

O impacto da crise econômica na juventude, segundo Marcelo Neri.

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A crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas, diz em entrevista exclusiva Marcelo Neri, da FGV Social

Por Davi Franzon – Revista Ensino Superior – Abril/2020.

O agravamento da crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas durante o período mais profundo da recessão. Esse quadro é apresentado com nitidez pela pesquisa “Juventude e trabalho”, realizada pela FGV Social. Na tentativa de compreender a situação enfrentada por aqueles que buscam a primeira oportunidade no mercado de trabalho ou uma recolocação profissional, a Ensino Superior conversou com o economista Marcelo Neri, responsável pelo levantamento. Confira os principais trechos da conversa.

A pesquisa aponta que o agravamento da crise da renda ocorreu nos últimos cinco anos. Qual foi o impacto sobre os ganhos dos jovens brasileiros?

Tivemos um aumento expressivo da desigualdade no Brasil. Uma elevação por 18 trimestres consecutivos. Dentro desse quadro, o jovem brasileiro foi o que perdeu mais, a elevação da desigualdade foi maior. Comparativamente, a crise impactou mais a renda dele (jovem) do que a de grupos tradicionalmente excluídos da população brasileira, como negros, analfabetos e moradores das regiões Norte e Nordeste. Para esta camada da sociedade, a redução foi duas vezes maior que a registrada nas demais. No caso do jovem, ela foi de cinco a sete vezes.

Quando ocorreu esse impacto sobre a renda dos jovens e como isso aconteceu?

A piora da renda dos mais jovens tem seu início no 4o trimestre de 2014, logo na sequência do 2o turno da eleição presidencial, e chega ao 2o trimestre de 2019. Na média, essa perda foi de 14,6%. O ganho médio passou de R$ 664 para R$ 567. Quando falamos nas causas, temos um somatório de situações. O desemprego aumentou muito na base da distribuição, em especial entre os jovens mais pobres, e há também um achatamento dos salários por causa da
precarização. Esse quadro é agravado quando analisamos a situação do jovem de baixa renda.

Falando em emprego, a sondagem mostra uma queda maior dos ganhos entre os jovens com idade entre 15 e 19 anos. A crise impacta diretamente aqueles que estão entrando no mercado de trabalho?

Eu acredito que sim. Nessa faixa, a redução foi de 26,54%, mas é preciso olhar para os componentes desse quadro. O desemprego já era elevado e aumentou muito. O que podemos identificar, como disse acima, é um avanço da precarização, da informalidade. O jovem entra no mercado de trabalho sem a garantia do conjunto de proteção social.

Esse quadro atinge diretamente a renda. Essa faixa da população também enfrenta uma mudança drástica no cenário do emprego. Saímos de um quadro de quase pleno emprego para um universo expressivo de desempregados. O volume de vagas caiu em seis meses o que ofereceu em seis anos.

Esse quadro deixa o mercado mais exigente? A pesquisa mostra uma perda de renda na faixa de 20 a 24 anos. Essa parcela da população, que na maioria dos casos já possui uma experiência, também tem enfrentado dificuldades?

Aqui, temos situações distintas. No caso do jovem que busca o primeiro emprego, ele acaba naquele processo: não tem experiência e não consegue ser contratado e vice-versa. Quando você entra nessa outra faixa etária, as histórias de vida são muito diferentes. Podemos encontrar o jovem que não conseguiu entrar antes dos 20 anos no mercado de trabalho ou aquele que só teve acesso em um mercado precarizado. São trajetórias distintas.

Nesse sentido, a partir dos números da sondagem, temos um quadro de desigualdade entre os jovens brasileiros?

Sim. Essa crise evidencia claramente essa situação. Veja, a população jovem é grande no Brasil e continuará nos próximos anos. Com esse cenário de crise, ocorre uma clara desigualdade dentro desse conjunto da população. Como eu mostrei acima, a perda média de renda do jovem foi de 14%. Quando entramos nas camadas da pesquisa, essa queda é de 24% na parcela mais pobre. No caso dos analfabetos, esse percentual sobe para 51%. Mesmo em um grupo que, na média, não perdeu, como é o caso das mulheres, as mais jovens apresentaram uma retração na renda.

Foi possível identificar os fatores que mais contribuem com a desigualdade entre os jovens brasileiros?

De maneira geral, as causas dessa desigualdade não diferenciam muito daquelas que atingem o conjunto da sociedade brasileira. Temos o aumento do desemprego, a redução da jornada de trabalho e a queda do salário por hora/ano de estudo. Essa é uma característica importante dessa crise, ela devolveu uma importância para a manutenção ou aumento de renda para os mais escolarizados.

Essa característica (a importância do estudo) é diferente do quadro diagnosticado antes do agravamento da crise econômica?

Completamente. A situação até o quarto trimestre de 2014, início de 2015, era totalmente distinta. Tivemos, nesse período, um boom social. A renda da camada menos escolarizada da população apresentou um aumento superior ao da mais escolarizada. Houve um ganho para quem possuía apenas o ensino médio e uma queda entre os que possuíam nível superior. A partir da crise, houve uma inversão.

Seguindo essa análise, essa crise da renda deu mais peso para o ingresso e, principalmente, conclusão de um curso de ensino superior?

Sim. O jovem com maior tempo de estudo ganha mais e tem outras vantagens. Claro, você sempre vai ouvir a história do engenheiro que está dirigindo para empresas de aplicativos e outros profissionais que não exercem a profissão escolhida. Mas, na média, o número de engenheiros fora do mercado de trabalho é menor quando comparado com aqueles que têm apenas o ensino médio.

É possível quantificar essas diferenças entre os mais e menos escolarizados na sociedade brasileira?

É sim. Um profissional com ensino médio completo ganha, em média, R$ 2,2 mil por mês. Quando você pega aquele que tem superior completo, esse valor salta pra R$ 4,7 mil. Vamos falar de empregabilidade. O percentual para o ensino médio é de 84%, para o superior, 90%. A formalidade também é maior: 79,6% (superior) e 70% (médio). O ensino superior só é menor quando o tema é jornada de trabalho, 42,2 horas (médio) ante 41,4 horas (superior). Ou seja, ele possui mais tempo para realizar outras atividades.

A pesquisa aponta uma evolução do chamado “nem-nem” (não estuda e não trabalha). Foi possível identificar os fatores dessa evolução?

Nesse tema, os fatores passam pela recessão, precarização e também uma questão de gênero. Juntos, eles permitem um entendimento desse quadro dos “nem-nem”. No recorte da pesquisa, ele passou de 21,19%, no 4o trimestre de 2014, para 24,53%, no 2o trimestre de 2019. Em contrapartida, houve uma redução, ainda que pequena, entre os jovens que
estudam e trabalham de 12,33% para 11,60%.

As mulheres ainda são as que mais se enquadram nessa situação?

Quando você olha para o quadro fixo, elas são, sim, maioria entre os nem-nem. No segundo trimestre de 2019, o percentual chegou a 30,59%. No caso dos homens, ele é de 18,56%. No entanto, as mulheres, quando comparamos com 2014, apresentaram um avanço mais lento do que o dos homens. Ou seja, como elas estão mais escolarizadas, houve um avanço nos anos de estudo e de acesso ao mercado de trabalho.

Há uma expectativa de melhora nessa crise da renda dos jovens?

Temos alguns sinais a partir de 2017. Não uma retomada do crescimento da renda, mas uma desaceleração das perdas. A decisão do governo de oferecer redução de encargos trabalhistas para a oferta do primeiro emprego para jovens com idade entre 18 e 29 anos pode ajudar nesse quadro. Também temos uma melhora, ainda que tímida, na frequência escolar. Mas ainda há muito a ser feito.

No caso do governo, a pesquisa revela uma insatisfação grande por parte dos jovens. Quais as causas desse quadro?

Os dados são muito claros. Enquanto em outros países a parcela de jovens que confia no governo é de 57,4%, no Brasil ela é de 12%. O jovem brasileiro ocupa a terceira posição entre aqueles que menos confiam nas instituições.

Esse quadro pode ser explicado pela falta de proteção social oferecida para eles. Essa parcela da população não tem uma política voltada para ela. Eles estão em um quadro de precarização do trabalho, de empregos sem carteira assinada, ou seja, sem proteção alguma. Veja o caso da reforma da previdência. Agora, teremos um grupo com direito à aposentadoria e um que terá muita dificuldade para consegui-la. Os mais velhos conseguiram defender sua cota de proteção social, os mais jovens terão que pensar em capitalização, previdência privada. Isso ajuda a entender esse descrédito para com o governo. Temos de lembrar, também, que os estados estão quebrados. E isso impacta diretamente a vida dessa população, seja em relação à oferta de transporte público, de empregos e no combate à violência. Fatores com impacto direto no dia a dia.

Olhando para o ensino superior ofertado no Brasil. Ele dá conta das necessidades dos jovens?

As universidades, hoje, acabam suprindo deficiências da origem dos estudantes. Elas têm de oferecer cursos de português, matemática e outros para permitir que o aluno siga no curso. Esse quadro, obviamente, impacta a formação do futuro profissional. No geral, temos uma boa oferta de cursos superiores. Agora, se dá muita ênfase em cursos profissionalizantes, cursos técnicos. Há um debate sobre um suposto bacharelismo no Brasil, se a busca por um diploma é ou não a solução para poucos. Mas é preciso lembrar que, ao se olhar para o conjunto da sociedade brasileira, o grupo com curso superior completo ainda é relativamente baixo.

“Epidemia e Crise Social”. Artigo de José de Souza Martins.

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“As justificativas geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de 2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do descarte daqueles que não tiveram acesso a UTI, nem a tratamento, nem à recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção da riqueza social.

O peneiramento definirá a consciência política da crise”, escreve José de Souza Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34).
O artigo foi enviado pelo autor.

Segundo o sociólogo, “quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade. A sociedade de setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de referência serão outros, seus sentimentos outros, suas crenças outras. O governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente”.

Esta epidemia a Covid-19 terá consequências socialmente duradouras, como já aconteceu, em várias sociedades, em outras situações de pânico e em situações de guerra. Nesses momentos, as insuficiências, fragilidades e limites de uma sociedade ficam expostos e motivam o despertar do lado crítico da consciência social.

Reinterpretações até radicais substituem a passividade do senso comum. Emerge a possibilidade de transformações sociais necessárias à correção dos problemas de organização da sociedade revelados pelas ocorrências inesperadas. Pandemias são expressões, também, da fragilidade social e da limitada durabilidade das estruturas sociais. Se elas não se renovam na vida cotidiana, se a sociedade não se reproduz, o vazio expõe os carecimentos radicais que promovem a revolução das inovações sociais profundas que possa resolvê-los.

Nossa sociedade ainda não se deu conta da extensão das mudanças sociais que decorrerão da pandemia, tanto na enfermidade quanto nas fantasias que alcançarão a mentalidade popular e as normas sociais com elas relacionadas. São as racionalizações para explicar o inexplicável, tentativas de senso comum para adivinhar causas e fatores das ocorrências e reagir a eles.

Tardiamente, descobriremos, em comparação com países prósperos, alcançados pela pandemia, que a cópia de modelo econômico aqui implantada em 1964 permitiu à economia brasileira produzir lucros de primeiro mundo graças à remuneração do trabalho de terceiro mundo. Relativizaram-se os direitos sociais, o que vem sendo completado no governo de Jair Messias. Implantou-se no país um capitalismo imprevidente e sem horizontes. O empresariado não é inocente nesse equívoco lucrativo, mas anticapitalista. Não foi capaz de construir um capitalismo que, para sê-lo, não pode ser imprevidente, não pode desconhecer o direito de todos a uma quota-parte dos frutos do trabalho social.

As justificativas geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de 2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do descarte daqueles que não tiveram acesso a UTI, nem a tratamento, nem à recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção da riqueza social.

O peneiramento definirá a consciência política da crise.

A pandemia nos dirá o que somos porque anulará a eficácia das máscaras sociais de que a sociedade moderna carece para parecer o que não é, para legitimar-se, desde que nelas acreditemos. A Covid-19 as derreterá. Nossa inautenticidade de sobrevivência será corroída pelo vírus invisível. O próprio rei já está nu.

Uma das várias consequências de desastres como esse é a de anular a relevância das certezas, mesmo de muitas certezas científicas. São desastres que anulam o sentido de normas e valores sociais, das referências da conduta costumeira.

A primeira tendência é a da desagregação da ordem social, o que, em decorrência pode desagregar a ordem econômica e a própria ordem política. É pouquíssimo provável que a sociedade contemporânea, como a conhecemos, sobreviverá ao poder destrutivo do vírus. De vários modos, a sociedade já será outra daqui a seis meses. Nesse meio tempo, terá ela inventado novas regras sociais, novos hábitos, redefinirá prioridades. Relativizará referências que nos regulam há, pelo menos, três gerações. O que valia ainda no outro dia já terá deixado de valer. O modo de vida de classe média a que estamos acostumados, nestas horas, já estará reformulado.

A raiva de classe média que sustentou a irresistível ascensão de Jair Messias ao poder terá sido derrotada pelos sentimentos comunitários que estão renascendo intensamente sobre as cinzas da sociedade que renunciou aos seus deveres na eleição de outubro.

Quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade. A sociedade de setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de referência serão outros, seus sentimentos outros, suas crenças outras. O governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente. Isso valerá tanto para o presidente da República, quanto para senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais.

Sob outro tipo de catástrofe, algo parecido já havia derrubado o petismo. O escândalo do mensalão corroeu a base moral do PT e do sistema partidário. Apesar das reeleições, tanto de Lula em 2006, quando de Dilma, a sociedade já se distanciara deles, o que se evidenciou nos movimentos de rua de 2013. Bolsonaro também poderá provar o gosto da ruptura agora.

‘Uberização’ do trabalho. Entrevista com Ricardo Antunes.

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O sociólogo Ricardo Antunes é um incansável pensador sobre o mundo do trabalho. Pós-doutor pela Universidade de Sussex (Inglaterra) e professor titular de Sociologia do Trabalho na Unicamp, perdeu a conta dos artigos científicos, capítulos, e, claro, livros lançados no Brasil e no exterior ao longo de sua carreira acadêmica. Publicações em que aprofunda análises sobre as dinâmicas, contradições e opressões do mercado de trabalho nas últimas décadas.

O livro mais recente tem no título o que pode ser tomado, dentro de uma relação de trabalho, como uma ironia ou provocação ao lado mais forte da corda (o do empregador), em razão das agruras a que vem submetendo o lado mais fraco dela (naturalmente, o do empregado). Relação, a propósito, em condições flagrante e abertamente desequilibradas, dada a situação dos agonizantes direitos trabalhistas, atacados em múltiplas frentes, sobretudo nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro (mas com balões de ensaio ainda nos anos de Collor e FHC).

A entrevista é de Heitor Peixoto, publicada por Congresso em Foco, 25-07-2019.

A obra é “O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital”, lançado pela Boitempo Editorial. A primeira parte do título, a tal provocação mencionada acima, é citação literal garimpada do escritor e filósofo Albert Camus. No livro de Antunes, é como uma alegoria sobre a situação vivida por um número crescente de trabalhadores no Brasil, especialmente aqueles que vêm se agarrando ao precário trabalho em aplicativos como Uber, Cabify, Rappi e tantos outros, para mover o pescoço acima do pântano do desemprego crônico e persistente nos últimos cinco anos.

Em tempos do que o sociólogo chama de “uberização” do trabalho, “se homens e mulheres tiverem sorte hoje, o seu trabalho será precário”. Serão servos, e isso ainda assim será um privilégio, em comparação com o desastre ainda maior, que é o do desemprego.

Foi neste julho friorento que Antunes deu uma pausa em suas férias acadêmicas para, literalmente, falar de trabalho, nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.

Eis a entrevista.

O livro expõe as vísceras do que chama de “uberização” do trabalho, processo que talvez devesse suscitar um urgente debate sobre consciência de classe, dada a precarização a que esses trabalhadores estão submetidos. Mas como fazer esse debate e promover uma luta contra esses efeitos, quando esse trabalho precarizado é tudo o que restou para tantos trabalhadores brasileiros?

Essa forma que nós hoje denominamos como “uberização do trabalho” é o mascaramento de relações assalariadas, que assumem a aparência do trabalho do empreendedor, do trabalho do prestador de serviços, dos trabalhos desprovidos de direitos.

Nós vimos recentemente a morte de um trabalhador que estava entregando alimentos do Rappi. Quando ele começou a se sentir mal, não teve nenhum tipo de atendimento digno dentro da empresa para a qual estava entregando aquilo que foi solicitado a essa empresa, não teve atendimento por parte do serviço público de saúde, e essa é a tragédia dos trabalhadores, digamos assim, “uberizados”.

São trabalhadores que seguem o que na Inglaterra se chama “o contrato de zero hora” (“zero-hour contract” em inglês; ou os “recibos verdes” em Portugal; ou o que existiu na Itália até 2017: o trabalho pago por voucher). São modalidades de trabalho intermitente, em que os trabalhadores são chamados a trabalhar, e só recebem por aquelas horas que trabalham. O tempo que eles ficam esperando, eles não trabalham.

Os direitos desaparecem, porque se desvanece a figura do trabalhador ou da trabalhadora, e se faz aflorar a falsa ideia de um empreendedor, de um PJ, de um trabalhador que é dono do seu instrumental de trabalho, e isso faz com que a degradação da vida no trabalho no capitalismo do nosso tempo chegue a um patamar que se assemelha, em plena era informacional-digital, à era da revolução industrial.

É por isso que eu digo no meu livro que nós estamos vivendo uma era de escravidão digital. O mundo maquínico informacional-digital, ao invés de trazer a redução do tempo de trabalho, as melhores condições de trabalho, mais tempo de vida fora do trabalho, menos penúria no trabalho, tem sido o oposto.

Por quê? Isso é muito importante: porque se trata de uma tecnologia que não tem valores humanos ou societais. O mundo informacional do nosso tempo, do qual a indústria 4.0 é o seu pretenso ápice, não tem um sentido humano ou societal, e sim um sentido de valorizar, ampliar a riqueza das grandes corporações.

O resultado disso é que nós temos uma heterogeneidade muito grande do trabalho, mas com um traço em comum: a homogeneização que caracteriza esse mosaico de trabalhos distintos, que é a tendência à precarização. Esse vai ser, digamos assim, o ponto mais importante nas lutas do nosso tempo.

Nós vimos em maio deste ano uma primeira paralisação, uma primeira greve de amplitude global dos trabalhadores e das trabalhadoras da Uber. Naturalmente, que ninguém possa esperar que a primeira greve seja a mais potente de todas, mas ela é um exemplo de descontentamento frente a esse tipo de trabalho. Os trabalhadores e as trabalhadoras sabem que para sobreviver trabalhando numa empresa como Uber, Cabify, 99, Rappi e todas as outras que nós não paramos de ver crescer, eles têm que trabalhar 10, 12, 14, 16, às vezes 18 horas por dia. Isso coloca uma questão fundamental: não é possível aceitar.

E como é que é possível lutar contra esses efeitos?
Primeiro: retomar as questões vitais. O trabalho deve ter, na medida em que ele se constitui numa atividade vital, elementos de dignidade, que essa nova modalidade de trabalho não apresenta. Segundo: não é possível aceitar a corrosão, a derrelição, a devastação cabal dos direitos do trabalho.

Nós acabamos de ver no Congresso essa medida horrorosa da chamada liberalização econômica, em que, de sopetão, algumas dezenas de artigos da CLT estão sendo fraudados novamente. O Brasil está se convertendo numa Índia. Esse monumental país da Ásia, com mais de um bilhão de habitantes, tem centenas de milhões de trabalhadores desempregados. E mais: a Índia tem um contingente imenso de indivíduos que estão abaixo da linha mínima da dignidade humana. São pessoas que vivem um padrão de vida típico de um indivíduo que tenta sobreviver na indigência.

O Brasil caminha tragicamente para esse quadro de indigência que tipifica a Índia, e não é por acaso. Tanto lá na Índia como aqui, há uma burguesia riquíssima, que não tem limites em se expandir. Basta dizer que os cinco maiores e mais ricos empresários brasileiros recebem uma renda que se aproxima àquela que é produzida por 100 milhões de pessoas no mesmo país. É esse nível de tragédia social que nós não podemos aceitar.

Na obra, você mostra que também a classe média estaria num processo de corrosão, que a aproxima mais do proletariado do que da elite, dando como exemplo profissões outrora elitizadas, mas que já começaram a enfrentar a precarização (como médicos e advogados). A falta de consciência de classe também está presente entre esses?

A primeira questão importante aí é que a consciência de classe é algo que articula elementos objetivos e subjetivos. Por exemplo: a “uberização” do trabalho leva à fragmentação, à intensificação do trabalho, à exploração, à individualização, mas, num dado momento, esse processo, essa intensidade, esse ritmo e essa superexploração do trabalho acabam gerando formas de solidariedade, de sociabilidade, que resultaram, em meados de maio deste ano, na primeira paralisação global da Uber.

As classes médias são um contingente social heterogêneo. As classes médias mais altas, que vivem estritamente do trabalho intelectual, já não têm mais as mesmas condições sociais do passado. Hoje você tem médicos que estão proletarizados, que trabalham em várias empresas fornecedoras de serviços de saúde (convênios). Nós temos advogados hoje que trabalham como “sócios” de escritórios. Se eles não levam trabalho para esse escritório e não realizam esses trabalhos, não recebem. É uma espécie de trabalhador que tem que buscar o seu trabalho. Para poder vendê-lo. Para depois poder sobreviver.
Tudo isso cria dificuldades com relação à consciência de classe. Ela decorre também do espírito do tempo, e o espírito do nosso tempo é de devastação, de contrarrevolução, de neoliberalização, de financiarização. Nós estamos vivendo uma etapa difícil da história mundial.

Os anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e especialmente o ano de 2013 foram de rebeliões. Começou pela Tunísia, esparramou-se por todo o Oriente Médio, Egito e tantas outras partes; rebeliões na Europa, como na França, na Inglaterra, na Grécia, em Portugal, na Espanha; o Occupy Wall Street nos EUA. Houve um conjunto de descontentamentos, revoltas e rebeliões.

De algum modo, [os atos] foram se escasseando, foram se exaurindo, e, a essa era de rebeliões, sucedeu-se uma era de contrarrevoluções. Isso se expressa politicamente na vitória da direita e da extrema-direita em várias partes do mundo, como um desencanto com o período anterior. Não é a direita que está sendo vitoriosa. É a extrema-direita, como nós estamos vendo inclusive no caso brasileiro.

Ainda no seu estudo, vemos que Collor e FHC tentaram promover alterações mais profundas na legislação trabalhista e não conseguiram. O que faltou aos dois em suas respectivas conjunturas, e que, adiante (no caso, nesses últimos anos), deixou de ser obstáculo às medidas rumo à precarização?

Collor e Fernando Henrique Cardoso foram vitoriosos (eleitoralmente) em um outro momento da história. Foram governos subsequentes à ditadura militar. Como sabemos, o primeiro governo foi de Sarney, uma espécie de governo inusitado, tampão (porque Sarney não foi eleito; quem foi eleito pela via indireta foi Tancredo Neves), mas Collor e Fernando Henrique tentaram introduzir o neoliberalismo no Brasil e, consequentemente, essas reformas nefastas, e havia naquele período um sentimento antineoliberal muito importante aqui.

Na década de 1980, houve no Brasil os mais altos níveis de greves, inclusive comparado a outros países. Esse movimento dos anos 80 constituiu uma barreira importante para Collor: esse governo grotesco, esse neoliberalismo completamente irracional no seu modus operandi, essa irracionalidade, tudo isso fez com que em dois anos esse governo desaparecesse. O impeachment o levou de roldão. E o Fernando Henrique Cardoso subiu para implantar um neoliberalismo racional, mas ele sofreu também muita oposição.

O que é diferente em relação ao período atual? Vamos pegar o governo Temer e agora Bolsonaro: é uma era de contrarrevolução preventiva de amplitude global, de neoliberalismo extremado, de financeirização sem limites da economia, de devastação dos direitos sociais. É o fim de qualquer experiência de conciliação de classes. E este cenário – a vitória de Trump nos EUA; o Brexit na Inglaterra; a Le Pen quase ganhando as eleições na França, e Macron conseguindo derrotá-la porque contou com o apoio dos votos do centro e da esquerda, temerosos que estavam, com medo de um governo fascista como Le Pen; a vitória de um governo protofascista na Hungria; a expansão do neonazismo na Alemanha e em várias outras partes do mundo -, todo esse cenário favoreceu com que o neoliberalismo extremado vivesse o seu período de ataque frontal.
A diferença é essa: aquele primeiro momento, com Collor e Fernando Henrique, era uma época de avanço contra o neoliberalismo. Agora, nós estamos vivendo uma era de contrarrevolução, que quer aprofundar um liberalismo extremado.

No meio desses modelos neoliberais que já comandaram o país, tivemos na primeira década do século a ascensão de governos do PT no plano federal, partido nascido da classe trabalhadora. Você fala em avanços e recuos ocorridos nos governos petistas. Quais são eles?

Eu procuro trabalhar mais detalhadamente esse tema no meu livro. O PT nasceu talvez como o mais importante partido de massas, de esquerda, na América Latina, e que tanta influência teve em tantos países do mundo. Mas entre os anos de nascimento do PT – a sua primeira década – e o que veio depois, pouco a pouco o PT foi deixando de ser um partido de classe e de massas, para se tornar um partido adequado ao processo eleitoral. E quanto mais ele adentrava no processo eleitoral e fazia uma mutação – metamorfoses para se tornar palatável, aceito pela ordem no Brasil -, mais ele perdia o vínculo original de classe.

De tal modo que o PT que ganhou as eleições em 2002 é muito diferente do PT que perdeu as eleições em 1989. O que ganhou tinha em suas propostas a “Carta aos Brasileiros” que deixava claro que os bancos não teriam que ter nenhum receio com relação ao governo do PT. E assim foi. Foi essencialmente um governo de conciliação de classes, um governo que trouxe avanços, é inegável, especialmente durante os dois primeiros governos Lula (especialmente o segundo governo) e parte do primeiro governo Dilma.

Mas a partir de um dado momento, quando a crise econômica global atingiu o Brasil (a partir de 2013), a devastação aqui foi de grande monta. Aliás, as rebeliões de 2013 sinalizaram isso, e o governo Dilma foi incapaz de entender que o descontentamento que ali emergia tinha similitudes com esses descontentamentos que estávamos vivenciando em várias partes do mundo.

O resultado, isso é muito triste, mas é importante constatar: o governo do PT, mesmo criando 20 milhões de empregos, o Bolsa Família, e trazendo um pequeno mas relativo aumento salarial, especialmente quando comparado ao do governo Fernando Henrique Cardoso, no conjunto das suas medidas, das suas ações, não trouxe nenhuma mudança estrutural significativa. A estrutura concentrada da terra se manteve, mas o governo do PT foi um enorme incentivador do agronegócio – o Lula chegou a dizer, pasmem, que os grandes heróis brasileiros eram os donos do agronegócio (eu espero que ele tenha se arrependido profundamente dessa frase, dado o absurdo que ela significa, e o que se passou com o [próprio] Lula depois). E nenhum interesse financeiro foi tocado.

O Lula também disse que nunca os bancos tinham ganho tanto dinheiro como no seu governo. E ele tinha razão. Só há um equivalente ao lucro bancário quando a ditadura militar também veio e o incentivou. Foi o primeiro salto financista no Brasil. Sob o governo Lula, os bancos se expandiram, bem como a indústria da construção civil e várias outras, com os vários projetos do BNDES, de incentivo ao empresariado brasileiro. Favoreceram a transnacionalização de alguns setores da nossa burguesia, que entraram no mercado externo.

Foi inclusive essa simbiose entre os governos do PT (especialmente sob Lula) e esse empresariado que se expandiu, que fez com que, aos poucos, o PT adentrasse num terreno do qual ele sempre foi crítico, que foi o terreno da corrupção. Todos nós sabemos que a corrupção não nasceu com o PT. Todos nós sabemos que a corrupção sempre foi o espaço preferencial da direita, da centro-direita e dos partidos burgueses.
Por certo, é verdadeiramente uma tragédia que, num dado momento, um partido de esquerda como o PT tenha sido partícipe dessa tragédia da corrupção, que foi um dos elementos que levaram, inclusive, à sua derrota e ao impeachment da presidente Dilma. Nós sabemos que esse impeachment se deu não pela chamada corrupção, mas quando, na crise de 2013 para cá, aos poucos os interesses da burguesia começaram a ser afetados.

Num momento de crise, a primeira decisão das nações burguesas é “vamos jogar o ônus da crise em cima da classe trabalhadora”. O que estão fazendo [agora], e que o governo Temer fez por excelência. Todas as medidas do Temer eram de um verdadeiro governo terceirizado. Temer foi posto por um golpe, para começar a devastação social no Brasil que o governo de conciliação do PT não podia fazer nessa intensidade. E isso fez com que o quadro se modificasse profundamente.

Então, as vantagens ocorreram: aumento de emprego, melhor política salarial, mas as questões estruturais não foram afetadas, seja no plano da estrutura agrária, financeira, urbana, da política de transporte coletivo, da saúde pública e de um conjunto de outros elementos com os quais, em 2013, com as rebeliões, nós víamos a população manifestar um enorme descontentamento.

Mesmo com toda a aridez da realidade que traz em seu livro, você demonstra algum otimismo, ao dizer que não imagina que a história do trabalho terminará nos parâmetros de hoje. Que horizonte vislumbra à frente e, antes disso, como os trabalhadores de agora conseguirão vencer essa conjuntura tão nefasta?

O genial dos processos históricos, da construção humana ao longo da história, é que ela é imprevisível. Nós tivemos depois da era das trevas da Idade Média um período espetacular do Renascimento. Depois da era feudal, do obscurantismo da igreja durante a Idade Média, dos governos absolutistas profundamente autocráticos, nós tivemos a Revolução Francesa, com a liberdade, a igualdade e a fraternidade, com lutas sociais. Depois do fracasso da Revolução Francesa, nós tivemos as revoluções de 1848 e a eclosão da Comuna de Paris, em 1871.

Ou seja, a história é imprevisível, e não é possível que no caso brasileiro, 30 milhões de trabalhadores sem emprego ou com emprego precarizado, uma taxa de informalidade explosiva, uma corrosão completa dos direitos sociais, a perda dos direitos previdenciários… É impossível imaginar que essa sociedade não tenha força para se rebelar.

Que horizonte eu vislumbro? Florestan Fernandes falava de uma era de contrarrevolução preventiva (quando não há o risco das revoluções). É o período em que as classes dominantes se reorganizam e fazem uma era de devastação. Mas também a era das contrarrevoluções é finita.

Não há na história um período eterno. E o que é mais importante: nós adentramos em uma nova era de lutas sociais de tipos diferentes. Nós não temos mais a mesma classe trabalhadora que tínhamos nos séculos XVIII e XIX, seja nos EUA, seja na Europa, seja na China, seja na Índia, seja no Brasil. Mas nós temos uma nova morfologia da classe trabalhadora, em que, por exemplo, a explosão do proletariado de serviços da era digital é o elemento quantitativa e qualitativamente mais importante.

Esse novo proletariado de serviços das empresas de call-center, telemarketing, hipermercados, fast-food, indústria de turismo, indústria hoteleira, motoboys; essa massa de trabalhadores que hoje está uberizada, trabalhando em empresas sob as condições mais violentas; é evidente que está nascendo aí um novo contingente heterogêneo dentro da classe trabalhadora, e que vai ser responsável por muitas lutas sociais.

Para quem olha a história, não para os últimos cinco anos, mas olha a história por um longo e amplo período, para quem olha a história na amplitude que ela tem, a história não é nem linear, nem estável, mas o mais espetacular dela é a sua imprevisibilidade.

Quem podia imaginar que a China, um país enorme, que fez uma revolução camponesa e popular em 1949, liderada por um partido comunista, e que num primeiro ciclo tentou instaurar um modelo autárquico, fechado, depois de 20 ou 30 anos passasse por um processo que fez com que se tornasse um país que hoje disputa no mundo global o papel de grande potência capitalista? Eu não vou discutir aqui o caráter da China, mas imaginar que a China seja hoje uma potência socialista… É preciso uma dose razoável de otimismo para ver o socialismo onde a exploração do trabalho é intensa, a destruição ambiental é intensa, as lutas sociais são intensas…

Ou seja, o mundo é imprevisível. É isso que permite que o otimismo seja um traço da minha perspectiva, mesmo quando a análise que eu faço do cenário global seja dura e pessimista.

Você é um crítico agudo do capitalismo, atribuindo a ele “a tragédia do desemprego, da destruição ambiental, do risco iminente de guerras mundiais, da propriedade privada das grandes corporações” e de outras mazelas. Por que, contudo, o grupo que exalta esse modelo saiu tão fortalecido das últimas eleições? E por que o socialismo continua sendo visto de maneira tão negativa por parcelas tão numerosas da sociedade brasileira?
O capitalismo vive um momento vitorioso? Vive. Por quê? Porque nós tivemos neste último período, especialmente o período que eu chamei “a era das rebeliões”, um refortalecimento do capitalismo pela via da extrema-direita.

É um período de contrarrevolução de amplitude global, em que houve um desgaste das chamadas experiências “socialistas”, não só o “socialismo” da URSS, do leste europeu, da Coreia, da China, e aí há uma imprecisão na social-democracia europeia: no Partido Socialista francês, desde Mitterrand até Hollande, em todos os governos que foram “socialistas”, não houve nenhuma mudança substantiva da sociedade francesa. O governo “socialista” na Inglaterra, desde o antigo Labour Party(o antigo Partido Trabalhista inglês), até o período do New Labour, com Tony Blair, foi uma vertente branda do neoliberalismo, ou, como eu costumo chamar, uma vertente social-liberal.

Ou seja, em nome do socialismo, práticas capitalistas no fundo neoliberais foram feitas.
O mesmo se passou na América Latina. O governo Lula, eu não caracterizo como um governo socialista. Foi um governo social-liberal. Os pilares fundamentais da política econômica do governo Lula foram neoliberais. Não é por acaso que teve um papel proeminente no governo Lula o ministro Meirelles, que foi chamado para ser presidente do Banco Central, e que tinha sido até pouco tempo antes presidente mundial do Banco de Boston. Isso fala por si só.

Ou seja, aquele pêndulo eleitoral que é muito presente na Europa (partido conservador e partido liberal, ou partido democrático, ou partido socialista); nos EUA (partido democrata e partido conservador); na Inglaterra (Labour Party e o “tories”, o partido conservador); na França (o partido de “esquerda” e o partido de direita). Esse pêndulo levou a um desgaste profundo. As democracias do capital se mostraram incapazes de preservar as conquistas sociais, por exemplo, dos países do Welfare State [estado de bem-estar social].

Então, o cenário é muito complicado. E as revoluções socialistas também fracassaram. Quase todas as experiências socialistas foram fracassadas. Isso é uma evidência. De tal modo que o socialismo tem que ser reinventado. E ele será reinventado a partir de uma autocrítica profunda das suas experiências anteriores.

Por que que ele é mal visto no Brasil? Porque a extrema-direita que venceu as eleições em vários países (nos EUA; na Hungria; nas Filipinas; tem um primeiro-ministro na Itália de claro traço fascista; no caso brasileiro, não paira dúvida de que o grupo vitorioso foi a extrema-direita) jogou em cima desse quadro muito caótico do nosso tempo, de contrarrevolução, de medo de perda de emprego, de ódio ao imigrante, de ódio ao estrangeiro, de ódio aos, digamos assim, chamados “vermelhos”.

Você imagina: o governo do PT não tomou nenhuma medida socialista no Brasil, não há nenhuma medida que aproxime levemente o governo do PT ao socialismo, não há nenhuma medida tomada pelos governos no Uruguai, no Chile, no período de centro-esquerda desses países, que poderia ser chamada de medidas socialistas. Nem a mais remota. Mas estamos vivendo uma era tenebrosa, das trevas.

Ela vai passar, mas a contrarrevolução tem que criar alguns dos seus inimigos. E o que é essa era de contrarrevolução? Ela é impulsionada por uma trípode destrutiva: 1) uma reestruturação permanente do capital, que cria essa mutação tecnológica ilimitada; 2) o neoliberalismo extremado; e 3), que é o mais importante (e isso é passageiro na história, mas é um período de hegemonia): do mais parasitário, da mais destrutiva de todas as formas do capital, que é o capital financeiro.

Se houve um momento em que o neoliberalismo estava abaixo do nível mais baixo da fossa, agora é um momento de hegemonia da aberração neoliberal. A história é imprevisível, para um lado e para o outro. E é dessa imprevisibilidade que há momentos de ascensão e mesmo de hegemonia de valores de esquerda, e há momento de ascensão e de hegemonia de valores e de aberrações da extrema-direita.

Você aponta a inviabilidade do modelo de trabalho intermitente, por não permitir qualquer perspectiva de futuro. E por falar em futuro, estamos no auge dos debates sobre reforma da previdência. Que leitura faz do projeto em tramitação no congresso? Ele permitirá alguma saída para o país, como defendem seus autores, ou intensificará as mazelas do mercado de trabalho adiante?

Não paira nenhuma dúvida nesse ponto. A chamada “Nova Previdência” é o fim da previdência pública no Brasil. Ela é a expressão mais pura de um projeto cujo objetivo principal é tirar do Estado a obrigatoriedade de um sistema previdenciário minimamente digno e justo. Transferi-lo para o mercado, pela via medonha da capitalização, e, desse modo, fazer com que os trabalhadores e as trabalhadoras tenham que pagar, sem a presença do patronato e sem a presença do Estado. Pela via da capitalização, como se os trabalhadores e as trabalhadoras pudessem fazer poupanças “poupudas” para o seu futuro, se quiserem ter previdência. [Nesse ponto, Ricardo Antunes lembra que a proposta da capitalização está, por ora, afastada, mas não duvida de que a ideia possa ser recuperada adiante].

É evidente que há um ponto crucial nessa reforma, que é pouco tratado: se no Brasil, expande-se hoje o trabalho intermitente; se no Brasil, generalizou-se o trabalho flexível; se no Brasil, generalizou-se o espaço da terceirização, que é, em si e por si, o espaço da burla, como é que eu posso imaginar que os trabalhadores e as trabalhadoras mais pobres, das cidades, do campo, possam tirar recursos para capitalizar, para fazer uma poupança capitalizada? Quantos anos os trabalhadores terão que viver para se aposentar, se o seu trabalho é intermitente? Se ora trabalha e ora não trabalha? Quantos anos vão ter que trabalhar, ou vão ter que pagar sem receber?

Então, a reforma da previdência na verdade é o fim da previdência pública no Brasil. As classes médias vão se virar com a capitalização, e as classes ricas, as classes burguesas, essas não precisam de previdência. A sua previdência está garantida pelos bancos que têm, pelas indústrias, pelas fazendas, pelas fábricas, pelo comércio, pelas propriedades em geral que têm.

O elemento mais nefasto dessa reforma é como tornar previdente o trabalho intermitente. É evidente que essa reforma não trata disso. Ela já foi alterada pelo Congresso, mas é um Congresso de maioria neoliberal. Aliás, essa é a “grande qualidade” do [Rodrigo] Maia. O Maia se mostra um político competente, de alma neoliberal, e por isso é que ele está sendo um batalhador da reforma que nasceu das mãos – ou dos pés – do Guedes.

Nós estamos num quadro e num momento difícil. Mais uma desmontagem que nós estamos vivendo no Brasil. Entre tantas outras.

Você diz que o livro é uma resposta a um conjunto de mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho nas últimas quatro décadas. Que mudanças são essas, e, mais do que isso, que resposta a sua análise nos traz?

As mudanças que vêm ocorrendo no mundo do trabalho decorrem de um processo que se inicia com a crise estrutural de 1973, portanto, algumas décadas atrás, quando o padrão taylorista e fordista (a grande fábrica, a grande indústria, a grande empresa, que teve vigência e dominância no século XX) entrou em processo de crise profunda.

Ela foi substituída pela concepção de uma chamada “empresa enxuta” (em inglês, “lean production”). Uma empresa onde cada vez mais o trabalho vivo é retraído, e cada vez mais se expande o trabalho morto, o maquinário informacional digital. E a partir daí, desenvolve-se um processo de computadores, smartphones, essa miríade de equipamentos do chamado mundo informacional digital, que não para de se expandir, porque ele é comandado pelo capital financeiro e pela necessidade das grandes corporações globais. Dez, quinze, vinte grandes corporações globais, que impulsionam esse processo, naquilo que o Karl Polanyi chamava de um “moinho satânico”, e o resultado disso é o plano da classe trabalhadora em escala global: mais informalidade, mais flexibilidade, mais precarização.

A indústria 4.0, por exemplo, que é a proposta que está sendo hoje apresentada em todos os cantos do mundo vai consolidar esse projeto. Tal como ela está sendo proposta, ela terá como consequência a criação de um núcleo pequeno de novos trabalhos, aqueles mais sintonizados com as tecnologias de informação e comunicação, e uma destruição em massa, em escala monumental, profunda nos países capitalistas do norte e mais profunda ainda nos países capitalistas do sul, daquele conjunto de empregos que vão ser substituídos pela internet das coisas, pela inteligência artificial, pela impressão 3D, pelo big data, ou seja, esse arsenal tecno-informacional-digital, que, se fosse voltado para o atendimento das necessidades humano-sociais, teria uma resultante. Mas a finalidade desse processo é, na verdade, o avanço das grandes corporações.

Eu dou um exemplo: a disputa entre a chinesa Huawei e a Apple norte-americana. Em que isso afeta a humanidade? E o que de positivo isso traz para a humanidade? Nada. É uma disputa entre quem vai dominar o mundo informacional digital, o mercado consumidor dos smartphones nos próximos anos. E isso, digamos assim, não tem significado humano ou societal de grande amplitude.

“Pandemia democratizou poder de matar” segundo Achille Mbembe.

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Diogo Bercito
FSP – 31/03/2020

O coronavírus está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Ao sair de casa, afinal, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Já há mais de 775 mil casos confirmados e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”, Mbembe afirma. “O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder”.

Mbembe, 62, é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo “necropolítica”. Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá —e de que maneira viverão e morrerão.

Ele leciona na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Na sexta-feira (27), a África do Sul registrou as primeiras mortes pelo coronavírus.
A necropolítica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todas as pessoas de uma maneira igual.

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtividade.

“Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida”, disse o brasileiro recentemente.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado”.

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia? Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavírus é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar…

E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando. Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte? Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamento. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outras pessoas também se isolarem? Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incineradas ou enterradas imediatamente, sem demora.

Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidamente possível.
Essa lógica de descarte ocorre justamente em um momento em que precisamos, ao menos em tese, da nossa comunidade. E não existe comunidade sem podermos dizer adeus àqueles que partiram, organizar funerais. A questão é: como criar comunidades em um momento de calamidade?

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade? A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.
Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa. Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratizado. O isolamento é precisamente uma forma de regular esse poder.

Outro debate que evoca a necropolítica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorização do resgate da economia. 

Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexuais, usuários de droga? 

Na teoria, o coronavírus pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados. Mas uma coisa é estar confinado num subúrbio, numa segunda residência em uma área rural. Outra coisa é estar na linha de frente. Trabalhar num centro de saúde sem máscara. Há uma escala em como os riscos são distribuídos hoje.

Diversos presidentes têm se referido ao combate ao coronavírus como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolítica. 

Existe dificuldade em dar um nome ao que está acontecendo no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados em todo o mundo retomar as antigas terminologias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalismo durante esta pandemia? 

Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalistas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes? 

Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo. O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida.

Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

ACHILLE MBEMBE, 62
Filósofo e cientista político camaronense, é formado em história na Sorbonne e em ciência política no Instituto de Estudos Políticos. Lecionou nas universidades Columbia, Yale e Duke; é atualmente professor na Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo. É conhecido pelo ensaio “Necropolítica”, publicado em 2003, em que discute como governos escolhem quem vive e quem morre; escreveu também sobre o pós-colonialismo no continente africano.

Quem elogia tortura, admira torturador, não se coloca no lugar do outro, diz Miriam Chnaiderman

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Para psicóloga e psicanalista, está faltando total empatia ao presidente Bolsonaro durante a pandemia de coronavírus.

Claudia Collucci – FSP, 30/03/2020

O isolamento social e toda a angústia gerada pela pandemia do novo coronavírus trazem à tona o melhor e o pior do ser humano. De um lado, muitas pessoas com gestos de empatia e solidariedade, do outro, outras tantas com atos de egoísmo, falta de compaixão.

Para a psicóloga e psicanalista Miriam Chnaiderman, professora do Instituto Sedes Sapientiae, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem minimizado a pandemia e defendido isolamento só para idosos e grupos de risco, enquadra-se no segundo grupo.

“Falta total empatia. É uma coisa absolutamente autorreferente. É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro”, afirma ela, também documentarista e doutora em artes pela USP.
Segundo Chnaiderman, esse é o momento em que todos os fantasmas internos se concretizam. “A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real. É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia.”

Na opinião da psicanalista, as pessoas precisam aceitar a condição de vulnerabilidade e descobrir truques para lidar com essa angústia, caso queiram preservar a saúde mental nesse período tão exigente. 

“Fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários e contar sobre essa experiência. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento”, afirma.

Como a empatia pode ajudar a passar pela pandemia do novo coronavírus? Só empatia junto com a solidariedade é capaz de nos mover e nos ajudar a superar todas as restrições que estão sendo impostas. A gente não escolheu isso. As pessoas se sentem violentadas de não terem escolhido não sair de casa. Mas a gente está fazendo isso, acima de tudo, pelo outro.

O filósofo Max Scheller (1874-1928) diz que a empatia é um ato mediante o qual se realizam a percepção e compreensão do estado de alma de um outro. Por essa razão, condiciona todas as formas de compaixão. Para se ter compaixão de alguém, é necessário conhecer antes o sofrimento do outro.

Esse isolamento social então é uma oportunidade para exercer a empatia? Estão acontecendo gestos incríveis, a empatia que move a vizinhança toda se mobilizar para comemorar o aniversário de uma senhorinha lá nos EUA, ou de uma menininha num condomínio aqui de São Paulo. Ou mesmo tudo o que se cria num panelaço ou nos aplausos aos funcionários da saúde. Você precisa se colocar no lugar do outro.

Têm coisas muito bonitas acontecendo, vizinhança se mobilizando, os mais jovens se oferecendo para comprar coisas aos mais velhos.

É muito novo isso no Brasil. A gente está sendo obrigado a acolher aquilo que não acolhe, como a velhice e a doença.

Por outro lado, aparece também o pior do ser humano nesses momentos. Como gente estocando papel higiênico ou álcool em gel… Sim, é uma coisa atroz, total falta de empatia, total egoísmo, vou pensar só em mim, que se arrebente o outro. As pessoas não percebem que se o outro se arrebenta, você se arrebenta junto também.

Essa coisa do papel higiênico, só a psicanálise mesmo para interpretar. É a fantasia de que se você tiver como limpar aquilo que sai do corpo como sujeira, você não vai adoecer. É uma falência das mediações entre os instintos, as pulsões e o mundo simbólico.

Vivemos num país de muita desigualdade social, intolerância e ataques a minorias. Você vê nessa crise alguma chance de as pessoas reverem valores e comportamentos? Não sei. Depois dessas falas do presidente Jair Bolsonaro, soube de bairros onde as pessoas estão fazendo campanha para sair para as ruas, para acabar com o isolamento. É um discurso que exacerba isso tudo.

Têm pessoas mobilizadas para ajudar travestis, moradores de rua. Mas essas pessoas que saíram comprando feito malucas estão pensando nelas e pronto. Toda essa questão aparece na postura do presidente de só pensar nos negócios e não as pessoas.

Falta empatia ao presidente? Falta total. É uma coisa absolutamente autorreferente, que quer o poder a todo custo, que pensa só na reeleição. É o neoliberalismo e o egoísmo que ficam em questão com o que está acontecendo. É uma explosão de uma coisa terrível que já vinha acontecendo e que se concretiza nessa pandemia.

Tem muita gente falando numa ruptura no jeito de governar, de conduzir a vida. Se você não tem o que a gente chama de empatia, se não é tocado por um mundo que não é o seu, é terrível.

É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro. As pessoas morrem de medo de se colocar no lugar do outro porque se sentem frágeis, se sentem podendo elas degringolarem, de ficarem sem nada.

Nessas horas de tanto medo muitos fantasmas saem do armário, certo? É um momento bem delicado porque todos os fantasminhas internos que todos nós temos estão concretizados numa realidade. A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real.

É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia. As pessoas que eu tenho ouvido não estão conseguindo ler, estar com elas mesmas. Ou grudam na televisão, na internet, ou ficam limpando a casa o dia todo.

Atividades como ouvir música, ver aquele filme que você sempre teve vontade, mas não teve tempo estão sendo difíceis de acontecer. Trabalhar com essa angústia de morte te exaure, te suga. As pessoas não dormem bem.

A história mostra que depois de grandes catástrofes podem surgir coisas boas. Após a peste negra, por exemplo, veio a Renascença. Pode sair coisa boa depois da pandemia de Covid-19? Poder, pode. Mas não sei se há uma mobilização para isso. A gente está vivendo um destroçamento das forças mais libertárias, que buscam um mundo de outro jeito.

Eu vejo como mais possível uma comoção social, as pessoas vão ficar sem dinheiro, não vão ter o que comer, vão ter mudar seus hábitos.
Estamos num momento muito amargo do mundo, de falta de lideranças, de falta de mobilização. É meio imprevisível. Só quem trabalha o sofrimento internamente, pode se identificar com quem sofre.

A gente está num mundo consumista do prazer imediato, onde ter a capacidade de se identificar com a dor do outro e poder acolher a dor em você é considerado fragilidade, você é um nada. Porque o objetivo é o ganho imediato, o prazer imediato.

De qualquer forma, é um abalo. A gente vai sair dessa com um ônus terrível. Alguma coisa vai ter que mudar. Tomara que essa solidariedade, essa empatia que temos visto se introduza de fato na sociedade, que seja algo mais duradouro.

A verdade é que todos nós estamos nos sentindo vulneráveis… Sim, até porque a vulnerabilidade é uma realidade do ser humano. Todo mundo nega. Quando o presidente chega e fala: ‘vai ser uma gripezinha porque eu tenho uma história de atleta’, ele se coloca como um ser não vulnerável, é um deus.

Está todo mundo tendo que trabalhar isso em si, algo foi profundamente abalado nessa história toda. Antes, muitas pessoas pensavam: ‘Ah! eu vou para Europa, vou para Nova York. Ou vou aproveitar que aqui está essa coisa, e vou para a praia’.

Agora não tem mais para onde ir. Todos estamos vivendo essa vulnerabilidade, essa ameaça de morte. É um marco na história da humanidade.

Como cuidar da saúde mental nesse momento? As pessoas estão sofrendo muito com o isolamento, se sentindo muito solitárias. Um caminho seria fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários, contar sobre essa experiência. Isso ajudaria.

Inventar jeitos. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. Para outros, essa vida online pode ser muito frustrante. As pessoas precisam descobrir truques para lidar com a angústia.

Mas é um momento e vai passar. As pessoas não suportam quebrar com que vinham fazendo, com o jeito de atuar. Aproveita e se repensa. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento.

É chato. Eu mesmo estou com essa questão. Tenho mais de 60 anos, fico louca para ir ao supermercado e está sendo superdifícil não ir. Uma das coisas para manter a saúde mental é a manter a casa funcionando, aprender a cozinhar, aprender a passar. Isso porque estou imaginando que a essa altura todos já tenham liberado a empregada.

A gente não teve escolha sobre essa pandemia, mas têm coisas que a gente tem escolha. Como deixar a casa bonita, levantar e se arrumar, passar batom.
As pessoas precisam inventar jeitos de se sentirem donas da própria vida nesse momento em que a gente não escolheu o que está acontecendo.

E como lidar com as crianças nesse contexto todo? Existem pais enlouquecendo no home office com as crianças trancadas em casa… Eu acho que as crianças têm mais recursos que a gente para lidar com esse momento. Elas têm o mundo da fantasia, fica mais solto, né? Elas têm o lúdico, se abrem mais para o brincar.

O problema são as mães, os pais aguentarem as 24 horas de convivência.
Mas talvez as crianças têm bastante para ensinar pra gente neste momento. Te arranca da angústia na marra. Porque querem jogar, querem brincar, querem ver filminho.

A questão é você ter que suportar essa demanda ou poder transformá-la em algo lúdico para você também.

O caminho é se apropriar da situação, pensando em como tornar isso um aprendizado do contato com os recursos que cada um tem com o isolamento, com a ruptura de hábitos muito arraigados.

Eu acho que cada um vai sair transformado disso. Uma experiência dessa vai te levar a romper com hábitos. É muito duro isso, mas quando você rompe, você se abre também. Eu espero (risos).

Miriam Chnaiderman
Formada em psicologia pela USP, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, doutora em artes pela USP. É psicanalista e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Também autora dos livros “O hiato convexo: literatura e psicanálise” (Brasiliense) e “Ensaios de Psicanálise e Semiótica” (Escuta) e diretora de vários documentários e do longa-metragem “De gravata e unha vermelha” (2014)

Laurentino Gomes: “Um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo”

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Em entrevista à GALILEU, autor de “Escravidão” afirma que estudar o passado é essencial para combater o racismo

ROGER MARZOCHI/ 26/12/2019

Durante mais de três séculos, o Brasil foi protagonista de uma das maiores atrocidades da história: dos 12,5 milhões de pessoas que foram transportadas à força da África para as Américas, 4,9 milhões desembarcaram em território nacional para serem escravizadas em grandes plantações de cana-de-açúcar e café, nas minas que extraíam metais preciosos ou para servirem às casas de seus “senhores” brancos.

Ao menos 2 milhões de habitantes de diversos territórios do continente africano nem sequer completaram a travessia pelo Oceano Atlântico e morreram em navios que amontoavam humanos como simples mercadorias. Mais de 130 anos depois da abolição da escravidão no Brasil, os reflexos desse período histórico não são difíceis de perceber: dados recentes do IBGE indicam que entre os 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros. De acordo com informações do Atlas da Violência divulgado em 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no país são negras.

Autor das premiadas obras “1808”, “1822” e “1889”, que resgatam detalhes da história brasileira, o escritor paranaense Laurentino Gomes se deu conta de que o assunto mais importante do passado nacional não eram os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. Era a escravidão. “Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas”, afirma.

E foi pensando nisso que ele escreveu “Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares”, livro lançado em setembro pela Globo Livros e que é o primeiro volume da trilogia que resgata o processo econômico, político e social que envolveu os séculos de escravidão no Brasil.

Para realizar a obra, Gomes consultou centenas de documentos históricos e viajou por 12 países em três continentes, passando por locais como a Serra da Barriga, onde se localizava o Quilombo dos Palmares, até fortificações nas quais os escravos aguardavam os navios responsáveis pelo tráfico.

Defensor das cotas preferenciais para afrodescendentes, ele acredita que o preconceito ainda presente em nosso país deve ser combatido por meio do estudo da nossa história. “Esse é um assunto ainda vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta”.

A seguir, leia a entrevista completa com o escritor.

Como surgiu o interesse de escrever sobre a escravidão no Brasil?
Eu tinha planos de escrever sobre a escravidão desde que comecei a pesquisar meu primeiro livro, 12 anos atrás. Ao tentar descrever o que era o Brasil em 1808, ano da chegada da corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro, me dei conta de que o tráfico negreiro e o uso intensivo de cativos africanos tinham sido a principal característica da colônia portuguesa nos três séculos anteriores.

Essa mesma percepção se repetiu ao me debruçar sobre as duas datas seguintes, 1822 e 1889. É quase impossível explicar o processo de independência, o primeiro e o segundo reinados e, depois, a Proclamação da República sem estudar a escravidão. É como se fosse o fio condutor dos nossos principais eventos históricos.

Era um tema totalmente relacionado com suas obras anteriores…
No livro “1822”, por exemplo, explico que o Brasil se manteve como monarquia depois da independência devido à soma de dois medos: o de uma guerra civil republicana que dividisse o país, a exemplo do que estava ocorrendo na América Espanhola, e o de uma guerra étnica, em que os escravos pegassem em armas contra seus senhores.

Esses dois medos fizeram com que a elite rural escravista brasileira cerrasse fileiras para que o futuro imperador Pedro I rompesse os vínculos com Portugal, mas mantivesse intacta a estrutura social vigente, sobretudo a escravidão e o tráfico negreiro.

Para entender como chegamos até aqui é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos índios e negros, entender quem teve acesso a oportunidades e privilégios ao longo desses últimos 500 anos e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje.

Ao fazer esse mergulho profundo, me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas.

Você trabalhou ao longo de seis anos nesse novo projeto. O que foi mais desafiador durante o processo?

No Brasil, tornou-se uma ideia comum que os documentos da escravidão teriam sido destruídos e estariam malconservados, o que tornaria o estudo do tema difícil, quando não impossível. Isso é verdade apenas em parte.

De fato, parte da documentação histórica, relacionada aos registros de compra e venda de escravos na antiga Alfândega do Rio de Janeiro, foi destruída por ordem de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, logo depois da proclamação da República. Com essa medida, os republicanos queriam, como se dizia na época, “apagar uma mancha” na história brasileira, o que, obviamente, foi inútil, porque a “mancha” nunca se apagou.

Mas, apesar disso, restaram inúmeras outras fontes preciosas, relativamente intactas e pouco exploradas. Isso inclui inquéritos policiais e processos na Justiça envolvendo os escravos e seus senhores; testamentos e inventários pós-morte; certidões de batismo, casamento e óbito; anúncios de fuga ou de compra e venda de cativos registrados nos jornais da época ou em documentação cartorial.
Hoje já se sabe com relativa precisão quantos eram e de que regiões saíam os escravos, quantos morreram no caminho e quantos chegaram ao Brasil e aos demais territórios da América.

Houve algum momento de comoção ao realizar o trabalho de pesquisa?
Fiquei particularmente tocado ao visitar as fortificações do tráfico de escravos na costa da África. Existem dezenas delas, em especial na atual República de Gana. Eram depósitos de seres humanos, onde milhares e milhares de africanos escravizados ficavam à espera da chegada dos navios negreiros como se fossem mercadorias prontas para serem distribuídas aos seus novos donos e compradores.

Um dos maiores e mais antigos é o castelo de São Jorge de Elmina. Dali saíram os antepassados da ex-primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama. Seus porões são visitados hoje por turistas afrodescendentes norte-americanos, que ali depositam coroas de flores em memória aos que partiram ou morreram.

Passei algum tempo sozinho num desses porões, um lugar úmido, frio, muito escuro, onde ficavam as mulheres. Algumas chegavam ali grávidas e davam à luz enquanto aguardavam para ser transferidas para um navio sujo, desconfortável e perigoso. Ali também amamentavam seus filhos recém-nascidos. Muitas morriam de fome, de doenças ou de desespero.

Foi uma experiência que me cortou o coração. Tive seguidas noites de insônia e pesadelos depois de passar por lá. Mas acho também que ninguém pesquisa e escreve um livro sobre a escravidão como se tivesse dando um passeio. Essa é, basicamente, uma história de dor e sofrimento. E para entendê-la precisamos nos aproximar dessa dor e desse sofrimento.

Como tem sido a recepção de sua obra pelo público e pela academia?
Já fiz lançamentos em diversos estados e cidades, incluindo, por exemplo, Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, e Salvador, a maior cidade africana fora da África. As pessoas têm demonstrado um interesse muito grande pelo tema.

Acredito que essa obra pode inspirar algum traço de racionalidade numa discussão que, nas redes sociais e nos pronunciamentos políticos, muitas vezes se resume a gritaria, polarização e intolerância. Apesar do fôlego aparente, em três volumes, esta série de livros não pretende nem poderia ser um estudo exaustivo ou definitivo da escravidão. Seria impossível, além de arrogante, qualquer tentativa de esgotar um assunto tão vasto, importante e premente, embora numa obra que, no conjunto, terá cerca de 1,5 mil páginas.

Meu propósito é destacar e explicar alguns aspectos que julgo importantes na análise do tema seguindo a fórmula já utilizada nos livros anteriores, mediante o uso de linguagem jornalística, simples e fácil de entender. Ou seja, mais uma vez quero ser um “abridor de portas”, especialmente para leitores jovens, mais leigos, ou que nunca se interessaram pelo assunto.

Sua obra explica que foi apenas na América que surgiu uma ideologia racista baseada na cor da pele para legitimar a escravidão. Como é possível superar esse preconceito ainda persistente?

A melhor maneira de enfrentar esses desafios é por meio do estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. Uma sociedade ou um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo porque desconhece suas raízes. Como não sabe de onde veio, provavelmente também não saberá o que (ou quem) é hoje e muito menos o que será no futuro.

Só pelo estudo de história será possível preparar — ou qualificar — os cidadãos brasileiros para a difícil tarefa de fazer escolhas e organizar a realização do país dos nossos sonhos. Isso inclui o racismo e o passivo social resultante da escravidão. Esse não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado.

Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta entre nós. E que ainda dói muito porque nunca foi devidamente tratada.

Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez.

E como todos esses fatores se refletem em nosso presente?
Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte. O resultado está hoje nas estatísticas e nos indicadores sociais, em que a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade que tem menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira.

Um segundo legado da escravidão é o preconceito. É uma das marcas terríveis das nossas relações sociais, embora sempre procuremos disfarçá-la construindo mitos a respeito de nós mesmos — por exemplo, a ilusão de que seríamos uma grande e exemplar democracia racial. O noticiário do dia a dia se encarrega de desmentir isso. É um tema que incomoda muita gente, porque desmente os nossos mitos mais arraigados.

Qual é sua opinião sobre a política de cotas no Brasil?
Sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada.

A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes.

Há ainda muita reação contrária…
Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da República, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram da escravidão e lucraram com ela, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria por que indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso.

Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.
Como é sua rotina de trabalho e onde você busca inspiração?
Antes eu fazia reportagens para jornais e revistas, agora faço livros-reportagem. Mas a essência do meu trabalho continua a mesma, o jornalismo. Convivia com muitos colegas nas redações. Era um ambiente mais animado e barulhento. Hoje, meu trabalho é mais solitário. Mas prefiro assim.
Gosto de pesquisar e pensar sozinho a respeito do que pretendo fazer. E gosto mais de ler do que escrever. É na poesia e nos romances que encontro a verdadeira inspiração para escrever. A literatura de ficção permite um mergulho mais profundo na alma humana do que os livros de não ficção, que, em geral, são obras de natureza técnica.
Leio e releio muito Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Pablo Neruda. Meus romances preferidos são “Sagarana”, de João Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez

Salvar as pessoas, as empresas e o emprego, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Valor Econômico, 23.3.2020

O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa o
custo do ponto de vista fiscal

Há duas semanas a economista Leda Paulani afirmou que a crise do coronavírus seria mais grave do que a crise de 2008. Minha reação foi um “talvez”. Talvez viesse a ser, mas eu não estava seguro. Agora, estou. Associada à pandemia há uma gravíssima crise econômica em formação que levará ao desemprego e à quebra das empresas de todo o mundo, ou, pelo menos, à uma forte redução de suas receitas e dos seus lucros.

As empresas de serviço estão parando porque todos os eventos que puderem ser adiados estão sendo adiados. As famílias, ameaçadas pelo desemprego, estão reduzindo as suas compras. As empresas comerciais estão enfrentando uma forte queda de vendas, e as empresas industriais, mesmo que não tenham sido obrigadas a reduzir a produção para evitar a propagação do vírus, não têm alternativa senão diminuir sua produção dada a falta de demanda.

O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa o custo do ponto de vista fiscal

Na China, onde primeiro apareceu o coronavírus, houve uma prática bem-sucedida de isolamento ou confinamento social e a expansão da doença parece ter sido controlada, mas diversos estudos indicam que nos primeiros três meses a redução da produção naquele país foi de 30%. É muita coisa. Mesmo que façamos a previsão otimista que no segundo trimestre a produção ficará no nível do ano anterior, e nos dois últimos trimestres aumente 8% a cada trimestre, a queda do PIB chinês em 2020 será de 8% (- 12+2+2). É muita coisa, e desconfio que estou sendo muito otimista.

Que fazer diante de um quadro como este? No plano da saúde é o isolamento e o aumento urgente da capacidade do SUS de enfrentar a pandemia. É não poupar gastos para dar capacidade ao Estado de proteger a saúde da população. E no plano econômico? Não pode haver nenhuma dúvida a respeito. O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa quanto custe do ponto de vista fiscal.

Uma crise financeira como a Crise Financeira Global de 2008 resultou da quebra de alguns grandes bancos e empresas de seguro e de muitas famílias – todos porque haviam se endividado de maneira irresponsável. Agora não há irresponsabilidade de alguns agentes econômicos situados em posições-chave na economia, mas há a perspectiva de grave redução das vendas e maior redução dos lucros, acompanhada de forte aumento do desemprego porque a melhor defesa que a sociedade tem contra o vírus é o isolamento das pessoas.

A economia mundial deverá ser praticamente paralisada por pelo menos três meses, mas os custos das empresas continuarão a ser incorridos, não apenas os custos fixos, mas também grande parte dos custos variáveis precisarão ser mantidos dado o objetivo de manter o emprego. Em momentos como este, vemos quão importante é ter um Estado forte e capaz. E saber usá-lo. O governo já decretou situação de calamidade pública. Fez bem. Isto o libera dos limites legais estabelecidos para o seu gasto. Está prometendo crédito paras as empresas.

Isto é o mínimo. Mas em um quadro completamente novo como esse que o mundo e o Brasil estão enfrentando, o governo precisa também pensar de maneira nova. Agora o que o governo brasileiro, como, aliás, os governos de todos os países, deve fazer é usar seu Estado para salvar as pessoas da morte, para salvar as empresas da quebra, e para salvar os empregos. O Estado em cada nação tem esse tríplice salvamento como capacidade e como missão. Seu governo não pode ficar calculando qual será o impacto de cada medida que tome na dívida pública. Ela aumentará agora como aumentou em todo o mundo em 2008.

Não basta aumentar o crédito para as empresas. No seu último artigo no Valor Martin Wolf relata a proposta de dois notáveis economistas, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, Berkeley. Para eles “a forma mais direta de prover […] seguro é ter um governo atuando como comprador de última instância. Se o governo substituir totalmente a demanda que se evapora, cada empresa pode continuar pagando seus trabalhadores e mantendo seu estoque de capital, como se estivesse operando […] normalmente”.

Para colocar em prática uma política como essa é preciso haver coordenação com o Banco Central. Este já reduziu os juros, e foi importante que o fizesse, mas há uma segunda crise, mais precisamente, ameaça de crise que não pode ser desconsiderada. Antes do coronavírus o liberalismo econômico radical do governo, além de causar estagnação econômica, já nos ameaçava com crise financeira – com a continuidade da crise financeira de 2014. Esta foi uma crise financeira interna; foi definida pela falta de expectativas de lucro das empresas e paralisação do crédito privado.

Agora é o crédito externo que está diminuindo, como vemos pela retirada maciça de recursos estrangeiros da Bolsa de Valores brasileira, enquanto o déficit em conta- corrente aumenta principalmente devido ao aumento dos juros, dividendos e serviços pagos ao exterior. É a conta da desnacionalização que nos está sendo cobrada. Com o aumento do déficit em conta-corrente e a diminuição dos financiamentos externos, o dólar alcança a cada dia um novo recorde.

Uma crise financeira crônica? Pode parecer estranho, mas em dezembro de 1998 desencadeou-se uma crise financeira que se tornou crônica, só tendo realmente terminado com a crise financeira de dezembro de 2002. Desta vez, a crise financeira de 2014 e a recessão de 2015-2016 causaram a queda dos salários, da inflação e dos juros, mas a crise não chegou à sua solução por falta de demanda.
Os países ricos estão tomando medidas de emergência para enfrentar a propagação do vírus e a recessão provocada pela paralisação das empresas. O atraso da Itália neste ponto está tendo consequências trágicas para o país. Como vários governadores já se deram conta, o Brasil também não pode se atrasar. Mas seus poderes são limitados. Além de enfrentar o coronavírus e enfrentar a própria recessão, o Brasil precisa recuperar a confiança externa, que foi destruída neste último ano. É preciso que os credores externos vejam que nós também estamos fazendo com responsabilidade a nossa parte no enfrentamento da crise.