Ilona Szabó: “A direita fala em renovação para chegar ao autoritarismo”

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A especialista em segurança pública fala em razão e empatia para lidar com o ódio e a polarização da sociedade 

“Num momento de discurso da aniquilação do inimigo”, em que prevalece “a lógica de quem pensa diferente precisa ser calado”, a cientista política e especialista em segurança pública, Ilona Szabó, propõe “muita inteligência emocional e racional” e “um diálogo franco com a restante da sociedade civil”, para romper a polarização e o ódio nas redes sociais. “Se a gente recuar em todos os espaços de participação, ganha a parte autoritária”, diz.

Alvo de ataques e difamações há quinze anos por encabeçar discussões sobre temas que dividem a sociedade – como regulação de armas de fogo, a reforma da política de drogas e modernização da polícia –, Ilona foi secretária-executiva da Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia e também da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Em 2011, fundou o Instituto Igarapé, organização que elabora pesquisas e propõe políticas sobre segurança, justiça e desenvolvimento.

A mais recente onda de ataques contra a cientista política se deu em fevereiro deste ano durante a campanha #IlonaNão, promovida pela direita contra a sua nomeação como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, a convite do ministro da Justiça Sérgio Moro. A hashtag alcançou os Trending Topics do Twitter e resultou na exoneração de Ilona apenas dois dias após a nomeação. À imprensa, o presidente Jair Bolsonaro justificou que a posição da pesquisadora sobre a legalização do aborto e outros temas são “incompatíveis com o governo”.

O episódio trouxe consequências: Ilona diz estar se sentindo insegura, evitando dar entrevistas ou falar publicamente sobre temas polêmicos. “Estou me sentindo tolhida. Pela primeira vez [no Instituto Igarapé] estamos fazendo uma autocensura para evitar riscos. Eu trabalho com esses temas há 15 anos e eu nunca pensei que a gente pudesse enfrentar esse tipo de risco.”

Em entrevista à Pública, Ilona Szabó também falou sobre o pacote anticrime proposto por Sérgio Moro e a escalada da violência policial, que para ela está ligada a atitudes do presidente Bolsonaro e de seus seguidores, e criticou a proposta do ministro Moro pelo fim da punição de policiais que matam “em legítima defesa”. “Você jamais pode dar autorização para que a polícia, força de segurança, qualquer cidadão, exceda o uso da violência. Isso é cruzamento de linha total. A gente está escolhendo se vai viver numa democracia ou num estado autoritário onde a próxima vítima pode ser você.”

Agência Pública: Quais foram as consequências da campanha #IlonaNão?

Ilona Szabó: Num momento de um discurso de aniquilação do inimigo, onde se trabalha com a lógica de que quem pensa diferente precisa ser calado, isso deixa a gente bastante vulnerável principalmente porque eu trabalho com a formação de opinião pública. Tem eu, a minha equipe, majoritariamente de mulheres, numa exposição pública muito grande. E a gente começou a se sentir mais insegura. Não tem problema discordar, o problema é quando entra desonestidade no debate. Ataque, mentira, difamação. Essa é a linha [que separa] com quem eu aceito debater em público ou não.

Infelizmente, a gente sabe que a violência, quando incitada, é muito difícil fazer a gestão de risco se ela irá vazar ou não para a vida real. É a primeira vez que a gente está pensando sobre isso de verdade no Instituto Igarapé. É uma crescente – estou deixando de dar entrevista sobre alguns temas, não estou me sentindo segura para falar. É escolher o tipo de briga que a gente compra ou não porque estamos sem capacidade de análise de risco, e não somos só nós – temos conversado com outras organizações da sociedade civil.

Antes tínhamos um cenário mais claro da institucionalidade que protegia a liberdade de expressão, a gente poder ter opinião [diferente] e ainda sentar à mesa. A gente nunca atacou as pessoas que pensavam diferente de nós, sempre conseguimos ser críticos construtivos e sentar com pessoas que pensam diferente. Essa questão está mais difícil agora, bem mais difícil, e isso traz muitos desafios ao nosso trabalho. Eu não posso dizer com quem eu encontro, com quem não encontro, tudo pode gerar uma crise. E não posso falar na imprensa sobre alguns assuntos. Estou me sentindo tolhida. Estamos fazendo uma autocensura para evitar maior exposição a riscos que a gente não está conseguindo medir. Eu trabalho com esses temas há 15 anos e nunca pensei que a gente pudesse enfrentar esse tipo de risco.

AP: O que virou a chave para que os ataques contra você atingissem essa proporção?

IS: O que acontece no Brasil, e a gente demorou para ver porque infelizmente estamos numa bolha, é que existe uma arquitetura de grupos bastante radicais que têm essa ideia não-democrática de aniquilar o outro. Não digo fazer alguma coisa física, mas nas redes sociais eles querem calar, não deixar que aquela opinião ganhe destaque ou seja discutida. Isso não é de hoje, mas o que potencializou nas eleições foi que essa máquina invisível do uso de robôs e outras táticas, foi impulsionada pelas redes fortalecidas com o processo eleitoral. A eleição é a consequência disso.

Meses depois da eleição ainda vemos essa ideia de que ou você apoia ou você é contra, e quem está contra precisa ser aniquilado porque está a favor dessa maluca conspiração comunista-globalista-nacionalista-tudo mais “ista” que todos nós estamos tentando descobrir o que significa.

AP: Quais outros ataques você sofreu ao longo da sua trajetória?

IS: Sofro linchamento virtual há muito tempo; há 15 anos eu falo sobre controle de armas e há 15 anos eu sofro ataques. Mas no final de 2017 e começo de 2018 teve um pico e foi o primeiro grande ataque que eu sofri, por conta do meu envolvimento com movimentos cívicos e de renovação política como o Movimento Agora!, do qual sou co-fundadora. Foi uma série de vídeos do MBL [Movimento Brasil Livre] dentro da temática controle de armas com uma retórica “globalista-comunista-braço do George Soros-quer liberar droga-quer defender bandido”. Esse grupo pegou a bandeira de uma turma pró-armas e começou a bater também em outras questões na arena da renovação política.

Os vídeos foram para canais com milhões de usuários, para o WhatsApp, e circulavam nessas redes que a gente depois viu serem multiplicadas ao longo da campanha presidencial. Chegaram às redes de policiais militares, de pessoas que estavam já construindo o que a gente viu nas eleições, e explodiram em perfis do Facebook, inclusive em perfis de autoridades. Aqui eu tenho que ter muito cuidado porque essa prática não acontece mais e por orientação jurídica eu resolvi não processar, mas os ataques vinham de membros do Ministério Público também. Pessoas que são pagas com o nosso dinheiro postavam as mesmas coisas que esse grupo [MBL] postava. Pegavam meus artigos e falavam barbaridades, chamavam o Instituto Igarapé de “Instituto Igarapó”.

AP: Dentro do Igarapé, quais foram as consequências dos ataques do MBL?

IS: Posso dizer com todas as letras que me causou um monte de problemas. Para o Igarapé foi muito difícil, eu nunca fui filiada a nenhum partido e as pessoas achavam que de fato eu estava planejando isso. Nossa missão é avançar políticas públicas baseadas em evidências para reduzir violência letal, no Brasil e no mundo. Eu tenho como mandato fazer pontes, tentar dialogar com quem pensa diferente, criar agendas mínimas. Poucas organizações da sociedade civil têm uma estratégia como a nossa. Quando usam isso para dizer que o Igarapé não é neutro, que está servindo a esse ou outro governo, me traz problemas, como se tivessem agendas escondidas no trabalho que a gente sempre fez. Eu tive que fazer uma mega redução de danos. O impacto maior foi no Rio de Janeiro, onde a gente estava começando a construir parcerias maiores com as lideranças políticas.

AP: Foi o MBL que começou a campanha difamatória pela sua exoneração?

IS: Tanto esses grupos de pró-armas quanto o MBL estiveram envolvidos no episódio #IlonaNão, mas se juntaram a uma rede muito mais poderosa: a máquina dos apoiadores do governo. O grupo pró-armas tem um nicho muito fiel e muito barulhento, mas ele não é gigante nas redes. Teve muita interação orgânica, mas também muito robô. Eu estava em Brasília quando começou a campanha no Twitter. Vi o post quando saí do avião, um amigo mandou. Estou acostumada a ler esse tipo de coisa, mas eu nem imaginava a dimensão que ia tomar.

AP: Alguns desses grupos que foram contra a sua nomeação e participaram da campanha difamatória contra você se auto-intitulam “anti-establishment”. Ao mesmo tempo, criticam vozes como a sua, que participam desse movimento por renovação política. É um paradoxo?

IS: Eu defendo um movimento por renovação política com base no estado democrático de direito. Essas pessoas estão usando o conceito da renovação política para caminhar para o autoritarismo. Infelizmente o nome foi apropriado. Para mim está muito clara essa diferença, entre grupos democráticos e grupos não-democráticos. A “nova política” não é o que a gente está vendo, não no sentido democrático. A pluralidade, a diversidade, o diálogo, a construção, a negociação que faz parte do jogo político – desde que aberta, transparente e baseada no interesse público –, tudo isso está muito ligado aos princípios da democracia. Esses grupos que são minoritários não têm esses mesmos princípios. Não são pela renovação política, até porque as práticas políticas que vêm sendo usadas não tem nada de novas, são práticas ultrapassadas, que enfraquecem a democracia.

AP: Quando o governo retirou sua nomeação ele foi conivente com os ataques que você sofreu?

IS: Sinceramente, o Ministério da Justiça ainda é um lugar que dá para divergir e conversar. Eles não foram desonestos comigo. Porém, a base de apoiadores do núcleo do presidente não tolerou alguém com ideias diferentes tendo algum tipo de voz, mesmo que não tivesse voto, pois não era um conselho deliberativo, apenas consultivo, voluntário. É essa base que quer aniquilar a diferença, mas ela não é o governo como um todo. Isso precisa ficar claro, até porque querem que você veja dessa forma porque isso acaba jogando um lado contra o outro e acredito que, na democracia, você precisa achar esses pontos de contato, e mesmo nessa situação eles existem. Eu continuo nesse diálogo com pessoas que estão dispostas a dialogar sobre agendas comuns, mesmo com divergências dentro desse governo.

AP: Há essa abertura, mas na prática parece não haver abertura, tanto é que você foi exonerada por pensar diferente.

IS: O governo não é uníssono, tem grupos disputando poder e influência. E alguns deles são contrários à aniquilação do inimigo, são grupos que podem pensar diferente mas que respeitam o jogo democrático. Outros, não. O fato de que um dos núcleos do governo, o núcleo com mais poder pois está ligado ao presidente, não aceita que eu esteja em uma posição formal, não quer dizer que os outros núcleos tenham se fechado. Eu tive diálogos com outros núcleos desse governo, há 15 anos eu dialogo com o Ministério da Justiça. Não vou deixar de falar, caso haja real disposição ao diálogo, o que não quer dizer que eu tenha capacidade de dialogar com o núcleo do presidente. Eu espero que eles mudem de opinião ao longo do mandato porque nenhum governo se sustenta dessa forma, não numa democracia. E a gente vai lutar para que esse país continue democrático. Eles precisam dialogar com a sociedade civil porque eles vão ter muitas questões que precisam de apoio da opinião pública.

AP: Como o terceiro setor poderá fazer a diferença dentro desse contexto em que há resistência ao diálogo?

IS: Na segurança pública há algumas organizações como o Instituto Igarapé que estão em um diálogo construtivo com essa parte do governo federal, que é uma parte mais técnica, digamos assim. Não somos os únicos, tem o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, vamos juntos nesse diálogo. Estivemos há pouco tempo em uma reunião em Brasília onde discutimos indicadores, dados, sistema nacional de informação sobre segurança pública.

Quando você vai para o que de fato importa, que é como a gente vai melhorar a qualidade de entrega da segurança pública, existem organizações e acadêmicos que, independente de em quem votaram ou deixaram de votar, estão dispostos a sentar juntos e contribuir. O núcleo do Ministério da Justiça não está necessariamente ligado ao núcleo ideológico do presidente, no sentido de não querer dialogar.

AP: E como é ser mulher e com um olhar progressista atuando na segurança pública, à frente de um instituto, no Rio de Janeiro?

S: Óbvio que tem dificuldades, mas a gente conseguiu se colocar. Eu formei muitas equipes com mulheres que se tornaram referência em seus temas, que se provaram profissionais extremamente qualificadas. É importante formar uma rede de apoio, porque temos a obrigação de trazer outras conosco. A gente é muito mais cobrada, tem que estar mais preparada, a gente não vai ser, na maioria dos casos, ouvidas, então temos que nos colocar. E quando você tem argumentos técnicos, sabe o que está falando, facilita o jogo. Eu sou ouvida, mas ninguém me oferece a palavra, eu tomo a palavra. Eu protagonizei e presenciei a atitude de mulheres que mudaram o curso de diversas decisões, e é um olhar mais completo, faz toda diferença ter mulheres à mesa quando estamos falando de vida ou morte.

AP: Especialistas e pesquisas apontam que o caminho para a redução da violência está em pautas majoritariamente defendidas por progressistas, como encarcerar menos e educar mais, descriminalizar as drogas. Por que essas medidas não pegam?

IS: Como lado positivo do episódio da minha exoneração, teve muita gente que parou para olhar as pautas que o Instituto Igarapé trabalha. Eu não defendo pauta que não esteja embasada. As pessoas dizem que eu trabalho com temas polêmicos. Eu trabalho com temas difíceis para a sociedade, mas que para mim não tem absolutamente nada de polêmico, porque eu posso defender de A a Z o que eu estou falando aqui com o melhor embasamento científico que existe.

Quando você vai nas pesquisas – e a pesquisa do Datafolha pegou propostas super técnicas, como excludente de ilicitude, e disse, na prática, o que isso significa –, as pessoas são contra. A maioria das pessoas é contra que todo mundo tenha uma arma e possa andar armado, as pessoas são contra que um policial possa matar sem ser julgado, contra que um cidadão possa se exceder por medo, isso é uma excelente notícia. A população precisa de informação.

Eu me preocupo com a questão do linchamento virtual porque a incitação do ódio tem implicações práticas. Por isso o momento é tão delicado, mas é um momento em que as pessoas estão buscando um contraponto, onde a minoria vocal parece que detém a opinião pública, mas não é bem assim.

Com a criminalização dos movimentos sociais, com toda essa difamação e tentativa de tirar importância de participação social, a gente pode, se deixarmos, virar um país da não-verdade, onde as narrativas oficiais não são baseadas em fatos. Porém, eu acredito que estamos em um momento de disputar essas narrativas, a gente ainda tem uma imprensa capaz de disseminar, que ainda tem eco nas redes sociais, e tem muita gente que já acordou para o fato de que ninguém ganha com bangue-bangue, que o policial não pode fazer o que quiser sem cumprir a lei.

AP: Qual seria a saída, o diálogo?

IS: Eu não sou ingênua. Há partes do governo que não estão abertas ao diálogo. Quando não há essa abertura, o papel da sociedade precisa ser fiscalizar, monitorar, disseminar, colocar na imprensa, fazer pressão nacional, internacional. Nós não podemos aceitar retrocessos, decisões baseada em ideologia. O que estou dizendo é que há alguns espaços de interlocução e eles são preciosos. Na divergência a gente consegue construir as convergências. Aliados em uma pauta não são aliados em outra pauta. É assim mesmo quando você trabalha com temas que a sociedade vê como polêmicos.

Também é preciso uma grande discussão sobre as redes sociais. Hoje não é possível vencer um debate nas redes sociais porque nós não vamos usar das mesmas ferramentas que são usadas pelos polos. E não é só o polo da extrema direita; a difamação está mais forte do lado da extrema direita mas já foi usada pela extrema esquerda. Os dois polos usam ferramentas que não permitem que as pessoas que estão tentando de fato levar informações honestas, ganhem o debate. Isso é uma discussão muito de fundo sobre o papel das redes sociais e que eu, de fato, acho que estão impactando as instituições democráticas mundo afora. É um debate profundo que precisa ser feito com essas empresas na mesa.

AP: Um dos pontos mais polêmicos do pacote anticrime é sobre legítima defesa, que especialistas defendem ser “carta branca” para o policial matar. Essa já é uma questão na segurança pública. Com o pacote, vai piorar?

IS: Não tenho dúvida, o discurso já começou. Quando a gente olha para as mortes por policiais, é assustador o aumento. De 2017 para 2018 é 18% de aumento, alguns estados como Pará, Rio de Janeiro, Minas Gerais, aumentos muito expressivos. Pará chega a 64%; Rio e Ceará, 36%. Algumas das estratégias que foram colocadas e que acabam dando uma trégua nas mortes violentas no geral, elas trazem, com esse discurso da incitação à violência, efeitos colaterais, como maior uso da violência pela polícia. Se você não tem autoridades que coíbam isso e, pelo contrário, incentivam, é uma tragédia.

A gente precisa cobrar dos governantes, sejam nacionais, sejam estaduais, que isso seja freado. Já está muito claro com as ocorrências que estão surgindo, como os indícios de execução no morro do Fallet, no Rio de Janeiro; depois o caso do músico Evaldo Rosa, que é um absurdo. É inexplicável o que aconteceu a não ser que você de fato pense no contexto. Que outra explicação você tem para o fato de que militares treinados desobedeceram totalmente as regras de abordagem, de uso da força, e acharam que podiam, na dúvida, atirar, sendo que o procedimento é: na dúvida, nunca atire. Há um impacto tenebroso do discurso de incitação à violência, da aceitação da violência policial, na prática. Coloca todo mundo em risco, pessoas comuns, pessoas que cometeram crimes, policiais. Essa medida [do pacote anticrime] é uma das mais graves. Você jamais pode dar autorização para que a polícia, força de segurança, qualquer cidadão, exceda o uso da violência. Isso é cruzamento de linha total. A gente está escolhendo se vai viver numa democracia ou num estado autoritário onde a próxima vítima pode ser você.

Eu não diria que o pacote não presta como um todo. Há medidas que são boas, como as que ajudam a investigação policial e a desvendar crimes violentos. Mas precisamos de debates amplos envolvendo toda a cadeia de segurança pública para poder formar uma opinião.

AP: Figuras como Jair Bolsonaro têm como bandeira principal a segurança pública, mas defendem medidas como facilitar a posse de armas e o encarceramento, que pesquisas e especialistas apontam não ser caminho mais eficaz. Na sua análise, por que existe essa contradição

IS: A maneira como as pessoas pró-armas, que defendem o porte mesmo, isto é, o direito de andar armado, ter armas de calibre restrito, essa é uma posição ideológica, não está baseada em fatos, pelo contrário. Ela é uma posição que tem sido usada no Brasil e mundo afora, em especial no Estados Unidos, para inflamar certas ideologias políticas. São temas que podem ser usados para fortalecer e manipular massas eleitorais.

Se você for olhar para o que certo perfil de homem defende, é uma questão cultural, estamos trabalhando com questões de masculinidade, certamente é muito mais profundo que não respeitar direitos humanos. Até porque, na cabeça de quem segue essas ideologias, eles são os guardiões das famílias, da tradição da propriedade. É muito mais complexo. Se a gente não tiver uma escuta do que eles estão falando, não tem como trazer para uma posição mais razoável.

O que eu posso dizer a partir da minha experiência, do que eu já conversei e converso com muita gente, é que quando você consegue uma conexão pessoal, é muito possível uma mudança para uma posição muito mais moderada. Já tive inúmeras situações onde eu mudei a posição das pessoas em relação a esse tema.
Quem propaga essas ideias, no campo político-ideológico, faz isso porque está mexendo com o medo das pessoas. A gente tem que entender isso e conversar com as pessoas para que elas entendam que isso é uma manipulação e há maneiras muito mais eficazes e responsáveis de estar direcionando o medo. Se a gente não quiser acentuar essa maluquice da polarização, o exercício da empatia e do diálogo é fundamental para virar o jogo.

AP: Imagino que seja difícil o exercício da empatia quando os ataques são muitos, como é o seu caso.

IS: Quando você entende que algumas pessoas estão sendo manipuladas e se coloca numa posição de escuta, o que é muito difícil, é transformador. Você entende que dá para mudar, há pontos de sinergia mesmo com essas pessoas. Ao serem confrontadas de uma maneira não agressiva, elas baixam a guarda. É possível desmontar essa maluquice.

Eu não sou a Madre Teresa, é difícil. Mas tenho aprendido muito com essa tentativa de entender e de dialogar. Faz parte do nosso processo de aprendizado também, porque nós, especialistas, ativistas, achamos que somos donos da razão. A gente pode ter boas informações mas o mundo se move por outras motivações. Temos problemas muito complexos e estamos trabalhando contra forças que não são democráticas e a gente tem que usar de uma inteligência emocional e racional absolutamente diferente do que fez até hoje. Se a gente achar que é nós contra eles, está todo mundo lascado. Os polos não são a maioria. Se a gente não trabalhar as divergências, vai ganhar a gritaria, e a gritaria não traz nada de bom para o que a gente quer construir. Está nas nossas mãos essa decisão.

ATUALIZAÇÃO às 19h20 de 23.04.2019 – A assessoria de comunicação de Ilona Szabó esclarece que, na entrevista à Agência Pública, quis referir-se à extrema direita, e não à direita como acabou declarando na conversa com a repórter Nyle Ferrari e que motivou o título “A direita está falando em renovação política para chegar ao autoritarismo”. Segundo Ilona, tanto a pressão contra a sua nomeação como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, quanto os radicalismos identificados especialmente nas redes sociais vêm da extrema direita – como no passado já esteve presente na extrema esquerda. Ilona Szabó e o Instituto Igarapé têm se preocupado em dialogar com a esquerda e com a direita justamente para evitar a polarização e a radicalização promovidas por esses extremos que levam ao autoritarismo.

 

Allan Kardec, o Espiritismo e o mundo dos espíritos

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Em meados do século XIX, a sociedade parisiense foi chacoalhada com as informações trazidas pelo pedagogo francês Hippolyte Leon Denizard Rivail, cujas teses descortinavam o mundo material e trouxeram novos instrumentos de análise, denunciando o materialismo e abrindo novos espaços para o progresso da sociedade global, o teor da novas teorias eram tão transformadoras que o intelectual francês passou a assinar suas obras com um pseudônimo, Allan Kardec, surgia neste momento O livro dos Espíritos, publicado em 1857, cujas questões debatidas se pareciam muito mais com um tratado religioso, moral, ético e científico, uma verdadeira obra multidisciplinar, versando profundamente sobre temas variados.

O século em questão apresentou grandes descobertas científicas e tecnológicas que auxiliaram no progresso da sociedade mundial, muitas das grandes inovações que estão, na atualidade, impulsionando a economia global, tiveram início naquele momento, dentre elas destacamos as descobertas do evolucionismo de Charles Darwin, os debates sobre o capitalismo como modelo dominante e excludente, estimuladas por Karl Marx e Friederich Engels, as revoluções geradas pela energia elétrica, ferrovias, o telefone e o telégrafo, além de outras grandes teorias e pensamentos sociais que impactaram sobre a coletividade.

Neste século, a Igreja ainda detinha poderes na sociedade europeia, embora seu poder estivesse restrito a algumas regiões do continente, dentre estas destacamos a península Ibérica, Portugal e Espanha, países muito afetados pelo poderio da religião católica, que ainda controlava muitas áreas e setores, dominando ainda as obras e os livros que eram publicados nestes países, influenciando tudo que os fiéis liam e pensavam, uma verdadeira política de alienação.

A Igreja detinha poderes especiais nestas regiões da Europa, materializados no chamado Santo Ofício, todos os livros de cunho religioso que, por ventura, fossem publicados na região deveriam passar pelo crivo da Igreja Católica, diante destas exigências a instituição impunha censura a algumas obras que achasse que estavam em desacordos com os seus princípios. Em 1861, num episódio que recebeu o nome de Auto da fé de Barcelona, cerca de 300 obras espíritas, de autoria de Allan Kardec e de outros correligionários, foram confiscadas pelo bispo de Barcelona e queimadas ao ar livre, sem que tenha havido qualquer ressarcimento aos credores. Apesar dos prejuízos financeiros, o atentado acabou por despertar ainda mais interesse do povo da região pela Doutrina Espírita, além de inflamar a já crescente revolta popular contra o absolutismo da Igreja Católica.

As pesquisas do pedagogo francês tiveram início em 1854, quando tomou contato com os fenômenos das mesas girantes, um fenômeno até então inexplicável, onde as pessoas rodeavam as mesas e faziam perguntas que eram prontamente respondidas pelos espíritos, uma situação que levou as elites francesas a grande agitação e movimentou a sociedade da época, gerando curiosidades, medos e interesses variados, atraindo pessoas de várias cortes da Europa. Analisando os fenômenos com grande atenção e reflexão crítica, percebe que os acontecimentos eram deveras complexo e necessitava de grandes estudos, lançando assim as bases para aquilo que viria a ser conhecido como a Doutrina dos Espíritos, unindo a religião, a ciência e a filosofia.

O pedagogo francês nasceu em 1804 e começou seus estudos e contribuições para a codificação apenas em 1854, ou seja, mais de cinco décadas depois de seu nascimento, isto só aconteceu porque neste período os ventos da inquisição e a força da Santa Sé ainda eram fortes e violentos na região, somente com o enfraquecimento destes ventos é que foi possível o surgimento de novas ideias religiosas. Neste instante Hippolyte Leon Denizard Rivail, posteriormente Allan Kardec, inicia seu apostolado como codificador e grande difusor do pensamento espírita, faz-se importante deixar claro que as contribuições do pedagogo foram fundamentais, mas a Doutrina Espírita não é obra de um único homem, a Doutrina é obra de um conjunto de espíritos de alta luminosidade que trouxeram ao mundo a chamada Terceira Revelação prometida por Jesus Cristo.

Num período de quinze anos, 1854/1869, o pedagogo francês se transformou no maior estudioso destes fenômenos sobrenaturais, buscando informações variadas, lendo e pesquisando todos estes movimentos e escrevendo tratados e livros que foram comercializados em todas as regiões do mundo, nascia neste momento, pelas mãos de Allan Kardec, uma nova religião, descrita também como uma ciência e uma filosofia, o Espiritismo, que surge para nos mostrar que existiam muitas coisas invisíveis ao olho dos seres humanos, mas presente de forma inerente nos olhos do espírito.

O escolhido para a missão apresentava características especiais, suas credenciais eram volumosas, seus estudos e pesquisas na área da educação, influenciado pelo pensador suíço Johann Heinrich Pestalozzi lhe garantiram instrumentos teóricos e analíticos para compreender as mudanças em curso na sociedade, no mundo da educação e do conhecimento e conduzir a sociedade neste novo momento histórico, onde o mundo material não mais se tornaria um imenso mistério e, aos poucos, seria descortinado de forma simples, intensa e com grande capacidade analítica e de reflexão.

As obras de Allan Kardec, inicialmente O Livro dos Espíritos (1857), O livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), Céu e Inferno (1865),  e A Gênese (1868), além destas, destacamos ainda a fundação da Revista Espírita (1868), que nos mostraram que a vida não se encerra na matéria, que todos nós somos irmãos e somos interdependentes, que a morte não existe e que a verdadeira vida se dá no mundo espiritual, a matéria pode ser descrita como um momento de reencontro e progresso conjunto, onde recebemos de acordo com as nossas escolhas individuais, se passamos por dificuldades, é porque plantamos equívocos em vidas anteriores e, nesta encarnação, expiamos os nossos erros e equívocos, todos caminhamos para o progresso, a Doutrina dos Espíritos é progressista, este progredir pode demorar mais ou menos tempo, isto depende de cada indivíduo, uma doutrina que defende a verdadeira meritocracia.

Os ensinamentos trazidos pela doutrina dos espíritos impactaram diretamente em variados setores da sociedade, mexeram com as estruturas de poder e influenciaram decisões, hábitos e comportamentos, levaram indivíduos a se conscientizarem das suas dificuldades e passaram a ver a ciência como uma aliada da religião, restabelecendo uma parceria que tinha sido desfeita pela dominação mantida pela Igreja, que via na ciência um empecilho para seu intenso domínio, alienação mental e controle social.

Ao descortinar uma nova sociedade e mostrar que a morte, sempre tão temida pelas sociedades, não existe, que morrer é, na verdade, uma passagem para um outro mundo, o mundo dos espíritos, uma sociedade nova se abre para os indivíduos. O espiritismo traz uma visão de que Deus é um ser soberanamente justo e bom, que não nos pune por nossos erros e equívocos, quando erramos passamos por um processo de educação, as dificuldades devem ser vistas de forma diferente, não como punição divina, mas como um processo de autoeducação.

Hippolyte Leon Denizard Rivail se impessoalizou para codificar a Doutrina dos Espíritos, abandonou seu nome e adotou um pseudônimo, Allan Kardec, que era um de seus nomes em encarnações anteriores, quando viveu na pele de um druida, na região da Gália, adotou um pseudônimo como forma de se desvencilhar de suas ideias anteriores, mesmo assim, como grande intelectual francês, metódico, disciplinado, respeitado e competente educador, trouxe à nova revelação um caráter de maior credibilidade, respeitabilidade e confiabilidade, angariando para o movimento adeptos respeitados e estudiosos conscientes das novas ideias como instrumento de renovação da sociedade, não apenas a europeia, mas toda a sociedade mundial.

Além das obras e dos artigos que escreveu, Allan Kardec divulgou a Doutrina Espírita por todas as regiões da Europa, fez conferências e seminários em inúmeras salas e salões, participou de debates e entrevistas para jornais e revistas, além destas atividades, e da fundação da primeira casa espírita, o codificador foi o responsável pela primeira livraria espírita e pela primeira revista dedicada inteiramente ao movimento espírita (inaugurada em 1858), seu pioneirismo e exemplo de seriedade e dedicação a causa trouxe para o espiritismo um grande número de adeptos e apoiadores, que mesmo com seu desencarne trouxeram bons frutos que se espalharam para a sociedade mundial, principalmente para o Brasil, atualmente a nação que mais abraçou o movimento espírita, o que motivou o livro clássico de Humberto de Campos, intitulado: Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho, que destaca o papel fundamental da nação brasileira neste instante de renovação e de grandes transformações da sociedade mundial.

            O movimento espírita tem em Allan Kardec seu grande divulgador, suas ideias estão apoiadas nas contribuições trazidas pelo espírito da verdade e por um grande contingente de espíritos que participaram da codificação, entidades altamente avançadas nas mais variadas áreas e setores que, ao serem indagados por Kardec, descortinaram assuntos variados e de grande importância para a sociedade, pensamentos estes baseados nos ensinamentos de Jesus Cristo, o maior espírito que passou pelo planeta Terra, considerado pelo movimento espírita o Governador do Planeta Terra, suas contribuições foram tamanhas que a sociedade se dividiu entre o antes e o depois de Jesus Cristo, com isso, percebemos que a Doutrina dos Espíritos tem na religião uma de suas bases mais consistentes, aliando ainda a Ciência e a Filosofia, mas como nos diz o doutor Inácio Ferreira, a base da doutrina está e sempre estará em Jesus Cristo.

Com sua morte precoce, Allan Kardec recebeu bela homenagem e foi seguido por intelectuais de respeito que abraçaram a Doutrina dos Espíritos e deram prosseguimento a suas obras, dentre seus seguidores mais conhecidos, podemos citar Leon Denis, Gabriel Delanne, Arthur Conan Doyle, Camille Flamarion, Cesare Lombroso, entre outros. Todas estas personalidades se destacaram em suas áreas de atuação, todos eram intelectuais e pensadores, além de cientistas que viam no Espiritismo uma doutrina afeita as descobertas científicas, como sempre destacou Kardec: “…Se o Espiritismo disser uma coisa e a Ciência disser outra, fique com a Ciência”.

            Ao contrário de outras crenças e filosofias religiosas, a Doutrina Espírita não cultua santos e personalidades, sabe que todos temos qualidades e defeitos, respeitamos as pessoas, suas ideias e pensamentos, diante disso, percebemos a importância de Allan Kardec para o espiritismo e para a humanidade de uma forma geral, defendemos seu legado, sua história, suas contribuições e todas as informações preciosas que nos trouxe, mas sem cultos exteriores e práticas de canonização como outras o fazem constantemente.

As revelações trazidas em O livro dos Espíritos mostravam uma realidade diferente daquela defendida pela religião dominante, destacava a existência de um Deus amoroso, analisava o sofrimento por uma ótica diferente, defendia a inexistência do céu e do inferno e mostrava claramente a importância das leituras e dos estudos constantes, instrumentos de crescimento e desenvolvimento do ser humano.

Ao matar a morte e defender abertamente a existência do mundo espiritual e a continuidade da vida, a Doutrina mostra a importância do ser bom, do fazer o bem, da oração e do pensamento positivo, somente tendo consciência da importância da vida e do viver é que os seres humanos poderão ter consciência de que tudo que existe no mundo, desde as coisas mais simples as mais complexas, nasceram de um único ser, o Deus todo poderoso que criou o homem a sua imagem e semelhança.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra a importância da reencarnação, sem ela temos dificuldades de compreender a bondade de Deus, sem ela temos grande dificuldade de entender a noção e a importância do conceito de meritocracia, se o mundo acaba com a morte do corpo físico, como podemos ser julgados se muitos nascem na bonança e no progresso material e emocional, enquanto outros nascem na miséria e na indigência.

Allan Kardec nos mostra que o verdadeiro homem novo é aquele que está sintonizado nas mudanças do mundo, aquele que busca se analisar constantemente e compreender suas limitações e potencialidades e, constantemente busca sua evolução, pois existem muitas moradas na casa de meu pai e todos temos consciência disso.

No momento de seu sepultamento, os discursos emocionados e as honrarias eram constantes, dentre elas, destacamos a do colega, admirador e astrônomo francês Camille Flamarion, que proferiu um longo discurso, ontem enfatizou: “Voltaste a esse mundo donde viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-te o teu cérebro, fecharam-se-te os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a sua palavra… Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas, não é nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é teatro por demais acanhado. (…) Até à vista, meu caro Allan Kardec, até a vista!”

“Os desafios do meio ambiente são urgentes” diz André Trigueiro.

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Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

 

 

 

 

Entrevista com André Trigueiro

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

 

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

 

Entrevista com André Trigueiro

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

 

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

Quarenta anos de baixo crescimento e desigualdades crescentes

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A economia brasileira vive um momento de grande inquietação, marcado por um período de baixo crescimento do produto interno bruto e um incremento da desigualdade e da pobreza, depois de anos de fortes perspectivas positivas, onde o Brasil era descrito como uma sociedade com alto potencial de desenvolvimento e maior presença na sociedade global, atualmente somos uma economia inexpressiva, perdemos espaços duramente conquistados anteriormente e com retrocessos marcantes em vários setores econômicos e produtivos.

O Brasil apresentou uma taxa de crescimento per capita de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, se compararmos com os tristes 0,9% ao ano desde então, percebemos uma piora considerável na situação econômica e social do país, criando momento de desequilíbrios e constrangimentos crescentes. O país que se destacou na economia internacional no período posterior a segunda guerra mundial, se caracterizando como o segundo país em crescimento econômico, perdendo apenas para o Japão, perdeu de forma considerável seu motor de crescimento, jogando a economia num período de baixo crescimento, piora nas condições sociais e aumento na degradação da infraestrutura.

O Fundo Monetário Internacional compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: no período 1980-2018 “o crescimento do PIB per capita brasileiro foi de 0,9% ao ano, em média, enquanto as outras economias emergentes e as em desenvolvimento cresceram 3% e as economias desenvolvidas apresentaram crescimento de 1,7%”.

Depois de décadas de forte crescimento econômico e forte potencial de desenvolvimento, o país entrou em um ciclo de baixo crescimento e uma piora considerável nos indicadores sociais, com uma redução substancial na classe média, uma forte desindustrialização, uma piora nas condições de vida das cidades e uma situação política degradante e com forte potencial de devastação.

Enquanto, na década de 80, apresentávamos um produto interno bruto per capita duas vezes superior ao da Coréia do Sul, na atualidade o país asiático apresenta um PIB per capita duas vezes maior que o nosso, diante disso, percebemos que nossa sociedade adotou uma postura diferente dos sul coreanos e ficamos para trás na corrida do desenvolvimento econômico, somos um país de renda média sem perspectivas de ascensão para uma economia de alta renda, enquanto os sul coreanos avançaram rapidamente para a posição privilegiada de uma economia desenvolvida.

Nos anos 70/80, o Brasil aprofundou seu modelo de substituição de importação, mesmo depois dos fortes choques do petróleo e dos juros internacionais, que levaram a crise da dívida e a queda do crescimento, fechamos nossa economia, privilegiamos alguns setores mais influentes politicamente e criamos as reservas de mercado para nosso setor industrial, fortemente subsidiado e marcado por grandes e vultosas políticas protecionistas, acreditando que desta forma conseguiríamos alcançar um sucesso maior na corrida do desenvolvimento econômico   e na melhoria das condições de vida das camadas mais necessitadas.

Neste mesmo momento, os sul coreanos adotaram uma política diferente, optaram por uma abertura econômica planejada, fortes investimentos em tecnologias, redução dos subsídios, prudência fiscal, depreciação da moeda para incrementar as exportações e uma reorientação na estratégia de crescimento, que passou de industrialização baseada na substituição das importações à industrialização baseada na exportação de manufaturados, com isso, os asiáticos passaram a ganhar espaços preciosos no comércio internacional, atraindo novos investimentos produtivos e investindo fortemente em capital humano, alcançando melhorias consideráveis para sua população.

Depois de anos de forte crescimento econômico, percebemos grandes conglomerados sul coreanos concorrendo em setores de alta tecnologia e automóveis, com as empresas Samsung, LG, Hyundai e Kia, quatro grandes empresas que concorrem em mercados internacionais de ponta, contrastando com a inexistência de empresas brasileiras nestes setores, as que temos apresentam-se como empresas produtoras de produtos primários, como a Petrobrás e a Vale.

Enquanto o país asiático aumentou fortemente os investimentos em educação, transformando-a em sua prioridade central, revendo políticas ultrapassadas, melhorando a formação dos professores, aumentando a atratividade da carreira docente, introduzindo instrumentos de avaliação e aproximando as escolas e universidades das empresas, com isso, impulsionaram as pesquisas científicas e melhoraram os ambientes de aprendizados, o resultado foi uma forte melhoria no sistema educacional e um avanço nas avaliações internacionais, colocando os alunos do país nas melhores colocações do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado a cada três anos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O modelo de substituição de importação gerou crescimento em muitos países e regiões, o Brasil foi um exemplo exitoso deste crescimento acelerado no período 1950-1980, depois deste período esbarrou nas limitações do mercado interno, um mercado fortemente marcado pela concentração de renda e oligopolizado, que impedem economias de escala e a especialização, essenciais para a manutenção do crescimento. Alguns países transformaram seu modelo, saindo da substituição de importação e passando para um enfoque maior nas exportações, com redução de tarifas de importação e taxas de câmbio apreciada e com mais estabilidade, sem grandes flutuações. Depois passaram a impulsionar o crescimento baseado no mercado doméstico, depreciando a moeda e ganhando mercados internacionais e no desenvolvimento tecnológico, como fizeram Coréia do Sul, Japão e China.

O Brasil seguiu um caminho diferente dos sul coreanos, ao invés de iniciar um novo modelo de industrialização, optou por aprofundar o modelo construído anteriormente, lançando, nos anos 70, a segunda fase do programa de substituição de importações, baseados em bens de capitais, energias e insumos industriais, aumentando as barreiras às importações, mantendo a moeda apreciada e introduzindo políticas fiscais fortemente expansionistas, que resultaram numa piora da situação econômica e na perda do dinamismo produtivo, com graves desequilíbrios sociais e políticos, lembremos que, nesta época vivíamos em um país autoritário governado por militares, baseado num regime iniciado com o golpe de 1964, cuja discussão política inexistia.

Com relação ao Brasil, percebemos uma considerável piora nas condições econômicas do país depois de 1980, diante disso, economistas independentes e organizações internacionais passaram a discutir a situação brasileira, de uma economia marcada por forte crescimento econômico no período 1950-1980, que colocou o país na vanguarda, com grandes perspectivas de desenvolvimento econômico e pretensões hegemônicas, como este crescimento não se efetivou, o  país se transformou em uma economia periférica envolta em variados problemas econômicos e conflitos políticos e sociais, afastando-nos do crescimento econômico almejado e, principalmente, do desenvolvimento, sonho tão alentado em períodos anteriores.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), lançou um livro recentemente intitulado “Brazil: boom, bust, and the Road to Recovery” com uma análise de economistas da instituição e acadêmicos brasileiros, nesta publicação, o Fundo propõe uma série de iniciativas de politica econômica, divididas entre aquelas voltadas para o equilíbrio de curto prazo (aperfeiçoar o tripé macroeconômico de 1999, incluindo a autonomia formal do Banco Central, aprofundar a consolidação fiscal, algo que requer a aprovação da reforma da Previdência), além de medidas de longo prazo, como melhorar a competitividade da economia brasileira, simplificar o sistema tributário, aumentar a eficiência do mercado de crédito, reformar o mercado de trabalho, promover a abertura da economia brasileira, combater a corrupção e melhorar a infraestrutura, redução da burocracia, todas estas medidas são vistas como medidas liberais que darão impulso ao sistema econômico e produtivo.

As medidas liberais, ou neoliberais, são bastante atrativas e, vistas de uma forma geral, tendem a convencer os incautos muito rapidamente, algumas delas se caracterizam por uma grande transformação na economia e, nesta transformação, graves desequilíbrios em indicadores sociais, aumento da pobreza e incremento da desigualdade. Estes impactos negativos acontecem porque grande parte dos setores econômicos e produtivos apresentam grandes dificuldades para competir no mercado externo, sobrevivem graças a incentivos e subsídios governamentais crescentes, para isso se utilizam de suas políticas de fortes lobbies, garantindo os benefícios e transferindo aos consumidores nacionais produtos com preços elevados e de menor qualidade quando comparados a similares internacionais.

Como destaca Bresser Pereira, considerado por muitos economistas liberais como um jurássico: “A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência”.

O Brasil não conseguiu garantir um amplo crescimento de sua produtividade, manteve durante muitos anos o modelo de substituição de importação, além de insistir neste modelo quando outros países o tinha abandonado, não investiu a contento na educação e capacitação de sua mão de obra, fechou sua economia e adotou políticas com reserva de mercado para setores ineficientes e de baixa produtividade, além disso adotou uma política de câmbio apreciado para controlar a inflação galopante herdada dos governos militares e, com isso, gerou graves constrangimentos ao setor industrial, que chegou a representar 28% do produto interno bruto e, na atualidade, está na casa dos 11%, um setor importante que sempre gerou bons empregos e potencial de crescimento tecnológico, com esta política cambial os empregos foram gerados em outras economias.

Outro ponto fundamental nesta equação da perda de importância da economia brasileira na economia global, foi a ausência da abertura econômica, o país protegeu de forma excessiva sua estrutura produtiva levando-a a ineficiência, vide como exemplo a indústria automobilística e a indústria dos computadores, setores fortemente protegidos e com baixa capacidade de competição no mercado internacional, ao contrário dos congêneres sul coreanos. Estes setores são importantes para a economia mundial, em ambos o Brasil apresentou bons potenciais de competitividade em décadas anteriores, mas, infelizmente ao se fechar e adotar políticas protecionistas, condenou-os a uma reserva de mercado atrasada e fortemente corporativista, os resultados estão mais nítidos nos dias atuais, sem concorrência nossa economia não vai conseguir ganhar mercado, não estamos defendendo uma abertura acelerada, mas uma política compactuada com os setores, uma redução das alíquotas em 4 ou 5 anos, acompanhada por uma depreciação compensatória, investimentos maciços em infraestrutura e controle dos monopólios no setor de serviços.

Esta abertura econômica pactuada e planejada com os setores produtivos deve priorizar novos acordos comerciais, impulsionando acordos além dos estabelecidos no âmbito do Mercosul, que em anos anteriores vem sendo desprestigiado devido as crises dos países membros, buscar novos acordos e definir um interesse mais efetivo para os mercados externos tende a costurar novos espaços para nossos produtos e para nossos setores econômicos e produtivos, gerando mais empregos e uma maior atração de moedas conversíveis.

A economia brasileira pode ser descrita como uma economia muito fechada, a razão de comércio exterior sobre o produto interno bruto está próxima da 25%, enquanto economias emergentes grandes e dinâmicas, como a China e a Índia, apresentam razões próximas a 40%, mesmo defendendo uma abertura econômica, faz-se necessário um gradualismo, um planejamento e a construção de uma agenda clara de competitividade, sem isto, a abertura tende a gerar constrangimentos maiores e desnecessários.

A temática fiscal é de suma importância para entendermos nosso atraso econômico, como nos explicou o economista britânico J. M. Keynes, a estabilidade macroeconômica requer austeridade fiscal durante expansões econômicas, e expansão fiscal em períodos de contração ou estagnação, nesta questão percebemos que o Brasil adotou um caminho oposto, adotamos políticas fiscais expansionistas quando não eram necessárias e austeridade quando a expansão era necessária, esta austeridade vem sendo adotada desde 2015 e os resultados não estão sendo nada positivos para a estrutura econômica e produtiva.

A direita liberal, que sempre se declarou mais racional e dominada pela razão econômica, na atualidade reflete apenas os interesses dos rentistas e financistas e os interesses estrangeiros, isto nos ajuda a compreender os ganhos astronômicos dos bancos e setores financeiros em uma sociedade destruída pelo baixo crescimento econômico e pelo incremento do desemprego. Já as esquerdas, que sempre defenderam, ou acreditaram defender, que se guiavam pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

O Brasil apresenta inúmeros problemas descritos por muitos teóricos e intelectuais como problemas econômicos, nossa economia apresenta algumas limitações, a superação destes problemas e constrangimentos só se efetivará com a construção de um projeto nacional que inclua todos os setores da sociedade, sem este projeto nos aproximaremos de uma fala clara e precisa do nosso maior economista, Celso Furtado, na despretensiosa obra O longo Amanhecer “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.

O livro descrito acima, “Brazil: boom, bust, and the Road to Recovery publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), nos traz inúmeras contribuições para a superação do atraso econômico brasileiro posterior aos anos 1980, nele encontramos várias lições para fazer com que o Brasil volte a crescer de forma acelerada, saber estas lições são fundamentais e relevantes para o futuro da economia brasileira, mas insuficientes, também são necessários uma liderança forte e um compromisso inabalável, ancorados em um senso de responsabilidade e parceria entre todos os grupos interessados (stakeholders)”. Este nos parece um grande problema no momento, os governantes atuais carecem de envergadura para compreender, de forma clara, os grandes desafios a que foram ungidos, sem este reconhecimento estaremos condenados a mais alguns anos ou décadas de baixo crescimento e de piora nos indicadores sociais.

40 anos de quase-estagnação

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Qualquer solução depende de mudança das elites 

Luiz Carlos Bresser-Pereira

De repente, meus colegas economistas descobriram o que eu gritava indignado há tempo: a economia brasileira está quase-estagnada desde 1981. Em 2001, falei em 20 anos de quase-estagnação; em 2007, quando o Cristo Redentor foi transformado em um foguete espacial, publiquei o livro “Macroeconomia da Estagnação”. Nos anos seguintes, os títulos de alguns dos meus trabalhos começavam com uma contagem progressiva: “Brazil’s 34 years… 35 years… 36 years old quasi-stagnation”.

Neste mês, talvez porque o FMI publicou um livro reconhecendo o problema (“Brazil: Boom, Bust, and the Road to Recovery”), leio no jornal Valor Econômico três artigos de competentes economistas brasileiros, Carlos Luque, Simão Silber e Roberto Zagha, da USP (5.abr), Castelar Pinheiro, da FGV (5.abr), e Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú-Unibanco (4.abr), assinalando nosso triste fracasso econômico.

O título mais significativo é o de Mesquita: “Os 40 miseráveis e o FMI”. Mas, leitores, não é o FMI o culpado. A melhor coisa do livro é a definição da quase-estagnação. Eu sempre comparo a taxa de crescimento per capita do Brasil de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, com os tristes 0,9% ao ano desde então. O FMI compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: nesse período “o crescimento do PIB per capita de 0,9% ao ano, em média, compara-se mal com os 3% das outras economias emergentes e em desenvolvimento e o 1,7% das economias desenvolvidas” (pág. 4).

Como isso pôde acontecer? A explicação de economia política pode ser resumida em uma frase: os trabalhadores, os capitalistas rentistas e a alta burocracia pública preocupam-se apenas com seu consumo imediato: os trabalhadores priorizam o aumento dos salários e veem na expansão da despesa pública o caminho para o desenvolvimento; os rentistas, representados pela ortodoxia liberal, justificam seus juros altos com o fantasma da inflação e veem no corte da despesa pública, inclusive o investimento público, a solução de todos os males; a alta burocracia pública, corporativista, que se legitima pela luta contra a corrupção, ignora o problema do desenvolvimento. Em outras palavras, o Brasil foi dominado nestes 40 anos pelo populismo fiscal (déficits públicos) do primeiro grupo, pelo populismo cambial (crescimento com “poupança externa” ou déficits em conta-corrente) do segundo, e pelo corporativismo do terceiro.

A preferência pelo consumo imediato, que reduz a acumulação de capital e o crescimento, transparece na simples comparação de 2016-2017 com 1976-1978: o investimento público no país caiu brutalmente, de 9,5% para 2,1% do PIB, queda esta não compensada pelo setor privado, que continuou investindo 15% do PIB. Boa parte da queda do investimento público pode ser explicada pelos juros pagos pelo Estado aos rentistas, que subiram de 2,2% para 6,3% do PIB.

Há solução para essa quase-estagnação velha de 40 anos? A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência.

Qualquer solução depende de uma mudança profunda na forma de pensar das elites econômicas, políticas e intelectuais brasileiras. Entre os anos 1930 e os anos 1980, elas foram predominantemente desenvolvimentistas; desde 1990, liberais.

A direita liberal supõe guiar-se pela razão, mas hoje reflete apenas os interesses de rentistas e financistas e os interesses estrangeiros; a esquerda acredita guiar-se pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

 

Considerações espíritas sobre o obsidiado: vítima ou algoz?

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A Doutrina Espírita nos foi trazida ao mundo pelos espíritos por intermédio do intelectual francês Allan Kardec, com estas revelações a sociedade mundial tomou contato com uma nova realidade, neste momento se descortina o mundo espiritual, nos mostrando que estagiamos no mundo material, mas a verdadeira vida se dá no mundo espiritual, estas descobertas de caráter revolucionário geraram constrangimentos para muitos e esclarecimentos para outros, as novidades assustavam e geravam preocupações para todos os indivíduos.

O espiritismo nos mostrou casos chocantes de obsessão e de possessão, mostrando ao mundo uma realidade nova e muito mais complexa, os obsessores eram vistos como espíritos maldosos e violentos pela sociedade da época, que escolhiam as suas vítimas aleatoriamente e se compraziam das dores destes obsidiados, vítimas de espíritos atrasados e dotados de sentimentos inferiores, esta visão se mostrou limitada com as ideias e os pensamentos inaugurados pelo movimento espírita, nesta doutrina se descobriu que, no mundo, não existem vilões e nem mocinhos, personagens dos contos de fadas infantis, embora muitos irmãos sofredores se dizem esquecidos e vítimas de perseguições, se colocando como vítimas da maldade alheia, não existem vítimas, somos todos algozes.

Numa conversa com algumas pessoas que vivem momentos de obsessão, a grande maioria se diz vítima de espíritos cruéis, irmãos agressivos que os querem ver mortos e enterrados, para conseguir seu intento, usam de todos os instrumentos de controle e de dominação, levando muitos irmãos ao suicídio, alguns levam os obsidiados a se agredirem fisicamente , com variadas formas de mutilação, além de estimular doenças e comportamentos agressivos, agredindo e maltratando suas vítimas, seus familiares e amigos ou pessoas próximas que queiram auxiliar, enxergando nestas atitudes uma forma de se vingar de desequilíbrios e agressividades de outras encarnações.

Neste ambiente de vinganças e de agressividades entre desencarnados e encarnados, percebemos um laço forte entre estes irmãos, muitos se manifestam nas seções mediúnicas e bradam destruição e constrangimentos aos seus perseguidos, falam alto e tentam intimidar os doutrinadores, querendo mostrar poder e controle da situação, usam termos mais agressivos e, em muitos casos, palavras e expressões deselegantes.

Os espíritos obsidiados não devem ser vistos como vítimas, não existem vítimas, se neste momento estão sendo obsidiados, e Deus autoriza todo este processo, é porque em algum momento cometeram equívocos que justificam esta situação, a justificativa para estas perseguições, muitas vezes, não pode ser encontrada nesta vida atual, mas em outras encarnações, quando em convivência com o atual obsessor cometeu algum abuso que gerou este ressentimento que ora está sendo cobrado de forma veemente, gerando graves constrangimentos e criando laços de rancor que podem perdurar por muitos séculos, tendo casos de obsessão que duram mais de trezentos ou quatrocentos anos, período longo marcado por dores, rancores e intensos ressentimentos.

Joana de Angelis nos mostra que, para o obsidiado, a obsessão é uma prisão interior, uma cela pessoal, onde a grande maioria das pessoas se mantém sem lutar por libertação, acomodada aos vícios, centralizada nos erros. O Espiritismo veio para nos auxiliar a sair desta cela que impomos a nós mesmos, por ignorância e pelas dificuldades que temos de encarar de frente nossas dificuldades e limitações, com seus ensinamentos que consolam, mas, sobretudo, nos libertam e nos auxilia em nosso crescimento moral e espiritual.

A Doutrina Espírita nos mostra que a nossa vida não se restringe a atual vida, somos espíritos imortais e estagiamos no mundo físico a mais de 40 mil anos, como nos mostrou André Luiz, em Nosso Lar, desde então, estamos sujeitos a um processo contínuo de experiências físicas e, com estas, crescemos e evoluímos até nos tornarmos espíritos puros, estas andanças são complexas, mas nos levam a uma visível melhora individual e a uma sociedade mais consistente e renovada.

A obsessão deve ser compreendida como alguma influenciação que os encarnados sofrem dos irmãos que passaram para o mundo espiritual, os desencarnados, num estágio mais elevado o obsessor passa a controlar, de forma tão precisa e violenta que o obsidiado passa a se comportar da forma que o obsessor deseja, levando-o a fazer escolher e definir estratégias, o controle total do obsessor pode levar o obsidiado ao suicídio, neste momento percebemos que de uma simples obsessão, a situação passou para um caso de possessão.

Todos nós fomos ou ainda somos obsidiados, é importante destacarmos esta questão de forma clara e direta, estamos todos obsidiados ou sujeitos a sermos obsidiados e, como nos mostrou Suely Caldas Schubert, no livro Obsessão e Desobsessão: “Desde que não conseguimos a nossa liberdade, desde que ainda não temos a nossa carta de alforria para a eternidade, desde que caminhamos sob o guante de pesadas aflições que nos falam de um passado culposo e que ressumam sombras ao nosso redor… é porque, em realidade, ainda somos prisioneiros de nós mesmos, tendo como carcereiros aqueles a quem devemos”.

O obsidiado deve ser visto como um companheiro de vidas anteriores, muitos deles atuaram em falcatruas ou em trambiques visando lucros fáceis e recursos amoedados, são espíritos bastante próximos, muitos casos nos mostram claramente sentimentos fortes de amor e de admiração, encobertos pelo ressentimento e pela dominação do rancor, das mágoas e da vingança.

Todos estes sentimentos foram construídos ao longo do tempo, muitas parcerias foram consolidadas em experiências anteriores, muitos acordos foram rompidos e muitos prejuízos materiais foram efetivados, gerando uma perseguição intensa e um sentimento forte de revanchismo, levando estes irmãos inconscientes a uma dura realidade da vida, com dores, mágoas e lágrimas escorrendo de seus corpos físico e espiritual.

Muitos desencontros são gerados nos relacionamentos amorosos, muitas conquistas levam a dores, mágoas e ressentimentos, promessas descumpridas, casamentos desfeitos, namoros arruinados e corações partidos, sentimentos antes próximos dos amores terrestres são transformados em agressividades e violências mundanas que muitos irmãos levam por séculos e séculos cravadas no íntimo, são dores que incomodam severamente os corações incautos, que se entregam ao rancor e, com isso, evitam uma reflexão mais íntima e sincera das suas dificuldades emocionais e espirituais.

O obsidiado deve ser visto como um irmão que precisa de auxílio, e mais, deve ser compreendido como uma pessoa que está nos auxiliando muito mais do que imaginamos, afinal, todos os desequilíbrios que este irmão nos mostra são desajustes que temos e que cultivamos, muitos deles durante muitos anos e, até mesmo, séculos. Quando recebemos estes irmãos, mesmo sabendo que eles momentaneamente querem o nosso mal, temos a oportunidade de refletir sobre a nossa conduta ou os nossos comportamentos e hábitos, isto porque, quando nos visita, busca na nossa intimidade situações que precisamos evoluir, sem esta transformação não conseguiremos nos melhorar e galgar novos espaços, mais sólidos e consistentes, nesta nova experiência no mundo material.

No livro Nosso Lar, André Luiz nos mostra uma situação familiar que ilustra de forma precisa esta questão, num determinado momento sua mãe, um espírito de grande desprendimento e evolução espiritual se compromete a reencarnar e, novamente, contrair núpcias com seu pai, mesmo sabendo que este acumulou inúmeros casos e relacionamentos extraconjugais e dentre eles, manteve durante alguns anos duas mulheres que, ao desencarnar o perseguiam obsessivamente, lhe causando graves desequilíbrios emocionais e a permanência em regiões nebulosas por muitos anos, mesmo sabendo de tudo isto, sua mãe aceitou receber estas irmãs como suas filhas numa próxima encarnação, doando seu ventre para que estas nascessem e seus sentimentos para que estas irmãs crescessem e se desenvolvessem, um belo exemplo de evolução, desprendimento e abnegação.

A nossa reflexão íntima nos ajuda a compreender aonde este irmão, ora obsessor, está atuando, uns atuam na sexualidade e nos desejos sexuais, outros se concentram nas questões financeiras e monetárias, outros ainda se comprazem em desequilibrar nossos relacionamentos, incentivando o uso de drogas e o consumo excessivo de bebidas, além de ver outros obsessores buscando desequilibrar as questões profissionais e de saúde. Somos seres em constante evolução e apresentamos desequilíbrios em algumas destas áreas, normalmente em muitas delas, uns são mais propensos a desajustes numa das áreas, enquanto outros apresentam desequilíbrios em outras, mas todos apresentamos estas fragilidades e precisamos vencer tais desequilíbrios, sob pena de nos vermos envoltos em processos obsessivos severos e violentos, com grandes traumas e comprometimentos.

Estas dificuldades todos os indivíduos trazemos transcritos em nossa períspirito, estão inscritas desde muitas encarnações, em alguns momentos evoluímos em uma das áreas e deixamos outras de lado, a evolução, diante disso, demanda tempo, perseverança e muitos esforços, lutar contra nossas dificuldades nos auxilia a encontrar um progresso mais próximo e mais consistente.

Somos os nossos maiores obsessores, estamos constantemente cultivando pensamentos negativos e inferiores, agindo de forma diferente dos valores que aprendemos em nossas experiências cotidianas, somos os nossos maiores algozes e estamos, constantemente, culpando aqueles que momentaneamente querem o nosso mal, precisamos evoluir para que tenhamos maturidade para encarar as realidades da vida de frente, sem esta maturidade emocional e espiritual vamos continuar repisando nossos problemas, criando traumas, angariando inimigos e levando-os para as próximas existências.

Amores mundanos e conquistas centradas em promessas e constrangimentos, podem levar sentimentos sólidos a se transformar em rancores e ressentimentos agressivos, obsessores se julgam vítimas de relacionamentos frustrados e de conquistas vis, prometem vingança e desperdiçam muitos anos ou décadas de suas vidas com perseguição, muitos destes casos são amores mal resolvidos e sentimentos ainda latentes, que unem dois irmãos que conseguiram transformar sentimentos nobres em agressividades, esta obsessão pode levar ambos a desequilíbrios generalizados e até, em casos extremos, a possessão, situação onde o obsessor controla o obsidiado por completo, comandando seus pensamentos, sentimentos, comportamentos e suas atitudes.

Muitas vezes prometemos casamento, relacionamentos sérios ou compromissos futuros para um irmão ou irmã desequilibrados, sabemos que não vamos efetivar esta promessa mas, mesmo assim, a utilizamos para angariar benefícios físicos, financeiros ou sexuais, esta promessa gera uma proximidade entre os dois indivíduos, com o encerramento do relacionamento um destes irmãos não se conforma e passa a perseguir seu eterno amante, em muitos casos vira uma verdadeira paranoia, esta perseguição começa no mundo material e, muitas vezes, continua durante muitos séculos no mundo dos espíritos, gerando dores, mágoas e tentativas variadas de vingança.

Muitos abortos feitos por pessoas imaturas e inconsequentes podem gerar graves processos obsessivos, obsessões agressivas e violentas, se o indivíduo abortado se sentir inferiorizado e, com isso, acumular sentimentos de vingança e ressentimento, a perseguição pode se transformar em um instrumento concreto de destruição, gerando rancores e ressentimentos que podem perdurar por anos, décadas e até séculos, acumulando dores, lágrimas e ranger de dentes que poderiam ser, facilmente, evitados através do perdão verdadeiro.

A Doutrina Espírita nos mostra que somos responsáveis por todos aqueles que cativamos e conquistamos, se nos aproveitarmos de alguém seremos condenados a ressarcir este irmão, todas as promessas que fazemos devem ser efetivadas e quando as fazemos com interesses duvidosos teremos que arcar com as consequências de nossos atos, muitos enxergam isto como uma punição, mas devemos ver não como uma punição de Deus, mas, como um processo de educação do espírito imortal.

A transformação moral, a vivência no bem, a opção pela oração constante, o cultivo dos reais valores da vida aos poucos anulará os condicionamentos para a dor, favorecendo a harmonização interior, que é, sem dúvida, fator de melhor saúde física e espiritual. A Doutrina dos Espíritos nos auxilia para que possamos amenizar as nossas dores mais íntimas, não só pela compreensão de suas causas, mas também por intermédio de todo bem que possamos fazer, diante disso e, com estes esclarecimentos, mais fácil se torna para o ser humano a caminhada, mesmo sabendo que a estrada é esburacada, a certeza da presente de Deus em nossos corações nos dá o alento necessário para alcançar nossa evolução e nosso progresso, transformando a caminha em luzes para nossa evolução moral e espiritual.

 

 

Corrupção, crise econômica e degradação social

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A sociedade brasileira está envolta em casos assustadores de corrupção, ineficiência e desmandos com o dinheiro público, num país marcado por tanta pobreza e indignidade, os desperdícios aumentam a pobreza e a degradação social e condena uma parte considerável da população a uma miséria crônica e vergonhosa, apesar de sermos a oitava economia do mundo, estamos nas últimas colocações do ranking quando analisamos questões sociais.

A corrupção sempre foi vista como algo estrutural nesta sociedade, segundo cálculos recentes da transparência internacional, instituição de grande respeitabilidade global que analisa esta questão, desvia-se entre 3 e 5% do produto interno bruto (PIB), recursos estes que poderiam minorar as dores e a degradação das condições de vida de milhões de cidadãos que vivem e se reproduzem nas piores condições sociais possíveis e imagináveis.

Ao analisar este fenômeno da corrupção, percebemos inúmeras vertentes de análise, uma que remonta a história do país um comportamento eminentemente corrupto, onde os portugueses construíram em terras locais uma sociedade baseada em compadrio, clientelismo e patrimonialismo, onde os detentores dos poderes econômicos da metrópole, reproduziam na colônia os instrumentos de controle que eram fontes de poder e manutenção do status quo, nesta sociedade, marcada pelo conservadorismo e pela forte influência do catolicismo, os donos do poder mantinham inúmeros privilégios enquanto os cidadãos normais se limitavam a direitos e benefícios sociais e políticos limitados.

Muitos acreditam que a corrupção que vivenciamos internamente tem suas raízes na colonização de Portugal, com isso, deixam de assumir as responsabilidades da população brasileira, afinal, os portugueses foram embora do Brasil a quase duzentos anos, nestes quase dois séculos de independência o país já deveria ter assumido as suas responsabilidades e tomado as rédeas de seu desenvolvimento econômico, social e político, culpar outros países denota claramente a imaturidade que domina uma parte da elite nacional.

Outro ponto importante para se destacar quando debatemos a corrupção é em relação as críticas feitas por boa parte da população aos homens públicos, vendo neles os verdadeiros exemplos da corrupção e da ineficiência do Estado e das políticas públicas, esta nos parece uma tese incompleta para a compreensão do problema em sua essência, muitos preferem colocar a culpa em outros, atribuir a terceiro os motivos do fracasso da sociedade brasileira, com isso se esquecem da responsabilidade de cada pessoa, se esquecem dos comportamentos corruptos e das atitudes inconsequentes de todos os dias na vivência em comunidade, quando passam no sinal vermelho, quando dirigem acima da velocidade permitida, quando cortam fila ou fingem situações para passar na frente de outras pessoas, quando corrompem o guarda ou fazem propostas indecorosas para conseguir benefícios ou prazeres imediatos, ou seja, nestas situações mostramo-nos intimamente, nos desnudamos e deixamos nítido que, se tivéssemos a oportunidade ou o poder, agiríamos da forma como os políticos agem na sociedade e que nós tanto o criticamos.

A corrupção está presente nos lares da população, desde os anos 70 nos comprazemos com a ideia de que devemos tirar proveito de tudo, de que somos adoradores da Lei de Gerson, o chamado jeitinho brasileiro nos acompanha desde os primórdios do nosso íntimo, somos e nos deliciamos com nossa capacidade de tirar vantagem de tudo. Neste ambiente marcado pela corrupção e pela cidadania reduzida, nos lembramos das palavras e das reflexões do grande jurista Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

A corrupção corrói as estruturas da sociedade, gerando graves desequilíbrios nas estruturas econômicas, sociais e políticas, propala, para toda a sociedade, nacional e internacional, a certeza de que, como disse Charles De Gaulle, grande estadista francês em visita ao país nos anos 60: “O Brasil não é um país sério”. Mesmo rechaçando as palavras do político francês, todos os brasileiros sabemos, na intimidade, que o Brasil precisa passar por um banho de civilização, estamos diante de graves problemas econômicos, políticos e sociais, sem resolver estas questões de cunho moral, dificilmente daremos o salto tão almejado desenvolvimento econômico.

A corrupção perpassa variados grupos sociais, de um lado encontramos um Estado altamente ineficiente, cujos investimentos geram os mais desagradáveis retornos da sociedade global, precisamos caminhar muito em governança, reduzir os desequilíbrios e desperdícios que corroem a renda e geram um rastro de medo, insegurança e incertezas.

A corrupção se associa intimamente com o Estado, no Brasil temos um governo gigantesco, seus investimentos e gastos influenciam imensamente todos os setores econômicos e produtivos, reduzir a atuação governamental em setores marcados pela ineficiência e pelos desperdícios e concentrar sua atuação em setores com menores condições, tanto com relação ao pessoal quanto ao financeiro, garantindo políticas públicas consistentes para que todos os grupos tenham acesso a uma educação inclusiva e de qualidade, que garanta a todos os grupos sociais condições de competir no mercado de trabalho competitivo e altamente individualista.

Destacamos ainda, que devemos rechaçar a tese de que o Estado é corrupto e ineficiente, enquanto os mercados e a iniciativa privada são sempre virtuosos e competentes, Estados e Mercados são agentes centrais para o desenvolvimento do país, se estudarmos a história do desenvolvimento dos países avançados perceberemos que todos eles, no início da industrialização, contaram com o apoio e a participação de políticas industriais ativas lideradas pelos seus respectivos governos, como nos mostrou o esclarecedor livro O Estado Empreendedor, da economista italiana Mariana Mazzucato.

A coordenação entre Estado e Mercado deve ser centrada na transparência, no compartilhamento de decisões e na construção de estratégias claras e consistentes, sem o planejamento conjunto, ainda mais num momento de constante instabilidades e inseguranças, o desenvolvimento econômico e produtivo pode não se efetivar da melhor forma possível, com graves problemas para a coletividade.

Vivemos no Brasil uma situação exemplar, extraordinário e paradoxal, sempre nos caracterizamos como uma sociedade que via a política como um espaço de corrupção e ineficiência, neste mundo a parte os políticos eram o retrato mais nítido e evidente do atraso, os outros setores eram competentes e capacitados, acreditamos nisso durante muitos anos até acordarmos e percebermos que não éramos tão virtuosos como acreditávamos, que os políticos e os homens públicos eram eleitos com os nossos votos, nós os elegíamos mesmo vendo neles um exemplo de ineficiência, despreparo e corrupção.

Outro ponto central para se destacar nesta sociedade é o papel central da educação, além de ser um instrumento fundamental para a melhoria da competitividade e da economia de um país, a educação deve ser vista como um instrumento extremamente relevante para construir cidadãos capacitados e conscientes, não apenas consumidores, ou seja, indivíduos que acreditam que todas as relações sociais dentro de uma coletividade deve ser estruturada dentro das relações comerciais e financeiras, deixando de lado o papel da política como um instrumento de intercâmbio e melhorias sociais e coletivas.

A corrupção é um cancro que degrada toda a coletividade, desvia os recursos que deveriam ser investidos na melhoria das condições sociais e econômicas, gerando mais e melhores empregos e capacitando os trabalhadores para os desafios do mundo globalizado, a corrupção denigre a política e os homens públicos criando e disseminando a máxima “políticos são todos iguais”, com isso, contribui para a perpetuação das condições de iniquidade e desajustes e impulsionando a visão deletéria de que devemos ser, cada vez mais, individualistas, pensarmos primeiro em nossos mais imediatos interesses e depois, muito depois, pensarmos nos interesses de nossa coletividade.

O Brasil precisa combater efetivamente as causas da corrupção, para que isso seja feito, faz-se necessário a construção de estratégias consistentes que abarquem todos os poderes da República, a corrupção que assusta a coletividade está encravada em todos os poderes não apenas o executivo e o legislativo, como muitos querem passar a impressão, a corrupção está gangrenando dentro do judiciário e dentro do ministério público, a corrupção está dentro do mercado financeiro, dos grandes bancos, das corretoras e de outros agentes independentes, a corrupção se alastrou por todas as instituições do Estado Nacional, combater a corrupção é bradar que se está fazendo uma ampla limpeza no país, sem se aprofundar nas entranhas do judiciário e do sistema financeiro, os resultados serão sempre limitados e limitadores.

Depois de vários escândalos nos últimos vinte anos, vamos nos restringir a este período histórico, desde os anões do orçamento, a compra de votos para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, o mensalão, o petróleo e agora a Lava Jato, muitos inquéritos foram abertos, muitos escândalos foram revelados e muita podridão nos foi mostrada em cadeia de rádio e de televisão, mesmo diante destes escândalos, muitos políticos e empresários foram presos, humilhados e suas imagens foram destruídas mas, neste período poucos foram efetivamente condenados e muitos deles, através de delações premiadas já estão em liberdade, sendo que alguns voltaram a delinquir.

A corrupção se manifesta de forma diferente na sociedade contemporânea, a pior forma de corrupção é a corrupção do caráter, a corrupção da moral, esta forma está em ampla ascensão na sociedade, pessoas que conhecem a situação social, intelectuais e homens públicos que se vendem em troca de recursos amoedados, garantindo uma vida de prazer, dinheiro, bens e hedonismo, pesquisadores que vendem descobertas científicas que degradam a vida de milhões de pessoas, destroem as bases da sociedade, se esquecendo dos graves impactos e consequências de suas decisões, com isso, percebemos uma sociedade em alta ebulição, marcadas por crises e desequilíbrios crescentes.

A discussão sobre a corrupção é uma conversa muito mais complexa do que as pessoas imaginam, conversar sobre este tema é refletir sobre as desigualdades que reinam na sociedade, falar sobre corrupção é conversar sobre as formas de educação que estão sendo vendidas nas escolas e nas universidades, falar sobre a corrupção é adentrar na discussão de como as empresas e os empregadores tratam seus funcionários ou como exigem os gestores, os colaboradores, esta discussão é muito pouco comentada na sociedade, esta discussão não interessa apenas aos donos do poder e, sendo assim, esta discussão não aparece nos jornais, nas revistas e nos sites de notícias, aparecem apenas na mente e nos lábios dos professores que ousam pensar e refletir, ou seja, uma pequena e ínfima minoria.

Quando escrevi a minha tese de doutorado, o assunto escolhido foi a corrupção e os custos econômicos para a coletividade, naquela época nos deparamos com as investigações relacionadas ao mensalão, concomitantemente estudava o começo dos anos 90, quando o governo Fernando Collor de Mello sofreu impeachment e foi acusado de corrupção generalizada, nesta época lia os artigos de teóricos e políticos importantes, todos revoltados com a situação de corrupção do país, para minha surpresa, anos depois, estes mesmos que gritavam e bradavam contra a corrupção, estavam no centro das investigações justamente por corrupção e desvios de recursos públicos, neste momento me vinha a mente de forma veemente uma fala do teórico alemão, tão criticado no Brasil contemporâneo Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

 

 

 

 

 

Quem deu o golpe, e contra quem?

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JESSÉ SOUZA

24/04/2016 – Folha de São Paulo

(RESUMO) Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela “elite de dinheiro”.

O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.

O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.

A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.

O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse sonho, posto que “afetivamente” nunca sentiu compromisso com os destinos do país.

Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.

A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites.

É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.

De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.

A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.

O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.

INFRAESTRUTURA

O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.

Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.

O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um “Brasil grande”.

Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.

Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.

A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.

Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.

O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.

Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.

Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas “pegava mal” expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.

O discurso da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso “campeão da moralidade”. O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a “base popular”, produto da mídia servil à elite da rapina.

A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma “boa burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.

Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.

Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.

Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.

Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.

A manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto “bem comum”. O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.

Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da “justiça seletiva” ele não teria acontecido.

O Estado policial a cargo da “casta jurídica” já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma “seletividade midiática”, o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a “grande pizza”.

A “pizza” para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.

Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de “coragem cívica”.

Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.

JESSÉ SOUZA, 56, autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” (Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.

Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza

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RESUMO Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje.

Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para o autor de “Casa-Grande e Senzala” e para seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.

Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.

A “esquerda”, entendida como a perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação dominante.

A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a ambição de meu novo livro, “A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato” [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.

Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel principal.

Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.

ESCRAVIDÃO

Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A “ralé de novos escravos”, mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta.

Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.

A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.

A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o “quero o meu agora”, mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.

INTERMEDIÁRIAS

Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe trabalhadora e a classe média.

Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.

A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de “fábricas de opiniões”: a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para “convencer” seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da “liberdade de imprensa” e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco “think tank” do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.

LAVA JATO

Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal, como os pobres (“coitadinhos!”) não têm consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir da sua “respeitabilidade científica” e, depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.

Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicamente.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.

JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” e “A Radiografia do Golpe” (Leya), além de professor de sociologia da UFABC.

Horizonte da elite não é sociedade justa, é economia pujante

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Para as classes altas, tudo é aceitável, se a locomotiva seguir acelerada

A elite social brasileira é branca, educada e cosmopolita. E assim é desde que o país começou. É também violenta, embora se veja como generosa para com subalternos, todos negros, mas “como se fossem da família”. Não são.

Nem na vida ganham acesso às relações abridoras de portas nem na morte herdam patrimônio. A próxima geração segue onde estava a antecedente, numa estrutura social secular, com os mesmos sobrenomes usufruindo a vista da cobertura, enquanto os sem nome limpam cozinhas e latrinas.

Ao contrário do que pregam a adversários, é raro que membros da elite façam autocrítica de erros políticos, como a eleição de Fernando Collor. Muito menos reconhecem seu papel ativo na reprodução intergeracional da desigualdade. Alguns dos seus, os “bem intencionados”, atuam nas franjas, com iniciativas para premiar o “talento” de alguns humildes, como Carlinhos Brown, que foi da favela ao estrelato.

Esta fresta para o alto não altera os mecanismos de distribuição de recursos e acessos. Mas é o suficiente para os cidadãos de bem, reconfortados pelo argumento liberal de que oportunidades individuais bastam para corrigir problemas estruturais.

É que o horizonte desta elite não é uma sociedade justa, é uma economia pujante. Para obter a segunda, abre mão da primeira. Nunca titubeou em pagar o preço, fosse a escravidão, regimes de trabalho avizinhados ou ditaduras, como a que o presidente comemorou. Tudo aceitável, se a locomotiva seguir acelerada.

Essa gente de bem pensa em si como o vagão que puxa o trem, que carrega o fardo do país e pena o alto custo trabalhista de mão de obra sem qualificação. São empreendedores incansáveis, prejudicados pelo povo caro e ignorante —que reclama de barriga cheia, pois muitos pesam, disse o presidente, várias arrobas.

O raciocínio do “Custo Brasil” omite que as mazelas nacionais sucessivas resultaram de decisões políticas tomadas pelos que estão no alto, enquanto o sacrifício é sempre exigido dos de baixo. Assim foi na reforma trabalhista, assim se anuncia na previdenciária e a tributária não avançará imposto sobre grandes fortunas e transmissão intergeracional de riquezas.

E, convenhamos, não se exige de quem adentra essa elite o refinamento da antiga aristocracia. Veja-se o novo ministro da Educação: é branco, tem diploma superior e renda que garantem moradia em andar alto da pirâmide nacional. E, no entanto, emite juízos explicáveis apenas pela ignorância.

Já havia o precedente do “nazismo de esquerda” mas rotular banqueiro de comunistas compete à altura. Nenhuma destas pérolas ministeriais espanta, considerando a língua presidencial. Mas choca que parcela tão gorda do topo social siga firme no apoio à obscurantista, autoritária e até aqui ineficiente “nova política”.

Apoio registrado no último Datafolha capaz de os banqueiros que o ministro menciona estarem entre os 36% de homens com diploma superior e os 41% com renda acima de dez salários mínimos que acham “ótima” a administração mitológica.

A aprovação (ótimo/bom) é ampla entre os que vivem bem: 47% dos profissionais liberais, 57% dos empresários e 71% dos rentistas, como se dizia antigamente. Os bem postos na vida estão satisfeitos com o governo.

Mesmo com critério exigente, a alegria não se desmancha: 46% do empresariado e 44% dos que vivem de renda dão nota 8 ou mais para a administração bolsonarista. Parte dos eleitores do mito é impenitente e está infenso a três meses de barbaridades. Mas nem todo votante de conveniência, o antipetista, repudia: 54% dos que se declaram PSDBistas seguem achando tudo ótimo. É que se a reforma da Previdência passar, os tuítes ensandecidos do Palácio do Planalto serão perdoados, porque o país —ou parte dele— usufruirá das bênçãos do mercado.

A maioria destes cidadãos de bem apoia também embalada por outra promessa, a da reforma penal.
É preciso mais que comprar armas para se defender de meliantes. Precisa encarcerá-los antes que atinjam a idade adulta. Claro, alguns escaparão de celas de extermínio precoce, e poucos talentosos serão escolhidos, como Brown, para cantar no Lollapalooza.

Aos remanescentes, resta a prontidão das forças da ordem, a postos para abater suspeitos. Suspeitos naturalmente negros, como muitos dos executores, como negros eram tantos capitães do mato.

Estão a serviço, mas tampouco serão admitidos às fortificações medievais onde a gente de bem dorme tranquila. Não se pode acordá-la com choro de órfãos, mães e viúvas, nem com o ruído de 80 tiros.

Angela Alonso

Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.

 

Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo

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Biógrafo analisa hostilidade contra o educador, em alta nos últimos anos

Sérgio Haddad Folha de São Paulo – Ilustríssima – 14/04/2019.

[resumo] Biógrafo de Paulo Freire analisa como o principal educador brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e responsabilizado por maus resultados educacionais do país.

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática.

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar.

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor.

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.

E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos —tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça—, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma.

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no Psol).

Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada.

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro.

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Velez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta.

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado.

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses.

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?”

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”.

Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.

Sérgio Haddad é doutor em educação pela USP, pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul. Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela Editora Todavia.

 

É necessário fiscalizar algoritmos e regular empresas de tecnologia, diz especialista

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Americana defende que Facebook e Google, por exemplo, lidem com efeitos que trazem para mundo real

Bruno Benevides – Folha de São Paulo – 15/04/2019 SÃO PAULO  

As grandes empresas de tecnologia ainda seguem um modelo de negócio do século passado, sem se importar com os reflexos de suas atividades, o que dificulta inclusive o surgimento de novos empreendedores. E, para mudar isso, será necessário alguma forma de regulação, afirma a autora americana Kate O’Neill.

“Temos que responsabilizar as plataformas como Facebook, Twitter, Google e outras redes sociais que definem o conteúdo que é mostrado para a população”, diz ela, que defende um mecanismo capaz de supervisionar o modo como os algoritmos decidem o que aparece para os usuários.

Uma das primeiras funcionárias da Netflix e presença constante em palestras no Vale do Silício, O’Neill também considera que as pessoas devem tomar mais cuidado com o que compartilham nas redes sociais, para que seus dados não sejam usados para fins políticos.

“Sempre que alguém chamar para participar de um meme ou de um jogo, o sinal vermelho deve acender. Foi esse o cenário que a Cambridge Analyticaus usou para conseguir os dados de 70 milhões de eleitores norte-americanos.”

No fim de 2018, ela publicou seu terceiro livro, “Tech Humanist”, um manifesto no qual defende que o avanço tecnológico precisa ser acompanhado de preocupação ética com seus efeitos para o ser humano.

Em seus livros, a senhora defende que os avanços tecnológicos devem andar juntos com o valor da humanidade. Qual é esse valor?


É a ideia de que o ser humano deve ficar no centro, de que há valor na vida humana e que ela deve ser respeitada. Há um avanço tecnológico muito grande capitaneado pelas empresas, mas, na verdade, é uma construção coletiva que deve ter como norte ajudar a humanidade.

Conforme as tecnologias avançam e permitem às empresas ampliarem sua atuação, há uma obrigação ética crescente de alinhar os negócios com as consequências que eles geram para o ser humano, de modo a garantir que não exista uma diferença grande demais entre quem tem acesso e quem não tem.

E nós estamos fazendo isso?

Acho que não. Muito do que acontece com as empresas, especialmente as grandes companhias de tecnologia, é simplesmente uma aceleração do mesmo modelo de negócio dos últimos séculos.

A diferença é que, em uma era com inteligência artificial e automação, é possível conseguir cada vez mais dinheiro e mais eficiência com cada vez menos pessoas envolvidas no processo. Os empresários vão ter mais lucro, mas os seres humanos terão menos empregos, então vão ganhar menos da riqueza gerada.

É um cenário no qual é cada vez mais difícil enxergar qualquer tipo de oportunidade para quem já não faz parte da liderança dessas empresas.

Claro que ainda há oportunidades para empreendedorismo e inovação nesse cenário, mas elas são cada vez menores e mais desafiadoras. Devemos fazer um poderoso esforço para criar um sistema que permita às pessoas ter oportunidades conforme os negócios crescem. Não creio que hoje as empresas, em especial as de tecnologia, estejam fornecendo oportunidades suficientes. Elas não pensam nisso.

O que precisa mudar?

Os negócios precisam operar de uma perspectiva que chamo de propósito estratégico. Isso não significa necessariamente propósito em um sentido humanitário ou de caridade.

Significa um entendimento do que a empresa faz e do que quer fazer ao ganhar escala, de modo que possa dialogar com as consequências humanas do negócio. É como um hospital que entende que seu maior objetivo não é lucrar de qualquer maneira, e sim o bem-estar de seus pacientes.

Colocar a perspectiva correta e as prioridades certas ajuda os negócios a tomarem as decisões corretas em relação a cultura, marca, experiência. Cada vez mais é necessário esse alinhamento entre a empresa e as pessoas que ela atende. Porque, do contrário, o negócio cresce de maneira exponencial, mas sem ser acompanhado por valores humanos.

Isso também vale para o mundo político?

São dois modelos bem diferentes. Acho que há um trabalho a ser feito na esfera política para garantir a criação de proteções e regulações necessárias às pessoas, assim como para garantir que os líderes políticos tenham as melhores intenções em relação a seus eleitores.

A tecnologia não é necessariamente a primeira coisa que vem à cabeça quando se pensa em política, mas evidentemente tem um papel importante em transmitir uma mensagem, em mudar a posição da população sobre determinado assunto e em quem votar.

O que mais chamou a atenção recentemente nesse aspecto foi a influência russa na eleição presidencial americana de 2016, mas em qualquer lugar do mundo temos visto um aumento de interesses particulares tentando criar campanhas ou usando o Facebook e outros canais para tentar influenciar o resultado de uma eleição.

Isso com certeza está acontecendo, e é preciso responsabilizar os políticos por suas ações. E também temos que responsabilizar as plataformas como Facebook, Twitter, Google e outras redes sociais que definem o conteúdo que é mostrado para a população.

Devemos regular as atividades dessas plataformas?

É preciso criar um equilíbrio, há uma divisão tripla da responsabilidade. Parte dela é interna das empresas. Companhias como Facebook e Google ajudariam muito se assumissem a responsabilidade de alinhar suas práticas com o que é melhor para a humanidade.

Além disso, sempre é necessário algum grau de regulação, alguma forma de supervisão da sociedade ou do governo.

É possível que a solução seja a criação de uma entidade para acompanhar o funcionamento dos algoritmos, entender qual o tipo de influência que eles geram e analisar quais fatores são levados em conta na hora de decidir qual conteúdo será distribuído e qual não será. Isso é uma discussão que está começando a crescer ao redor do mundo.

Creio que também há uma responsabilidade que recai sobre as pessoas, que precisam desenvolver a capacidade de reconhecer quando algo distribuído não é verdadeiro.

Será cada vez mais fácil manipular fotos, vídeos e áudios, além do uso da inteligência artificial para fazer um vídeo em que uma figura pública fala coisas que não falou de verdade. Então essa capacidade de reconhecer o que é falso precisa aumentar.

Nossas experiências serão cada vez mais influenciadas pelos algoritmos e pela automação. O trabalho precisa ser feito em cada uma dessas esferas: a empresarial, a política e a individual. Não adianta trabalhar em um lado e achar que os outros vão acompanhar.

É possível acabar com a distribuição de fake news durante os ciclos eleitorais?

A necessidade de algum nível de moderação e monitoramento de conteúdo —incluindo material de ódio, violento, alarmante e falso— vai apenas aumentar nos próximos anos, conforme os “deepfakes” se tornam cada vez mais comuns, e tentativas de copiar campanhas nas redes para influenciar questões políticas e sociais se proliferam.

Sempre houve um ciclo em que as pessoas tentam burlar as restrições impostas pela tecnologia, seguido pelas empresas aumentando essas restrições, seguido pelas pessoas quebrando essas novas restrições e assim infinitamente. Esse ciclo não vai mudar.

Em artigo para a revista Wired sobre o “10-year challenge” [brincadeira na qual usuários comparavam autorretratos de dez anos atrás e dos dias de hoje] , do Facebook, a senhora levantou a possibilidade de que as imagens fossem usadas para reconhecimento facial.


Há muitos sites, games e memes que coletam dados que podem ser usados para iniciar uma campanha, para criar um algoritmo ou para fazer outro uso não autorizado.

Então era uma oportunidade para as pessoas que participavam do “10-year challenge” pensar que sempre que alguém chamar para participar de um meme ou de um jogo no qual todos respondem a uma mesma pergunta, o sinal vermelho deve acender.

Foi esse o cenário que a Cambridge Analytica usou para conseguir os dados de 70 milhões de eleitores americanos e criar campanhas que podem ter influenciado a eleição de 2016.

Esse tipo de truque acontece cada vez mais, então as pessoas devem ficar mais atentas ao participar das redes sociais. É realmente importante percebermos as oportunidades que a tecnologia traz para melhorar nossa vida. Ela facilita a comunicação e o acesso à informação. Mas, para isso, também é preciso ficar alerta com os problemas decorrentes dela.

Como manter uma relação saudável com a tecnologia em um mundo em que estamos sempre conectados?

A tecnologia pode ser viciante, mas ela também pode ser transformadora. Pessoas devem ter responsabilidade no modo que usam a tecnologia.

Mas certamente muita coisa depende da maneira que organizações lidam com isso, se elas estimulam esse comportamento perigoso ou se pensam a longo prazo. As empresas devem criar métricas para saber se seus usuários estão seguindo seus valores.

Pegue o Facebook, por exemplo. Se ele realmente segue o que costumava dizer, que sua função é conectar pessoas e conectar o mundo, então deve criar um modo de dimensionar isso. Não pode só estimular os usuários a ficarem o maior tempo possível nele, não é essa a métrica que mede a relação entre as pessoas e o sistema.

O Facebook é um exemplo de empresa que segue apenas seus próprios objetivos e que tem uma noção própria de sucesso. Então eles não estão em uma boa posição para cuidar dos seus dados e métricas. Este é um caso em que deve haver alguma regulação para manter a empresa na linha, e é necessário que as pessoas entendam que o Facebook pode gerar um risco de vício.

Recentemente o Facebook se envolveu em uma polêmica quando o atirador do massacre em Christchurch, na Nova Zelândia, transmitiu o ataque ao vivo na plataforma.


As plataformas se beneficiam do uso e da atenção generalizados gerados por seus usuários, então elas têm a obrigação de lidar, ou pelo menos ajudar a lidar, com as consequências que este uso traz para o mundo real.

O atirador na Nova Zelândia, assim como o de Suzano, no Brasil, frequentava fóruns anônimos na internet. Por que o discurso de ódio se tornou tão comum nesses sites? 

O efeito do anonimato na amplificação de um comportamento já é algo bem compreendido pelos estudos. Todos provavelmente já testemunharam de alguma forma “o efeito de desinibição online”, mesmo sem saber o que ele significa. Nada mais é do que o resultado que a presença virtual, em vez da física, desempenha nas nossas interações online.

Ele explica por que seu colega de trabalho é tão legal no café, mas se torna um idiota raivoso nos comentários de um post. É a dualidade da internet: estamos cada vez mais conectados, mas, ao mesmo tempo, nos sentimos mais desconectados da realidade humana devido ao anonimato.

A senhora acha que a tecnologia se tornou uma vilã nos últimos tempos?

Creio que sim. Em certo grau, isso decorre do aumento do entendimento dos efeitos da tecnologia, algo que precisamos saber cada vez mais. Se pensarmos na capacidade que a inteligência artificial e a automação têm de amplificar qualquer coisa que toca, isso pode gerar experiências positivas e benéficas. Então precisamos ter as regras corretas para garantir que isso aconteça.

As empresas só estão pensando em lucro e crescimento, que é um modo muito limitado de ver a tecnologia. Ela é muito mais poderosa. Então temos uma grande oportunidade aí. As empresas podem unir o lucro a uma busca por melhorar a vida humana. Só quando isso acontecer as pessoas vão encarar a tecnologia de outra forma.

Classe média, endividamento e perda de relevância social

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A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou recentemente uma pesquisa que destacava as dificuldades da classe média em vários países do mundo, de classe relevante e fundamental para o crescimento das economias, a classe média está se tornando um grande fardo para os países, nesta pesquisa, a organização recomenda que os países atuem diretamente com o intuito de auxiliar este grupo social, que se encontra em um de seus piores momentos da história do capitalismo.

Para entrarmos da discussão sobre a classe média e analisarmos os dados da pesquisa da OCDE, faz-se necessário que definamos o que é classe média para esta instituição que, como trabalha com inúmeros países, precisa de um critério claro para compará-los, para esta instituição, classe média é o grupo de pessoas que vive em lares onde a renda fica entre 75% e 200% da média nacional do país, acima disso, são considerados de renda alta e abaixo, são considerados de baixa renda.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem uma definição diferente de classe média, para esta instituição o critério para definir como classe média, é a quantidade de salários mínimos (R$ 998), onde a classe média compreende as classes B (renda entre 10 e 20 salários) e C (renda familiar entre 4 e 10 salários mínimos).

Países desenvolvidos tem uma classe média maior que os países em desenvolvimento, segundo a OCDE, na Brasil temos 44% da população descrita como classe média, na China este número está na casa dos 48% da população, um salto gigantesco em um país que a pouco mais de quarenta anos, quando iniciou sua nova estratégia de desenvolvimento econômico, grande parte da população estava em situação degradante, muitos deles morrendo de fome e inanição.

A sociedade contemporânea está realmente envolta em uma crise complexa e de difícil superação, onde o crescimento econômico se reduz rapidamente, a violência aumenta de forma acelerada, a imigração sofre um incremento diário, o desemprego estrutural avança e gera preocupações e ressentimentos e os governos estão perdidos e fragilizados nestes ambientes de medo e desesperança, o resultado é um incremento dos suicídios, ansiedades, depressões e síndromes variadas.

Segunda pesquisa da OCDE, quase 40% dos lares de classe média em 18 países europeus membros da instituição, estão financeiramente vulneráveis, sendo que este índice varia de 12% na Noruega a 70% na Grécia. Outro dado importante destacado pela pesquisa, mais de um em cada cinco lares de classe média gasta mais do que ganha gerando, com isso, um altíssimo risco de endividamento excessivo, em países como a Estônia e a Polônia este índice esta em 10% enquanto outros países membros, como o Chile e a Grécia, estes valores estão em 50% da população, retratando uma forte vulnerabilidade e riscos prementes.

O Brasil não faz parte da OCDE, recentemente o governo manifestou o interesse em ingressar neste grupo de países, mesmo assim fomos inseridos na pesquisa, com dados que chegam a 27% dos lares de classe média gastando mais do que ganha, diante disso, percebemos o alto endividamento das famílias brasileiras desta classe social, o que preocupa os formuladores de política econômica, pois retarda a recuperação da economia nacional, depois de cinco anos de baixo crescimento econômico e recessão, com perdas de mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB).

As novas tecnologias estão transformando estruturalmente o mundo do trabalho, a inteligência artificial está impactando sobre todos os setores, desde os serviços, o comércio, o setor industrial, a agricultura e outras atividades extrativas, todos estão sendo influenciados e precisam se adaptar a estas novas máquinas inteligentes que estão afetando, principalmente, as classes médias, deslocando seus membros para outras posições sociais, sendo que a maioria está sendo destruída por estas novas tecnologias, criando um contingente imenso de desempregados e subempregados.

Segundo a OCDE, os governos deveriam atuar diretamente para evitar uma redução mais acentuada neste grupo social, a classe média é composta por trabalhadores e profissionais autônomos, com formação mais rebuscada, mais afeitos aos conhecimentos científicos e dotados de uma bagagem cultural mais intensa e estruturada, formando um grupo de compradores de mercados sensíveis e mais elaborados, com os de artes, de teatro, de concertos, de musicais, de museus, de turismo, dentre outros, a fragilização desta classe traria graves impactos sobre setores importantes da economia.

Percebemos este processo de redução da classe média mais nitidamente em países desenvolvidos, muitos destes eram caracterizados por uma economia de base industrial, onde os empregos gerados pagavam salários bastante atrativos, gerando uma massa de trabalhadores bem remunerados e com uma estrutura de consumo e de gastos pessoais mais rebuscados, movimentando variados setores econômicos e produtivos.

Nos últimos vinte anos, percebemos um movimento de diminuição dos setores industriais nestes países, a indústria passou a buscar locais mais vantajosos para produzir seus produtos, com isso, os países asiáticos entraram nos redares destes setores industriais, principalmente devido ao baixo preço de sua mão de obra e facilidades fiscais e tributárias, isto sem falar das fragilidades regulatórias destes países, que facilita a produção de forma e reduz os custos produtivos.

A classe média apresenta um estilo de vida diferenciado, como por exemplo, moradia melhor, boa educação, planos de saúde e melhores condições de vida, estes produtos ou serviços passaram por um forte incremento dos preços, a inflação nestes mercados foi maior, como suas rendas e seus salários não acompanharam este aumento, muitas famílias estão em situação financeira difícil. Outro produto que passou por grande aumento nos preços nos últimos anos foi a moradia, como a classe média sempre teve bons empregos e estes são localizados, na sua grande maioria em cidades e localidades centrais, os alugueis são mais caros e demandam uma parcela substancial da renda, entre os anos de 1995 e 2015, os aluguéis aumentaram de um quarto da renda das famílias para quase um terço, comprometendo a saúde financeira destas famílias.

Por outro lado, as mudanças destas empresas, do ocidente para os países orientais, principalmente a China, gerou um grande impacto sobre os países industrializados do ocidente, gerando uma massa de milhões de desempregados, gerando uma destruição em série no sistema econômico, além de afetar os trabalhadores, os impactos se expandiram para os governos, com quedas assustadoras em suas arrecadações fiscal e tributária, tornando precários os serviços públicos e aumentando o contingente dos trabalhadores que passam a usufruir destes serviços, isto porque com a redução da classe média, muitos trabalhadores passam a demandar mais serviços públicos de saúde, segurança e educação, demandando dispêndios maiores dos prefeitos e dos governos estaduais, justamente num momento de queda na arrecadação dos governos, degradando mais a sociedade e as políticas públicas.

Ao analisarmos as várias crises que afetam as classes médias mundiais, encontramos um incremento de seu endividamento, anteriormente este grupo social destacava recursos para consumos de bens variados, com a freada brusca das economias globais depois da crise imobiliária dos Estados Unidos de 2008, esta classe se viu em situação de insolvência, suas dívidas cresceram demasiadamente e seus empregos foram reduzidos, gerando passivos impagáveis e afastando-os do mercado de consumo, levando muitos governos a adotar políticas específicas para resgatar esta classe social.

A tecnologia da chamada indústria 4.0, marcada por uma automatização cada vez mais acelerada, gera impactos crescentes sobre os indivíduos em escalas internacionais, trabalhadores competem entre si nas mais variadas regiões do mundo, um ambiente de competição e concorrência cresce de forma acelerada, obrigando os indivíduos a se capacitarem exaustivamente, buscando cursos e estudos técnicos e tecnológicos, leituras e atualizações, obrigando-os a mergulharem no mundo da informação, sob pena de serem retirados do mercado de trabalho de forma definitiva e condenados a obsolescência.

A classe média sente de forma acelerada todos estes movimentos da economia globalizada, como uma classe altamente conservadora e centrada em um consumo de parcela substancial de sua renda, seus movimentos impactam diretamente sobre a economia como um todo, com desemprego em alta e renda em queda, seus rendimentos cadentes a levam a reduzir o consumo de forma acelerada e a se voltar para partidos e políticos com pensamentos mais à direita, descritos como mais conservadores, influenciando o crescimento dos partidos de extrema direita na Europa e em outras regiões do mundo, como nos Estados Unidos, com a ascensão de Donald Trump, passando pela Turquia de Recep Tayyp Endorgan  e até mesmo no Brasil de Jair Bolsonaro.

As novas tecnologias, pela primeira vez, estão impactando fortemente sobre esta classe social, anteriormente as tecnologias destruíam empregos em setores marcados por muito dispêndio de força física, eram os chamados trabalhadores braçais, que eram substituídos pelas máquinas e os equipamentos e esta substituição não gerava a comoção e os medos contemporâneos, isto porque esta classe média sempre se consolidou por ser um grupo social organizado, dinâmico, politizado e formador de opinião. Neste momento os trabalhadores sofrem a concorrência não de simples máquinas e tecnologias, mas da chamada inteligência artificial, robôs inteligentes e pensantes, que organizam o pensamento e não se restringem apenas a reproduzir atividades repetitivas e programadas, estes novos equipamentos estão substituindo os trabalhadores que, na maioria das vezes, tem suas origens na chamada classe média.

Segundo especialistas em tecnologia, os novos empregos estão para serem criados, mais de 60% dos empregos da próxima década ainda não existem, serão criados com a rapidez da tecnologia e obrigarão os trabalhadores a se adaptar a esta nova realidade, com isso, seu tempo consigo próprio e com seus familiares tende a se reduzir de forma acelerada, com fortes perspectivas de desequilíbrios emocionais crescentes e acelerados, obrigando a sociedade a repensar este modelo de organização social.

Teóricos das mais variadas correntes do pensamento econômico, desde Joseph Stiglitz, passando por Paul Krugman, ambos norte-americanos e ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, ou por teóricos mais liberais e ortodoxos como o indiano Raghuram Rajan e o economista Lawrence Summers, todos acreditam que a economia global está num momento de desaceleração e o capitalismo internacional atravessa um período de instabilidades, incertezas, medos e desesperanças generalizadas.

Neste ambiente internacional marcado por grande liquidez e fortes estímulos monetários, onde os Bancos Centrais se utilizam de políticas monetárias bastante generosos e, mesmo assim, as economias estão presas a um baixo crescimento econômico e a um alto desemprego ou subemprego, onde os cidadãos não consomem, mesmo com incentivos fiscais e monetários abundantes. A explicação para este cenário perturbador pode estar no medo e na insegurança que a Quarta Revolução Industrial está gerando no mundo do trabalho, levando os trabalhadores a reduzir seu consumo e aumentar sua poupança, com medo de momentos de instabilidades e desempregos de um futuro próximo.

Diante deste cenário, a sociedade ruma para um momento crítico, de um lado a tecnologia aumenta de forma acelerada a produção, produz-se em escalas cada vez maiores e, de outra, o consumo cai vertiginosamente em decorrência do desemprego e do medo daqueles que estão empregados, levando a sociedade a uma crise estrutural. O economista norte-americano Lawrence Summers chamou este cenário de estagnação secular, termo novo e bastante significativo para definir uma crise estrutural do sistema, algo que o economista alemão Karl Marx, que no século XIX, em 1867, na sua publicação clássica, O Capital, destacou como tendência inexorável do capitalismo capitalista, esta obra sempre foi rechaçada e muito criticada pelos liberais ou neoliberais de plantão.

Na França, os chamados coletes amarelos estão agitando a sociedade, este movimento começou no final do ano passado, movimenta milhares de pessoas e consegue se mobilizar depois de um tempo considerável, grande parte destes manifestantes são oriundos de cidades que se desindustrializaram no leste e no norte do país, são regiões que vem passando por um período de forte empobrecimento, levando seus cidadãos a insatisfação e levando-os a votarem em políticos de direita ou de extrema esquerda, como Marine Le Pen, presidente do extremista ex-Frente Nacional, agora Reunião Nacional.

A globalização, marcada por um aumento na concorrência global e no desenvolvimento de novos modelos de produção, acabou gerando mais recentemente uma forte resistência em países industrializados, estas resistências estão atreladas a grupos de classe média, setores que perderam seus empregos e viram sua renda e seus salários serem reduzidos de forma generalizada, aumentando a pobreza e a insatisfação social, em alguns casos a sublevação social, com inseguranças, mortes e, em casos extremos, a guerras civis.

Um exemplo interessante para que entendamos as dificuldades do emprego na sociedade contemporânea, se analisarmos a quantidade de empregos gerados pelas maiores empresas da economia mundial, as empresas de tecnologia, e compararmos com as empresas mais importantes dos anos 80 e 90, as montadoras de automóveis e olharmos para seus valores de mercado, perceberemos números assustadores e preocupantes. O valor de mercado da empresa Netflix é de US$ 170 bilhões, esta empresa de streaming possui 5,4 mil funcionários no mundo, quando comparamos com as montadoras FCA, Renault, Mitsubishi e Nissan, que juntas valem US$ 85 bilhões, ou seja, metade do valor da Netflix, e possuem mais de 200 mil funcionários no mundo, percebemos a discrepância entre a terceira e a quarta revolução industrial.

Os tormentos dos trabalhadores são os ecos de uma crise interminável do sistema capitalista de produção, seu motor principal está no crescimento do consumo, que motiva os investimentos e a produção se efetiva, gerando empregos variados e crescentes em toda a cadeia produtiva, a premissa sempre foi de que novos investimentos gerassem empregos em ascensão e, num segundo momento levasse a um incremento da produtividade do trabalho, traduzida pelos economistas como desenvolvimento econômico. Neste momento, o sistema esta reagindo de forma diferente, os investimentos produtivos estão gerando menos empregos na economia, a produção cresce mais com o incremento de máquinas e tecnologias do que da contratação de novos funcionários, gerando na classe trabalhadora mais incertezas e inseguranças que reduzem o consumo imediato e levam as empresas a vendas menores e lucros cadentes.

Existem inúmeras propostas para reverter esta condição degradante da classe média global, onde podemos destacar: tornar o sistema tributário mais justo, lidar com o crescente aumento do custo de vida, principalmente em setores sensíveis aos gastos da classe média, como moradia e educação, melhorar a formação de lares de classe média, reduzir os riscos de excesso de endividamento e melhorar o acesso a oportunidades de negócios, estas medidas auxiliariam na recuperação de uma classe central para a sociedade, para o bom funcionamento da economia e para a estabilidade social.

No caso brasileiro, diante de uma situação de recuperação lenta, uma política importante para melhorar as condições da classe média seria o crescimento econômico e uma melhora nas perspectivas de desenvolvimento econômico. Sem crescimento temos uma piora na concentração da renda e um incremento na desigualdade, faz-se necessário crescermos com urgência e adotarmos as medidas sugeridas pelas instituições, muitas delas medidas políticas severas, mas fundamentais para melhorar o sistema econômico brasileiro.

O ambiente é perturbador, estamos diante de uma classe social fundamental para o crescimento econômico e o equilíbrio social, seus filhos são de uma geração mais educada, mais informada e melhor capacitada intelectualmente, mas as perspectivas futuras são sombrias, seus filhos tem menos chances de conseguir o mesmo padrão de vida de seus pais, estamos diante de um dos mais cruéis paradoxos do sistema capitalista, uma contradição que leva os indivíduos, das mais variadas regiões do globo, a questionar o sistema e a democracia e, sem democracia, os horizontes podem ser assustadores.

Num ambiente de perturbações autoritárias e preocupações com a continuidade democrática, como nos está sendo retratada por inúmeros teóricos na atualidade, desde Steven Levitt, passando por Yascha Mounk, Umberto Eco, Madeleine Albright, dentre outros, uma classe média assustada e amedrontada pode ser uma grande fonte de instabilidades crescentes, cultivando tendências e sentimentos autoritários que podem levar os países a constrangimentos e inseguranças, o grande diferencial do momento, é que estes retrocessos não se restringem a países periféricos, mas estão alicerçados em economias industrializadas, dotadas de conhecimento e de capacitação técnica, o mundo definitivamente não é, na contemporaneidade, um lugar seguro.

Os novos termos do jogo político e social

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Entrevista realizada por Eduardo Rascov com o professor Marco Aurélio Nogueira e publicada na Revista Nossa América, do Memorial da América Latina, nº 53, Ano 2016. 

No primeiro semestre de 2016, a Cátedra Unesco Memorial da América Latina organizou um curso de extensão sobre os processos sócio-políticos contemporâneos, especialmente os do subcontinente latino-americano.

Como professor catedrático convidado, organizei uma programação concentrada na reflexão sobre as novas dinâmicas e os novos protagonistas do jogo político e social no mundo contemporâneo, com destaque para a América Latina e o Brasil. A ideia foi tentar construir uma matriz teórica a partir da qual organizar uma reflexão a respeito do modo como movimentos sociais, redes e ações de protesto estão se projetando na cena latino-americana atual e ajudando a formatar o universo da política e da democracia.

Vários professores e pesquisadores, de diferentes universidades, responsabilizam-se pelas aulas do curso, que teve 40 horas de duração e se estendeu de abril a maio.

O senhor coordenou na Cátedra Unesco Memorial da América Latina um curso que se propôs a discutir a sociabilidade contemporânea, com seus impactos na política e na vida das cidades. Participaram dele diversos pesquisadores que têm refletido sobre esses temas.

A grande questão contemporânea é estabelecer o que mudou ou está mudando na vida a ponto de modificar o modo como as pessoas se relacionam, se comportam, pensam e protestam, participam da política ou se lançam na defesa de determinadas causas. Quando pensamos em termos de “redes e ruas”, abrimo-nos por inteiro para a sociabilidade contemporânea, pois vivemos cada vez mais intensamente em redes sociais e das redes passamos para as ruas, indo, digamos assim, do virtual para o presencial. As redes estão fazendo com que mudemos nossas preferências em relação a muitas coisas. Produzem cultura e alteram o modo como nos comunicamos. São coisas óbvias mas que precisam ser pensadas. Por exemplo, a partir do momento em que se substitui a carta por uma mensagem de whatsapp tem-se a substituição de uma padrão de conduta por outro e de um padrão de temporalidade por outro. Com a carta você tinha que prever dias para a interação. A comunicação hoje é imediata. E os meios que usamos para isso são móveis e cada vez mais portáteis e inteligentes.

Há também uma aceleração absurda do tempo, não?

Sem dúvida. Isso altera a percepção do tempo, cálculos e ansiedades precisam ser pensados de outra maneira. É um fenômeno geral, mas que se manifesta de forma desigual. Não são todos que estão incluídos digitalmente ou que usufruem das mesmas velocidades de conexão, por exemplo. Muitos ainda vivem de forma “tradicional”, com a memória de um mundo que já não existe mais, tendendo a ver o mundo conectado e veloz como se fosse a oficina do diabo. Temos de pensar como essa mudança toda – temporal, emocional, da própria lógica – reverbera nas estruturas da sociedade, na cultura, no Estado, na economia, na movimentação política.

Stella Senra, autora de ”O Último Jornalista”, analisando essa aceleração, dizia que o tempo do jornalismo ficou cada vez menor. Antes ele falava da coisa que aconteceu ontem. Com as transmissões ao vivo, a instantaneidade, fala-se sobre o que está acontecendo agora. O jornal impresso perdeu o sentido. Então o que a imprensa fez? Ela fala do amanhã e ao fazer isso tenta escrever o amanhã, determinar o que vai acontecer. Realmente os jornais nem usam mais o verbo no passado, as manchetes estão sempre tentando adivinhar o futuro. Mas a internet e as redes sociais mudam um pouco isso, não?

No fundo, estamos diante de um grande problema, que é a questão da gestão da vida cotidiana, que se dá por meio da relação com a informação. Esse é um dos grandes nós da nossa época: como não ser soterrado pelas informações? No limite você fica paralisado. Não dá para escapar da massa de informações, que nos alcançam de múltiplas formas. Como processar tudo isso? Todos sofrem para armazenar e selecionar informações. Ninguém se detém muito para pensar em como organizar as informações, evidentemente. O fluxo de informações não vai diminuir, nem é desejável que isso ocorra. Nós é que vamos ter que aprender a gerir melhor a informação.

O fenômeno é brasileiro ou é encontrado em toda a América Latina?

Il mondo è paese, como dizem os italianos, e é cada vez mais uma “aldeia global”. Trata-se de um fenômeno geral, que acompanha a globalização capitalista e a mundialização das relações, da circulação de mercadorias, ideias e informações. A recomposição social também é geral. É claro que cada sociedade tem sua dinâmica: em algumas, por exemplo, as instituições e as identidades políticas são mais fortes, estão mais enraizadas, produziram uma cultura que foi apropriada de forma mais igualitária pelos cidadãos. Elas conseguem transitar de modo mais suave, digamos assim. Em outras, a turbulência é maior, porque as estruturas sociais são mais desiguais, as instituições menos estáveis, a democracia mais imperfeita. Por exemplo, o Brasil nunca foi forte em identidade política e partidária, não está em nosso DNA. Mas isso não ocorre com o DNA argentino, o italiano ou o francês. Provavelmente a crise do peronismo na Argentina seja menos grave do que a crise do lulismo no Brasil, por exemplo.

Uma pessoa que pouco soubesse sobre o país e aqui chegasse no momento atual iria pensar que a sociedade brasileira está vivendo um retrocesso ou um avanço? Se for avanço, para onde estamos indo? Qual o futuro do Brasil?

Nem retrocesso, nem avanço: temos componentes dos dois. Há avanço porque a sociedade está se movimentando, a democracia continua em vigor, a política voltou a frequentar as conversas cotidianas. Mas há retrocesso porque a democracia está pouco qualificada, o debate não flui com facilidade, a classe política não evoluiu, o sistema político dificulta a governança, faltam lideranças e, como se não bastasse, a crise econômica é muito profunda e dificulta uma ação mais ativa do Estado. Mesmo assim, não creio que as políticas sociais de inclusão venham a ser desativadas e nem que qualquer tipo de guinada autoritária ou ditatorial venha a acontecer. O futuro brasileiro tende a ser democrático e, no horizonte, desponta uma reforma política e a recuperação de uma atuação política de maior unidade e entendimento entre as forças democráticas. Quando isso se materializará não dá para afirmar, mas a tendência a meu ver é esta.

O senhor diria que agitações sociais como as que estão vivendo o Brasil e outros países latino-americanos, neste momento, libertaram forças que estavam restritas, ocultas ou aprisionadas? Ou as próprias agitações criaram novas demandas, novas formas de se organizar e forças políticas inovadoras?

As sociedades atuais, de capitalismo reestruturado, maior fragmentação, pluralismo e individualização, são “naturalmente” participativas e dinâmicas. Não é de hoje que se registram agitações sociais na região ou no Brasil. Elas têm acompanhado as acomodações que se processam na estrutura social, no Estado e nas formas da política. Quanto menos, por exemplo, se tem de força dos partidos políticos, mais se tem de efervescência social “fora de controle”, ou seja, espontânea, sem uma direção clara e sem um poder de agenda particularmente expressivo. As pessoas vocalizam intensamente suas demandas e suas postulações de direito hoje, e contam para isso com as redes e as mídias sociais. Há uma pressão social para que se renove a política, para que se modifique o modo de organizar e fazer política. Isso, porém, não é fácil, especialmente se não houver núcleos políticos ativos que façam aquilo que os partidos políticos faziam antes.

Lá em 1967 o filósofo francês Guy Debord (1931-1994) definia a “sociedade do espetáculo” como o conjunto de relações sociais mediadas pela imagem, que segundo ele ameaçava condicionar todas as dimensões da vida. Atualmente as agendas ainda são geradas pelo espetáculo?

Cada vez mais! O espetáculo está em tudo. Hoje qualquer dimensão da vida é pautada pela busca da exposição. As pessoas esperam ser informadas suficientemente, ou seja, espetacularmente, a respeito de tudo. E as próprias pessoas querem se expor, se mostrar, aparecer e fixar seus valores, suas demandas e seus estilos no imaginário público. Tome-se como exemplo a lógica do selfie. O que é o selfie? É você documentar a si mesmo e produzir imagens para se comunicar nas redes, como se você precisasse de uma certificação pública do seu engajamento, da sua presença em algum lugar. Comparecer a um show ou a uma manifestação já não basta, é preciso que se diga a todos que o comparecimento aconteceu, para que as pessoas fiquem sabendo e acreditem.

Se você sai desse plano mais privado do cotidiano e vai para o plano da vida organizada, mais estruturada, por exemplo, para a esfera pública e o plano da política, dos movimentos sociais, dos processos de contestação, de protesto, de manifestação – então essa dimensão fica ainda mais forte. O que talvez nos ajude a entender a “crise” que parece estar rondando o ativismo atual.

Que crise é essa?

Você pode, se quiser, pensar numa crise que deriva do fato de que a ação política de contestação hoje é menos organizada e não se faz por meio da figura do “militante”, de alguém que se dedica full time a uma causa. As pessoas estão muito mais recolhidas à vida privada e não se dispõem a trocar sua privacidade por formas intensas de engajamento. Donde a assim chamada “militância de sofá”, via redes sociais. A própria ida das pessoas às ruas, hoje em dia, não é marcada por um engajamento à moda antiga, um engajamento total, em que você estava convencido de uma causa, se identificava com a bandeira de um partido, etc. Os limites da “entrega” são mais claros.

Em 2013 o slogan era “sem partidos” e continua assim: todos querem distância dos elementos de identificação mais fortes e tradicionais. Isso cria a figura do militante flutuante, que escolhe em que manifestação irá, com que objetivo, quando e com qual grau de disponibilidade. O importante não é tanto o resultado a ser obtido, mas o efeito imagético que se produzirá – ou seja, o espetáculo.

Estou falando de modo genérico. Trata-se de uma tendência, um vetor que organiza o campo das manifestações e dos protestos. Obviamente, muitas pessoas continuam interessadas em obter resultados. Mas a flutuação é um dado real, assim como a dosagem do engajamento e o próprio caráter de certos movimentos e manifestações. A luta pelo “impeachment de Dilma” levou milhões às ruas, mas de um dia para outro as pessoas voltaram para casa, sem que nada de concreto tivessem, a rigor, conquistado. As manifestações contra o aumento do preço das passagens de ônibus tiveram força em 2013-2014 e depois murcharam, levando consigo o Movimento Passe Livre (MPL).

Mas não há um dia sem manifestações. O jornalista e escritor Vicente Villadarga escolheu aleatoriamente sete dias corridos e procurou saber se havia alguma manifestação em algum ponto da cidade. A ideia era provar que atualmente não passa um dia sequer sem manifestação em algum horário e lugar.

É verdade. A movimentação e a “participação” são dados inerentes à vida veloz, conectada e individualizada. Mas delas não está havendo nenhuma convergência para um “ponto ótimo” de contestação.

A divisão clássica entre direita e esquerda perdeu o sentido?

Não perdeu o sentido, de modo algum. Mas como sempre essa divisão só faz sentido se for bem definida. Antes era mais fácil definir direita e esquerda. As agendas eram mais simples, as ideologias vigoravam plenamente, o próprio conflito social e as lutas de classe eram mais transparentes. Os representantes de direita e esquerda eram claramente identificados na plataforma social, digamos assim: você tinha os partidos comunistas, os social-democratas, os socialistas, o centro liberal, os conservadores. Hoje a confusão política e ideológica prevalece, os partidos são menos nítidos e mais mal estruturados. As distinções se tornaram embaçadas. É um quadro que afeta e prejudica mais a esquerda, até por ser ela uma força antissistêmica e minoritária, que depende muito de organização. Como em qualquer definição, pode-se ter uma ideia clara de esquerda, mas não se tem a tradução disso em termos de organização política e social. A ideia fica solta no espaço.

Talvez essa definição de que não existam mais nem direta nem esquerda seja uma conclusão mais da direita…

Na verdade, quem introduziu essa discussão de modo mais consistente foi o sociólogo Anthony Giddens (nascido em 1938), ligado ao Partido Trabalhista inglês, e que teorizou a última versão que se teve de “Terceira Via”. Ele escreveu, para o Labour na época de Tony Blair, livros e ensaios tentando conciliar aspectos econômicos do liberalismo com o socialismo partindo do suposto de que a modernidade mais avançada não fornecia condições de possibilidade para a reprodução dos alinhamentos político-ideológicos tradicionais ou para a contraposição “pura” de forças políticas. Seu principal livro a respeito se chama Para além da esquerda e da direita. Com Giddens, pode-se discutir o problema não só do ponto de vista da lógica do embate político, mas também com uma pegada sociológica: que mudanças estruturais diluíram as imagens tradicionais de esquerda e direita e nos obrigam a ir para além da contraposição pura? Mas não se pode esquecer que o filósofo italiano Norberto Bobbio – que era um liberal-socialista – jamais admitiu que se pudesse pensar em termos de desaparecimento da distinção, que, na visão dele, se reproduz incessantemente.

Esse é um jeito de olhar a sociedade hoje?

Não somente a sociedade. Também é um jeito de olhar o Estado e as relações Estado-sociedade civil. Quais são as possibilidades efetivas, dadas pela realidade da vida, de você ir ao governo com uma plataforma de esquerda? Você tem um capitalismo forte demais, um mercado forte demais e uma sociedade individualizada demais que, pelo fato de ser individualizada, tem muita dificuldade de agir coletivamente. Ela até age coletivamente, mas não consegue atuar de forma a contestar e “subverter” o sistema. Antes, bem ou mal, você tinha as classes econômicas (especialmente a classe trabalhadora, a classe operária), os nichos profissionais que organizavam o coletivo, os sindicatos. Hoje os sindicatos estão mais recolhidos, não têm mais a força que já tiveram. Continuam importantes, não é essa a questão, mas não têm tanta capacidade assim de modelar as classes.

Por quê?

Antes de tudo, porque as classes econômicas típicas (a classe operária) estão perdendo peso relativo em decorrência da automação e da robotização, ou seja, da reestruturação do capitalismo. E há, por extensão, o problema da sua reprodução no tempo, o problema da continuidade e das gerações. Antes essas classes se reproduziam economicamente e também em termos socioculturais: os filhos seguiam os passos do pai: metalúrgico pai, metalúrgico filho, metalúrgico neto. Isso gerava uma identidade de classe fortíssima. Os filhos hoje procuram outros caminhos, em parte porque querem uma vida “pós-industrial” e em parte porque não conseguem empregos industriais.

Como essas mudanças afetam a relação entre os Estados? Na América Latina, em anos recentes o Estado teve importante protagonismo, por exemplo.

A América Latina só faz sentido se for pensada como uma região composta por países muito diferentes entre si, países que vêm buscando nos últimos 20 anos formas melhores de integração regional. Hoje há muitos blocos e esforços de integração. Ao mesmo tempo, há uma crise que repercute a crise geral do capitalismo e que corta alguns países de modo particular, criando a sensação de que toda a região segue as mesmas tendências. Penso que essa visão é incorreta. Não dá, por exemplo, para comparar a crise que está dizimando a sociedade e a democracia na Venezuela com a crise brasileira, que está conseguindo ser administrada. O problema é que a região paga um preço alto pelos longos períodos em que “populismos” vigoraram. Muitos países ainda dependem de líderes salvacionistas, a organização democrática é fraca em várias sociedades e a região, como um todo, continua exposta aos ventos internacionais, por mais que alguns de seus países tenham se tornado potências médias ou emergentes.

Um “bloco latino-americano” é uma construção que avança com dificuldade. Mas as relações entre os países melhoram, seja em decorrência dos processos de integração, seja pela vigência de melhores redes de informação e comunicação. Não me parece que caminharemos para trás neste aspecto. Poderemos até mesmo avançar, sobretudo se puderem ser contornadas as tensões que nascem da dualidade entre interesse comercial e solidariedade política. A política externa dos diferentes Estados mostra-se hoje mais atenta aos riscos de se abandonar o pragmatismo, de condicionar o comércio à ideologia ou de se praticar retóricas “nacionalistas” que incluam algum tipo de veto aos Estados Unidos, por exemplo.

A relação dos cidadãos com o Estado, assim como as funções do Estado e a relação entre os Estados, têm a ver como a força dos Estados. Têm a ver com o modo como o capitalismo está se reorganizando em escala mundial. As novas formas da economia — economia digital, comércio eletrônico, financeirização, robotização — trazem consigo uma espécie de implosão das fronteiras nacionais, que sempre foram uma garantia da força e da soberania dos Estados. A crise dos Estados Nacionais faz com que o Estado tenha menor capacidade de regulação política do mercado, com que os governos governem menos, que os sistemas políticos se mostrem instáveis e sem capacidade de viabilizar a representação política. A própria democracia política é invadida por problemas que roubam sua qualidade. A mesma crise modifica a configuração do sistema internacional de Estados. Os Estados hoje não são os únicos, talvez nem sejam mais os principais protagonistas das relações internacionais. Hoje uma Microsoft, um Google e um conglomerado bancário pesam muito na balança do poder internacional, complicando hegemonias e sem se compor automaticamente com os interesses dos Estados e das sociedades a que estão nominalmente vinculados. São interesses soltos, digamos assim, variáveis independentes dos Estados.

Se fosse assim, o sistema internacional não deveria ser mais pacífico, com menos guerras e conflitos entre Estados?

Não vejo por que. A competição econômica prevê certo tipo de “guerra” e quando ela é exacerbada, como hoje, a “guerra” fica igualmente exacerbada. Os Estados, de alguma maneira, sempre foram mediadores do conflito econômico. Ou tentaram ser, nem sempre conseguiram. Não só os Estados, mas as instituições interestatais e multilaterais, tipo ONU, OMC (Organização Mundial do Comércio), FMI, Banco Mundial, OEA (Organização dos Estados Americanos), que funcionam como uma tentativa de mediação entre os Estados e como mecanismo de regulação da economia. O conflito econômico desencarnado, sem a mediação do Estado, pode estar na origem da guerra, sim. Mas você pode agregar a isso a  visão de que se pode ter conflitos provocados por fatores que não são imediatamente políticos ou econômicos, que são relacionados a identidades, por exemplo, à religião.  Na verdade, você nunca vai poder separar política, economia e religião, como se uma coisa não ligasse à outra, porque isso tudo está conectado.

Veja o fenômeno dos refugiados, por exemplo, na Europa. O que o impulsiona? É um problema econômico? Com certeza é. A leitura mais imediata do refugiado é “eu quero sair daqui porque essa guerra civil acabará comigo”. O sírio vai embora porque não vislumbra possibilidade de viver com o mínimo de paz, digamos, mas junto com isso tem um problema profissional, educacional (as crianças não têm escola), não há como pagar as despesas. Ele pensa “sou opositor do presidente Assad, se ficar vou preso”. Várias questões empurram a pessoa para fora. Quando chega à Europa, os problemas mudam de forma, mas permanecem e chegam mesmo a se ampliar. Os migrantes hoje entram aos milhares e se tornam estrangeiros sem direitos (ou com poucos direitos) em países altamente organizados, ricos, com direitos protegidos. O conflito que nasce desta situação não é somente econômico, é também de cultura, de identidade.

Nestas circunstâncias, como pensar em um mundo mais “pacífico” ou harmonioso? Nosso destino comum de longo prazo passa com certeza por um destino comum de curto prazo que está inteiramente impregnado de tensões, injustiças, violências e contradições.

O conceito de felicidade do capitalismo financeiro

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Jessé Souza – Carta Capital – Julho/2018

A guerra dos donos do dinheiro contra a soberania popular promete não dar tréguas e ser levada a cabo sob a forma insidiosa de guerrilha

Na esfera econômica, o capitalismo financeiro, fase atual do capitalismo, implica, além de outras coisas, o aumento da velocidade de valorização do capital, controle inaudito do regime de trabalho e uma impessoalidade no comando das empresas, unido ao foco na rentabilidade de curto prazo.

O foco no curto prazo é o calcanhar de Aquiles de todo o esquema e o que faz com que novas bolhas sejam mera questão de tempo. Na esfera pública, por sua vez, o ataque à soberania popular é direto. Ainda que não se tenha inventado outro mecanismo para legitimar a obediência social no decorrer do tempo, o capital financeiro, por meio da mídia, banaliza, confunde e coloniza os fundamentos normativos da soberania popular.

O apoio ao governo pelos juízes ao mesmo tempo testemunha essa colonização e mostra sua dificuldade, pois toda legitimidade do poder do magistrado também advém da soberania popular.

No curto prazo, esse viés engana, distorce e funciona por algum período. A guerra contra a soberania popular promete ser sem tréguas e levada a cabo sob a forma insidiosa de uma guerra de guerrilha, destruindo crenças compartilhadas e consensos normativos e não em campo aberto. A raiz do neofascismo brasileiro está aqui.

O que comprova a extraordinária resiliência do capitalismo como forma de dominação socioeconômica foi e é a sua capacidade antropofágica de engolir a crítica, distorcer seu conteúdo e cuspi-la depois segundo seus próprios interesses.

A crítica historicamente mais radical ao capitalismo foi a realizada pelo “expressivismo” e pela ideia do ser humano autêntico e expressivo. Essa ideia tem sua fonte histórica mais importante no romantismo e no “expressivismo alemão”, depois universalizada para todos os países do Ocidente.

Ela reflete as críticas de elites artísticas e intelectuais contra o aspecto produtivista e superficial da ideia de individuo econômico do capitalismo liberal clássico: indivíduo visto meramente como produtor disciplinado e consumidor hedonista de mercadorias em um mundo pobre de sentido.

Ao contrário, a lógica do mercado impede a originalidade individual e tende a massificar não só a produção e o consumo, mas qualquer expressão individual autêntica. Ao contrário da transformação do indivíduo em mais uma mercadoria, o “expressivismo” percebe a vida como um desafio de aprendizado do indivíduo acerca de quem ele é e acerca de tudo que o singulariza como biografia. Mais ainda, como tendo a obrigação normativa viver de acordo com essa descoberta.

A “felicidade” individual é definida aqui como uma construção narrativa, contínua e criativa do próprio “self” que obriga a construção de sentidos novos para a vida privada e social.

Nos anos 60 do século passado, essa ideia sai dos círculos das elites artísticas e intelectuais e ganha as grandes massas sob a forma da contracultura cujo suporte social eram as gerações de jovens do segundo pós-guerra. O grande feito do capitalismo financeiro como embuste ideológico foi se apropriar precisamente dessa concepção de felicidade radical e libertadora segundo seus próprios termos.

Isso não se deu de um dia para o outro. Foi uma guerra ideológica incansável até que criatividade, emancipação e originalidade individual fossem repaginados nos termos do capital financeiro.

Originalidade passa a ser um recurso gerencial pré-definido pelos fins de lucro e a ideia de emancipação se transforma na farsa de que todos são agora empresários de si mesmos. Assim, o domínio do capital financeiro não é algo que se contrapõe de fora aos indivíduos, mas, ao contrário, parte de “dentro”, da alma e das aspirações mais profundas do imaginário individual e social. É isso que explica sua incrível eficácia dissimuladora e insidiosa.

Como não houve por parte da esquerda qualquer veleidade de se disputar a hegemonia do imaginário social, entre nós este discurso campeia praticamente sem oposição. Todos se vêm como empresários de si mesmos, pois o patrão se torna abstrato como as dívidas bancárias e não mais de carne e osso.

Assim, a classe média imagina pertencer a elite por poder comprar um par de ações na Bolsa. E a classe trabalhadora se acha a “nova classe média”, restando na base a ralé de novos escravos que sempre foi a casta dos intocáveis entre nós, servindo de mero contraponto negativo para a luta social definida nos termos dos novos ricos.

Entrevista com Steven Levitsky

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Blog Zahar – 30 de Março de 2019 –

Coautor do best-seller internacional, Como as democracias morrem, na lista de mais vendidos da Vejahá 21 semanas, o cientista político norte-americano Steven Levisky concedeu uma entrevista a este blog sobre a democracia brasileira e os 55 anos do golpe militar no Brasil. Confira!

1) O que é democracia? E a quem interessa?

SL: A democracia é o único sistema já inventado que permite à sociedade mudar o seu governo regularmente, de forma livre e sem violência. Também é o único sistema existente que garante aos cidadãos o direito de fazer oposição ao governo – seja falando, escrevendo ou fazendo protestos. Isso deveria ser importante para qualquer pessoa. No entanto, na prática, isso deveria importar ainda mais para quem não tem muito poder ou dinheiro. Os ricos sempre encontram formas de se proteger em qualquer regime, inclusive em ditaduras. Só a democracia garante proteção para o restante de nós.

2) É democrático – e apenas uma questão de “opinião” – elogiar a tortura e o assassinato dos opositores e prestar homenagem a torturadores e a um regime ditatorial, antidemocrático e assassino, usando para isso a justificativa de que estamos em uma democracia e todos têm liberdade de expressão?

SL: Numa democracia, as pessoas são livres para falar coisas horríveis, inclusive para fazer, em muitos lugares, elogios a ditaduras repressoras do passado. Democracias às vezes precisam tolerar comportamentos terríveis – esse é o preço da liberdade. Mas só porque alguém tem “liberdade” para elogiar a tortura ou a ditadura não significa que isso seja menos condenável e, no caso de políticos, extremamente irresponsável. E quando representantes do próprio governo (o presidente, ministros, oficiais do exército) elogiam a tortura e a ditadura, isso me parece uma irresponsabilidade inacreditável.

3) Por que o senhor acha que no Brasil é tão difícil confrontar o passado? Países vizinhos como Argentina, Uruguai e Chile processaram, julgaram e puniram militares que encabeçaram e participaram das ditaduras de seus países, de todos os escalões – todos envolvidos em crimes contra a vida: assassinatos, fuzilamentos, atentados à bomba, afogamento, tortura física e psicológica, sequestro e roubo de filhos dos opositores; sem contar o favorecimento pessoal com corrupção, desvio de dinheiro (caso comprovado de Pinochet no Chile, por exemplo), tráfico de armas, drogas e crianças (caso de Stroessner no Paraguai, por exemplo).

SL: Eu acho que o principal motivo é que o exército brasileiro foi razoavelmente bem-sucedido. Ele presidiu tempos econômicos relativamente bons nos anos 60 e 70; não foi tão repressivo quanto os regimes da Argentina, Chile e Uruguai, e, como resultado, nunca foi tão impopular quanto os militares nesses outros países. Na Argentina e no Uruguai, os militares foram amplamente desprezados após a ditadura. O Chile ficou mais dividido, mas uma maioria sólida rejeitava Pinochet – e as revelações subsequentes de corrupção e abusos dos direitos humanos criaram uma ampla rejeição social do governo militar também. Isso nunca aconteceu – ou aconteceu em menor grau – no Brasil. O exército brasileiro nunca se tornou o cara mau. Nunca perdeu seu prestígio, e nunca foi totalmente despojado de seu poder como foi na Argentina.

4) O presidente Jair Bolsonaro determinou que as Forças Armadas comemorem no dia 31 de março a “data histórica” do aniversário do golpe militar de 1964 (que ele chama de Revolução). Em um governo que reúne o maior número de militares na Esplanada dos Ministérios desde o período da ditadura (1964-1985), além de entrevistas onde tece elogios ao período, qual o impacto dessa comemoração para a democracia brasileira? 

SL: Vindo de um governante civil numa democracia, é um comportamento abominável – com consequências potencialmente trágicas. O Estado está oficialmente dizendo aos cidadãos que o golpe e a ditadura foram aceitáveis e até mesmo elogiáveis. O Estado está oficialmente aprovando a repressão, a tortura e outras práticas antidemocráticas. Isso, por si só, não torna o Brasil menos democrático, mas pode ter um grande impacto na opinião pública. Ajuda a legitimar – ou tornar aceitável – futuros golpes ou ditaduras. Eu acho vergonhoso.

5) O senhor já afirmou que a polarização política pode acabar com uma democracia muito frágil. Para o senhor, a democracia brasileira é frágil? Quais suas fraquezas? E sua força? Ela está em perigo?

SL: A democracia brasileira tem instituições relativamente fortes, desenvolvidas nos últimos 35 anos. Não tenho certeza se eu diria que é frágil, mas é definitivamente vulnerável. O nível de desigualdade social, econômica e racial torna a democracia brasileira um pouco mais vulnerável do que outras. O recente crescimento do crime violento e do colapso econômico aumentou sua vulnerabilidade. A satisfação do público com a democracia e a confiança nas instituições democráticas caíram para níveis muito baixos. Mas talvez o mais importante, a extrema polarização que o Brasil experimentou desde 2014 definitivamente deixa a democracia vulnerável. Forças de esquerda e direita começaram a ver um ao outro como inimigos, em vez de rivais. Eles começaram a adotar a abordagem “o que for necessário” para derrotar seus rivais. Entre as elites políticas, as normas democráticas parecem mais frágeis hoje do que eram há uma década. Finalmente, sempre que uma sociedade elege um presidente que não está totalmente comprometido com as regras constitucionais e democráticas do jogo, a democracia está em perigo. A democracia do Brasil tem muitos pontos fortes e tem uma boa chance de sobreviver a esse período difícil. Mas os perigos são reais. Há muito o que se preocupar.

 

 

Protestantismo, Religião e a expansão do Capitalismo Industrial

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  O sistema capitalista de produção se consolidou com a Revolução Industrial inglesa do século XVIII, trazendo inúmeras mudanças para a sociedade da época, transformando hábitos, costumes e comportamentos arraigados na sociedade europeia, fazendo da ciência um dos grandes motores da sociedade e impondo a religião uma derrota jamais vista, fragilizando a Igreja romana e abrindo espaço para a consolidação de outras vertentes religiosas mais afeitas e atreladas ao sistema de produção dominante.

A sociedade feudal pode ser descrita como uma época de trevas para a mundo ocidental, nesta época o controle social era feito através das armas e do poderio bélico e militar dos senhores, somados ao poder imaterial da Igreja, que mantinha instrumentos de controle social e de alienação, de outro lado, encontrávamos uma forte degradação da ciência e um fortalecimento da religião, que acreditava ser a grande responsável pelo monopólio com uma força superior.

Neste modelo de organização social, os servos eram vistos apenas como indivíduos dotados de força física, sem direitos e com muitos deveres, impossibilitados de ascensão social e condenados a viverem para o trabalho duro, sem poder ascender a outras classes e grupos sociais organizados, todos que se comportassem teriam acesso aos reinos do céu, enquanto aqueles que deixassem a desejar e se revoltassem contra a organização dita social, seriam condenados ao fogo do inferno ou seriam obrigados a rever ideias, teorias ou pensamentos vistos como reacionários pelos agentes do poder e da ordem.

O poder nas mãos da Igreja era muito consistente, dominava a relação entre os homens e as divindades e controlavam com mãos austeras toda e qualquer ameaça ou suposta ameaça, puniam com rigores extremos todos que se comportavam inadequadamente e ameaçavam o seu domínio, muitos médiuns ou sensitivos foram considerados bruxos e foram mortos com requintes de crueldade para mostrar aos cidadãos o poder temporal mantido pela Igreja e evitar que outros se revoltassem ou se rebelassem contra sua dominação.

Depois de quase mil anos de controle dogmático e sistemático sobre as mentes e os comportamentos, marcados por uma monopolização do conhecimento e do pensamento crítico, que levou a Igreja a construir algumas universidades no continente europeu e a dominar todas as estratégias de educação e de alienação social. A Igreja se enfraquece depois das guerras religiosas e quando fragilizada, perde espaço para novas vertentes religiosas, principalmente o Protestantismo, que nasce pelas mãos do teórico alemão Martinho Lutero, um homem arrojado que se notabilizou com a publicação, em 31 de outubro de 1517, nas portas da capela de Wittemberg, as 95 teses de Lutero, com ásperas críticas as bases da religião dominante.

As críticas emitidas por Martinho Lutero chamam a atenção da sociedade da época, porque o autor era um grande teórico da Igreja, escritor e pesquisador das questões sobrenaturais, sua trajetória sempre foi construída dentro dos pilares desta instituição, suas críticas se mostraram consistentes e obrigaram a Igreja a expulsá-lo de suas fileiras, levando-o a inaugurar um novo movimento religioso que, ao se associar ao pensamento da burguesia nascente, ganha força e relevância no velho continente.

Os ideais da Igreja de renegar a usura e a busca constante por lucro e remunerações crescentes, vistas como instrumentos de estímulos ao individualismo com forte conotação de crítica social, somadas a repulsa pela ciência e pela constante tentativa de tutela do conhecimento científico, colocavam a Igreja em colisão direta com os novos ideais nascentes nesta nova sociedade, centrados no crescimento e no fortalecimento da Ciência e do conhecimento e na busca constante pelo lucro e pelo incremento da produtividade, ambiente favorável ao crescimento da chamada economia de mercado e, posteriormente, do capitalismo.

O Protestantismo foi fundamental para o crescimento do sistema capitalista, depois das teses de Lutero, os capitalistas perceberam no movimento religioso protestante um forte instrumento de fortalecimento de seus ideais em uma sociedade dominada pela força e pelas tradições da Igreja, com isso, foram buscar uma parceria estratégica com o pensamento luterano, financiando sua expansão e consolidando suas teorias como forma de angariar apoio nesta nova sociedade nascente.

Embora apresentasse ideias inovadoras, dentre elas destacamos a possibilidade de ascensão social, até então inexistente, o capitalismo necessitava de um agente externo para angariar o apoio das massas, somente este apoio maciço daria os instrumentos para que a população conhecesse e se encantasse com seus ideários, reduzindo o papel da Igreja e angariando novos quadros para a consolidação de seus princípios econômicos, sociais, políticos e culturais.

As teses da nova religião construídas por Martinho Lutero estimulavam os indivíduos a uma busca constante por melhorias profissionais e econômicas, a liberdade, o dinamismo e o empreendedorismo somados trariam novos espaços para inovação e para o crescimento econômico, com ganhos para todos os integrantes da sociedade, melhorando suas condições de vida e incrementando o bem-estar social.

Pelas ideias de Martinho Lutero, todos os indivíduos que se entregassem a Deus, trabalhassem de forma honesta e dedicada, apresentassem um papel construtivo na sociedade, adotassem a prática constante da caridade e da solidariedade humana seriam bem quistos por Deus e, com isso, poderiam angariar recursos econômicos que os levariam ao entesouramento e a acumulação de riquezas materiais. Segundo esta tradição, os esforços pessoais honestos e edificantes seriam bem vistos por Deus e, com isso, num futuro próximo poderiam lhe trazer vantagens imediatas desde que, este cidadão tivesse a consciência, de que todos os recursos deveriam ser reinvestidos em condições de trabalho melhores e mais possibilidades de estudo e de crescimento para os seus concidadãos, uma forma de devolver para a sociedade os ganhos oriundos destas atitudes empreendedoras.

O Protestantismo traz uma nova visão de Deus e da religião, nesta nova vertente  encontramos um Deus mais amoroso e atencioso, menos rígido e punitivo como aquele criado pela Igreja, um verdadeiro educador de almas, alguém que atende seus filhos com carinho e pede como contrapartida um constante auxílio aos outros irmãos mais necessitados e vulneráveis, encontramos aí no crescimento do conceito de filantropia, que passa a se disseminar em países centrados no modelo capitalista luterano-calvinista.

No período conhecido como iluminismo, encontramos a ascensão do pensamento científico nas mais variadas áreas e setores da ciência, desde a química que passa a desgarrar da alquimia, passando pelo conhecimento dos números até a ascensão da matemática, destacamos o surgimento da Economia, primeiro com os fisiocratas, depois com os mercantilistas até os liberais e seu pensador maior, Adam Smith, todas estas ciências passam a impulsionar a sociedade e colocar o conhecimento no centro da coletividade e fragilizando o pensamento religioso e, principalmente, a Igreja e seus movimentos diretamente vinculados.

Os pensamentos da Igreja limitavam a ascensão dos ideários do capitalismo nascente, a concorrência e a competição eram vistas de forma negativa, os indivíduos respeitavam-na muito e, principalmente, temiam a instituição Igreja, com isso, o enfraquecimento da religião era uma condição fundamental para o progresso das teorias e teses do capitalismo, diante disso, as parcerias empreendidas com os cientistas poderiam ser descritas como uma estratégia interessante e revolucionária, onde todos os envolvidos ganhavam, de um lado, os capitalistas teriam ao seu lado um grupo de pensadores dotados de uma capacidade intelectual privilegiada, servindo como agente de construção de novos produtos, bens e mercadorias; de outro, a parceria traria aos cientistas instrumentos monetários e financeiros para viabilizar as pesquisas científicas, garantindo retornos interessantes para ambos os grupos sociais.

Mesmo tendo ideias fortes e estruturadas, a ascensão de novas teses religiosas em uma sociedade tradicional tende a demorar inúmeros séculos, se desvencilhar de pensamentos estruturados, tradicionais e arraigadas durante tanto tempo é sempre muito difícil, os grupos de resistência trabalham no sentido contrário, usando instrumentos, muitas vezes escusos, para impedir o crescimento dos novos princípios, isto acontece porque este grupo sabe que o novo pensamento tende a lhe tirar poder, diante disso, trabalham para poder reduzir-lhe  as forças e continuar a dominar a situação, continuando a angariar recursos, muitas vezes, escusos para seu prazer e interesses imediatistas e egoístas.

A inquisição, iniciada no século XII na França para combater o sectarismo religioso, se espalha por toda Europa e durante muitos séculos desafia as estruturas de poder, mandando para a fogueira pessoas que questionavam as ideias e as teorias da Igreja, muitos teóricos importantes foram queimados ou tiveram que se retratar, revendo suas descobertas e se retratando com o clero, sob pena de serem mortos de forma agressiva e violenta.

A inquisição pode ser vista como uma das últimas tentativas de reaver os espaços da Igreja que foram perdidos no continente, perseguindo intelectuais e buscando a fragilização das descobertas científicas, em algumas regiões os movimentos inquisitoriais foram mais fortes e perduraram por mais tempo, deixando marcas mais evidentes nestas sociedades como, por exemplo, na península Ibérica, região marcada pela coabitação entre portugueses e espanhóis, nesta região a repressão foi mais intensa, intelectuais foram perseguidos, mortos e obras importantes foram queimadas, objetivando fragilizar novas teorias e novos pensamentos científicos, o resultado destas políticas foram pouco efetivos e mesmo com a proibição o interesse por estas obras cresceu e as vendas foram maiores e mais consistentes.

O poder da Igreja era tão forte na península ibérica que, no século XIX, todos os livros que eram publicados nestes países precisavam passar pelo crivo da Igreja, sem sua autorização a obra era descartada sem justificativas maiores, isto aconteceu com os livros espíritas que foram importados para ser comercializados na Espanha e, sem a autorização do Clero, as obras foram apreendidas e queimadas em praças públicas, este fenômeno recebeu o nome de Auto de Fé de Barcelona, ocorrido em 9 de outubro de 1961, na cidade de Barcelona, Espanha.

Nestas reflexões, percebemos claramente que, nesta sociedade não existem mocinhos e nem bandidos, todos lutam por seus interesses imediatos, todos se utilizam de suas “armas” para garantir ou ampliar seus espaços dentro da sociedade, nesta situação percebemos que os setores tradicionais se acomodaram e, com isso, perderam espaço para novos agentes sociais, que perceberam as demandas da sociedade e se organizaram produtivamente para satisfazer estas novas necessidades, transformando suas ideias em recursos financeiros e em lucros amoedados.

O capitalismo baseado no protestantismo cresceu e se fortaleceu em regiões mais dinâmicas da sociedade capitalista, o incentivo ao empreendedorismo foi fundamental para este crescimento, angariando novos projetos, ideias e pensamentos empreendedores, motivando novas teorias e incentivando o conhecimento, a educação e a filantropia, um exemplo claro destes princípios, brilhantemente retratado pelo sociólogo alemão Max Weber em A ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que destaca uma relação de integração entre os ideários do sistema capitalista de produção e as bases religiosas do luteranismo ou protestantismo, que pregava uma busca constante baseada em valores e preceitos éticos e morais.

A relação entre religião e sistema econômico sempre existiu, as religiões tem grande importância na sociedade, influenciam o comportamento das pessoas, as culturas e as formas de pensar, com a ascensão do capitalismo e seu poder econômico e financeiro, percebemos grandes alterações nesta sociedade, trazendo conceitos importantes para a berlinda, como empreendedorismos, inovação, metas e competitividade, o grande risco desta nova sociedade é que o sistema capitalista domine de forma tão intensa a sociedade, que passe a ser vista mais como uma religião do que como um instrumento de produção e distribuição de bens, mercadorias e serviços e transforme o ser humano em uma máquina alienada e inconsequente. O risco existe e nos parece mais e cada vez mais uma tendência inexorável, o ser humano está sucumbindo aos interesses e aos prazeres imediatos do capitalismo, do dinheiro e dos poderes materiais.

Pobreza e degradação social no Brasil contemporâneo

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O aumento da pobreza e da desigualdade social é um dos maiores desafios do capitalismo contemporâneo, vivemos em um mundo de constantes mudanças e transformações estruturais com graves impactos sobre as comunidades, gerando medos e desesperanças, esta desigualdade não está mais restrita aos países em desenvolvimento, mas afetam todos os países e regiões, obrigando os governos e as lideranças empresariais a repensarem as estratégias de combate a estes desajustes e melhorar as condições destes grupos mais vulneráveis.

A sociedade brasileira desde meados dos anos 90 passou a conviver com melhoras consideráveis na economia, a redução da inflação, os incrementos dos investimentos na educação, as políticas públicas e os avanços institucionais geraram um período de crescimento mais consistente, criando com isso, as expectativas de que uma nova classe média estivesse em ascensão e o país, felizmente, estaria melhorando suas condições econômicas e ingressando em um novo momento de progresso e de desenvolvimento social.

Depois desta euforia do período 2003/2012, onde o país apresentou crescimento anual na casa dos 4,3%, os avanços obtidos foram sendo perdidos e novos espaços de instabilidades foram sendo construídos de forma acelerada, as reivindicações de 2013 geraram mais instabilidades em um governo fraco e incompetente e contribuíram para mergulhar o país na sua mais intensa e demorada recessão, com forte degradação política e perdas consideráveis na renda agregada e um incremento no desemprego cuja recuperação econômica está se fazendo mais difícil e complicada, como não se imaginava anteriormente.

Dados recentes divulgados pelo Banco Mundial traduzem em números a nossa crise generalizada, segundo esta renomada instituição, entre 2014 e 2017, mais 7,3 milhões de brasileiros caíram na pobreza extrema e passaram a viver com renda mensal de até US$ 5,50 por dia, algo equivalente, pelo câmbio atual, a cerca de R$ 635 por mês, com isso, o grupo dos pobres cresceu de 17,9% para 21% da população nos anos da crise econômica, algo em torno de 40 milhões de pessoas.

A economia brasileira está entre as dez maiores do mundo e, mesmo assim, temos um contingente de pobres e miseráveis de quase 52 milhões de indivíduos, o total de brasileiros vivendo abaixo da linha de extrema pobreza saltou de 5,6 milhões para os 10,1 milhões entre 2014 e 2017, um incremento de 80% ou mais de 4,4 milhões de pessoas, tudo isto nos ajuda a compreender a explosão na área da insegurança e na violência urbana, somente em 2017 foram mais de 62 mil homicídios, um número semelhante a países que vivem em conflitos militares.

A crise econômica iniciada em 2014 foi responsável por grande parte destes números, nestes mais de cinco anos o Brasil conviveu com sua maior recessão, com uma queda no produto interno bruto de mais de 8% e um incremento no desemprego, que levou mais de 13 milhões de pessoa a verem sua renda ser reduzida e as perspectivas de retorno ao mercado de trabalho escasseando, gerando impactos imediatos na economia, reduzindo consumo e obrigando as empresas e os agentes econômicos a diminuir os investimentos.

Desde 2017, a economia não mais se encontra em recessão, o crescimento no último biênio foi de pouco mais de 1,1% ao ano, com isso, nossa renda agregada apresentou uma queda considerável, com previsão de volta aos números de 2013 apenas no ano de 2023, estamos vivendo uma situação sombria com forte degradação social e perdas crescentes para os trabalhadores, uma nova década perdida, diante disso, cabe aos movimentos organizados repensarem suas estratégias e construir alternativas para um futuro próximo, deixando de lado os conflitos por hegemonia e apresentar propostas consistentes para viabilizar novas politicas públicas para o incremento dos indicadores sociais tão devastados nos anos recentes.

Para que tenhamos ideia do tempo perdido pelo Brasil, a taxa média de crescimento econômico na década atual foi de 0,6%, sendo que, nos últimos 30 anos, foi de parcos 2,2%, números muito baixos e insuficientes para uma melhora mais consistente das condições econômicas e produtivas do Brasil. Este período foi marcado por políticas fortemente centradas no combate a inflação que assolava o país, com números na casa do 30% ao mês, onde para vencer os desequilíbrios nos mercados de preços foram adotadas as mais diferentes estratégias, desde congelamento de preços e tablitas a substituição da moeda corrente por uma nova base monetária, além de uma forte valorização cambial.

A trajetória de concentração de renda faz parte da história da sociedade brasileira, nossos números estão nos últimos lugares deste ranking vergonhoso, a população por mais que faça críticas crescentes a esta situação, já se acostumou com esta realidade assustadora e macabra, evitando um discurso político mais estruturado e consistente, fazendo de contas que esta situação está amplamente amparada num determinismo imutável, com isso, vamos vivendo e contribuindo para a perpetuação deste ambiente tenebroso.

Um dos livros mais instigante sobre o tema da desigualdade brasileira foi escrito por Pedro Ferreira de Souza, “Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil (1926-2013)”, uma obra de escol e leitura imprescindível, que retrata nossa histórica desigualdade social e como a população convive com esta chaga aberta na sociedade, para alguns a população é muitas vezes conivente com a desigualdade mas, com certeza, é pouco informada de como esta situação degrada os laços sociais e cria espaços para conflitos e desequilíbrios estruturais, incrementando a violência, a exclusão e a insegurança.

Vivemos em uma sociedade onde a mobilidade social é reduzidíssima, onde as chances de uma criança oriunda de uma favela carioca ou paulista crescer e se transformar em um profissional de destaque é algo desprezível, nesta sociedade somos governados pelos mesmos agentes públicos, com ocupações que passam de pais para filhos como se vivêssemos em um período feudal, onde a ascensão é desprezível, inexistente.

Como retratou Raimundo Faoro, no seu livro clássico Os Donos do poder, o poder público é indutor de nossa desigualdade, já que é exercido por grupos que administram a maquina pública para derivar benefícios do poder, privilégios e riquezas, esta descrição feita pelo ilustre intelectual em 1958, passados mais de sessenta anos, ainda se mantem bastante atual e preocupante, muitas vezes nos condenando a uma condição de indignidade e exclusão social.

A história da sociedade brasileira é uma história de violências constantes, inicialmente contra os indígenas, depois contra a população negra, fomos um dos últimos povos a abolir a escravidão, nossa elite agroexportadora explorou ao máximo os negros cativos e, ainda hoje, percebemos uma grande indiferença em relação a miséria e a violência generalizadas. Com estes atrasos históricos e a persistência nestas políticas, nos distanciamos a passos largos dos países mais civilizados no mundo que deixaram, a muito tempo, estas heranças escravistas e escravocratas nefastas que prejudicam a economia e retardam o desenvolvimento econômico e as melhorias sociais.

Existem muitas políticas para a redução desta pobreza, de um lado encontramos algumas teses interessantes que devem ser consideradas, tais como o aumento da tributação daqueles que auferem lucros elevados dentro do sistema econômico, principalmente dentro do sistema financeiro, temos uma estrutura tributária centrada nos impostos sobre consumo, tributamos muito pouco a renda e isentamos de impostos aplicações financeiras, com isso, estimulamos uma péssima concentração da renda, fazendo com que nossa situação se transforme em algo insustentável, onde uma pequena parte dos cidadãos são beneficiados enquanto uma grande quantidade são condenados a viverem em situação de degradação, incrementando a pobreza e a desigualdade social.

Temos muitas medidas imprescindíveis na pauta do país, desde a reforma da previdência, até as reformas tributária, política e do Estado, mas precisamos ainda, de reformas que estimulem a concorrência e o incremento da produtividade, reduzindo o papel do Estado em várias áreas através de parcerias público-privada, privatizações e a introdução de uma lógica de eficiência no setor público, ou seja, uma medida pró mercado que prescinda do Estado como agente fundamental no sistema econômico e produtivo.

O aumento da produtividade do trabalho pode ser traduzido como o chamado desenvolvimento econômico, sua efetivação leva a uma melhora nas condições sociais e aumenta as oportunidades de emprego e de renda, para isso, fazem-se necessárias uma maior qualificação do capital humano e uma educação de qualidade que capacite os trabalhadores para as grandes transformações da chamada Quarta Revolução Industrial.

Acreditamos fortemente na integração entre Estado e Mercado, cada um dos agentes possui um papel relevante dentro da sociedade, a atuação integrada é fundamental para garantir uma melhora mais consistente nos investimentos, na distribuição da renda, na geração de empregos e na condição social da população, atuando ainda como fiscalizador e regulador de todo o sistema econômico e produtivo, evitando sempre um crescimento exagerado de suas intervenções e seus resultados negativos, como excessos burocráticos e ineficiências generalizadas, além de um incremento da corrupção e fragilidade da democracia e do sistema político.

Um país com níveis de desigualdade como o Brasil, deve ter um projeto humanista de inclusão social, sem viés ideológico e não deve ser indiferente quanto a miséria de nosso povo, sobretudo esta miséria presente entre os descendentes de escravos, africanos e indígenas e, mais recentemente, de trabalhadores estrangeiros que fogem de seus países em busca de novas e melhores oportunidades de emprego e sobrevivência, muitos deles, como haitianos e venezuelanos, a chegada ao Brasil se dá em busca da sobrevivência.

A situação social do país é tão degradante que, segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), 45% da população brasileira não tem acesso adequado a esgoto e a saneamento básico, com implicações diretas na saúde da população, ao mesmo tempo, temos uma tecnologia cada vez mais avançada na sociedade global, onde encontramos uma elite com acesso a serviços inimagináveis em países mais ricos e desenvolvidos.

O país vive momentos de grandes transformações e retrocessos evidentes, depois de um forte e consistente crescimento na primeira década do século XXI, os desajustes fiscais e os desequilíbrios criados no pós 2013 levaram o país a uma forte recessão, depois de mais de 8% de queda no produto interno bruto a economia voltou a crescer de forma tímida e insuficiente, este crescimento nos parece frágil em demasia, necessitamos de uma impulso com urgência, sem este, dificilmente conseguiremos melhorar nossa performance, depois de diagnósticos de forte crescimento em 2019, muitos analistas se mostram preocupados e estão refazendo seus cálculos para 2019, antes 3% de crescimento, hoje as previsões estão na casa dos 2%, pra mim o crescimento será menor, algo entre 1,5% e 2%, número insuficiente para melhorar nossa condição de atraso econômico.

A crise econômica degrada as condições sociais, aumenta a informalidade e reduz os trabalhadores formalizados do sistema, desta forma, percebemos uma redução dos repasses para as instituições previdenciárias e um incremento nos gastos públicos, como forma de reduzir os impactos negativos desta crise, levando o Estado a déficits crescentes que reduzem sua credibilidade perante os agentes econômicos locais e internacionais, encarecendo a captação dos recursos e inviabilizando sua atuação efetiva como investidor para impulsionar o crescimento dos investimentos, atitude esta central para turbinar o crescimento econômico.

O brasileiro acostumou com esta paisagem marcada pela desigualdade social, desde os primórdios somos descritos como uma sociedade desigual, os indicadores do IBGE ou de organismos internacionais, como o Banco Mundial ou a Oxfam, nos mostram claramente esta realidade, sem políticas públicas consistentes e efetivas dificilmente conseguiremos uma melhora neste ambiente, outro ponto central para a redução das desigualdades no médio e longo prazo é a educação, cujos resultados a sociedade brasileira deixa muito a desejar, diante disso, os desafios para o Brasil são imensos e devem ser vistos com urgência pela sociedade, unindo os movimentos sociais, a classe política e os grupos empresariais, deixando de lado os confrontos ideológicos e as picuinhas políticas e eleitoreiras.

Manifesto pelo crescimento econômico

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Este país precisa desesperadamente voltar a crescer para dissolução das demais necessidades

Jânio de Freitas – Folha de São Paulo, 07/04/2019

As necessidades deste país são em quantidade descomunal. Uma, acima de todas. Parece bem conhecida, e tanto não é, que não figura entre as prioridades emergenciais. Este país precisa desesperadamente de crescimento econômico. É disso que a dissolução das demais necessidades depende. É do crescimento econômico retomado com urgência que tudo depende neste país, no presente, agora mesmo, e para todo o futuro.

Evitar que este país seja engolfado pela violência que já mudou nossas vidas para muito pior. Salvar a democracia, não de ditaduras militares, que isso se resolve, mas da degradação que corre rumo ao fundo sem volta, onde democracia é impossível. Dar sentido, enquanto há tempo, à riqueza natural e aos potenciais humanos que não faltam aqui, no entanto utilizados em escala mínima e só para negócio proveitoso de uma “elite” que vive de costas para o país.

Salvar os que vivem na miséria, os que vive na pobreza, os da classe média já em decadência geral, salvar tudo e todos do que está acontecendo e se finge não ver. Salvar a vida deste país. Isto, só a partir do crescimento econômico é possível.

Os números terríveis no recente relatório do Banco Mundial, referentes ao Brasil, nem são da atualidade. Retratam o final de 2016: mais 7,3 milhões de pessoas caíram no fosso existencial dos que vivem com menos de US$ 5,50 por dia, ou R$ 21,20. Eram 36,5 milhões em 2014, dois anos depois já chegavam a 44 milhões. Sabemos, embora sem os números, o que lhes aconteceu depois de 2016, nos anos de Michel Temer e Henrique Meirelles.

Os que apenas parecem viver com menos de R$ 7,30 por dia (ou US$ 1,90) passaram, só naqueles dois anos, de 5,6 milhões para 10,1 milhões de seres humanos no que é chamado de “abaixo da linha de pobreza”. Na linguagem de pessoas, miséria extrema.

Naqueles anos, as prioridades foram o “déficit fiscal”, com o corte de gastos governamentais, e a criação do teto de despesas da administração pública. A riqueza de Temer cresceu até na madrugada do Jaburu. A de Meirelles foi de dia mesmo, nas aplicações especulativas protegidas, todas, pelo governo.

Este Brasil mudara, porém. Encontrava-se. Monica de Bolle, diretora de estudos latino-americanos da Johns Hopkins University, antecipa sua identificação política e ideológica, em Época (sem data na página destacada): “Não tenho qualquer simpatia pelo PT, embora credite ao governo Lula a redução da pobreza e a formalização do mercado de trabalho que mudaram o país”.

Pesquisador de economia da Fundação Getulio Vargas e sócio da consultoria Reliance (pronúncia em inglês, por favor), o “liberal” Samuel Pessôa: (…) “no melhor período que tivemos, os anos Lula, quando crescemos 4% em termos reais” (Folha, 31/03/2019).

O autor desses “anos Lula” está completando um ano trancafiado em pequena cela, condenado a 12 anos e 1 mês. Ao encerrar-se, seu governo recebeu 82% de aprovação, índice sem precedente. Por que está preso? Por crime provado não é, se o então juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF-4, em Porto Alegre, não encontraram a prova de que precisavam: atribuíram o alegado suborno a um “fato indeterminado”. Mas se o motivo do suborno não é conhecido, o próprio suborno não é conhecido. E não pode haver condenação pelo que nem se sabe se existiu.

O motivo da prisão foi a combinação lógica de “melhor período que tivemos” e 82% de aprovação. Logo, probabilidade incomparável de vitória na eleição presidencial de 2018. A “elite” econômica, os seus servos e interesses externos temeram que outro governo Lula não fosse tão complacente e mesmo colaborativo quanto o anterior, e avançasse para reformas verdadeiras. Em busca de mais crescimento, soberania de fato, menos injustiça social —mau exemplo na América Latina.

Dizer que o êxito do governo Lula deveu-se sobretudo a condições externas favoráveis é fácil, mas é mentira do elitismo neoliberal. Em 2008, o governo Lula encarou a grave crise internacional difundida pelos Estados Unidos. Os efeitos do crescimento sustentaram o Brasil e o comprovaram na aprovação crescente.

O “melhor período que tivemos” e os 82% ficaram como demonstração definitiva, para todo observador honesto, de que a prioridade ao “crescimento real” independe de falsas reformas preparatórias, é necessário e urgente.

 

Imigração virtual inaugura nova fase da globalização e vai beneficiar emergentes, diz especialista

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Para Richard Baldwin, tecnologias vão impulsionar contratação de estrangeiros e ceifar empregos nos países ricos

Raquel Landim – Folha de São Paulo – 07/04/2019

Um dos principais especialistas do mundo em comércio, Richard Baldwin, professor do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, vai na contramão dos seus pares.

Ele não acredita que a globalização esteja retrocedendo, mas entrando em uma nova fase ainda mais polêmica: a imigração virtual.

Em linhas gerais, imigração virtual são profissionais que moram num país, mas trabalham em outro, por meio de novas tecnologias: Skype, Facetime, softwares de trabalho coletivo, sala de reuniões online, equipamentos de tradução instantânea e até telerrobôs.

“A diferença de preços dos serviços entre nações ricas e países emergentes chega a 10 a 20 vezes. Veremos muito profissionais de Brasil, Argentina, Quênia, Ucrânia, Índia trabalhando para empresas em Nova York e Londres.”

Autor de “Globotics Upheaval” (A revolução dos robôs globais), Baldwin diz que a nova onda representará enorme oportunidade para trabalhadores das nações emergentes, mas também vai gerar mais revolta nos países ricos, favorecendo movimentos populistas.

O senhor costuma dizer que o futuro da globalização será muito diferente do que ocorreu nos últimos anos. Por quê?

A globalização nada mais é do que uma arbitragem de preços. As empresas exploram as diferenças de preços para produzir ou comprar produtos onde são mais baratos e vender onde são mais caros.

Para lucrar, é preciso levar os produtos de um país ao outro. Por isso, até agora, entendemos a globalização como troca de produtos. Por exemplo: você planta café no Brasil e entrega de navio na Europa.

Vamos focar agora os serviços profissionais. Frequentemente, a diferença de preços de serviços profissionais entre as nações ricas e os países emergentes, como Brasil, Argentina, Quênia, Ucrânia ou Índia é de 10 a 20 vezes.

Até agora não era possível arbitrar esses preços, porque os serviços são vistos como não comercializáveis, pois exigem que as pessoas estejam frente a frente. Só que a tecnologia digital está tornando as pessoas mais próximas.

Como a diferença nos preços dos serviços é muito alta e a tecnologia avança muito rápido, a globalização vai ser transformada pelo que chamo de imigração virtual.

O que é imigração virtual? 
Comecemos por algo já bastante difundido: trabalhar uma ou duas vezes por semana de casa, sem ter de ir ao escritório. A imigração virtual é a mesma coisa, só que a nível internacional. Profissionais que moram num país e trabalham num escritório que fica em outro país.

Esse trabalho freelancer internacional já é relativamente comum em alguns setores, como desenvolvimento de software ou em grandes bancos. Nessas áreas, pessoas de um mesmo time estão situadas em países diferentes e se comunicam pela internet para fazer um projeto em conjunto.

Tenho um amigo na Suíça que desenvolve sites para empresas. Ele trabalha de casa ao lado de alguns computadores. Em uma das telas, está a imagem de um programador do Paquistão; na outra, um especialista em experiência dos usuários do Canadá; em outra tela, um designer uruguaio.

Eles trabalham juntos por alguns dias para fazer determinado site. Conversam o tempo todo e usam um software colaborativo. Mas, como o paquistanês está satisfeito em receber US$ 10 (R$ 39) por hora, o projeto fica muito mais barato do que se todos morassem na Suíça.

Já faz tempo que as empresas instalaram call centers na Índia ou que há colaboradores estrangeiros em empresas de software. Por que o sr. acredita que o fenômeno será mais generalizado e rápido agora?

Em meu livro, explico em detalhes quatro fenômenos que vão colaborar com o processo. O primeiro é a experiência das pessoas de trabalhar em casa. Nos EUA, isso é muito comum.

As empresas estão se adaptando com a adoção de novos softwares para tornar o trabalho de casa mais fácil. Essas mudanças abrem a porta para a imigração virtual, pois rapidamente as companhias vão perceber que dá para contratar um estrangeiro que vai cobrar muito menos.

O segundo ponto é a melhora das telecomunicações: a qualidade do Skype, do Facetime e de outras tecnologias mais sofisticadas. A possibilidade de reuniões virtuais.

Há outra tecnologia bem divertida chamada de telerrobôs. Conto no meu livro a história de uma jornalista de tecnologia que trabalha no escritório em San Francisco, mas mora em Boston. Ela dirige o robô pela Redação e fala com as pessoas como se estivesse lá.

E as barreiras linguísticas? Nem todos falam inglês. 

Este é o terceiro ponto: a tradução por máquinas vai quebrar essas barreiras. Nos últimos tempos, tivemos uma revolução nessa tecnologia.

A ONU deixou online milhões de sentenças traduzidas dos debates em seis idiomas nos últimos 40 anos. Isso facilitou a aprendizagem das máquinas, e o algoritmo agora não traduz palavra por palavra, mas frase por frase, o que melhorou muito o resultado.

Dê uma olhada nesse aplicativo. Vamos testar [Ele abre um app do Google que traduz rapidamente uma frase da repórter para o inglês e outra dele para o português. O resultado é muito bom].

Veja também essa tecnologia [Agora com outro app o professor direciona a câmera do celular para o bloco de anotações da repórter e o texto é traduzido automaticamente do português para o inglês].

Provavelmente, a tradução pela máquina nunca vai ser perfeita, mas, como sabemos, executivos americanos têm discussões com executivos estrangeiros que não falam inglês perfeitamente, todos os dias, e isso é suficiente. Não falar inglês não será uma barreira para prestar serviços no exterior.

E o quarto fator? 

O surgimento de sites que servirão como plataformas de contratação de profissionais. O maior hoje no mundo é o upwork.com, mas há muitos outros.

Esses sites vão tornar mais fácil para as empresas encontrar profissionais estrangeiros. Também vão propiciar o pagamento dos serviços e trazer alguma segurança para quem está contratando.

Gosto de pensar nessas plataformas como um contêiner, que, em vez de produtos, transporta serviços.

Em que profissões a imigração virtual será mais forte? 

É melhor não focar ocupações, mas tarefas. Todo trabalho é uma lista de tarefas. Algumas podem ser feitas por uma pessoa no exterior, outras não.

No caso de um jornalista, alguém pode remotamente marcar suas viagens, digitar suas anotações, ouvir suas gravações. Essa pessoa certamente não pode escrever seu artigo, mas tem condições de fazer todas essas outras coisas.

Um contador brasileiro não conhece a legislação americana. Contudo, tem muito trabalho em contabilidade que é basicamente analisar um monte de números para ver se batem. Pelo preço de um contador medíocre nos EUA, é possível contratar os melhores no Brasil.

Qual será a direção do fluxo de imigrantes virtuais? Das nações emergentes rumo aos países ricos? 

Principalmente. Quando pensamos nas nações emergentes avançadas, temos trabalho de qualidade a baixo custo, sejam médicos, enfermeiras, professores.

Globalização sempre representa oportunidades para os cidadãos e as empresas mais competitivas e desafios para os menos competitivos.

Como nos emergentes o custo do trabalho é menor, esses cidadãos serão mais competitivos. Mas existem pessoas nos países ricos que são competitivas globalmente. Alguns engenheiros americanos, por exemplo, vão exportar seus serviços para o Brasil.

A imigração virtual, portanto, vai funcionar em ambos os sentidos, mas a vantagem competitiva dominante será dos emergentes. Mais especificamente na classe média das nações de renda média.

Infelizmente não é para todos. Para se beneficiar desse fenômeno, o trabalhador precisa de computador e  internet e de qualificações que exigem alguma educação formal. Não vai atingir os países muito pobres nem todos no Brasil.

Essa mudança, portanto, significa enorme oportunidade de exportação para países como Brasil, África do Sul, Quênia. O milagre dos países emergentes vai se espalhar.

Só que o novo modelo de desenvolvimento vai ser mais parecido com a Índia do que com a China. Todos querem se parecer com a China e exportar carros e celulares, mas esse trem já passou. A Índia também se desenvolveu rápido e exporta poucos produtos.

A insatisfação com a globalização e a imigração facilitou a chegada ao poder de grupos de extrema direita. Qual vai ser o impacto dessa nova onda de globalização na política? 

Nos países ricos, vai ser muito disruptivo. Empregos profissionais —os chamados do colarinho branco— serão perdidos rapidamente. Essas pessoas vão se juntar às que perderam seus postos de trabalho na indústria. Será chocante e pode levar a revolta.

Isso dará ainda mais combustível à extrema direita?

Vai encorajar movimentos populistas, mas não necessariamente de extrema direita.

Há, porém, um atenuante. As pessoas que se sentiram deixadas para trás pela globalização e ajudaram a eleger Donald Trump ou a aprovar o brexit vivem em cidades pequenas, onde não há novos postos de trabalho.

Essa nova tendência vai atingir as cidades grandes. Portanto, será mais simples para esses trabalhadores se reinventarem e eventualmente conseguirem novas ocupações. Isso pode tornar o fenômeno menos doloroso.

Os governos deveriam fazer algo a respeito?

Sim. Nos países ricos, a melhor maneira de reagir é ajudar as pessoas a mudar de trabalho. Alguns políticos defendem que deveria existir uma renda mínima universal, mas não explicam como vão pagar por isso.

Nos países emergentes, como o Brasil, os governos podem auxiliar os trabalhadores a aproveitar essa oportunidade. Um exemplo é oferecer certificações para ajudar as empresas lá fora a saber direito quem você é e o que sabe fazer.

No Quênia e nas Filipinas, por exemplo, os governos estão treinando os profissionais mais jovens, porque acreditam que as novas tecnologias são uma solução para o desemprego entre os mais jovens.

As leis internacionais terão que mudar para se adaptar à nova realidade?

Já existe na OMC (Organização Mundial do Comércio) um acordo sobre o comércio de serviços. Também existem regras sobre comércio eletrônico, serviços bancários, etc. Não acredito que será um problema.

A área em que será mais complicado é a taxação. Onde esses trabalhadores vão pagar impostos? Hoje, em lugar nenhum. Os países terão que fazer algo a respeito.

Na reunião de Davos, conversei com o CEO da upwork.com sobre isso. Ele me disse que fornece informações ao governo dos Estados Unidos sobre seus freelancers americanos. Logo, a princípio, as pessoas teriam que declarar essa renda.

Mas também me contou que outros países nem sequer pedem os dados. A princípio, a melhor maneira seria trabalhar por meio das plataformas. Solicitar a elas que informem o quanto as freelancers estão ganhando. Nesse caso, os impostos seriam pagos onde as pessoas vivem e não onde trabalham.

O senhor acredita que o protecionismo poderá interromper essa tendência?

Não acredito. É verdade que algumas medidas, como regulação de privacidade ou restrição de dados, podem desacelerar o fenômeno. Mas, no final das contas, vai escapar pelas frestas.

Os governos têm boas maneiras de controlar o trânsito de produtos e pessoas em suas fronteiras, mas não conseguem fazer quase nada sobre serviços. A não ser que façam como na China e bloqueiem toda a internet.

No entanto, posso lhe dar um exemplo de uma área em que a restrição funciona. Na Suíça, existem leis muita rígidas para sigilo bancário. Se os dados de um cliente deixam o país de propósito, você vai para cadeia. Se acontece por acidente, a multa é de centenas de dólares.

Por causa disso, os bancos suíços não contratam nenhum tipo de serviço no exterior. Neste caso, é uma escolha. Os serviços bancários suíços são excelentes, mas muito caros.

Richard Baldwin Professor do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra; economista formado pela Universidade de Wisconsin-Madison, fez pós-graduação no MIT sob a supervisão do ganhador do Prêmio Nobel Paul Krugman; é autor de “The Globotics Upheaval” (A revolta dos robôs globais)