A preocupante expansão das milícias

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Em 16 anos, milicianos ampliaram seu território em mais de 130% no Rio. Crescimento acelerado, capilarização do crime e defasagem das instituições de repressão são grande desafio

Notas & Informações, O Estado de São Paulo – 18/09/2022

Há quatro décadas grupos armados expandem seu domínio territorial na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Segundo o Mapa dos Grupos Armados, do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 16 anos o crime organizado ampliou seus territórios em 131%, saltando de 8,7% da área urbana habitada para 20%. O fato novo é que as milícias estão se tornando a principal ameaça à segurança no Rio.

Nesse período, enquanto as áreas sob domínio do Comando Vermelho (CV) cresceram 59% e seu controle sobre a população cresceu 42%, o domínio territorial das milícias aumentou 387% e o populacional, 185%. Sua participação sobre as áreas controladas pelo crime subiu de 24% para 50%, enquanto a do CV caiu de 59% para 40%. No domínio sobre a população, se a participação do CV caiu de 54% para 46%, a das milícias subiu de 22% para 39%.

A pesquisa destaca dois marcos na expansão das milícias. O primeiro no início dos anos 2000, quando havia ambiguidade sobre o papel das milícias no debate público e nas arenas políticas. Esse crescimento foi freado a partir de 2008, quando a CPI das Milícias desbaratou parte da arquitetura do crime. Desde 2017, contudo, a expansão explodiu, em parte pelas disputas entre o CV e o PCC pelas rotas internacionais da droga, em parte pela crise socioeconômica de 2015, e em parte pela gestão de segurança estadual, que, desde o governo de Wilson Witzel, se caracterizou pelo incentivo ao uso desmedido de força letal e pela autonomização das polícias em relação a diretrizes, metas e protocolos estabelecidos por políticas de Estado.

A expansão das milícias não só é quantitativamente maior que a do narcotráfico, mas é qualitativamente mais complexa. “O tráfico de drogas é a criminalidade desorganizada; ele atua na interface com o Estado de maneira muito mais precária”, explicou um pesquisador. “Já os milicianos têm uma relação de tolerância e participação direta de agentes públicos. É um mercado de atuação muito mais diversificado e articulado do que o do tráfico, que é, basicamente, um varejo de droga. Os milicianos controlam a água, a internet, o transporte; ou seja, toda a infraestrutura urbana da cidade é produzida com a mediação desses grupos.”

Trafegando na zona cinzenta entre a legalidade e ilegalidade, as milícias contam com uma dupla vantagem, política e econômica. O que as diferencia é precisamente a participação de agentes públicos, como policiais da ativa e da reserva, juízes ou parlamentares. Assim, elas não só são mais eficientes que o narcotráfico em criar um “Estado paralelo” em seus territórios, como se infiltram no Estado, pervertendo-o a seu favor. Isso facilita, por exemplo, a obstrução de investigações, assim como o emprego das forças policiais para retaliar adversários do narcotráfico – os dados mostram que as ações policiais são bem menores em áreas controladas pelas milícias do que nas controladas pelas facções. Além disso, as milícias são favorecidas por agentes públicos em seu mercado legal e ilegal, sobretudo imobiliário.

A sua expansão impõe novos desafios. Primeiro, uma atualização da legislação, já que o complexo de crimes das milícias ultrapassa os delitos tipificados no Código Penal. Além disso, não há uma dimensão oficial do fenômeno nem políticas integradas de prevenção e enfrentamento. Operações policiais, além de frequentemente ineficazes e catastróficas para a população, vêm sendo instrumentalizadas pelas milícias a favor de sua expansão. Mais importante seria sufocar a fonte do vigor das milícias, o clientelismo de atores estatais, com mais regulamentação, transparência e prestação de contas sobre o que se passa nos mercados urbanos.

Em suma, a expansão das milícias é triplamente alarmante: pela sua velocidade e diversificação; pela sua capilarização na economia e na política; e pela defasagem das instituições responsáveis por investigá-la e reprimi-la. A menos que esse mal seja extirpado pela raiz, no futuro o Rio de Janeiro será lembrado como apenas o foco de uma metástase nacional.

7 de Setembro, por Leonardo Avritzer e Eliara Santana.

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A Terra é redonda – 13/09/2022

A data foi sequestrada, mas o ‘imbrochável’ não surtiu efeito

O 7 de setembro deste ano, momento no qual o Brasil celebrou 200 anos de independência, foi completamente sequestrado pelo bolsonarismo e sua necessidade de mobilização eleitoral. Num dia que deveria ser festivo para o país, data nacional e não momento de campanha, o Brasil assistiu ao espetáculo grotesco de um presidente que, praticamente sozinho no palanque, ficou exaltando as virtudes de sua suposta virilidade. Ainda que esse tenha sido um momento patético da história nacional, é importante perceber outros movimentos, que foram desconsiderados pelos principais analistas, mas que apontam na direção da superação do bolsonarismo.

Em primeiro lugar, vamos destacar a evidente falta de apoio institucional a Bolsonaro: no palanque, no dia do evento, o presidente estava sozinho como protagonista daquele espetáculo questionável – ao seu lado, somente o vice-presidente, Hamilton Mourão, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o empresário Luciano Hang, que é alvo de operação da Polícia Federal autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Nenhum representante dos outros Poderes da República estava ali – nem mesmo o aliado Arthur Lira, do Centrão, sinalizando um aprofundamento do isolamento institucional do presidente.

Vale recordar o que foi o evento do 7 de setembro de 2021, quando o presidente Jair Bolsonaro atacou fortemente os outros poderes da República, em especial o Judiciário, na figura do STF, demonstrando, naquele momento, boa capacidade de desestabilizar as relações entre os Poderes e a democracia brasileira. Uma comparação entre aquele momento com o atual 7 de setembro mostra as fraquezas do capitão na sua campanha pela reeleição e pela desestabilização da democracia no Brasil.

Em 2021, Jair Bolsonaro usou o evento como auge de sua disputa com o STF, em torno do direito de divulgar fake news e de desestabilizar as instituições. Naquele momento, Jair Bolsonaro, ao convocar caminhoneiros a Brasília, defender o fechamento do STF e desafiar o ministro Alexandre de Moraes, afirmou: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República”. Ou seja, ameaças reais ao STF foram feitas em 2021. Mas, neste ano, independentemente do fato de Jair Bolsonaro ter sequestrado as comemorações do 7 de setembro como ato de campanha, é importante considerar que os limites da capacidade do presidente de desestabilizar as instituições democráticas já ficaram bem mais claros.

A ação preventiva do STF contribuiu fortemente para impor esse limite: mesmo com a dimensão da mobilização já convocada pelos aliados bolsonaristas e pelo próprio presidente, o Supremo proibiu o acesso de caminhões à Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Num claro embate e desrespeito ao STF, o presidente Jair Bolsonaro autorizou a entrada dos caminhões, mas foi imediatamente desautorizado pelo governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Assim, Jair Bolsonaro não teve condições de usar sua capacidade de mobilização para desafiar o STF e acabou desautorizado por outras autoridades, como foi o caso do governador do Distrito Federal.

Em terceiro lugar, e ainda mais importante, vale ressaltar que, em 2021, vários setores das polícias militares, em especial a PM de São Paulo, corriam o risco de aderir, por meio de seus comandantes, às manifestações bolsonaristas. O então governador João Doria acabou demitindo o comandante da PM no interior de São Paulo, Aleksander Lacerda, que convocava abertamente a adesão às manifestações e atacava o ministro do STF, Alexandre de Moraes. Neste ano, não vislumbramos nenhum movimento nessa direção, e até mesmo as Forças Armadas dissuadiram o presidente em relação às suas intenções de militarizar as comemorações no Rio de Janeiro.

O ‘imbrochável’ não surtiu efeito

A série de monitoramentos feita pelo Observatório das Eleições durante toda a semana do 7 de Setembro – especialmente nos dias 6, 7 e 8 –, mostrou elementos importantes para confirmar essa incapacidade do bolsonarismo de desafiar as instituições nesta reta final de campanha em 2022. Ainda que mantenha um engajamento maior nas redes sociais, a demonstração de força por parte do bolsonarismo não se consolidou – no Facebook, por exemplo, os números de interações com publicações sobre a Independência foram menores em comparação com 2021, principalmente entre os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

A publicação no dia 7 com o discurso de Jair Bolsonaro alcançou apenas 1,5 milhão de visualizações – em 2021, a divulgação de um vídeo da página de Jair Bolsonaro com sua participação no desfile de Brasília rendeu mais de 8 milhões de visualizações; no Youtube, os vídeos mais visualizados foram aqueles com críticas ao comportamento e ao discurso do presidente.

Em termos de narrativas que surgiram e ganharam corpo após as comemorações do bicentenário da independência, tiveram destaque aquelas com tom crítico ao discurso do presidente – elas tiveram mais visualizações e engajamento; a questão do machismo surgiu com bastante força, e foi expressiva a presença de conteúdos negativos para a imagem de Jair Bolsonaro em escala nacional e internacional no Twitter. O engajamento dos usuários com tuítes se deu, essencialmente, com conteúdos publicados por opositores a Jair Bolsonaro, e além de menções negativas à postura presidencial, observou-se a utilização de tom humorístico e irônico nas publicações para abordar o assunto. Um dado importante: os tuítes com maior replicação (retuitados) no dia 7 foram de publicadores do jornalismo tradicional, ou seja, jornalistas, preferencialmente mulheres, e com tom crítico ao discurso do presidente.

A cena patética da demonstração pública de uma autoproclamada virilidade, quando o presidente da República puxa para si o coro de “imbrochável” não surtiu efeito nenhum na demonstração de força do presidente. Parece até que foi um tiro pela culatra que confirma a perda paulatina de vigor do bolsonarismo.

*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).

*Eliara Santana é jornalista, doutora em linguística e língua portuguesa pela PUC-Minas.

Será que é fascismo? por Silvio Almeida.

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Mussolini poderia ter sido contido; mas quem poderia não soube ou não quis fazê-lo

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 17/09/2022

O clima de violência política instalado no Brasil pelas palavras e ações do presidente/candidato Jair Bolsonaro e seus apoiadores tem suscitado o questionamento sobre se estamos ou não às portas do fascismo.

Esta questão não é nova: muita gente, mesmo antes das eleições de 2018, já chamava a atenção para o modo como o discurso de ódio, a defesa da gestão militarizada da vida social, a banalização da morte e o desprezo pelo sofrimento humano compunham o figurino do candidato que tornar-se-ia presidente do Brasil.

Frente à escalada da violência na reta final das eleições, mesmo quem antes negava os pendores fascistas do atual governo brasileiro tem refeito a pergunta: estamos realmente caminhando para o fascismo ou dizer isso é mero abuso retórico?

Se toda comparação histórica exige cuidados, parece-me que só a história é que nos pode auxiliar no deslinde de questões complexas. Portanto, se queremos saber se e como a lógica do fascismo é capaz de se manifestar para além das circunstâncias históricas de sua gestação —a Itália dos anos 1920—, devemos analisar o que foi o fascismo em sua origem.

Para tanto, retornei a um importante livro intitulado “Mussolini e a ascensão do Fascismo” (Editora Agir, 2009), de Donald Sassoon. Neste livro, o historiador descreve como os fascistas se apoderaram do Estado italiano fazendo uso da violência política e contando com a conivência de parte expressiva da sociedade.

Segundo o autor, nos seis primeiros meses de 1921, “os fascistas destruíram 119 Câmaras do Trabalho, 59 círculos culturais socialistas, 107 cooperativas, 83 escritórios das Ligas da Terra (associações de trabalhadores agrícolas), gráficas socialistas, bibliotecas públicas e sociedades de ajuda mútua, num total de 726”.

Entre fevereiro e maio de 1921 “dirigentes socialistas foram intimidados e espancados, e em certos casos assassinados; cooperativas socialistas e do trabalho e agências de emprego foram deixadas em ruínas”. Os “camisas negras” —como eram conhecidas as milícias fascistas— gozaram de ampla liberdade para realizar suas “expedições punitivas”, que tinham como alvo preferencial os “vermelhos”.

Além disso, “o apoio tácito ou declarado das polícias foi decisivo para o sucesso do fascismo”, conta-nos o autor.
Já a imprensa italiana, que nos anos seguintes seria censurada e perseguida, com raríssimas exceções, apenas oscilou entre “um vago desconforto” com o que considerava “excessos fascistas”, e uma “resignada aceitação do fato de que indivíduos truculentos tivessem de se desincumbir daquilo que as classes dominantes não queriam e não eram capazes de fazer”.

Quanto ao empresariado, Sassoon diz que após a Marcha sobre Roma, a maioria dos industriais “deu boas-vindas ao fascismo, assim como a maior parte do establishment liberal”. Não que todos pensassem da mesma forma, todavia, um fator foi decisivo para o silêncio eloquente ou o apoio declarado por parte do empresariado: a necessidade de achatar os salários diante da baixa produtividade italiana comparada aos concorrentes estrangeiros.

“Havia, bons motivos para se posicionar contra greves, sindicatos e socialistas, alinhando-se com aqueles que reprimiam greves, incendiavam as propriedades dos socialistas e consideravam como traidores os trabalhadores filiados a sindicatos”, diz Sassoon.

A recompensa por tão relevante apoio veio com a nomeação de Alberto De Stefani para o Ministério das Finanças, nas palavras de Sassoon, “um intransigente liberal”. De Stefani “reduziu impostos, aboliu isenções fiscais que beneficiavam contribuintes de baixa renda, facilitou as transações com ações e a evasão fiscal, […], eliminou a regulamentação dos aluguéis, privatizou os seguros de vida e transferiu a gestão do sistema de telefonia para o setor privado”. E nos 20 anos de fascismo não houve com o que se preocupar: os aumentos de salário foram contidos pelo governo.

O livro encerra com a lembrança de que, apesar de tudo parecer muito linear e inexorável, “não é assim que avança a história”. Para ele, Mussolini poderia ter sido derrotado, “mas aqueles [à época] capazes de bloquear a sua trajetória —os liberais, a esquerda, a Igreja, a monarquia— não souberam ou não quiseram fazê-lo, caminhando para 20 anos de ditadura como se tivessem os olhos vendados”.

Agora, volto ao Brasil e à pergunta inicial: é fascismo ou não?

Pragmatismo

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A economia vem passando por grandes transformações nas últimas décadas, com incremento da concorrência, investimentos crescentes em inovação, surgimento de novos modelos de negócios, oligopolização dos mercados, fragilização do mercado de trabalho, aumento das desigualdades sociais, conflitos entre nações e desesperanças crescentes, gerando novas relações entre os governos e os setores produtivos. Neste momento, muitas ideologias perderam espaço e o pragmatismo ganhou relevância na sociedade, norteando novas relações sociais e políticas entre os atores econômicos.

O mundo contemporâneo é muito mais complexo do que muitos economistas de mercado e de analistas neoliberais vislumbram, estes acreditam, ainda, na existência de conceitos ultrapassados como a concorrência perfeita e a mão invisível do mercado, pressupostos que perderam relevância e não auxiliam na compreensão dos grandes desafios do mundo global, centrados na competição, dos grandes oligopólios, das guerras comerciais e da integração entre Estados Nacionais e os mercados, buscando garantir novos espaços e novos modelos de negócios.

A sociedade do conhecimento prescinde da integração entre o mercado e o setor público, todas as nações que conseguiram se desenvolver, melhorando as condições de vida de suas populações, conseguindo acumular recursos e riquezas, melhorando a produtividade de seu capital humano, contaram com fortes investimentos públicos, recursos geopolíticos e diplomáticos estratégicos, bancos de desenvolvimento com taxas de juros atrativas, além de estímulos fiscais e financeiros para impulsionar a inovação e o espírito empreendedor, sem os recursos governamentais estratégicos, suas nações, hoje desenvolvidas, continuariam distantes do sonho do desenvolvimento econômico.

Muitos analistas do cenário internacional acreditam que estamos vivendo um novo modelo econômico, centrado no conhecimento, na ciência e na imaterialidade, levando os governos a investirem grandes recursos monetários e financeiros para garantirem o predomínio dos novos modelos de acumulação. Neste ambiente, percebemos conflitos crescentes nos mercados de semicondutores, os chamados chips, onde poucas nações conseguiram dominar este mercado altamente sofisticado, complexo e de grande rentabilidade. Nesta competição, percebemos países como os Estados Unidos, Taiwan, Coréia do Sul e China, além do Japão e Europa, concorrendo diretamente, dispendendo trilhões de dólares para garantir ganhos substanciais, além de seu poder geopolítico como forma de pressionar os competidores e angariar novas tecnologias.

Neste conflito, além de investirem trilhões de dólares de recursos para desenvolver novos produtos, os governos impedem a compra de empresas nacionais por grandes conglomerados externos, justificando suas decisões em interesses nacionais e estratégicos, além de atrair os melhores profissionais para desenvolver novas tecnologias, seduzindo seus melhores engenheiros com regalias imensuráveis e aportes gigantescos de recursos financeiros.
O mundo contemporâneo nos mostra um espaço de concorrência de grupos oligopolistas permeados pelo auxílio de seus respectivos governos nacionais, com isso, o sonho dos mercados autorregulados descritos pelos liberais nos parece um verdadeiro conto de fadas e, principalmente, muitos analistas acreditam neste conto de fadas moderno ou se vendem hipocritamente para aqueles que ganham com estas teorias ultrapassadas, mas garantem grandes ganhos monetários e financeiros.

Vivemos num mundo marcado por grandes transformações e grandes concorrências, o pragmatismo cresce de forma acelerada, os Estados Nacionais são essenciais como reguladores, fomentadores e planejadores, além de construtores de um ambiente institucional sólido e consistente, como fizeram as nações desenvolvidas, além de injetarem altas somas monetárias para alavancarem seu desenvolvimento econômico e tecnológico. O discurso liberal, utilizado pelas nações desenvolvidas, não se efetiva internamente. Enquanto muitos países em desenvolvimento estão privatizando setores estratégicos e desestruturando os preços internos, outras nações estão reestatizando empresas estratégicas. Novamente, duzentos anos depois, o Brasil caminha contra o gradiente…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/09/2022.

Robôs precisam se mover mais rápido para salvar o mundo, por Ruchir Sharma

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Os alarmistas dizem que a IA roubará empregos, mas as tendências demográficas subjacentes predizem a contínua escassez de trabalhadores

Ruchir Sharma – FINANCIAL TIMES

PUBLICADO FOLHA DE SÃO PAULO – 12/09/2022

Não muito tempo atrás, autores estavam produzindo livros terríveis sobre como “a ascensão dos robôs” levaria a “o futuro do desemprego”, em meio a previsões oficiais de que a metade de todos os empregos nos Estados Unidos estariam em risco com a automação, a partir de agora.

Relatórios recentes de empregos, entretanto, revelam uma ameaça diferente: não se os robôs substituirão o trabalho humano, mas se chegarão aqui rápido o suficiente para salvar a economia mundial da escassez de trabalhadores.

O desemprego mundial está em 4,5%, o menor desde que os registros globais começaram, em 1980. A escassez de mão de obra está em níveis históricos nas economias avançadas, incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos. Existem agora 11,2 milhões de vagas para 5,6 milhões de candidatos a empregos nos EUA, a maior lacuna desde a década de 1950. Milhões de trabalhadores que se demitiram durante a pandemia ainda não retornaram, aumentando o desespero dos patrões.

Essas pressões estão fervendo hoje em grande parte porque o crescimento da população em idade ativa –as pessoas entre 15 e 64 anos– começou a diminuir, enquanto a proporção de idosos aumenta. O envelhecimento acelerado é, por sua vez, um resultado atrasado de mudanças sociais que começaram décadas antes: as mulheres têm menos filhos e a ciência amplia a média de expectativa de vida.

A população em idade ativa está diminuindo em quase 40 países, incluindo a maioria das principais potências econômicas, contra apenas dois no início da década de 1980. Os EUA estão caindo menos precipitadamente do que a maioria, mas estão na mesma situação básica. Mais que qualquer outro fator, um número menor de trabalhadores garante um crescimento econômico mais lento, então a maioria dos países precisará de mais robôs apenas para manter

o crescimento vivo.
Os tecnopessimistas ainda tocam o alarme, dizendo que o espectro de robôs roubarem empregos e reduzirem salários ressurgirá à medida que a pandemia desaparecer e os demissionários retornarem ao trabalho, o que pode acontecer… ou não. De qualquer forma, as tendências demográficas subjacentes predizem escassez contínua.

Entre os países mais atingidos estão China, Japão, Alemanha e Coreia do Sul –todos devem ver a população em idade ativa cair pelo menos 400 mil por ano até 2030. Não por coincidência, esses países já abrigam altas concentrações de robôs e estão produzindo mais. As fábricas do Japão utilizam quase 400 robôs por 10.000 trabalhadores, contra 300 há apenas quatro anos.

A China, à sua maneira de cima para baixo, está subsidiando fortemente os fabricantes de robôs, com o objetivo de aumentar sua produção em 20% ao ano até 2030. Mesmo nesse ritmo, preveem analistas da Bernstein, os robôs não podem preencher todas as vagas na força de trabalho, que a China espera reduzir para 35 milhões de trabalhadores nos próximos três anos.

Os governos podem responder à escassez de mão de obra de outras maneiras –pagando bônus aos pais para terem mais filhos, incentivando as mulheres a entrar ou voltar ao mercado de trabalho, recebendo imigrantes ou aumentando a idade de aposentadoria. Mas todos esses passos desencadeiam a resistência humana, especialmente numa era populista raivosa.

Os robôs provocam uma reação diferente, um vago medo das máquinas e da inteligência artificial que ganha forma principalmente nos livros, raramente em protesto contra o roubo de empregos. Enquanto isso, os robôs chegam silenciosamente à doca de carregamento, sem contestação.

Como inovações anteriores, os robôs matam algumas profissões e criam outras. O motor a gasolina tornou obsoleto o condutor de charrete puxado por cavalos, mas gerou o motorista de táxi. Cerca de um terço dos empregos criados nos EUA estão em campos que não existiam ou quase não existiam 25 anos atrás. E um terço “vai mudar fundamentalmente nos próximos 15 a 20 anos”, segundo a OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. A tecnologia traz disrupção, não destruição seguida de nada –como implica o “futuro do desemprego”.

Cada robô pode substituir três ou mais trabalhadores fabris, o grupo mais atingido. Mas o grau de disrupção depende do ritmo da mudança, muitas vezes exagerado. Os analistas previam desde a década de 1950 que a IA completa chegaria em 20 anos, mas ainda não chegou. Alertas terríveis de que os veículos autônomos acabariam com um dos empregos mais comuns nos Estados Unidos –motorista de caminhão– deram lugar à escassez de caminhoneiros.

Agora, a recessão se aproxima, mas é improvável que o desemprego suba tanto quanto em crises anteriores, devido novamente à redução da força de trabalho. Menos trabalhadores deixarão o mercado de trabalho mais apertado do que o normal ao longo do ciclo de negócios, mesmo que os robôs continuem a se multiplicar.

Eles estão chegando na hora. Devido a uma queda inesperadamente acentuada nas taxas de natalidade, a ONU recentemente elevou sua previsão para o ritmo do declínio populacional, dos EUA à China. Leva anos para que os nascimentos afetem a força de trabalho, mas governos inteligentes agirão agora, atraindo mais mulheres, imigrantes, idosos e –sim– robôs para a força de trabalho. A outra opção é menos trabalhadores, automatizados ou não, e um futuro sem crescimento.

Saúde enfrenta doenças seculares, falta crônica de recursos e efeitos da pandemia, por Cláudia Collucci.

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Em 200 anos de Independência, Brasil avançou com criação do SUS, mas precisa melhorar condições sanitárias da população

Cláudia Collucci, Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós-graduada em gestão de saúde pela FGV. Está na Folha desde 1990 e, hoje, escreve sobre saúde.

Folha de São Paulo, 11/09/2022

[RESUMO] O Brasil chega a seus 200 anos como nação independente ainda lidando com doenças que remontam ao período colonial, muitas delas decorrentes de problemas sanitários e de qualidade de vida históricos, como falta de acesso à rede de esgoto e à água potável. Nas últimas três décadas, o SUS expandiu o atendimento básico e propiciou o aumento da expectativa de vida no país, mas seus avanços são limitados pelo subfinanciamento e pela ineficiência na gestão dos recursos.

O Brasil chega ao bicentenário de sua independência lidando com doenças infecciosas que remontam ao seu passado colonial, como a tuberculose, a sífilis e a varíola, agora em uma versão menos grave, aliadas a problemas ligados ao envelhecimento populacional, como o câncer e as doenças cardiovasculares, tudo isso somado à alta de transtornos mentais e a outras demandas geradas pela pandemia de Covid-19.

O país também enfrenta uma tensão crescente acerca das necessidades de financiamento e sustentabilidade do SUS (Sistema Único de Saúde), que atende a 75% da população e que, nos últimos 30 anos, contribuiu para a queda das taxas de mortalidade infantil e de óbitos por doenças transmissíveis e de causas evitáveis, que levaram a um aumento da expectativa de vida da população.

Desde a sua criação, na Constituição Federal de 1988, o sistema nunca teve recursos suficientes para fazer valer os preceitos que o regem: universalidade (direito de todos, sem discriminação), integralidade (prevenção, tratamento e reabilitação) e equidade (atendimento de acordo com as necessidades de cada paciente).

As consequências do subfinanciamento crônico e da ineficiência na gestão dos recursos são bem conhecidas e traduzidas em dificuldade de acesso, longas filas de espera para consultas e exames especializados, procedimentos e cirurgias, falta de medicamentos, entre outros.

A pandemia encontrou um SUS ainda mais depauperado com os efeitos do teto de gastos de 2016, que limita os gastos federais e tem impedido, na prática, o aumento de recursos para saúde e outras áreas sociais. A medida já retirou quase R$ 37 bilhões do sistema público entre 2018 e 2020.

Com a injeção de recursos extraordinários usados na ampliação de leitos de UTI, compra de equipamentos, contratação de pessoal, vacinação, entre outros, o sistema de saúde conseguiu enfrentar a maior crise sanitária da sua história, que causou mais de 683 mil mortes até o fim de agosto.

Ao mesmo tempo, as fragilidades ficaram expostas. “A pandemia mostrou que não temos política pública para enfrentar futuras epidemias que virão. Governos do Reino Unido e dos Estados Unidos já anunciaram propostas concretas para aumentar os gastos na saúde, mas, por aqui, não há nada ainda. Qual é o projeto de sistema adequado para que as pessoas tenham o mínimo de bem-estar social e não se sintam humilhadas quando precisam de atendimento?”, questiona a médica sanitarista Ligia Bahia, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Na última década, os gastos públicos em saúde se mantiveram estáveis, enquanto as famílias brasileiras passaram a gastar mais com planos de saúde, consultas e remédios.

Segundo o IBGE, entre 2010 e 2019, os gastos totais (públicos e privados) em saúde subiram de 8% para 9,6% do PIB. Porém, dos R$ 711,4 bilhões investidos em 2019, R$ 427,8 bilhões foram despesas privadas (5,8% do PIB). Os gastos do governo somaram R$ 283,6 bilhões (3,8%). Em 2010, a fatia das famílias correspondia a 4,4%, e a do governo, a 3,6%.

Na média, em países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os governos gastaram em 2019 o equivalente a 6,5% do PIB, e as famílias desembolsam só 2,3% do PIB. Os governos de Alemanha, França e Reino Unido investiram 9,9%, 9,3% e 8,0% do PIB, respectivamente.

Até a Constituição de 1988, quando a saúde pública passou a ser um direito de todos e dever do Estado, a área era de responsabilidade do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e destinada apenas aos trabalhadores com carteira assinada.

O restante das pessoas participava de programas específicos do Ministério da Saúde ou das secretarias estaduais, como o de vacinação, ou buscava ajuda em instituições filantrópicas, como as Santas Casas. “Vinha carimbado no prontuário ‘indigente’. Isso significava que todos os que trabalhavam na cidade sem carteira assinada e toda a população brasileira do campo não tinham direito a nada”, lembra o oncologista Drauzio Varella, colunista da Folha.

No final dos anos 1980, o Inamps entrou em declínio. Além dos inúmeros escândalos de corrupção, a arrecadação não cobria os gastos, e a conta não fechava. Ao mesmo tempo, existia uma pressão dos movimentos populares por uma reforma sanitária no país.

O artigo 198 da Constituição Federal estabeleceu que os recursos para financiar o SUS viriam do orçamento da seguridade social, entre outras fontes. “Quando a Constituinte permitiu a criação do SUS, colocou nas disposições transitórias que 30% do Fapas [Fundo de Previdência e Assistência Social] iriam para o SUS, mas, na primeira crise da Previdência, em 1992, os recursos deixaram de ir”, conta o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor de saúde pública da USP.

Em 1993, a receita de contribuições de empregados e empregadores, que representava um terço do orçamento do Ministério da Saúde, passou a financiar exclusivamente benefícios previdenciários, deixando a pasta da Saúde endividada para bancar despesas de custeio.

Em 1996, o cardiologista Adib Jatene, então ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), usou do seu prestígio para obter a aprovação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Mas, de novo, os novos recursos não chegaram à saúde, o que levou o médico a pedir demissão do cargo.

Durante a década de 1990, as verbas federais eram instáveis, e o setor dependia de medidas emergenciais e provisórias. A emenda constitucional 29, de 2000, foi criada estabelecer parâmetros do financiamento, mas só em 2012 uma lei complementar definiu que a União passaria a aplicar, anualmente, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB. Os estados e o Distrito Federal gastariam, no mínimo, 12% e os municípios, 15%.

Porém, os gastos federais em saúde estão em queda. Em 1991, a União contribuía com 73% do financiamento do SUS. Em 2019, entrou com 43%, segundo a Abres (Associação Brasileira de Economia da Saúde). Neste ano, o orçamento do Ministério da Saúde encolheu 20%, passando dos R$ 200,6 bilhões em 2021 para R$ 160,4 bilhões.

Para Ligia Bahia, da UFRJ, o setor econômico se divorciou definitivamente das políticas sociais e, neste ano de eleições presidenciais, são necessárias propostas concretas dos candidatos para o aumento dos gastos públicos em saúde. “Mas os recursos públicos precisam ser alocados na saúde pública.”

Na opinião do médico sanitarista Vecina Neto, da USP, o problema de financiamento não se resolverá nos próximos quatro anos, independentemente do resultado das eleições de outubro, mas é possível otimizar os atuais recursos redesenhando o modelo de gestão.

“Grande parte dos atendimentos fica a cargo de prefeituras que não têm capacidade administrativa para entregar todos os serviços de saúde, e às vezes, nem a atenção primária”, diz o cientista político Miguel Lago diretor do Ieps (Instituto de Estudos de Políticas de Saúde).

Na contramão de outros países, como a Espanha, que no passado descentralizaram os serviços de saúde em direção às comunidades autônomas (com autonomia legislativa e competência jurídicas próprias), o Brasil optou por um processo de descentralização político-administrativa voltado aos municípios.

Se, por um lado, isso possibilitou um SUS com capilaridade no país todo, por outro, dificultou o trabalho em rede. “A gente vê uma quantidade de prefeitos que são rivais entre si e que não têm motivação política para cooperarem”, observa o historiador da saúde Carlos Henrique Paiva, pesquisador do Observatório História e Saúde da Casa Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Além do prejuízo à assistência e de drenar os parcos recursos da saúde, a troca de gestores a cada eleição municipal leva à descontinuidade nas ações de prevenção e de controle de epidemias como de dengue, zika e chikungunya, afirma o historiador Luiz Antonio Teixeira, também pesquisador da Fiocruz.

No campo da assistência, alguns estados têm investido em consórcios regionais de saúde para melhorar a oferta de consultas médicas especializadas em áreas como cardiologia, endocrinologia, urologia, ortopedia e neurologia, um dos grandes gargalos do SUS.

A Bahia, por exemplo, criou 22 policlínicas, que atendem hoje 402 municípios —96% das cidades baianas. Os pacientes são deslocados de uma cidade a outra em microônibus e vans. O estado participa com 40% do custeio, e outros 60% são financiados pelos municípios consorciados.

Vecina Neto é um dos defensores da criação de regiões de saúde com base populacional como forma de melhorar a gestão dos recursos do SUS e da assistência. “Os recursos vão para um conjunto de municípios e estados para fazer a gestão conjunta e decidir onde investir”, diz. Para ele, parcerias público-privadas podem ajudar nesse processo.

“Precisamos de mais eficiência na capacidade de comprar, contratar e de criar escala. Não interessa quem faz, interessa o que faz e para quem faz. O estado tem fazer a fiscalização. Sem fiscalização, é natural que existam desvios.”

A expansão e a melhoria da qualidade da atenção primária à saúde —tendo como pilar a Estratégia Saúde da Família, conectada aos demais níveis de atenção, como ambulatórios de especialidades e hospitais— também são citadas como caminhos que o SUS deveria perseguir.

No entanto, há problemas ainda mais básicos a serem atacados, como as doenças ligadas às condições de vida da população. “As intervenções na tuberculose, sífilis e câncer de colo de útero continuam tão frágeis quanto no passado”, afirma o pesquisador Luiz Teixeira, da Fiocruz.

“Se não melhorar a nutrição e a moradia, não vai se reverter a tuberculose. Se não diminuir o machismo na sociedade, não tem como reduzir a sífilis congênita que está relacionada, principalmente, ao fato de os maridos [portadores da doença] não quererem transar com camisinha. Mulheres com menos estudo são as mais afetadas pelo câncer de colo de útero porque não fazem o Papanicolaou.”

Sem resolver a falta de saneamento básico, o país continuará reforçando as desigualdades na saúde, de acordo com o historiador André Mota, diretor do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP. Hoje, quase metade dos brasileiros vive sem acesso à rede de esgoto, e 16% não são atendidos pela rede de água. Um novo marco legal do setor estabeleceu que, até 2033, 99% da população tenha água potável e 90% desfrute de coleta e tratamento de esgoto.

Mota lembra que, há mais de um século, já se sabe que as condições de vida estão intrinsecamente ligadas à saúde da população, mas o país ainda patina nessa questão. “Quantas pessoas morreram de Covid por não terem água para lavar as mãos? A assepsia era uma questão nossa no século 19 e continua até hoje.”

Uma das razões, segundo ele, é o fato de o Brasil produzir tecnologias de ponta em saúde, mas elas não chegarem às populações de baixa renda. “Por que, na Cidade Tiradentes [zona leste de São Paulo], as pessoas morrem, em média, aos 58 anos e no Alto de Pinheiros [zona oeste], aos 80? Porque esse raio tecnológico não desce, não perpassa a vida do indivíduo como um direito.”

SUS É HERDEIRO DE EXPERIÊNCIAS DA ERA VARGAS
O SUS é herdeiro de várias experiências anteriores, principalmente as que ocorreram na Era Vargas, entre 1930 e 1945. Com a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública, em 1930, iniciou-se um período de transformações, especialmente na gestão de Gustavo Capanema (1934-1945). A estrutura de saúde passou a estar em todo o país, e uma rede de serviços começou a ser montada.

“A ideia central da reforma Capanema era a de que a saúde deveria ser organizada com base no território. Ou seja, a maneira como respondemos aos problemas de saúde tem que estar relacionada a questões demográficas e epidemiológicas locais. Parece óbvio hoje, mas foi fruto de aprendizado e um investimento imenso em ações nos anos 1930”, afirma o pesquisador Carlos Paiva, da Fiocruz.

Segundo ele, pela primeira vez a política de saúde passou a ser pensada em âmbito nacional, o que estava alinhado com o ideal de nação de Getúlio Vargas. Na prática, o território brasileiro foi dividido em grandes regiões e, em cada uma delas, havia uma autoridade de saúde (delegacias federais de saúde).

Dentro dessas regiões, existiam microrregiões, os distritos sanitários, com centros de saúde. “Digamos que ali estava um certo esboço da atenção primária que a gente tem hoje”, diz ele, coautor da obra “Atenção Primária: uma História Brasileira Recente”.

Também já exista a compreensão de que as instituições de saúde precisavam se articular e estar integradas, de que os problemas de saúde das pessoas são complexos e de que o percurso do usuário no sistema necessitava uma certa racionalidade. “A ideia era não deixar que as pessoas ficassem zanzando, procurando um local de atendimento. Era um problema dos anos 1930 e ainda hoje não foi todo resolvido”, afirma o pesquisador.

Também remonta ao governo Vargas a ideia de que as ações preventivas e curativas de saúde devessem estar integradas institucionalmente. Durante a ditadura militar (1964-1985), contudo, houve uma separação dessas ações. A partir de 1975, a medicina curativa ficou a cargo do Ministério da Previdência, e as ações de saúde pública permaneceram no Ministério da Saúde.

“Isso fortalece uma dualidade institucional na saúde brasileira. O Ministério da Previdência fica com muito mais recursos, e míngua o orçamento para as ações de prevenção”, afirma Luiz Teixeira, da Fiocruz.

As políticas de saúde dos tempos imperiais até o final da Primeira República (1930) priorizaram basicamente debelar as epidemias, como o cólera, a febre amarela e a peste bubônica. As questões sanitárias, agravadas com a urbanização das capitais e as condições de vida precárias, geravam surtos de infecções gastrointestinais e doenças transmissíveis como a sífilis e a tuberculose.

“A saúde era importante à medida que não atrapalhasse a economia. Só tinha orçamento se tivesse epidemia. As ações de saúde pública não tinham continuidade para evitar novos problemas”, diz Teixeira.
Nesse período, São Paulo construía um projeto de saúde à parte do resto do Brasil. Antes mesmo da Proclamação da República, oligarquias cafeeiras começaram a investir em ações para evitar que as epidemias afetassem a economia. Em 1891, por determinação constitucional, estados e municípios passaram a ser responsáveis pelos cuidados da saúde de suas populações.

“São Paulo acaba fazendo um código sanitário independente do Brasil. A fundação Instituto Butantan [em 1901] e a produção de soro antiofídico vêm a socorrer uma demanda gerada pela chegada dos imigrantes nas fazendas de café no interior, pelas picadas de cobras, aranhas, escorpiões”, afirma o historiador André Mota, da USP.

O Brasil entrou nos anos 1900 com as epidemias causando muitas mortes, especialmente de imigrantes. A cidade do Rio de Janeiro era conhecida na época como o túmulo dos estrangeiros.

Iniciou-se, no período, um processo de reorganização com uma meta ambiciosa de reverter a imagem da capital do país e transformá-la na “Paris dos trópicos”. Sob comando do engenheiro Francisco Pereira Passos, então prefeito do Rio, ruas foram alargadas e cortiços, demolidos. Os mais pobres acabaram expulsos para os extremos, formando as favelas.

O saneamento da cidade ficou a cargo do médico Oswaldo Cruz, que dirigia o Instituto Soroterápico Federal (hoje Fundação Oswaldo Cruz). Em 1903, ele assumiu também a diretoria-geral de Saúde Pública com a meta de enfrentar as doenças epidêmicas, especialmente a febre amarela, a peste bubônica e a varíola.

As campanhas sanitárias ganharam um caráter militar, e, em 1904, foi aprovada a Lei da Vacinação Obrigatória, desencadeando uma grande manifestação popular que ficou conhecida como a Revolta da Vacina.

Para muitos, a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola infringia o direito à privacidade e à autodeterminação, discursos muito parecidos aos atuais negacionistas da vacina contra a Covid-19. No fim, depois de muita briga, Oswaldo Cruz recebeu várias homenagens no exterior e se tornou herói nacional.

Banda ogra do agronegócio sustenta cruzada antiamazônia, por Marcelo Leite.

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No supermercado e na urna, você decide futuro das florestas tropicais

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo).

Folha de São Paulo, 11/09/2022.

Viajantes no interior dos estados americanos de Washington, Oregon e Califórnia, neste fim de verão, não se preocupam com a previsão do tempo —a possibilidade de chuva é quase zero. Ficam é de olho nos registros de fogo, pois duas dúzias de incêndios florestais se propagam pelas florestas temperadas de coníferas.

Diferentemente do Brasil e de outros países com florestas tropicais, nesse caso a responsabilidade direta da atividade agrícola pelas chamas é desprezível. O ressecamento da mata e os ventos que as insuflam se agravam com o aquecimento global, do qual todos somos culpados, a começar pelo diesel dos descomunais SUVs dos turistas
americanos e os trailers que arrastam.

Outros 500, no Brasil, são as queimadas intimamente ligadas ao desmatamento, em particular na Amazônia. Aqui, a banda ogra do agronegócio está por trás dos atuais recordes de fogo e fumaça que tornam o uso da terra em maior fonte nacional de gases do efeito estufa.

Os mais de 33 mil focos de incêndio registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) no Brasil em agosto, grande parte na Amazônia, representaram avanço de 7% sobre o mesmo mês do ano passado. A área calcinada ultrapassou 24 mil km2, com crescimento de 30% sobre 2021, ficando atrás só de 2010, ano de seca ímpar, e 2019, primeiro ano de Bolsonaro.

Queimadas não são sinônimo de desmatamento recente, embora sempre ligadas a derrubadas anteriores. Usa-se fogo também para limpar pastos (que um dia foram florestas) e queimar detritos acumulados noutras temporadas. Incêndio florestais como os do noroeste dos EUA não ocorrem na Amazônia, uma floresta úmida.

Com a dinâmica presente de desmatamento na região, contudo, não se descarta que a floresta amazônica caminhe nessa direção. Quase 20% da cobertura do bioma já sofreu corte raso, e talvez outro tanto tenha sido degradado pelo garimpo localizado e pela retirada seletiva de madeira e suas estradas clandestinas.

Prevê-se que o contínuo ressecamento por essas atividades e anos de pouca precipitação com a mudança global do clima possa deflagrar um colapso do ecossistema conhecido como “dieback”. Alcançando 25% de devastação, a mata reverteria para algo parecido com uma savana, bem mais inflamável.

Quanto dessa espiral destrutiva da floresta tropical pode e deve ser atribuída à atividade agrícola? Não é tarefa trivial determinar a responsabilidade, como discute alentado artigo de revisão publicado sexta-feira (9) no periódico Science.

Na penca de autores da equipe está Tasso Azevedo, líder no Brasil da iniciativa MapBiomas. O trabalho colaborativo põe em dúvida uma cifra muito citada na literatura científica, além de organismos internacionais e ONGs: 80% do desmatamento de florestas tropicais no mundo resultaria da atividade agrícola.

O artigo conclui que um número mais provável ficaria entre 90% e 99%. Nem toda área derrubada se converte de imediato em campos cultivados com grãos, verdade, mas o agronegócio não está dissociado do desmatamento especulativo, por exemplo, como bem demonstra a grilagem com abertura de pastos no Brasil.

Essa influência indireta do agronegócio na devastação das florestas tropicais decerto complica a tarefa de combatê-la. Muito esforço se dedica, no cenário internacional, a restringir o comércio de commodities ligadas a desmatamento, mas o trabalho na Science questiona a eficácia desse foco exclusivo, ainda que sem negar a importância de tais barreiras.

Boa parte dos grãos, da carne e da madeira oriundos de desmatamento, afinal, se destina a mercados domésticos, não exportação. É fogo: pense nisso na próxima vez que for ao supermercado e, dentro de três semanas, ao votar.

Duzentos anos

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O Brasil está comemorando os 200 anos de independência, um momento de reflexões, momentos de repensarmos as políticas adotadas neste período, melhorando aquelas que contribuíram para as melhorias sociais, incrementando as condições de vida e que reascenderam as nossas esperanças, consolidando avanços fundamentais. Ao analisarmos as políticas adotadas, é fundamental, extinguirmos aquelas que não trouxeram os avanços esperados, reestruturando algumas e abolindo por completa aquelas que geraram resultados equivocados e beneficiaram apenas poucos grupos privilegiados.

Neste momento de tantas transformações na sociedade contemporânea, onde o desenvolvimento da tecnologia aproxima os indivíduos e, ao mesmo tempo, contribuem ativamente para distanciar as pessoas, aumentando os medos, incrementando as ansiedades e as incertezas que crescem aceleradamente. O mundo contemporâneo evoluiu no âmbito da tecnologia, garantiu mais riquezas e contribuiu para construir novos instrumentos de desenvolvimentos sociais, mas ao mesmo tempo, gerou mais incertezas, instabilidades, individualismo e imediatismo.

Depois de duzentos anos, muitas foram as transformações, algumas positivas e outras nem tanto, saímos de uma sociedade altamente dependente dos mercados internacionais, uma sociedade extremamente desigual, onde uma parte substancial da população vivia em péssimas condições de vida, alijados de seus direitos fundamentais, sem escolas, sem assistência médica, sem dignidade e sem esperanças. Em plena reconfiguração do capitalismo internacional, o Brasil era um país exportador de produtos primários de baixo valor agregado, onde uma grande parte da sociedade sobrevivia sem condições dignas e uma pequena parte concentrava privilégios elevados, ganhos estratosféricos baseado na exploração escrava e em salários escorchantes, criando uma sociedade dual, uma parte ambicionando a vida dos grandes endinheirados europeus e outra parte vivendo de exploração, sem empregos decentes e vistos com desconfiança crescente, gerando rancores e ressentimentos travestidos de convivência cordial.

Depois de duzentos anos de independência, encontramos uma reconfiguração das elites dominantes, antes os grandes donos do poder eram os cafeicultores, a elite rural, depois vieram os industriais e agora os grandes financistas, todos eles se caracterizam como predadores do Estado Nacional, usam seus poderes políticos e seus recursos financeiros para angariar mais controles sociais, perpetuando seus ganhos monetários, seus subsídios elevados, suas isenções fiscais e tributárias, inviabilizando os projetos nacionais autônomos e garantindo a condição de sócios menores dos grandes detentores das riquezas internacionais.

Depois de duzentos anos de independência a democracia ganhou mais relevância, se transformou em um projeto nacional visando a melhoria das condições de vida da comunidade, incrementando o crescimento econômico, garantindo mais espaços de direitos sociais e políticos, mas não conseguiram abarcar a grande parte da população, criando espaços de contestações crescentes, inviabilizando direitos de inúmeros grupos, negando cidadania para muitas classes sociais e criando tensões urgentes que inviabilizam a tão chamada democracia. Ao analisarmos estes duzentos anos de independência brasileira, onde fomos os últimos países a acabar com a escravidão e ao refletirmos sobre os indicadores sociais, econômicos e políticos degradantes para os negros, os indígenas e minorias, percebemos que não entendemos nada, infelizmente, da verdadeira história nacional.

A tecnologia cresce na sociedade contemporânea prescindindo de novos padrões de acumulação econômica e de convivência democrática, deixando de lado esta visão dominante, centrada no imediatismo, no individualismo, no consumismo, no hedonismo e nos ganhos materiais em detrimento dos valores mais consistentes, do respeito aos seres humanos, valorizando o compartilhar, o cooperar e a solidariedade.
Duzentos anos depois, os desafios são elevados e exigem uma coletividade que ultrapasse os interesses do capital, deixando o ser humano e a solidariedade no centro das discussões. Só assim, que venha mais duzentos anos…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/09/2022.

“Bicentenário da Independência chega sem projeto de nação”, diz historiador

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José Murilo de Carvalho fala sobre como os brasileiros destruíram seu paraíso terrestre e a urgência de mudanças

Wilson Tosta – O Estado de São Paulo, 04/09/2022

O Brasil celebra 200 anos de vida independente em 2022 sem projeto de nação e longe da grandeza anunciada em 1500 pela natureza exuberante e sonhada no século 19 pelos que lutaram por sua Independência. A constatação é do historiador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) José Murilo de Carvalho, que avalia com desânimo o panorama nacional hoje. Para ele, os brasileiros destruíram o seu paraíso terrestre. Poluíram ares, águas e praias e levam às terras, inclusive a Amazônia, à desertificação, sob o impulso do desmatamento e da mineração predatória.
“O sonho de grandeza desvaneceu, não se transformou em política de Estado a ser implementada independentemente da mudança de governo, afirma, em entrevista ao Estadão. “Vamos levando sem termos um projeto (de nação), um fim a atingir, algo como o Manifest Destiny (Manifesto do Destino) dos norte-americanos.”

O historiador diz que o Brasil é um “país sem revolução”, no qual ocorreram movimentos apenas de “ajuste” entre as elites. Foi assim, considera, na Proclamação da República, para permitir a entrada dos cafeicultores na política; na Revolução de 1930, para quebrar o monopólio das oligarquias rurais; no golpe de 1964, para conter o trabalhismo criado por Getúlio Vargas. As elites brasileiras, afirma, desde o Império, tiveram enorme capacidade de se reproduzir e, em conluio, barram as medidas que envolvam redistribuição de renda no Brasil.

“O Leopardo de Lampedusa concordaria: é preciso mudar para que nada mude”, diz. Ele se refere ao romance Il Gattopardo, do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1857), sobre a decadência da nobreza siciliana durante o Risorgimento, movimento que buscou a reunificação italiana no século 19. A frase (“É preciso mudar para que tudo permaneça como está”) é de um personagem do livro, o príncipe de Falconeri.

O acadêmico avalia que o conservadorismo brasileiro é basicamente cultural, moral e de família, gênero e religião, não político, como “provavelmente as urnas” mostrarão, diz. O campo político, diz, é da elite econômica e financeira. O pesquisador afirma que os brasileiros deveriam seguir os chineses, que pensam seu país “para trás e para frente”.

“O que será do País quando completarmos 250 anos de independência?”, pergunta. Para ele, “com a história que temos, com a magra herança desses 200 anos, não é fácil prever o que podemos esperar.” A seguir, a entrevista do historiador ao Estadão.

O que os brasileiros têm a celebrar nos 200 anos da Independência do País?
Américo Vespúcio via nestas terras o paraíso terreal, no que foi seguido por outros cronistas coloniais. Às vésperas da Independência, José Bonifácio disse que voltara de Portugal para ajudar a fundar aqui um grande império. Na metade do século 19, Gonçalves Dias exaltou nossas riquezas e belezas em versos que cantamos no Hino Nacional. Em 1900, celebrando os 400 anos da chegada dos portugueses, o conde Afonso Celso escreveu Porque me Ufano de meu País. Os governos militares falaram em construir aqui uma grande potência.

E o que têm a lamentar?

A grandeza não passou de sonhos. Destruímos nosso paraíso terrestre. Nossos ares, nossas águas, nossas praias estão poluídas, nossas matas, destruídas, nossas terras, em perigo de desertificação, a Amazônia, ameaçada pelo desmatamento e pela mineração predatória. A grande população indígena da época da chegada dos colonizadores foi quase toda extinta. Grande parte da população ainda sofre as marcas da escravidão. O sonho de grandeza desvaneceu, não se transformou em política de Estado a ser implementada independentemente da mudança de governo.

A herança colonial lusitana ainda pesa ou os maiores culpados por nossos problemas somos nós mesmos?

Nenhum país pode ignorar seu passado porque ele sempre deixa vestígios mais ou menos fortes. Em nosso caso, não há como ignorar a colonização portuguesa, a quase extinção da população nativa, a introdução de milhões de escravos trazidos da África, o desenvolvimento de uma economia agrária de exportação dominada por latifundiários, o forte papel de um Estado absolutista, o monopólio religioso do catolicismo. É uma herança pesada. É certo que os 200 anos testemunharam grandes mudanças. Os poucos milhões de portugueses, indígenas e africanos se transformaram em mais de 215 milhões de brancos, pardos e negros e imigrantes europeus, asiáticos e do Oriente Médio. Tornamo-nos um dos mais populosos países do mundo e uma de suas maiores economias. Mas, ao mesmo tempo, montamos um sistema de dominação política que excluiu a participação popular por mais de 100 anos. O povo só entrou em nossa vida política na década de 1930 e teve as tentativas de participação frustradas por duas ditaduras. Temos hoje uma democracia em que o povo político, embora possa votar, não orienta a política e boa parte dele se torna, pela pobreza, imensa clientela vítima de políticas populistas. Patrimonialismo, paternalismo, elitismo, estatismo têm raízes profundas e ainda dificultam a construção de uma sólida república democrática.

O escravismo colonial e o racismo ainda moldam a sociedade brasileira, como no passado?

A escravidão deixou marcas profundas que se manifestam ainda hoje em preconceitos, discriminações, exclusões. Só recentemente, com a adoção de políticas afirmativas de inclusão, como o sistema de cotas no acesso ao ensino superior, a situação está sendo combatida, e uma nação mais inclusiva se esteja construindo. Por muito tempo, a negação oficial da existência de discriminação racial e a imagem do convívio fraterno de três raças causaram um mal enorme, ao camuflarem o preconceito e a exclusão.

Por que o Brasil parece tão resistente a mudanças, apesar da brutal desigualdade social brasileira?

São perguntas de um milhão de dólares. As elites brasileiras desde o Império tiveram enorme capacidade de se autorreproduzir. No Império, sob as asas do Poder Moderador, na Primeira República com a política dos Estados – renovando-se na década de 1930 –, mais tarde apoiando golpes. Façamos a revolução antes que o povo a faça, disse Antônio Carlos em 1930. O Leopardo de Lampedusa concordaria: é preciso mudar para que nada mude. Basta um exemplo: milhões de pobres votam. No entanto, os eleitos por eles, boa parte dos congressistas, no máximo dedicam-se a práticas clientelistas e populistas, sem promover reformas estruturais em favor da redução da desigualdade. Não representam os interesses de milhões de eleitores que neles votaram. A representação, vale dizer, a democracia, não funciona. A insensibilidade à desigualdade é marca de nossas elites. Veja-se o exemplo do Judiciário que abriga os marajás da República. Em meio à dura crise causada pela covid, vemos o STF reivindicar aumento salarial de 18% para toda a magistratura. Os juízes do STF que ganham R$ 39,2 mil, fora os penduricalhos, passariam a ganhar R$ 46 mil.

Isto num país onde o salário mínimo é de R$ 1.212. É uma indecência que retrata a cara de nossa elite.

Quem resiste mais a mudanças no Brasil? A elite econômica, a classe média?

O topo dos negócios, da política e da burocracia estatal em conluio. Entre si conseguem barrar todas as medidas que envolvam redistribuição de renda.

Em quais episódios históricos o Brasil mudou para conservar tudo como estava, como na assertiva de O Leopardo de Lampedusa?

O Brasil é um país sem revolução. Alguns movimentos foram de reajuste, rearrumação do andar de cima. Alguns exemplos: a Proclamação da República, para entrar os cafeicultores; a chamada Revolução de 1930, para romper o monopólio das oligarquias rurais; o golpe de 1964, para conter o trabalhismo getulista.

Ao fazer 200 anos, o Brasil tem um governo que se diz conservador. Os conservadores venceram no Brasil?
Diria que uma boa parte de nosso conservadorismo é de natureza cultural, tem a ver com valores relativos à moral, família, gênero, religião. Prova disso é o rápido avanço dos evangélicos. Politicamente, não vejo uma predominância conservadora, como provavelmente as urnas irão mostrar. O conservadorismo político talvez seja mais de setores da elite, sobretudo da elite econômica e financeira.

O governo Bolsonaro é continuidade ou rompimento com a tradição brasileira de governos?

De 1930, quando começou a entrar povo na política, a 1985, fim da ditadura, foram quase 36 anos de governo autoritário contra 19 de democracia. Qual seria, então, a tradição brasileira? Seriam os 37 anos de 1985 a 2022? É pouco para formar tradição. A consolidação de uma cultura política democrática exige mais tempo. Daí a importância de uma vitória democrática nas próximas eleições. Enquanto não houver consolidação da democracia, permaneceremos sob a tutela das Forças Armadas.

Como o senhor avalia as ameaças autoritárias que o presidente tem feito justamente neste ano, dos 200 anos de independência do Brasil? Há algo de simbólico nisso?

Simbólico de quê? A Independência foi uma libertação e teve envolvimento popular. A não ser que se esteja referindo ao fechamento da Assembleia Constituinte em 1823, nosso primeiro golpe político.

O que explica a nossa irrelevância nas relações internacionais?

Temos também um corpo diplomático respeitado internacionalmente. Uma explicação para isso talvez seja o fato de não termos um projeto de nação. Vamos levando sem termos um projeto, um fim a atingir, algo como o Manifest Destiny dos norte-americanos. Por um tempo, pensou-se que deveríamos construir um soft power, participando de missões internacionais de paz. Não foi adiante.

O nosso “complexo de vira-lata”, apontado por Nelson Rodrigues, ajuda nessa irrelevância? Não temos importância porque não nos damos importância?

Volto ao projeto de nação. Há 200 anos tínhamos um projeto de nação: construir um grande império com base em nosso tamanho, em nossas riquezas, na pujança e beleza de nossa natureza. Faltava apenas população. Veio a população, uma das maiores do mundo, e não dissemos a que viemos. Nem a liderança da América Ibérica conseguimos exercer.

Nunca vi nada nada parecido com atual momento, diz decano do direito constitucional

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José Afonso da Silva recebeu homenagem especial em ato pela democracia do dia 11 de agosto

UIRÁ MACHADO, FOLHA DE SÃO PAULO, 04/09/2022

SÃO PAULO

José Afonso da Silva não escondeu a emoção quando recebeu uma homenagem especial durante o ato pela democracia do dia 11 de agosto, realizado na mesma Faculdades de Direito da USP em que se formou em 1957 e onde deu aulas até 1995.

Há muito tempo considerado um dos juristas mais importantes do país, ele se destacou entre as poucas pessoas que assinaram a “Cartas aos Brasileiras” de 1977 e a “Carta às Brasileira e aos Brasileiros” deste ano: era o mais velho do grupo, com 97 anos de idade.

Com a autoridade de quem já viveu quase um século, ele olha para o passado e diz: “Não testemunhei nada parecido com o momento atual, a não ser certos aspectos da personalidade histriônica e autoritária de Jânio Quadros, que
também quis dar o golpe”.

Jânio presidiu o Brasil em 1961; o atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL), proferiu tantas ameaças ao Estado de Direito que o manifesto lido no dia 11 somou mais de 1 milhão de assinaturas.

Nesta entrevista à Folha, concedida por email, Silva se manifesta sobre alguns dos debates jurídicos repisados por Bolsonaro e seus apoiadores, como o suposto respaldo da Constituição a uma intervenção militar e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à pandemia.

Professor aposentado da USP, ele é apontado como doutrinador mais citado no STF e escreveu livros influentes na área do direito constitucional, além de ter sido assessor da Assembleia Constituinte de 1987.

Como o senhor se sentiu sendo homenageado no ato de 11 de agosto? Foi uma surpresa, e me senti profundamente honrado, com uma homenagem durante um evento da magnitude do que estava ocorrendo na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por onde me formei e onde fui professor titular. E mais, imediatamente o público se ergueu em palmas por muito tempo, acolhendo com entusiasmo as generosas palavras do diretor Celso Campilongo, a quem sou muito grato.

Eu já estava emocionado naquele ambiente, lembrando de meu pai sentado lá em cima na ponta do balcão, orgulhoso do seu filho alfaiate se formando em direito na melhor faculdade do país. Foi muito emocionante, mais ainda quando milha filha veio a mim, chorando de emoção, e, depois, José Carlos Dias veio e me abraçou carinhosamente. As lágrimas vieram à tona. Haja coração!

O sr. é testemunha de quase um século de história do Brasil. O momento político atual é comparável com algum outro que o senhor tenha vivido? Eu nasci bem no meio da década de 1920, quando a República oligarca sofria seus abalos mais fortes com o aparecimento de camadas médias urbanas, que foram abrindo campo ao surgimento de movimentos contrários às oligarquias, com destaque para o tenentismo.

Eram os tenentes das Forças Armadas, especialmente do Exército, que se imbuíram da ideia de que, como militares, eram responsáveis pela sociedade e representantes dos interesses gerais da nação, e por isso lhes cabia a missão de intervir no processo do poder e exigir mudanças nos costumes políticos. Uma tese certamente inaceitável. Mas ali era o sertão de Minas, aonde essas coisas não chegavam.

Só quando vim para São Paulo, aos 22 anos de idade (em 1947), é que pude acompanhar a vida política, já sob o regime da Constituição de 1946, regime muito conflituoso, sobretudo depois que o brigadeiro Eduardo Gomes perdeu a eleição para o Getúlio Vargas (em 1950), quando a UDN, convencida de que não chegaria ao poder pelo voto, e já sob a liderança de Carlos Lacerda, se transformou num partido golpista aliado a alguns militares.

Mas veja a diferença. Não era o presidente da República que fomentava o golpe, era a oposição buscando o poder pela deposição do presidente. Como se vê por esse pequeno apanhado histórico, não testemunhei nada parecido com o momento atual, a não ser certos aspectos da personalidade histriônica e autoritária do presidente Jânio Quadros, que também quis dar o golpe.

Nos últimos anos, têm sido comuns discussões sobre o artigo 142 da Constituição. Segundo uma interpretação, esse dispositivo dá respaldo a uma intervenção militar no Brasil. Faz sentido? Essa interpretação não é correta. Nada no artigo 142 a autoriza. Esse artigo confere às Forças Armadas a função essencial de defesa da pátria e a garantia dos Poderes constitucionais; vale dizer, defesa contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos Poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição, emanam do povo. Mas isso não implica intervir em seu funcionamento.

Outra função é subsidiária e eventual, de defesa da lei e da ordem. Subsidiária porque essa função é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a Polícia Federal e as Polícias Civil e Militar dos estados e do Distrito Federal.

E sua interferência aí, além do mais, depende de convocação dos legítimos representantes de qualquer dos Poderes federais: presidente da mesa do Congresso Nacional, presidente da República ou presidente do Supremo Tribunal Federal.

Outra visão incabível, que andou circulando por aí, é aquela que concebe as Forças Armadas como “poder moderador”. Mas como é possível essa concepção, se as Forças Armadas são definidas no artigo 142 como instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República e essencialmente obediente?

Poder moderador é poder independente em face dos demais poderes, e, para tanto, não pode ser obediente nem sujeito
a autoridade de qualquer deles.

O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores criticam o que eles chamam de ditadura do Judiciário, sobretudo devido à atuação do STF. O sr. considera que o Supremo tem extrapolado suas funções? Há dois aspectos a considerar: o daqueles que acusam o STF de ativismo judicial e essas reclamações do presidente Bolsonaro.

A questão do ativismo judicial está relacionada com a função interpretativa dos tribunais. Há um debate já antigo sobre isso, ou seja, sobre quão criativa pode ou deve ser a interpretação feita pelos tribunais. Por isso, a conclusão sobre quão ativista é o STF varia conforme a concepção que cada um tem sobre os limites da interpretação judicial. Esse é o debate legítimo.

As reclamações do presidente se prendem a algo menos comum, que são os inquéritos promovidos pelo ministro Alexandre de Moraes. Mas inusitados também são os fatos que têm dado ensejo a esses procedimentos.

Ocorreram os fatos e a inércia do Ministério Público; o STF e seus ministros, como vítimas, foram buscar no seu Regimento Interno norma que os socorressem, talvez, como alguns especialistas entendem, numa interpretação bastante elástica. Cabe ao plenário do tribunal corrigir, se houver exagero.

No caso do combate à pandemia, o STF acertou ao decidir pela competência conjunta? Sim. É simples. A Constituição diz que cuidar da saúde é de competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Declara que a saúde é direito de todos e dever do Estado, isto é, dever daqueles entes federativos que têm que cuidar da saúde, e esse direito é garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.

O isolamento social é um modo de realizar essa política social; competência que é cumprida mediante a execução das ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, integrados no SUS, financiado com recursos orçamentários daqueles entes federativos. Competência comum significa que todos os entes competentes podem executar tudo que é previsto nas competências.

Mas, para evitar superposição de ações, o artigo 198 da Constituição estabeleceu que as ações e serviços públicos da saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com diretrizes ali indicadas, que é o SUS.

Veja que são os estados e municípios que executam as ações e serviços de saúde. Eles é que criam e mantêm hospitais, postos de saúde e outros serviços para o povo. A União não o faz. O SUS confere à União a coordenação e as diretrizes gerais, entre outras ações de caráter geral. Ela o faz por meio do Ministério da Saúde, o que não ocorreu.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, recebeu inúmeros pedidos de impeachment de Bolsonaro, mas não deu sequência a nenhum. Faz sentido o presidente da Câmara ter esse poder? É um poder extraordinário, absoluto e abusivo, incompatível com os princípios democráticos, em prejuízo da oposição. Há que se buscar meios de corrigir essa anomalia.

Segundo algumas pessoas, o procurador-geral da República, Augusto Aras, tem uma postura pouco combativa ou até mesmo omissa em relação a supostos crimes do presidente da República. À luz da Constituição, qual sua avaliação sobre a atuação dele? Não há o que estranhar. Ele foi escolhido fora da lista tríplice organizada pela classe para isso mesmo: fazer o que interessa à autoridade nomeante: o presidente da República.

À luz da Constituição, isso não é para acontecer. Pois o Ministério Público foi institucionalizado para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis com independência e autonomia funcional, em face de quem comete crime, seja quem for.

E se as ações criminais contra o presidente da República devem ser propostas pelo procurador-geral da República e ele não o faz, está se omitindo e prevaricando.

Nos anos 1990, o sr. foi secretário de Segurança de São Paulo e criou mecanismos para reduzir mortes provocadas por policiais. Mais de 20 anos depois, temos inúmeras notícias de ações letais por parte da polícia, entre as quais se incluem chacinas. Por que o Brasil não consegue avançar em relação a isso? É verdade. No primeiro mês de minha gestão, a Polícia Militar matou 30 pessoas. No segundo, fevereiro, matou 29. Chamei o comandante-geral e lhe disse para tirar da rua os policiais que cometiam essas mortes. Ele tirou 200. Em março, mais de 30 mortes.

Então, estabeleci que os policiais que matassem fossem recolhidos para prestar serviços no centro da cidade, mediante acompanhamento psicológico. No mês seguinte, o número de mortes caiu substancialmente, e assim foi durante minha gestão, sem prejuízo da eficiência dos serviços policiais.

Respondo: o Brasil não consegue avançar em relação a isso por falta de vontade política.

José Afonso da Silva, 97
Professor aposentado da USP, é autor de livros como “Curso de Direito Constitucional Positivo” (JusPodivm/Malheiros), que está na 44ª edição, e “Aplicabilidade das Normas Constitucionais” (Malheiros). Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mario Covas, então líder do PMDB. Foi secretário da Segurança Pública de São Paulo de 1995 a 1999.