Sachs: Ocidente brinca com o perigo nuclear

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Há hipocrisia e supremacismo nos ataques contra a Rússia e a China, reconhece economista liberal. EUA manipulam opinião pública, omitem suas agressões e expõem mundo à guerra total – para manter a todo custo condição hegemônica

Por Jeffrey D. Sachs, no Other News | Tradução: Maurício Ayer

OUTRAS PALAVRAS – 23/08/2022

O mundo está à beira de uma catástrofe nuclear em grande parte por causa do fracasso dos líderes políticos ocidentais em serem honestos a respeito das causas da escalada dos conflitos globais. A incansável narrativa ocidental de que o Ocidente é nobre, enquanto Rússia e China são malévolas, é não apenas simplória como extraordinariamente perigosa. É uma tentativa de manipular a opinião pública para não encarar uma tarefa diplomática bastante real e urgente.

A narrativa essencial do Ocidente está embutida na estratégia de segurança dos EUA. A ideia central dos EUA é que a China e a Rússia são oponentes implacáveis que “tentam carcomer a segurança e a prosperidade norte-americanas”. De acordo com os EUA, esses países estão “determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, aumentar seu poderio militar e controlar informações e dados para reprimir suas sociedades e expandir sua influência”.

A ironia é que desde 1980 os EUA escolheram entrar em pelo menos 15 guerras contra outros países (Afeganistão, Iraque, Líbia, Panamá, Sérvia, Síria e Iêmen, para citar apenas alguns), enquanto a China não esteve em nenhuma e a Rússia apenas em uma (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética. Os EUA têm bases militares em 85 países, a China em três e a Rússia em um (Síria) fora dos limites da antiga União Soviética.

O presidente Joe Biden promoveu essa narrativa, declarando que o maior desafio do nosso tempo é competir com as autocracias, que “procuram fazer avançar seu próprio poder, exportar e expandir sua influência ao redor do mundo e justificar suas políticas e práticas repressivas como uma maneira mais eficiente de enfrentar os desafios de hoje”.

A estratégia de segurança dos EUA não é obra de um único presidente, mas da burocracia de segurança dos EUA, que é amplamente autônoma e opera por trás de um muro de sigilo.

O medo exagerado em relação à China e à Rússia é vendido ao público ocidental por meio da manipulação dos fatos. Uma geração antes, George W. Bush Jr. vendeu ao público a ideia de que a maior ameaça contra os Estados Unidos era o fundamentalismo islâmico, sem mencionar que foi a CIA, com a Arábia Saudita e outros países, que criou, financiou e mobilizou os jihadistas no Afeganistão, Síria e outros lugares para lutar nas guerras ao lado dos Estados Unidos.

Ou considere a invasão do Afeganistão pela União Soviética em 1980, que foi retratada na mídia ocidental como um ato de perfídia não provocado. Anos depois, soubemos que a invasão soviética foi na verdade precedida por uma operação da CIA destinada a provocar a invasão soviética. A mesma desinformação ocorreu em relação à Síria. A imprensa ocidental está cheia de recriminações contra a assistência militar de Putin a Bashar al-Assad da Síria a partir de 2015, sem mencionar que os EUA apoiaram a derrubada de al-Assad a partir de 2011, com a CIA financiando uma grande operação (Timber Sycamore) para derrubar o governante anos antes da chegada da Rússia.

Ou, mais recentemente, quando a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan de forma totalmente irresponsável, desrespeitando as advertências da China — e nenhum ministro de Relações Exteriores do G7 criticou a provocação, mas os mesmos ministros criticaram duramente a “exagerada reação” da China à viagem de Pelosi.

A narrativa ocidental sobre a guerra na Ucrânia é de que se trata de um ataque não provocado de Putin na busca de recriar o império russo. No entanto, a história real começa com a promessa ocidental ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a OTAN não avançaria para o Leste, seguida por quatro ondas de expansão da OTAN: em 1999, incorporando três países da Europa Central; em 2004, incorporando mais sete, inclusive no Mar Negro e nos Estados Bálticos; em 2008, comprometendo-se a expandir-se à Ucrânia e à Geórgia; e em 2022, convidando quatro líderes da Ásia-Pacífico à OTAN para mirar na China.

A mídia ocidental também não menciona o papel dos EUA na derrubada, em 2014, do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, aliado da Rússia; o fracasso dos governos da França e da Alemanha, garantes do acordo de Minsk II, em pressionar a Ucrânia a cumprir seus compromissos; a vasta quantidade de armamentos dos EUA enviados para a Ucrânia durante os governos Trump e Biden no período que antecedeu a guerra; nem a recusa dos EUA em negociar com Putin a avanço da OTAN à Ucrânia.

É claro que a OTAN diz que isso é puramente defensivo, e Putin não tem nada a temer. Em outras palavras, Putin deve fingir que não existiram as operações da CIA no Afeganistão e na Síria; o bombardeio da OTAN à Sérvia em 1999; a derrubada de Muammar Kadafi pela OTAN em 2011; a ocupação do Afeganistão pela OTAN por 15 anos; nem a “gafe” de Biden pedindo a deposição de Putin (o que obviamente não foi uma gafe); nem a afirmação do secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, de que o objetivo de guerra dos EUA na Ucrânia é enfraquecer a Rússia.

No centro de tudo isso está a tentativa dos EUA de permanecer como a potência hegemônica do mundo, ampliando as alianças militares em todo o mundo para conter ou derrotar a China e a Rússia. É uma ideia perigosa, ilusória e ultrapassada. Os EUA têm apenas 4,2% da população mundial e agora apenas 16% do PIB mundial (medido a preços internacionais). De fato, o PIB combinado do G7 já é menor que o dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), enquanto a população do G7 é apenas 6% do mundo, em comparação com 41% dos BRICS.

Há apenas um país cuja fantasia autodeclarada é ser a potência dominante do mundo: os EUA. Já passou da hora de reconhecerem as verdadeiras fontes de segurança: coesão social interna e cooperação responsável com o resto do mundo, em vez da ilusão de hegemonia. Com essa política externa revisada, os EUA e seus aliados evitariam a guerra com a China e a Rússia e permitiriam que o mundo enfrentasse sua miríade de crises ambientais, energéticas, alimentares e sociais.

Acima de tudo, neste momento de extremo perigo, os líderes europeus devem buscar a verdadeira fonte de segurança para a Europa: não a hegemonia dos EUA, mas arranjos de segurança europeus que respeitem os interesses legítimos de segurança de todas as nações europeias, certamente incluindo a Ucrânia — mas também a Rússia, que continua a resistir às expansões da OTAN ao Mar Negro. A Europa deveria refletir sobre o fato de que o não alargamento da OTAN e a implementação dos acordos de Minsk II teriam evitado esta terrível guerra na Ucrânia. Nesta fase, é a diplomacia, não a escalada militar, que é o verdadeiro caminho para a segurança europeia e global.

Elites e a corrupção legalizada, por Michael França.

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Não devemos esquecer de quem define o que é certo e errado

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 22/08/2022

Corrupção é um conceito amplo, e costuma ser pensado como o conjunto de práticas voltadas para usar dinheiro público com o propósito de gerar ganhos privados para indivíduos e, eventualmente, para suas famílias.

Também é um termo comumente empregado para definir o uso ilegítimo do poder público com o intuito de autofavorecimento. Porém, olhar somente para o que é feito dentro dos limites da lei é uma forma um pouco limitada de encarar a realidade.

Aquilo que é certo ou errado costuma ser uma função das vontades dos setores mais influentes da sociedade que, em última instância, tendem a definir as leis e moldar o funcionamento do Estado de forma a atender seus próprios interesses.

Uma série de convenções que foram historicamente institucionalizadas pelos grupos mais proeminentes conduz a um amplo conjunto de vantagens, geralmente indevidas, porém dentro da lei, somente para uma pequena parcela da população.

O aparato institucional, que deveria ser um meio de orquestrar o equilíbrio social, gerar oportunidades equânimes de desenvolvimento e reger o progresso, também contribui para a manutenção da apropriação do poder público pelas elites.

Quando consideramos a corrupção legalizada, o cenário brasileiro fica ainda mais emblemático. Nosso sistema político é corrompido. A desigualdade reforça ao longo do tempo a concentração de influência e leva ao aprofundamento da subversão da justiça social. Não faltam aqui exemplos de grupos que vivem em uma espécie de simbiose com o Estado.

Não é por acaso que a oferta de muitos bens públicos de melhor qualidade está localizada em regiões mais ricas dos espaços urbanos. Por sua vez, é possível criar vários outros meios de favorecer certos grupos no uso do dinheiro público.

As universidades públicas, por exemplo, foram durante grande parte de nossa história um espaço dominado pelas elites. Apesar dos avanços recentes na representatividade discente, o mesmo não se pode dizer em relação a seu corpo docente.

Além disso, bancamos altos salários de alguns cargos do funcionalismo público em que o retorno para sociedade não reflete seu custo. Em relação aos impostos, há considerável dificuldade de torná-los mais progressivos e, assim, onerar em maior proporção aqueles que possuem alta renda e que costumam ser os mesmos que são contemplados com subsídios e créditos baratos do governo em projetos com inexpressiva capacidade de gerar valor para sociedade.

A baixa taxação das heranças é somente mais um exemplo da hipocrisia de uma elite que se diz merecedora do que possui, apesar de que parte considerável de seu patrimônio representar apenas o legado do trabalho de terceiros e, não raramente, obtida por meio de algum conluio com o poder público.

Existe uma inaptidão moral por parte de muitos cidadãos em se comprometer com o bem comum e uma alta predisposição em usar o Estado para obter significativas vantagens privadas. A incapacidade de ir além das práticas corriqueiras voltadas para aumentar a gratificação pessoal parece ser uma das marcas de nossas elites.

Apesar disso, tivemos alguns avanços. Os filhos dos porteiros saíram das universidades e passaram a disputar espaço com os filhos da elite. Os mais desfavorecidos tiveram ganho no poder de compra. As empregadas domésticas começaram a pegar o mesmo avião da patroa.

Curiosamente, no mesmo período, as elites resolveram sair para as ruas para protestar contra a corrupção sistêmica. Escolheram um alvo e contribuíram para eleger um presidente que, além de corrupto, é um dos mais estúpidos da nossa história.

No final, fica a questão: a suposta indignação com a corrupção foi verdadeira ou somente um pretexto para recuperar alguns privilégios?

Mazzucato: A economia guiada por missões sociais, por Ladislau Dowbor

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Definir as necessidades da sociedade e organizar, para supri-las, iniciativas de múltiplos atores, lideradas pelo Estado. A proposta da economista italiana para superar as brutais disfuncionalidades do capitalismo atual é a base de seu novo livro

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 17/08/2022

Mariana Mazzucato está virando referência para todos nós. Mulher, italiana, baseada em Londres, está abrindo espaços muito mais amplos do que os eternos comentários sobre Hayek, Milton Friedman e outros economistas parados no tempo e no espaço. Estamos enfrentando um sistema diferente do capitalismo industrial que conhecemos, com o domínio das plataformas financeiras, de comunicação, de controle do conhecimento e da indústria da informação pessoal. Surge uma economia de pé no chão que ganhou força, é muito mais do que “heterodoxa”, apresentando os problemas nas suas novas configurações e as soluções correspondentes.

O capitalismo que hoje enfrentamos, e que gera tantos desastres econômicos, sociais e ambientais, tenta se justificar com sucessos do passado. Isso tem pouco legitimidade, pois as fortunas atuais têm essencialmente origem em atividades-meio, com pedágios sobre a economia imaterial como os drenos financeiros, que pouco têm a ver com os avanços produtivos do século passado, no tempo dos capitães da indústria. Exploravam trabalhadores, mas geravam emprego e produtos, e pagavam impostos, o que permitiu desenvolver infraestruturas e políticas sociais. Hoje enriquecem com juros e dividendos, e colocam os lucros em paraísos fiscais. E se apresentam como “os mercados”, mas são drenos sobre a economia real.

Não há dúvidas quanto às contribuições do capitalismo produtivo, e inclusive hoje tantas empresas fornecedoras de bens e serviços. Mas é importante lembrar que os imensos avanços planetários nos últimos dois séculos, frente a milênios de estagnação antes disso, se devem essencialmente a avanços tecnológicos, fontes de energia que permitiram mecanização, a imensa transformação gerada pela eletricidade, o aproveitamento do petróleo, os avanços da química, a mais recente revolução digital, a explosão dos conhecimentos biológicos, tudo isso são avanços do conjunto da humanidade, resultantes da confluência de esforços de pesquisadores individuais, de universidades públicas, e também de sua implementação empresarial. O principal vetor da transformação mundial que vivemos está muito mais ligado aos avanços científicos globais do que ao capitalismo, tanto assim que transformou também a União Soviética que saiu da idade média em 1917, e conseguiu derrotar o poder militar da Alemanha nos anos 1940. A China constitui outro exemplo impressionante de como a tecnologia moderna, no quadro de diferentes formas de organização política e social, pode promover o progresso.

Lembrar que o capitalismo de plataformas que hoje enfrentamos, que tenta se vestir da legitimidade de outros tempos, teve como motor principal não liberdade de mercado, mas o avanço científico e tecnológico generalizado, ajuda a entender que estamos enfrentando novos desafios, que exigem novas respostas organizacionais. O vale-tudo das corporações internacionais rompe com o essencial do que justificava o capitalismo, ou seja, de que cada um procurando maximizar os seus lucros geraria o correspondente bem-estar para a sociedade. Seja qual for o nome que damos aos novos tempos que vivemos, indústria 4.0 ou revolução digital, o fato essencial é que precisamos resgatar a sua funcionalidade: a lógica do seu funcionamento mudou.

Mariana Mazzucato publicou nos últimos anos três livros de grande impacto internacional: O Estado Empreendedor, O Valor de tudo, e agora este Missão Economia, título que seria melhor traduzido como “economia organizada por missões”, já que em inglês Mission Economy traz esse sentido. O primeiro, Estado Empreendedor, é muito utilizado no mundo e no Brasil, pois desmonta a farsa da privatização, mostra as bases públicas que permitiram inclusive os avanços privados, e propõe resgatar uma parceria inteligente em vez das simplificações ideológicas do estado mínimo. Prejudicar o interesse público para maximizar os lucros corporativos simplesmente não funciona, e muito menos a narrativa de que o Estado atrapalha o bem que o setor privado poderia trazer. Estado empreendedor, motor essencial da economia.

O Valor de Tudo, de 2018, tem o subtítulo de making and taking in the global economy, que podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, subtítulo que reflete o essencial do aporte do livro, que é como diversos grupos sociais, empresas privadas, o setor público e os movimentos sociais, contribuem ou geram custos para a economia moderna, nesta era digital e financeirizada. O livro é essencial na medida em que mostra que o lucro já não passa necessariamente por aportes produtivos, e sim por diversos sistemas de apropriação e controle improdutivos ligados à financeirzação. A criação de valor e a apropriação de valor se desassociaram.

A Mission Economy que aqui resenhamos tem uma guinada radicalmente propositiva, e nos interessa em particular nesses tempos em que o Brasil regrediu radicalmente. O exemplo usado por Mazzucato é o da Missão Apolo. Nos anos 1960, com J.F. Kennedy na presidência, os Estados Unidos assistiram atônitos aos russos mandarem para o espaço primeiro um satélite, depois o Iuri Gagarin, até uma cadela, a Laika, com ida e retorno seguros. A reação não foi um projeto governamental, mas uma “missão” nacional, envolvendo o governo como promotor político, bem como centros de pesquisa, universidades, inúmeras empresas dos mais diversos setores. O impressionante sucesso, com um homem na lua, não foi resultado de primazia do governo ou do setor privado, na guerra absurda que hoje enfrentamos, mas uma articulação política, financeira e tecnológica dos mais variados setores da sociedade. Ou seja, a sinergia, confluência de diversas áreas em torno a um objetivo comum, gerou um sucesso impressionante.

Essa ideia, do potencial do que podemos fazer como humanidade ao nos unirmos em torno aos grandes objetivos sociais, é o núcleo do que a autora desenvolve e detalha no livro. Na era da sociedade complexa, de desafios sistêmicos, a colaboração é simplesmente mais eficiente. Não se trata apenas da dimensão econômica, mas da geração de um entusiasmo mobilizador em torno do que queremos atingir. E precisam ser objetivos suficientemente amplos para que possam mobilizar o conjunto da sociedade. Ainda que nos alimentem diariamente com visões de um Bezos, Buffett, Jobs ou outros heróis do sucesso individual, na mística antiga do cowboy solitário, a realidade é que hoje precisamos de sistemas colaborativos e de sinergia organizada, para voltarmos a ter rumos na sociedade. Esperar que os “mercados” consigam equilibrar magicamente as diversas dinâmicas de uma sociedade complexa, que enfrenta desafios sistêmicos, é simplesmente ridículo, ainda que sirva a interesses mais estreitos.

“Este livro adotou a ideia, que considero imensamente poderosa, de usar as missões para atacar os problemas ‘perversos’ com que nos defrontamos hoje. Argumento aqui que o combate a grandes desafios só será exitoso se reimaginarmos o governo como um pré-requisito para a reestruturação do capitalismo, de modo a torná-lo inclusivo, sustentável e inovador.”(196) Enquanto tantos livros descrevem as desgraças da humanidade e os desafios que temos de enfrentar, Mazzucato se concentra no processo decisório correspondente. Isso é fundamental, na medida em que na sociedade de hoje sabemos o que deve ser feito, inclusive com objetivos sistematizados nos ODS, temos as tecnologias, e temos os recursos financeiros necessários. Mas não conseguimos gerar a governança correspondente.
“Primeiro e acima de tudo, isso envolve reinventar o governo para o século XXI – equipando-o com as ferramentas, organização e cultura necessárias para impulsionar a abordagem orientada por missões. Também envolve introduzir a noção de propósito no cerne da governança corporativa, priorizar o valor para os stakeholders em toda a economia e transformar o relacionamento entre os setores público e privado e entre ambos e a sociedade civil, para que trabalhem em simbiose em prol de um objetivo comum. A razão para a ênfase em repensar o governo é simples: apenas o governo tem a capacidade para promover a transformação na escala necessária. O relacionamento entre os agentes econômicos e a sociedade civil revela nossos problemas no nível mais profundo, e é isso que devemos desvendar. ”(196)

Com o domínio das corporações financeiras no mundo atual – só lembrando que a BlackRock administra 10 trilhões de dólares, o equivalente à metade do PIB dos Estados Unidos (21,5 trilhões) – resgatar a sua utilidade social tornou-se essencial: “Como argumentei neste livro, isso envolve enfrentar um dos maiores dilemas do capitalismo moderno: reestruturar os negócios de modo que os lucros privados sejam reinvestidos na economia, em vez de direcionados para objetivos financeirizados de curto prazo.” (198)

A revolução digital também exige novas formas de organização. “Outra área importantíssima são as plataformas digitais. Como gerir as plataformas digitais de modo a fomentar a criação de valor para a maioria dos cidadãos, em vez de apenas gerar lucros privados para uns poucos, é o grande tema da atualidade…Empresas como Amazon e Google detêm enorme poder de mercado. O problema é que elas cada vez mais têm usado esse poder para extrair o que tenho chamado de “rentas algorítmicas” (algorithmic rents)[3] num sistema capitalista moderno que mais parece um “feudalismo digital” – a capacidade de usar algoritmos para manipular o que as pessoas veem e querem.” (189)
Isso envolve uma inversão profunda, tanto nas corporações como nos governos: pensar a economia a nosso serviço. “Grande parte da atual análise econômica tende a focar nas dívidas e nos déficits públicos. Mas uma abordagem orientada por missões traz uma nova maneira de ver as coisas. Fazer a economia trabalhar para os objetivos sociais, em vez de fazer a sociedade trabalhar para a economia, exige reverter a maneira como se avaliam os orçamentos hoje. Devemos começar com a pergunta ‘O que precisa ser feito?’ e, então, passar para a questão de como arcar com os custos.”(162) A abordagem lembra muito a missão “Fome Zero” que articulou tantos programas no Brasil e permitiu grandes avanços.

Não são sonhos, são transformações que teremos de adotar cedo ou tarde, conforme se aprofundam os desastres sociais e ambientais, e se desarticulam as democracias. Mazzucato resume as mudanças necessárias em torno a sete eixos: o conceito de valor centrado na utilidade pública, mercados articulados com os outros atores sociais, formas de organização mais centradas na colaboração, finanças reorientadas para o que é necessário para a sociedade, processos de distribuição que enfrentem a desigualdade, promoção de parcerias para o bem-comum, e participação dos atores envolvidos. (165) Não são regras simplificadas, a autora aprofunda cada um dos pilares, e o resultado é uma visão não de algum sonho no futuro – os vários “ismos” segundo as ideologias – mas medidas viáveis de reorientação em torno às prioridades humanas.

Mariana Mazzucato é hoje uma autora de referência no mundo, pela forma como ultrapassa as eternas discussões sobre teorias econômicas herdadas do passado, e se vincula à corrente que se deu conta de que o mundo mudou, de que o capitalismo funciona de modo diferente da era industrial, de que precisamos de novas regras do jogo. Uma leitura em nenhum momento atolada em economicismo, centrada em medidas concretas para nos tirar do atoleiro. Uma leitura que vale muito a pena, em particular para não-economistas.

Advertência póstuma do filósofo Zygmunt Bauman

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Revista Prosa Verso e Arte – 07/08/2022

Você já reparou que os filmes e romances de ficção científica são classificados com uma frequência cada vez maior nas seções de cinema de terror e de literatura gótica, ou seja, em um futuro tenebroso no qual ninguém gostaria de viver?

Pode parecer algo irrelevante, mas para Zygmunt Bauman, um dos pensadores mais influentes do século XX, é o reflexo de que começamos a buscar a utopia em um passado idealizado, uma vez que o futuro deixou de ser sinônimo de esperança e progresso para se tornar o lugar sobre o qual projetamos nossas apreensões.

O sociólogo e filósofo polonês deixou desenvolvida essa tese da retrotopia (a busca da utopia no passado) em dois escritos, os primeiros traduzidos ao espanhol depois de sua morte, em janeiro, aos 91 anos.

São o ensaio Retrotopia (Retrotopia) e o texto Symptoms in Search of an Object and a Name (Sintomas em Busca de um Objeto e de um Nome) parte de uma obra coletiva sobre o estado da democracia, The Big Regression (O Grande Retrocesso), que chega às livrarias espanholas no dia 27 e reúne nomes como Slavoj Žižek, Nancy Fraser e Eva Illouz.

“O futuro é, em princípio ao menos, moldável, mas o passado é sólido, maciço e inapelavelmente fixo. No entanto, na prática da política da memória futuro e passado intercambiaram suas respectivas atitudes”, aponta.
Bauman fala sobre medos como o de perder o emprego, do multiculturalismo, de que nossos filhos herdem uma vida precária, de que nossas habilidades de trabalho se tornem irrelevantes porque os robôs saberão fazer – melhor e mais barato – o nosso trabalho. Em suma, medo porque tudo o que era sólido agora é “líquido”, usando o adjetivo que popularizou Bauman.

“Existe uma brecha crescente entre o que precisa ser feito e o que pode ser feito, o que realmente importa e o que conta para aqueles que fazem e desfazem, entre o que acontece e o que é desejável”, aponta.

Bauman argumenta que voltamos à tribo, ao seio materno, ao mundo cruel descrito por Hobbes para justificar a necessidade do Leviatã (o Estado forte para evitar a guerra de todos contra todos) e a desigualdade mais gritante, na qual “o ‘outro’ é uma ameaça” e “a solidariedade parece uma espécie de armadilha traiçoeira ao ingênuo, ao incrédulo, ao tolo e ao frívolo”.

“O objetivo já não é conseguir uma sociedade melhor, pois melhorá-la é uma esperança vã sob todos os efeitos, mas melhorar a própria posição individual dentro dessa sociedade tão essencial e definitivamente incorrigível”, lamenta. A filósofa Marina Garcés, professora da Universidade de Zaragoza, elogia a capacidade de Bauman para “assumir o fim do pensamento utópico e suas consequências”. “Ele não pretende nos enganar com novas e falsas promessas de futuro, mas tenta entender o que está acontecendo depois da era das revoluções e suas várias derrotas”, afirma.

Pensador de inspiração marxista, Bauman cita algumas vezes o filósofo alemão em Retrotopia, ataca o chamariz da sociedade de consumo de massa e não renuncia à análise científica das contradições do capitalismo, mas também “recorre a outras ferramentas” para oferecer “uma visão em grande-angular”, explica o catedrático de filosofia da Universidade de Barcelona e deputado socialista Manuel Cruz. “A ideia de que a materialização da utopia foi perdida é um zumbido no pensamento do século XX”, mas “na obra de Bauman há um esforço para reconhecer o novo que traz ‘o novo’”. “Os pensadores que agora consideramos que representaram uma revolução foram recebidos com um ‘isso nós já sabíamos’. É preciso tempo para que a sociedade entenda o que tinham de novidade”, comenta.

Nos dois textos póstumos o filósofo apresenta um desafio e uma –abstrata e pouco desenvolvida– resposta. O desafio é “conceber –pela primeira vez na história humana– uma integração sem separação alguma à qual recorrer”. Até agora, argumenta, o que funcionou é a divisão entre ‘nós’ e ‘eles’, e continuamos empenhados a buscar um ‘eles’, “de preferência no estrangeiro de sempre, inconfundível e irremediavelmente hostil, sempre útil para reforçar identidades, traçar fronteiras e construir muros”. No entanto, essa dicotomia histórica “não se encaixa” com a “emergente ‘situação cosmopolita’”. Qual é, então, a única resposta possível? “A capacidade para dialogar”, conclui Bauman depois de citar de forma elogiosa o papa Francisco.

Garcés se diz “surpresa” tanto pela chamada ao diálogo (“de quem com quem?”, pergunta) quanto pela invocação da figura do Papa. “Acredito que é um pedido de socorro” de um Bauman que “tenta desenhar um cenário para a palavra compartilhada” porque sabe que “já não há soluções parciais para nenhum dos problemas do nosso tempo”. É a advertência final do pensador polonês: “Devemos nos preparar para um longo período que será marcado por mais perguntas do que respostas e por mais problemas do que soluções. (…) Estamos (mais do que nunca antes na história) em uma situação de verdadeiro dilema: ou damos as mãos ou nos juntamos ao cortejo fúnebre do nosso próprio enterro em uma mesma e colossal vala comum”.
ANTIDEPRESSIVOS E CEGUEIRA

A partir de seu posto de professor em Leeds (Inglaterra), Bauman teria podido lançar um olhar complacente ao presente, depois de ter vivido a invasão nazista de seu país, a Segunda Guerra Mundial na frente de batalha, o antissemitismo e os expurgos na Polônia comunista. Em vez disso, sua análise em Retrotopia é taxativa: “É praticamente inevitável que respiremos uma atmosfera de desassossego, confusão e ansiedade e a vida seja qualquer coisa menos agradável, reconfortante e gratificante”. Nesse contexto, os cada vez mais consumidos tranquilizantes e antidepressivos proporcionam alívio, mas também “contribuem para cegar os próprios seres humanos em relação à natureza real do seu padecimento em vez de ajudar a erradicar as raízes do problema”.

Nós do SUS

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Há muito a melhorar na gestão, mas saúde pública também precisará de mais verba

Editorial Folha de São Paulo, 21/08/2022

Houve um tempo em que o único “serviço” que o cidadão poderia esperar do Estado era um exército que protegeria a cidade de invasores. Aos poucos, vieram também uma força policial e algo que com muito boa vontade poderíamos chamar de sistema de Justiça.

A partir do século 18, países mais avançados adicionaram à lista a educação pública e, mais tarde, um sistema de pensões. Foi só depois da Segunda Guerra que veio a explosão de serviços que caracterizam os Estados contemporâneos. E o mais complexo deles é, sem dúvida alguma, a saúde.

O Brasil, num raro destaque positivo, é o único país de renda média do mundo a oferecer um sistema universal de saúde gratuito à sua população. E os desafios do SUS, já imensos antes da pandemia, tornaram-se ainda maiores depois, como mostrou reportagem da série Nós do Brasil, na Folha.

O problema de base é, evidentemente, o subfinanciamento. Embora os gastos públicos e privados do Brasil com saúde sejam até proporcionalmente maiores que de países desenvolvidos, o jogo muda inteiramente quando se consideram apenas despesas de governo.

Em 2019, os desembolsos totais chegaram a 9,6% do Produto Interno Bruto, ante 8,8% na média da OCDE. Já o dispêndio público ficou em 3,8% do PIB, ante 6,5%.

A pandemia escancarou o papel essencial do SUS. Embora nosso desempenho na crise sanitária tenha sido péssimo, muito pior seria sem o sistema de saúde.

A grande disposição com que a população arregaçou as mangas para tomar as primeiras doses da vacina, a despeito da insistente propaganda contrária de Jair Bolsonaro (PL), tem muito a ver com a confiança acumulada em vários anos do programa nacional de imunização, apontado como um dos melhores do mundo.

Seja como for, a pandemia colocou ainda mais pressão sobre o SUS. A demanda pelos serviços, que já era maior do que a oferta, foi reprimida por cerca de dois anos. A chamada Covid longa criou uma nova categoria de usuários; algo parecido vale para a saúde mental.

Embora o sistema esteja sendo mais exigido, é difícil imaginar como suas verbas possam aumentar de forma permanente. O Brasil lida com severa restrição orçamentária, agravada pela recente rodada de gastos eleitorais. Há amplo espaço para melhorias na gestão, mas isso não bastará para equacionar todas as carências.

O melhor caminho é cortar algo dos muitos subsídios e programas ineficientes bancados pelo Estado brasileiro para aumentar os recursos para a saúde pública. Politicamente, trata-se, na maior parte dos casos, de enfrentar grupos de interesse e suas benesses.

Juros altos e crise nas startups, por Luiz Guilherme Piva.

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Há risco inerente, mas investidores desconhecem efetivo potencial

Luiz Guilherme Piva, Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

Folha de São Paulo, 19/08/2022

No Brasil, segundo a ABVCAP (Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital), os investimentos em startups vinham crescendo muito: passaram de R$ 8 bilhões, em 2016, para quase R$ 50 bilhões, em 2021, com o número de aportes anuais saltando de menos de 100 para mais de 300. Só que 2022 está registrando um grande refluxo: no primeiro trimestre foram R$ 6,4 bilhões investidos em 41 aportes —e caindo.

Quem tem (juros reais altos à disposição)… Tem medo (de investir). É uma lição que está nos manuais econômicos com nomes como “preferência pela liquidez”, “custo de oportunidade”, “flight to quality” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Negócios de maior risco, como as startups, sofrem mais para captar em cenários de juros elevados – como o atual. Elas abrigam apostas dos investidores no crescimento futuro e precisam oferecer perspectivas melhores do que outros investimentos.

Trata-se da indústria de “venture capital”, cujos benefícios para as startups são inegáveis: melhoram a governança e a gestão das empresas, viabilizam produtos e serviços que atendem a lacunas do mercado, dão às investidas acesso ao mercado de dívida etc. Há muitos casos de sucesso, recentemente denominados de “unicórnios” (startups que atingem o valor de US$ 1 bilhão antes de abrir capital), com altos retornos aos investidores. Outro benefício é a inovação. Muitas empresas aportam em startups e obtêm ganhos de produtividade e avanços tecnológicos. É a chamada inovação aberta.

Mas, além do risco inerente, existe a assimetria de informações. Investidores desconhecem o efetivo potencial das startups. No mais das vezes, mitigam o risco diversificando a carteira, de modo que perdas em algumas sejam compensadas por ganhos em outras (quem sabe até num unicórnio, não é?). E também (como se ensina em Harvard, Princeton e no interior de Minas: “ganha-se dinheiro é na compra”) rebaixando a avaliação inicial do ativo para assegurar, na saída (ou evento de liquidez; não confundir com cervejada), grandes retornos.

Quando os juros sobem, essa assimetria diminui no pior sentido: o investidor tem certeza de que não vale a pena entrar no negócio. Mesmo sabendo que, por necessidade de recursos agora escassos e por terem sua avaliação ainda mais degradada (os juros altos diminuem seu valor presente), as startups ficam bem baratinhas. É que, além de preferirem o caldo de galinha, eles temem a seleção adversa: empresas ruins que oferecem retornos fantásticos —e, claro, irreais.

Os investidores, neste período recente, têm visto isso ocorrer a um nariz diante de seus palmos vazios (o dinheiro está na renda fixa). Hoje as startups brasileiras têm tido maior dificuldade em captar. Quem tinha que ter fôlego para cerca de seis meses sem aportes está refazendo as contas para ficar na seca até o triplo desse prazo. A consequência imediata é o fechamento de várias delas —cuja mortalidade é alta mesmo em marés mais mansas— e a diminuição das maiores, principalmente na força de trabalho: no primeiro semestre, ao menos 2.000 funcionários de unicórnios (ou quase) foram demitidos, a maior parte em pacotes de 200 a 300 de uma só vez.

Nisso, não se vê inovação nenhuma. Nos manuais econômicos, nas “business schools”, no interior de Minas e nas cervejadas sabe-se que a corda estoura sempre no lado mais fraco.

Mercado Interno

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A economia brasileira apresenta grandes dificuldades de engatar um ciclo de crescimento econômico sustentável com geração de emprego, investimentos produtivos, incremento da renda e fortalecimento do mercado interno, com isso, percebemos que vivemos em ciclos curtos de melhoras imaginárias, com inúmeras promessas e frustrações constantes, além de desesperança, insatisfação e instabilidades.

Para que a sociedade brasileira consiga alcançar o tão almejado desenvolvimento econômico é fundamental a construção de um mercado interno pujante, com estruturas produtivas consolidadas e fortes investimentos produtivos, crescimento do emprego, melhora na renda agregada, estabilidade política, instituições sólidas, tudo isso, contribuem para o fomento da estrutura produtiva.

O desenvolvimento econômico é um processo constante que demanda tempo, planejamento e a construção de pactos sociais e políticos, exigindo empenho e dedicação de todos os atores institucionais, criando novos consensos para a reconstrução industrial, com investimentos em capital humano com melhoras consideráveis na educação, na pesquisa e no desenvolvimento científico e tecnológico.

Para a construção de um mercado interno pujante e dinâmico é fundamental a adoção de um novo modelo econômico, priorizando os investimentos produtivos em detrimento dos investimentos especulativos. O desenvolvimento do mercado interno como motor do crescimento econômico exige uma alteração radical da estrutura tributária nacional, acabando com as isenções fiscais e tributárias indiscriminadas, sem critérios claros e geradores de privilégios de poucos grupos econômicos, adotando uma tributação progressiva, tributando lucros e dividendos e canalizando estes recursos para um novo modelo de construção coletiva, priorizando o combate das desigualdades que perpassam a sociedade brasileira e contribuem para perpetuar os péssimos indicadores socioeconômicos.

Poucas nações do mundo possuem mercados internos pujantes e capacidades de alavancar os investimentos produtivos, criando espaços de crescimento impulsionados por demandas internas. O Brasil possui mais de 200 milhões de pessoas sedentos de consumo e de dignidade, precisamos construir um projeto de nação que inclua a totalidade da população, garantindo educação de qualidade para os cidadãos, serviços públicos decentes e novas perspectivas para o futuro, melhorando o ambiente institucional, respeitando os direitos humanos e valorizando o meio ambiente.

Ao analisarmos a situação brasileira, percebemos que o mercado nacional carece de dinamismo, o alto desemprego e a elevada informalidade limita o crescimento do mercado interno e criam travas evidentes de recuperação mais efetiva da economia.

Neste ambiente, percebemos o paradoxo crescente da economia nacional, de um lado, poucos grupos econômicos ganham elevadas quantias monetárias, acumulando ganhos substanciais, como demostrado recentemente pelos elevados lucros auferidos pelos bancos nacionais e, de outro lado, o crescimento visível do empobrecimento da população, com incremento de indivíduos vivendo na rua, o crescimento de pessoas sobrevivendo através dos auxílios governamentais, a degradação da renda em decorrência de uma inflação acelerada e da desesperança que fragiliza a sociedade, gerando incertezas e medos constantes.

O mercado interno pode ser um grande motor do crescimento econômico, para isso, faz-se necessário a reconstrução das estruturas sociais e políticas, reduzindo os ganhos elevados de grupos que se apoderaram dos setores governamentais e se comprazem com a perpetuação das desigualdades, auferindo grandes lucros especulativos e poucos retornos concretos para a sociedade, concentrando a renda e centralizando os poderes econômicos e políticos, evitando alterações estruturais, impedindo a adoção de um sistema tributário progressivo e garantindo seus vultosos ganhos centrado no rentismo e no imediatismo.

O crescimento e a consolidação do mercado interno podem garantir novos espaços de desenvolvimento socioeconômico, sem este ativo fundamental, o sonho do desenvolvimento se fará cada vez mais distante e nos afastará do verdadeiro conceito de civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/08/2022.

Entrevista: ‘Mesmo depois da corrupção endêmica, instituições brasileiras seguem fortes’, diz Daron Acemoglu

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Referência em economia política e autor de ‘Por que as nações fracassam’ afirma que Bolsonaro é uma ameaça à democracia já consolidada

Por Janaína Figueiredo 09 agosto de 2022 – Jornal O Globo

Autor de “Por que as nações fracassam” e referência em economia política, o economista Daron Acemoglu diz que a academia ainda não entende nem sabe explicar o surgimento do populismo de direita no mundo e que, no Brasil,
Bolsonaro é uma ameaça à democracia já consolidada.

Em seu livro “Por que as nações fracassam”, o senhor insiste na importância de se ter instituições políticas inclusivas. Esse é um elemento central quando se analisa por que alguns países dão certo e outros não?

Sim, absolutamente. Nenhum país nasce com esse tipo de instituições, e o Brasil as teve, as desenvolveu. Essa questão é mais profundamente explorada em nosso livro posterior, “O corredor estreito”, já lançado no Brasil.

Qualquer tipo de boa governança, boas instituições, devem ser equilibradas em relação a diferentes tipos de forças sociais, atores políticos. Numa sociedade controlada por produtores rurais ou industriais o poder político não terá equilíbrio em suas instituições. No Ocidente, países como Inglaterra ou França não nasceram com instituições inclusivas, foi um processo longo e doloroso, eu diria, de uns 500 anos. O movimento trabalhista foi crucial. As conquistas não foram entregues facilmente pelas elites, foi um processo movido pelas demandas dos trabalhadores organizados. Esse era o retrato do PT que tínhamos em mente, o PT original. O que aconteceu, no caso do Brasil, foi que chegaram ao poder muito rápido e, quando chegaram, as instituições que deveriam supervisar o poder não estavam fortes o suficiente. As más tentações estavam lá e, bem, foram engolidos. Nada do que digo os absolve, mas havia muitos grupos de interesse, homens de negócios e operadores políticos que estavam prontos para engoli-los e corrompê-los.

Os erros do PT explicam, em parte, o que aconteceu no Brasil após seus governos?

Absolutamente. Da mesma maneira, eu diria, em relação aos Estados Unidos, porque muitas vezes se foca no narcisismo, audácia, corrupção etc. de Trump, no Partido Republicano aceitando o domínio de Trump, e se esquece que também foi um fracasso dos democratas. Não encararam questões fundamentais sobre igualdade, pobreza, pessoas perdendo seus trabalhos, pessoas que deixaram de se sentir representadas. Acho que temos uma versão diferente da mesma coisa no Brasil. Na Presidência de Dilma Rousseff, o sistema político como um todo, não apenas o PT, esteve envolvido na corrupção. Era necessário reagir, e essa reação aconteceu. Depois da chegada do PT ao governo o Brasil ia bem, não era perfeito, havia problemas, mas o Brasil foi um dos países onde mais rapidamente foi reduzida a desigualdade social, a pobreza. Mas também é verdade que se tornaram muito poderosos muito rápido.

Em comparação com os processos vividos por países como o Reino Unido …

Sim, mas também comparado com outros países como Chile. No Chile também houve melhoras em termos sociais, o país cresceu rapidamente, houve uma transição democrática bem-sucedida, com problemas, claro, mas eu diria que foi uma aterrissagem mais lenta. Mas no Chile você não pode dizer que um único partido acumulou tanto poder.

O que aconteceu no Brasil teve muito a ver com a corrupção, mas também com o surgimento e o fortalecimento de um movimento global de direita?

Claro, está 100% relacionado. Esta é uma das peças de um quebra-cabeças que a Ciência Política Internacional ainda não conseguiu explicar bem. Se olharmos para países como a França, onde Marine Le Pen quase chegou ao poder, Hungria, Turquia, os EUA, vemos poucas coisas em comum. Pense nas Filipinas, ou na Turquia, onde as pessoas se beneficiaram, por exemplo, de acordos comerciais vistos como negativos em países como os EUA. A desigualdade é um problema nestes países, mas não da mesma maneira que é nos EUA. No Brasil, acabamos de falar sobre isso, a desigualdade foi reduzida.

Podemos incluir a Rússia…

Claro, a Rússia também. Então, o que temos em comum entre estes países? Acho que obviamente o fato de que a comunicação tradicional colapsou, as redes sociais fizeram muitas coisas ruins, estaríamos muito melhor sem Facebook, Twitter e outras. Mas não podemos culpar as redes sociais por Trump ou Bolsonaro. Não é apenas isso.

Provavelmente tem também a ver com a globalização, com tudo o que foi prometido às pessoas ao redor do mundo, e com o aumento das aspirações que não se realizaram na realidade. Vimos grandes progressos em países como Chile e Brasil, transições de regimes ditatoriais para democracias, crescimento, mas as aspirações eram maiores, muito mais foi prometido. Falta muito a ser feito, e não houve um entendimento de que este era um trabalho em processo. Ainda existem elites, existe desigualdade, falta de oportunidades para pessoas que não são de certas famílias, tudo isso causa mal-estar pelas aspirações que foram criadas. São processos que as redes sociais tornaram muito mais difíceis de serem entendidos. A comunicação, em geral, ficou mais difícil, e ficou mais difícil para os políticos comunicaram que se trata de processos e temos de trabalhar neles. Teremos eleições presidenciais na Turquia, a situação é um desastre, a economia vai mal, e todos prometem mais populismo e não transmitem a mensagem de que o país levará anos para ser reconstruído.

É interessante ouvir que a academia ainda não sabe explicar exatamente o que estamos vivendo politicamente em países como EUA e Brasil…

Não entendemos ainda o surgimento do populismo de direita, especialmente, ou temos uma reposta sobre o que fazer com o problema. Mas é verdade, também, que identificamos alguns elementos importantes. Por exemplo, temos de tornar a globalização melhor para os trabalhadores, criar redes de proteção social mais fortes, investir em tecnologia para ajudar os trabalhadores e não apenas o capital, e temos de ouvir o que todos têm a dizer. Qualquer que seja a visão das pessoas, temos de ouvi-las com respeito, mesmo que não estejamos de acordo. Algo em que o Partido Democrata dos EUA está falhando, essa é uma grande ameaça.

Na América Latina e em muitos outros países, a ameaça não é mais um golpe militar…

Sim, a ameaça é totalmente diferente. As futuras ameaças à democracia não vestem uniforme militar. Elas virão de pessoas ativas nas redes sociais, enviando mensagens como a de construir grandes países novamente.

Nas próximas eleições, os brasileiros deverão eleger entre opções radicalmente opostas. Imaginou este cenário quando escreveu “Por que as nações fracassam”?

O livro foi publicado em 2012, e escrito em 2010. Ele reflete um clima de otimismo com o mundo democrático naquele momento. Nenhum de nós, os autores, ou outros acadêmicos antecipou que, pouco depois, emergiria Donald Trump, e teríamos um grande momento de populistas de direita, movimentos autoritários, incluindo no Brasil. Para nós, o maior êxito do Partido dos Trabalhadores de Lula foi consolidar a democracia. Não era imaginável ter a volta ao poder de um regime militar. Sabíamos que a corrupção era um problema, mas, apesar disso, a democracia era estável.

O que muitas pessoas não previram foi, até a eleição de Trump, que a maior ameaça não seria militar ou algo similar, mas que viria de pessoas como Bolsonaro e Trump. Eles não são ditadores, são populistas. Como Trump, o presidente Bolsonaro causou um dano às instituições brasileiras, pelo que todos entendemos. Da mesma maneira que penso sobre Trump, um segundo governo de Bolsonaro poderia causar mais dano, porque esse tipo de líderes autoritários e personalistas corroem as instituições formais da democracia.

Em seu livro, o senhor usa como exemplo os governos de Alberto Fujimori (1990-2000) no Peru, vê similares com Trump e Bolsonaro…

Vejo, sim. Mas, ao mesmo tempo, com uma origem de esquerda, poderíamos fazer uma comparação com Hugo Chávez. Ele foi militar, mas não chegou ao poder através de um golpe militar, ele concorreu à Presidência, venceu, e terminou destruindo as instituições venezuelanas. (Nicolás) Maduro está, de fato, atuando em base ao que foi construído por Chávez. Nos EUA, Trump não ficou muito tempo no poder. Na Venezuela, Chávez sim. Voltando à eleição brasileira, algumas pessoas podem ter dúvidas sobre o PT, ou sobre Lula, mas, para mim, está muito claro que se trata de uma ameaça existencial pensar num segundo governo de Bolsonaro.

Recentes tentativas do presidente Bolsonaro de ampliar seu poder sobre a Petrobras levaram analistas a fazer uma comparação com Chávez, que se apropriou da Petróleos da Venezuela (PDVSA).

Absolutamente. Se você olhar para trás, a Venezuela tinha instituições mais fortes do que as do Brasil, uma economia mais moderna do que muitos países da América Latina. Em termos econômicos e institucionais o país estava num nível superior ao de países como Brasil e Argentina. O que aconteceu na Venezuela poderia acontecer em outros países da região. O que a Venezuela nunca viveu foi um momento como o que vive o Brasil hoje, tão decisivo de luta pela democracia.

Atualmente, a oposição venezuelana está profundamente enfraquecida e sem rumo…

Sim, o Brasil tem a chance de evitar chegar a isso. Mesmo depois da corrupção endêmica, as instituições brasileiras continuam fortes, mais fortes do que foram com Chávez ou são com Maduro.

O senhor é otimista?

Bom, temos de ser realistas, mas não quero perder meu otimismo. Não existe nada inevitável sobre democracia. A História da humanidade está cheia de erros, regimes horríveis, sofrimento, mas ainda sou otimista e acho que aprendemos certas lições dessa História. Mas haverá retrocessos. Não acredito num caminho inexorável, nem um fim da História.

África tem muito a ensinar sobre inovação, por Ronaldo Lemos.

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Arrasada por uma guerra civil, Moçambique está em pleno processo de reconquista do tempo perdido

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 15/08/2022

Quando se pensa no continente africano nem sempre é comum pensar em inovação. Isso é um erro. Primeiro por conta dos aspectos tradicionais e da diversidade do continente, que sempre foram propícios para experimentação e criatividade.

Recentemente, também pelo fato de haver uma vitalidade enorme apontando para inovações tecnológicas e sociais no continente. Não é por acaso que se fala cada vez mais em afrofuturismo ou de Wakanda.

Moçambique pode facilmente ilustrar esses conceitos. A história do país é cheia de desafios. A começar porque só se tornou independente em 1975. Logo após a independência mergulhou em uma guerra civil, que acabou somente em 1992.
A guerra destruiu mais de mil escolas do país, além de arrasar recursos e infraestrutura, incluindo flora e fauna. Até os elefantes de Moçambique são especialmente agressivos, traumatizados pelo conflito.

No entanto, o país hoje está em pleno processo de reconquista do tempo perdido. É um país demograficamente jovem que tem produzido iniciativas inspiradoras.

Por exemplo, há um ecossistema de inovação e criatividade em curso. A começar pela questão dos pagamentos digitais. Há mais de dez anos é possível transferir dinheiro pelo celular, sem precisar de conta bancária. Mais do que isso, é possível sacar dinheiro nos caixas eletrônicos sem usar cartão, apenas com mensagens de texto. Ou ainda, pagar qualquer compra com o celular, também sem cartão.

Enquanto o Pix no Brasi tem pouco tempo, Moçambique tem um sistema de pagamentos digitais há bem mais tempo e com mais funcionalidades que as implementadas até agora pelo Pix.

Além disso, há uma cena crescente de startups. Por exemplo, o Biscate.com. Trata-se de um site e aplicativo de celular (acessível também por mensagens de texto) que permite aos 14 milhões de trabalhadores informais do país encontrar trabalho eventual.

Em Moçambique há cerca de 1 milhão de empregos formais, insuficientes para ocupar a força de trabalho. Depois do sucesso inicial, o Biscate está agora investindo em organizar cadeias produtivas mais complexas: conectar trabalhadores com habilidades distintas, criando laços mais sólidos entre demanda e oferta.

A indústria cultural também avança. O X-Hub, por exemplo, é uma iniciativa que permite a músicos, produtores audiovisuais e outros profissionais criativos alavancarem seu trabalho, inclusive internacionalmente.

Funcionam com capacitação, internacionalização (traduzem tudo do artista para o português, inglês e francês). Oferecem estúdio de gravação e produção de vídeo. E criam uma rede capaz de profissionalizar a produção local.
Como sempre gosto de lembrar, a cultura é a porta de entrada para a economia do conhecimento. E o X-Hub aposta exatamente nisso.

Mais ao norte do país o Parque Nacional da Gorongosa criou um programa de mestrado aberto a pesquisadores do mundo todo. É uma rara junção de parque nacional, com pesquisa e programa social de apoio às comunidades do entorno. Cheguei inclusive a participar da maratona promovida pelo parque com as comunidades vizinhas, com 2.500 participantes.

Enquanto corria com esforço máximo, fui ultrapassado facilmente por um corredor local que corria de costas. Isso serviu para mim de metáfora.

No continente africano há muita criatividade, ousadia e formas diferentes de fazer as coisas. Mesmo correndo de costas, com tantos desafios, o horizonte é cada vez mais de ultrapassagens.

Já era Achar que inovação acontece só no Vale do Silício

Já é Inovação no continente africano

Já vem A 6ª temporada do Expresso Futuro, que vai mostrar inovação no continente africano (estreia em outubro)

Reindustrialização

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Ao refletirmos sobre o mundo contemporâneo, percebemos o crescimento das incertezas e das instabilidades que impactam todas as nações, gerando preocupações para as organizações, para os indivíduos e todos os grupos sociais. Neste ambiente, centrado nas volatilidades políticas, guerras crescentes, crises econômicas, possíveis pandemias, degradação do meio ambiente, desigualdades em ascensão e dependências externas crescentes, cabe a sociedade reconstruir os laços sociais e econômicos, buscando aproveitar, este momento de incertezas elevadas, reconstruirmos a estrutura industrial, reestruturando a indústria nacional e retomando seu papel no mercado internacional.

A pandemia quebrou várias cadeias produtivas que impactou fortemente os preços de inúmeros produtos comercializados, além disso, a guerra na Ucrânia e as sanções econômicas dos países ocidentais contribuíram negativamente para o crescimento da inflação, se espalhando para todas as regiões, gerando uma queda da renda dos trabalhadores, reduzindo o mercado interno e prejudicando os agentes econômicos que perceberam a queda de vendas e seus ganhos materiais, reduzindo investimentos produtivos e canalizando-os para os mercados financeiros.

Neste ambiente de escassez de insumos e dificuldades crescentes de obtenção de variados produtos que entram na confecção de outras mercadorias, os governos deveriam criar instrumentos diretos e indiretos para reconstruir os setores industriais, atuando como atores centrais, fomentando a indústria, aumentando os investimentos em capital humano, estimulando a ciência nacional, despejando recursos na pesquisa e nas universidades públicas, grande responsável pela pesquisa científica no Brasil, além de criarmos instituições sólidas e consistentes para as transformações que estão moldando a sociedade contemporânea.

A indústria brasileira foi construída no século passado e teve alguma relevância mundial, alcançando mais de 30% do produto interno bruto (PIB) e, atualmente, não passa de 10%. Neste cenário, percebemos a fragilização da indústria nacional, setor dotado de baixa complexidade econômica e, desta forma, estamos caminhando a passos largos para nos tornarmos um país produtor de produtos primários de baixo valor agregado e importador de tecnologias, de máquinas e de equipamentos industrializados de alta sofisticação, gerando pouco emprego qualificado e uma grande quantidade de trabalhadores precarizados, transformando engenheiros, advogados e demais profissionais capacitados em motoristas de aplicativos, num mercado altamente competitivo, com cargas elevadas de trabalho, sem proteção social e salários degradantes.

Um projeto integrado exige que todos os setores da sociedade se empenhem na reindustrialização da economia nacional, utilizando os bancos públicos de fomento para investimentos de longo prazo, garantindo recursos financeiros com taxas de juros atrativas, fomentando a integração entre empresas, fortalecendo os centros de pesquisas e universidades, protegendo os setores produtivos, exigindo retornos constantes e transparências, desenvolvendo a governança organizacional, conquistando mercados internacionais, priorizando seus mercados internos, os investimentos nacionais e garantindo a reconstrução da soberania nacional que, na atualidade, percebemos que essa autonomia está fortemente ameaçada, sem insumos, sem lideranças e dependendo de nações que priorizam seus interesses imediatos.

O projeto de reindustrialização pode contribuir ativamente para que produzamos internamente produtos que importamos, diminuindo a dependência externa, gerando empregos de qualidade e estimulando a educação, a ciência e a tecnologia que sempre foram negligenciadas e percebemos quanto estamos atrasados no cenário científico e tecnológico do mundo.

Embora percebamos que estamos num momento único para a sociedade nacional, a reindustrialização poderia abrir novos horizontes para a sociedade brasileira, retomando as esperanças da população, garantindo a reconstrução de setores industriais que perderam relevância nas décadas anteriores, investindo em capital humano e abrindo espaços para resolvermos, por completo, as dívidas históricas acumuladas pela nação, garantindo empregos decentes, salários dignos, saúde de qualidade e condições dignas para todos os brasileiros.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/08/2022.