Males da financeirização

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Vivemos numa sociedade marcada pelo crescimento da competição entre os atores econômicos, sociais e políticos, gerando mal-estar ascendente em todos os grupos sociais. A ansiedade acelera, os transtornos emocionais crescem, os estresses aumentam em todos os indivíduos e sociedades, gerando uma busca imediata por sobrevivência, emprego, remuneração e ganhos monetários, como forma de sobreviver numa sociedade que se compraz com o consumo, o imediatismo e o hedonismo.

O mundo contemporâneo se caracteriza pelo crescimento das tecnologias e transformações estruturais em todas as áreas e setores, alterando as condições de vida dos indivíduos, a concorrência cresce de forma acelerada, os trabalhadores precisam se adaptar a estas alterações, buscando se capacitar e se qualificar como forma de se inserirem nos mercados de trabalhos, canalizando seu tempo para a vida profissional, perdendo espaços de sociabilização e sendo vistos como autômatos, transformando a vida em espaços de sobrevivência material, deixando de lado laços sociais e familiares, aumentando as depressões, as ansiedades e a busca do significado da existência do ser humano.

Desde os anos 1980, percebemos o crescimento do modelo econômico global conhecido como financeirização, que passou a dominar todas as estruturas econômicas e produtivas internacionais, dominando a essência da economia e transformando tudo em um processo de intermediação financeira, que se caracteriza pelos altíssimos ganhos imediatos, deixando de lado os processos de planejamento econômico de longo prazo, além de limitar a capacidade de enxergar uma visão sistêmica da sociedade, transformando as relações sociais em espaços de negócios.

Neste cenário, percebemos um incremento da financeirização da sociedade, que exige resultados imediatos para garantir a sanha dos acionistas e investidores, com isso, percebemos que essa visão vem ganhando espaços em todas as relações econômicas e sociais. Nos setores educacionais, percebemos a implantação de modelos de gestão centrados numa visão de sociedade baseado nos retornos imediatos, adotando uma redução dos trabalhadores e sobrecarregando as atividades dos profissionais que sobrevivem, gerando ganhos imediatos e elevação dos rendimentos dos acionistas. Com estes movimentos, percebemos o surgimento de estruturas produtivas enxutas, com poucos trabalhadores e ganhos financeiros adicionais dos acionistas, levando-os a aquisição de empresas concorrentes menores e a consolidação de um modelo de gestão que se mercantiliza na sociedade, contribuindo para o surgimento de um ensino cada vez mais degradante e de qualidade questionável, mas com grandes lucros e a alegria dos acionistas.

Este modelo de gestão baseado na financeirização da economia se espalha para a sociedade global, gerando grandes atores econômicos internacionais que dominam o sistema produtivo internacional, setores que se caracterizam com poucos concorrentes, garantindo retornos elevados, tributação reduzida para estes setores, fragilizando a democracia, garantindo isenções fiscais e tributárias, com isso, não é difícil compreender que as desigualdades crescem em todas as regiões do mundo, criando novos grupos sociais que sobrevivem com migalhas, sem empregos, sem trabalhos e sem dignidades.

Neste ambiente, os projetos nacionais são deixados de lado, pensadores que pensam a sociedade de uma forma global são deixados de lado, cancelados e marginalizados, os espaços são abertos para aqueles grupos que defendem este modelo de financeirização, são grupos sociais que usufruem destes ganhos, interessados em altos retornos financeiros, além de serem vistos como prepostos dos grandes ganhadores da financeirização da economia, que se afastam do investimento produtivo, da geração de emprego e do crescimento do mercado interno, em detrimento dos lucros escorchantes garantidos por juros proibitivos que dominam a sociedade brasileira e contribuem para a situação de penúria que vive parcela significativa da população nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/06/2022.

Aborto, Estado mínimo e liberalismo de ocasião, por Glezer e Kignel.

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Nenhum liberal, ainda que de perfil conservador, deve celebrar decisão nos EUA

Rubens Glezer, Professor de direito constitucional da FGV Direito SP e coordenador do Supremo em Pauta
Daniel Kignel, Advogado criminalista, é sócio de Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados

Folha de São Paulo, 28/06/2022

É especialmente difícil construir consensos quando o assunto é a criminalização do aborto. Há muitos motivos para tal dificuldade, mas um deles é a confusão entre a questão moral e a questão política do aborto. Para qualquer pessoa que valoriza as liberdades individuais, é preciso separar esses dois pontos.

Na dimensão política, a dúvida é sobre os limites da intervenção do Estado na vida das pessoas. É um debate sobre o controle que uma comunidade pode impor, legitimamente, sobre as ações moralmente controversas de seus membros. Uma teoria popular para lidar com esse tipo de problema é o chamado liberalismo político; seus seguidores são liberais.

Para quem se diz liberal, a pergunta “isto é proibido?” é completamente diferente da pergunta “isto é imoral?”. O Estado não pode proibir uma conduta somente por sua moralidade contestável. Isso porque a premissa básica do liberalismo político é que o Estado deve promover a igualdade de oportunidades entre cidadãos, enquanto preserva ao máximo a autonomia e as liberdades individuais. No geral, o Estado só deve impedir que a liberdade de um indivíduo ou grupo seja utilizada para mitigar a liberdade ou autonomia de outros indivíduos ou grupos. Por isso, o Estado não poderia encampar uma ideologia moral.

Nesse sentido, o debate político sobre o aborto testa ao extremo a efetiva lealdade dos interlocutores ao valor da liberdade. Quem se diz liberal não pode ser a favor da criminalização do aborto só por reprová-lo como imoral ou pecaminoso.

Foi justamente com base nestes ideais que a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou em 1973 o caso Roe versus Wade. Naquela oportunidade, se estabeleceu que levar a sério o valor da liberdade constitucional implicaria reconhecer o direito de cada mulher decidir se deve encerrar, de forma voluntária, sua gestação. O tribunal entendeu que os direitos reprodutivos da mulher, bem como os direitos sobre o seu próprio corpo, seriam inerentes à sua liberdade de decidir o seu futuro. Por esse motivo, a decisão era considerada um verdadeiro pilar do liberalismo no país. Roe vs. Wade é, e sempre será, um marco histórico.

Contudo, o precedente foi derrubado pela Suprema Corte dos EUA na semana passada. Agora, o tribunal considera que o valor da liberdade não protege o indivíduo da intervenção estatal sobre sua intimidade, escolhas e projeto de vida. A Suprema Corte dos EUA derrubou o direito ao aborto por considerá-lo, sobretudo, imoral. Na decisão consta que a criminalização do aborto deve ser pensada na sua condição de “questão moral crítica” incomparável.

Nenhum liberal, ainda que de perfil conservador, deveria celebrar esse novo entendimento. É um cheque em branco para que a moralidade estatal possa atropelar as liberdades individuais. Afinal, agora é constitucional nos EUA que o Estado prenda um motorista de táxi que conduza uma mulher para uma clínica de aborto, mesmo que não tenha a menor ideia do que está acontecendo. É constitucional naquele país prender e punir os cidadãos que não vigiem de forma policialesca outros cidadãos. Nada mais autoritário.

Porém, muita gente que se diz liberal no Brasil irá comemorar. Mas isso é porque são apenas liberais de ocasião. São os defensores da legislação antiaborto, mas que pregam a liberdade econômica e de expressão sem quaisquer amarras, e bradam pela intervenção mínima do poder público na vida privada.

São os mesmos que aplaudiram os esforços de uma juíza para impedir que uma menima de 11 anos, grávida após um estupro, pudesse abortar. Definem-se como “pró-vida”, mas fecham os olhos para os incontáveis óbitos que ocorrem todos os anos, em geral de meninas pobres e desamparadas, decorrentes de abortos clandestinos.

Os liberais de ocasião são autoritários moralistas, que defendem a intervenção do Estado sobre seus adversários, mas clamam pela máxima liberdade para si e para os seus. A vitória dos liberais de ocasião será sempre uma derrota para a liberdade de todos.

Metaverso: entre planos e incertezas, o risco de uma “bolha sem fora”

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IHU On Line – Edição 550 – Novembro 2021

Paula Sibilia, professora e pesquisadora da cultura digital, fala sobre como o debate renovado sobre o metaverso apresenta uma plataforma que em essência é totalmente nova em relação a experimentos anteriores.

Enquanto o metaverso distópico, por exemplo, do livro Snow Crash, de Neal Stephenson, de três décadas atrás, apresentava um mundo violento e cinzento, hoje, quando se pensa em metaverso, essa possibilidade assume outros contornos, constituindo-se em uma novidade. “De fato, ainda não existe [o metaverso], e muitos inclusive duvidam que possa se tornar viável no curto prazo. Mas há orçamentos bilionários e interesses de peso dispostos a construí-lo com urgência, portanto, é altamente verossímil”, propõe Paula Sibilia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

O contexto, quando comparado às distopias dos anos 1990, é completamente outro e a experiência da pandemia da Covid-19, somada ao convívio intenso das redes sociais, também foi capaz de acelerar alguns processos. “Habitamos agora um terreno fértil para as realidades paralelas, virtuais, aumentadas, filtradas, turbinadas, instagrameadas e ambiguamente falsas, de um modo geral. A estranheza do isolamento motivado pela pandemia de Covid-19 não fez mais do que intensificar essa tendência, adubando um solo muito propício para que brotem todo tipo de metaversos bem-sucedidos”, descreve.

Os riscos, no entanto, estão no aprofundamento da algoritmização financeirizada de todas as dimensões da existência digital nesses ambientes. “E o capitalismo baseado em dados está no cerne dessa empreitada; disso, me parece, não há dúvida alguma. Tendo testemunhado o que vem ocorrendo nos últimos anos com o uso dos algoritmos nas redes sociais da internet, é assustador imaginar o que pode vir a acontecer numa atualização desses sistemas que leve ainda mais longe a ilusão de uma ‘bolha sem fora’ suscitada pela experiência da interação digital”, avalia.

Paula Sibilia é ensaísta e pesquisadora argentina residente no Rio de Janeiro e dedica-se ao estudo de diversos temas culturais contemporâneos sob a perspectiva genealógica, contemplando particularmente as relações entre corpos, subjetividades, tecnologias e manifestações midiáticas ou artísticas. Fez graduação em Comunicação e em Antropologia na Universidade de Buenos Aires – UBA, na Argentina; já no Brasil, fez mestrado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense – UFF, doutorado em Saúde Coletiva na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – IMS-UERJ e em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro – ECO-UFRJ. Desde 2006, é professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, bem como do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense – UFF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O metaverso não é um tema propriamente novo, sua origem remete à ficção científica ainda no final do século 20. Como a senhora compreende a noção e qual sua atualidade?

Paula Sibilia – Sim, mas há um detalhe bastante significativo: essa obra literária de 1995, Snow Crash (São Paulo: Editora Aleph, 2015), na qual foi cunhada a palavra “metaverso” para nomear esse tipo de experiência “virtual” que agora inspira as empresas mais poderosas do planeta, era um romance distópico. O livro de Neal Stephenson apresentava um mundo cinza e violento, povoado por criaturas viciadas em seus brinquedos tecnológicos e dominado por corporações gigantescas que, na época, consideravam-se puramente fictícias. Por isso eu diria que se trata, sim, de algo novo. De fato, ainda não existe, e muitos inclusive duvidam que possa se tornar viável no curto prazo.

Mas há orçamentos bilionários e interesses de peso dispostos a construí-lo com urgência, portanto, é altamente verossímil.

Gostaria de ressaltar, porém, essa questão do nome escolhido. Afinal, é como se Mark Zuckerberg tivesse decidido rebatizar Matrix a sua companhia, por exemplo, aludindo a um universo ficcional mais próximo do imaginário contemporâneo. O metaverso imaginado por Stephenson há três décadas era uma sorte de Matrix; e, levando em consideração o que tem acontecido do lado de cá da realidade desde então, custa acreditar que este nosso metaverso do século XXI venha a se tornar algo muito mais auspicioso. Ao contrário, talvez a realidade volte a superar a ficção, como aconteceu com o já antiquado “ciberespaço” dos inícios da internet.

IHU On-Line – No começo do século 21 houve a experiência, que restou frustrada, do Second Life. Era, também, um outro momento tecnológico, com equipamentos e conexões mais precárias que as atuais. O que muda agora, sobretudo quando levamos em conta a recente aposta do Facebook e da Microsoft no metaverso como futuro de seus negócios?

Paula Sibilia – Em primeiro lugar, não diria que a experiência de Second Life foi frustrada. Tanto é que a estamos lembrando aqui como uma precursora destes “universos virtuais” recém-anunciados. Além dos avanços puramente técnicos, que foram muito contundentes e prometem continuar, eu acrescentaria outro fator que vem a se somar agora e que não estava tão presente alguns anos atrás. Refiro-me à familiaridade que temos desenvolvido com as “realidades paralelas”. Não apenas os cenários publicitários de ambientes como Instagram ou Tinder, nos quais se tornou habitual o uso de “filtros” e retoques, mas também a “gamificação” de diversas atividades para adultos, a estética do “reality-show” permeando todos os gêneros midiáticos e artísticos, e inclusive fenômenos tão perturbadores como as fake news, os negacionismos e a “pós-verdade”.

Foi se aprofundando, nos últimos anos, essa fragilidade do real perpassada pela cultura do espetáculo. Habitamos agora um terreno fértil para as realidades paralelas, virtuais, aumentadas, filtradas, turbinadas, instagrameadas e ambiguamente falsas, de um modo geral. A estranheza do isolamento motivado pela pandemia de Covid-19 não fez mais do que intensificar essa tendência, adubando um solo muito propício para que brotem todo tipo de metaversos bem-sucedidos.

IHU On-Line – Até que ponto o metaverso abre horizontes ao que compreendemos como experiência humana e a partir de que ponto ele reduz o ser humano às lógicas e interesses do capitalismo pós-industrial?

Paula Sibilia – Não sabemos o que pode acontecer, nem se de fato essa tecnologia irá se desenvolver e obter o sucesso esperado. Afinal, pelo menos no caso do Facebook (ou Meta), está claro que se trata de uma estratégia audaciosa para se reinventar como empresa, num momento de crise em que chovem críticas gravíssimas a seu modelo de negócios, com vazamentos e denúncias, investigações judiciais e desconfiança do público. Contudo, sem ignorar todos esses fatores, a aposta faz sentido. E o capitalismo baseado em dados está no cerne dessa empreitada; disso, me parece, não há dúvida alguma. Tendo testemunhado o que vem ocorrendo nos últimos anos com o uso dos algoritmos nas redes sociais da internet, é assustador imaginar o que pode vir a acontecer numa atualização desses sistemas que leve ainda mais longe a ilusão de uma “bolha sem fora” suscitada pela experiência da interação digital.

IHU On-Line – O que significa pensar, parafraseando e adaptando uma proposição que a senhora traz em O homem pós-orgânico, que, no capitalismo contemporâneo das plataformas digitais, “tudo que é sólido se desmancha na luz”?

Paula Sibilia – Ao propiciar vivências “virtuais” que prescindem de interfaces mais sólidas como as telas e os teclados, o metaverso promete criar ambientes de pura luz para nossas interações, decompondo a espacialidade e nossos próprios corpos em imagens digitais. Não deveríamos esquecer, porém, que a imaterialidade desses mundos é ilusória, visto que, em algum lugar do planeta, há toneladas de equipamentos de enorme potência capazes de sustentar essa aparente leveza, e muita gente trabalhando em péssimas condições para manter isso funcionando. Do mesmo modo, embora os serviços de acesso a essas experiências possam ser gratuitos, como acontece agora com as redes sociais tipo Facebook ou Instagram, também é necessário possuir toda sorte de artefatos e chaves mágicas para fazer login. Nada indica que isso mudará no caso do metaverso.

IHU On-Line – Por outro lado, parece interessante pensar dialeticamente as reconfigurações que a noção de humano e, propriamente, de corpo sofrem com tecnologias digitais como a do metaverso. O que implica, portanto, pensar no atual contexto a obsolescência do corpo orgânico?

Paula Sibilia – A materialidade orgânica do corpo humano sempre representou um limite incômodo para os impulsos “virtualizantes” das tecnologias digitais. Há, inclusive, certo ressentimento pela consistência carnal, como sugere uma das acusações mais graves contra o Instagram reveladas nos documentos da empresa recentemente vazados: a exposição constante a imagens de corpos supostamente “perfeitos” estaria causando sofrimento mental com sérias consequências ao se comparar com elas. As telas de vidro e os aplicativos de edição repelem a viscosidade biológica e tendem a redesenhar os corpos como imagens lisas e puras.

A experiência da pandemia também contribuiu para intensificar estas questões, já que a grande maioria das atividades que antes ainda costumavam ser realizadas de modo presencial passou a ocorrer exclusivamente nas telas interconectadas por dispositivos como Zoom ou Meet. Todo esse treinamento do último par de anos não terá sido em vão: viramos, literalmente, avatares. E, nesse contato cotidiano com o espelho digital, foi se incrementando a vontade de “filtrar” a própria imagem. De fato, nos protótipos de metaversos já existentes, como o jogo Fortnite, é habitual que os usuários comprem skins ou “peles” pós-orgânicas para seus personagens.

IHU On-Line – O projeto, digamos assim, de humanidade do metaverso parece ser, justamente, o de ultrapassar os limites impostos pela organicidade do humano. As fronteiras corpóreas – geográficas, biológicas e temporais – são reorganizadas. Quais são as consequências desta promessa fáustica?

Paula Sibilia – Não sabemos, mas provavelmente ficaremos insatisfeitos e iremos querer mais. Se não, como fariam as empresas para continuar ganhando dinheiro atiçando nossos sonhos e desejos? A falta de limites é uma marca tanto das redes digitais quanto das subjetividades contemporâneas, com elas compatíveis, e os mercados aproveitam.

IHU On-Line – O que é a vida no metaverso? Faz sentido esse conceito e, se sim, de que forma?

Paula Sibilia – Imagino que um dos usos mais habituais desses ambientes será como “entretenimento”, ou seja, um portal para a evasão como tantos outros, alimentado pela publicidade e visando a perpetuar o consumo. Nesse sentido, não vejo uma diferença radical com os dispositivos digitais já existentes, embora seja claramente um passo a mais rumo a essa indistinção entre o dentro e o fora. Essa fronteira, já bastante tênue e cada vez mais nebulosa, tende a desaparecer de vez ao serem eliminadas as interfaces mais duras (teclados, telas, aparelhos) em proveito dos sensores ou das conexões neurais. “Em vez de apenas ver o conteúdo, você estará dentro dele“, explicou Zuckerberg numa entrevista.

Por isso, provavelmente esses dispositivos serão muito mais eficazes que os atuais na sua capacidade de capturar nossa atenção e nossos sentidos. Considerando o que já vem acontecendo nas redes bidimensionais da atualidade, é preocupante o que poderia gerar uma precisão extremamente customizada para cada “usuário” ou consumidor.

IHU On-Line – Por fim, até que ponto as possibilidades existenciais-tecnológicas inauguram um certo tipo de eugenia composta pela hibridização entre dimensões biológicas e digitais?

Paula Sibilia – Quando antes mencionei a possibilidade de comprar “peles” para os nossos avatares, estava pensando em algo assim, pois de fato já existe um mercado comparável na realidade analógica: cirurgias plásticas e um amplo cardápio de intervenções dermatológicas, também estimuladas pelo crescente uso de telas e imagens para a interação social. Em contraste com o escopo limitado de possibilidades que nossa carcaça biológica nos oferece, o mercado de retoques digitais é virtualmente infinito. Em suma, poderemos encarnar todas as peles imagináveis que sejamos capazes de comprar. Contudo, assim como ocorre na versão analógica do drama, é provável que não seja suficiente: continuaremos insatisfeitos e querendo mais (e o mercado não cessará de lançar tentadoras novidades), pois essa é precisamente a definição do consumidor. E, ao que tudo indica, é isso que serão os habitantes do metaverso.

IHU On-Line – Como pensar o metaverso em um contexto brasileiro, mas também global, de profunda desigualdade?

Paula Sibilia – Imagino que haverá metaversos para todos os gostos e bolsos, ou para quase todos, como ocorre atualmente com as versões bidimensionais da brincadeira.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Paula Sibilia – Talvez chamar a atenção para o fato de que a internet, atualmente, ainda excede as plataformas comandadas por empresas como Facebook, Amazon e Google. No entanto, nos últimos anos esse território parece ter sido praticamente conquistado pelas corporações; de fato, para muita gente as redes sociais são sinônimo da internet. Isso não é por acaso, claro, pois foram delineadas várias estratégias nesse sentido; contudo, a sua eficácia não deixa de surpreender. Cabe questionar se o metaverso contempla algum tipo de “fora” nesse sentido; ou seja, se haverá uma internet que não pertença aos “cercadinhos” das plataformas e, nesse caso, como se implementará o acesso a esses interstícios, com que artefatos e sob quais regras.

A doutrina do choque: uma contra-história do neoliberalismo, por Benedetto Vecchi.

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Com o tempo, amadureceu em Naomi Klein “a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade”, conta Benedetto Vecchi, crítico cultural italiano e que colabora regularmente com o jornal comunista italiano Il Manifesto. “A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais ‘frágeis’, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais (…) O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein”, escreve Vecchi.

Benedetto Vecchi faz uma resenha do último livro de Naomi Klein, Shock Doctrine (A Doutrina do Choque), ainda sem tradução para o português. Nele, diz o resenhista, Naomi Klein procura desvelar “um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra”. Esse é o nascimento daquilo que a autora chama de “Estado corporativista”, ou seja, uma elite restrita que passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social.

No livro, Klein faz uma reconstrução das carreiras políticas, dos vínculos de amizade, das relações de homens de negócios muito interessante. Naomi Klein é autora de Sem Logo. A tirania das marcas em um planeta vendido (2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002).

A resenha de Benedetto Vecchi foi publicada no sítio La Haine, 26-09-2007. A tradução é do Cepat.

Segue a íntegra da resenha de Benedetto Vecchi.
Uma coisa é certa. Naomi Klein, depois do sucesso de Sem Logo, não ficou de braços cruzados. Pôs-se novamente na estrada, visitando ou vivendo por breves períodos na Argentina, Brasil, África do Sul, Chile, Bolívia, Iraque, Sri Lanka, Tailândia, Líbano, Rússia e, não custa dizê-lo, nos Estados Unidos. A partir desses países enviou reportagens e nesses países entrevistou economistas e ativistas para jornais como The Guardian, The Nation ou o The New York Times. Ao mesmo tempo, acumulou informações sobre as mudanças operadas no neoliberalismo depois do ataque ao World Trade Center nova-iorquino do 11 de setembro, seis anos atrás.

Com o passar do tempo, no entanto, amadureceu nela a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade, sobre os elementos que a ensaísta contemporânea chama de os Trinta Gloriosos, ou seja, o período de desenvolvimento econômico e social que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, que viu surgir em muitos países a presença reguladora do Estado na economia e na vida social.

A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais “frágeis”, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais que no potente Norte teriam encontrado não poucas resistências por parte das forças sindicais e políticas do movimento operário e de outros movimentos sociais. O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein.

A constelação neoliberal
O resultado é um livro que pode ser lido como uma contra-história do neoliberalismo contemporâneo. Seu título, Shock Doctrine (A doutrina do choque), introduz imediatamente na tese do volume: as crises – econômicas, sociais ou políticas – e as catástrofes ambientais são usadas para introduzir reformas neoliberais que levaram à demolição do Estado de Bem-estar.

O livro entra, para começar, no coração da Guerra Fria. Naqueles anos, o futuro prêmio Nobel de Economia Milton Friedman começa a urdir seu tecido para construir uma rede intelectual de pesquisadores favoráveis ao livre mercado. É um economista brilhante, mas suas propostas a favor da demolição da intervenção estatal na sociedade e na economia são muito “extremistas” em relação ao que as empresas e o governo de Washington fazem. Contudo e com isso, seu centro de pesquisa recebe financiamento de fundações privadas e do governo. Milton Friedman sustenta, já então, que as crises podem ser usadas para uma “terapia de choque” a favor do livre mercado.

Milton Friedman se converte no agit-prop do neoliberalismo, ao passo que seus discípulos são enviados pelo mundo inteiro em missão de proselitismo. Suas receitas acabarão se convertendo em programas de política econômica no Chile, Paraguai, Argentina, Brasil, Guatemala, Venezuela. Há um pequeno problema. São programas aplicados com carros blindados nas ruas e tortura sistemática nas prisões, enquanto o número de desaparecidos chega a ser tão alto que nem sequer os meios de comunicação norte-americanos podem ignorá-lo.

A parte do livro que fala dos anos 60 e 70 conta a história dos golpes de Estado e do uso sistemático da violência contra os opositores políticos, e pode parecer um dejà vu de histórias conhecidas há muito tempo. Mas Naomi Klein o apresenta como a primeira crise do neoliberalismo. Chile, Argentina e Paraguai são laboratórios em que se enriquecem muitas transnacionais norte-americanas, às quais se permite que se apropriem de muitas matérias-primas e abram novos mercados para seus produtos. Uma espécie de renovada acumulação primitiva deslocalizada fora das fronteiras nacionais. Por isso, vale a pena financiar, em consonância com Washington, o terrorismo de estado chileno, argentino, brasileiro e paraguaio. E é precisamente nesse período que a rede intelectual tecida por Friedman se consolida e se estende ao mesmo tempo.

Torna-se impressionante o trabalho feito por Naomi Klein de reconstrução das carreiras políticas, os vínculos de amizade, as relações de homens de negócios – de Dick Cheney a Donald Rumsfeld, de John Ashcroft a Domingo Cavallo, de Michel Camdessus a Paul Bremen, a Paul Wolfowitz e à família Bush – que passam de um conselho de administração de alguma transnacional à direção de um think thank neoliberal, de postos de responsabilidade em algum governo aos despachos do Banco Mundial ou do FMI.

A história contada até agora é conhecida fora dos Estados Unidos. Naomi Klein sabe disso, mas também está consciente de que nos Estados Unidos é história conhecida ou desvelada só para uma minoria de ativistas ou intelectuais radicais. Daí sua obra de sistematização das informações antes de passar a contar a segunda onda neoliberal, que tem, como a primeira, um apóstolo. É outro economista, chama-se Jeffrey Sachs e quer demonstrar que o livre mercado, diferentemente do que pareceu ser o caso na América Latina, não é incompatível com a democracia. É um autêntico “evangelista do capitalismo democrático” e vê na queda da União Soviética e do socialismo real a melhor oportunidade para conciliar a democracia com as “leis naturais” do mundo dos negócios. Aconselha – e é ouvido – a Polônia de Lech Walesa e a Rússia de Boris Yeltsin a procederem a uma desregulação radical de suas economias. Sua receita será um fracasso, mas nesse momento sua “terapia de choque” encontra um valioso aliado num FMI já definitivamente depurado de economistas vinculados ainda às teorias de Lord Maynard Keynes.

A dívida será a arma vencedora empregada pelos neoliberais, que concederão empréstimos só na condição de que se desregularize completamente a economia. É o chamado Consenso de Washington, são seu corolário de “programas de ajuste estrutural”. Como no passado, as transnacionais nadarão em ouro, mas Sachs, assim como os outros “evangelistas do livre mercado”, sustenta que o que agora convém fazer é colocar em leilão todas as atividades produtivas e os serviços sociais gestionados pelo Estado, ainda que às custas do sacrifício de centenas de milhares de postos de trabalho sobre o altar da competitividade internacional. A pobreza, não deixam de repetir, é um efeito colateral que, no entanto, acabará sendo esclarecido pela mão invisível do mercado.

A “terapia do choque” se nutre de estratégias de marketing, propaganda e falsificação de dados, tratando de demonstrar que o livre mercado é a única via para escapar da decadência econômica e da pobreza em massa. Mas o consenso tem que ser conquistado eleitoralmente, mesmo se isso pode chegar a diminuir o ritmo das “reformas”.

A política woodoo
Para remover esse obstáculo há uma estratégia bem provada durante a “guerra da dívida” na América Latina: criar o pânico, para em seguida pressionar a fim de que se adotem “terapias” econômicas neoliberais. O Banco Mundial e o FMI se convertem então em instituições supranacionais adaptadas ao objetivo de limitar a soberania popular e privar os governos nacionais de qualquer autonomia em termos de tomada de decisões. Os programas econômicos são, pois, confeccionados em Washington, mas sua aplicação in situ vem garantida por pessoal político “fiel à linha”. Naomi Klein mostra documentalmente como mesmo as crises asiáticas dos anos 90 tiveram como protagonistas o Banco Mundial e o FMI, que orquestraram conscientemente a crise financeira a fim de demolir qualquer presença estatal na economia. E quando a Tailândia, Filipinas, Malásia, Indochina e Coréia do Sul capitularam frente ao FMI, um “Chicago boy” escreveu uma coluna no Financial Times comparando a revolução do livre mercado na Ásia com uma “segunda queda do Muro de Berlim”.

Na América Latina a situação é diferente. As ditaduras começaram a cair uma após outra e subiram ao poder muitas coalizões de centro-esquerda. É a era, afirma Naomi Klein, da política woodoo, caracterizada por programas eleitorais keynesianos e sucessivas políticas econômicas rigidamente neoliberais.

O complicado novelo que Naomi Klein pacientemente desfia mostra não tanto um comitê de negócios da burguesia, quanto um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra. É o nascimento do “Estado corporativista”, como o define a autora, onde uma elite restrita passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social. O 11 de setembro é, deste ponto de vista, um maná para os neoliberais. A “guerra do terror” se converte assim na retórica atrás da qual ocultar a venda da defesa nacional às empresas privadas e o pleno controle do petróleo.

Com a invasão do Afeganistão e do Iraque, o warfare, ou seja, o uso da guerra para relançar a economia, se elevou a sistema, porque a guerra ao terror é uma guerra total que implica não apenas o setor militar, mas a sociedade inteira. Iluminador a este respeito é o capítulo que a jornalista canadense dedica a Israel, fazendo do desenvolvimento da indústria high-tech da segurança e da chegada dos hebreus do leste europeu depois da queda do Muro de Berlim duas das chaves interpretativas – não as únicas – da passagem de uma hipótese de paz com os palestinos ao funesto passeio de Ariel Sharon pela esplanada das mesquitas que provocou a segunda Intifada. Os fugitivos do leste europeu puderam substituir a força de trabalho palestina de baixo custo, ao passo que as empresas high-tech puderam oferecer seus produtos ao mundo inteiro, visto que a guerra ao terror é a guerra da civilização ocidental contra seus inimigos.

A economia da catástrofe
Quando Naomi Klein começa a analisar os efeitos devastadores do furacão Katrina e do Tsunami descobre que as catástrofes são utilizadas pelo FMI como missão creep, isto é, expansão indevida de uma missão, neste caso da máquina pública. Os últimos baluartes do Estado como garante da convivência social são submetidos a ataque. Nova Orleans se converteu no laboratório dessa ulterior privatização do Estado. Analogamente, o Tsunami é utilizado para transformar algumas regiões ou mesmo nações (Sri Lanka, Tailândia e as Ilhas Maldivas) em clubes de férias para as elites globais.

Assim é narrado o capitalismo dos desastres. Naomi Klein, como já fizera em Sem Logo, não quer construir uma teoria do desenvolvimento capitalista. É uma excelente publicitária e jornalista de investigação que se faz sempre a pergunta correta: como organizar a resistência ao neoliberalismo. É verdade que sua defesa do Estado de Bem-estar poder parecer ingênua, mas quando começa a enumerar o que os movimentos sociais fazem e o que propõem, o seu torna-se um keynesianismo que abre portas de autogoverno por parte dos movimentos sociais e a uma democracia radical.
Shok Doctrine é, pois, um livro ambicioso, porque pretende oferecer um mapa do “capitalismo dos desastres”. É certamente um fresco da reorganização do capitalismo depois do 11 de setembro e começa a identificar seus pontos fortes, as empresas líderes que estão emergindo e sua vocação global. Mas também identifica seus pontos frágeis. É, pois, um mapa útil de ler, também para preparar-se para resistir à próxima onda de terapia de choque que se alimentará da próxima catástrofe ambiental e da próxima etapa da guerra preventiva. Ou do anunciado e italianíssimo corte dos gastos sociais para fazer frente à decadência econômica.

O silêncio dos bons, por Cida Bento.

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Os bons’, como dizia Martin Luther King, precisam se manifestar contra o autoritarismo

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 23/06/2022

Nos últimos meses, temos visto a quebra de silêncio de instituições que se veem ameaçadas na sua existência, autonomia e dignidade, por autoridades do próprio Estado brasileiro.

E me lembro da famosa fala de Martin Luther King: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… o que me preocupa é o silêncio dos bons”.

Parece que, não sem tempo e ainda de forma pontual, esse silêncio vem sendo quebrado a partir de vozes que vêm do interior de importantes instituições brasileiras. Exemplos não faltam, como o de servidores e especialistas em ambiente, denunciando o desmonte do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), em abril deste ano. Ou, ainda, a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa) reagindo, em nota de repudio de dezembro de 2021, a “tentativas de intervenção sobre o posicionamento da autoridade sanitária que não advenham do debate estritamente científico e democrático”.

Lideranças do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e da Receita Federal, em dezembro de 2021, entregam cargos em clima de revolta, denunciando tratamento desrespeitoso e interferência técnica do governo federal nas instituições, fragilizando-as administrativa e tecnicamente.

Em outubro de 2021, um grupo de economistas, banqueiros, empresários e representantes da sociedade civil assina manifesto para preservar as instituições democráticas e defender as eleições.

A exemplo dos servidores do Banco Central, mais da metade de cargos de lideranças de auditores fiscais é entregue em janeiro de 2022, contra o que entendem ser um tratamento desigual à categoria. Servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) decidem, há poucos dias, por paralisação em razão de palavras proferidas pelo presidente da instituição sobre o brutal assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e denunciam uma política anti-indigenista, que não faz a demarcação de terras, persegue servidores e militariza cargos estratégicos.

A reação que cresce e se espalha é contra líderes que tomam decisões e comandam importantes instituições públicas agindo como manipuladores perversos que não amam o Brasil, não se interessam pelo bem comum e trabalham para destruir as instituições democráticas.

Os movimentos sociais de mulheres negras, quilombolas, indígenas, os ambientalistas, estudantes, artistas, a oposição nos Parlamentos, as entidades sindicais há muito se manifestam sobre o ataque à democracia e a política de morte direcionada para determinados grupos. No entanto, é importante a manifestação pública de instituições,
algumas delas diretamente envolvidas na preservação da democracia.

Vale destacar, porém, que algumas instituições, como os organismos policiais ou das Forças Armadas, Parlamentos, as organizações de investidores e grandes corporações têm se mantido em silêncio.

Como não há instituição com centenas de milhares de pessoas, monolítica e de pensamento único, vou parafrasear Chico Buarque e Milton Nascimento perguntando: o que será que será, que andam sussurrando, em versos e trovas, que andam combinando no breu das tocas, que anda nas cabeças, anda nas bocas, que estão falando alto pelos botecos…

Ou seja, em vez de sussurrar, as vozes de integrantes de instituições, que não são cúmplices e que não concordam com a destruição da democracia, têm que se tornar audíveis, em alto e bom som para honrar as instituições brasileiras.

Pois a verdade é que não temos escolha. Ou quebramos o silêncio e defendemos nossas instituições ou vamos amargar anos de autoritarismo atrasado, brutal, violento e predador. Ou seja, “os bons”, como dizia Martin Luther King, precisam se manifestar.

Caminhos equivocados

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A economia internacional vem passando por grandes transformações nos últimos anos, desde a crise financeira de 2008 a sociedade mundial vem sentindo o aumento das instabilidades e das incertezas que crescem em todas as regiões, diante disso, percebemos o incremento das turbulências econômicas e financeiras, a ascensão da economia chinesa, a perda de poder relativo da economia norte-americana, a pandemia e seus custos crescentes e a guerra que atordoa a comunidade internacional, impondo custos financeiros assustadores, mortes de milhares de pessoas, destruição da infraestrutura, desestruturação das cadeias produtivas, o incremento dos preços e gerando mais volatilidades, desesperanças, racismos e xenofobias.

Neste ambiente de instabilidades econômicas e políticas, as nações desenvolvidas estão buscando novos espaços de consensos políticos e a reconstrução de novos modelos econômicos e produtivos, reestruturando as políticas públicas exitosas e reformulando aqueles que carecem de consistências econômicas e financeiras, reduzindo as disparidades econômicas e angariando espaços de acumulação e democracia.

Numa sociedade como a brasileira, percebemos a necessidade de reconstruirmos os laços sociais e o redesenho de políticas sociais que garantam autonomia para os indivíduos, reduzindo os poderes econômicos e financeiros dos grupos que dominam as estruturas do Estado Nacional, que controlam as burocracias governamentais e garantem aos seus prepostos os melhores cargos e remunerações, com isso, se utilizam deste poder para angariar isenções crescentes e subsídios que garantem a perpetuação de seus ganhos intocáveis desde os primórdios dos tempos coloniais.

Dentre as grandes reformas que devem ser vistas como urgentes e imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico, devemos colocar a reforma tributária no primeiro lugar, isto porque vivemos numa sociedade que premia a especulação financeira e o rentismo, valorizando a ostentação e o palavreado alienado, deixando de lado os produtores e os verdadeiros empreendedores nacionais.

A reforma tributária deve preconizar que aqueles que ganham mais devem contribuir com mais recursos e estes devem ser canalizados para a construção de uma nação mais desenvolvida e a reconstrução dos canais de solidariedade, ainda mais num momento marcado por grandes incertezas e instabilidades impulsionadas pela pandemia. A progressividade tributária deve ser um projeto nacional, reduzindo subsídios em setores ineficientes, tributando fortemente os setores que usam seus lobbies para angariar ganhos adicionais, além de aliviar tributos no consumo e incrementando os de propriedade, desta forma, estaremos nos aproximando dos exemplos de nações desenvolvidas.
Neste ambiente, percebemos discussões desnecessárias e equivocadas, pautas ultrapassadas e ideologizadas que pouco contribuem para a melhora das condições sociais da coletividade e servem apenas para esconder os verdadeiros e, urgentes, debates nacionais. Neste momento, precisamos retomar ações concretas para reduzir a desigualdade que crassa a sociedade e perpetua as precárias condições da população, onde mais de 33 milhões de brasileiros estão passando fome e mais da metade da população nacional vive em condição de insegurança alimentar, enquanto uma minoria se compraz com a degradação de uma maioria, ecoando discursos de moralidade e eficiência mas, na realidade, sobrevivem com polpudos subsídios de um Estado ineficiente, mas servem para manter seus interesses imediatos, seus lucros estratosféricos, suas ostentações vulgares e a manutenção de seu status quo.

Estamos postergando decisões fundamentais para o futuro da nação, estamos negligenciando as pesquisas científicas, reduzindo os repasses para as universidades e os centros de pesquisas e estamos degradando instituições de Estado que contribuíram para melhorar a ciência nacional, num momento em que o conhecimento científico se transformou no grande instrumento de soberania e da autonomia das nações, sem investimentos na ciência estamos, novamente, flertando com a barbárie.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/06/2022.

Byung-Chul Han: Infocracia e a caverna digital

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Mundo online forja novo totalitarismo, aponta o filósofo em recente livro. Esfera pública é pervertida: emerge comunicação sem comunidade. Verdade vira borrão e, através de algoritmos e autoexploração, desejos coletivos são reduzidos ao eu

Fernando D’Addario – OUTRAS PALAVRAS – 30/05/2022

Byung-Chul Han é um operador saudável do quadro social e comunicação que expõe seu trabalho: seus livros são breves, rápidos, transparentes. Cada um deles propõe apenas um punhado de conceitos, facilmente reduzidos a uma frase-slogan que flui através das redes sociais e funciona como um “coringa” para reforçar opiniões de diversas índoles. Sua grande contribuição ao pensamento nas últimas décadas certamente foi sua análise do indivíduo autoexplorado, o novo sujeito histórico do capitalismo. Mas, além dessa ideia-força, o principal mérito do filósofo coreano é ter captado a “atmosfera” dessa época para, dessa forma, traduzi-la em textos nos quais um cidadão comum com certa sensibilidade – política, cultural, trabalhista – se sente refletido.

Em seu último livro, Infocracia [2022], ainda sem tradução no Brasil, Han explora como o “regime de informação” substituiu o “regime disciplinar”. Da exploração de corpos e energias – tão bem analisadas por Michel Foucault em sua época — passamos à exploração de dados. Hoje o signo dos detentores do poder não está ligado à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual.

Em sua exposição genealógica, Han descreve o declínio desse modelo de sociedade dissecado pelo autor de Vigiar e Punir, e encontra pontes com outros autores do século XX como Hannah Arendt, de quem resgata certas abordagens do totalitarismo. Han diz que hoje estamos submetidos a um novo tipo de totalitarismo. O vetor não é mais o relato ideológico, mas a operação algorítmica que a sustenta.

O filósofo circunda os temas que já havia exposto em outras obras (a compulsão à performance que descreveu em A sociedade do cansaço; o surgimento de um habitante voluntário do panóptico digital, encarnado em A sociedade da transparência; o comodismo frente ao imperativo do like como analgésico do tempo presente, abordado em A sociedade paliativa), mas centra-se na mudança estrutural da esfera pública, atravessada pela indignação digital, que fragiliza o que outrora entendíamos como democracia.

Han argumenta que nesta sociedade marcada pelo dataísmo, o que está ocorrendo é uma “crise da verdade”. Ele escreve: “Esse novo niilismo não significa que a mentira se faça passar como verdade ou que a verdade seja difamada como mentira. Ao contrário, mina a distinção entre verdade e mentira”. Donald Trump, um político que opera como se ele próprio fosse um algoritmo e só se orienta pelas reações do público expressas nas redes sociais, não é, nesse sentido, o mentiroso clássico que deturpa deliberadamente as coisas. “Ao contrário, [ele] é indiferente à verdade dos fatos”, diz o filósofo. Essa indiferenciação, continua Han, representa um risco maior para a verdade do que aquele instaurado pelo mentiroso.

O pensador coreano diferencia os tempos atuais daqueles não muito distantes quando dominava a televisão. Ele define a TV como um “reino das aparências”, mas não como uma “fábrica de fake news”. Destaca que a telecracia “degradava as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. Na infocracia, por outro lado, as disputas políticas não degeneram em espetáculo, mas em “guerra de informação”.

Porque fake news também é, antes de tudo, informação. E sabe-se que “a informação se espalha mais do que a verdade”. Por isso, conclui com o pessimismo que lhe é próprio: “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está, portanto, fadada ao fracasso. Ela é resistente à verdade”.

Define a situação atual com uma frase-slogan que o autor de Não-coisas tanto gosta: “A verdade se desintegra em poeira informativa transportada pelo vento digital”.

Mas como essa vítima é varrida pelo vento digital? Como se comporta? “O sujeito do regime de informação não é dócil nem obediente. Pelo contrário, acredita-se livre, autêntico e criativo. Ele se produz e realiza a si mesmo”. Esse sujeito – que no sistema atual também se realiza como objeto – é simultaneamente vítima e vitimizador. Em ambos os
casos a arma utilizada é o smartphone.

Por meio dessa ferramenta, a mídia digital pôs fim à era do homem-massa. “O habitante do mundo digitalizado não é mais aquele ‘ninguém’. Mas é alguém com um perfil, enquanto que na era das massas só os criminosos tinham perfil. O regime de informação se apodera dos indivíduos elaborando perfis comportamentais”.

O grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmo se colocam grilhões aos comunicar e produzir informações. A prisão digital é transparente”. É precisamente esse sentimento de liberdade que garante a dominação. Por fim, atualiza o mito platônico: “Hoje vivemos aprisionados em uma caverna digital mesmo acreditando que estamos livres”.

É uma revolução nos comportamentos que exclui qualquer possibilidade de revolução política. Diz Han: “Na prisão digital como uma zona de bem-estar inteligente não há resistência ao regime prevalecente. O like exclui qualquer revolução”>

Em tempos de microtargeting eleitoral, porém, ocorre um fenômeno paradoxal: a tribalização da rede. Interesses segmentados que se expressam por meio de discursos previamente elaborados e que aos poucos vão corroendo o que Jürgen Habermas definiu teoricamente como “ação comunicativa”. “A comunicação digital como comunicação sem comunidade destrói a política baseada na escuta”, escreve Han, enfatizando que no antigo processo discursivo os argumentos poderiam ser “melhorados”, ao passo que agora, guiados por operações algorítmicas, dificilmente são “otimizados” em função do resultado que se almeja.

É a direita que a mais capitaliza esse fenômeno de tribalização da rede, assegura o filósofo, porque nessa franja a demanda por “identidade do mundo vital” é maior. Em uma sociedade desintegrada em “irreconciliáveis identidades sem alteridade”, a representação, que por definição gera uma distância, é substituída pela participação direta. “A democracia digital em tempo real é uma democracia presencial”, que ignora sua esfera natural de representação: o espaço público. Isso leva a uma “ditadura tribalista de opinião e identidade”.

O sujeito autoexplorado da sociedade do cansaço, o habitante voluntário da sociedade transparente, o indivíduo que se entrega à sociedade paliativa, também se submete, conclui Han, à fórmula do regime de informação: “comunicamos até morrer”.

‘Para fugir de imposto, brasileiros viram empresas e aumentam desigualdade’, diz economista

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Livro do economista Manoel Pires mostra caminhos para uma tributação mais justa

Folha de São Paulo, 16/06/2022

O Brasil é um dos países com a tributação mais regressiva do mundo, o que leva pobres a pagarem mais impostos, proporcionalmente, que os ricos. Nas últimas décadas, foram mínimas as tentativas de reverter o quadro, no sentido de uma tributação mais progressiva.

Para ajudar a qualificar tecnicamente esse debate, o economista e ex-secretário de Política Econômica Manoel Pires lançou o livro “Progressividade tributária e crescimento econômico”, com a colaboração de vários autores.
A obra faz um profundo diagnóstico do sistema tributário e apresenta saídas, muitas baseadas nas melhores experiências internacionais. “O intuito é aprofundar a discussão para quando a oportunidade de uma reforma tributária aparecer”, afirma Pires.

O livro teve o apoio da Samambaia Filantropias e pode ser acessado gratuitamente do site do Observatório de Política Fiscal da FGV Ibre, coordenado por Pires.

O Brasil é famoso pela sua desigualdade de renda, mas ainda tem um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo. O que explica a falta de ações no sentido de uma maior justiça tributaria? Há um conjunto de elementos que culminam em um Basil muito desigual. O sistema tributário é um deles, além das dificuldades de avançarmos em temas como educação. Há os lobbies de grupos econômicos que geram benefícios para si e que acabam impedindo uma democratização maior do Orçamento. Há muitas explicações.

Fizemos o livro a partir desse cenário de desigualdade enorme, que após uma década e meia de alguma redução voltou a aumentar. Isso em um contexto de baixo crescimento.

O objetivo foi buscar elementos para uma reforma tributária progressiva que gere crescimento, pois é muito mais fácil distribuir renda com a economia crescendo.

Diferentemente da tributação sobre o consumo, em que já existem proposta amadurecidas e que geram pouca controvérsia técnica, no caso de um imposto de renda progressivo ainda há muita discussão, com muitas contradições sobre os efeitos dessa reforma.

Sobre qual seria o efeito econômico de tributar dividendos, ou como um imposto sobre grandes fortunas poderia se encaixar no sistema tributário.

Quais seriam os vetores para uma tributação mais progressiva e que aliviasse os impostos sobre o consumo, que pesa mais sobre os pobres? Do ponto de vista internacional, há toda uma discussão sobre como criar sistemas competitivos para as empresas. Se não acompanharmos essa tendência de redução da carga sobre o setor privado, perderemos competitividade.

Em alguns países, isso tem vindo acompanhado da ampliação da base de arrecadação, para que os governos não percam receita. O que há, tipicamente, é a tributação sobre lucros e dividendos. E o Brasil é um dos poucos países que não tributa isso, algo claramente associado à nossa desigualdade.

Em termos domésticos, a tributação da pessoa física no Brasil tornou-se muito regressiva no topo da renda. Quem está no topo paga menos [proporcionalmente] do que quem em está no meio da distribuição. Quem está no topo tem mais de 50% da renda associada a lucros e dividendos, e ela não é tributada.

Outra questão é que, dependendo da forma com você estrutura sua atividade profissional, existe o que chamamos de iniquidade horizontal: pessoas com a mesma renda sendo tributadas de forma diferente.
De certa forma, seria preciso atuar nessas duas dimensões, aumentado a progressividade do sistema e tratando os iguais de maneira igual.

Como o capital no Brasil está sendo menos tributado, as pessoas estão se tornando empresas. Isso produz uma reconfiguração do sistema e acaba gerando fontes de desigualdade, com pessoas que ganham mais sendo menos tributadas.

Uma reforma progressiva poderia gerar um crescimento maior, tributando um pouco mais quem está no topo e desonerando quem está na base.

Na tributação sobre o patrimônio, temos espaço para um imposto sobre herança [no Brasil, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação varia de 2% a 8%, dependendo do estado]. Países com maior tributação sobre patrimônio acabam verificando um crescimento econômico um pouco maior. Pois ele não distorce tanto as decisões econômicas das empresas e das famílias, à medida em que você tributa o estoque [o patrimônio, não o fluxo financeiro].

Outro item o é imposto sobre grandes fortunas. Poucos o adotam, e as simulações da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] mostram que dá para ter um bom nível de progressividade sem necessariamente usar esse imposto.

Pesquisa recente mostrou que, desde a Constituição de 1988, só 5% das propostas tributárias no Congresso foram no sentido da progressividade. Nossa voracidade tributária deu-se via consumo. Nem em um governo de esquerda e popular como o de Lula a progressividade foi adotada. O que explica? A discussão sobre impostos é sempre antipática, pois ninguém gosta de pagar. Por isso nosso intuito é aprofundar a discussão para quando a oportunidade de uma reforma tributária aparecer.

O que eu vi na discussão da reforma do Imposto de Renda no ano passado foi uma dispersão política e técnica muito grande sobre o que deveria ser o sistema tributário brasileiro.

Já as medidas que o governo Lula tomou foram no sentido de consolidar um ajuste fiscal na passagem de 2002 para 2003. Aquilo replicou o processo dos anos 1990, quando o país precisava financiar gastos crescentes. Foram medidas de caráter arrecadatório.

De certa forma, com a economia ganhando força a partir de 2005, a melhora da distribuição de renda, do mercado de trabalho e a ampliação do Bolsa Família acabaram atrasando o sentido de urgência dessa discussão.

As janelas de oportunidade para uma discussão como essa são construídas com muita dificuldade.

Fome e insegurança

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Os indicadores sociais são muito negativos na sociedade brasileira, em pleno século XXI o Brasil está se reencontrando com a degradação das condições de vida da comunidade, vivemos num país que se caracterizou pela fortuna gerada pela agricultura tropical, dotada de grandes extensões de terras, solo altamente fértil e grande contingente populacional que poderia ser visto como grande mercado interno, mas, infelizmente, retornamos ao mapa da fome, da desesperança e da insegurança, degradando as condições sociais de vida e reduzindo os investimentos produtivos e intensificando a chegada de especuladores, sem compromisso com a nação e interessado em ganhos imediatos.

Pesquisas recentes divulgadas pelo IBGE nos mostram que mais de trinta e três milhões de brasileiros passaram fome na sociedade nacional em 2021, sem alimentos os indivíduos se perdem nos escaninhos da degradação, perdendo peso, destruindo a dignidade e gerando desequilíbrios generalizados nas condições sociais, levando a sociedade a conflitos sangrentos, abrindo caminho para soluções políticas mirabolantes que aumenta a instabilidade e a exclusão social.

Neste ambiente, as grandes economias do mundo já perceberam que, neste momento de intensas incertezas, faz-se necessário reconstruir a atuação do Estado Nacional, reconstruindo as políticas públicas e aumentando a proteção social, garantindo empregos decentes e reduzindo a degradação das condições dos trabalhadores, com isso, o mercado interno que sempre teve um papel estratégico no desenvolvimento das nações, melhorando as condições sociais e garantindo o crescimento da produtividade, levando os setores produtivos a incrementarem seus rendimentos, relembrando os ensinamentos de Barbosa Sobrinho de que o capital se faz em casa.

Os pressupostos liberais são encantadores e sedutores, a ideia de que a competição tende a fortalecer a estrutura produtiva e estimular a alocação dos investimentos internos, levando a economia ao desenvolvimento econômico é uma grande falácia e uma inverdade, todas as nações que angariaram o tão sonhado desenvolvimento econômico contaram com fortes investimentos estatais, planejamento estratégico sofisticado, incentivos produtivos e cobranças constantes, além de metas claras e a busca crescente por novos mercados externos, garantindo o incremento da produtividade do trabalho.

Numa sociedade como a brasileira, marcada pelo crescimento da fome, inflação em ascensão, desemprego nas alturas e degradação das condições de vida e o incremento da desesperança, precisamos de mais Estado, mais investimentos públicos e novos instrumentos de fortalecimento das estruturas produtivas, garantindo a construção de empresas nacionais fortes, mercado interno consolidado, investimentos em ciência e tecnologia e inovação constante.

A pandemia está nos mostrando a importância da empatia e da solidariedade como forma de construir uma sociedade mais digna, adotando políticas inclusivas, estimulando investimentos produtivos, retomando a esperança da civilização, enterrando as estruturas putrificadas que persistem na sociedade brasileira e que ganham ares de inovação e modernidade.

A fome que perpassa a sociedade brasileira, ou melhor, a fome que ainda persiste no Brasil, é um descalabro moral da alta magnitude no país e nos mostra, claramente, como os valores estão degradados, como os interesses individuais sobrepõem os interesses coletivos, neste cenário estamos nos acostumando com a violência e com a insegurança que crassa e aumenta no cotidiano, matando jovens de todas as classes sociais, postergando soluções estruturais, defendendo soluções frágeis e limitadas, enriquecendo poucos grupos sociais e aumentado o medo e a indignidade.

Neste ambiente, percebemos um governo confuso, sem credibilidade, sem ousadia, sem projeto nacional e suplicando para que os supermercados segurem os preços e jamais, pedindo para que os bancos reduzam seus altos spreads e ganhos financeiros, mesmo sabendo que a fome cresce diuturnamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, especialista em Economia Comportamental (Unyleya), mestre, doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/06/2022.

Fukuyama mostra que esquerda e direita têm instintos de censura, por J. P. Coutinho,

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FRadicalizados, ambos os lados ignoram que o liberalismo não se confunde com os abusos cometidos em seu nome

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
F
olha de São Paulo, 13/06/2022.

Todas as profissões têm as suas piadas privadas. Entre os cientistas políticos, “Francis Fukuyama” e “o fim da história” é uma delas. Sempre que alguém junta essas duas frases, há sempre risos inteligentes e a frase fatal: “A história terminou com a queda do Muro de Berlim e depois veio o 11 de Setembro.” As gargalhadas aumentam de volume.
Sou insuspeito: várias vezes participei no deboche. Mas, aqui entre nós, a paródia assenta num equívoco: Fukuyama não disse que a história terminara com o fim da Guerra Fria. Ele apenas declarou que o modelo democrático-liberal era superior aos restantes. E não é?

Não discuto abstrações. Discuto migrações. As democracias liberais têm os seus competidores —em Cuba, Rússia, Turquia, China. Mas não vejo muita gente querendo emigrar para lá.
Pelo contrário: o desejo é o inverso. Fugir de lá e vir para cá. Será que uma parte da humanidade está seriamente equivocada?

Escutando os nossos extremistas de direita e de esquerda, não existe nada de valioso por estas bandas. O liberalismo é uma fraude: gera desigualdade, relativismo moral e apenas mascara relações de submissão e poder, em que as elites dominam o povo (versão da direita) ou em que o povo reacionário é um freio ao progresso (versão da esquerda). Hora de abandonar o barco?

Um pouco de calma, aconselha o injustiçado Francis Fukuyama no seu livro mais recente: “Liberalism and its Discontents”. É um dos melhores livros de Fukuyama.

Comecemos pelo básico: liberalismo é uma doutrina política que emergiu na segunda metade do século 17 com a ambição meritória de limitar o poder dos governos e proteger os direitos dos indivíduos.

Mas, antes de ser uma doutrina, é também uma descoberta: os indivíduos não são definidos pelo grupo a que pertencem, mas pela autonomia de que são capazes para fazerem as suas escolhas e viverem suas vidas.
É um pensamento nobre, nem sempre respeitado ao longo da história, mas que foi sendo realizado, a duras penas, na defesa da tolerância perante a diversidade, na proteção da economia de mercado e na luta por iguais direitos para todos.

Acontece que, no último meio século, direita e esquerda radicalizaram a própria noção de autonomia — e, com isso, desfiguraram as virtudes do liberalismo.

Para Fukuyama, a direita neoliberal pôs o mercado acima de qualquer outro valor social, ao mesmo tempo que demonizou o papel do Estado.

Esse fanatismo pagou-se com desigualdade, desemprego maciço nas indústrias tradicionais do Ocidente —e, claro, crises financeiras destrutivas que abriram as portas aos populismos do momento.

A esquerda identitária também se entregou a uma nova interpretação das “políticas de identidade”. Originalmente, a ideia era completar o liberalismo pela integração de grupos marginalizados no mesmo contrato social. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é um dos melhores exemplos.

Mas a radicalização do conceito de autonomia por uma parte da esquerda teve dois efeitos só aparentemente contraditórios, escreve o autor: por um lado, levou os indivíduos a procurarem o seu ser autêntico, livre das amarras sociais; por outro, levou esses mesmos indivíduos a concluírem que as amarras eram mais fortes do que a essência prometida e nunca encontrada.

A dimensão universalista do liberalismo, em que todos somos iguais em direitos e deveres, deu lugar a uma nova tribalização da sociedade, em que os grupos, e não mais os indivíduos, rejeitam os próprios pressupostos do modelo liberal.

É assim que estamos, diz Fukuyama. A direita e a esquerda rejeitam o liberalismo pelas suas alegadas patologias econômicas e sociais sem entenderem que a maior patologia de todas é a forma drástica como o liberalismo foi sendo aplicado.

Essa confusão conceitual gera seus monstros: entre a direita, um nacionalismo que parece importado do século 19, como se fosse possível regredir no tempo e restaurar uma uniformidade moral, étnica ou religiosa.
Entre a esquerda, a mesma atitude reacionária que procura aprisionar os indivíduos em identidades estáticas, essencialistas e pré-modernas.

Em ambos os casos, os mesmos instintos censórios e paranoicos. Quem nos salva desse manicômio? Ler Fukuyama é um princípio de salvação: no diagnóstico do problema está já contido o esboço de uma terapia. Que o mesmo é dizer: defender as democracias liberais significa não jogar fora o bebê com a água do banho. O liberalismo não se confunde com os abusos que foram cometidos em seu nome.