Novas Hegemonias

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As crises contemporâneas estão redesenhando os conceitos de hegemonia, vivemos momentos de grandes transformações, países dominantes perdem espaços no cenário internacional e outras nações almejam espaços mais ativos nos debates internacionais, criando conflitos que impactam na comunidade global e chacoalhando as estruturas econômicas e políticas. Neste momento, as crises geradas pela pandemia e pela guerra da Ucrânia estão impondo posicionamentos que devem ser pensados e planejados internamente para evitarmos posições apaixonadas e desprovidas de reflexões mais elaboradas.

A pandemia está alterando o comportamento dos indivíduos, levando os governos a buscarem, internamente, novos modelos de produção para desenvolverem nacionalmente os produtos estratégicos para o consumo local, evitando a falta de matérias primas e um incremento da dependência de outras nações, consolidando, com isso, a autonomia fundamental para garantir a soberania nacional.

As novas estratégias destas nações passam por fortes investimentos em ciência e tecnologia, capacitando os atores nacionais para instrumentos de desenvolvimento tecnológico, garantindo espaços de pesquisas de ponta e atraindo pesquisadores de relevo no cenário internacional, ainda mais, num momento de incertezas e instabilidades que perpassam a sociedade internacional, garantindo estabilidade profissional, novas e atraentes perspectivas para construirmos na academia e nos centros de pesquisas espaços de inovações e garantindo a possibilidade de retomarmos a posição de referência internacional na ciência e na tecnologia mundiais.

A guerra da Ucrânia nos traz inúmeros desafios, este conflito está impactando em toda a comunidade internacional, elevando o preço de variados produtos e mercadorias, exigindo dos governos nacionais uma ampla reflexão sobre a adoção de políticas públicas para dirimir estes preços crescentes, como país produtor a atuação mais efetiva se faz necessário, ainda mais, num momento de degradação, aumento da fome e da exclusão social, desemprego elevado, violência crescente, insegurança generalizada e taxas de juros estratosféricas que impactam negativamente para grande parte da população e garantindo lucros crescentes para banqueiros, rentistas e financistas.

Neste momento, precisamos compreender os desafios da comunidade internacional, a moeda norte-americana que dominou a comunidade global depois da segunda guerra mundial tende a perder espaço na sociedade mundial. Os valores centrados no liberalismo se mostraram insuficientes para melhorar a qualidade de vida da população, embora encontremos defensores aguerridos desta escola de pensamento econômico na grande mídia comercial e nos grandes financistas nacionais e internacionais, defendendo seus interesses imediatos e seus lucros elevados, defendendo o intervencionismo governamental apenas para dirimir os riscos de seus setores financeiros, garantindo o incremento de seus lucros em detrimentos dos interesses da comunidade.

Neste momento de pós-pandemia percebemos grandes desafios para a sobrevivência coletiva, onde elencamos a necessidade de interiorizarmos a proteção do meio ambiente, combatendo formas degradantes de acumulação que garantem grandes lucros para poucos setores em detrimento da população. Além da preocupação com o Meio Ambiente, precisamos repensar modelos de negócios que estão gerando degradação social, desequilíbrios emocionais e espirituais, contribuindo massivamente para aumentar a pobreza e a desigualdade em escala planetária.

Caminhando para o final deste artigo, gostaria de destacar que um dos maiores desafios da sociedade contemporânea é estimular o investimento produtivo, a geração de renda, contribuindo para a construção da dignidade dos indivíduos e garantindo, para todos as pessoas, trabalhos decentes, descanso merecido e aposentadoria condigna, para isso, precisamos de ousadia política, obrigando que os recursos monetários sejam empregados na geração de empregos e sobrevivência de todos os trabalhadores em detrimento dos grandes conglomerados econômicos e financeiros que nada produzem e lucram bilhões numa sociedade endividada, fortemente polarizada, sem perspectivas e desesperançada.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 18/05/2022.

O que fazer diante de um golpe em preparação, por Vladimir Safatle

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A Terra é Redonda – 13/05/2022

Lutar contra o golpe passa por fazer a política operar no que ela tem de mais forte, a saber, sua capacidade de ampliar o horizonte dos possíveis

A fragilidade institucional do Brasil não é algo que possa, nessa altura, ser objeto de dúvida. Como um trem em direção ao choque e que nada parece conseguir parar, o país descobre a cada dia situações que apenas explicitam como seu processo eleitoral e sua possível transferência de poder não será algo “normal”, independente do que esse termo possa realmente significar. Durante os anos Bolsonaro, não foram poucas as ocasiões nas quais vimos tentativas de desestabilização e de criação de condições para algo próximo a um golpe.

A última delas ocorreu em 7 de setembro do ano passado. Depois disso, Jair Bolsonaro soltou uma carta à nação assinando-a com o lema integralista. Alguns de seus apoiadores mais entusiastas receberam mandados de prisão. Boa parte dos analistas disse que essa era a expressão de que ele fora obrigado a recuar, demonstrando sua fraqueza.

Quem disse à ocasião que o golpe já havia começado parecia ter se equivocado.

No entanto, o país voltou nesses últimos dias ao mesmo ponto, agora graças às Forças Armadas atuarem de forma explícita como agente desestabilizador, questionando junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) procedimentos eleitorais. Como se às Forças Armadas fosse dada alguma forma estranha de legitimidade para se colocar como instituição que pode exigir de outras instituições da República explicação, “sugerir” modificações de procedimentos, mesmo em se tratando de assunto que em nada concerne aos militares. Ou seja, as Forças Armadas assumiram claramente o que hoje são, ou seja, o governo. Concretamente, esse é um governo militar, como não poderia deixar de ser um governo que tem sete mil militares em postos do primeiro e do segundo escalão.

Sendo governo, os militares mostraram como estão completamente alinhados aos desejos do sr. Bolsonaro. Há mais ou menos um ano, ele havia trocado o comando das Forças Armadas e houve analistas que entenderam, mais uma vez, que se tratava de expressão de fraqueza e desespero do governo em sua tentativa de submeter os quarteis a seus interesses.

Um ano depois, está evidente que não havia fraqueza alguma, que o processo de alinhamento transcorreu de forma consistente. Ou seja, o Brasil se prepara para uma crise institucional.

Um golpe clássico é apenas um dos cenários possíveis, sempre ao alcance da mão, caso seus atores entendam que as condições estão dadas para tanto. Mas, entre um golpe e o respeito ao resultado das eleições, há múltiplos cenários possíveis. O Brasil sabe muito bem fazer remendos institucionais quando suas elites julgam isso necessário, haja vista a invenção prêt-à-porter do parlamentarismo nos anos 1960.

A verdade é que muitos de nós insistimos que não havia outra coisa a fazer do que lutar e exigir o impeachment de Bolsonaro o mais rápido possível, antes do processo eleitoral, pois justificativas não faltavam, seus desejos de ruptura institucional nunca precisaram ser escondidos. No entanto, em nome do respeito institucional e da recusa em fazer o país passar por mais outro “trauma”, estamos agora diante de um trauma que chega até nós em câmera lenta.

Insistiria que esse comportamento dos atores políticos governistas é fundamentado, entre outros, na compreensão de que haverá apoio popular relativo a tudo que Bolsonaro tentar. Depois de uma gestão criminosa da pandemia, com suas mais de 650 mil mortes, depois de uma gestão econômica de pauperização e depois de ser o primeiro governo em décadas a entregar a nação à diminuição do poder de compra do salário mínimo, o ocupante atual da presidência detém algo em torno de 30% das intenções de voto.

Se levarmos em conta que sequer começamos a campanha eleitoral e que, em campanha, ocupantes do governo que tentam reeleições têm a tendência natural de subir, uma vez que contam com o apoio da máquina governamental, podemos perceber uma impressionante resiliência que mereceria ser estudada mais a fundo e de forma mais analítica.

“Mais analítica” não está aí de maneira gratuita. Seria o caso de salientar que de nada adianta afirmar que a luta contra Bolsonaro é uma luta “da civilização contra a barbárie”, “da ciência contra o obscurantismo”, “da alegria contra o ódio” e coisas dessa natureza. A afirmação de nossa pretensa superioridade moral e intelectual nunca serviu de nada, apenas para compensar nossa dificuldade em compreender como a extrema direita e governos protofascistas se consolidam.

Fascistas se viam como os reais representantes da grande cultura ocidental pretensamente degradada devido à sua instrumentalização pelo “bolchevismo cultural”. Os livros didáticos da Alemanha nazista tinham citações de Platão para justificar o racismo, pareceres a favor da eutanásia vinham com citações de Sêneca. Isso serve, entre outras coisas, para nos lembrar de que nossa civilização não é garantia alguma contra a barbárie. Ela a porta em seu coração como uma de suas potencialidades. Estaremos mais aptos a lidar com regressões sociais e políticas se compreendermos o quanto de sombra há em nossas luzes.

Da mesma forma, seria o caso de dizer que “ódio” é uma categoria teológico-moral. É a figura sucedânea do “mal”, do “irracional”, do “diabólico”. E não está nítida qual pode ser a função de categorias teológico-morais dessa natureza dentro de um embate político. Bolsonaristas também nos descrevem como seres impulsionados pelo ódio.

Por isso, seria mais útil nesse momento se perguntar como a extrema direita cresce a partir de nossas próprias contradições e silêncios, como ela captura desejos reais de mudança e ruptura. Bolsonaro mobilizou seus eleitores durante toda a pandemia utilizando o discurso da liberdade como propriedade que cada indivíduo teria sobre seu próprio corpo. Ele falou a todo momento da capacidade de assumir riscos e não esperar alguma forma “paternalista” de segurança em relação ao Estado. Bem, quantas vezes discursos dessa natureza foram usados por quem se diz progressista? Continuamos a acreditar neles?

De fato, o discurso político da oposição ao governo tem um movimento pendular que oscila entre os chamados a “dialogar” com setores da população fieis a Bolsonaro e a descrição de que nossa luta é contra a “barbárie”. Essa polaridade não tem como funcionar. Melhor seria lembrar que mobilizações políticas que se organizam de forma eminentemente negativa, a partir da recusa a um candidato (“agora, somos todos contra Bolsonaro”), tem fôlego curto. Quebrar a força popular do bolsonarismo exige mais, exige impedir que a imaginação política passe pela atrofia.

Em várias partes do mundo, vemos o exercício de construir novos horizontes de luta através da produção de inovações políticas e criações institucionais. O Chile discute a implantação do Estado Paritário e do estado Plurinacional, Berlim luta por aprovar uma lei que tabela e diminui o preço dos alugueis, a França discute a criação de um salário máximo e de uma limitação da diferença salarial no interior das empresas (como forma de forçar subir os menores salários), os Estados Unidos, através de Bernie Sanders, discutiram a implementação de uma cota obrigatória de trabalhadoras e trabalhadores no conselho de gestão de todas as empresas.

E nós? Estamos a criar unidade a partir do quê? A partir do medo a Bolsonaro? O quanto isso pode efetivamente funcionar e por quanto tempo? Lutar contra o golpe passa por fazer a política operar no que ela tem de mais forte, a saber, sua capacidade de nos fazer criar futuros, ampliando o horizonte dos possíveis.
*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Mais esforço por ciência e tecnologia, por Benito Salomão.

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Políticas têm papel crucial para determinar sucesso ou fracasso das nações

Benito Salomão, Doutor em economia, é economista chefe da Gladius Research

Folha de São Paulo, 16/05/2022

Embora nem sempre esteja claro, a razão de existir da economia enquanto área específica do conhecimento científico é a investigação sobre a trajetória de prosperidade dos países. Esta foi a preocupação de Adam Smith quando publicou o clássico “A Riqueza das Nações”, em 1776, e continua sendo a preocupação de grandes expoentes da ciência contemporânea, como Robert Solow, Robert Lucas, Paul Romer e Daron Acemoglu.

Existe hoje uma ampla literatura capaz de diagnosticar os fatores que levam um país a romper (ou não) o horizonte da renda média e tornar-se uma nação de alta renda. No passado recente, durante algumas décadas, alguns autores propuseram a chamada hipótese da convergência. Grosso modo, a hipótese da convergência pressupõe um país na fronteira da renda per capita e que a tendência dos países abaixo desta fronteira seria convergir para ela. Mais recentemente, a evidência empírica apontou que a convergência da renda per capita dos países mais pobres em direção aos ricos não se verificou. Ao contrário, houve divergência.

O Brasil, durante algumas décadas, foi tido como um país promissor nesse aspecto. As quase cinco décadas de longo crescimento econômico, entre os anos 1930 e 1980, causaram enorme esperança de que, no futuro, pudéssemos nos posicionar entre os países desenvolvidos. Isso, no entanto, foi interrompido, apesar dos avanços nas áreas econômica, social e institucional verificados a partir dos anos 1990.

Vale aqui frisar esses avanços. O Brasil fez parte do trabalho necessário em direção à renda mais alta: 1 – tornou-se uma economia industrial e diversificada; 2 – tornou-se uma sociedade urbana; 3 – tornou-se um país macroeconomicamente estável, apesar de fricções fiscais e monetárias de curto prazo; e 4 – realizou um dos maiores programas mundiais de inclusão e assistência social, além da universalização de serviços públicos.

Apesar de todo o esforço, o país não foi capaz de romper a faixa da renda média. Pior ainda, começou a década de 2010, segundo o Banco Mundial, com uma renda per capita de US$ 15 mil por ano e terminou, em 2020, com US$ 14,8 mil. A economia dos Estados Unidos, nossa referência de ponto de convergência, saltou de US$ 49,8 mil para US$ 63,6 mil neste mesmo período.

Voltando à literatura, em modelos de crescimento endógeno como os de Paul Romer, a política de desenvolvimento científico e tecnológico tem papel crucial para determinar o sucesso ou fracasso das nações na convergência para os países de renda alta. Esse foi o esforço da Coreia do Sul, cujo governo gasta hoje, segundo a Unesco, cerca de 4,5% do PIB em ciência e tecnologia. Esforço significante faz o governo da China, empenhando 2,1% do PIB, ou o dos Estados Unidos, gastando 2,8%, enquanto o Brasil investe 1,1% na mesma rubrica.

Embora as restrições fiscais deixem claras as dificuldades, o Brasil precisa se esforçar em ao menos dobrar o seu gasto em ciência e tecnologia nos próximos anos, sob pena de continuar acumulando décadas perdidas pela frente.

Seria importante ter BNDES mais atuante, diz economista-chefe da Fiesp

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Para Igor Rocha, banco é positivo em projetos de infraestrutura, mas deixa de atuar em crédito a pequenas e médias

FOLHA DE SÃO PAULO, 14/05/2022 – JOANA CUNHA

SÃO PAULO

O economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha, avalia que é hora de o BNDES crescer no crédito a pequenas e médias empresas.

“No momento que tem uma taxa de juros chegando aí para 13%, e uma demanda extremamente deprimida, as condições de crédito estão muito delicadas. Seria, sim, importante ter um BNDES mais atuante”, diz.

Segundo o economista, que assumiu o posto na entidade neste ano, a Fiesp já se posicionou sobre juros e não vai ficar comentando ata de Copom.

O sr., que chegou na Fiesp há alguns meses, como pensa o caminho para a indústria resgatar protagonismo? Cheguei há três meses. De fato, a questão industrial está com o ambiente muito mais favorável para o debate.

Internacionalmente, a pauta da indústria está colocada como central para a retomada das economias, sobretudo, conectada à sustentabilidade. E o Brasil não pode ficar fora dessa agenda. A indústria tem sofrido, há décadas, com o processo de desindustrialização.

Tem que retomar a discussão sobre novas bases, modernas, conectando com a questão da sustentabilidade para a transição dos setores de média e alta tecnologia, tanto do ponto de vista da produção quanto comércio exterior. E tem questões chave, como infraestrutura, educação, aumento da produtividade, descarbonização.

Considerando os impactos de pandemia e guerra, tem algo que o governo poderia fazer, oferecer mais benefícios para impulsionar crescimento? Acaba sendo muito complicado pensar dessa forma. Qualquer coisa que a gente fizer neste momento, calcado no que pode ser feito agora, são medidas paliativas, de curto prazo. Eu acho que o fundamental, se pensarmos em recuperar o setor industrial, é refletir sobre questões estruturais, que precisam estar calcadas, e aí é o grande destaque, no planejamento, na recuperação do planejamento da economia brasileira. O Brasil deixou de planejar.

O planejamento foi muito demonizado por equívocos de interpretação. Famílias planejam, empresas planejam. Estado brasileiro também precisa planejar. E neste planejamento, o desenvolvimento do setor industrial é central, conectado, obviamente, à questão da infraestrutura, que é condição fundamental, embora não suficiente, para o crescimento. Mas sem dúvida, é fundamental aos setores produtivos e ao agronegócio também.

E o crédito? O BNDES tem sido eficiente para liberar financiamento? O BNDES tem um corpo técnico fantástico historicamente, tanto que tem atuado de forma muito positiva na elaboração de projetos de infraestrutura, que tem sido importante para o país. Mas tem, por outro lado, deixado muito de atuar no crédito para as empresas, sobretudo pequenas e médias. Embora caiba destacar, Pronampe e todo o arcabouço que o governo fez durante a crise com os
fundos garantidores. Foi muito importante para dar o amparo a essas empresas.

Mas no momento que tem uma taxa de juros chegando aí, vamos arredondar, para 13%, e uma demanda extremamente deprimida, as condições de crédito estão muito delicadas. Seria, sim, importante ter um BNDES mais atuante, não só do ponto de vista da disponibilização de crédito ou de funding. Mas sim de esse crédito chegar efetivamente na ponta para essas empresas que precisam, porque a gente tem essa dificuldade de o crédito chegar para a pequena e para a média.

E como vai a agenda de divulgação de indicadores da Fiesp e os posicionamentos? Logo depois que a nova gestão, de Josué Gomes da Silva, assumiu a Fiesp neste ano, vocês publicaram um comunicado duro sobre alta dos juros, em fevereiro, mas depois parou. Qual é a orientação? Foi uma intenção de mostrar: o posicionamento da Fiesp é este. A Fiesp não vai ficar comentando ata de Copom, no sentido de que a Fiesp vai se preocupar com questões estruturais e não conjunturais.

Hoje, a gente precisa discutir no Brasil é como recuperar investimento. O que a gente viu nos últimos anos acontecendo no Brasil, e aí eu não estou falando de instituição A, B ou C, mas no Brasil, eram analistas econômicos fazendo comentários do tipo: “olha, a dívida pública piorou, olha, melhorou, o juro subiu tanto, caiu tanto”. E aí?

O que isso, de fato, implica do ponto de vista de crescimento? A Fiesp está muito voltada agora para essa reflexão estrutural.

Por isso estamos nesse debate muito proveitoso com a Febraban [Federação Brasileira de Bancos, que abriu um grupo de trabalho com a Fiesp sobre os juros] para ver medidas que podem ser tomadas, ações, para que tenhamos, estruturalmente, um juro mais baixo na economia brasileira. E que beneficie o acesso das empresas ao crédito e, consequentemente, tenha um resultado positivo para o crescimento da economia.

As propostas da Fiesp para os candidatos da eleição deste ano estão prontas? Está em fase de elaboração. Estamos discutindo. Vai ter o processo institucional que acontece em todas as eleições. A Fiesp é um ator relevante no diálogo. Esse documento de propostas será elaborado via nossos conselhos superiores.

E quais serão os pontos de destaque? Tem a reforma tributária, com certeza, que deve figurar como central. Uma reforma ampla e isonômica. Não se trata de nenhuma benesse, mas de ser igual para todos os setores da economia.

Também deverá estar no documento a importância do investimento público, que, de fato, chegou a níveis complicados nos últimos anos.

Raio-x
Doutor pela University of Cambridge e membro do Sidney Sussex College e da Cambridge Society for Social and Economic Development, no Reino Unido. Tem mestrado em economia pela Unicamp, e graduação em ciências econômicas pela PUC-SP. Foi diretor de economia da Abdib e hoje é o economista-chefe da Fiesp

Medo que nos leva a tentar evitar golpe é parte do golpe de Bolsonaro, por Wilson Gomes

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Motim antidemocrático se garante nos porões, usando o jornalismo como pombo-correio

Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de -Crônica de uma Tragédia Anunciada?

Folha de São Paulo, 15/05/2022

Golpe entrou no grupo, como diz o meme. Na verdade, é um frequentador intermitente de nossas conversas e pesadelos. Muitos analistas políticos, contudo, juram que desta vez a coisa é para valer, que os maus sentimentos são compartilhados por quem comanda tropas e fala em nome delas.

O fato é que enquanto dois generais bolsonaristas –mais bolsonaristas que generais–, Heleno e Ramos, oferecem uma cara pública para mais uma rodada de ameaças e intimidações a quem se atrever a contrariar o presidente, a sedição antidemocrática se garante nos porões, usando o jornalismo como pombo-correio para entregar ameaças, emitidas no conforto do off, sem que passem pelos filtros da apuração dos fatos. Sai o jornalismo de investigar fatos, entra o jornalismo de repercutir e coletar declarações.

Mesmo antes que este governo existisse, fumos golpistas exalavam das instituições militares, como no famigerado tuíte do general Villas Bôas, de abril de 2018, usando o nome do Exército brasileiro em evidente campanha para retirar o principal adversário no caminho de Bolsonaro. O jornalismo que o repercutiu e o STF como destinatário entenderam o rugido, a fera parecia estar nos portões.

Desde então, houve tantas promessas de que o golpe está vindo e já tem data e condições estipuladas (voto impresso e auditável”), seguidas de reiteradas negações de intenções golpistas, que ninguém mais tem certeza se o país ainda tem o direito de demitir o presidente nas eleições de outubro, conforme o combinado.

Mas, há golpe e golpe. O governo Bolsonaro e os generais seus acólitos jogam com os dois sentidos do termo. Ameaçam um golpe em um sentido, a tomada arbitrária do poder contra as regras do jogo democrático, enquanto aplicam um golpe em outro sentido, como tramoia, farsa, embuste, logro, fraude.

O golpe como engodo é uma obra-mestra de simulação e dissimulação. É preciso simular ser muito maior e mais ameaçador do que se é; a armação consiste em vender a possibilidade de golpe como um desejo da imensidão armada dos quartéis e não um truque de alguns militares de alta patente, que encontraram na simbiose com Bolsonaro uma maneira de enriquecer na velhice.

E, se você tem vivido dias de angústia com relação ao futuro da democracia, o golpe como fraude está funcionando. O medo que nos leva a esperar, temer ou tomar providências para evitar o golpe é parte do golpe.

Espera-se que o TSE ceda, novamente, ao temor de um golpe e coloque mais cavalos de Troia, com generais na barriga, para dentro do processo eleitoral. Pretende-se que o STF recue e pare de “esticar a corda”, quer dizer, abstenha-se de impor freios constitucionais aos apetites absolutistas do bolsonarismo.

Deseja-se que os jornalistas continuem caindo na cilada de todo dia telefonar para as suas fontes armadas para repercutir declarações provenientes do Poder Judiciário ou do Legislativo, contribuindo para a representação fraudulenta de que os militares são um dos Poderes da República. Não o são.
Por fim, espera-se que ninguém se atreva a apurar se quem ruge, afinal, é rato ou leão.

O bolsonarismo é golpista desde a sua origem, e as eleições de 2018 foram o maior 171 da nossa curta e confusa história republicana. Pois não é que conseguiram arrancar um cheque em branco da maior parte dos eleitores válidos para dá-lo a um sujeito desprovido de qualquer qualidade republicana, a um velho político medíocre e patrimonialista do baixo clero nacional?

Pois não é que o elemento logrou convencer mais de 50 milhões de adultos de que, apesar desse currículo, não só seria capaz de conduzir o Brasil para fora das crises política e econômica que destruíam o país, como, ao mesmo tempo, iria acabar com a corrupção, com a violência urbana e com a política tradicional?

Tudo isso â base de falsificação de informações absurdas em escala industrial sobre os adversários e por meio do tráfico de histórias de complôs e conspirações que assombraram os incautos e disseminaram o pânico moral.

Mas, afinal, o golpe virá, ou é só mais uma das enganações de um movimento político que não existe sem fraude ou engodo? Os Bolsonaros estão apavorados ante a possibilidade de, uma vez fora do regime de privilégios que a Presidência da República dá ao chefe do clã, terem que encarar as consequências legais dos seus atos.

Consequentemente, farão de tudo para que nem sequer as eleições tenham o poder de tirá-los de lá.

Só não haverá um golpe, como tomada violenta do poder, se não tiverem meios para tanto. Parte desses meios, contudo, é derivada das armações e truques de cena que enganam a vista e fazem com que os golpistas, nos dois sentidos, pareçam maiores do que são.

Elon Musk entrou em uma fria, por Ronaldo Lemos.

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Novela revela limites e consequências das traquinagens de um bilionário-moleque

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 14/05/2022

Quando o bilionário dono da Tesla anunciou que iria comprar o Twitter, muitos analistas no Brasil ficaram preocupados. Eu não. Cheguei até a dizer ao podcast Café da Manhã, da Folha, que estava moderadamente otimista.
Afinal, o Twitter é uma rede infestada por robôs, contas falsas e sockpuppets [perfis criados com identidade falsa.

Musk disse com todas as letras que iria acabar com os robôs maliciosos, bem como autenticar a identidade de cada um dos usuários da rede. Se fizesse isso, seria um experimento louvável de diminuir disparidades e reduzir enganações no campo da liberdade de expressão. Uma ideia simples e poderosa: uma pessoa, uma voz. Algo que seria interessante de acompanhar.

Corte para o dia 13 de maio de 2022. Musk anuncia que a compra do Twitter está “suspensa”. A desculpa utilizada por ele é que o Twitter não teria conseguido provar que as contas falsas seriam “menos de 5% da plataforma”, aparentemente uma condição para o negócio seguir em frente.

Para além da desculpa, a realidade é bem diferente. O fato é que o mundo mudou totalmente desde que Musk anunciou sua proposta, revelando um erro de análise brutal. Desde o início de abril, o Federal Reserve (análogo dos EUA ao Banco Central) subiu a taxa de juros naquele país. Na sequência, o mercado de ações —e, sobretudo, as empresas de tecnologia— desabou. A própria Tesla, que no início de abril tinha o valor das suas ações na casa dos US$ 1.000, estava sendo negociada perto dos US$ 700 no fim da semana passada.

A Tesla também havia comprado US$ 1,5 bilhão em bitcoins em 2021 e ainda carrega a criptomoeda em tesouraria. O bitcoin é outra vítima de depreciação, tendo recuado até 25% de valor em poucos dias.

Em outras palavras, Musk, neste momento, não deve estar dormindo bem. Prometeu comprar o Twitter por US$ 52,40 por ação (totalizando US$ 44 bilhões). Preço hoje considerado absurdo, já que nesta sexta (13) o valor da ação estava em cerca de US$ 40. Em outras palavras, a oferta de Musk é US$ 11 bilhões acima do valor de mercado da empresa.

Não por acaso, seus companheiros de negócio estão pulando fora ou relutando em seguir em frente. Se Musk recuar, é possível que haja um dilúvio de ações judiciais contra ele, inclusive por manipulação do mercado acionário. O bilionário também já havia falhado em cumprir a lei quando deixou de anunciar no tempo certo que estava interessado em adquirir a empresa.

Nesse contexto, o Twitter, como empresa, está progressivamente mergulhando em caos. Vários dos executivos que o conduzem foram demitidos ou se demitiram. O próprio Musk tem dado declarações erráticas sobre o que quer fazer com a empresa. Nas entrelinhas, já deu para perceber que ele acreditava que a gestão seria muito mais fácil do que é na realidade.

Neste momento, tudo indica que o bilionário entrou em uma fria. Pode ser que o negócio siga em frente, mesmo sendo um desastre econômico para Musk. Em todo caso, essa novela revela aos poucos os limites e as consequências que traquinagens de um bilionário-moleque podem provocar.

A paquistanização do Brasil, por Helder Ferreira do Vale.

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Interferência militar na política produziu governos autocráticos no país asiático

Helder Ferreira do Vale, Professor do Departamento de Estudos Internacionais da Xi’an Jiaotong-Liverpool University (China)

Folha de São Paulo – 11/05/2022

Os contínuos embates entre Poderes já são um padrão do governo Jair Bolsonaro (PL). No último conflito, em que o ministro Luís Roberto Barroso, do Suprema Tribunal Federal, afirmou que as Forças Armadas estão sendo orientadas a “atacar o processo eleitoral”, ficou patente a deturpada percepção da elite militar no Brasil: a de que as eleições são um tema de segurança nacional e, portanto, a democracia deve ser tutelada pelos militares.

A intromissão dos militares na política é corriqueira no Brasil. Muitos de nós já não nos chocamos quando o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, classificou a declaração de Barroso como “ofensa grave”. Ou quando o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) afirmou que “Forças Armadas não são crianças para serem orientadas”. Tais manifestações seriam inaceitáveis em qualquer democracia consolidada.

O custo da tutela militar à democracia brasileira é alto. Duas consequências são inevitáveis: Forças Armadas movidas por ideologia política e uma dinâmica política condicionada pelo uso da força militar.

Em apenas dois anos de governo, Bolsonaro dobrou o número de militares da ativa e da reserva cedidos ao governo federal, passando de 2.765 a 6.157. Em relação aos altos cargos no governo, entre 2018 e 2020, houve um salto de 2,4% a 6,5% de militares ocupando esses postos. Quanto ao número de militares no primeiro escalão da gestão, eles ultrapassam a quantidade de oficiais indicados por qualquer outro governo do regime militar (1964-1985).
México e Venezuela são exemplos notórios dos inúmeros problemas provocados pela interferência militar na política.

No México, entre 1929 e 2000, o Partido Revolucionário Institucional utilizou os militares para legitimar as fraudes nas eleições no país, o que rendeu ao México o título de “ditadura perfeita”. Na Venezuela, a erosão das instituições públicas iniciada pelo governo do presidente Hugo Chávez (1999-2013), como consequência da Revolução Bolivariana, ideologizou as Forças Armadas e minou a pluralidade política no pais.

Para além da América Latina, o país que realmente serve como mau modelo a ser seguido é o Paquistão, onde os militares sempre foram os protagonistas da política nacional. O Paquistão e a Índia se emanciparam da Grã-Bretanha em 1947 em condições similares, nas quais um partido dominante em cada país adotou o parlamentarismo e o federalismo. Mesmo com as semelhanças históricas, cada nação seguiu um caminho distinto quanto ao desenvolvimento democrático.

Na Índia, desde sua independência, todos os chefes de Estado e de governo foram civis e nunca deixaram seus cargos por algum golpe de Estado. Já no Paquistão, durante a sua história, houve quatro chefes de Estado que eram chefes do Estado-Maior do Exército, e três primeiros-ministros civis sofreram golpes.

Com a ativa participação dos militares na política, o Paquistão viveu sob governos autocráticos a maior parte da sua história. Como consequência, a política paquistanesa vem sendo marcada por assassinatos políticos, interrupções dos mandatos de chefes de governo, escândalos de grandes proporções e incapacidade institucional para legitimar o poder do Estado. Diferentemente, a Índia manteve os militares à margem da política e logrou consolidar a maior democracia do planeta em número de votantes.

No Brasil, a maior parte da população desaprova a militarização da política. Em pesquisa realizada pelo Datafolha em maio de 2021, 54% dos entrevistados eram contra a indicação de militares em cargos governamentais, e 41% a favor.

Mesmo com a desaprovação popular, as instituições públicas brasileiras seguirão influenciadas por militares, que em princípio deveriam ter como principal função garantir a nossa segurança contra ameaças externas, não participar da vida política nacional.

Reverter a paquistanização do Brasil será um trabalho árduo.

Degradação crescente

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Vivemos uma verdadeira tempestade perfeita, um momento de grandes incertezas e instabilidades econômicas, sociais e políticas. A desestruturação do tecido social é visível e seus impactos estão sendo sentidos por todos os grupos da comunidade, neste ambiente acumulamos pandemia, inflação, guerra, lockdown na China, fome, inseguranças e eleições, neste ambiente percebemos a ausência de lideranças, sem projetos nacionais e discussões desnecessárias, neste cenário estamos flertando com o caos e a desesperança.

Neste ambiente de incertezas, percebemos que somos bombardeados por notícias de fechamento de grandes empresas, demitindo milhares de funcionários, reduzindo a capacidade industrial, diminuindo a arrecadação e criando novos bolsões de miséria e de destruição, que exigem dos governos atuações imediatas e planejadas, capacitando os trabalhadores e criando as infraestruturas necessárias para estimular investimentos produtivos. Ao postergarmos as reações governamentais denota a incapacidade de pensarmos a complexidade das estruturas produtivas e de nos anteciparmos aos desafios que estão se arvorando na sociedade contemporânea.

Nos últimos anos percebemos o crescimento da degradação social, a pobreza cresce de forma acelerada, a insegurança alimentar aumenta, a violência apresenta grande incremento, os discursos de ódio crescem, as redes sociais se transformaram em um verdadeiro faroeste de linchamentos morais, de xingamentos crescentes e destruição de reputações e estimulando as incertezas e desesperanças, diante disso, as perspectivas econômicas, políticas e sociais são preocupantes, exigindo uma atuação mais imediata dos governos, com planejamento, novas estratégias e políticas públicas efetivas para reverter a situação. Neste quadro de incertezas e instabilidades, caminhamos a passos largos para conflitos generalizados, violências crescentes e desajustes institucionais, com impactos preocupantes.

O descontrole dos preços impacta sobre a comunidade, o aumento dos preços desmotiva setores inteiros, impondo a motoristas de aplicativos a repensarem suas estratégias, além de levar muitos caminhoneiros a abandonarem a boleia de seus caminhões, engrossando as fileiras de desempregados, desalentados e trabalhadores na informalidade, sem proteção social, sem aposentadorias decente e sem esperanças. Além disso e, principalmente, a inflação degrada a renda da população, corrói os salários, desestrutura os orçamentos, aumenta o endividamento e castiga os trabalhadores e os levam a condições indignas de sobrevivência, levando as famílias a degradação, aumentando as incertezas e as ansiedades que, em muitos casos culminam em depressão, suicídios e patologias sociais atreladas a uma sociedade patologicamente doente que cultiva a beleza externa e esconde a degradação mais íntima.

As guerras que crescem na sociedade nos mostram a indignidade moral cultivada pela comunidade internacional, neste momento percebemos a hipocrisia que crassa o mundo contemporâneo, nos revoltamos com as degradações criadas pelos conflitos bélicos, os bombardeios e as destruições que nos é mostrada todos os dias pelos meios de comunicação e nos esquecemos de nossas guerras íntimas, as violências mais imediatas que perpassam o cotidiano de toda a coletividade, as violências que cultivamos na exploração da mão de obra, da marginalidade que alimentamos e que degrada a remuneração dos trabalhadores e impedem a capacidade de sonhar e imaginar uma sociedade mais digna e decente para todos os nossos concidadãos.

A indignação cresce na sociedade brasileira, a degradação social aumenta e a política se transformou num espaço de acumulação e status social, indivíduos despreparados se aventuram na busca de holofotes e ganhos monetários. A indústria que já chegou a quase 30% do produto interno bruto, agora amarga apenas 10%, vivendo de migalhas das grandes economias mundiais. A nação que sempre foi vista como o país do futuro, como disse Stefan Zweig, caminha para a degradação econômica, social, política e ambiental.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 11/05/2022.

‘TikTok não é um Cavalo de Troia chinês’, afirma autor de ‘biografia’ da rede social.

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Renan Setti – O Globo – 09/05/2022.

Autor do recém-lançado “TikTok Boom” (Intrínseca), espécie de “biografia” do app de vídeos chinês, o jornalista britânico Chris Stokel-Walker falou com a coluna sobre o que faz dele um fenômeno e o que sua ascensão representa para a geopolítica da tecnologia.

O livro joga luz sobre uma trajetória ainda obscura para leitores ocidentais — mesmo aqueles que não conseguem parar de reproduzir as dancinhas popularizadas pelo TikTok… A obra conta como o app foi sendo construído pela gigante ByteDance a partir de diversas aquisições e se impôs por meio de algoritmos substancialmente diferentes daqueles usados por YouTube, Instagram e Facebook.

— É a primeira vez que os americanos estão sendo “obrigados” a usar uma tecnologia que não foi desenvolvida dentro de suas fronteiras. É isso que gera tanta desconfiança por lá. Mas não é assim que o resto do mundo viveu nas últimas décadas? — questiona, em conversa por Zoom de Newcastle upon Tyne (Reino Unido), onde vive.

Após mais de dez anos cobrindo esse ecossistema e de 120 entrevistas feitas especialmente para o livro, ele refuta alertas de autoridades ocidentais:

— Não encontrei provas de que o TikTok seja um Cavalo de Troia chinês. O problema é a forma como usamos redes sociais, não o TikTok em si.

Segundo Stokel-Walker, a despeito de problemas relacionados ao “vício” tecnológico, o TikTok já está mudando a forma como a gente se comunica e está moldando a chamada “economia do criador”. Mas ele acrescenta que as ambições do seu fundador — o enigmático bilionário Yiming Zhang — vão muito além: transformar a ByteDance no sucessor da Google.

Veja abaixo alguns trechos da entrevista.

O que levou ao crescimento meteórico do TikTok nos últimos três, quatro anos?
Primeiro, houve um salto de qualidade e disseminação das câmeras, dos smartphones e da conectividade. Ao mesmo tempo, nos tornamos viciados em vídeo, com a ascensão no YouTube, e isso se acelerou na pandemia. Depois de assistir tanta TV, Netflix e YouTube, as pessoas em quarentena foram atrás do TikTok, com vídeos mais curtos tomando a dianteira. Só em março de 2020, o somatório de tempo gasto pelos usuários no TikTok foi equivalente ao período entre hoje e a Idade da Pedra! E, claro, seu algoritmo conhece as pessoas melhor que elas próprias.

Mas qual a diferença entre o algoritmo do YouTube e o do TikTok?
O YouTube, assim como Instagram e Facebook, depende do chamado “gráfico social”. Ele sugere conteúdo com base no que pessoas parecidas com a gente, nossos amigos e familiares estão vendo. Já o TikTok é baseado no chamado “gráfico de conteúdo”, analisando os vídeos que nós gostamos e entendendo o que nos agrada. Em seguida, ele tenta expandir os temas gradativamente, apresentando conteúdos levemente diferentes. E seu algoritmo é mais treinado: em uma hora, você assiste alguns vídeos no YouTube; no TikTok, você vê dezenas.

Você conclui no livro que não é preciso temer o TikTok, pelo menos não da maneira como sugerem alguns líderes ocidentais. Por que?
Sempre posso estar errado e não sou o melhor jornalista do mundo. Mas também não sou o pior, cubro o assunto há dez anos e tenho boas fontes dentro e fora do TikTok. Se houvesse uma espécie de BatFone entre Xi Jinping e executivos da ByteDance, eu teria ouvido algo a respeito. Adoraria ter descoberto e publicado esse furo (risos)! Mas isso não quer dizer que não haja problemas. Eu mostro como ele enviou dados de candidatos a emprego para a China sem autorização, como tentaram minimizar a transmissão de outros dados de usuários para o país etc. Mas não encontrei provas de que o TikTok seja um Cavalo de Tróia chinês. O problema é a forma como usamos redes sociais, não o TikTok em si.

Mas o TikTok virou uma peça importante do “soft power” chinês?
Sim, ele é útil para a projeção da imagem de um país que está construindo a chamada Nova Rota da Seda, embora não seja algo tão significativo quanto a chegada do McDonald’s à Praça Vermelha, na década de 1990. Mas é a primeira vez que os americanos estão sendo “obrigados” a usar uma tecnologia que não foi desenvolvida dentro de suas fronteiras. É isso que gera tanta desconfiança por lá. Mas não é assim que o resto do mundo viveu nas últimas décadas? É interessante observar como o poder está deixando de ser concentrado no Vale do Silício e assumindo uma perspectiva mais global.

É um novo “momento Sputnik”?
Não acho que seja, mas indica que a norma que fomos forçados a aceitar, de que toda tecnologia precisa ser desenvolvida nos EUA, simplesmente é falsa. O TikTok prova que você pode ser uma empresa global de tecnologia sem estar no Vale do Silício. Isso me anima porque a tecnologia passou a refletir melhor o mundo em que vivemos. Não vivemos em um mundo que parece o Vale do Silício, branco e ocidental.

Como o TikTok está moldando o mundo?
Ele mudou a forma como nos comunicamos. O vídeo está se tornando o formato como as pessoas pensam. Ele mudou a forma como os criadores são pagos, com um fundo próprio para remunerá-los, não necessariamente publicidade. Está mudando a atitude. No YouTube ou no Twitch, os principais criadores investem em equipamentos caros. No TikTok, basta um celular. Os intermediários da cultura estão desaparecendo. E o app está mudando a própria cultura. Veja quantos músicos foram lançados através do TikTok ou mesmo quantos livros foram vendidos por causa dele…

Futuro da China depende de como Ocidente vai reagir a seu próximo capítulo, por Ian Bremmer.

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Desenvolvimento tecnológico do país asiático limitará danos causados por vulnerabilidades econômicas

Ian Bremmer, Fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria de risco político dos EUA, e colunista da revista Time.

Folha de São Paulo, 09/05/2022

Na próxima década, a China vai se fortalecer ou se enfraquecer? Seu peso econômico, sua influência política global e seu crescente poderio militar tornam essa pergunta crucial em todas as regiões do mundo. A resposta dependerá de se força econômica bruta ou desenvolvimento tecnológico se mostrarão mais importantes para um futuro próspero e seguro.

As perspectivas econômicas da China estão ficando mais nebulosas, mas é possível que seu status de superpotência tecnológica emergente fale mais alto. A ascensão da pobreza para potência cada vez maior criou mais oportunidades para mais pessoas —na própria China e pelo mundo afora— que qualquer outra tendência econômica na história. Criou uma classe média chinesa e uma classe média global.

Duas vantagens estiveram na base dessa conquista. Primeiro, décadas atrás, a China se beneficiou da maior reserva de mão de obra barata na história humana. Segundo, seus salários baixos persuadiram empresas manufatureiras em países ricos a transferirem suas operações para o país, para reduzir seus custos de produção e aumentar seus lucros. Essas duas vantagens já desapareceram.

Os salários chineses subiram fortemente à medida que os trabalhadores ampliaram suas qualificações, e hoje países mais pobres conseguem oferecer os salários mais baixos que deixaram de existir na China.

Além disso, a política chinesa do filho único limitou o crescimento populacional de longo prazo, reduzindo a oferta relativa de mão de obra e intensificando a pressão ascendente sobre os salários. Hoje, a economia global depende mais do comércio de serviços do que era o caso uma geração atrás, reduzindo a demanda por mão de obra fabril, e governos e empresas privadas, especialmente nos EUA, vêm sofrendo pressão política para trazer de volta os empregos manufatureiros que foram transferidos para a China.

Por todos esses motivos, é possível que a ascensão da China tenha finalmente chegado a um beco sem saída.

Economistas avisam que muitos países emergentes caem numa “armadilha da renda média” quando perdem as vantagens que os ajudaram a escapar da pobreza, sem entretanto dotar-se das ferramentas necessárias para competir com países mais ricos cujas economias são baseadas no conhecimento e operadas por forças de trabalho altamente qualificadas.

É uma posição perigosa, especialmente para um partido governista que exige reconhecimento por conquistas que criaram expectativas públicas em ascensão constante, ao mesmo tempo em que se recusa a admitir a culpa quando o crescimento estagna.

Outro problema é que os responsáveis por traçar as políticas da China se veem diante de um Everest de dívida pública. Há anos o governo chinês protege da inadimplência suas maiores empresas em muitos setores diferentes, para salvar grande número de empregos e proteger a solvência dos bancos chineses.

Essas intervenções agravaram o problema, porque convenceram tanto mutuários quanto credores que podem esperar receber proteção contra suas próprias decisões equivocadas.

Resolver esse problema requer tolerância a dor econômica, algo que está em falta num momento em que a Covid está causando estragos à economia chinesa, em que a guerra da Rússia contra a Ucrânia está encarecendo combustíveis e alimentos na China —e num momento em que Xi Jinping está preparando o Partido Comunista, ainda este ano, para abandonar sua prática passada e lhe conceder um terceiro mandato presidencial, com poder sem precedentes.

No entanto, o desenvolvimento tecnológico chinês rapidamente crescente vai limitar os danos causados por suas vulnerabilidades econômicas. Não faz muito tempo, os avanços na tecnologia de comunicações empoderavam o indivíduo às expensas do Estado. O crescente acesso global à internet permitia aos usuários encontrar informações de uma variedade inusitada de fontes e se comunicar entre eles em tempo real, entre diferentes países e em todo o mundo.

Nos últimos dez anos, porém, essa tendência vem perdendo espaço para a chamada “revolução dos dados”, que permite que governos autoritários e as maiores empresas mundiais de tecnologia coletem os volumes de dados que produzimos no mundo digital, para descobrir muito mais sobre quem somos, o que queremos e o que estamos fazendo para consegui-lo.

A China possui vantagens grandes e duradouras nessa área. Suas empresas têm dado provas de sofisticação crescente não apenas no comércio digital, mas no reconhecimento facial e de voz, algo que um país autoritário pode desenvolver com muito menos obstáculos do que seria o caso em um sistema que limita a concentração de poder político. Além disso, o simples tamanho da população chinesa possibilita um banco de dados maior que permite um avanço tecnológico mais rápido.

Mas a maior vantagem tecnológica da China consiste na capacidade do Estado de direcionar empresas de tecnologia para que criem produtos que atendam às necessidades políticas do Estado, na capacidade do Estado de direcionar montanhas de dinheiro a esses projetos de desenvolvimento, de coordenar seu trabalho e de ampliar a influência internacional da China, vendendo tecnologias de vigilância a outros países, tanto estados autoritários quanto democracias, preparados para pagar por produtos que fomentem a segurança nacional —ou pelo menos a segurança da elite governante.

O futuro da China vai depender de mais uma questão importante que é mais imponderável: como Estados Unidos, Europa e Japão vão reagir ao próximo capítulo da China? Por enquanto, a invasão russa da Ucrânia aproximou os parceiros transatlânticos mais que em qualquer momento desde que a Guerra Fria terminou, e o apoio da China à Rússia, por limitada que ainda seja, reforçou as dúvidas ocidentais bem fundamentadas quanto às intenções da política externa chinesa.

Ao mesmo tempo, deve estar claro para os dirigentes em todos os países que a importância da China para a economia globalizada significa que a debilidade do país representa uma vulnerabilidade global. Se os líderes chineses e ocidentais vão conseguir manter esse fator crucial em mente quando administram suas relações em movimento constante pode acabar se mostrando a incógnita mais importante de todas.