À margem da lei, por Oscar Vilhena Vieira.

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A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três ano

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 08/04/2022

O Brasil vive às turras com a lei desde sua origem. A ideia de que pessoas e instituições devam se conduzir em conformidade com regras gerais —aplicadas sem qualquer distinção— e de que todos são sujeitos de iguais direitos, jamais conseguiu superar os enormes obstáculos levantados por uma sociedade estruturada em torno da desigualdade, da discriminação, dos privilégios e das exclusões. Daí a incompletude de nosso governo das leis.

A consequência mais imediata da fragilidade da lei no Brasil é a submissão de enormes contingentes da população à violência e ao arbítrio, que brutaliza a vida cotidiana dos mais pobres, mas também cria mal-estar os mais afluentes. A consequência mais difusa dessa incompletude é que o país não consegue consolidar uma trajetória de desenvolvimento. Onde não há lei prevalece o oportunismo e a rapinagem, em detrimento da cooperação, do planejamento, do investimento de longo prazo, da boa governança democrática.

A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos. O Brasil se encontra no bloco dos países que mais declinaram na América Latina, conforme aponta o último “Rule of Law Index”. Essa deterioração não chega a surpreender, em face da hostilidade do presente governo —e das múltiplas forças autoritárias, milicianas e liberticidas que o apoiam— ao governo das leis.

A espessura desse declínio pode ser percebida em múltiplas esferas. Particularmente grave é o crescimento do crime organizado na região amazônica, associado não apenas ao controle das rotas de tráfico, mas também ao garimpo ilegal, ao desmatamento e à grilagem. As taxas de homicídios em cidades pequenas e médias na Amazônia superam hoje a média nacional (“Cartografias das Violências na Região Amazônica”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). O desmonte dos órgãos e mecanismo de controle e aplicação da lei, além de um claro incentivo a práticas ilegais, tem colocado em risco nosso principal ativo estratégico, sob o olhar cúmplice daqueles que sustentam o presente governo.

A deterioração também é clara no âmbito da corrupção, seja pela institucionalização do orçamento secreto, que azeita as relações do parlamento com o Executivo, seja pela fragilização de instituições como a Controladoria Geral da União e a Polícia Federal.

Não se deve negligenciar também o fortalecimento do milicianismo e do tráfico em muitas regiões do país. Estima-se que mais de 60% do território do Rio de Janeiro estejam sob o controle dessas forças, o que tem contribuído para um dramático declínio econômico do estado, além de perdas humanas inestimáveis.

O Brasil não superará os seus inúmeros desafios no campo do desenvolvimento econômico, do controle da corrupção política, da preservação ambiental, da qualificação de seus jovens ou da pacificação social e controle do crime sem enfrentar a questão da integridade do Estado de Direito. A sua deterioração nos lança num caminho perigoso.

É surpreendente que muitas pessoas que compõem setores do empresariado, das classes armadas, de grupos religiosos e mesmo do estamento jurídico não se deem conta da estratégia deliberada de erosão da lei e da ordem patrocinada por esse governo. À margem da lei só há o crime.

Homenageio com esse artigo o ilustre jurista e brasileiro Dalmo de Abreu Dallari, que jamais se acovardou face àqueles que afrontaram o Estado de Direto.

O futuro do dólar

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Vivemos num momento de grandes transformações na sociedade internacional, a globalização aumentou a competição entre pessoas, empresas e nações numa busca insana por aumento de produtividade, de retornos financeiros e novos modelos de negócios, levando a sociedade global a novas formas de desigualdades e exclusões sociais, novas pandemias e conflitos militares, com mortes e destruições em massa, não apenas na Europa, mas em inúmeras regiões da sociedade mundial.

Nas últimas décadas percebemos alterações em todas as áreas e setores, o mundo do trabalho se transforma rapidamente exigindo novas qualificações e capacitações cujas escolas se mostram incapazes de acompanhar estas atualizações, gerando levas de trabalhadores sem empregos e, muito pior, neste momento percebemos a descartabilidade dos trabalhadores, que mesmo capacitados não conseguem acompanhar as mudanças das tecnologias que crescem de forma acelerada, gerando bolsões de desigualdades e exclusões sociais.

Neste momento, percebemos que as transformações no ambiente econômico estão alterando os modelos monetários e os padrões financeiros, o dólar que se transformou na moeda mundial desde a segunda guerra mundial, responsável por grande parte das transações internacionais, vem perdendo poder e sua hegemonia tende a perder espaço no mercado global.

O poderio do dólar sempre contribuiu diretamente para sustentar o poder dos Estados Unidos no ambiente global, garantindo ao país a capacidade de manter durante décadas grandes déficits nas suas contas externas, sendo que era o país responsável pela emissão da moeda que embalava as transações financeiras internacionais.

Como as transações internacionais eram feitas com a moeda norte-americana, todas as nações deveriam acumular reservas internacionais em dólares, garantindo indiretamente forte poder na economia global e fortalecendo o poder no ambiente externo. Vivemos momentos de medos e apreensões, ao refletirmos sobre o conflito militar na Ucrânia percebemos que muitas nações passaram a se preocupar com suas reservas externas em dólares, desde que o governo dos EUA, como forma de fragilizar a economia russa e reduzir a sua ofensiva militar, confiscou suas reservas internacionais em moedas norte-americanas depositadas nos bancos ocidentais, com esta política muitos países que possuem dólares depositados em bancos ocidentais passaram a se preocupar com a adoção de sanções como esta, gerando desconfiança, incertezas e fortes preocupações dos mercados globais.

Estas medidas extremadas adotadas pelo governo norte-americano estão levando países a repensarem a moeda dos Estados Unidos como o padrão monetário do comércio internacional, abrindo espaço para que alguns países estudem a comercialização de seus produtos com suas moedas. A assinatura de acordos entre países que comercializam petróleo, além de países exportadores de produtos primários como a Arábia Saudita, Irã, Índia, China, Rússia, dentre outros, podem inaugurar novos espaços de comércio, diminuindo o poderio do dólar, abrindo espaço para novas moedas no cenário internacional, fortalecendo as trocas regionais e aumentando as fragilidades, cada vez mais evidentes, da economia dos Estados Unidos.

As movimentações em curso no cenário financeiro internacional acontecem rapidamente, mas o poderio dos Estados Unidos permanecerá nos próximos anos, mesmo assim, percebemos o crescimento de novos modelos monetários e financeiros, que tendem a gerar novos desafios para as autoridades monetárias, como o crescimento das criptomoedas, as bitcoins e o crescimento de startups financeiras que tendem a crescer e a ganhar relevância no cenário financeiro internacional.

O mundo está em polvorosa, as estruturas que sustentam o modelo econômico global estão desmoronando, o dólar tende a perder espaço, nascem novas hegemonias financeiras e industriais e outras nações, como o Brasil, se perdem em discussões desnecessárias, postergando nossa recuperação e perpetuando nossa insignificância.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/04/2022.

O desmonte da globalização, por Ram Mahidhara

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Grandes empresas voltarão a buscar fornecedores regionais

RAM MAHIDHARA, Ex-executivo sênior da International Finance Corporation (IFC/Banco Mundial) e cofundador e COO (diretor de operações) da arara.io

Folha de São Paulo, 03/04/2022

A crise de abastecimento de produtos provocada pela pandemia e agora a ameaça de corte do gás europeu e insumos vindos da Ucrânia estão colocando em marcha um rearranjo global das cadeias de suprimento.

Trata-se de um processo de reversão da chamada globalização, que na última década tornou a China a base de fabricação do mundo, com empresas terceirizando uma grande parte de seus insumos para lá e, em menor escala, para outras partes da Ásia.

A competitividade de custos e os ganhos de eficiência oferecidos pela mudança para a China significaram que muitos itens, anteriormente fabricados nos EUA, na Europa e na América Latina, ou mesmo em países como a Índia, se transferiram para o gigante asiático. Os produtos farmacêuticos e eletrônicos são os melhores exemplos disso.

A Covid-19 expôs o risco dessa concentração e dependência excessivas. Com o fechamento da China, seguido por desacelerações na expedição, transporte e logística, empresas em todo o mundo foram atingidas. O desabastecimento de insumos básicos para enfrentar a pandemia deixou evidente a necessidade de deslocamento geográfico da produção mundial.

A guerra vai catalisar esse quadro. O conflito na Ucrânia traz, agora, a questão do deslocamento estratégico, com ênfase maior no inventário e aumento do estoque de bens essenciais no curto e médio prazo. As empresas vão aproximar geográfica e estrategicamente suas cadeias de abastecimento, seja no mesmo país, ou, pelo menos, dentro do mesmo continente.

É seguro colocar todos os nossos ovos em uma única cesta, mesmo que este país seja o fornecedor mais barato? Ou é estrategicamente melhor termos alternativas? Todas essas são questões com as quais as empresas estão se defrontando neste momento. Aquelas que diversificaram seus suprimentos provavelmente estão se saindo melhor no cenário atual.

Isso destaca a importância de monitorar a própria cadeia de abastecimento para todos os tipos de riscos, particularmente os riscos de ESG (“Environmental, Social and corporate Governance”).

O Brasil tem uma oportunidade neste cenário. Enquanto as empresas norte-americanas e europeias procuram diversificar suas cadeias de abastecimento, o país, com alguma notável experiência em indústrias selecionadas (serviços de petróleo e gás, fabricação de automóveis, tecnologia aeronáutica etc.), pode se posicionar como escolha mais estável e segura para as multinacionais. Sem contar que o Brasil é a 12ª maior economia do mundo e tem sua própria demanda interna.

As empresas brasileiras também devem olhar para suas cadeias de abastecimento e buscar alternativas mais próximas de casa. É claro que, devido aos tremendos avanços que a China obteve na indústria, levará tempo e recursos para competir com a velocidade, a eficiência e os preços dos fabricantes de lá —mas isso pode ser feito. A indústria brasileira precisa identificar essas oportunidades competitivas. Mesmo que seja um pouco mais caro produzir no Brasil, trata-se de uma alternativa sólida por motivos estratégicos: o país oferece mais estabilidade e capacidade produtiva em comparação a muitas outras nações nesta nova e frágil ordem global.

A pior equipe econômica da história, por Rodrigo Zeidan.

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Danos da administração de Paulo Guedes vão durar décadas

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 02/04/2022

Qual o papel de uma equipe econômica? Implementar boas políticas de crescimento e distribuição de renda, aumentar a credibilidade interna e externamente, melhorar o ambiente de negócios e gerenciar expectativas para cultivar investimentos. E, no meio de uma pandemia, salvar a população.

O saldo, que vejo, da equipe econômica de Paulo Guedes é inequívoco. Ele capitaneia a pior equipe econômica da história brasileira, e conseguiu uma façanha que deveria ser impossível: nos fazer ter saudades de Guido Mantega e Zélia Cardoso de Mello.

Os danos da administração de Paulo Guedes, Sachsida, e outros, vão durar décadas. E não é exagero. Pessoas não ressuscitam, desmatamento pode nunca ser revertido, armar a população vai gerar milhares de mortes, fome limita o desenvolvimento humano e perdemos pelo menos 0,5% de PIB potencial por pelo menos dez anos.

Não podemos nos esquecer do dia 16 de novembro de 2020, uma semana depois da Pfizer anunciar que a vacina estava próxima. Adolfo Sachsida, crítico do Bolsa Família, apoiador da liberação do porte de armas e do Escola Sem Partido, discípulo de Olavo de Carvalho, e que já jogou nos pobres e miseráveis a culpa pelo déficit da Previdência, veio a público dizer que achava baixíssima a probabilidade de segunda onda. Que o setor de serviços estaria cada vez mais forte. Que estava tranquilo, porque vários estados teriam atingido a imunidade de rebanho.

Ele e a equipe econômica pareciam lutar contra toda e qualquer medida de isolamento social, mesmo com a vacina batendo na porta. O argumento do governo seria de que isso geraria queda do PIB. Mas PIB é meio, não é fim. Foram incapazes de entender o básico sobre um indicador de bem-estar que tem suas limitações. Ele é irrelevante se alguém está a sete palmos abaixo da terra. Não se respira PIB.

E se o objetivo do governo era manter a economia funcionando, ele não foi alcançado. E a razão é simples: recuperação econômica é questão de confiança. Quando os economistas batem cabeça e perdem tempo desmontando programas importantes, só para trazê-los de volta piores e com nomes diferentes, as pessoas param de gastar e as empresas param de investir.

O PIB brasileiro deve crescer somente 0,5% esse ano, no meio de um boom de commodities e explosão de crescimento mundial. Os países ricos devem crescer 3,5% e os países em desenvolvimento, 5%. A América Latina? 3%.

O papel exercido por essa equipe econômica parece ter sido chancelar a destruição institucional do país. O governo atua pelo desmatamento? Guedes minimiza a destruição ambiental. O governo quer dar aumentos para o funcionalismo? A equipe arranja um jeito de manipular a lei do teto. O presidente faz campanha anti-vacina? A equipe econômica corta verbas para compra e distribuição de vacinas.

É bom lembrar que a equipe econômica foi contra o auxílio emergencial e se não fosse o Congresso empurrar goela abaixo teríamos um desastre ainda maior. O que temos depois de três anos do super poderoso ministro da Economia? Um péssimo ambiente de negócios, com economistas se preocupando em taxar ainda mais importações de pessoas físicas.

Uma economia sem perspectivas, com crescimento até 2025 na casa de 1,5%, abaixo do crescimento populacional. Um país com pior distribuição de renda, mais desmatamento, fome, e sem qualquer investimento educacional. Estagflação com mais de 660 mil mortos. Vejo que o governo nos entregou peste, fome e morte. E não creio que já tenha acabado.

Duas facetas do sistema meritocrático, por Cida Bento.

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Ideia assegura os melhores lugares para quem segue o padrão europeu

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 31/03/2022

O “sistema meritocrático”, que muitas vezes é a principal justificativa das instituições para explicar a ausência de pessoas negras nos cargos de liderança, é construído lentamente ao longo da história do país e começa muito antes do período de inserção no mercado de trabalho.

Uma das tantas características do “sistema meritocrático” brasileiro é assegurar os melhores lugares sociais para quem segue o padrão europeu, branco. Mesmo em cidades onde a maioria da população é negra, esse padrão é exigido.

É o que se observa no caso da adolescente RMS, de 13 anos, aluna do Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé (BA), que foi mandada para casa, sem aviso prévio aos seus responsáveis, porque seu cabelo foi considerado “inchado” e inadequado para que ela assistisse às aulas.

Interpelado por Jaciara, mãe da adolescente, o funcionário da escola sugeriu que a menina alisasse o cabelo, mostrando a foto de uma menina branca com o cabelo liso, como padrão adequado para frequentar as aulas.

Jaciara diz que a filha chegou em casa chorando muito e dizendo que não queria mais estudar no colégio e, no momento de raiva, chegou até a xingar o próprio cabelo. A reação da adolescente mostra o que milhares de crianças, adolescentes e jovens negros vivenciam em escolas inóspitas que lhes causam mal-estar, impactando suas competências afetivo-emocionais, elementos fundamentais para assegurar a aprendizagem.

E o desejo de não mais voltar à escola explicitado pela adolescente revela também uma das facetas da evasão escolar, que atinge muito mais a população negra do que a branca.

Essa situação mostra ainda uma escola que cria ambientes mais acolhedores para um perfil do alunado em detrimento de outros, o que vai se materializar também, futuramente, nas organizações empregadoras.

O CEN (Coletivo de Entidades Negras) acompanha o caso da estudante, buscando assegurar seus direitos, e que os autores dos atos racistas sejam punidos.

O coletivo sinaliza para a discriminação contra signos e símbolos da cultura afro-brasileira, a qual precisa ser debatida, como preconiza a LDB, alterada pela lei 10.639/03. Ou seja, o poder público é fundamental para assegurar uma escola mais equânime, mas o que se observa, infelizmente, é exatamente o contrário.

O Censo Escolar, principal instrumento de coleta de informações da educação básica e base para construção de políticas públicas, por orientar a divisão de recursos entre estados e municípios e a implementação de programas de responsabilidade do Governo Federal, vem sofrendo silenciosas mudanças.

A base de dados sobre gênero, cor e raça dos docentes e do alunado foram alteradas e só aparecem em grandes blocos, impedindo que se amplie os estudos e se aprofunde o conhecimento sobre o impacto de atitudes de escolas como a citada acima, na aprendizagem e evasão escolar.

Ao fazer um comparativo entre as bases de microdados do Censo Escolar de 2020 com a do ano de 2021, uma série de variáveis não está mais disponível.

Não é mais possível acessar os microdados do Censo de 1995 até 2020, apenas o de 2021 e, diferentemente das edições anteriores, os microdados trazem um único arquivo de dados, que não contempla o perfil de professores e gestores (sexo, raça/cor e formação).

Enfim, não se combatem as desigualdades ocultando as informações sobre ela, mas cumprindo a lei e implementando políticas que qualifiquem o ensino e tornem a escola acolhedora para todas as crianças.

Competição global

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Vivemos num momento de grandes transformações geopolíticas e econômicas, neste ambiente de mudanças constantes percebemos movimentações em todas as nações, buscando novos espaços políticos, novas formas de integração econômica, novas tecnologias, novas formas de dinamizar suas sociedades e novas oportunidades que devem definir as estratégias de sobrevivência nas próximas décadas.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de um novo conflito econômico e geopolítico que deve moldar o capitalismo contemporâneo, com formas diferentes de organização social, estruturas produtivas e construções políticas. Neste momento, percebemos um conflito entre os Estados Unidos e China, onde cada um dos contendores tem suas armas, além de seus instrumentos de convencimento e de pressão, deste conflito tende a nascer uma nova sociedade, uma nova forma de organização social e novas características produtivas.

O crescimento chinês foi assustador nos últimos 40 anos, de uma sociedade altamente miserável a China se transformou no mais bem sucedido modelo de crescimento econômico, com uma estrutura produtiva moderna, com políticas centradas no Estado Nacional, com sólidas e consistentes estratégias de transformação produtiva, marcadas pelo protecionismo, pelos subsídios crescentes e pelas políticas de compras governamentais que garantiram a venda de produtos produzidos internamente, garantindo fortes estímulos para a geração de empregos, melhora salarial e novos espaços de inclusão social que contribuíram para retirar da pobreza milhões de trabalhadores.

Destacamos ainda, que todos os setores receberam estímulos para competir no mercado internacional, garantindo uma melhoria constante dos setores produtivos, além que adquirir novos mercados globais que angariavam a entrada de moedas conversíveis que contribuíram para o aumento das reservas internacionais. Nos anos 1970, algumas delegações oficiais chinesas visitaram o Brasil para compreender as políticas que estavam sendo implementadas, estas políticas garantiram um forte crescimento econômico e levaram o Brasil a uma posição de destaque no cenário internacional.

A partir dos anos 1980 os chineses colocaram em prática uma política desenvolvimentista fortemente centrada num Estado planejador, mesclando forte intervenção estatal e estímulo a competição externa, além disso, inovou ao adotar políticas de associação de empresas nacionais com grandes conglomerados globais, que garantiram uma forte transferência de tecnologia, utilizando o mercado nacional como um trunfo fundamental para atrair grandes empresas interessadas na exploração do mercado do país asiático.

A ascensão chinesa nos anos 1980 nos mostra que num mercado altamente competitivo e concorrencial, como vivemos na atualidade, é fundamental construirmos uma sólida e consistente estratégia de desenvolvimento econômico. Todos os países que conseguiram se desenvolver econômica e produtivamente construíram, internamente, uma estratégia centrada no planejamento, na construção de metas claras e flexíveis, garantindo investimentos sólidos em educação, em ciência e tecnologia, formando mão de obra capacitada para entender os grandes desafios que estavam sendo desenhados na economia internacional.

Neste ambiente, precisamos repelir ideias entreguistas centradas no pensamento liberal ortodoxo, que privilegia os grandes atores econômicos internacionais, são eles os grandes responsáveis pela difusão destas ideias, que patrocinam os pseudo-intelectuais que aparecem cotidianamente nos meios de comunicação e que contribuem diretamente para esta situação degradante da sociedade brasileira, onde uma grande parte da população vive em condições de indignidade, de exclusão e de degradação moral.

Vivemos numa grande competição internacional, o mundo contemporâneo é marcado por grandes desafios, neste ambiente, precisamos refletir sobre os modelos mais consistentes da sociedade global, o desenvolvimento é uma grande maratona que exige disciplina, planejamento e humildade. Como foi dito anteriormente, o Brasil serviu de exemplo para a China no século passado, está na hora de termos humildade para aprendermos com exemplos mais exitosos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/03/2022.

Viagem ao mundo sem lei dos super-ricos, por Ladislau Dowbor

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“É difícil levar uma pessoa a entender alguma coisa
quando o seu salário depende de não a entender.”
Upton Sinclair

Parasitagem da riqueza social. Paraísos fiscais. Advogados. Políticos “tolerantes”. Um herdeiro que conviveu com o 0,01%, revela como esta “nova classe” multiplica sua riqueza e poder – e quanto sonha viver num mundo sem sociedades e Estados

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 21/03/2022

O caos financeiro mundial e brasileiro que enfrentamos tem um sentido: favorecer os mais ricos. Nos 30 anos do pós-guerra, entre 1945 e 1975, o capitalismo apresentou um razoável equilíbrio entre os lucros dos empresários, a remuneração dos trabalhadores, e as políticas públicas indispensáveis ao desenvolvimento equilibrado. Com Reagan os EUA e Thatcher na Grã-Bretanha, o capitalismo se desloca para um sistema em que os lucros financeiros passam a dominar os processos produtivos. A mudança é profunda, e se baseia em três eixos de mudança.

Primeiro, com a informática e a conectividade planetária, a moeda deixa de ser algo impresso pelo governo e passa a ser um sinal magnético emitido pelos grupos financeiros. O dinheiro imaterial passa a navegar no espaço planetário instantaneamente, passa a ser “liquidez”. Não precisa abrir mala na alfândega. Segundo, o sistema financeiro passa a ser planetário, no chamado high frequency trading, com derivativos, paraísos fiscais, e outros mecanismos de escala global, enquanto os governos, ou seja, a capacidade reguladora financeira dos Estados e dos bancos centrais, estão limitados à escala nacional: os poderes públicos perdem grande parte da sua capacidade reguladora, em particular de poder orientar recursos financeiros em função das necessidades do desenvolvimento.

Terceiro, essas mudanças levaram à formação de um novo setor econômico, a indústria de gestão de ativos (asset management industry), que passou a administrar o gigantesco estoque de fortunas nos espaços privados dos bancos, hedge funds, investidores institucionais, fortunas privadas (family offices), e evidentemente nos paraísos fiscais, visando assegurar o máximo possível de evasão fiscal, de elisão fiscal (no limite da legalidade, aproveitando complexidades jurídicas), de lavagem de dinheiro, de fuga nos casos de conflitos matrimoniais, de compra de políticos e tantas outras portas que abre um sistema internacional descontrolado. Não há governo mundial, e mesmo no plano nacional as leis são frequentemente feitas para tornar legal o que não é legítimo, e muitas vezes escandaloso.

Estamos falando de um estoque de centenas de trilhões de dólares, e de um volume de movimentações incomparavelmente maior. Para ter uma ordem de grandeza, lembremos que o PIB mundial é da ordem de US$90 trilhões. As fortunas do 1% dos mais ricos, segundo o banco Crédit Suisse, é da ordem de US$190 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população mundial, 4 bilhões de pessoas, tem apenas US$5,5 trilhões, 1,3% da riqueza. A desigualdade, como sabemos, está explodindo no mundo, essencialmente por meio de ganhos financeiros, explorando, travando a base produtiva em vez de fomentá-la. É o “capitalismo extrativo” tão denunciado por inúmeros economistas e até por pessoas indignadas do próprio “mercado”.

Chuck Collins, que recebeu de herança uma pequena fortuna quando jovem, e que tem, portanto, entrada no mundo dos afortunados, concentrou o estudo The Wealth Hoarders (poderíamos traduzir como guardiões de riqueza) no que aparece mais claramente no subtítulo: “Como bilionários pagam milhões para esconder trilhões.” É importante dizer que não se trata de um panfleto anti-ricos: se trata de um estudo muito sistemático e bem documentado sobre como funciona o grande mundo financeiro que administra e assegura o aumento exponencial do grande dinheiro. Porque os donos de grandes fortunas não correm atrás de mais dinheiro: contratam empresas especializadas, bem remuneradas, que detêm conhecimentos impressionantes sobre as frestas e lacunas nas leis, que países ou territórios são mais corruptíveis, como criar “family offices”, trustes, empresas laranja (shell companies), que políticos são mais acessíveis.

Esses profissionais constituem a tropa de choque do mundo da alta finança, dos UHNW (Ultra High Net-Worth individuals), buscando maximizar os seus rendimentos, assegurar o segredo das transações e minimizar o pagamento de impostos. Estão administrando os interesses não mais dos “capitães da indústria” de outrora, General Motors e semelhantes, mas a rede mundial do 0,01% e do 0,001 dos detentores de riqueza acumulada. De certa forma, é a classe política do mundo financeiro, os que administram a riqueza real dos bilionários.

Para dar uma ordem de grandeza, a BlackRock administra US$10 trilhões, seis vezes o PIB do Brasil. Junto com Vanguard e State Street, três grupos privados administram US$20 trilhões, o equivalente ao PIB dos Estados Unidos, de US$21 trilhões. Biden está batalhando para conseguir liberar 3 trilhões de dólares para os próximos 10 anos.

Olhando o conjunto que formam as grandes fortunas privadas mundiais por um lado, e a máquina de gestão dessas fortunas por outro, constatamos que hoje existe uma oligarquia financeira mundial com poder político e econômico dominante, que deforma tudo o que temos chamado de política e de democracia. Não são bem capitalistas, mais bem constituem uma aristocracia financeira que explora inclusive o capitalismo produtivo. E evidentemente cada um de nós.

As novas tecnologias redimensionaram essas políticas, na medida em que o dinheiro imaterial escapa facilmente aos controles, mas também pelo fato que permitem a micro drenagem do bolso de bilhões de pessoas pelo mundo, por exemplo pela tarifa incluída no que pagamos com o cartão de crédito. Com a sofisticação das plataformas globais, pequenas taxas ou aumentos de preços generalizados no planeta, o dinheiro da base da sociedade, inclusive das empresas privadas, flui para o topo da pirâmide, que não precisa ter contribuição produtiva: mas precisa sim de bons informáticos, advogados, políticos e administradores que constituem, precisamente, os que recebem milhões para esconder trilhões. Collins detalha como funciona a máquina.

No conjunto, apesar das inúmeras tentativas de controle da rede de ilegalidades, descritas em detalhe no livro, o sistema criou vida própria: “Vivemos num sistema crescentemente globalizado, com o capital desvinculado (delinked) dos estados nacionais. Essa “classe capitalista transnacional”, como a descreve William Robinson, está alterando o sistema econômico. Com a evolução do sistema, pessoas ricas e empresas transnacionais estão tentando se tornar apátridas (stateless) e desvinculadas das regras nacionais…Neste sistema, os oligarcas e cleptocratas globais têm mais em comum uns com os outros do que com cidadãos dos seus estados de origem.”(150)

Igualmente significativo é o papel dominante que exerce “o mundo de fala inglesa”, na expressão de Collins: “Os centros econômicos dos Estados Unidos e do Reino Unido são as forças motrizes no sistema global de riqueza escondida. O mundo de fala inglesa carrega uma responsabilidade desproporcional pela criação dessa confusão (this mess) e por manter o sistema – e tem também um tremendo poder para o alterar.”(152)

Um livro pequeno, de leitura simples e transparente, e que acende a luz neste universo obscuro dos que tanto falam do seu “merecimento”, mas se apoiam numa estrutura paralela de poder que não presta contas a ninguém, apenas recebe os seus milhões por serviços prestados. Neste sentido, o livro de Collins converge muito com outros livros que resenhamos, como A Arapuca Estadunidense do Pierucci, ou as Confissões de um Assassino Econômico de John Perkins: mostram o mecanismo interno real, as engrenagens, do universo que temos qualificado de “mercados”, mas que constituem um sistema parasita que drena a renda das famílias, a capacidade de investimento das empresas produtivas, e os recursos públicos que asseguravam as políticas sociais. O resultado é o drama planetário que vivemos: o aquecimento global e outras tragédias ambientais, a desigualdade explosiva, e a paralisia econômica. O dinheiro acumulado pela aristocracia financeira não provém da sua contribuição produtiva, mas da máquina extrativa que hoje se tornou o mecanismo dominante de enriquecimento no planeta.

Identitarismo troca conceitos universais por marcas particulares, diz Roudinesco

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Para historiadora francesa, movimentos emancipatórios derivam em posições hostis à liberdade de expressão

Naná DeLuca, Jornalista da Folha e mestre em letras pela USP

Folha de São Paulo, 27/03/2022

[RESUMO] A historiadora francesa Elisabeth Roudinesco fala sobre como movimentos identitários abriram mão de conceitos mais amplos para privilegiar marcadores particulares.

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, 77, conhecida por biografar grandes pensadores como Sigmund Freud e Jacques Lacan, diz ter certeza de que “o mundo está se desfazendo para o nascer de outro”. Para ela, isso é bom, mas o percurso errático dessa transformação a preocupa.

Essa inquietação é o objeto do seu mais recente livro, “O Eu Soberano” (Zahar), que busca compreender as “derivas identitárias” —o encerramento sistemático dos sujeitos em identidades fechadas—, que hoje estão no centro do debate público em vários países. Para conduzir sua pesquisa, ela se pergunta: como os movimentos emancipatórios do século 20 se tornaram o que são hoje?

Relendo clássicos do pensamento francófono, como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Jacques Derrida e Michel Foucault, ao lado de importantes trabalhos atuais, como os de Judith Butler e Gayatri Spivak, a historiadora explora as mudanças nos conceitos de gênero, raça e identidade para explicar as transformações na militância e na produção acadêmica da esquerda. O livro também discute o identitarismo da extrema direita, baseado no nacionalismo e no ódio. Para Roudinesco, se compreende bem isso no Brasil de Jair Bolsonaro.

Em entrevista à Folha, a historiadora também discute questões sobre o Estado de Direito, a laicidade, o fanatismo religioso e as mudanças linguísticas para apontar que o mundo está mudando, “mas ninguém pode dominar essa transformação”.

Por que a sra. decidiu escrever “O Eu Soberano”? É assunto em voga e um fenômeno que já existe há 30 anos. Os engajamentos identitários e o que chamo de suas derivas começaram após a queda do Muro de Berlim, com a substituição de questões de classe por aquelas da identidade.

O que me interessava era olhar a questão do gênero e da raça. Como chegamos a esse ponto de grande deriva? O que partia de uma boa posição emancipatória —para mulheres, negros e homossexuais— começou a derivar em direção a posições hostis à liberdade de expressão. Em nome dessas reivindicações, hoje se quer proibir textos e destruir estátuas, por exemplo.

Os autores atuais dos quais trato no livro se inspiram em grandes pensadores, como Aimé Césaire, que reivindicou a palavra “negro” de forma positiva, para afirmar uma cultura negra; Franz Fanon, que nunca adotou uma postura identitária, mas foi um anticolonialista refinado; em Edward Said e seu trabalho sobre o olhar do Ocidente para o Oriente; e também em Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Jacques Lacan.

Mas se inspiram em todos esses intelectuais para projetos que nada têm a ver nem com liberdade nem com emancipação. Quis entender como chegamos a essa deriva e olhar para o identitarismo de extrema direita, que não tem nada de deriva, pois sempre foi a mesma coisa.

Qual foi a recepção do livro na França? O livro foi lançado em um momento de enorme crise de deriva identitária no país, em março de 2021. Não foi minha intenção. Quando comecei a escrever, há três anos, o cenário era outro.

O debate explodiu na França com ataques extremamente reacionários, de um lado, e ultra-esquerdistas, de outro, em um contexto político bastante complicado. Algo que vocês entendem no Brasil, pois têm um identitário de extrema direita no poder, Jair Bolsonaro.

Como a identidade passa a ser central no debate público? A partir da década de 1980, a identidade passa a ser entendida por “eu sou eu, isso é tudo” —o sujeito se define, por exemplo, apenas pela cor de sua pele. Como explico no início do livro, a identidade não é mais “eu sou como um outro” ou “eu sou todo o mundo” —não são uma identidade e um sujeito abertos.

A deriva identitária é se definir unicamente por um marcador particular. Ou seja, abandonar a subjetividade universal e também a subjetividade da diferença. Definir-se unicamente como negro, homossexual, transgênero etc.

Não é uma reivindicação como aquelas ligadas à classe, pois é uma marcação territorial e limitada.

E o pensamento interseccional? A sra. o acha reducionista? De início, é uma excelente ideia. A interseccionalidade já existia em todos os trabalhos contemporâneos por ser um método comparativo. O pensamento interseccional é a convergência de lutas. Não tenho nada contra.

O que acho problemático é a manutenção da palavra “raça”, pois cientificamente não existe raça. Há pigmentações de peles, há culturas, mas não raça. A retomada dessa ideia não é mais como fez Aimé Césaire —”negro sou, negro fico”—, que subverte o estigma racista e reivindica a negritude como cultura. Agora passamos do ponto de reivindicar nossa cultura para reivindicar a raça e marcar uma identidade.

Como explicar a ideia de deriva de maneira mais ampla? Essa ideia de deriva define um pouco nosso mundo. No sentido de Derrida, há a ideia de um velho mundo —das certezas ideológicas, da ordem do patriarcado— que não existe mais.

Essa ordem do mundo foi desfeita.

A deriva da esquerda é a flutuação que parte rumo a um destino, mas termina por chegar em seu ponto contrário. Muito diferente do identitarismo e do nacionalismo da extrema direita, que não deriva nunca, é estático. No caso das derivas à esquerda, há também a criação de um falar obscuro.

Por exemplo? Palavras como racializado, decolonial, generificado, cisgeneridade, todo esse novo vocabulário, sistematizado para criar uma linguagem do pertencimento. Homi Bhabha, traduzido em todo o mundo, creio ser o autor de falar mais obscuro de que trato no livro. Mas também falo de Gayatri Spivak e mesmo de Judith Butler. Essa linguagem é complexa, mas interessante, pois permite dizer absolutamente tudo, incluindo o seu contrário.

O que a sra. acha dessas mudanças na linguagem? Adotei uma posição de nuances. Antigamente, dizia-se sobre uma ministra de Estado, “madame le ministre” [senhora o ministro]. Hoje, se utiliza o artigo feminino. Acho positivo, mas a feminização sistemática de palavras gera casos até ridículos. O mundo está se desfazendo para o nascer de outro, mas ninguém pode dominar essa transformação. É nesse ponto que critico as derivas identitárias à esquerda.

Dominar em que sentido? Há algo que se desfez, simbólica e culturalmente, com a conquista de mais igualdade para mulheres, a descriminalização de homossexuais, toda a questão dos transgêneros emergiu também. Tudo isso é bom. O que critico é a posição militante de querer dominar aquilo que não se controla, como a língua.

Uma vez que algo é incorporado à língua, é impossível controlar. Se tentamos, no fundo criamos novos dogmas e impomos um sistema autoritário. Para o intelectual, é preciso observar e deixar as transformações acontecerem em nossa sociedade e não buscar conquistas militantes.

O que era vital nos grandes autores da década de 1960 — Césaire, Derrida, Foucault, Fanon, Deleuze— é essa característica de pensar profundamente naquilo que se desfazia na sociedade, sem tentar ordená-la. É por isso, inclusive, que foram muito atacados pela extrema direita e conservadores.

Qual é a diferença entre o identitarismo da extrema direita e o da esquerda? O identitarismo da extrema direita é sempre baseado no medo de ser substituído, no nacionalismo e na afirmação arcaica de que pertencemos a um território e a uma identidade fixos. É também o ódio por qualquer outro —imigrante, judeu, árabe, indígena. Esse identitarismo se baseia na ideia de que nascemos com uma identidade que deve ser conservada.

Isso não é comparável às derivas identitárias da esquerda, não há simetria. Embora esses identitarismos coabitem uma mesma época, são processos completamente distintos.

O identitarismo da extrema direita pode explicar a ascensão de políticos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro? Com certeza, é o medo de que o mundo mude. Medo do comunismo, dos homossexuais, de que o homem branco se apague.

Algo interessante sobre o identitarismo da extrema direita no Brasil e nos EUA é que, muito diferente do caso da Europa, essas são sociedades miscigenadas. Historicamente, tanto em uma quanto em outra há o medo de que a população “torne-se negra”, o que é ridículo. A miscigenação é algo formidável.

Mas o Brasil é extremamente racista. O racismo é um problema econômico, social, cultural. Evidentemente. Os EUA também. Eu diria que, quanto mais há miscigenação, mais há o medo do outro e, consequentemente, o racismo, porque a miscigenação rompe barreiras imaginárias.

Vejamos o caso de Barack Obama. Ele é miscigenado. Culturalmente, no contexto dos EUA, é muito mais próximo de um Kennedy que de um homem negro da periferia. Obama é um puro produto das melhores universidades americanas, o que mostra que a questão não é a cor, é a cultura.

Para retomar a questão anterior: o que explica que a ascensão de políticos extremistas, ligada ao identitarismo da extrema direita, seja um fenômeno simultâneo em tantos países tão diferentes entre si? O mundo é agora multipolar, em oposição ao mundo bipolar da Guerra Fria. Há uma crise nisso que chamamos de sociedades ocidentais e será preciso encontrar soluções para dividir as riquezas. Não podemos deixar povos inteiros na pobreza, ou o nacionalismo e o populismo continuarão a se reproduzir.

A principal oposição hoje é o mundo da democracia versus o mundo das ditaduras, e a democracia está muito frágil. A França está fragilizada pelo aumento do islamismo radical, uma reivindicação identitária.

Em 1989, Lévi-Strauss afirmou em entrevista à Folha que sentia sua cultura ameaçada pelo islã. Esse sentimento de ameaça permanece na França? Sua crítica não era à religião islâmica, mas à ideia de dominação. Primeiro, é preciso dizer que não se pode atacar muçulmanos, que hoje na Europa ocupam um lugar muito parecido com o que os judeus ocuparam outrora. O que é preciso criticar é o fanatismo religioso, uma deriva identitária.

Na Europa, o islã é uma religião que integramos à nossa sociedade, diferente do Brasil, em que isso não é uma questão. Contudo, no Brasil vocês têm outro perigo, outra forma de fanatismo religioso: o evangélico. Para escapar ao fanatismo, é preciso integrar a religião e os religiosos à laicidade do Estado.

O modelo brasileiro de Estado laico é muito diferente da laicidade francesa. Com certeza, a França tem um modelo único. Mesmo os EUA e a Inglaterra, do ponto de vista francês, não são países laicos. O presidente dos EUA faz seu juramento com a mão sobre a Bíblia. Na Inglaterra, há uma monarquia. Nada parecido com a França, onde cortamos a cabeça do rei e fundamos uma laicidade muito particular.

O modelo de Estado laico francês não é exportável a outros países. Ele deve ser defendido, é parte de nossa tradição. Nesse sentido, sou próxima de Lévi-Strauss. Ele acreditava que não se devia perturbar a estrutura.

Qual é a diferença entre o identitarismo em países colonizados e em países colonizadores? Essa pergunta está no
coração do debate que proponho no livro. Há um movimento que começa a se desenhar, uma guerra da memória. Nos países outrora colonizados, os povos oprimidos reivindicam agora sua própria memória, uma memória da perseguição.

Contudo, não se pode destruir estátuas, censurar a história de um país. A história é complexa. Países colonizados tiveram colaboracionistas, e países colonizadores tiveram anticolonialistas. O que deve ser feito é olhar o passado por todos os lados. É preciso fazer a memória compartilhada, algo que tentamos fazer na França em relação à Argélia. A memória compartilhada é a única solução, ainda que muito complexa.

No Brasil, discute-se o conceito de racismo estrutural. O que a sra. acha desse conceito? Nós o chamamos de racismo sistêmico. Na França, não há racismo sistêmico no nível do Estado. É a lei. Eu não concordo com o posicionamento decolonial que afirma que o racismo seja estrutural ao Estado, pois essa afirmação não é precisa. Não se pode confundir a sociedade civil e o Estado.

Dados apontam que, em 2020, mais de 6.400 brasileiros foram mortos em intervenções policiais. Desses, 79% eram negros. Não faz sentido, então, falar de um racismo estrutural ou sistêmico? Isso é muito distante da realidade francesa, onde se recorre à lei e ela funciona. Se um policial mata alguém, ele é punido pela lei. Nos EUA, idem. O policial que matou George Floyd foi condenado. Nesses casos, eu não acredito que o Estado produza o racismo. Neles, o racismo existe e ele está, também, na polícia.

Mas, no Brasil, está no poder um racista assumido. O Estado de Direito brasileiro é muito frágil. Mais que de democracia, essa é uma questão de Estado de Direito, um Estado neutro que condena a discriminação.

Como superar esse tipo de violência? Pelos livros e pela militância. O combate tem que ser feito pelas ideias, ao menos na Europa.

No Brasil, creio ser uma questão de Estado de Direito. Estive no Brasil quando Dilma Rousseff foi deposta, algo a que me opus fortemente. Para mim, estava claro que isso iria beneficiar a extrema direita. Não há solução fácil ou imediata para o Brasil, mas Bolsonaro não pode continuar.

Por que a extrema direita é tão atraída por movimentos conspiracionistas, como o QAnon? A extrema direita é essencialmente conspiracionista, imagina sempre um complô. Na França, mesmo antes da Revolução de 1789, já existiam conspirações de um complô judeu. O conspiracionismo caracteriza as ditaduras. Vladimir Putin, por exemplo, é um conspiracionista. Ele foi do comunismo para a extrema direita, e o complô é o mesmo: um mal que vem do estrangeiro.

Hoje em dia, o conspiracionismo é ativado maciçamente pelas redes sociais, que são um lixo, sempre terreno fértil para conspirações. Vimos isso com os movimentos antivacina.

Todo conspiracionismo ignora a realidade. Seja o pior dos conspiracionismos, como o antijudeu, que culminou no Holocausto, seja o movimento antivacina, todos se baseiam no medo e no terror de um estrangeiro, de um outro.

E o medo de uma ameaça comunista? Também é um conspiracionismo. A extrema direita teme um comunismo que não existe mais. O que é fascinante é que não é necessária a presença da realidade, nem do objeto do ódio, para que o conspiracionismo floresça. Há, por exemplo, conspirações antissemitas em países onde não há judeus.

É esta a grande característica da extrema direita: ela acredita em conspirações baseadas em coisas que não existem.

Tem-se medo a vida toda do comunismo, que não existe mais. Temem a “grande substituição” por uma outra raça, quando não existem raças. Na França, hoje, temem que haja menos igrejas que mesquitas, mas a explicação é simples: o país se descristianizou. Não há substituição.

O que me causa mais receio é que a extrema direita não é acessível pela razão, pois se baseia no medo e, contra isso, não há pedagogia possível. O conspiracionismo, a meu ver, é uma doença mental.

No Brasil, há um problema sério de violência contra a população trans, com assassinatos brutais. Como combater essa violência sem cair em derivas identitárias? Em primeiro lugar, é preciso combater, evidentemente, como se combate a violência contra a mulher e homossexuais.

No livro, chamo atenção para outro debate, sobre a definição da transgeneridade e da lei. Pela lei francesa, uma pessoa com menos de 15 anos não pode consentir uma relação sexual. Sou favorável a essa lei.

No caso de pessoas trans, sou contra os tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação em pessoas com menos de 15 anos pelo mesmo motivo: elas não podem dar o consentimento, mesmo que queiram o tratamento. Depois dos 18 anos, cada um tem o direito de fazer o que quer.

Além disso, eu me questiono sobre outro fenômeno, relacionado ao sexo e ao gênero. É preciso tratar do assunto com humanidade, mas não é possível apagar o sexo em nome do gênero. O que é preciso combater são os excessos.

É perfeitamente normal que alguém tome hormônios e adote um gênero diferente do nascimento, mas erra alguém que diz suprimir a biologia. As duas coisas podem conviver. Não se pode negar o gênero em detrimento do sexo, nem negar o sexo em detrimento do gênero.

A pobreza do liberalismo brasileiro, por Rodrigo Jungmann.

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Nossos liberais não costumam ir muito além de concepções economicistas

Rodrigo Jungmann, Doutor em filosofia pela Universidade da Califórnia, é professor da Universidade Federal de Pernambuco

Folha de São Paulo, 27/03/2022

No último dia de aulas remotas do semestre passado, um aluno me afiançou, muito educado, que gostara bastante das minhas preleções. Avançou a ressalva, no entanto, de que, com todas as vênias, não poderia deixar passar batida a ocasião de assinalar uma certa perplexidade. Causava-lhe espanto que eu houvesse me declarado mais de uma vez um defensor do liberalismo.

A sequência da conversa deixou claro que, por “liberalismo”, o aluno entendia tão só o “neoliberalismo”, uma concepção de ordem econômica que chegou ao poder no fim dos anos 1970 e começo dos 1980 com as vitórias eleitorais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

Uns cinco ou dez minutos bastaram para que eu fosse capaz de esclarecer-lhe que, por “liberalismo”, tinha em mente a ordem política liberal e que, nos termos da terminologia que me parece mais adequada, um John Maynard Keynes figura comodamente como um liberal de esquerda, ao passo que um Friedrich Hayek deve ser tido na conta de liberal de direita. A diferença entre os dois autores economistas, como é sabido, radica-se numa distinta compreensão do papel ideal do Estado na economia —muito mais abrangente, na concepção de Keynes; tão pouco intrusivo quanto possível, no entender de Hayek.

O aluno pareceu genuinamente surpreso, mas me agradeceu pela resposta e, por assim dizer, me “perdoou”. Que explicação pode ser oferecida para um tamanho mal-entendido? Seria por demais cômodo e evasivo explicar a ocorrência culpando exclusivamente certa esquerda pelas caricaturas simplificadoras tão amiúde associadas ao termo “neoliberalismo”.

O fato é que os liberais brasileiros realmente passam exclusivamente por neoliberais, e que o liberalismo entre nós costuma não ir muito além de concepções economicistas. Meu ponto aqui é que nossos liberais são em grande parte responsáveis eles mesmos por este estado de coisas. E o são em razão do que bem poderia ser chamado de obsessão pela economia.

No momento em que escrevo, tenho diante dos meus olhos uma tradução de “On Liberty”, obra de um liberal por excelência, John Stuart Mill. A tradução é excelente, mas é bem digno de nota o fato de que tenha por título “Da Liberdade Individual e Econômica” (Faro Editorial).

Causa espécie tal escolha, visto que o livro definitivamente tem uma ênfase inteiramente diversa. E certamente não se pode atribuir a Mill uma defesa do chamado Estado mínimo (o pensamento do filósofo britânico é marcado por um acentuado ecletismo, a que não se pode fazer justiça em poucos parágrafos).

Não bastasse essa estreiteza de visão, a pandemia em curso deixou tristemente claro que muitos autonomeados liberais brasileiros não chegam sequer a entender que, se é verdade por um lado que a liberdade preconizada por Mill entrona o indivíduo na posição de soberano absoluto da sua vida privada, daquele âmbito de ações que dizem respeito exclusivamente à sua própria pessoa e que só sobre ela exercem efeitos, não é menos verdade que tal liberdade perde a sua sanção incondicional sempre que pode redundar em ações que causem danos a terceiros.

No domínio propriamente teórico, a situação é ainda mais desoladora. Quantos jovens estudantes da matéria têm ciência de que um erudito da estatura de um José Guilherme Merquior se proclamava orgulhosamente como um liberal social? Ou mesmo do que vem a ser o liberalismo social? Com que frequência se mencionam entre nós autores como T. H. Green, John Hobson ou Leonard Trelawny Hobhouse?

Por fim: a rejeição ao despotismo, o direito à vida, à expressão e à propriedade, o império da lei, a competição regrada de interesses e crenças, os mercados livres, a expansão do rol de atores políticos até o advento do sufrágio universal —tudo isso fez e faz parte da tradição liberal. Como também o fez a noção humboldtiana de “Bildung” e de autocultivo da mente; o perfeccionismo, em suma. E que o Estado bem pode ter um papel fundamental a desempenhar nesse domínio. Mas disso o leitor dificilmente terá ciência lendo os liberais brasileiros.

Quatro fatores parecem explicar a queda do dólar, por Samuel Pessoa.

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Em algum momento, atual valorização deve cessar

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 26/03/2022

Era esperado para o início deste ano alguma valorização na moeda em razão da votação da lei orçamentária de 2022, em dezembro do ano passado.

Após a emenda constitucional dos precatórios, que abriu R$ 100 bilhões no Orçamento de 2022, a votação da lei orçamentária estabelecia um tamanho para o rombo fiscal.

A descompressão ocorreu, mas muito mais intensa do que qualquer pessoa imaginava. Outros fatores contribuíram.
Dois fatores principais explicam o fortalecimento do real, que na sexta-feira (25) fechou a R$ 4,74 por dólar.

O primeiro foi a retomada de um mecanismo de compensação entre o real e o preço dos commodities. Desde a flutuação do câmbio, no início de 1999, sempre que as commodities no mercado internacional ficam mais caras, o real se valoriza, e vice-versa.

Esse mecanismo equilibrador existe, pois somos um grande exportador de matérias-primas. Sempre que as commodities encarecem no mercado internacional, ficamos mais ricos, e, consequentemente, nossa moeda se valoriza, e vice-versa.

Entre maio de 2020 e novembro de 2021, esse balanço deixou de existir. Quando a epidemia bateu, o preço das commodities despencou —houve semana em que o preço do petróleo chegou a ficar negativo, pois se cobrava para armazenar— e nossa moeda desvalorizou-se de R$ 4,3 para até R$ 5,8, em maio de 2020.

Quando ocorreu a recuperação muito forte da economia mundial, os preços das commodities subiram muito. Dobraram em relação ao ponto mais baixo observado em abril de 2020. Penso que o aumento da percepção de risco, em razão do impacto da epidemia sobre os gastos além do teto do governo, neutralizou o efeito gangorra entre o real e o preço das commodities. Em vez de voltar para R$ 4 por dólar, nossa moeda ficou oscilando em torno de R$ 5,5. Essa neutralização explica uma parte importante do choque inflacionário por aqui: se o câmbio tivesse se comportado de forma habitual, parte do efeito inflacionário da elevação dos preços das commodities seria compensada pela valorização do real.

Desde dezembro de 2021, o efeito gangorra voltou a funcionar, e parte da valorização da moeda resulta da subida dos preços das commodities. As moedas de outras economias exportadoras de commodities têm se valorizado também.

Mas parece haver um terceiro fator contribuindo para valorizar a nossa moeda. A guerra na Europa em uma região, o Leste Europeu, com diversos países emergentes melhorou a percepção de risco relativa da América Latina. Nesse “concurso de feiura”, ficamos um pouco melhor.

Finamente, há sinais de que a elevação da taxa de juros contribui para o movimento da moeda.

A ação conjunta desses quatro fatores —retirar o bode da lei orçamentária de 2022 da sala, a volta da gangorra preço das matérias-primas e câmbio, a melhora relativa da América Latina em razão da guerra e o maior diferencial de juros— parece explicar o movimento da moeda, que saiu de R$ 5,74 em 21 de dezembro último para R$ 4,74 na sexta-feira passada. Incrível valorização de R$ 1 por dólar.

Muito difícil construir cenário para o câmbio. Minha avaliação é que a atual valorização em algum momento cessará e, ao longo do processo eleitoral, viveremos muita volatilidade, com o real se desvalorizando um pouco.

No fim do ano, com a retomada pelo novo governo de uma trajetória de ajuste fiscal estrutural, devemos voltar a uma lenta trajetória de fortalecimento de nossa moeda.