Como se não houvesse amanhã, por Oscar Vilhena Vieira.

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O governo federal colocou em prática a estratégia de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental por meio de ‘reformas infralegais’

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo – 26/03/2022

A Constituição de 1988 assegurou a todos o “direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado… impondo ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, antecipando de forma premonitória as ameaças impostas pela crise climática que hoje constitui um dos principais desafios para a humanidade.

Em atendimento a esse verdadeiro pacto intergeracional estabelecido pelo artigo 225 da Constituição Federal, o Brasil adotou em 2004 um Plano de Ação para Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia Legal, que foi consolidado pela lei 12.187, de 2009. A implementação desse plano contribuiu de maneira efetiva para a redução de 83% do desmatamento na Amazônia Legal entre 2004 e 2012, contrariando interesses de grileiros, madeireiros, garimpeiros ilegais e de setores envolvidos em projetos agrícolas insustentáveis.

Incapaz de alterar a Constituição e as leis de proteção ambiental, para atender sua base de apoio, o governo federal colocou em prática a estratégia — explicada por Ricardo Salles na escatológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020 — de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental, por meio de “reformas infralegais”, como se não houvesse amanhã.

Combinada com estrangulamento orçamentário, nomeação de pessoas inaptas e atos parainstitucionais que estimulam o desmatamento, o infralegalismo autoritário de Bolsonaro vem permitindo ao seu governo amesquinhar a ação de agências de proteção ambiental como Ibama, ICMBio, Inpe e mesmo a Funai.

De 2018 para cá, houve uma queda de 82,7% na imposição de embargos a atividades de desmatamento; assim como uma redução de 80,7% nas apreensões realizadas pelo Ibama. No mesmo sentido, mais de 5.000 autuações por infrações ambientais correm risco de prescrever em decorrência de deliberada omissão governo.

O resultado desse plano macabro e inconstitucional é a impunidade e o aumento do desmatamento. A estratégia do infralegalismo autoritário, aplicada ao campo ambiental, contribuiu para um aumento de 76% no desmatamento na Amazônia Legal em 2021, se comparado a 2018. O desmatamento em terras indígenas (TI) e nas unidades de conservação (UC) cresceu respectivamente 138% e 130% nos mesmos três anos (Prodes/Inpe). O índice de emissões causadoras de emergência climática superou três vezes a meta estabelecida pela Política Nacional de Mudança Climática.

O Supremo Tribunal Federal, que vem assumindo um papel fundamental na defesa das instituições democráticas e na proteção do direito à vida e à saúde da população durante o período Bolsonaro, terá nos próximos dias uma oportunidade única de interromper essa espiral perversa de devastação ambiental.

Não se trata de interferência indevida do Supremo em esfera de competência do Executivo, mas de mero exercício da missão reservada ao Supremo de proteger a Constituição de atos e omissões que a afrontem. Ao Supremo não se requer a criação de uma política ambiental, mas apenas que faça cumprir aquilo que foi estabelecido pela Constituição e pelas leis.

Mais do que a preservação das florestas, do regime de chuvas, da pujança do agronegócio ou da preservação de nossa matriz limpa de energia —que dependem de nosso regime de águas—, o que está em jogo nesse julgamento é o bem-estar de nossos filhos e netos e, no limite, a própria sobrevivência das futuras gerações.

Tem dinheiro sobrando no Tesouro?, por Marcos Mendes.

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Ilusão de cofre cheio e governabilidade corroída podem terminar em crise institucional

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo – 25/03/2022

A arrecadação do governo federal tem batido recordes, e isso leva os políticos a achar que há dinheiro sobrando. Nada mais enganoso.

A previsão do Ministério da Economia é de um déficit de R$ 67 bilhões (0,7% do PIB) em 2022. Para que a dívida pública pare de subir, precisamos, em um cenário muito otimista, de um superávit de, pelo menos, 1,5% do PIB. Isso significa um ajuste fiscal de, no mínimo, 2,2 pontos percentuais do PIB (1,5+0,7) ou R$ 212 bilhões.

Esse ajuste é necessário, embora não suficiente, para a economia ter chances de voltar a crescer.

As decisões políticas, contudo, seguem na contramão. As reduções de impostos já implementadas têm custo anual aproximado de R$ 40 bilhões. Há propostas de aumento de gastos com alta probabilidade de aprovação que, em uma conta conservadora, somam R$ 30 bilhões por ano, o que não inclui o custo da eventual criação de um fundo de estabilização de preços de combustíveis, aprovado no Senado, mas travado na Câmara. Se aprovado, esse fundo será uma conta em aberto, de custo elevado, como argumentei em coluna anterior.

A dissonância entre a frágil situação fiscal e a sensação de dinheiro sobrando decorre do aumento dos preços das commodities, com os quais a receita tributária federal é fortemente correlacionada.

Quando sobem os preços das commodities exportadas pelo Brasil, lucram as empresas ligadas ao setor, pagando mais impostos, royalties e, no caso de estatais, dividendos. Há, também, impacto inflacionário, pelo aumento do preço daqueles bens no mercado interno, que se transfere rapidamente à arrecadação do governo.

Dados da Receita para os 12 meses encerrados em janeiro mostram que, entre os setores econômicos que mais aumentaram o pagamento de impostos, predominam os ligados à exportação de commodities: minerais metálicos (261% de aumento), petróleo e gás (193%), agropecuária (100%). O aumento médio da arrecadação foi de 22%.

Em relatório divulgado na terça (22), o Ministério da Economia mostra que, na comparação com os valores que constam do Orçamento, a expectativa de arrecadação com royalties, dividendos e bônus de assinatura ligados à indústria do petróleo aumentou 50%, representando R$ 60 bilhões a mais.

Esse é o típico aumento de receita que está fora do controle do governo. Se o preço das commodities despencar no mercado internacional, a arrecadação tributária cairá junto. Se usarmos esse ganho temporário de receita para conceder benefícios fiscais e aumentos de gastos duradouros, quando a maré das commodities virar, nossa delicada situação fiscal se agravará ainda mais.

Foi o que aconteceu entre 2004 e 2012: houve um longo ciclo positivo de preços de commodities, e o governo expandiu despesas e benefícios fiscais. Com a queda dos preços das nossas exportações, a arrecadação caiu, mas as despesas continuaram altas e os benefícios fiscais se perpetuaram. Abriu-se grande déficit primário, o Brasil perdeu o grau de investimento, e ingressamos na recessão de 2014.

Parece que rumamos, de novo, na mesma direção. O que tem segurado a expansão de despesas é o teto de gastos. Embora ferido pelas diversas flexibilizações da regra, ele ainda está sendo capaz de segurar muitas pressões.

Por outro lado, a captura do Orçamento e da coordenação política do governo pelo centrão, somado às pretensões eleitorais do presidente, e a infiltração de interesses privados nos ministérios têm criado espaço para todo tipo de gasto e benefício fiscal paroquial e populista. Vetos presidenciais a leis que propõem mais gastos caem como moscas, atropelando cotidianamente a Lei de Responsabilidade.

Isso faz antever novas pressões contra o teto. Se houver novas flexibilizações, ou até mesmo a sua revogação por um novo presidente simultaneamente a uma queda dos preços das commodities, a deterioração fiscal se acentuará.
Uma nova crise fiscal, em um contexto de economia que não cresce há anos, governabilidade comprometida, orçamento capturado e polarização política, coloca no radar o risco de crise institucional.

Guerra de Putin exige reação econômica global coordenada, por Martin Wolf.

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Países terão que usar seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto do aumento de preços dos alimentos sobre os mais pobres

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

O ataque de Vladimir Putin à Ucrânia vai refazer nosso mundo. Como isso acontecerá permanece indefinido. Tanto o resultado da guerra quanto, mais ainda, suas ramificações mais amplas, incluindo aquelas para a economia global, são geralmente desconhecidos. Mas alguns pontos já são muito evidentes. Vindo apenas dois anos após o início da pandemia, este é mais um choque econômico, catastrófico para a Ucrânia, ruim para a Rússia e significativo para o resto da Europa e grande parte do mundo.

Como de costume, o impacto dos refugiados é principalmente local. A Polônia já abriga a segunda maior população de refugiados do mundo, depois da Turquia. Os refugiados também estão chegando a outros países do leste europeu. Virão mais. Muitos também desejarão ficar perto de sua terra natal, esperando retornar em breve. Eles precisam ser alimentados e alojados.

No entanto, as ramificações vão muito além da Europa oriental ou mesmo da Europa como um todo, como mostra uma excelente perspectiva econômica provisória da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A Rússia e a Ucrânia representam apenas 2% da produção global e uma parcela semelhante do comércio mundial. Os estoques de investimento estrangeiro direto na Rússia e os da Rússia em outros lugares também representam apenas 1% a 1,5% do total global. O papel mais amplo desses países nas finanças globais também é irrelevante. No entanto, eles são importantes para a economia mundial, de qualquer modo, principalmente porque são grandes fornecedores de commodities essenciais, sobretudo cereais, fertilizantes, gás, petróleo e metais vitais, cujos preços nos mercados mundiais dispararam.

A OCDE estima que esse choque reduzirá a produção mundial este ano em 1,1 ponto percentual abaixo do que teria sido. O impacto nos Estados Unidos será de apenas 0,9 ponto percentual, mas na zona do euro será de 1,4 ponto. O impacto comparável sobre a inflação será de mais 2,5 pontos percentuais para o mundo, mais 2 pontos para a zona do euro e mais 1,4 ponto percentual para os EUA.

O aumento dos preços da energia e dos alimentos reduzirá a renda real dos consumidores muito mais do que essas perdas do Produto Interno Bruto. As receitas reais dos países importadores líquidos de energia e alimentos também serão mais afetadas do que apenas o seu PIB. Também é provável que as estimativas da OCDE sejam muito otimistas.

Isso dependerá, entre outras coisas, da duração dessa guerra maligna e da possível disseminação de sanções para a China ou de embargos às importações de energia para a Europa.

Esses impactos diretos esperados na produção são muito menores do que os da Covid: em 2020, a produção mundial acabou cerca de 6 pontos percentuais abaixo da tendência. Mas uma recuperação total da Covid não havia ocorrido antes da chegada desse novo choque, que prejudicou as relações internacionais, aumentou as preocupações com a segurança nacional e minou a legitimidade da globalização. Esta tragédia provavelmente projetará longas sombras.

Uma razão disso é seu impacto sobre a inflação e as expectativas inflacionárias. O Federal Reserve (banco central dos EUA) tornou-se mais agressivo. Mas ainda acredita em “desinflação imaculada” –a capacidade de conter a inflação sem muito, ou nenhum, aumento do desemprego. O Banco Central Europeu também enfrenta um salto da inflação, ao qual será obrigado a responder. Na prática, o aperto provavelmente prejudicará a atividade e os empregos mais do que se espera, em parte devido à fragilidade financeira.

De modo mais fundamental, o aparecimento de divisões geopolíticas entre o Ocidente, de um lado, e Rússia e China, de outro, colocará em risco a globalização. As autocracias tentarão reduzir sua dependência das moedas e dos mercados financeiros ocidentais. Tanto elas quanto o Ocidente tentarão reduzir sua dependência do comércio com os adversários. As cadeias de suprimentos serão encurtadas e regionalizadas. No entanto, observe que a dependência da Europa em partes da Ucrânia já era regional.

A política econômica tem relevância apenas limitada em tempo de guerra. Não pode salvar os que estão sendo atacados, embora possa tentar punir ou dissuadir os responsáveis. Mas pode e deve responder às consequências. A política monetária deve continuar sendo dirigida para o controle da inflação e das expectativas inflacionárias, por mais desagradável que isso possa parecer.

É possível e necessário, entretanto, que os países apliquem seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto dos preços mais altos da energia e dos alimentos sobre os mais vulneráveis. Estes últimos incluem muitos países em desenvolvimento, especialmente importadores líquidos de energia e alimentos. Eles exigirão apoio substancial em curto prazo. Os direitos de saque especiais criados no ano passado poderão agora ser usados para esses fins. Os países de alta renda não precisam deles e deveriam doá-los ou pelo menos emprestá-los aos países mais necessitados.

A resposta a esta tragédia terá de ser muito mais do que de curto prazo. Assim como a Covid nos obriga a planejar como lidar com futuras pandemias, essa guerra deve nos forçar a pensar mais sobre segurança em um mundo mais hostil do que a maioria de nós previa ou pelo menos esperava. A segurança energética será reforçada por uma mudança ainda mais rápida para as energias renováveis. Isso não é mais algo apenas ligado ao clima. Em curto prazo, a diversificação das fontes de combustíveis fósseis também será essencial.

Mais uma vez, está claro que o Ocidente e especialmente a Europa terão que fazer um grande e coordenado aumento de sua capacidade de defesa coletiva. Isso vai custar caro. Os europeus têm recursos para serem mais independentes estrategicamente. Eles devem usá-los. Enquanto a direita isolacionista continuar tão poderosa nos EUA, isso não será apenas correto, mas sábio.

Por último, mas não menos importante, a Rússia deve permanecer um pária enquanto esse regime vil sobreviver. Mas também teremos que conceber uma nova relação com a China. Devemos continuar cooperando. No entanto, não podemos mais contar com esse gigante em ascensão para bens essenciais. Estamos em um novo mundo. A dissociação econômica agora certamente se tornará profunda e irreversível. Não vejo como evitar isso.

Momento da virada democrática, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

Neste ano de 2022 estamos diante de uma batalha civilizacional. Já se foram mais de três anos de um desgoverno que dispensa apresentações. Finalmente voltaremos às urnas. Há muita coisa em jogo, a começar por nossa jovem democracia. Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses.
Desde 2019, o Instituto Igarapé monitora veículos da imprensa e identifica os ataques ao espaço cívico, classificando os episódios de abuso de poder, violação de direitos, intimidação e assédio, dentre outras táticas usadas por líderes populistas-autoritários para minar a democracia. As reações das instituições do Estado e da sociedade civil também são registradas.

E para melhor nos preparar para o que ainda está por vir, organizamos uma retrospectiva da situação do espaço cívico no ano de 2021. Começo com uma boa notícia: mesmo diante de ofensivas antidemocráticas diárias estamos resistindo. Se por um lado mapeamos 1.551 ameaças ao espaço cívico, por outro, foram 1.349 respostas institucionais e 750 ações de resistência da sociedade. Portanto, há esperança.

Porém, ao longo de 2021, as ameaças se diversificaram e se tornaram mais graves, o que deixou ainda mais claro o objetivo de seus perpetradores: centralizar o poder, alienar a população e silenciar a oposição. O avanço no aparelhamento de órgãos-chave contribuiu para o enfraquecimento de áreas vitais como educação, meio ambiente, cultura, saúde e direitos humanos. Ao todo, foram 240 casos de abuso de poder identificados.

Por sua vez, o assédio institucional e a perseguição de servidores não alinhados cegamente ao governo agravaram o desmonte de políticas públicas. A aplicação abusiva da Lei de Segurança Nacional expôs o uso ilegítimo do aparato policial e judicial para silenciar vozes dissidentes por meio de prisões, intimações e investigações arbitrárias.

Os 325 casos contabilizados de intimidação e assédio restringiram a liberdade de expressão de jornalistas, ativistas, pesquisadores, dentre outros. Em certos casos, as agressões verbais escalaram para a violência física.

Para driblar o sistema de freios e contrapesos republicano, o governo usou e abusou de atos infralegais: consolidou-se a era do “governar por decretos”. Foram 308 decretos em 2021, muitos deles invadindo a competência do Congresso para legislar, como é o caso dos decretos sobre armas de fogo —que enfraquecem o pacto democrático em que cidadãos confiam ao Estado a sua segurança e o monopólio responsável do uso da força.

Além disso, foram identificados 142 casos de jogo duro constitucional —uso indevido de prerrogativas institucionais, forçando os limites da legalidade para obter ganhos pessoais ou para grupos políticos. Essas táticas vieram acompanhadas da escalada do discurso autoritário. O episódio do desfile de blindados, por mais caricato que tenha sido, e as manifestações de 7 de setembro foram, possivelmente, prenúncios de atos antidemocráticos que ainda estão por vir.

Nesse contexto, também ganharam palanque campanhas de descredibilização da ciência e do sistema eleitoral. Por um lado, a retórica autoritária e enganosa foi ecoada por uma onda de fake news e desinformação —412 casos—, que, somando-se à gestão irresponsável da pandemia, impactou sobremaneira a população indígena, quilombola, negra e de baixa renda —principais alvos dos 145 casos de violação de direitos civis e políticos.

E, por outro, as alegações sem provas de fraude nas eleições contribuíram para minar a confiança da população nas instituições e preparar o terreno para os ataques planejados para, no mínimo, gerar dúvida e confusão nas eleições.
Em outubro temos a chance de corrigir o rumo e voltar a trilhar o caminho da consolidação democrática. É mais que chegada a hora de virar esse jogo.

Trabalho por app pode estar empurrando pessoas para a direita, diz antropóloga

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Rosana Pinheiro-Machado recebeu uma das bolsas mais prestigiosas do mundo para coordenar pesquisa

FERNANDA CANOFRE – FOLHA DE SÃO PAULO, 21/03/2022

PORTO ALEGRE

Em países emergentes como Brasil, Índia e Filipinas, trabalhadores de plataformas como Uber e vendedores de Instagram encontraram nas redes sociais um meio de sobrevivência, mas também um ambiente fértil da extrema-direita, alinhada à ascensão dos governos atuais desses países.

Para a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro Machado, a relação entre a inserção no mercado de trabalho desses grupos sociais e o posicionamento político de direita não são coincidência.

É possível que a própria estrutura das plataformas — seu formato altamente individualizado e focado no mérito — estejam exacerbando tendências políticas hiperliberais, argumenta.

Essa é a hipótese central de um trabalho de pesquisa que será coordenado por Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath (Reino Unido).

A antropóloga foi laureada com um financiamento no valor aproximado de 2 milhões de euros (cerca de R$ 11 milhões) pelo European Research Council (da União Europeia), uma das bolsas mais prestigiosas do mundo, anunciado nesta quinta-feira (17). O trabalho deve começar em maio e tem previsão de duração de cinco anos.

Com trabalho de anos na periferia de Porto Alegre, buscando entender a identificação de trabalhadores do chamado precariado, que viveram o incentivo ao consumo dos anos de governos petistas, com as ideias do presidente Jair Bolsonaro (PL), Rosana conversou com a Folha sobre as questões do novo mundo do trabalho.

A pesquisa busca entender as contradições de países com economias emergentes, com classes sociais que apresentam tendência a apoiar autoritários. Como se chegou a essa hipótese? Quando a gente olha para a teoria de populismo, a gente tem uma deficiência que é tentar entender pelo ponto de vista do trabalhador precarizado, [fenômenos como] Donald Trump e o Brexit. Só que a relação do mundo do trabalho em países que tiveram crises depois de 2017 e países em crescimento é diferente.

É muito diferente ter aquele trabalhador estereótipo do voto do Trump, o cara que perdeu emprego na indústria, perdeu o estado de bem-estar social, e populações como na Índia, onde 80% da população rural sempre esteve na informalidade, ou mesmo no Brasil. O sentimento político é bastante diferente.

O que tem em comum entre esses três países é que todos foram considerados grandes futuras potências democráticas, todos fizeram, em cascata, uma virada autoritária, com algumas coisas em comum, próprias das contradições desses modelos.

Você tem milhões de pessoas saindo da linha da pobreza, que passaram a viver a plataformização do trabalho —não só do Uber, mas Facebook, WhatsApp, Instagram, Telegram. Pessoas que, no sentido mais amplo possível, usam alguma plataforma digital para empreender.

Esse trabalhador precarizado, aspirante a camada média, se alinha com o autoritário. A hipótese do projeto é entender até que ponto as próprias plataformas não estão exacerbando esse processo pela própria estrutura, altamente individualizada, focada no mérito, hiperliberal por essência.

Isso pode ter profundo impacto na democracia global, onde tiver plataformização. São milhões de pessoas trabalhando 20 horas por dia, no celular, recebendo conteúdo. E por ter impacto também no mundo do trabalho: massas de trabalhadores que entram num sistema de ilusão, acreditando que vão se aposentar com Bitcoins.

Tem outro aspecto que é entender quem são os influencers [influenciadores], porque entre esse trabalhador precarizado e o político populista tem um mundo de mediadores.

Que evidências existem nessa direção no Brasil, por exemplo? Quando Bolsonaro fala o oposto do “fique em casa”, que era comércio aberto, o que toda a esquerda pensa? Que ele é um genocida, e fica sem entender como uma parte da população segue gostando dele. Mas é uma parte da população que está totalmente alinhada a um projeto hiperindividualista: esse trabalhador se faz por si próprio, ele não precisa de política de Estado, ele odeia o que chama de “coitadismo”.

Muitos desses populistas têm uma mensagem direta focada na produção do inimigo interno, que é o mau trabalhador, o vagabundo, e valorizando a figura do trabalhador que vence por si próprio, que não precisa do Estado. Todo pensamento progressista vai em outra direção, pensando no Estado como provedor do bem-estar social e de direitos. Bolsonaro fala para muitos desses trabalhadores quando promove comércio aberto, uma autogestão da pandemia, que é o oposto de uma gestão coletiva.

Qual o impacto político dessa plataformização do trabalho? Essa é a maior pergunta do projeto. Toda a literatura de plataformização e política está mais alinhada em entender o fenômeno de resistência, as possibilidades de sindicalização, só que é uma possibilidade muito pequena da política das plataformas.

Grande parte desses trabalhadores não necessariamente são bolsonaristas, mas estão muito vinculados a um grau individualista e conservador, mais alinhado ao campo da direita e à despolitização do que à resistência. Nós estamos argumentando que, tão importante quanto olhar para a mobilização, é entender o que nas próprias plataformas está desmobilizando.

A nossa hipótese inicial é que, conforme vai se plataformizando, uma grande parte vai caindo na malha da extrema-direita.

Ainda não se sabe o impacto político disso nessas pessoas que estão empreendendo do seu celular 20 horas por dia. A gente tem que lembrar que elas estão entrando em lugares que não são só econômicos, mas permeados de valores políticos. Não se tem noção do que isso vai resultar daqui alguns anos em termos de subjetividade política.

A pessoa está horas trabalhando e recebendo todo tipo de informação em um lugar onde a extrema-direita tem hegemonia total, a esquerda não passa nem perto. É muito além do gabinete do ódio, eles têm um ecossistema político. Esse trabalhador está muito mais exposto a essas redes que são super empreendedoras, “faça você mesmo”, “contra vagabundo”.

Influencers, gamers, pastores pops, caras que ajudam a investir e são seguidos por milhões de pessoas, é tudo muito alinhado ao bolsonarismo. Tem um aspecto também de entender a renovação do bolsonarismo para além do Bolsonaro, como esses grupos conservadores e hiper liberais continuam recrutando membros das classes populares.

Tem todo um universo de pessoas muito mais sofisticado do que aquela fake news tosca que a gente combatia. Um ambiente muito mais persuasivo, sutil e poderoso, que é o sonho de uma ilusão de um estilo de vida.

Movimentos como o dos entregadores fascistas estão na contramão? Como eles se encaixam nesse cenário? Eles estão na contramão no sentido positivo. São um movimento quantitativamente pequeno, mas que tem papel muito importante se souberem usar as redes, criar canais de comunicação, inclusive, internacionais. Existem movimentos similares nas Filipinas, de diversos tipos, não só antifascistas, mas outras formas de cooperativas.

O mundo da resistência é muito diverso, mas está na contramão de uma avalanche dessa fase do neoliberalismo que é a destruição de tudo. Por enquanto, estamos sendo engolfados por essa lógica de profunda individualização desse trabalhador que é explorado e ao mesmo tempo quer explorar.

O apoio a governos autoritários cresceu em medida proporcional à parcela da população que passou a ter acesso à internet em países emergentes? Há uma coincidência do acesso à internet e alinhamento com a extrema-direita, mas é porque a extrema-direita, no mundo todo, se organizou com as redes sociais, não dá para saber até que ponto isso é uma conexão direta.

A gente tem, no mundo pós-pandêmico, um nível de conectividade maior e um nível de plataformização jamais visto na stória. E a gente precisa responder qual a consequência política disso, porque é um movimento que veio para ficar.

Os camelôs de Porto Alegre, que eu estudei a vida toda, durante a pandemia, foram para o Instagram. Hoje em dia, todo mundo tem celular, é caro, é difícil fazer uma aula online, mas todo mundo consegue fazer um perfil no Instagram. Estamos falando sobre o trabalhador precarizado, não sobre extrema pobreza.

Boa parte dessa pesquisa começou com uma curiosidade que eu tinha, em grupos públicos bolsonaristas, boa parte desse cluster era de grupos de vendas no WhatsApp —grupos de vendas em geral, que não eram políticos, mas onde mais circulava material bolsonarista. A gente vai olhar todas as entradas possíveis no processo.

Essa classe do chamado precariado teria força para mudar a dinâmica do capitalismo, no sentido de conseguir maior proteção social e direitos, como os movimentos de trabalhadores do século 20? Acredito que sim. O mundo todo está se precarizando, inclusive, países desenvolvidos, e não tem saída política que não seja de transformação do capitalismo via camadas precarizadas, que são grande parte da população.

Ou a gente vai entrar num buraco onde todo mundo acredita que é cada um por si, mais ou menos como está, ou a gente vai ter que ver um processo de transformação, como a renda básica universal, em que todo mundo tem o mínimo de dignidade para sobreviver. Além de movimentos, que são pequenos ainda, mas que acredito que por sua internacionalização podem mostrar que é possível ter outros modelos de trabalho.

Você afirma que é importante também entender as reações emocionais nesse contexto. As teorias do populismo sempre estão tentando entender quem é esse trabalhador que se fala em termos de nostalgia, ressentimento, ódio, porque perdeu emprego, direitos.

Eles não estão só com sentimento de raiva, também tem que entender como essas pessoas criam projetos de ilusão, quais são as aspirações dessas pessoas, quais os sonhos, como elas se iludem e o que a extrema-direita tenta entregar a elas.

Estamos num pico, no Brasil, com todo mundo tentando empreender online, o que não é sustentável, e vai ter uma onda de muita desilusão. O que o campo democrático tem a oferecer para esse mundo da desilusão? Esse mundo de pessoas empreendendo online selvagemente é muito novo.

Como vocês devem conduzir o trabalho de campo? É um desenho de pesquisa ambicioso. São três etnografias de 14 meses cada, simultâneas, uma em cada país. As cidades ainda vão ser definidas, por enquanto está previsto Rio, Manila e Nova Déli. Meses de imersão, acompanhando as vidas dessas pessoas diariamente, um pesquisador em cada país.

A gente vai criar o banco de dados para poder acompanhar o processo de plataformização desse trabalhador, e ver todas as interações com políticos, influencers e com esse mundo da extrema-direita. Ao longo de cinco anos, vamos ver a tendência de como ele começa a interagir com o material político. A nossa hipótese é que a plataformização leva muitos desses trabalhadores à extrema-direita, e que existem muitos caminhos e razões para isso.

Vamos criar esse banco de dados a partir de trabalhadores de quem a gente tem contexto. A gente vai formar também um léxico para poder fazer a captura, ver qual o sentimento, os sonhos, a revolta deles. A gente quer ouvir também quem ainda não é convertido, que fica longe da política.

Rosana Pinheiro-Machado, 42
Nascida em Porto Alegre, formada em Ciências Sociais e doutora em Antropologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Atualmente é professora do Departamento de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Bath (Inglaterra). É autora de “Amanhã vai ser maior” (Planeta, 2019).

O fim da hiperglobalização, por Ricardo Abramovay

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A Terra é Redonda – 18/03/2022

A ideia de uma comunidade global regendo todas as interações do planeta e abolindo interesses geopolíticos regionais ruiu

A ciência econômica, tal como ela se consolidou desde o final do Século XIX, afastou de seu horizonte intelectual e cultural a discussão sobre os valores ético-normativos que regem a maneira como as sociedades humanas usam os recursos materiais, energéticos e bióticos dos quais dependem. Este afastamento se radicalizou com o domínio daquilo que um número cada vez maior de economistas vem denunciando como o ultraliberalismo que marcou a disciplina, sobretudo a partir de meados dos anos 1970.

A ideia central desta vertente era que os mercados tinham uma inteligência necessariamente superior à de qualquer planejador. Esta presunção não se referia apenas ao Estado, mas ao próprio setor privado. Quem deveria ditar a forma de as empresas se organizarem não era sua direção e sim os mercados e, especialmente, os mercados financeiros. Os acionistas e os investidores deveriam ter a palavra final, expressa em números, no valor das ações e dos ativos das empresas.

As decisões empresariais seriam, por esta visão, permanentemente submetidas ao escrutínio descentralizado não de uma burocracia administrativa com interesses próprios, mas sim de uma instância sobre a qual ninguém tem controle.

A organização empresarial do século XXI extirparia, assim, o parasitismo das administrações convencionais, seria mais leve, operaria em rede e ganharia agilidade para aproveitar as oportunidades, propiciando assim maior crescimento econômico. Neil Fligstein, um dos autores mais importantes da sociologia econômica contemporânea descreveu este processo num livro fundamental publicado em 2001.

Esta ficção, que se impôs globalmente desde meados dos anos 1970, começou a desabar com a crise de 2008, mas ainda sobreviveu com impressionante arrogância, até o início da pandemia. A invasão da Ucrânia fincou definitivamente os pregos em seu caixão. A ideia de que os interesses dos indivíduos e os das empresas poderiam se exprimir numa espécie de comunidade global, onde a inovação e a eficiência seriam condições necessárias e suficientes para ampliar a riqueza, promovendo então a convergência entre os países e a abolição de interesses geopolíticos regionais, esta ideia ruiu. E com ela, ruiu igualmente outra crença ingênua, a de que a democracia resulta da capacidade de as sociedades respeitarem os mercados e prosperarem a partir deste respeito.

Dani Rodrik, professor da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard em entrevista a Daniel Rittner, no Valor Econômico, exprime bem esta ideia: “A hiperglobalização, diz Rodrik, foi um mundo no qual presumimos que preocupações geopolíticas e de segurança poderiam não apenas ser administradas, mas enfraquecidas ou até eliminadas graças à integração econômica e financeira”. A China, por exemplo, se aproximaria do Ocidente e ficaria mais democrática, graças ao poder da integração econômica, dos mercados.

Esta ilusão é igualmente denunciada por Timothy Snyder, historiador da Universidade de Yale e autor de The Road do Unfreedom no que ele chama de “política da inevitabilidade, um sentimento de que o futuro consiste em mais do próprio presente, que as leis do progresso são conhecidas…que a natureza trouxe o mercado, que trouxe a democracia, que trouxe a felicidade”.

O desabamento deste mundo e a decomposição dos mitos em que ele se apoia traz duas consequências fundamentais para o futuro das sociedades contemporâneas. Em primeiro lugar, como a pandemia já havia mostrado, a aposta na eficiência das cadeias globais de valor para a provisão dos bens e serviços necessários ao crescimento econômico, pertence ao passado. Os blocos regionais serão fortalecidos e a dependência com relação a circuitos longos será colocada sob suspeita. A geopolítica, mais que a economia, terá papel decisivo nas relações comerciais e, de forma geral, nas relações internacionais. É claro que este horizonte inspira medo, sobretudo diante da ameaça real de que os conflitos de interesse descambem para a agressão nuclear.

Mas há uma segunda consequência que, de certa forma, se contrapõe à primeira. O desabamento do que Tymothy Snyder chamou de política da inevitabilidade, do vínculo mágico entre mercado, democracia e felicidade este desabamento recoloca a discussão sobre valores ético-normativos no cerne tanto da teoria como das decisões econômicas. Aumenta de maneira impressionante a pressão para que as iniciativas das empresas e as infraestruturas planejadas pelos governos sejam norteadas não mais pela ambição geral e abstrata de promover o crescimento econômico e sim pela urgência de levar adiante o tríplice combate à crise climática, à erosão da biodiversidade e ao avanço das desigualdades.

Oferecer bens e serviços demandados pelos diferentes mercados será cada vez menos suficiente para legitimar a licença social para operar das empresas. A União Europeia já decidiu que não mais comprará commodities vindas de áreas desmatadas a partir de dezembro de 2020. A declaração de trinta e quatro organizações brasileiras que pertencem ao Observatório do Clima, propondo que as restrições europeias se apliquem não só à Amazônia, mas também ao Cerrado, à Caatinga, ao Pantanal e ao Pampa é uma importante indicação sobre a incontornável presença de valores ético-normativos (no caso, a urgência em se garantir os serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos) no interior dos mercados.

Outro exemplo na mesma direção e que se contrapõe à ideia de que possa existir um mecanismo automático, descentralizado capaz de assegurar um vínculo construtivo entre economia, democracia e prosperidade, vem do Banco Central Europeu que acaba de divulgar um relatório mostrando que nenhum dos 109 bancos por ele supervisionados tinha um nível satisfatório de transparência com relação às mudanças climáticas: “um montão de barulho branco e nada de substância real”, diz o relatório do BCE. Apenas 15% dos bancos divulgam dados sobre as emissões das companhias por eles financiadas.

A vantagem do fim da hiperglobalização é que ela vai exigir dos cidadãos, dos consumidores, das empresas, das organizações da sociedade civil e dos governos que todas, absolutamente todas as suas decisões sejam tomadas com base em valores ético-normativos. E como estes valores não são, felizmente, unânimes, está aberto o caminho pelo qual democracia e vida econômica poderão passar por uma construtiva fertilização recíproca. É nosso maior e fascinante desafio depois que o fanatismo fundamentalista for afastado do Planalto e da Esplanada dos Ministérios.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Estagflação, preço do petróleo escalando e dólar questionado: anos 2020, ou anos 1970?

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A Terra é redonda – 20/03/2022

Por LEDA MARIA PAULANI*

Não é apenas a névoa da guerra que impede se vejam as coisas com clareza

Nos corredores da faculdade não se fala de outra coisa: o mundo em estagflação e a ascensão meteórica dos preços do petróleo. Para completar, especulações frequentes em torno da capacidade do dólar americano de continuar a desempenhar o papel de meio de pagamento internacional.

Uma cena desse tipo poderia estar expressando o estado das artes da economia mundial hoje, mas se passa quase cinquenta anos atrás. Eu a presenciei, nos corredores da FEA-USP, nos primeiros anos de minha graduação em Economia. Dado o caráter cíclico do processo de crescimento capitalista, poderíamos ficar tentados a pensar que se trata de fato do retorno a uma situação substantivamente similar àquela experimentada décadas atrás. Não poderia haver engano maior.

Por trás da estagflação dos anos 1970, havia quase três décadas de estupendo crescimento econômico, espraiado por praticamente todo o globo. Por trás da estagflação de agora, quatro décadas do regime de baixo crescimento inaugurado pela difusão das práticas neoliberais no início dos anos 1980, além de uma colossal crise financeira há década e meia.

Por trás do questionamento do dólar, tínhamos o esgotamento do sistema de Bretton Woods e do padrão dólar-ouro, arranjo que começava a pesar demais para a economia americana. Por trás das dúvidas atuais, várias décadas do exorbitante privilégio detido pelos EUA de emitir uma moeda inconversível demandada pelo mundo todo, apanágio só posto em xeque agora pelas escaramuças da geopolítica.

Por trás da impressionante elevação dos preços do petróleo, estava a própria desvalorização da moeda americana, consequência da desvinculação entre dólar e ouro operada por Nixon e que reduzira abruptamente, em termos reais, os preços da commodity (para não mencionar as conjecturas de que a formação da Opep, que viabilizou o choque de preços, teria sido estimulada pelos próprios americanos para atormentar a vida de Alemanha e Japão, que davam então uma surra na indústria americana e eram bem mais dependentes que os EUA das importações do produto).

Por trás do crescimento de agora, uma indústria de petróleo e de energia desestruturada e desorganizada pela pandemia, inclusive logisticamente, situação agravada sobremaneira com o aumento da tensão na Europa e com o início do conflito entre Rússia e Ucrânia (para não falar dos crescentes problemas ambientais).

Isto posto, cabe perguntar o que se pode esperar desse novo capítulo da história do capitalismo, que parece, mas não é, um remake (indesejado e de mau gosto) de uma velha película. Nos desdobramentos daqueles buliçosos anos 1970, tivemos aquilo que o economista francês François Chesnais chama de “levante neoliberal”, com a difusão, mundo afora, dos preceitos do livre mercado: a demonização do Estado e dos serviços públicos, as políticas de austeridade, a intensa abertura financeira, a prescrição generalizada para privatizar o que quer que fosse que o
Estado ainda produzisse, etc.

Mas o final dos anos 1970 trouxe também aquilo que Conceição Tavares denominou, numa expressão feliz, de “diplomacia do dólar forte”, a saber, o choque de juros provocado por Paul Volcker, então presidente do FED. A brutal elevação da taxa básica americana aspirou a riqueza financeira do mundo, fazendo desaparecer da noite para o dia a especulação em torno da “fragilidade” do dólar e de sua condição de se manter como dinheiro mundial.

Os desdobramentos que se podem esperar da situação hoje vivenciada são muito diferentes e mesmo opostos. Por mais que isso não seja explicitamente dito, é evidente que o coronavírus colocou de novo o Estado no centro da arena, pois não se combate uma pandemia senão de forma coletiva, com políticas públicas, saúde pública, orientações preventivas, campanhas de vacinação. Além disso, em inúmeros países, o Estado foi chamado em socorro de parte substantiva da população, para que as quarentenas pudessem ser respeitadas. Por fim, a eclosão de um conflito militar aberto dentro do continente europeu parece jogar por terra de vez o conto da carochinha de que a globalização e o livre fluxo de capitais levariam o desenvolvimento a todos, irmanando nos mesmos interesses, sob a batuta do capital, todas as nações. Como esperar o fortalecimento do discurso e da prática neoliberais depois desse terremoto?

Com relação ao dólar, ainda que o governo americano mantenha em mãos as mesmas armas que antes, o ambiente não é dos mais favoráveis a uma nova rodada de diplomacia do dólar forte. Em meio à estagnação mundial agravada pela incerteza produzida pela guerra, adotar tal prática significaria dar um tiro no pé, pois seria o mesmo que adotar uma política de enfraquecimento planejado da economia real americana, já muito pressionada, principalmente no campo tecnológico, pela gigante China.

Ademais, do ponto de vista de sua hegemonia, não parece haver resultado bom para os EUA neste imbroglio europeu.

Se, por um milagre qualquer, se consegue impor uma derrota militar a Vladimir Putin, é evidente que isto vai aproximar o grande país da Europa do colosso chinês (que já vinha se aproximando, aliás, independentemente do resultado da guerra), o que não parece nada bom para a continuidade do domínio americano, incluindo-se aí o poderio do dólar. Se, como é mais razoável presumir, Putin se sustenta e consegue alguma concessão do bloco Otan/EUA, então vai se tornar explícita a derrota americana em seu papel de liderança mundial, com consequências similares no que tange à arena econômica e monetária.

Considerados todos esses elementos, não há como esperar um grande fortalecimento da moeda americana no próximo período. Ao contrário, tudo parece jogar do lado oposto. Mas será que se pode então simplesmente considerar que se trata aí da inversão pura e simples do que aconteceu nos desdobramentos da crise dos anos 1970, ontem demonização do Estado, hoje revigoramento do Estado, ontem fortalecimento do dólar, hoje enfraquecimento do dólar?

A análise seria bem mais fácil se assim fosse, mas o mundo não é tão simples. Entre um e outro ponto do tempo, uma crise de sobreacumulação sistêmica irresolvida se agravou sobremaneira. Assim, mesmo com a multiplicação e a proliferação mundo afora de expedientes espoliativos e cortes aos direitos de trabalhadores, não foi possível impedir, ao final da primeira década do novo século, a eclosão de uma crise financeira internacional de dimensão só comparável ao sismo de 1929-30. A forma de reagir à crise por parte dos Estados centrais só fez aprofundar as contradições que estão na base do sistema, pois implicou a continuidade do crescimento profundamente desequilibrado entre riqueza real e riqueza financeira que o caracteriza pelo menos desde os anos 1980.

A brutal elevação da desigualdade intra e inter países e a financeirização de tudo são apenas as expressões mais visíveis desses movimentos tectônicos da acumulação. Eis o pano de fundo sob o qual se deve analisar as consequências dos eventos de hoje. Sendo assim, uma série de outras variáveis precisam entrar em cena se quisermos falar do futuro do dólar e dos Estados nacionais. É preciso lembrar aí sobretudo o domínio inconteste das formas sociais capitalistas produzido por quatro décadas de desenfreada pregação neoliberal, auxiliada pelo empurrão decisivo da mídia corporativa em todo o globo.

Se Karl Marx estava certo ao chamar a atenção para o fetiche da mercadoria e ao indicar o capital financeiro como a forma acabada desse fetiche, o mundo talvez experimente atualmente a forma de existência mais adequada a esses conceitos que já se teve oportunidade de experimentar. Nunca o mundo foi tão visto como hoje pelos olhos da forma mercadoria, nunca a transformação do capital numa coisa que parece autogerar seu próprio crescimento foi um processo tão difundido. Assim, não é apenas a névoa da guerra que pode impedir que se vejam as coisas com clareza.

As brumas produzidas pela supremacia da mercadoria capital podem ser ainda mais oclusivas.

*Leda Maria Paulani é professora titular (e sênior) da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Rússia impõe também a guerra do cereal, por Mathias Alencastro.

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Moscou usa diplomacia do trigo para tentar unir o sul global

Mathias Alencastro, Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

Folha de São Paulo, 21/03/2022

A batalha sangrenta pelo controle de Mariupol ocupou as manchetes da imprensa internacional na última semana.
Face ao fracasso da sua estratégica inicial, que passava pela captura rápida e triunfal de Kiev, o Exército russo concentrou os seus esforços na ocupação da cidade portuária de 400 mil habitantes. Ela é porta de entrada para o mar de Azov, um dos dois pontos de acesso do comércio marítimo da Ucrânia, o quinto maior exportador mundial de trigo em 2019.

Se a indústria de petróleo e gás é a face mais visível da economia da guerra, porque ela organiza as relações entre a Rússia e o Atlântico Norte, a outra, o agronegócio, importa talvez ainda mais para
o futuro do sul global.

Rússia e Ucrânia voltaram a ser potências globais do agronegócio nos últimos 20 anos, depois de recuperarem a infraestrutura deixada em ruínas nos anos 1990.

Juntas, elas correspondem a um terço da exportação global de cereais. Para a Rússia, controlar o mar de Azov e os portos ucranianos do mar Negro a colocaria no comando de cerca de 30% da produção de trigo mundial e fortaleceria a sua posição na África e no Oriente Médio.

Em árabe egípcio, o pão é sinônimo de “vida”, e a região do mar Negro é a base da alimentação da bacia do Mediterrâneo desde a Grécia antiga. Mas, na África do Norte e Subsaariana, pelo menos desde 2011 o pão também é sinônimo de política.

A Primeira Árabe, ou a onda de protestos que derrubou regimes e desencadeou guerras civis, teve, na sua origem, a inflação dos preços dos produtos alimentares.

Se nos petro-Estados de Argélia, Nigéria e Angola o aumento do preço de grãos pode ser compensado pelo crescimento da renda de petróleo e de gás, todos os outros regimes dependem da Rússia para a sua sobrevivência política.

Analisando os votos na ONU, já é possível constatar que a questão alimentar pesa no cálculo dos países do sul global na hora de se posicionarem sobre a guerra. Junto com a batalha da informação, que a Rússia está vencendo fora dos países ocidentais, a diplomacia do trigo está dividindo a comunidade internacional.

Resta saber se a estratégia russa vai resistir à devastação causada pela guerra.

Por enquanto, a tensão comercial gira em torno dos milhões de toneladas de trigo que estão bloqueados nos portos do mar Negro. Mas é o impacto do conflito na capacidade produtiva ucraniana que vai determinar o preço dos bens alimentares para os próximos anos e décadas.

Com a sua “operação especial”, a Rússia transformou os agricultores em refugiados ou soldados. Seus tanques estão devastando as plantações e seus mísseis destruindo a infraestrutura. Não seria a primeira vez que o setor agrícola ucraniano seria sacrificado.

O Holodomor foi uma fome politicamente organizada por Stálin, que esfomeou propositadamente os ucranianos em 1932-33 para alimentar a força de trabalho soviética em outras latitudes e regiões. Anos depois, a operação Barbarossa, de 1941, tinha como principal motivação a conquista das regiões produtoras de cereais da Rússia pela Alemanha nazista.

Estaríamos assistindo a uma repetição da história, mas desta vez com 8 bilhões de espectadores-consumidores.

Martin Wolf: ‘Democracias e autocracias passarão a entrar em conflito’

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Em entrevista, o comentarista-chefe de economia do jornal Financial Times avalia ser inevitável uma divisão do mundo em dois blocos

Entrevista com Martin Wolf, comentarista-chefe de economia do ‘Financial Times’

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 20/03/2022

A globalização atingiu seu pico e começa, agora, a regredir, sobretudo com o impacto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, avalia o comentarista-chefe de economia do jornal Financial Times, Martin Wolf. Diante desse cenário, é inevitável que o mundo se divida em dois blocos – um liderado por Europa e EUA e outro, por China e Rússia. “Começamos a nos mover para uma era de conflitos geopolíticos entre democracias e autocracias. E isso pode durar bastante tempo.”

Para Wolf, o Brasil deverá ser um dos menos afetados por esse novo panorama. “Pelo tamanho e por suas exportações, o País será capaz de continuar comercializando com ambos os lados.” O comentarista diz ainda que o destino do Brasil depende apenas das decisões feitas por sua população e diz se preocupar com as opções de candidatos à Presidência. “Gostaria de ver um líder mais jovem, competente, que diz a verdade aos brasileiros e tenta uni-los para usar o imenso potencial que o Brasil tem.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Comparação com anos 70
É razoável imaginar que o choque energético e seu impacto econômico serão um pouco menores, porque a intensidade do uso do petróleo diminuiu. Parece improvável que a inflação suba tanto quanto naquela época. Mas temos um novo elemento: a alta no preço dos alimentos. Assim, para países importadores de alimentos e de energia, pode ser pior do que nos anos 1970. Não está claro quanto tempo esse choque inflacionário vai durar, e não sabemos qual será o impacto financeiro.

Na última vez, países como o Brasil foram incentivados a tomar emprestado dinheiro para gerenciar o problema do preço do petróleo. Isso levou à crise da dívida dos anos 80. Não estamos vendo nada disso por enquanto. Devo adicionar que essa guerra é mais preocupante do que qualquer coisa que aconteceu nos anos 70. Para mim, o uso de armas nucleares parece mais perigoso agora. De qualquer modo, tenho certeza de que veremos mudanças geopolíticas e geoeconômicas decorrentes da guerra nos próximos 10 ou 15 anos que agora não conseguimos antecipar.

Estagflação
O mais óbvio para mudar essa tendência de estagflação é reverter a alta do preço da energia e dos alimentos, que já vínhamos vendo e que se acelerou na guerra. Para isso, a guerra teria de acabar e as sanções teriam de ser retiradas. Além disso, as restrições na produção de energia, que já existiam antes da guerra, teriam de ser superadas. Isso teria de incluir a aceitação, pelos europeus, da dependência do gás e do petróleo russos indefinidamente. Acho que nada disso é provável. Para mim, parece claro que a estagflação – a combinação de crescimento fraco, se não recessão, com inflação alta – durará pelo menos dois anos. E tem uma boa probabilidade, devido a uma segunda rodada de efeitos, que se prolongue mais.

Globalização
A abertura da economia em todo o mundo, isto é, a tendência para o comércio crescer mais rápido que o PIB mundial, foi uma força poderosa entre 1980 e a crise de 2008. A maior parte dos países foi afetada por isso em um grau significativo. O Brasil, pouco, mas, na Ásia, a globalização foi incrível. Desde 2008, nós não ‘desglobalizamos’, mas o comércio internacional deixou de crescer mais rápido do que o PIB global. Isso aconteceu em parte porque o ritmo de crescimento das importações chinesas diminuiu, mas também porque a globalização das redes de fornecimento atingiu um grau meio exaustivo, dado que a política de liberação do comércio meio que parou. O último grande evento da liberação do comércio global foi a entrada da China na OMC há 21 anos. Aí, é claro, a crise de 2008 desacelerou a globalização financeira. Houve um enorme aumento da detenção transfronteiriça de ativos financeiros. O investimento estrangeiro direto continuou, mas não cresceu como antes. Isso em parte por causa do choque da crise financeira e, em parte, nos últimos sete anos, porque cresceu a tensão entre o Ocidente e a China.

A China é o principal ator no processo de globalização, e a relação comércio internacional e PIB da China está diminuindo desde 2008, porque negócios, pessoas e governos estão se tornando mais desconfiados uns dos outros. A disposição para se envolver no comércio internacional e criar cadeias internacionais de suprimentos, principalmente na China, diminuiu. Finalmente, tivemos a covid, que também foi um choque para as cadeias de fornecimento. Já bem antes da guerra, o processo de globalização está mais lento, se não parado. Se você considerar tudo isso, atingimos o pico da globalização, e isso está diminuindo. Agora temos a guerra. Guerras aumentam a ideia de que precisamos de autonomia estratégica e de estar assegurados de redes de fornecimentos.

Rússia e China
A Rússia não é um país muito importante economicamente, exceto pelas commodities. Mas a China tem apoiado a Rússia. Isso está tornando europeus e americanos mais hostis do que antes. A maior mudança será na Europa, porque os americanos já eram hostis. Na Europa, vinha havendo um comprometimento para a abertura de fronteiras. Os europeus acreditam que o comércio internacional seja uma base para a paz. Os alemães, principalmente, acreditavam que o comércio com a China era lucrativo e geopoliticamente frutífero, assim como eram suas crenças com a Rússia em relação à energia. Isso começou a ser questionado no último ano.

Os europeus estão mais preocupados com a propriedade chinesa de negócios europeus e a propriedade intelectual chinesa. A agressão russa, os consequentes embargos e a indicação dos chineses de que o apoio à Rússia é inevitável vão deixar a Europa desconfiada em relação à China. Esse processo está reforçando os laços entre os EUA e a Europa, fortalecendo a Otan. Não vejo uma harmonia ocidental tão grande desde o começo dos anos 80. Por isso, acho que haverá uma ‘desglobalização’ entre os países ocidentais e a Rússia e a China. Haverá dois blocos emergindo, um ocidental-central e outro de países próximos à China e à Rússia. Os outros países terão de decidir como vão manter relações comerciais. A maioria vai querer uma boa relação com ambos. O Brasil vai querer isso por razões comerciais, preservando sua autonomia. Vai ser uma confusão. Mas começamos a nos mover para uma era de conflitos geopolíticos entre democracias e autocracias. E isso pode durar bastante tempo e ser muito profundo.

Brasil
O Brasil deve ser uma das economias menos afetadas por esse cenário. É um país grande, que está longe dos atores principais. O país mais próximo é os EUA, e os EUA não vão interferir diretamente no Brasil. A China também não.

Pelo tamanho e por suas exportações, o País será capaz de continuar comercializando relativamente livre com ambos os lados. O Brasil nunca se tornou um país muito globalizado, sua economia industrial tem sido pouco dinâmica e pouco integrada. Minha visão sempre foi a de que 90% do que determina o sucesso do Brasil são as decisões feitas pelos brasileiros: a qualidade de seus líderes.

Há, porém, alguns perigos que o Brasil tem de evitar. O setor financeiro pode ficar instável. As empresas não devem se endividar em dólar. O Brasil precisa preservar a estabilidade monetária, não permitir que se escorregue para a inflação. O País tem ido bem nessa área, mas não sei quanto isso vai durar com o populismo. E, claro, o Brasil precisa de uma liderança melhor. Não acho que exista dúvida em relação a isso e me preocupo com os candidatos à Presidência.

Futuro governo
Esperaria que um novo governo Lula fosse melhor do que um novo governo Bolsonaro, que acho que é o pior que um governo consegue ser. Bom, claramente pode ser ainda pior, como um governo Putin. Nos primeiros anos do Lula, acreditei que ele estava fazendo basicamente tudo certo. Acho que as pessoas ficaram muito confiantes em relação a isso. E ele não fez o suficiente. Não tenho a mesma esperança que tinha por Lula há 20 anos. Gostaria de ver um líder jovem, com as ideias certas, competente, que diz a verdade aos brasileiros e tenta uni-los para usar o imenso potencial que o Brasil tem.

Brasil praticamente legaliza corrupção, diz executivo da Transparência Internacional.

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Chefe da ONG no Brasil vê desmanche de políticas pós-Lava Jato e questiona ampliação do fundão eleitoral para R$ 5 bilhões

Felipe Bachtold – Folha de São Paulo, 20/03/2022

A elevação do financiamento público aos partidos e o afrouxamento de controles sobre eles geram uma situação de corrupção “quase legalizada” no país, afirma o chefe no Brasil da Transparência Internacional, Bruno Brandão.

O braço brasileiro da ONG divulgou no último dia 9 um documento pedindo que organismos estrangeiros pressionem para que o país reveja o que chama de retrocessos institucionais, frisando a questão anticorrupção.

O documento cita, por exemplo, a ampliação do fundo eleitoral público deste ano para R$ 5 bilhões e a falta de transparência nos gastos e de mecanismos de prestação de contas.

No ano passado, a reformulação da Lei de Improbidade Administrativa, aprovada no Congresso, estabeleceu que os partidos não podem mais ser processados com base nessa legislação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tentou ainda fazer uma megarreforma no Código Eleitoral, que foi travada no Senado.

Brandão é crítico da abordagem ao tema da corrupção dada pelas três principais candidaturas à Presidência neste ano. Diz que a pauta está obstruída e “intoxicada por disputas narrativas e de interesses”.

Sobre o ex-juiz e pré-candidato Sérgio Moro (Podemos), diz que ele hoje se restringe ao falar de sua experiência pessoal, sem propostas concretas de políticas públicas.

O relatório da entidade, de 37 páginas, critica os três Poderes e menciona a anulação de casos da Lava Jato por causa do alegado elo com crimes eleitorais e uma série de medidas do governo Jair Bolsonaro (PL), como o pagamento das emendas de relator a parlamentares.

Quais as chances de o Brasil sofrer de fato retaliações internacionais por causa das questões citadas no relatório? Não é uma possibilidade: já está sofrendo. Em 2020, em medida sem precedentes, o grupo de trabalho antissuborno da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) criou um subgrupo para monitorar a situação do Brasil [em relação ao enfrentamento da corrupção]. Na próxima reunião plenária, em junho, entregará um relatório sobre esse monitoramento. Pode ter impactos muito relevantes do ponto de vista da inserção internacional do país.

Algumas das medidas questionadas [na OCDE] são fruto de um debate acalorado nos últimos anos sobre abusos da Lava Jato. É o caso da Lei de Abuso de autoridade e a reformulação da Lei de Improbidade. A Lava Jato não mostrou a necessidade de freio de arrumação em pontos em que ocorreram abusos? Certamente essa experiência trouxe lições importantes de vários aspectos que deveriam ser corrigidos. O próprio modelo de forças-tarefas [de investigação] é institucionalmente frágil. Haveria muito o que aprimorar. O que vimos não foi uma correção de erros, foi um desmanche.

A força-tarefa da Amazônia estava fazendo um trabalho importantíssimo e também foi desmantelada.
Vemos isso em uma escala assustadora. São marcos legais que o país levou décadas para construir.

Existe uma ideia disseminada de que o clamor anticorrupção de anos atrás gerou o enfraquecimento da política e consequentemente as crises institucionais de hoje. Como o sr. vê? Um sistema político baseado na corrupção sistêmica, de financiamento ilícito de campanha, distorce a representação democrática. Torna o sistema político uma ferramenta de atuação em prol de interesses de grupos privados. O resultado é um quadro de país campeão mundial da desigualdade social.

Sobre os efeitos da Lava Jato, o setor privado se adaptou rapidamente. Identificou uma mudança no ambiente de risco, das novas leis, e transformou suas práticas. Pouquíssimas empresas tinham sistemas de conformidade.
Óbvio que ainda há muito a avançar, mas houve uma transformação, o que não ocorreu no sistema político, que parece que não aprendeu nada.

Ou aprendeu a lição equivocada, de como se tornar mais imune à aplicação da lei. Os partidos não mudaram suas práticas, a democracia interna, de transparência. Ao contrário: passaram leis que reduziram ainda mais os controles sobre a utilização de recursos públicos pelos partidos.

Ampliaram enormemente o financiamento público [de campanhas]. Ele reagiu a toda a essa experiência da Lava Jato criando mecanismos para que se blindasse disso tudo, quase que legalizando a corrupção. É uma corrupção institucionalizada, por meio da explosão [da quantidade] de recursos públicos e da redução absurda dos mecanismos de controle.

Em 2018, a corrupção foi o grande tema da eleição, o que não deve se repetir neste ano. Qual foi o saldo, não só na figura do presidente, mas das bancadas, governadores eleitos na onda? País nenhum do mundo verdadeiramente avançou na luta anticorrupção apenas na via penal. É um processo muito mais amplo de transformação das relações entre o Estado, a sociedade e o setor privado. É fundamentalmente um processo de construção de cidadania.

Isso nunca esteve no debate, nas propostas desses grupos que se aproveitaram da indignação com a corrupção. Foram incapazes de promover um debate sério sobre reformas, sobre políticas públicas.

E quais as perspectivas para esse debate na eleição de 2022? Será muito mais olhando para o passado do que para o futuro. Será uma disputa de acusações, de narrativas sobre o que aconteceu em anos passados. Com muito pouco espaço para uma discussão de reconstrução de marcos legais e institucionais.

Vemos um revisionismo, em uma disputa de interpretações do passado.

A candidatura do PT poderia valorizar o seu histórico. Foi muito por crédito de seus governos que o Brasil fortaleceu mecanismos institucionais para o combate à corrupção. Hoje, as propostas vão no sentido de questionar esse próprio legado e adotar medidas de menor independência das instituições.

O governo Bolsonaro não tem nada mais do que uma retórica populista e autoritária para esse e outros grandes temas. Seu legado foi um desmanche sem precedentes da capacidade do país de enfrentar a corrupção.

As propostas desse grupo da Lava Jato são extremamente baseadas na experiência limitada desses atores no campo do enfrentamento penal do problema. E com pouquíssimas referências naquilo que é mais relevante: a construção institucional e de políticas públicas.

A atuação política do ex-juiz Moro, destacando seu papel no Judiciário, não prejudica a credibilidade do trabalho feito, já que politiza a questão? O primeiro movimento [dele] de participar de um governo com as credenciais de Bolsonaro, explicitamente autoritário e antidemocrático, já foi algo que prejudicou muito o legado dos feitos como juiz.

Não é bom para o sistema político e nem para o sistema judicial que exista a migração tão abrupta do Judiciário.

A própria Transparência Internacional defende medidas que impõem quarentena para diversas autoridades que almejem cargo no Supremo Tribunal Federal ou para entrar no sistema político.

O problema é que essa discussão é feita no Brasil a partir de interesses de ocasião para inviabilizar uma determinada candidatura, não pensando no modelo institucional.

O sr. considera que havia motivação política nas autoridades da operação desde o começo do trabalho? Não acredito que houvesse motivação originária. São agentes que dedicaram suas vidas a essa causa. Experimentaram a realidade do
nosso sistema de impunidade.

A operação parece ter feito cálculos políticos em alguns de seus movimentos porque as defesas eram políticas. E isso acabou levando a grandes erros e excessos.

O contra-ataque para destruição do legado da operação empurra também nesse salto dos agentes para o sistema político.

É muito prejudicial para o nosso sistema judiciário porque abre uma imensa brecha para questionamentos e deteriora a credibilidade, a independência das atuações.

A Transparência Internacional questiona no relatório a interferência do governo na Polícia Federal. O diretor-geral

já foi trocado pelo presidente quatro vezes. Houve queda na produtividade? Na chegada ao poder de forças populistas autoritárias, o que primeiro fazem é capturar as instituições de controle porque são limitadoras do governante. Bolsonaro seguiu à risca o roteiro de captura do Estado.

Isso tem um impacto gigantesco para o enfrentamento da corrupção.

Muito mais grave é o controle político de um braço armado do governo federal, que pode fazer ameaças muito além,
para nosso regime democrático.

O sr. se refere à possibilidade de se tornar, digamos, uma “polícia política”? É grande a preocupação que temos hoje, não só em relação à Polícia Federal, mas a outros órgãos, que ultrapassaram o patamar de blindagem de aliados e alcançaram o patamar muito mais grave, e perigoso, de perseguição de adversários.

Sempre houve disputa de espaços dentro das instituições, mas hoje se observa de maneira explícita um movimento de retaliações contra agentes que tentam confrontar interesses. Perdem suas funções, cargos, são expostos a sindicâncias. Isso assumiu um grau alarmante.

[Há] atuação de inteligência clandestina, ilegal, que monitora membros da oposição, vozes críticas na sociedade. O grande risco que temos é a utilização desse aparato de inteligência, de espionagem, sem controle no contexto eleitoral. Pode ser o pior cenário que tenhamos que nos preocupar.

É preocupante a utilização cada vez mais disseminada de instrumentos de vigilância digital, sem os marcos adequados de controle democrático. A legislação brasileira é muito falha para o controle dessas ferramentas. Permite a aquisição sigilosa delas. Não se sabe o que hoje está em posse das Polícias Civis, do Ministério Público nos estados. Não se tem um inventário do que é utilizado como ferramenta de monitoramento, vigilância e espionagem pelo Estado brasileiro.

Na série de reportagens chamada Vaza Jato [sobre diálogos de procuradores no aplicativo Telegram], um site publicou reportagem afirmando que havia uma aliança da Transparência Internacional com o então procurador Deltan Dallagnol.

O sr. faz algum reparo em relação ao contato que havia com ele? A Transparência Internacional tem diálogo e cooperação com os órgãos anticorrupção do Ministério Público em mais de cem países. Seria impensável que não tivesse com o Ministério Público brasileiro no contexto da Lava Jato. Assinamos um acordo de cooperação formal com o Ministério Público Federal para capacitação técnica, campanhas contra a corrupção, pelo controle social.

O foco da atuação da Transparência Internacional no contexto da Lava Jato foi na formulação de propostas de reformas, de políticas públicas, que levamos à discussão da sociedade. Não temos contato hoje porque são pré-candidatos.

BRUNO BRANDÃO, 39
Economista, é diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil desde 2016. É mestre em gestão pública pela Universidade de York e em relações internacionais pelo Instituto Barcelona de Estudos Internacionais