Polícia foi criada para controlar pessoas negras e pobres, diz capitão da PM.

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Fábio França critica treinamento e analisa raízes colonialistas da segurança pública brasileira

MARCELO AZEVEDO
MATHEUS ROCHA
FOLHA DE SÃO PAULO, 03/08/2021

A VIOLÊNCIA POLICIAL CONTRA PESSOAS NEGRAS é herança da escravidão, aponta o capitão da PM Fábio França. Doutor em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, ele explica que, no século 19, a família real montou o primeiro aparato de segurança do país para manter o domínio da elite branca. “A polícia foi criada, obviamente, para controlar a população negra e pobre.”

Na corporação, França é uma voz crítica por identificar na formação policial uma “pedagogia do sofrimento”. Para uma pesquisa, ele colheu depoimentos de alunos que participaram do Estágio de Operações Táticas com Apoio de Motocicletas da PM, e constatou humilhações e agressões físicas praticadas no curso. Como resultado, analisa, os agentes reproduzem a violência sofrida no treinamento quando vão atuar no policiamento urbano.

França diz ainda que o currículo de formação impede mudanças efetivas. As tentativas de humanizar a instituição existem, mas esbarram no militarismo praticado nos treinamentos. Para ele, enquanto não abrirmos mão de um currículo que adestra o ser humano para aceitar a lógica militar, a formação estará subordinada a isso. “Será forçada nas regras militares.”

Qual o tema de sua pesquisa acadêmica? Na dissertação, trabalhei a ideia de humanização da Polícia Militar. Já no doutorado, levantei a tese de que programas de policiamento comunitário como as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio, tinham um discurso que criava “sociabilidade estratégica”. A ideia era fazer com que o Estado conseguisse entrar com forças repressivas nas periferias e nos grandes centros urbanos.

Minha hipótese é a de que há convencimento através de um discurso de humanização. As pessoas das periferias se convencem de que é necessário a polícia estar lá para representar o Estado. Isso gera um controle social muito mais sofisticado, que não busca usar a violência direta, mas sim a violência simbólica.

O que é violência simbólica e como ela se manifesta? É uma maneira de fazer com que o dominado aceite o discurso do dominador sem resistência, acreditando que tudo aquilo é bom para ele. O objetivo é mostrar que as formas de dominar o outro são tão inteligentes que os grupos dominantes não precisam fazer nenhum esforço. Basta utilizar o discurso adequado para o convencimento acontecer.

Com essa mudança de discurso por meio de encontros entre pessoas das comunidades e policiais, por exemplo, cria-se a visão de que as coisas estão acontecendo, facilitando a entrada dos agentes. Mas o que não percebem é que os policiais, por estarem sempre presentes, acabam controlando e vigiando melhor.

Quais são as características do policiamento comunitário? O policiamento comunitário geralmente funciona com um curso que dura entre uma e duas semanas. Já o curso de policial militar normal dura em média de seis meses a um ano, enquanto para oficial são três anos, de maneira geral. Como podemos falar de uma internalização de princípios humanitários e comunitários para um policial que passa apenas 15 dias num banco escolar vendo esses princípios?

Qualquer tipo de política pública implementada dessa forma vai ser um fracasso.

Quando o projeto das UPPs foi lançado, eu sabia que daria em fracasso. Nós sabíamos que era um projeto para organizar a Copa e as Olimpíadas. Depois, ia acabar se extinguindo.

Qual é a origem da violência nos treinamentos da polícia? Existe essa ideia de que o sofrimento é necessário dentro da cultura militar, porque na rua haverá algo parecido. O policial precisaria estar preparado para isso. Mas essa perspectiva é um tanto contraditória, porque ela vem de uma cultura militarizada, que prepara o indivíduo das Forças Armadas para a guerra. Se ocorresse uma guerra no país, eles teriam que estar preparados para matar e naturalizar a morte, como se fosse produto do trabalho.

As polícias militares são as únicas forjadas com base na hierarquia e na disciplina do Exército e que, no contato com as pessoas, podem produzir violência física ou simbólica. Existe essa correlação entre violência e formação.

Mas, quando entra a humanização, alguns questionamentos devem ser feitos. Enquanto não abrirmos mão de um currículo que adestra o ser humano para aceitar a lógica militar, a humanização estará subordinada a isso. Será forçada nas regras militares.

Se esse treinamento gera tanto prejuízo, por que não há um debate amplo para reformulá-lo? Os gestores policiais não trabalham com dados técnicos. Tem-se a ideia, joga-se e implementa-se. Não há um estudo básico sobre nada.

Durante a pesquisa no curso de força tática, vi que os alunos passaram por situações como privação de sono, humilhação, comida servida misturada com mão suja. São testes de sobrevivência que vêm do período militar, ideias da cultura beligerante do Exército que chegam a essas instituições. E as pessoas simplesmente reproduzem.

No caso das polícias militares, é como se fosse um modismo, porque nem eles sabem explicar tecnicamente para que serve, mas sabem que devem fazer aquilo. O grande problema é: e quando alguém morre, o que fazer? Existem vários desses casos no Brasil. É o que eu chamo de “pedagogia do sofrimento”.

Por que pessoas negras são mais abordadas e mortas pela polícia? Quando a família real veio para o Brasil, montou o primeiro aparato de segurança pública do país. Já em 1831, as guardas municipais permanentes foram criadas. À época, a ideia era a elite branca controlar a grande maioria de escravizados, alforriados, fugitivos e brancos pobres. Não era permitido, por exemplo, reuniões de três a cinco pessoas de pele negra. Elas poderiam ser presas ou açoitadas por isso. A polícia foi, obviamente, criada para controlar a população negra e pobre. Isso é um fato que ninguém aceita no campo da Polícia Militar, até porque eles nem sabem disso.

Além de a população negra sofrer com esse aparato, ainda há o fato de que negros se tornam policiais e não têm essa perspectiva. Nos cursos de formação, não existe um debate sobre a origem e a história das polícias militares.

Livro relaciona ação na segurança pública à volta dos militares à política

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‘Dano Colateral’ examina erros de GLOs, mas não convence ao ligá-las ao governo Bolsonaro

Igor Gielow

DANO COLATERAL – A INTERVENÇÃO DOS MILITARES NA SEGURANÇA PÚBLICA

Autor Natalia Viana – Editora Objetiva (352 páginas) – R$ 59,9

A volta dos militares ao centro do debate público é um dos fatores mais notáveis, por repetitivo na vida republicana desde 1889, da história recente do Brasil.

Ao tentar mapear a cronologia do processo, que culmina na presença ostensiva de generais e de outras patentes no governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, a jornalista Natalia Viana optou por um caminho de duas mãos.

Fundadora da Agência Pública, ela acaba de lançar “Dano Colateral – A Intervenção Militar na Segurança Pública” (Ed. Objetiva, 352 págs.).

Um dos pilares da obra é boa reportagem, focada no objeto do subtítulo do livro. Viana analisa 35 mortes de civis em conflitos com forças militares brasileiras nas chamadas GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem).

Instituídas há quase 30 anos para garantir o sossego de dignitários na Rio-92, as GLOs foram um instrumento abusado por presidentes ao longo do tempo. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegou a ter 11 dessas ações em curso em um só ano, 2000.

Elas ajudaram a cimentar a fama de “posto Ipiranga” dos fardados e ganharam destaque principalmente ao lidar com questões de violência urbana, 16% das 144 operações de lá para cá, e com a segurança de grandes eventos como a Copa-2014 e as Olimpíadas-2016 (27% do total).

Ao mesmo tempo, as GLOs recebiam duras críticas de militares e especialistas civis pela inadequação de usar em policiamento os soldados treinados para a guerra.

Aqui, o pilar reportagem do livro se sustenta bem. O leitor é apresentado ao conceito de Apop (agente provocador da ordem pública), termo que na prática coloca traficantes armados até os dentes e inocentes no mesmo balaio.

Viana bebe na fonte que gerou clássicos como “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”, de Caco Barcellos (1992), e reconta histórias das vítimas e de como as Forças Armadas trabalham um ciclo de impunidade na apuração dos incidentes.

De forma notável em um texto com viés esquerdista, há espaço também para os soldados do outro lado e para o contraditório vindo principalmente de uma conversa com um general central deste período, Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer (MDB).

Há lacunas, contudo, que parecem querer reforçar a tese central do livro: aquela segundo a qual as crescentes intervenções militares, somadas à experiência dos fardados na chefia da longa missão de paz das Nações Unidas no Haiti (2004-17), deitaram os trilhos para o trem cheio de militares chegar à Esplanada de Bolsonaro.

Todo o emprego das GLOs no governo FHC, por exemplo, que foi o que mais lançou mão do recurso (5,9 ações por ano, em média), passa em branco.

Na cronologia de Viana, tudo começa com a malfadada Operação Arcanjo, que de certa forma trouxe a experiência haitiana para o Complexo do Alemão, em 2010, com os resultados conhecidos.

Ela ainda acerta ao apontar a degradação sugerida do contato das tropas com a criminalidade, até mesmo do ponto de vista operacional, com a desastrosa ação que culminou nas mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo em 2019, já em pleno governo Bolsonaro.

Mas há também generalizações sem prova que são lugares-comuns nos grupos que lidam com o assunto e redes sociais à esquerda. Mesmo Viana reconhece que o universo de problemas com os militares é ínfimo, por exemplo, se comparado com o das polícias estaduais.

O livro tem menos sucesso, contudo, ao tentar caracterizar as GLOs e o Haiti como berços do militarismo do governo federal.

Há evidentes pontos em comum: 6 dos 9 comandantes de força brasileiros tem alguma cadeira pública de relevo sob Bolsonaro, e o ministro da Defesa é o general Walter Braga Netto, ex-interventor federal na segurança do Rio em 2018.

A ideia de que os militares gostariam de ampliar seu raio de ação por terem sido empregados em tais ações tem sentido, mas o fato é que a realidade é mais nuançada, até porque Haiti e GLOs foram mais sintomas do que causas.

A ideia que falta desenvolver em “Dano Colateral” é acerca da tibieza do poder político brasileiro ao lidar com os fardados, motivo da desenvoltura da caserna já no enfraquecido governo Temer e da debacle na relação com os governos do PT.

Foi o poder civil que, ao fim, convidou os fardados para a festa ao ignorar a necessidade de debater defesa nacional nos anos pós-ditadura.

O recente livro-depoimento do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, é bastante mais elucidativo acerca dos desígnios da turma —ainda que, natural numa elegia, arrogue para si o caráter de “estar fazendo o correto”.

Viana elenca vários elementos, mas sua análise não os amarra de forma límpida. A prosa, algo truncada, é pontuada por algumas simplificações que não ajudam a iluminar o contexto, como na unidimensionalidade nas citações ao impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Isso dito, a obra vai na linha correta ao constatar a tutela presumida dos militares, que encontra eco em episódios ao longo da história da República, com a ditadura de 1964 como seu exemplo mais claro.

Um símbolo disso é o famoso artigo 142 da Constituição de 1988. A autora reconta o vaivém que manteve os militares com papel na tal “lei e ordem”, definido no texto, e lembra como Bolsonaro torce a interpretação do texto sempre que lhe convém.

Como todo livro-reportagem feito a quente, “Dano Colateral” tem a favor e contra si o fato de comentar um processo ainda inconcluso. Seu maior mérito, contudo, reside no que tem de mais factual e objetivo do que na especulação e análise apresentadas.

O que ensina a Venezuela, por Maria Hermínia Tavares

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A presença de militares na política tem custos altos e reversão difícil

Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 05/08;2021

Mais de uma vez, ao desfechar ataques desvairados às instituições que garantem a democracia no país, Bolsonaro invocou o “meu Exército”, sugerindo que conta com o apoio das Forças Armadas para levar a cabo seus intentos liberticidas.

Até aqui, parece haver antes farolagem do que fundamento nessas falas. Ainda assim, é nítido que desde a ditadura de 1964-1985 os militares brasileiros nunca estiveram tão perto de cruzar a linha que separa seu papel constitucional do engajamento aberto na disputa política.

A história nunca se repete ao pé da letra; e experiências de outros países costumam viajar mal. Ressalvas feitas, há muito que aprender com o artigo do cientista político americano Harold Trinkunas”. As Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela: medo e interesse face à mudança política”, recém-publicado pelo Woodrow Wilson Center de Washington.

O estudo trata da politização das instituições militares sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro e de sua subordinação aos governos populistas da dupla.

De um lado, isso implicou na doutrinação ideológica nas academias militares, em sistemas de promoção e atribuição de missões que favoreceram o oficialato leal ao chavismo; na reestruturação das Forças com a inclusão formal da Milícia Bolivariana diretamente afeta ao presidente; e no fortalecimento de um vasto sistema de contrainteligência militar que vigia os suspeitos de deslealdade ao regime. De outro lado, vieram as recompensas.

Em especial sob Maduro, militares ocuparam o centro do poder. Comandam ministérios, governam estados e controlam setores econômicos estratégicos, como parte da indústria petrolífera, a mineração de ouro e a distribuição de alimentos. Gerem também o multimilionário comércio de armas com a Rússia e a China. E não é propriamente um segredo em Caracas que oficiais de alta patente têm parte com o tráfico internacional de drogas e o contrabando de mercadorias.

Maduro, ele sim, diz a verdade ao proclamar que o politizado Exército do país é seu. E este, cúmplice do desastre nacional que o populismo chavista promoveu, compartilha com o autocrata a responsabilidade pela destruição de uma democracia que já foi forte o suficiente para vencer a guerrilha revolucionária e ficar ao largo da onda de autoritarismo que sufocou a região nos anos 1960-70.

Acima de tudo, os fuzis são hoje o principal obstáculo para a Venezuela voltar por meios pacíficos à normalidade democrática. Por atraente que possa parecer aos brasileiros desiludidos com o sistema, a presença dos militares na política tem custos altos e reversão difícil.

A Casa do Povo, por Cida Bento.

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Reforma eleitoral expõe os perigos de um Parlamento com pouca diversidade

Cida Bento Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 05/08/2021

O Congresso Nacional é conhecido como “a Casa do Povo”. Quando olhamos o perfil de quem “habita” essa Casa do Povo, vemos que é majoritariamente constituído de homens brancos, empresários, de classe alta, com ensino superior completo, de meia-idade e a maioria deles reeleita; ou seja, “políticos de carreira”.

Já o povo brasileiro é majoritariamente negro (54%), feminino (51%), 42,4% têm menos de 30 anos, e apenas 48,8% de pessoas com 25 anos ou mais finalizaram a educação básica obrigatória (IBGE). E a classe baixa subiu de 38%, em 2010, para os atuais 47% (Instituto Locomotiva).

Dessa forma, parece que o Congresso Nacional não é mesmo a Casa do Povo. Pois é, esse Congresso está propondo uma reforma eleitoral perigosa para a democracia, que caminha rapidamente sem transparência e sem debate social.

Dentre tantas reações da sociedade civil diante dessa violência, um “Manifesto Contra a Reforma Eleitoral em Curso” foi lançado pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

O manifesto denuncia que a reforma modifica o sistema eleitoral para o modelo mais caro e individualista do mundo: o distritão, sistema considerado por cientistas políticos como antidemocrático e ineficiente.

A reforma desconsidera a desigualdade étnico-racial na disputa eleitoral e desmantela estruturas de ação afirmativa para fortalecimento político e econômico de mulheres candidatas, como a obrigação de preencher o mínimo 30% de candidaturas femininas, com igual percentual de tempo de rádio e TV e de financiamento público.

“No caso de mulheres negras, que são mais subfinanciadas e sub-representadas na política, os impactos serão extremamente nocivos. Teremos ainda menos mulheres negras nos espaços de decisão política do país”, diz a historiadora Giselle dos Anjos, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

A reforma altera ainda o sistema de eleição, estabelecendo o voto impresso. Diminui punições pelo mau uso de verbas públicas no período eleitoral e anistia os partidos políticos que não cumpriram a distribuição financeira com equidade de raça e as cotas de financiamento de gênero.

Está sendo necessária uma grande luta para impedir os retrocessos e a destruição do que já foi conquistado no sentido de trazer mais diversidade para o Parlamento.

A Coalizão Negra Por Direitos, que congrega mais de 200 organizações, está à frente de um amplo movimento para ocupar o Twiter usando a hashtag #ReformaRacistaNão.

Diversos coletivos de organizações da sociedade civil estão se mobilizando contra o absurdo que caracteriza essa reforma ou golpe eleitoral. A articulação apressada é para que as novas regras tenham validade já nas eleições de 2022.

Sem dúvida é mais um passo na escalada antidemocrática que o Brasil vem vivendo e expõe os perigos de um Parlamento com pouca diversidade como o brasileiro e que quer se manter no poder a qualquer custo. E com muito dinheiro, que, aliás, é dinheiro do povo brasileiro, pois propuseram que seja triplicado o valor do fundo eleitoral.

Eles fizeram um radical pacto narcísico de permanecer no poder ou de só deixar que outros venham, se tiverem o mesmo perfil. E a sociedade civil há muito se movimenta para que o Congresso Nacional se
constitua verdadeiramente na Casa do Povo, ou seja, que focalize o combate às desigualdades e assegure que os perfis dos parlamentares sejam tão diversos quanto é diversa a sociedade brasileira.

Por isso é urgente provocar a sociedade a participar das discussões e interditar a aprovação desse projeto, pressionando o Congresso e enviando mensagens aos parlamentares envolvidos na votação. Sigamos, pois, lutando por um parlamento menos monolítico que colabore na construção de um Brasil mais justo e igualitário

Se os americanos pensassem o impensável, fariam o oposto do que estão fazendo

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Primazia americana é assunto intocável, porque, para os EUA, país sempre estará em primeiro lugar

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 02/07/2020

A despeito de a sociedade americana ser bastante aberta, ela ainda tem seus tabus. A primazia americana é um desses assuntos intocáveis. Para os americanos, os EUA estarão para sempre em primeiro lugar.

Questionar isso é antipatriótico, derrotista, argumenta Kishore Mahbubani, em seu recém-lançado livro, “A China Venceu? O Desafio Chinês à Primazia Americana”.

Há uns dias, conversei com o professor e ex-diplomata de Singapura via Zoom. Mahbubani está convencido da necessidade de abrir os olhos dos americanos para o momento —inescapável— em que a China se tornará a primeira economia do mundo.

Claro, ser a primeira economia do mundo não significa ser a maior potência mundial, porque o poder tem outras dimensões. Mas é inegável que a economia importa.

Os americanos estariam cometendo um erro elementar de geopolítica —não estariam trabalhando com o cenário realista, argumenta.

Afirma, aliás, que o maior erro dos EUA em relação à China seria o de ter se lançado numa ampla disputa geopolítica sem antes conceber uma estratégia adequada.

Isso passaria necessariamente por reconhecer a realidade e se preparar para descer do Olimpo ou, ao menos, para dividir o pódio.

Alguns discordam de Mahbubani. Dizem que os EUA têm sim uma estratégia em relação à China, que seria chamado “decoupling”.

Para os seus defensores, o desentranhamento da economia americana em relação à chinesa —com a redução dos vínculos comerciais, tecnológicos, financeiros, acadêmicos etc.— teria o poder de conter a China e assegurar a primazia americana.

O problema não é apenas o grande tiro no pé que isso significa para os EUA, mas também o fato de que, para funcionar, terceiros países precisariam tomar partido dos americanos —e isso está longe de ser garantido, especialmente com Donald Trump no poder.

Conter e isolar a China é tudo menos trivial. Por exemplo, 127 países têm mais comércio com a China do que com os EUA. Se durante a Guerra Fria muitos escolheram um lado com convicção, hoje a maioria prefere ser poupada da rivalidade entre os grandes. Quem puder e tiver juízo, resistirá a tomar partido.

Perguntei a Mahbubani como será o mundo com a China como a maior economia. Depende de como se lida com a China enquanto ela cresce, respondeu. Quanto mais os EUA tentarem empurrá-la para baixo, mais ela emergirá como uma potência raivosa.

O melhor para os EUA, diz, seria construir um entendimento enquanto ela ainda não está no topo, definindo parâmetros de convivência enquanto os americanos ainda estão numa posição melhor.

O ideal seria reformar regras existentes que, afinal, foram desenhadas pelo Ocidente e não pela China —em vez de simplesmente descartar organizações e acordos internacionais.

A destruição promovida por Trump abre espaço para o avanço geopolítico chinês. Como resumiu Mahbubani, cada brecha que os EUA criam para eles hoje é uma brecha que abrem para a China amanhã.

Ironicamente, caso os EUA se permitissem pensar o impensável à respeito da China, chegariam à conclusão de que deveriam fazer o oposto do que estão fazendo.

Estariam se preparando para o futuro ao reformar e fortalecer as regras do jogo. Estariam reforçando vínculos com seus aliados, em vez de maltratá-los. Com isso, criariam balizas e constrangimentos ao poder da China.

Pode-se discordar dos argumentos de Mahbubani, mas ele tem um mérito inquestionável. O de forçar os americanos a encarar a complacência intelectual e questionar a visão inabalável de que os EUA sempre vencem.

Para ele, mais importante que saber se a China ganhou, é forçar as pessoas a pensarem no outro lado da moeda: os EUA podem perder?

A convergência chinesa, por Cecília Machado.

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Liderança em medalhas põe disputa olímpica no patamar da guerra econômica entre China e EUA

Cecília Machado

Folha de São Paulo, 02/08/2021

Hoje, China e Estados Unidos disputam cabeça a cabeça a liderança do quadro de medalhas. Nas Olimpíadas anteriores, em 2016, os EUA levaram a melhor tanto pelo número de ouros (46) quanto pelo número total de medalhas (126). Mas em 1988, nas Olimpíadas de Seul, as primeiras após os boicotes aos Jogos de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984), a China ficou em 11º lugar, com apenas cinco ouros. A evolução olímpica chinesa nestes últimos 33 anos impressiona.
Na economia não foi diferente. O êxito econômico da China nas últimas décadas é percebido a olhos nus em múltiplos indicadores, seja nas taxas de crescimento, seja nas reduções das desigualdades, seja na inclusão produtiva da população pobre ou mesmo na relevância do país para o comércio global.

De 1980 a 2019, a taxa média de crescimento da China foi de 9,4%, chegando a alcançar 15% em 1984. Esse crescimento foi distribuído à população e tem se convertido em melhorias de diversos indicadores de bem-estar dos chineses.
O fim da pobreza extrema foi anunciado neste ano: a proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza (US$ 2,3 por dia em poder paridade de compra, PPP, de 2011) caiu de 96,2%, em 1978, para 0,6%, em 2019, o que representa a ascensão de 765 milhões de pessoas a condições mínimas de subsistência (Banco Mundial, 2021).

Desde 1985, quando foi estabelecida a primeira linha de pobreza para a China, foram feitas mais duas atualizações, refletindo novos padrões de desenvolvimento do país, moderadamente mais próspero. Pelo critério utilizado por países de renda média —US$ 5,5 por dia em PPP 2011—, a pobreza ainda incide em 18,9% da população chinesa, equivalente ao número que temos para o Brasil (19,8% em 2019).

A redução da pobreza segue como meta, mas corresponde a apenas um dos diversos outros objetivos do ambicioso 14º Plano Quinquenal, recentemente divulgado. O plano estabelece diretrizes para o desempenho da China para os anos de 2021 a 2025 em quatro grandes áreas —redução das desigualdades urbano-rural, crescimento, ambiente e consumo interno— e destaca a importância da inovação, do uso de tecnologia e da renovação da matriz energética como os pilares para o crescimento sustentável de longo prazo.

Desde a crise de 2008, os EUA têm visto seu modelo econômico ser desafiado pela potência chinesa, a ponto de iniciar uma enorme guerra comercial contra a China no governo Trump —o que está sendo mantido pelo governo Biden – com efeitos na balança comercial da China que foram bastante mitigados pelo fato de o país contar com outros parceiros.

Na arena do comércio exterior, a ascensão meteórica da China é recente: em 2000, antes de ingressar na Organização Mundial do Comércio, a participação no país comércio mundial era pequena. Hoje, a China ocupa o primeiro lugar nas exportações globais, com participação de 13% em 2020 (um ponto percentual acima da participação em 2019).
Já entre os principais países nas importações chinesas, o bloco asiático Asean lidera (15%), seguido pela União Europeia (14%) e pelo Japão (8%). A América Latina participa com outros 8% e viu sua importância crescer nas últimas duas décadas (2,4% em 1980). Os EUA participam com apenas 8%. Janet Yellen, secretária do Tesouro americano, resgatou o bom senso da discussão, ao afirmar que as tarifas impostas à China retaliam os próprios consumidores americanos.

A China avançou, mas ainda existem outros hiatos a serem fechados. O PIB per capita da China segue equivalente a 1/6 do americano, apesar de ter aumentado por um fator de 50 nas últimas quatro décadas.
No livro “A China Venceu?”, de Kishore Mahbubani, entrevistado também nesta Folha, há uma interessante análise sobre o desafio chinês à supremacia americana. Vindo de uma perspectiva oriental, traz elementos originais e pouco
óbvios sobre a disputa entre EUA e China.

Se há entre nós, ocidentais, a presunção de virtude da economia americana —já que abraça valores democráticos e de liberdade—, do ponto de vista oriental, a estabilidade política que vem de um partido único comunista traz maiores chances para um planejamento econômico de longo prazo, com metas progressista e líderes pragmáticos, distante do comunismo praticado na Guerra Fria.

Ainda é cedo para saber quem vai levar o ouro, mas as condições para um confronto geopolítico entre as duas potências estão dadas. No que tange o desempenho econômico, a convergência da China é inquestionável.

Desenvolvimento Econômico

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A economia vem passando por grandes transformações nos últimos anos, gerando alterações estruturais e conjunturais em todas as nações, aumentando os desafios e criando oportunidades. A pandemia gerou muito mal-estar na civilização, exigindo novas posturas, novos comportamentos e novos consensos políticos e institucionais, além de liderança, competência e diagnósticos precisos.

Dentre os novos desafios da sociedade, é fundamental que as nações passem a repensar suas estruturas econômicas e produtivas, analisando para onde os países estão caminhando e quais rumos da sociedade para os próximos anos, criando os consensos necessários num momento de instabilidade e desafios crescentes, individuais e coletivos, somados as novidades, ainda desconhecida, no mundo pós-pandemia.

Neste momento, percebemos inúmeros países repensando suas economias, reconvertendo projetos institucionais, priorizando investimentos sociais e construindo consensos centrais para estimular o desenvolvimento econômico. A sociedade brasileira passou por um grande salto produtivo no século XX, saímos de uma economia agrícola, dependente de produtos primários de baixa valor agregado para uma economia marcada por setores industriais de média complexidade e um setor do agronegócio pujante e com forte capacidade produtiva.

Desde os anos 80 a economia brasileira perdeu dinamismo e o sonho do desenvolvimento econômico ficou mais distante, com impactos negativos na sociedade, baixa produtividade e perda de mercados externos. A pandemia pode nos trazer novas perspectivas para a economia brasileira, diante disso, faz-se necessário a construção de consensos internos e crescentes investimentos em capital humano. Os países que conseguiram ultrapassar a renda média garantiram grandes investimentos em setores produtivos estratégicos, centrados num projeto nacional que atraia todos os atores econômicos em prol do incremento da produtividade da economia.

O crescimento é fundamental para a construção do desenvolvimento econômico, mas insuficiente se este crescimento não for dividido para toda a coletividade, para que isso aconteça, é fundamental a construção de um projeto político que perpasse um governo, mas deve ser visto como um projeto de Estado, cujos setores dinâmicos participem ativamente desta empreitada, contribuindo para o tão sonhado desenvolvimento econômico, que inclua a população, preserve a meio ambiente e a melhoria do bem-estar social da coletividade.

O desenvolvimento econômico é um projeto político que envolve todos os setores econômicos, sociais e políticos, investindo fortemente na formação de capital humano, fortalecendo os centros de pesquisas, priorizando gastos nas universidades, fomentando centros de inovação, estimulando um ambiente de cooperação e parceria entre os setores produtivos.

O desenvolvimento econômico pressupõe uma associação entre os setores industriais e produtivos com as universidades e os centros de pesquisa, motivando o ensino da ciência e da tecnologia, angariando trabalhadores altamente capacitados, com salários elevados e impulsionando o mercado consumidor e estimulando o aumento da demanda, dinamizando a economia, o emprego e os investimentos produtivos.

Nesta construção do desenvolvimento econômico, faz-se necessário recursos para financiar os investimentos em infraestrutura física e imaterial, políticas públicas, pesquisa científica e tecnológica e maciços recursos em formação de capital humano. Os recursos devem ser extraídos de uma ampla mudança da estrutura tributária, alterando as bases dos tributos, reduzindo a excessiva desoneração que poucos ganhos trouxeram para a sociedade, tributando as propriedades, o patrimônio, os lucros e os dividendos, e desestimulando o capital financeiro improdutivo em detrimento de consumo e da produção.

O desenvolvimento econômico exige maturidade dos setores políticos e econômicos, além de liderança, planejamento e estratégias definidas, sem projetos econômicos e políticos consistentes, estaremos nos distanciando do desenvolvimento e caminhando, a passos longos, a estagnação e a desintegração social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 04/08/2021.

Agitações nos países emergentes, por The Economist.

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Em meio a protestos e desempenho econômico fraco, há o temor de que o bloco se afaste ainda mais das nações ricas

The Economist, O Estado de S. Paulo – 01/08/2021

No início do século, as economias em desenvolvimento eram fonte de um otimismo sem limites e uma extrema ambição.

Hoje, a África do Sul vem cambaleando com insurreições. A Colômbia tem registrado protestos violentos e a Tunísia enfrenta uma crise institucional. Governos iliberais estão na moda. O Peru acaba de eleger um presidente marxista e instituições independentes estão sob ataque no Brasil, Índia e Marrocos.

A onda de distúrbios sociais e autoritarismo é reflexo em parte da covid-19, que expôs e explorou as vulnerabilidades, desde as burocracias deterioradas às redes de proteção social desgastadas. E o desespero e o caos ameaçam exacerbar um problema econômico profundo: muitos países pobres e de média renda estão perdendo a capacidade de alcançar o nível das nações ricas.

Nosso modelo de excesso de mortalidade sugere que entre oito e 16 milhões de pessoas morreram na pandemia. A estimativa média é 14 milhões. O mundo em desenvolvimento está vulnerável ao vírus, especialmente nos países de renda média mais baixa onde o trabalho remoto é raro e inúmeras pessoas são obesas e idosas. Se tiramos a China, os países não ricos abrigam 68% da população mundial, mas 87% das suas mortes. Somente 5% das pessoas com mais de 12 anos de idade estão plenamente vacinadas.

Ao lado do custo humano, temos a fatura econômica, uma vez que os mercados emergentes têm menos espaço para gastar com o objetivo de se livrar dos problemas. As previsões para o PIB de médio prazo para todas as economias emergentes estão 5% mais baixas do que antes de o vírus se implantar. As pessoas estão irritadas e, apesar de protestos serem um risco durante uma pandemia, manifestações violentas em todo o mundo têm sido comuns como jamais foi observado desde 2008.

Países ricos, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, não são estranhos à incompetência e às agitações. Mas a decepção atingiu as economias emergentes de uma maneira especialmente dura. No início da década de 2000, havia um entusiasmo com o discurso de “se alcançar” as economias ricas: a ideia de que os países mais pobres conseguiam prosperar absorvendo tecnologia estrangeira, investindo em manufatura e abrindo suas economias para o comércio, como vários países chamados tigres do leste asiático fizeram uma geração antes. Wall Street cunhou o termo Brics para celebrar o Brasil, Rússia, Índia e China – as novas superestrelas da economia mundial.

Durante um tempo, o processo funcionou. A proporção de países onde o nível da produção econômica per capita cresceu mais rápido do que nos Estados Unidos aumentou de 34%, nos anos 1980, para 82% na década de 2000. As repercussões foram notáveis. A pobreza diminuiu. Empresas multinacionais saíram do velho e monótono Ocidente. Em termos de geopolítica, tudo isso prometia um novo mundo multipolar em que o poder estava distribuído mais uniformemente.

Hoje, a era de ouro parece ter tido um fim prematuro. Na década de 2010, a parcela de países que chegaram ao nível das nações ricas caiu para 59%. A China desafiou muitos pessimistas e aquietaram as histórias de sucesso asiáticas como Vietnã, Filipinas e Malásia. América Latina, Oriente Médio e África Subsaariana se distanciaram ainda mais do mundo rico. Mesmo a Ásia emergente vem se equiparando mais lentamente do que antes.

A má sorte também influenciou. O boom de commodities dos anos 2000 perdeu velocidade, o comércio global estagnou depois da crise financeira e episódios de turbulências na taxa cambial provocaram desordens. Mas também a complacência contribuiu, à medida que os países imaginaram que o crescimento rápido estava preestabelecido. Em muitos lugares, serviços básicos como educação e saúde foram negligenciados. Problemas devastadores não foram solucionados, como as usinas elétricas ociosas na África do Sul, os bancos deteriorados na Índia e a corrupção na Rússia. Em vez de defender instituições liberais, como os bancos centrais e tribunais, os políticos os usaram para seu próprio ganho.

O que pode ocorrer em seguida? Um risco é uma crise econômica nos mercados emergentes com o aumento dos juros nos Estados Unidos. Felizmente, muitas economias emergentes estão menos frágeis do que foram, por causa das taxas cambiais flutuantes e por dependerem menos da dívida em moeda estrangeira. Crises políticas de longa duração são uma preocupação maior. Pesquisas sugerem que protestos inibem a economia, resultando em mais descontentamento, e esse efeito é mais marcante nos mercados emergentes.

Mesmo que as economias emergentes evitem o caos, o legado da covid-19 e o protecionismo crescente podem condená-las a um longo período de crescimento mais lento. A produtividade no longo prazo diminuirá como resultado de tantas crianças fora da escola.

O comércio também pode ser mais difícil. A China vem se recolhendo e se afastando das políticas mais abertas para o mundo que a tornaram mais rica. Se isso continuar, nunca se tornará uma vasta fonte de demanda de consumo para o mundo pobre, como os Estados Unidos foram para o país nas últimas décadas.

O protecionismo crescente do Ocidente também limitará as oportunidades de exportação para os produtores estrangeiros que, de qualquer maneira, serão menos beneficiados à medida que a economia se torna menos dependente da mão de obra intensiva.

Infelizmente, os países ricos não estão dispostos a compensar isso, liberalizando o comércio na área de serviços, o que abriria outras vias de crescimento. E tampouco ajudar economias expostas como é o caso de Bangladesh – uma história de sucesso – a se adaptarem à mudança climática.

Frente a esse panorama sombrio, os mercados emergentes se verão tentados a abandonar o comércio e o investimento abertos. O que será um grave erro. Um ambiente global desfavorável fará com que eles se agarrem ainda mais a políticas que funcionem. A noção defendida pela Turquia de que aumentar juros causa inflação tem sido desastrosa. A persistência da Venezuela no caminho do socialismo é ruinosa; e proibir empresas estrangeiras de agregarem clientes, como a Índia fez com o Mastercard, é contraproducente.

Como alcançar o mundo rico vem se tornando mais difícil, somente aqueles mercados emergentes que permanecerem abertos terão as melhores chances.

Alcançar, não ceder
Algumas regras mudaram: o acesso às tecnologias digitais hoje é vital, como também uma rede de proteção social adequada. Mas os princípios de como enriquecer hoje são os mesmos de outrora: estar aberto ao comércio, competir nos mercados globais e investir em infraestrutura e educação. Antes das reformas liberais realizadas em décadas recentes, as economias eram divergentes. Ainda é tempo de evitar as adversidades desnecessárias do passado. /

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Zygmunt Bauman: ‘Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre’

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Revista Prosa Verso e Arte – Janeiro 2011

Reflexões sobre as condições do mundo da “modernidade líquida”, os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que tratou, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman foi uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. “Hoje em dia”, lamentou, “os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções… invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que ‘não há alternativa’”.

As transformações das últimas décadas têm produzido um processo de ruptura das principais referências do projeto político da modernidade. Esta ruptura ocorre tanto em relação aos vínculos políticos que fundamentam a ideia de comunidade como também no que se refere ao conjunto de avanços presentes nas principais garantias proporcionadas pelo Estado de Bem-Estar Social.

Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre
O “Estado social” é hoje insustentável; mas por um motivo que nada tem a ver com a especificidade do caráter “social” do Estado, e sim com o enfraquecimento generalizado do Estado como “agência”. Repito o que já disse muitas vezes – esse é, afinal, o cerne de todos os problemas que os remanescentes do “Estado de bem-estar social” precisam enfrentar.

Nossos ancestrais preocupavam-se com (e debatiam sobre) “o que deve ser feito”; nós nos preocupamos (embora dificilmente cheguemos a debater, já que o tema parece não ter futuro) com “quem vai fazê-lo”, uma questão sobre a qual nossos ancestrais jamais discutiram, pois estavam de acordo – “o Estado, é claro”! Uma vez conquistado o Estado, faremos tudo que considerarmos necessário – o Estado, essa união de poder (ou seja, a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas) com a política (ou seja, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas), é tudo de que precisamos para transformar o verbo em carne, não importa a palavra utilizada. Bem, essa resposta não parece mais tão evidente.

Os políticos não nos deixam em dúvida, ecoando monotonamente as palavras de Margaret Thatcher: “NHA” (“Não há alternativa”). Quer dizer: fazemos nossas escolhas em condições que não escolhemos. Quanto a esse último aspecto, pelo menos, estou inclinado a concordar, embora por motivos um tanto diferentes. As condições “não são as que eles escolheram”, no sentido de que os políticos aceitam placidamente essas condições e continuam determinados a não tentar outras opções: “NHA” é uma profecia autorrealizadora, ou melhor, o lustro de uma prática adotada de boa vontade e conduzida com zelo.

O Estado é “capitalista”, como Habermas apontou trinta anos atrás, escrevendo numa época em que a sociedade de produtores definhava, à medida que luta para garantir um encontro regular e efetivo entre capital e trabalho (ou seja, que envolve capital comprando trabalho). Para que esse encontro tenha êxito, o capital deve ser capaz de pagar o preço do trabalho, e o trabalho deve estar em boa forma o suficiente para atrair o capital. Portanto, podemos dizer, o “Estado social” é visto como indispensável para a sobrevivência “tanto pela esquerda quanto pela direita”. Porém, não é mais assim.

Hoje, na sociedade dos consumidores, o Estado é “capitalista” porque propicia o encontro entre mercadoria e consumidor (como foi mostrado pela reação universal dos governos ao colapso dos bancos/créditos; centenas de bilhões foram encontrados nos próprios cofres que a opinião governamental considerava carentes dos poucos milhões necessários para preservar os serviços sociais). Para esse propósito, o “Estado social” é irrelevante; por conseguinte, o problema de sua emancipação e da reclassificação de seus resíduos numa questão de “lei e ordem”, e não numa questão social, está “além de esquerda e direita”.

Com ou sem globalização, será que podemos prosseguir indefinidamente avaliando o aumento da felicidade pelo aumento do PIB, sem mencionar que espalhamos esse hábito para o resto do mundo e elevamos seus níveis de consumo até um ponto considerado indispensável nos países mais ricos? Deve-se considerar o impacto do consumismo sobre a sustentabilidade de nosso lar comum, o planeta Terra. Agora sabemos muito bem que os recursos do planeta têm limites e não podem ser ampliados ao infinito. Também sabemos que os limitados recursos da Terra são modestos demais para acomodar o aumento dos níveis de consumo no mundo inteiro aos padrões atingidos nas partes mais ricas – os próprios padrões pelos quais o resto do mundo tende a avaliar seus sonhos e expectativas, suas ambições e requisitos na era das infovias. (De acordo com alguns cálculos, tal feito exigiria que os recursos do planeta

fossem multiplicados por cinco; cinco planetas seriam necessários, em vez do único de que dispomos.)
No entanto, a invasão e a anexação do reino da moral pelos mercados de consumo fizeram com que ele se sobrecarregasse de funções adicionais que só pode desempenhar empurrando os níveis de consumo ainda mais para cima.

Essa é a principal razão pela qual o “crescimento zero”, tal como medido pelo PIB – a estatística referente à quantidade de dinheiro que troca de mãos nas transações de compra e venda –, é visto como algo próximo de uma catástrofe não apenas econômica, mas também social e política. É graças, em grande parte, a essas funções extras – que não se vinculam ao consumo nem por sua natureza nem por uma “afinidade natural” – que a perspectiva de se estabelecer um limite ao aumento do consumo, para não dizer reduzi-lo a um ponto ecologicamente sustentável, parece ao mesmo tempo nebulosa e repulsiva; e que nenhuma força política “responsável” (leia-se: nenhum partido que tenha os olhos grudados nas próximas eleições) a incluiria em sua agenda política. Pode-se imaginar que a “comodificação” das responsabilidades éticas, os principais instrumentos e matérias-primas do convívio humano, combinada com a decadência gradual mas incessante de toda as formas alternativas, fora do mercado, é um obstáculo muito mais formidável à contenção e moderação dos apetites consumistas que as exigências inegociáveis da sobrevivência biológica e social.

Na verdade, se o grau de consumo determinado pela sobrevivência biológica e social é por natureza inflexível, fixo, e portanto relativamente estável, os níveis exigidos para atender às outras necessidades cuja satisfação é prometida, esperada e exigida em função do consumo são, uma vez mais pela natureza dessas necessidades, crescentes e orientados para cima; a satisfação dessas novas necessidades não depende da manutenção de padrões estáveis, mas da velocidade e do grau de seu aumento. Consumidores que se voltam para o mercado de produtos buscando satisfazer
seus impulsos morais e cumprir seus deveres de autoidentificação (leia-se: “autocomodificação”) veem-se obrigados a procurar diferenciais em termos de valor e volume; então, esse tipo de “demanda de consumo” é um fator predominante e irresistível no impulso para cima.

Assim como a responsabilidade ética pelo outro não tolera limites, o consumo, investido da tarefa de desafogar e satisfazer impulsos morais, resiste a qualquer espécie de restrição que se imponha à sua expansão. Subordinados à economia consumista, de modo irônico, os impulsos morais e as responsabilidades éticas são transformados num terrível obstáculo quando a humanidade se vê em confronto com aquela que é incontestavelmente a mais formidável ameaça à sua sobrevivência: uma ameaça que só pode ser enfrentada mediante um volume talvez sem precedentes de autorrestrição voluntária e disposição para o autossacrifício.

Uma vez acionada e mantida em movimento pela energia moral, a economia consumista só tem o céu como limite. Para ser eficaz na tarefa que assumiu, não se pode permitir a redução da velocidade, muito menos fazer uma pausa e ficar parado. Em consequência, deve-se estabelecer o pressuposto – de modo contrafactual, se não em tantas palavras, ao menos tacitamente – da durabilidade ilimitada do planeta e da infinidade de seus recursos. Desde o início da era consumista, ampliar o tamanho do pão era apresentado como remédio óbvio, na verdade um profilático infalível, contra os conflitos e disputas em torno da redistribuição desse quinhão. Eficaz ou não em suspender as hostilidades, essa estratégia devia presumir a existência de uma quantidade infinita de farinha e fermento.

Agora nos aproximamos do momento em que a falsidade desse pressuposto e os perigos de se aferrar a ele têm chance de se ver expostos. Talvez seja esse o momento de a responsabilidade moral se redirecionar para sua vocação básica: a garantia da sobrevivência mútua. Entre todas as condições necessárias para esse redirecionamento, a principal parece ser a “decomodificação” do impulso moral.

A hora da verdade pode estar mais próxima do que poderíamos imaginar quando contemplamos as prateleiras superlotadas dos hipermercados, os sites cheios de pop-ups comerciais, os corais de especialistas em autoaperfeiçoamento e os consultores especializados em como fazer amigos e influenciar pessoas. A questão é como anteceder ou impedir sua vinda com um momento de autodespertar. Uma tarefa que não é fácil, com certeza: seria necessário nada menos que toda a humanidade, com sua dignidade e seu bem-estar, assim como a sobrevivência do planeta, seu lar comum, fosse abraçada pelo universo das obrigações morais.

Zygmunt Bauman – “Isto não é um diário”. [tradução Carlos Alberto Medeiros]. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2012.

Auxílio emergencial foi uma das poucas coisas sensatas do governo Bolsonaro, diz economista britânico.

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Guy Standing, pai do termo ‘precariado’, defende que benefício se torne permanente

FERNANDA CANOFRE – FOLHA DE SÃO PAULO, 28/07/2021

O nome do economista britânico Guy Standing costuma ser associado ao termo “precariado” —a junção das palavras proletariado e precário— para se referir às relações distintas que essa crescente classe global tem com o trabalho e o Estado.

Segundo Standing, o precariado engloba indivíduos envolvidos em relações de trabalho instáveis e inseguras, cuja remuneração ocorre basicamente por dinheiro —não há os benefícios típicos do emprego com carteira assinada. Na relação com o Estado, esse grupo está perdendo direitos sociais, culturais e até políticos. Na hierarquia social, o precariado está abaixo do proletariado clássico, que encolhe.

O economista, ligado à Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres e membro fundador e co-presidente honorário da ONG BIEN (Renda Básica Rede da Terra), defende que não é mais possível a sobrevivência da economia sem a renda básica.

Nesse sentido, ele vê o auxílio emergencial introduzido pelo governo Jair Bolsonaro como “uma das poucas coisas sensatas” feitas pelo governo federal. Para Standing, o benefício deveria ser transformado em uma política permanente, ainda que o valor inicial seja baixo.

O que é precariado? Pelo mundo, uma nova estrutura de classe tem se formado. Em termos de renda e poder, no topo, está uma pequena plutocracia de bilionários. Abaixo deles está uma elite, e então o assalariado, que consiste em pessoas com empregos assalariados, com licença remunerada, aposentadoria esperando por eles e por aí vai. Abaixo deles está um proletariado encolhendo, a velha classe operária manual. Abaixo deles está o precariado, que vem crescendo rapidamente, e depois dele uma subclasse, na chamada economia informal, vivendo com vícios e doenças sociais.

O precariado pode ser definido como uma combinação de três características. As pessoas nele têm relações de produção distintas, o que significa que têm que lidar com trabalho instável, inseguro e não têm identidades ocupacional, ou uma narrativa clara para suas vidas. Eles também têm relações distintivas de distribuição, ou seja, têm que contar quase inteiramente com salário em dinheiro, sem acesso a benefícios não-salariais ou direitos estatais, e estão vivendo à beira de endividamento insustentável. Finalmente, e o mais importante, eles têm relações distintivas com o Estado, ou seja, estão perdendo direitos de cidadania —social, cultural, econômico, civil e político.

Essa terceira dimensão é a principal. Eu não gosto do termo “trabalho precário” porque a precariedade é sobre não ter direitos. Sempre existiu trabalho instável e inseguro. O ponto crucial é que o precariado parece com suplicantes, que têm que contar com pessoas que façam favores a eles, com figuras de autoridade para tomar decisões em seu favor ou não. Isso é indigno.

Mas como eu disse muitas vezes, o precariado não tem apenas vítimas. Eles não sofrem de falsa consciência, pensando que empregos são o caminho para felicidade e satisfação. Eles querem trabalhar, mas fazendo isso criativamente e em liberdade.

Por que essa classe segue crescendo? Quais são os efeitos possíveis e resultados desse crescimento e para onde ele nos leva como sociedade —uma questão que o sr. colocou como crucial em seu livro?

O precariado ainda está crescendo porque estamos em um período de capitalismo rentista que está se tornando cada vez mais forte e mais ameaçador, acelerado pela crise financeira de 2007-2008 e pela pandemia da Covid-19. Acredito que ainda é dividido em três segmentos: atávicos, nostálgicos e progressistas. O primeiro grupo tende a apoiar políticos populistas e neofascistas que prometem trazer o ontem de volta. Eles apoiaram [Donald] Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro e outros como eles. O segundo grupo é composto majoritariamente por migrantes onde eles estejam, sem direitos, destituídos de direitos. O terceiro grupo são aqueles que saíram de uma universidade e querem um futuro. Esse terceiro grupo está crescendo rápido.

Qual o impacto que trabalhos ligados à chamda “gig economy”, como motoristas de aplicativos, que tiveram uma expansão global nos últimos anos, têm no precariado?

Eu prefiro chamar isso de capitalismo de plataforma. O processo de trabalho está crescendo rápido, com mais trabalho indireto, muito sendo feito fora de qualquer conceito de “emprego”. É parte da globalização e está ligado à uma revolução tecnológica em progresso.

Com a pandemia, algo mudou na trajetória que vinha sendo observada até 2020? A economia global, como eu chamo o capitalismo rentista no meu novo livro “The Corruption of Capitalism” [A corrupção do Capitalismo, em tradução livre], estava extremamente frágil antes da pandemia da Covid-19 atingir o mundo. O que ela tem nos mostrado é que nem à sociedade, nem àqueles no precariado ou perto dele faltam resiliência. E nós precisamos disso.

O sr. defende a renda básica há mais de três décadas, um tema que costuma ser visto como utopia. O sr. pode falar sobre sua experiência?

Sim, eu acredito que uma renda básica é necessária por razões éticas, não apenas como forma de reduzir a pobreza e desigualdade, embora obviamente isso também seja importante. Eu estive envolvido em desenvolver e implementar pilotos e experimentos de rendas básicas, que estão descritos no meu livro Basic Income: And how we can make it happen [Renda básica: E como podemos fazê-la acontecer, em tradução livre]. As descobertas mais importantes incluem melhoria de saúde, mais trabalho e menos stress.

Como a renda básica pode ser instituída e salvar a economia de um país em crise? Nós precisamos, mais do que nunca, de um novo sistema de distribuição de renda. A menos que todo mundo tenha resiliência, nós todos seremos vulneráveis. Nós podemos bancar. Precisamos de reforma tributária e construir fundos de capitais que possam pagar pela renda básica.

O Brasil criou um auxílio emergencial de R$ 600 em 2020, reduzido posteriormente e criticado pelo custo fiscal.

Como uma renda básica seria viável e sustentável aqui? Introduzir o auxílio emergencial foi uma das poucas coisas sensatas do governo Bolsonaro. Teve bons efeitos positivos. Mas precisa ser convertido em um esquema permanente.

Todos aqueles a favor de uma renda básica devem perceber e dizer que a coisa mais importante, no momento, é ter o Estado “na direção certa”. Sim, o nível pode ser baixo a princípio, mas uma vez introduzido, o auxílio pode aumentar e ser integrado a outras políticas progressistas.

Como gerir um programa de renda básica em um contexto de crise fiscal? É preciso repensar fundamentalmente as políticas de macroeconomia no Brasil, com reforma tributária e mais impostos para os mais ricos e para os “maus” da ecologia. O dinheiro mobilizado precisa ser alocado para prover os brasileiros comuns com segurança básica. É uma questão de prioridades. É por isso que as preocupações do precariado se sobrepõem com a terrível crise ecológica.

Nós precisamos ver um revival dos comuns, que é objeto de boa parte do meu trabalho atual.
No seu livro, “O precariado — A nova classe perigosa” (Autêntica, 2013), o sr. escreve sobre pessoas vivendo com medo e insegurança e potencialmente furiosas. Esses sentimentos têm implicações políticas? Com certeza. A insegurança gera ressentimento e frustração. Mas como eu tenho dito, o precariado sofre de alienação, anomia, ansiedade e raiva. Quando os lockdowns e as tendências de isolamento da pandemia reduzirem, você vai ver um novo surto de raiva derramado nas ruas e praças. Essa raiva é justificada.

Há uma crise geral de representação diante do sistema político como o conhecemo. Como isso se aplica ao precariado?

Por que as velhas esquerda e direita não falam com eles ou suas necessidades? Essa é sua melhor pergunta. A velha direita foi tomada pela extrema-direita, tipos neofascistas populistas e extremistas religiosos, silenciosamente apoiados por interesses financeiros. Eles jogam para os atavismos, como expliquei antes. Mas nem a direita, nem a velha esquerda entenderam ou atraem os progressistas do precariado. A esquerda precisa se transformar para ter uma base eleitoral forte de fato.

Como questões como raça e gênero entram nesta equação? Mulheres e minorias raciais são uma parte substancial do precariado, em todos os países. Mulheres e minorias, incluindo grupos com deficiência, são os que têm mais a ganhar com uma renda básica e novas formas de representação.

Como o sr. vê o cenário em um mundo pós-Covid? Há lugar para otimismo? Há espaço para otimismo, mas só se a nova geração de políticos e líderes de sindicatos e ONGs tentarem entender o precariado e articular o que eu chamo de “uma nova política do paraíso”, misturando preocupações ecológicas com um novo sistema de distribuição de renda.

RAIO-X
Guy Standing, 73, é economista e professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Tem doutorado pela Universidade de Cambridge e é fundador e co-presidente honorário da ONG BIEN (Renda Básica Rede da Terra).