Peso do agronegócio no PIB sobe de 5% para quase 7%, por Mauro Zafalon

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Mesmo com pequena retração na pecuária, a agropecuária mantém presença forte na economia

Mauro Zafalon, formado em jornalismo e ciências sociais, com MBA em derivativos na USP.

Folha de São Paulo, 02/06/2021.

O ano de 2021 prometia ser diferente para a agropecuária brasileira. A soja, o carro-chefe da agricultura, foi plantada com atraso, e, embora a área estivesse ganhando um bom impulso, a produtividade era incerta.
Mesmo com tantos empecilhos iniciais, o país volta a obter uma safra recorde com a oleaginosa, somando 132 milhões de toneladas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

O volume apurado pelo IBGE é referência para a apuração do PIB (Produto Interno Bruto) da agropecuária. Outras avaliações de mercado, porém, apontam uma produção de até 137 milhões de toneladas.

Com o avanço nas produções de soja e de milho, a safra brasileira de grãos deste ano deverá atingir 264,5 milhões de toneladas, segundo o IBGE. Na avaliação da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), serão 272 milhões de toneladas.

Com números tão expressivos na lavoura, e mesmo com pequena retração na pecuária, a agropecuária mantém uma presença forte no PIB e na economia.

No primeiro trimestre deste ano, a evolução do PIB do setor foi de 5,2%, em relação a igual período de 2020. No acumulado dos últimos quatro trimestres, a alta é de 2,3%. Há 17 trimestres seguidos que a agropecuária vem registrando um PIB positivo no acumulado de 12 meses.

A taxa acumulada dos quatro últimos trimestres é a maior desde 2019, mas o melhor ano foi 2017, quando houve um crescimento de 14,2% no PIB do setor.

Com o recente crescimento da agropecuária, a taxa de participação do setor no PIB, que normalmente gira próxima de 5%, fechou 2020 em 6,8%, conforme os dados divulgados nesta terça-feira (1º) pelo IBGE.

A agropecuária adicionou R$ 209 bilhões na economia neste início de ano, bem acima dos R$ 125 bilhões de igual período de 2020.

O primeiro trimestre deste ano foi marcado por alta na produção e melhora na produtividade. A soja, cuja área de plantio cresceu 4,1%, obteve um rendimento, por hectare, 4,4% superior ao da safra passada.

A produção recorde, com alta de 9%, foi preponderante para uma participação melhor do produto no PIB geral.

Apesar do atraso no plantio, algumas regiões obtiveram um desempenho bem melhor do que o da safra anterior. O Rio Grande do Sul, que havia sido afetado severamente por problemas climáticos na safra 2020, conseguiu uma produção de soja 74% superior em 2021.

O milho, o segundo principal produto do setor agrícola, ainda é uma promessa. A primeira safra, que representa apenas 25% da produção do ano, foi colhida com queda de 3,1%, segurando a evolução do PIB.

A segunda, a chamada safrinha, foi semeada com atraso, e o clima adverso já faz o mercado rever estimativas de produção para baixo. Se concretizada essa quebra, o cereal vai afetar o desempenho do PIB agropecuário nos próximos trimestres.

As lavouras de fumo também cooperaram com o PIB. A produção é de 721 mil toneladas, com alta de 3,6%. O rendimento cresceu 6,1% por hectare.

Além do milho da primeira safra, a produção de mandioca, que tem queda de 3,4% na área plantada, inibiu o crescimento do PIB agropecuário. A produção recuou 1,3%.

O PIB da agropecuária deverá ser influenciado nos próximos trimestres por uma previsível queda na produção de milho, de laranja, de café arábica e de cana-de-açúcar, produtos importantes na composição do índice.

Mundo do trabalho

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Vivemos um momento caracterizado pela Quarta Revolução Industrial, um período de grandes transformações, marcadas por alta tecnologia, novas máquinas e novas habilidades, com isso, percebemos crises crescentes no mercado de trabalho, destacando novas formas de acumulação, novos modelos de negócios, rupturas econômicas e exigências crescentes de capacitação e de qualificação, onde a competição não é mais local, nem nacional, mas ao mesmo tempo, é internacional.

Na atualidade, ao analisarmos os dados mais recentes de emprego divulgados pelo IBGE, abarcando os três meses do ano, 14,7% da população se encontra desempregada, um contingente de quase 15 milhões de trabalhadores sem emprego. Mais de 33 milhões de subempregados, pessoas na informalidade ou intermitentes. Além de 5,9 milhões de desalentados, um verdadeiro desastre econômico e social, com impactos políticos generalizados.

Neste ambiente, percebemos que o Brasil vive três grandes crises, de um lado estamos sofrendo os impactos da covid-19, de outro lado vivemos uma crise econômica, com forte degradação produtiva e uma crise política. O país vive uma situação de inação, de destruição de empresas e de setores produtivos, crescimento da pobreza, fome em ascensão, desestruturação dos setores de serviços e o enfraquecimento das esperanças da população.

Estamos vivendo um momento de grandes transformações no mundo do trabalho, as novas tecnologias exigem mais qualificação dos trabalhadores, assertividade, flexibilidade, agilidade e a capacidade constante de aprender. Sem estas habilidades, os trabalhadores terão dificuldades em encontrar novos espaços no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, alguns setores que, anteriormente, eram intensivos em mão de obra, passaram a substituir trabalhadores por tecnologias, máquinas e inteligência artificial. Sem políticas públicas eficientes a massa de trabalhadores sem ocupação tende a crescer, inviabilizando o crescimento mais equitativo da economia.

Neste momento, quando convivemos com inúmeras crises, é fundamental que os setores produtivos trabalhem intimamente na construção de novas oportunidades, com investimentos em setores mais intensivos em mão de obra, tais como a construção civil e investimentos em infraestrutura, que tendem a fomentar um ciclo de investimentos produtivos, gerando emprego, empregabilidade e incremento na renda. Sem estes pactos entre os agentes econômicos e políticos, a recuperação da economia deve demorar mais e os custos sociais serão maiores.

A tecnologia deve ser estimulada com o intuito de melhorar o bem-estar social da sociedade, os setores econômicos devem crescer e gerar novas riquezas para a sociedade mas, cabem aos governos usar instrumentos para tributar setores que pagam menos tributos e canalizar estes recursos para a melhoria dos setores sociais e as políticas públicas, estimulando a criatividade e, ao mesmo tempo, melhorar os serviços de saúde, incrementado a educação, fortalecendo as universidades e os centros de pesquisas, dessa forma, os trabalhadores serão mais qualificados para compreender as demandas dos setores econômicos e produtivos.

O mundo do trabalho exige novos trabalhadores para compreenderem as novas tecnologias, as novas máquinas e os novos desafios. Além dos trabalhadores, os gestores, os empresários e os empreendedores devem compreender o novo ambiente de negócio, marcados pela concorrência e pela competição, se capacitando e se qualificando, deixando a busca de proteção de governos ineficientes e subsídios excessivos e exagerados, que engordam os lucros individuais e levam a estrutura econômica ao empobrecimento.

Neste ambiente precisamos recuperar a autoestima da população, construir ambientes de esperança e de solidariedade, resgatando os espaços de empatia e integração social. Num mundo marcado por grandes tristezas coletivas, mortes crescentes, pobrezas em ascensão, incremento da população, precisamos exercer sentimentos mais sólidos de acolhimento, respeito e compaixão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/06/2021.

Governo Bolsonaro exerce a necropolítica e Brasil e o mundo vivem um desastre

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Em novo livro, professor afirma que as bases da civilidade perderam espaço no planeta

Folha de São Paulo, 31/05/2021

Plinio Fraga, Jornalista, doutorando em comunicação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de “Tancredo Neves, o Príncipe Civil” (Objetiva)

[RESUMO] Em novo livro, Muniz Sodré, um dos principais pensadores da área de comunicação no país, afirma que a cultura do algoritmo levou a uma sociedade incivilizada, que rejeita os avanços da cidadania, as diferenças e o discernimento crítico, em nome do capital financeiro e do desmonte do Estado e da política.

A cultura do algoritmo deixou a sociedade civil como definida por Gramsci de cabeça para baixo, aponta em novo livro Muniz Sodré, o pesquisador em comunicação mais citado na produção científica nacional. O espaço da sociedade civil está ocupado agora pela “sociedade incivil”, que dispensa negociação pública das diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica.

“A Sociedade Incivil” (ed. Vozes), título do novo livro de Sodré, pode ser definida como um ordenamento humano regido globalmente por tecnologias de comunicação desestabilizadoras das formas clássicas de representação do mundo.

Rejeita as ideologias de bem-estar social, é refratária às instituições tradicionais e é inimiga dos avanços da cidadania. Na governança, fórmulas ocas hibridizam política estatal, demagogia e publicidade.

A política perde seu papel de mediação entre cidadãos e o Estado. O privado toma lugar do público. O burguês produtivista dá lugar ao rentista. Efemeridade e volatilidade passam a ser as bases do turbocapitalismo financeiro, alimentado por informação instantânea.

No mundo incivil, diz Sodré, a força da convicção é maior do que a da verdade. É tempo de saber sem sabedoria, de fala sem diálogo, de ação sem pausa e reflexão. A emoção substitui a fé, e a dopamina toma o lugar de Deus.

Em vez do monopólio da fala dos tempos televisivos, os algoritmos promovem o sequestro da fala por meio da total dissemetria entre aqueles que captam os dados, os oligopólios das big techs representadas no acrônimo FAANG (Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Google), e aqueles que os fornecem, os usuários da sociedade em rede. As placas tectônicas do conhecimento se deslocam e deixam o humano sem solo firme para pisar.

É vivida a era da democracia das emoções, do enterro da discussão argumentativa. Era do segredo do voto desconstruído pela exposição informacional. Era do jornalismo sem povo, porque dominado pela busca única do clique.

Em suma, a sociedade incivil reflete a hegemonia do capitalismo financeiro e da cultura algorítmica. É uma nova máquina tecnossocial, articulada por meio da informação e da midiatização.

A velha sociedade civil morreu porque as mutações socioeconômicas desconstroem os laços representativos das instituições em benefício de formas tecnológicas e mais abstratas de controle social.

Essas mutações constituiriam evidências do evanescimento da sociedade civil, tal como interpretada pelo pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937), desenvolvendo conceitos estabelecidos antes por Hegel (1770-1831) e Lênin (1870-1924).

A sociedade em rede pode ser, no entanto, veneno e remédio. Pode ser a possibilidade de contramovimentação social necessária para a requalificação do político. Como o apoio da comunicação, que é separação e ponte, na definição do educador Paulo Freire, como citado por Sodré.

Aluno de Roland Barthes (1915-1980) e Emmanuel Carneiro de Leão, amigo de Jean Baudrillard (1929-2007) e Gianni Vattimo, Sodré é professor emérito da UFRJ e autor de 45 livros, sendo 42 de teoria da comunicação e três de ficção.

Aos 79 anos, domina sete línguas, luta caratê, toca violão e segue dando aulas e conferências. Contraiu Covid-19 no ano passado. Entre maio e junho, permaneceu internado por 43 dias. Precisou de respirador mecânico duas vezes, ficando 14 dias incubado. Contou lembrar-se de ter tido experiências extracorporais nesse período.

Ao deixar o hospital, por quase dois meses teve de se submeter à hemodiálise. Usou o tempo da convalescença para concluir “A Sociedade Incivil”, que lança agora. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha.

O leitor desavisado pode associar de imediato a expressão sociedade incivil aos tempos do governo Bolsonaro. Apesar de em seu livro não haver nenhuma referência direta ao bolsonarismo, concorda que o senhor acaba por explicá-lo ao esmiuçar como a sociedade está ligada a projetos autocráticos populistas? Concordo absolutamente. Não mencionei Bolsonaro para não particularizar demais o conceito. Aparentemente, “sociedade incivil” pode parecer um trocadilho.

Pode parecer um jogo de palavras, mas na verdade é um conceito. É um conceito da sociedade civil como falado por Lênin, Hegel e aprofundado mais plenamente por Gramsci.

Mas é um conceito de sociedade civil de ponta cabeça, de cabeça para baixo. Porque é um esvaziamento daquilo que sustentava classicamente a sociedade civil: o esvaziamento da representação político-parlamentar.

É um conceito da ausência de representatividade política da sociedade contemporânea. Isso é geral no mundo, ainda que com gradações diferentes. Na maioria dos países latino-americanos, os partidos não têm importância. São máquinas burocráticas que giram ao redor dos interesses próprios, de verbas orçamentárias.

Não é possível fazer revolução pelo voto, mas sempre foi possível fazer reformas pelo voto. Mas esse poder se esgotou, porque ficou na mão da tecnoburocracia. O sistema político como um todo, a política de partidos, a política parlamentar, passou a não valer mais nada. São apenas jogadas entre grupos para se revezar no poder.

Incluo nisso também o PT. O que existe são apenas tonalidades afetivas diferentes.

O fenômeno da sociedade incivil, assim, é mundial, com intensidades diferentes. O Brasil vive um desastre incivil.

A política perde força, o Parlamento perde força. Por mais em crise em que estivessem, sempre foram garantias de civilidade, de preservação da sociedade civil.

O governo Bolsonaro exerce a necropolítica. Que importa se morrem 400 mil pessoas? O que importa é a economia. Como diria Gramsci: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.

Gramsci não usou a expressão sociedade incivil, um conceito que eu criei, mas ele pressentiu a morte da sociedade civil no que chamou de crise orgânica.

O sr. associa a sociedade incivil às políticas conservadoras de desmonte do Estado, de aniquilação da política e da predominância do capital financeiro. Elas crescem juntas? Crescem juntas. O neoliberalismo é o ativismo direto do capital. É o discurso desse novo capitalismo. O rentismo é uma nova forma de capitalismo. O neoliberalismo é um discurso, é uma nova forma de consciência do capitalismo.

No livro, o sr. afirma que do “monopólio da fala”, numa referência principalmente à televisão como elemento cultural central do passado, a sociedade algorítmica passou para o “sequestro da fala”. Este seria a perda de autonomia das pessoas? A ideia do monopólio da fala não desapareceu por completo porque ela se confunde com o monopólio econômico que explica as big techs. É fato que o monopólio da fala se refere inicialmente à televisão, em razão da impossibilidade de interatividade desse canal.

Verificamos agora que a fala contemporânea está condicionada por um sistema tecnológico, matemático, que funciona à base de algoritmos.

Esses algoritmos são um outro discurso, um outro universo, fundado com outras regras. Os algoritmos constituem uma língua própria porque eles são capazes de produzir mensagens, incitar comportamentos. E nós não sabemos que língua é essa, só dominada por seus programadores.

A sociabilidade que a rede gera, que o algoritmo gera, é uma sociabilidade de plataforma. Não é a sociabilidade histórica real. Não é a subjetividade vivida. É uma sociabilidade programada por algoritmos. Isso é o sequestro da fala, é pior do que o monopólio. É a produção de uma fala própria que, aos poucos, vai dominando a nossa. É a fala do robô. O algoritmo é um robô por software.

A ideia do monopólio da fala continua válida? Parecia que a interatividade viria a resolver o problema da possibilidade de resposta à televisão, mas não é bem assim. O monopólio da fala se deslocou para sistemas ainda mais remotos que formam a rede mundial de computadores, comandada por algoritmos. O supermonopólio da fala agora produz o sequestro da fala.

O que quer dizer quando afirma que a rede algorítmica produz um tipo novo de jornalismo, o jornalismo sem povo? O povo no Brasil ficou como um enigma étnico. A partir de 1964, tornou-se mesmo subversivo. Quando me refiro ao jornalismo sem povo quero dizer que a democracia sempre precisou de povo. E o jornalismo também.

O jornalismo tem de se reinventar. A forma de emprego não se esvaziou só no jornalismo. O emprego está sendo esvaziado no setor fabril, em todo lugar. A imprensa que elogiamos é o discurso de intervenção que o jornal faz na esfera pública. E esse discurso é necessariamente político.

A imprensa informa dentro do quadro de um povo específico. Na rede, você vê usuário de computador, mas não vê povo. Esse povo, como símbolo de exercício de soberania, pode se constituir na rede? Eu acho que pode.

O veneno seria também a cura? A rede é um megafone. Tem um poder de mobilização muito grande. Ela leva para rua, expõe. É a ideia do fármaco: veneno e cura. Paulo Freire dizia que a comunicação é separação e ponte. O jornalista é o curador da mediação. É um lugar ainda não bem pensado, mas que já é real.

É o lugar do desenvolvimento do jornalismo: investigação e curadoria, ou tratamento da mediação que pode assumir a forma da rede. O conceito de notícia se fragmentou tanto que desvalorizou a notícia. O jornalismo é um meio de busca da civilidade e, por consequência, da democracia.

Por que o sr. diz que a “democracia das emoções” é uma das construtoras da sociedade incivil? Vimos aparecer toda uma tecnologia emocional que não damos conta. A manipulação de todas as máquinas criadas pelas big techs é emocional. No cotidiano, a razão argumentativa dá lugar à razão sensível. As estratégias das redes, as táticas de aproximação, de discussão, de aproximação são estratégias sensíveis. São nessas estratégias que as emoções se encontram.

Esta é uma era, por exemplo, em que a própria ideia de fé pode ser substituída por impulsos, por dopamina [neurotransmissor que modula as emoções, também conhecido como hormônio da felicidade]. Esse fundamentalismo evangélico funciona com base na dopamina, não na fé. O discurso do pastor tem a ver com a emoção, com a dopamina.

O sr. conclui o livro lançando duas questões fundamentais. Os homens ainda podem ser ditos humanos? E as democracias ainda podem ser ditas democráticas? Pode parecer que estou abraçando a visão apocalíptica de mundo, da destruição, do esvaziamento, mas no livro abordo a possibilidade de recomposição do político, em articulação com as redes.

Acredito na política, como acredito no jornalismo. No jornalismo como força cívica. A democracia, por mais imperfeita que seja, é algo pelo qual temos de nos debater. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.. Buscar algo radicalmente humano é buscar algo político.

Glenn Hubbard: a economia precisa de algo mais do que a receita neoliberal

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O professor de economia da Universidade Columbia diz que o Reaganismo precisa ser repensado e a abordagem de Biden não é coerente

Gillian Tett FINANCIAL TIMES – 26/05/2021 – Publicado no jornal Folha de São Paulo

No final do ano passado, Glenn Hubbard, ex-diretor da escola de administração de empresas da Universidade Columbia e consultor, pensador e planejador econômico veterano do Partido Republicano decidiu correr o risco.

Em um momento no qual muitos pensadores republicanos pareciam ter medo de criticar Donald Trump diretamente, por terem medo de que ele pudesse vencer a eleição de 2020, Hubbard atacou Trump por sua completa falta de um plano econômico tangível.

“[Trump] não tem plano econômico. Não estou dizendo que não gosto de seu plano; estou dizendo que ele não existe”, disse Hubbard. “Talvez ele devesse falar sobre reforma fiscal ou comércio internacional, de uma forma que engajasse nossos aliados”.

O economista lamentou o fato de que o então presidente não tivesse agido dessa maneira.

A crítica poderia parecer história antiga, já que Joe Biden venceu a eleição –e vem produzindo propostas dramáticas de política econômica, como seus planos de gastos públicos de por volta de US$ 4 trilhões (R$ 21,2 trilhões).

Mas não é: enquanto os republicamos se dilaceram em torno de questões não econômicas (como as acusações de fraude eleitoral de Trump), a questão de que políticas econômicas o partido de fato defende está se tornando cada vez mais complicada.

Será que os republicamos deveriam apoiar um projeto de infraestrutura? A dívida pública ainda importa? Como os republicanos se posicionam sobre questões como a desigualdade de renda ou a visão de livre mercado defendida por Milton Friedman? Será que os republicanos deveriam apoiar a política monetária ultrafrouxa promovida pelo Federal

Reserve, o banco central dos Estados Unidos? E será que Larry Summers –antigo assessor econômico da Casa Branca– está certo ao avisar sobre os riscos de inflação?

Nesta entrevista, Gillian Tett, editora especial do Financial Times nos Estados Unidos, propôs essas questões a Hubbard, que está bem posicionado para respondê-las porque foi presidente do conselho de assessores econômicos da Casa Branca no governo de George W. Bush, e este ano lançará um livro, “The Wall and the Bridge”, no qual propõe um novo manifesto.

Em resumo, Hubbard acredita que o neoliberalismo ao estilo da década de 1980 –ou seja, o mantra de Ronald Reagan– precisa ser repensado para o século 21, e que é preciso voltar a Adam Smith. Mas a abordagem, de Biden, ele insiste, não funciona.

Glenn –ou professor Hubbard—, é fantástico podermos conversar hoje, porque estamos lidando com pelo menos três coisas [na economia], neste momento. Os números do PIB (Produto Interno Bruto) mostram que a economia está se recuperando muito rápido da pandemia, o Fed acaba de informar que não pretende elevar os juros, em curto prazo, e o presidente Joe Biden prometeu um imenso pacote fiscal. Assim, qual é sua previsão para a economia dos Estados Unidos?

A reabertura enquanto o vírus recua sempre conduziria a um salto significativo no PIB. Por isso, o curto prazo não é realmente a grande questão. Certamente, surgirá uma alta transitória na inflação, mas acredito que o Fed esteja em geral correto, e que a alta será mesmo transitória. Minha preocupação é quando ouço o Fed falar, como seu presidente Jay Powell fez, sobre querer observar o mercado de trabalho e esperar que ele “volte a se curar”, antes de agir. O problema do mercado de trabalho é, em boa medida, estrutural. E manter a economia aquecida com a ajuda do Fed não vai corrigi-lo.

Quanto à política fiscal, não estamos falando só de um “estímulo”. O primeiro plano de Biden era um estímulo. O American Rescue Plan (plano de estímulos financeiros dos EUA) foi planejado para servir como estímulo. Mas o American Jobs Act e o American Families Plan são, na verdade, um esforço para fazer com que o governo volte a ser grande. Eles precisarão ser pagos, e aritmeticamente não há como pagá-los com impostos sobre os ricos. Não existe dinheiro suficiente para isso. Assim, a conversa honesta com o povo americano sobre política econômica deveria ser uma questão de escolha pública: se as pessoas desejam um governo grande que faça o que o presidente Biden deseja, será preciso pagar por isso.

Você está confiante em que as pressões inflacionárias serão transitórias?

Não se pode confiar nisso inteiramente, mas acredito que se o Fed tivesse uma linha de política monetária mais clara eu estaria confiante em que os aumentos nos preços das commodities são transitórios. O que me preocupa é o Fed pensar que pode se posicionar contra mudanças estruturais no mercado de trabalho por meio de política monetária. Os riscos de inflação em longo prazo podem ser um pouco preocupantes –parte das forças estruturais que seguravam a inflação se relacionava à demografia e ao crescimento dos países emergentes, especialmente a China, e isso tudo está mudando.

Você acha que o Fed deveria estar indicando sua disposição de elevar os juros caso a inflação cresça?

Creio que é improvável que o Fed aja assim. Mas uma das razões de estarmos vendo uma volatilidade implícita tão alta nas taxas e mercados de crédito, com relação ao mercado de ações, é o temor no mercado de títulos de que o Fed talvez esteja dizendo uma coisa mas, caso se veja encurralado, termine fazendo o contrário. Tenha em mente que o Fed adquiriu cerca de metade dos títulos do Tesouro americano emitidos no ano passado, e detém cerca de 40% dos títulos de Tesouro com vencimento em 10 anos ou mais que estão em circulação, e por isso a forma de pensar do Fed quanto a isso, que não parece muito clara para o mercado de títulos, é realmente muito importante.

Larry Summers declarou que o estímulo é grande demais, está acontecendo rápido demais, e criará riscos inflacionários. Você e Larry raramente concordam, mas você concorda com isso?

Eu concordaria quanto ao risco, mas não é esse problema que mais me incomoda. O que me preocupa ainda mais é que, ao tentar criar um governo tão grande estejamos vendo uma matemática orçamentária desonesta. Estamos vendo um cenário no qual alguns poucos anos de gastos terão de ser pagos por muito mais anos de impostos mais altos. Estamos escondendo do povo americano que, se eles desejam um governo que faça essas coisas, a carga tributária terá de ser maior.

Se você considerar a matemática da carga tributária, o aumento proposto no imposto das empresas ou o aumento do imposto sobre ganhos de capital não são, nem de longe, suficientes. A outra coisa estrutural que me preocupa é que vejo reduções de produtividade e reduções de investimento como resultado desses grandes aumentos de impostos.
Biden disse que se a pessoa ganha menos de US$ 400 mil ao ano, seus impostos não subirão.

Bem, isso simplesmente não é verdade, nem em curto prazo e nem em longo prazo. Tome como exemplo o imposto das empresas. Muitos economistas concluíram que o peso dos impostos pagos pelas empresas recai sobre os trabalhadores.

Na década de 1970 e no começo da década de 1980, acreditávamos que era o capital que arcava com a maior parte do custo dos impostos empresariais. Mas não é nisso que os economistas acreditam agora. Assim, não se pode simplesmente afirmar que as pessoas com renda inferior a US$ 400 mil (R$ 2,1 milhões) anuais não arcarão com parte alguma do aumento na carga tributária.

Da mesma forma, no caso do imposto sobre ganhos de capital, o presidente diz que “só vou afetar 0,3% dos contribuintes”, o que quer dizer aqueles que ganham mais de US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões) ao ano e pagam imposto sobre ganhos de capital. Mas esses indivíduos não recebem 0,3% dos ganhos de capital –é provável que eles recebam a maioria deles. Assim, se isso causar qualquer efeito sobre a disposição de aceitar riscos, sobre a poupança e o investimento, temos riscos muito grandes.

Esses efeitos incidem sobre a economia toda e não sobre os 0,3% mais ricos, e por isso em curto prazo a declaração dele é simplesmente uma mentira. E em prazo mais longo ela se torna mentira ainda mais escancarada, porque, se você considerar a matemática orçamentária, haverá um grande rombo na arrecadação. Alguém terá de pagar por isso.

E se esse “alguém” forem as grandes empresas?

Vamos colocar as mudanças nos impostos em dois baldes. Quanto às alíquotas, não acredito que vamos querer elevá-las tanto quanto o presidente está propondo, e certamente não queremos de volta as alíquotas do passado. Quanto à base tributária, o presidente Biden está propondo um aumento de impostos por meio do alargamento da base tributária –e essa é uma mudança muito, muito grande. Antecipo que as companhias venham a reconhecer que terão de pagar um nível mínimo, mas a matemática não vai bater.

E quanto a impostos criados sob a cobertura das ações contra a mudança do clima, por exemplo um imposto sobre o combustível ou um imposto sobre valor adicionado?

Considero que seja uma grande ideia. Há anos apoio um imposto sobre a emissão de poluentes porque acredito que essa seja uma das melhores maneiras de enfrentar a mudança do clima. Sou muito cético quanto a subsídios para projetos verdes, mas, se você estipular um preço para o carbono, os empresários correrão para inovar e para operar de forma mais eficiente, e o imposto não precisa ser regressivo. Não compreendo por que um governo que se define como ao mesmo tempo progressista e ecológico está desconsiderando o único instrumento capaz de ajudar quanto às duas coisas.

Sobre o imposto por valor adicionado —não há questão de que se desejamos aquilo que o governo Biden está sugerindo, ter um imposto sobre valor adicionado é essencial.

Os países europeus, que tem setores estatais muito maiores que o dos Estados Unidos como proporção do PIB, não têm suas despesas financiadas por impostos sobre o capital. Na verdade, em muitos países europeus os impostos sobre o capital são mais baixos do que nos Estados Unidos. E as despesas são bancadas por impostos sobre o consumo.

É desconcertante que o governo Biden não tenha colocado em discussão impostos sobre a emissão de poluentes. Por quê?

Há uma fascinação da esquerda por regulamentação de comando e controle. Mas isso não é nem de perto tão eficiente quanto impor um preço às más práticas, em lugar de subsidiar as práticas supostamente boas.

Por que você acredita que o pacote de Biden esteja prejudicando a produtividade?

Permita-me dar um passo para trás. Algumas discussões sobre a estagnação secular se referem à insuficiência da demanda agregada. Outra escola de pensamento acredita que estruturalmente tenhamos um problema de crescimento da produtividade, em relação ao “supply side” da economia e ao potencial da economia para crescer. É esse aspecto que me interessa. Os planos de impostos são claramente um desincentivo ao investimento, já que a falta de aprofundamento do capital explica o baixo crescimento da produtividade e os aumentos no imposto sobre o ganho de capital podem reduzir o interesse em aceitar riscos. Certamente não há coisa alguma que melhore a produtividade nos planos de Biden, e muita coisa que a desencoraja.

Não é só a política tributária. Preocupa-me que a política monetária possa criar empresas zumbis –um ambiente de taxas de juros baixíssimas que sustenta empresas de baixa produtividade. Para crédito do presidente Biden, partes do que ele está propondo e se relaciona à infraestrutura real poderiam, de fato, elevar a produtividade, mas essas propostas são apenas uma pequena parte daquilo a que ele está dando o nome de infraestrutura.

A possibilidade de uma crise futura de dívida o preocupa?

Bem, nós somos o país que emite a moeda de reserva mundial, e realizamos nossa captação em nossa moeda, e por isso acredito que uma doença lenta mas duradoura é a consequência mais provável. Para oferecer um exemplo prático, o fundo do Medicare pode esgotar seu dinheiro dentro de um ano ou pouco mais, e o da previdência social em cinco anos ou pouco mais. Isso forçará discussões em Washington sobre se o público deseja ter um governo tão grande.

Assim, você não antecipa uma crise de dívida propriamente dita, por conta do status do dólar como moeda de reserva?
Não no momento.

Os republicanos deveriam cooperar para criar um projeto de lei bipartidário?

Seria possível obter apoio bipartidário a uma nova “GI Bill” [lei posterior à Segunda Guerra Mundial que financiava a educação dos veteranos de guerra], que ajudaria os trabalhadores a se prepararem para o mundo da Covid, por exemplo, com apoio a faculdades locais.

Não estou falando de ensino superior gratuito em faculdades locais, mas em apoio “supply side” —melhorar sua capacitação para treinar pessoal. Mas não haverá apoio bipartidário à ideia de que precisamos deixar de lado o sistema de seguro social sustentado pelo trabalho em troca de uma rede de segurança que cubra a pessoa do berço ao túmulo.

O governo realmente causou confusão nesse aspecto ao definir o que está fazendo como um projeto de infraestrutura. Infraestrutura não precisa ser só estradas, pontes e aeroportos –pode também incluir banda larga. Mas não serviços de saúde.

O apoio a crianças e a idosos é parte da “infraestrutura?”

Não. Esses são gastos sociais.

Uma das maneiras interessantes pelas quais você enquadra esse debate é pelo contraste entre Keynes e Hayek, ou seja, se o objetivo é escorar o sistema atual ou encorajar uma transformação mais rápida. O que você quer dizer com isso?

Pode-se pensar na Covid em termos de uma resposta keynesiana –tivemos um colapso na demanda. A resposta keynesiana não é fantasiosa. Mas Hayek diria que o mundo novo posterior à Covid não se parecerá com o mundo velho, e por isso qual é o motivo de apoiar cada empresa? Os dois estão certos. Fizemos um bom trabalho de política pública quanto à parte keynesiana. Mas nos saímos pior com relação a Hayek.

Qual é sua opinião sobre o conceito de estagnação secular de Larry Summers?

Há uma cena em “Um Conto de Natal”, de Dickens, em que Scrooge pergunta algo como “isso são sombras de coisas que são ou de coisas que poderiam ser?” Sinto-me da mesma maneira com relação às descrições de Bob Gordon sobre a economia dos Estados Unidos –Larry e Bob estão falando sobre sombras de coisas que poderiam ser, caso nossas políticas públicas forem ruins o suficiente, para retornar à nossa discussão sobre medidas que prejudicam a produtividade. Mas não acho que isso seja inevitável.

Todos os empreendedores com quem converso estão bem otimistas sobre a fronteira tecnológica da produtividade. Se existe uma razão para pessimismo, é mais quanto à capacidade e disposição do sistema político para permitir que o crescimento da produtividade aconteça livremente.

Você acredita que o Partido Republicano saiba o que defende em termos econômicos?

Creio que essa seja uma grande questão em aberto. Dou ao ex-presidente [Trump] crédito republicano clássico por coisas como as mudanças nos impostos das empresas ou a análise de custo/benefício da regulamentação; mas é evidente que coisas como o protecionismo e, a hostilidade à imigração não ideias republicanas clássicas. Para o partido atual, creio que exista uma sensação do que foi perdido mas não do que precisa ser ganho. A economia como um todo precisa de algo mais do que a receita neoliberal.

O que virá a seguir? Um dos sabores é o protecionismo –medo do comércio internacional e medo dos trabalhadores imigrantes. Outra abordagem que os republicanos poderiam adotar seria a de passar do neoliberalismo ao liberalismo (com L minúsculo), recuando a Adam Smith. Ele era inimigo do mercantilismo —era isso que o enraivecia em “A Riqueza das Nações” — e estava muito interessado na capacidade de competir de cada economia.

Assim, uma nova agenda republicana poderia fazer mais para ajudar as pessoas a competir –isso seria mais parecido com Lincoln, ou com o “GI Bill” de Roosevelt. Mas não vejo o partido avançando de fato nessa direção.

Tett: E quanto ao segundo livro de Smith, “A Teoria dos Sentimentos Morais?”

Smith se referia à “simpatia mútua”, o que hoje definiríamos como empatia. Os empreendedores e líderes de negócios progressistas pensam desse modo. Não vejo as questões ecológicas, sociais e de governança como inimigas dos acionistas –não estamos falando de Milton Friedman contra o socialismo -, e sim como uma questão do que realmente serve aos interesses da empresa em longo prazo. Recorde que Smith protestou contra a East India Company britânica, que ele via como um câncer. Ele acreditava que é necessário ser muito cuidadoso na estruturação social das corporações. Os empreendedores atuais precisam compreender que a estrutura corporativa é algo que a sociedade lhes dá. Na verdade, o capitalismo é algo que nos é dado pela sociedade. Se o público não o quiser, ele não acontece.

Vou lançar um livro dentro de algumas semanas que enfatiza o aspecto social e cultural dos negócios e das finanças e economia, e argumenta que os líderes empresariais precisam deixar para trás sua visão de túnel e começar a usar a visão lateral. Você concorda com isso?

Sim. Quando leciono sobre economia política, lembro aos alunos que grandes pensadores como Friedman, Hayek e Smith escreveram para as épocas em que viveram. Friedman e Hayek estavam escrevendo em resposta a um sistema econômico corporativista ineficiente e desleixado, e o fascismo os horrorizava. Se Ronald Reagan estivesse entre nós hoje, não creio que ele seria o Reagan da década de 1980. Se Friedman e Hayek estivessem entre nós hoje, eles talvez tivessem visões diferentes. Mudanças de contexto.

Friedman também estava operando quando as pessoas presumiam que podiam terceirizar as decisões sociais difíceis para o governo, e quando não existia transparência radical e os consumidores, clientes e empregados não eram capazes de ver claramente o que as empresas estavam fazendo. Isso faz diferença?

Sim. Se Friedman estivesse entre nós, ele nos lembraria, corretamente, de que existem grandes externalidades sociais que nenhuma empresa é capaz de corrigir. Mas não existe motivo para que os empreendedores não possam ser líderes. Quando o Plano Marshall foi aprovado, não foi porque o Congresso, em sua imensa sabedoria, decidiu fazer alguma coisa. Foi porque a comunidade de negócios se reuniu e disse “meu Deus, vamos ter comunismo na Europa Ocidental, e o que isso pode causar ao nosso sistema econômico?” Eles pressionaram o Congresso. Compreendo que os empresários atuais tenham medo. Mas isso não é desculpa para não agir. Em muitas companhias, os trabalhadores mesmos os pressionarão a agir.

Estamos começando a ver um nível de cooperação por parte das companhias que era inimaginável na era de Thatcher e Reagan. Isso vai durar?

Creio que sim, e Hayek teria celebrado essa resposta coordenada, porque ela veio de baixo. Se você comparar a produção de vacinas, em geral uma atividade do setor privado, à distribuição de vacinas, em geral uma atividade do setor público, acho que fica claro qual das duas pareceu funcionar melhor.

Existem coisas que poderiam ajudar quanto a isso. Imagine se Biden criasse centros de pesquisa aplicada em todo o país, vinculados às universidades. Isso poderia ajudar as companhias a resolver problemas localizados, e também resolveria grandes problemas como o das vacinas.

Por que ninguém no Partido Republicano está propondo uma agenda política positiva como essa?

Acredito que isso vai acontecer –mas por enquanto existe um vácuo. Biden não será derrotado pelo niilismo – o presidente Trump perdeu por mais de sete milhões de votos, não é um resultado assim tão próximo. Por isso as pessoas vão terminar por propor políticas novas, já que o que mais o Partido Republicano poderia fazer? A outra escolha seria retornar ao neoliberalismo escancarado, e creio que nem Ronald Reagan conseguiria se tornar presidente hoje se essa fosse sua plataforma!

Você se preocupa por talvez estarmos vivendo em uma bolha em termos de questões ecológicas, sociais e de governança?

Sim, de diversas maneiras. Estamos correndo o risco de política industrial e de rentismo, com subsídios a todo tipo de “coisa verde”. Também me preocupo com a maneira pela qual os presidentes-executivos lidarão com isso – ninguém quer que o presidente de uma empresa dedique metade de seu tempo a preocupações sociais.

E quanto ao protecionismo? Os republicanos serão capazes de apresentar uma voz alternativa, quanto a isso?

Espero que sim, mas não tenho certeza. Como quase todos os economistas exceto talvez Peter Navarro, acredito no livre comércio. Assim, por que algo que parece tão óbvio em qualquer curso de introdução à economia termina por não ser popular junto ao público?

Creio que por dois motivos. Um é que sempre que o professor de introdução à economia falava dos ganhos propiciados pelo comércio externo, ele tinha a ideia de que haveria perdedores, mas que uma compensação ocorreria naturalmente –o que não aconteceu.

Segundo, o livre comércio é um daqueles exemplos, como o do velho padrão ouro, de sistema que funciona de fora para dentro. É preciso aceitar as regras do jogo, e depois você se ajusta. Creio que precisemos recuar a um período em que se possa dizer, olha, é preciso compreender os grupos nacionais de interesse. Isso talvez signifique muito mais apoio ao treinamento, ou poderia significar garantia de salários, poderia ser muitas outras coisas além de simplesmente dizer “livre comércio”.

Assim, o que importa é tentar falar de livre comércio considerando as duas metades das ideias de Adam Smith.

Sim, exatamente. Mesmo Smith, o campeão da abertura, não teria aceitado que áreas inteiras [de uma economia] simplesmente fossem deixadas para trás. Smith falava muito sobre lugares –ele disse algo como “um homem é um tipo de bagagem difícil de carregar”, o que significa que é preciso considerar lugares como um todo, e não só empregos… considerar a cultura.

Ei, uma combinação de antropologia e economia!
Exatamente, duas ciências sociais, farinha do mesmo saco.

O que está acontecendo com a Economia como profissão? Com questões como o debate em torno das críticas de Summers às políticas de Biden, será estamos vendo uma guerra tribal entre economistas? A Economia está sendo repensada? Biden está se afastando dos economistas?

Bem, vou começar com boas notícias: os jovens astros da profissão [Economia] tendem hoje a ser pessoas que discutem grandes problemas, que variam do desenvolvimento à política monetária e mercados de trabalho, usando novos recursos e técnicas. Acho que isso é completamente saudável.

Creio que o governo precisa de pessoas com grandes ideias sobre macroeconomia. Se eu estivesse no lugar de Janet Yellen, conversaria com economistas que continuem a me dar essa perspectiva, mas também obteria perspectivas micro do mercado financeiro e do mercado de trabalho. Não é preciso haver uma guerra, portanto. Mas me preocupa a maneira pela qual o governo Biden fala de políticas na formulação das quais não há muito envolvimento de economistas. Não é o primeiro governo em que vejo isso acontecer –mas é uma preocupação para a Economia como profissão.

Qual é o próximo passo para você? Você vai tentar criar a nova visão republicana sobre a economia?

Sim –mas não por ser republicana, e sim porque acredito que seja uma visão importante para as políticas públicas.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Entraves políticos

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Numa sociedade marcada pela concorrência e pela competição crescentes entre os agentes econômicos, os setores produtivos se sentem pressionados pelo incremento de seus lucros, buscando constantemente novos instrumentos de acumulação, reduzindo seus custos, investindo em tecnologia, máquinas e novos modelos de negócio. O ambiente da economia globalizada exige que todos os atores produtivos, empresas, trabalhadores e Estados, se reinventem, absorvam novas tecnologias, desenvolvam maior flexibilidade e agilidade, sob pena de perder espaços neste mundo altamente competitivos.

Neste ambiente de constantes transformações, percebemos um descompasso entre as questões econômicas e as respostas políticas. A lógica da economia prescinde de flexibilidade e agilidade, exigindo rapidez dos setores econômicos e produtivos, enquanto os setores políticos são mais lentos, exigem discussões e reflexões, estimulando debates e conversações. A conjunção dos setores é fundamental, compreender as diferenças auxilia na construção de um projeto de país, onde os setores, econômicos e políticos, devem caminhar em prol do desenvolvimento dos setores produtivos e na melhoria do bem-estar social da comunidade.

O cenário internacional exige a construção de um consenso econômico, social e político, como forma de angariar instrumentos para competir no novo mundo dos negócios. Diante deste ambiente de grande competitividade global, os atores econômicos e políticos precisam construir um ambiente saudável, definindo o papel de todos os agentes, mostrando que a dicotomia entre Estado versus Mercado é equivocada, gerando conflitos, ressentimentos e desgastes políticos. Os países que conseguiram ultrapassar a armadilha da renda média e conseguiram alçar a posição de uma sociedade desenvolvida, foram capazes de construir um consenso político entre todas as elites econômicas.

O desenvolvimento econômico é um assunto político que precisa da atuação de todos os atores sociais e políticos, com isso, cabe aos líderes a construção de um ambiente salutar para pensar a sociedade, imaginar os rumos e os passos necessários e fundamentais para que, num futuro mais próximo, a sociedade consiga vislumbrar novos espaços de desenvolvimento econômico. Neste desafio, precisamos agregar esforços de todos os setores, estimulando a participação das universidades, dos centros de pesquisas, os setores governamentais, os empresários, sindicatos, dentre estes.

Um dos grandes equívocos da sociedade é imaginar que o desenvolvimento econômico precisa apenas de lideranças econômicas e produtivas, neste ambiente é fundamental a construção de lideranças políticas com visão mais ampla, associados por profissionais capacitados, conscientes que vivemos numa sociedade dependente e periférica, criando consensos internos em prol da transformação social, estruturando os setores econômicos, preservando o meio ambiente, reduzindo as desigualdades sociais, aperfeiçoando a governança, melhorando os indicadores educacionais, capacitando os setores da saúde, consolidando as instituições e fortalecendo a democracia.

Numa sociedade marcada por grandes desigualdades como a brasileira, os desafios são imensos e crescentes, exigindo de todos os setores da sociedade um esforço que demanda muitos anos ou décadas, um verdadeiro projeto nacional, mesmo com a alternância de grupos políticos diferentes comandando o executivo, o projeto nacional deve continuar e sempre sendo aperfeiçoado, visando o objetivo do desenvolvimento econômico e da redução das desigualdades sociais.

Na contemporaneidade, percebemos na sociedade brasileira que os grupos políticos e forças econômicas estão sempre em confrontos abertos, criando espaços de desconfianças entre os atores sociais, o resultado deste ambiente é um incremento de inseguranças, incertezas e instabilidades. Neste ambiente de confrontos primários, agressividades e violências generalizadas, como vivemos na atualidade, o país caminha a passos largos a perpetuação da insignificância global, mesmo sendo dotados de grande potencial vivemos na indignidade e das desigualdades que nos aproximam da incivilidade e do retrocesso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/05/2021.

A política do século 20 se foi para sempre, por Yascha Mounk.

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Em algumas democracias, partidos social-democratas parecem estar prestes a desaparecer por completo

Yascha Mounk O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia”.

Folha de São Paulo, 25/05/2021

Nos últimos anos uma sucessão interminável de autores previu a morte da social-democracia.

Eles tinham razão, em parte: os tempos áureos da social-democracia nunca vão voltar. Mas também estavam em parte errados: outros partidos-ônibus, como os democratas cristãos, também se encaminham para a lata de lixo da história.

Na era do pós-Guerra, partidos social-democratas conquistaram uma grande parcela dos votos em virtualmente todos os países europeus, em partes da América Latina e em países que vão da Austrália a Israel. Eles eram um dos dois principais “Volksparteien”, ou “partidos do povo”, na França, na Alemanha e no Reino Unido. Dominaram a política nos países escandinavos.

Desfrutaram períodos no poder no Reino Unido, na Austrália e em boa parte da América Latina. Na virada do século, ainda parecia provável que exerceriam um papel crucial no século 21.

Desde então, os partidos social-democratas se enfraqueceram significativamente em quase todas as grandes democracias. Em algumas delas, parecem estar prestes a desaparecer por completo.

Na França, o Partido Socialista se viu reduzido a 25 cadeiras na Assembleia Nacional e mal tem chance de participar do segundo turno das eleições presidenciais do próximo ano. Na Alemanha, a parcela do voto dada ao SPD encolheu
pela metade ao longo de 20 anos. No Reino Unido, Tony Blair ainda é o único político trabalhista em mais de meio século a ter conquistado um mandato para governar, e o Partido Trabalhista agora está sendo eviscerado em sua base tradicional do nordeste proletário do país.

Na Escandinávia, os social-democratas deixaram há muito tempo de ser o partido naturalmente governante. E, do Peru a Israel, os partidos tradicionais de centro-esquerda foram eviscerados.

Existem algumas razões específicas que motivam os estertores de morte da social-democracia. O proletariado deixou de ser um contexto social coeso. Como observou o político trabalhista britânico Douglas Alexander após a última eleição no Reino Unido: “Oferecemos aos eleitores um passeio até o museu local de mineração. Eles queriam ir à EuroDisney”.

Em consequência disso, partidos de centro-direita, como o Conservador britânico, ou de ultradireita, como o Rassemblement Nationale francês, hoje recebem a maioria dos votos da classe trabalhadora.

As previsões amplas se concretizaram: a social-democracia está morta. Mas, como vamos descobrir, os social-democratas não passavam da vanguarda de uma tendência muito mais ampla: o declínio e queda dos partidos-ônibus do século 20 de qualquer vertente ideológica.

Numa escala de tempo mais longa, os democratas cristãos vêm sofrendo um declínio semelhante. Os Republicanos franceses estão se saindo apenas marginalmente melhor que o Partido Socialista.

Os democratas cristãos alemães caíram para 23% nas sondagens atuais, atrás dos Verdes. Na Itália, a Lega, de ultradireita, que tem raízes separatistas, é hoje o principal partido de direita, seguida pelo Irmãos da Itália, de ultradireita, que tem raízes fascistas. E, do Brasil aos Estados Unidos, os partidos tradicionais de centro-direita foram capturados ou derrotados por populistas de ultradireita.

As razões disso correm em paralelo com a razão que explica a queda dos social-democratas. Assim como restam poucos proletários no século 21 (e os que existem tendem a ser culturalmente de direita), também restam poucos burgueses no século 21 (e aqueles que existem tendem a ser culturalmente de esquerda).

Mas não é apenas que os dois ambientes tradicionais das principais famílias partidárias europeias estejam desaparecendo —é que as perguntas para as quais eles trazem respostas deixaram de figurar no epicentro da política.

Quatro ou cinco décadas atrás, uma pergunta simples lhe permitiria adivinhar em quem votara uma pessoa na França ou na Suécia, no Peru ou na Austrália: “Você preferiria ter um Estado de bem-estar social maior e pagar mais impostos ou ter um Estado de bem-estar social menor e pagar menos impostos?”.

Aqueles que optavam pelo Estado de bem-estar social maior —predominantemente mas de modo nenhum exclusivamente proletários— provavelmente votavam em social-democratas. Os que optavam por impostos mais baixos – predominantemente mas de modo nenhum exclusivamente burgueses—provavelmente votavam em conservadores ou democratas cristãos.

Hoje o campo de batalha principal da política passou das questões econômicas para as culturais.

Questões relativas a alíquotas de impostos e o Estado de bem-estar social são menos cruciais para a política do que eram no passado. Portanto, se você quiser saber se um eleitor se identifica como sendo de esquerda ou direita, provavelmente terá que lhe fazer algumas perguntas culturais sobre imigração, patriotismo ou possivelmente sobre a confiança nas instituições de elite.

Pelo fato de seus eleitorados tradicionais terem visões divergentes sobre essas questões culturais, os partidos-ônibus tradicionais têm grande dificuldade em desenvolver um perfil claro em relação a essas questões. E, por isso, pelo menos em países ricos, eles estão sendo substituídos rapidamente por movimentos que foram fundados para responder a questões culturais, não econômicas.

A política do século 21 tem muito mais chances de ter a cara da batalha de Emmanuel Macron contra Marine Le Pen, ou do Partido Verde alemão contra o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha, do que de parecer uma disputa entre social-democratas e democratas cristãos.

Quer você ame ou odeie o fato, a política do século 20 ficou para trás. As tentativas de ressuscitá-la acabarão inevitavelmente em fracasso.

É enorme equívoco associar o auxílio à redução eficaz da pobreza, por Cecília Machado.

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Se objetivo do auxílio fosse combater a Covid-19, ele deveria vir acompanhado por medidas mais severas de distanciamento social, o que não ocorreu

Cecília Machado Economista-chefe do Banco BOCOM BBM e professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

Folha de São Paulo, 25/05/2021

Depois de muitos anúncios sobre a reformulação da rede de assistência social, com direito a aumento do valor do benefício médio do Bolsa Família e registro de informações cadastrais via aplicativo, a semana passada terminou com a defesa —mais uma vez— da renovação do auxílio, em agosto deste ano, como a forma mais eficaz de combater uma possível terceira onda de Covid-19, o elevado desemprego e o aumento da pobreza.

Há, entretanto, muitas dúvidas sobre uma eficácia tão ampla do programa, e sua renovação por uma terceira vez parece indicar, ao contrário, despreparo e falta de planejamento no combate aos impactos adversos da crise sanitária na economia. Ou então ausência de compromisso com a redução das desigualdades sociais, já que há diversas vedações à distribuição de valores e benefícios em ano de eleição, e qualquer reformulação de programas sociais precisaria começar a valer ainda neste ano.

Primeiro, fosse o auxílio um programa estabelecido para mitigar a transmissão do vírus —garantindo a segurança alimentar das famílias em momentos de escalada da pandemia, quando o distanciamento social se torna necessário e a renda das famílias encolhe—, deveria ter sido pago nos momentos de recrudescimento da crise sanitária e retirado quando a economia reabrisse.

Mas, no primeiro trimestre do ano, quando a pandemia escalava para alcançar o seu pior momento —4.249 mortes, em 8 de abril—, a população enfrentava os efeitos adversos do distanciamento social sem nenhuma ajuda do governo.

Um auxílio emergencial que não responde ao número de caso e mortes ou às taxas de internação hospitalar —todos eles termômetros da crise sanitária— não cumpre o propósito de garantir subsistência das famílias quando a crise se amplifica. Pior, estabelecer uma transferência quando a mobilidade das pessoas segue sem restrição não casa com o objetivo de reposição de renda decorrente, justamente, do distanciamento.

Se o objetivo do auxílio fosse combater a Covid-19, ele deveria vir acompanhado por medidas mais severas de distanciamento social, o que não ocorreu.

Também vale lembrar que, ao fim do calendário de pagamento do atual auxílio, em agosto, muitos analistas estimam que grande parte da população já estará imunizada. São cerca de 600 milhões de doses contratadas até o fim do ano, tornando a renovação do auxílio, pelos motivos estritamente sanitários, menos relevante.

Tampouco é claro que o auxílio seja eficaz no combate ao problema do desemprego. Muitos indicadores apontam para a retomada da economia sem a recuperação do emprego, e é possível que o mundo pós-pandemia tenha uma confirmação do mercado de trabalho bastante distinta, já que o uso de tecnologias favorece mais que proporcionalmente trabalhadores mais qualificados e substitui serviços oferecidos pelos menos qualificados.

Mesmo em países que já se encontram avançados na vacinação e onde a retomada da economia é evidente, a taxa de desemprego ainda não retornou aos níveis pré-pandemia.

Ao que tudo indica, o problema do desemprego tem raízes mais estruturais, ainda que precipitadas pela conjuntura da pandemia, e a mera transferência de renda será incapaz de resolvê-lo, já que a inserção produtiva da mão de obra exige, ao contrário, um conjunto muito diferente de ações, como qualificação e treinamento dos trabalhadores sem emprego.

Por fim, é enorme equívoco associar o auxílio à redução eficaz da pobreza, pois, ainda que o orçamento do programa tenha sido expressivo, sua focalização foi baixa. Dito de outra forma, teria sido possível reduzir ainda mais a pobreza com maior direcionamento de recursos e ações para aqueles que realmente precisam.

Programas de combate à pobreza que fomentam a mobilidade social, ao contrário do auxílio, precisam também vir acompanhados da provisão de serviços, além de priorizar grupos onde os benefícios da assistência são maiores e mais persistentes no tempo, como crianças.

Faltam objetivos claros que justifiquem a renovação de um programa de baixo custo-efetividade, pouco relevante para frear a crise sanitária, combater o desemprego e dar fim a pobreza. Uma nova rodada do auxílio —sem maiores discussões— mostra de forma bastante clara que há dificuldades na definição de diagnósticos, prioridades e soluções para os problemas que emergiram e se amplificaram com a pandemia.

‘Ciberpopulismo não é fenômeno provisório, está instalado’, diz filósofo

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Em seu primeiro livro, Andrés Bruzzone afirma que democracia terá de lidar com o encontro do populismo tradicional com a tecnologia

Entrevista com
Andrés Bruzzone, filósofo e comunicador

Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo – 23/05/2021.

O filósofo e comunicador Andrés Bruzzone, de 57 anos, vive seu segundo confronto com a armadilha da polarização na política. Brasileiro nascido na Argentina, nutre desgosto pela divisão na sociedade que se aprofundou durante os anos de kirchnerismo no país vizinho, a partir da década de 2000. Ele diz que vê, há pelo menos cinco anos, o mesmo ocorrer no Brasil e tem poucos motivos para ser otimista em relação às eleições de 2022.

Esse desconforto o levou à pesquisa para o recém-lançado livro Ciberpopulismo (editora Contexto), um ensaio sobre o uso da tecnologia e das redes sociais pela extrema direita. Em entrevista ao Estadão, Bruzzone diz que o fenômeno do populismo digital veio para ficar e que, enquanto partidos democráticos sofrem para se adaptar ao novo cenário, haverá menos espaço para moderação. É por isso que ele se diz cético quanto à chamada “terceira via” no Brasil. “A minha leitura é de que estão fora do jogo, o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.”

O tom do seu livro parece pessimista. O sr. diz que expectativas frustradas – na economia, nas condições de vida em sociedade – explicam o surgimento da onda populista à direita, mas os movimentos democráticos ainda não têm uma resposta para isso. Ou têm?

Eu realmente não sou otimista. De alguma maneira, acho que a democracia está encontrando mecanismos para se proteger – assim como a mídia tradicional, uma vez que a tendência digital estava colocando em risco o próprio jornalismo. A democracia, nesse sentido, tem mecanismos de defesa. Mas não sou otimista. Nós votamos com três órgãos do corpo. Com o coração naquilo que amamos – nos identificamos com uma pessoa, um partido. Votamos com o cérebro também, fazemos escolhas racionais. Essas duas coisas funcionam, mas o populismo age diretamente no terceiro órgão: a tripa, as entranhas. O populismo apela de maneira mais intensa para paixões negativas, o medo e o ódio. São muito intensas, muitas vezes mais do que as paixões positivas. As redes sociais são muito mais eficazes para odiar do que para gostar. Há muito mais haters do que lovers. Num ambiente polarizado e populista, olhar para as taxas de rejeição passa a ser mais importante do que para as taxas de adesão. Quando se juntam esses dois fenômenos – das mídias digitais e do populismo – e os dois apontam para o ódio, para frustrações, fúria e canalização do medo, é muito difícil fugir da armadilha.

Parece mais fácil usar as redes sociais para promover ódio e desinformação. As instituições democráticas não conseguem aprender com as ferramentas do extremismo?

Idealmente, sim. Não consigo encontrar motivos estruturais para que isso não seja possível. Ocorre que, até agora, não vemos isso. Houve a fase do otimismo digital, a Primavera Árabe e discussões sobre a possibilidade do voto direto (em leis). Isso ainda não está acontecendo de maneira consistente. Ainda que seja possível em teoria, não vemos na prática. Com certeza há uma infinidade de ferramentas para avaliar o trabalho dos eleitos, e uma militância digital claramente democrática muito forte. Há uma fiscalização nas redes sociais. Quando um ex-secretário mente numa CPI, isso se espalha na rede, não há como esconder. Há um ganho de transparência, e isso não deveria nunca significar menos democracia. Talvez seja necessário ainda algum tempo para a democracia e suas instituições aprenderem a lidar com essa realidade nova. Isso ainda está por ser visto.

O ciberpopulismo é apenas o uso da tecnologia para promover a polarização, a mesma que já vimos no século 20, ou há mais do que isso?

Ele (o ciberpopulismo) nasce desse encontro entre o populismo tradicional e a tecnologia, que é muito recente. Ele nasce disso, mas provoca uma mudança estrutural. Primeiro se aproveita de mudanças nos sistemas de meios de comunicação e de partidos políticos e, ao mesmo tempo, acentua essas mudanças estruturais. Acho que é muito mais do que um fenômeno contingente. Não é, provavelmente, um fenômeno provisório e, sim, algo que está instalado. A democracia vai precisar lidar com esse encontro do populismo com as possibilidades que a tecnologia coloca à disposição dos especialistas em campanhas políticas.

Mais comunicação é um problema para a democracia?

É um paradoxo. Por enquanto, o maior acesso a informações está enfraquecendo e ameaçando as democracias. Mas não devia. O que provavelmente está faltando é o poder fiscalizador do Estado, a regulamentação dos processos de produção e distribuição de informações. Eu não acredito, e não acho que seja sustentável hoje, que uma desregulação total seja positiva.

O sr. cita no livro o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que diz que o populismo de esquerda não tem chance de alcançar o apelo populista da direita. Concorda?

Eu não concordo com nenhum prognóstico tão taxativo. Acho que não. Em uma primeira fase, vimos a extrema direita se armar muito bem digitalmente, conseguiu canalizar uma série de frustrações. Ela fez com que partes da população, que estavam invisíveis, fossem visibilizadas – isso nos EUA, França, Brasil. Havia pessoas pouco importantes politicamente porque não tinham meios de participar. O que a extrema direita viu foi que poderia dar a essas pessoas um horizonte de representação, fazê-las visíveis. E aí veio essa onda que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Não acho que partidos de centro e de esquerda não consigam também aprender. Acho que, no Brasil, estamos vendo um momento muito preocupante, mas, ao mesmo tempo, interessante. A esquerda brasileira está aprendendo a usar redes sociais, vemos isso no cotidiano. E vem aí uma eleição que vai ser muito pautada pelos sistemas digitais de construção de discurso. Cabe a cada um apostar a favor ou contra Tony Blair. (A eleição) terá, claramente, um dinâmica de ciberpopulismo. Será uma polarização extrema, na qual quem eu odeio será tão importante quanto quem eu amo. O Brasil vai viver essas polarizações sobrepostas.

O sr. cita a possibilidade incerta da construção de um populismo de esquerda, que não tenha vocação antidemocrática. Acha que essa é uma porta de saída viável para manter a democracia?

Essa é uma questão extremamente delicada. Polarização, assim como populismo, é uma palavra que nomeia muitas coisas diferentes. Precisamos tomar cuidado com essa noção. Na discussão sobre a Terra ser redonda ou plana, por exemplo, não existe polarização e não existe ponto médio entre os dois. De um lado há a ciência, e do outro um pensamento não racional. Não existem polos equivalentes quando, de um lado, há uma força antidemocrática. Não há nenhuma equivalência entre qualquer candidato democrático e outro que quer explodir o sistema. Pode existir polarização, mas não existe equivalência entre os dois. Às vezes se pensa que a polarização leva a um equilíbrio, ao colocar uma situação de equivalência entre dois polos, e isso não é verdade. Existe um limite, que é o do jogo democrático.

Dentro dele, tudo. E fora dele, nada. Essa deve ser, entendo eu, a posição de qualquer democrata que acredita no pluralismo. Isso te leva a um paradoxo. Você é obrigado a votar, muitas vezes, em um candidato que você detesta – mas detesta dentro do jogo democrático. A polarização te leva a essas situações. O polo democrático é sempre melhor para a democracia. Não há justificativa de qualquer pessoa com o mínimo de decência cívica para apoiar um candidato que claramente é antidemocrático. O que vai marcar o jogo da próxima eleição é a equação de quantas pessoas apoiam cada um dos dois candidatos e quantas pessoas os detestam, a ponto de votar em alguém que normalmente não votariam.

Em um cenário conflagrado como esse, o ‘centro democrático’ ou a chamada ‘terceira via’ perdem? Têm alguma chance de ganhar discussões?

A minha leitura é de que estão fora do jogo – o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, entre doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.

Existe alguma saída para a armadilha do ciberpopulismo?

Eu diria que somente com um acordo muito claro das forças democráticas. O Brasil tem uma vocação de diálogo e contemporização muito maior, por exemplo, do que a Argentina. É um país federal, em que o poder está mais fragmentado. Faço essa comparação por dois motivos: porque conheço o modelo argentino e porque é um lugar interessante para entender o que pode acontecer quando uma polarização se impõe e perdura. Eu acho que um pacto democrático seria a única saída para esta situação, essa armadilha. Havendo esse pacto entre as forças de esquerda e direita democráticas, dá para se deixar de fora os antidemocráticos. É preciso fomentar o diálogo, procurar entender e abrir espaço para o diferente. Aprender a escutar e promover escuta. É muito difícil construir um pensamento coletivo se, mesmo com diferenças à direita e à esquerda, os que temos uma vocação sinceramente democrática não conseguirmos acordos básicos. Tem alguém querendo tacar fogo no circo, não podemos deixar. Se o circo queimar, estamos todos incinerados.

O fim da unipolaridade, por Mathias Alencastro,

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Investida da China mudou cenário da América Latina

Folha de São Paulo, 24/05/2021

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Nenhuma dimensão da diplomacia contra a pandemia parece tão estruturante quanto o avanço da China na América Latina. Após atingir um milhão de mortos e com apenas 3% da população vacinada, a região depende, na quase totalidade, da alavancagem econômica e da cooperação sanitária promovida por Pequim para ter chance de sair da crise.

O caso da Colômbia, fortaleza de Washington e membro da OCDE, é o mais ilustrativo desse novo momento geopolítico.

A China enviou milhares de insumos e de ventiladores empacotados em campanhas com mensagens de Xi Jinping. Arrasado por uma explosão social, o governo de Bogotá não resistiu à operação de charme e desviou de décadas de alinhamento ocidental em nome da nova amizade.

A solidariedade chinesa é calibrada para atingir objetivos práticos. No caso do Paraguai e de Honduras, a China está aproveitando a pandemia para aprofundar o isolamento de Taiwan, independente desde 1949. Assunção chegou perto de aprovar o fim da aliança com Taipé no ano passado, e Tegucigalpa ameaça seguir o mesmo caminho.

Não deixa de ser curioso que a China avance com tanta facilidade numa região historicamente associada aos EUA.
Afinal, uma das premissas das relações internacionais é que uma superpotência precisa, primeiro, controlar a sua própria sub-região. Essa visão tem orientado o projeto hegemônico dos EUA nas Américas desde a Doutrina Monroe.

Como explicar a crise do sistema unipolar? Entre outros fatores, a diplomacia de “alinhamento automático” promovida por Donald Trump e Jair Bolsonaro criou a ilusão de que Brasília atuaria como o primeiro defensor dos interesses de Washington na América Latina.

Essa aposta desastrada nos talentos de Ernesto Araújo e de Eduardo Bolsonaro abriu espaço para a China. Na ausência do Brasil e de um poder moderador como o Mercosul, Pequim teve total liberdade para ampliar suas parcerias bilaterais. A administração Biden corre para reverter o desgaste, mas a América Latina parece ter entrado de forma irreversível numa nova era. Resta saber como os governos latino-americanos vão tirar proveito da competição entre superpotências. O balanço atual é cheio de contrastes.

Enquanto o Chile conseguiu emergir como o “Israel do Sul Global” da vacinação graças à cooperação com a China, Bolsonaro continua infantilizando a política externa brasileira. As últimas semanas foram dedicadas a superar mais um surto verborrágico do presidente, que associou, de novo, a pandemia a uma “guerra química” dos chineses.

Outros já experimentam mudanças nos sistemas políticos. A virada autoritária do governo de extrema direita de El Salvador, criticada pelo governo Biden, não parece trazer constrangimento à China. Da mesma forma, a aproximação do país com Honduras ganhou outro significado desde que o irmão do presidente Juan Orlando Hernández foi condenado por tráfico nos EUA em 2019.

Num passado recente, Pequim deu respaldo decisivo a um projeto de poder antidemocrático na Venezuela. Para os progressistas, o desafio será fazer com que a presença da China potencialize a autonomia da América Latina sem agravar a crise democrática que corrói a região.

Projeto da Câmara é incentivo à degradação ambiental, por M. H.Tavares.

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A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro

Folha de São Paulo, 19/05/2021

Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.

Patrocinado pelo centrão, saiu da Câmara rumo ao Senado o projeto que, a pretexto de modernizar o arcabouço de regras que norteiam o licenciamento ambiental no Brasil, praticamente destrói o pilar da Política Nacional de Meio Ambiente.

Se virar lei na versão atual, o projeto 37/2004 abrirá alas para a insegurança jurídica, ao transferir a estados e municípios o poder de definir o processo de concessão de licenças.

Ao introduzir exceções à obrigatoriedade do licenciamento ou facilitar a sua obtenção, multiplicará as chances de danos ambientais graves –do desmatamento à poluição do ar e dos rios por atividades industriais mal concebidas e a catástrofes semelhantes às que destruíram Mariana e Brumadinho, poucos anos atrás. Finalmente, elevará à enésima potência os riscos a que já estão submetidos os povos indígenas e quilombolas à medida que isentar de licenciamento os territórios ainda em processo de demarcação.

Muitas atividades podem ser mais bem executadas quando livres de interferência e regulação estatais: a imprensa é uma delas, as artes e a cultura, outras tantas. Não é, de forma alguma, o caso da proteção ambiental. Esta requer que o cálculo de ganhos coletivos futuros –e, por isso, difíceis de aquilatar– tenha precedência sobre interesses imediatos e palpáveis. Aqui, o poder público é insubstituível para definir a norma e fazê-la cumprir, criando incentivos apropriados para os agentes privados.

A destruição do licenciamento ambiental atesta o quanto o Brasil bolsonaresco descarta o futuro em prol de mesquinhos objetivos da hora –no caso, contingente não desprezível das bases eleitorais do ex-capitão. Indica também como o país envereda pela contramão do mundo civilizado, onde a preocupação em limitar a mudança climática vai de mãos dadas com medidas concretas –e de forte teor regulatório–, destinadas a proteger as populações dos inevitáveis desastres ambientais que ela já está provocando e poderá ocasionar mais adiante.

O projeto de lei aprovado pelos deputados da coalizão governista é a primeira de quatro medidas com o mesmo propósito estritamente eleitoreiro, que o Executivo encaminhou ao Congresso quando da eleição dos presidentes das duas Casas. Tratam de mineração em terras indígenas, concessões florestais, estatuto do índio e regularização fundiária, apropriadamente conhecido como o “PL da grilagem”. Madeireiros, grileiros, desmatadores e companhia feia, produtores de resíduos tóxicos ou de obras malfeitas agradecem.

Os brasileiros ficam ainda mais à mercê dos desastres ambientais –e o país, ainda mais desprestigiado na cena internacional.