SUS revolucionou saúde brasileira, mesmo com má gestão e pouco dinheiro, por Dráuzio Varella.

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Dobre a língua antes de xingar o sistema público nacional, que oferece assistência médica como nenhum outro

Dráuzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo – 16/12/2021

Na abertura da Olimpíada de Londres, os britânicos colocaram três letras no centro do gramado: NHS. Referiam-se ao National Health Service, orgulho maior do país. Imagine as críticas, prezada leitora, se tivéssemos feito o mesmo: SUS, no meio do campo naquele espetáculo que foi cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro.

O SUS é a instituição mais vilipendiada da vida brasileira. Só fizemos alguma ideia da sua importância quando nos demos conta de que sem ele a pandemia teria causado uma tragédia ainda mais devastadora.

O NHS, entretanto, é um sistema pequeno comparado ao SUS. É bem mais fácil organizar a saúde num país com 67 milhões de habitantes, dono de um império colonial até ontem, com um dos níveis educacionais mais altos do mundo e renda per capita quase quatro vezes superior à nossa.

Quero ver é levar a saúde para 213 milhões de pessoas, das quais, segundo o IBGE, 52 milhões são pobres e 13 milhões vivem abaixo da linha da pobreza, espalhadas por um território de dimensão continental, com desigualdades de renda abissais. Se somarmos os brasileiros pobres com os que estão na miséria, chegamos à população do Reino Unido.

Digo essas coisas, prezada leitora, por causa de uma reportagem que li no jornal The Guardian, cujo título é “Quase 6 milhões de pessoas estão na lista de espera por tratamento hospitalar na Inglaterra”.

A lista de espera por tratamentos não urgentes inclui cirurgias de joelhos, próteses de fêmur, cataratas e muitas outras. Em outubro último, havia 5.975.216 pessoas na fila, portanto um em cada dez cidadãos do Reino Unido.

Segundo a Constituição do NHS, não menos do que 92% dos pacientes devem ser hospitalizados no máximo em 18 semanas, contadas a partir do dia em que o médico generalista pediu a internação. No entanto, 34% (mais de 2 milhões) continuam à espera além desse prazo. Pior, 312 mil aguardam vaga há mais de um ano.

Os trabalhistas acusam o governo conservador de erros administrativos na condução do NHS, que teria entrado na pandemia já com déficit de 100 mil profissionais nos serviços de saúde e 112 mil na assistência social.

Associações que reúnem médicos, enfermeiras e gestores têm alertado que a segurança dos pacientes está em perigo. O Royal College of Emergency Medicine estima que ocorram 6.000 mortes anuais por atendimento inadequado, nos serviços de emergência superlotados. O número de pessoas obrigadas a aguardar mais de 12 horas para conseguir um leito nas emergências ultrapassa 10 mil.

Caro leitor, não apresento esses dados para desmerecer o sistema britânico, um dos melhores do mundo, que foi implementado há mais de 70 anos, mas para mostrar como é difícil oferecer como é difícil oferecer assistência hospitalar universal.

O Brasil dispõe de cerca de 500 mil leitos. No SUS, há dois leitos para cada mil habitantes; número que chega a 3,5 na Saúde Suplementar. Como a Organização Mundial da Saúde considera três leitos por mil habitantes o mínimo necessário, os técnicos calculam que faltam cerca de 150 mil leitos ao sistema público, enquanto sobram vagas nos hospitais particulares.

Internações custam caro e afastam os doentes dos familiares e da comunidade. A tendência moderna é a de investir na atenção primária, para evitar que as pessoas adoeçam e oferecer tratamento domiciliar para as que necessitarem.

O Brasil tem um dos programas de atenção primário mais elogiados do mundo: o Estratégia Saúde da Família, com mais de 42 mil equipes formadas por até 12 agentes de saúde, um auxiliar de enfermagem, um enfermeiro, um médico, um dentista ou técnico em saúde bucal.

Cerca de dois terços da população recebem visitas mensais dos 265 mil agentes de saúde que atendem de casa em casa. Temos mais agentes espalhados pelo país do que soldados nas Forças Armadas. Esse contingente, em contato com as 43 mil Unidades Básicas de Saúde, tem diminuído e poderá reduzir ainda mais o número de hospitalizações, problema que até um país rico como a Inglaterra não consegue resolver.

Com apenas 33 anos de vida, o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, diante dele o Bolsa Família é uma pequena ajuda.

É um sistema em construção que exige participação ativa de todos nós. Financiamento insuficiente, má gestão e problemas administrativos não lhe faltam, mas ele fez a maior revolução da história da medicina brasileira. Antes de xingá-lo, dobre a língua.

‘Auxílio Votos’, por Ricardo Viveiros.

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Fome eleitoral no Brasil é tão grande quanto a fome por comida

Folha de São Paulo – 15/12/2021

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de ‘A Vila que Descobriu o Brasil’ (Geração), ‘Justiça Seja Feita’ (Sesi) e ‘Pelos Caminhos da Educação’ (Azulsol)

Há um grave problema contra o qual vários países do mundo lutam: a fome. Embora o Brasil não sofra com terremotos, furacões, tsunamis, vulcões e guerras, tendo muitas terras agriculturáveis sob clima ainda favorável, grande parcela da sua população enfrenta a crueldade da fome.

Eis uma solução simples, digna e eficaz para o problema da segurança alimentar: cultura e educação. Proporcionando acesso a esses bens com qualidade, governos podem garantir que, por mérito próprio, as pessoas sustentem suas famílias. Sem a necessidade de qualquer tipo de assistência governamental ou privada.

Quando faltam cultura e educação, diante da realidade da fome faz-se necessário amparar os que são vítimas dessa desumana condição. Programas de transferências de renda são políticas sociais existentes em algumas partes do mundo para reduzir e combater a miséria. Não são “paternalismos”; são puro respeito humano. Como no poema “Trem da Leopoldina”, de Solano Trindade, a recomendação é: “Se tem gente com fome, dá de comer!”.

No final da década de 1990, apenas três países atuavam em programas assim: Bangladesh, México e Brasil. Depois, outras nações passaram a oferecer transferência de renda. Hoje há programas similares na Turquia, Camboja, Paquistão, Quênia, Etiópia, África do Sul, Gana, Indonésia e Egito.

Até em países supostamente ricos, como os EUA, encontramos programas de renda mínima, como o que existe desde 2007 em Nova York, o Opportunity. Inspirada no Bolsa Família do Brasil, a ação norte-americana inova ao estabelecer condicionalidades para que se rompa o ciclo da pobreza com dignidade, motivando os beneficiados para o crescimento social com ensino técnico e reciclagem profissional.

Tais programas não são novidade no Brasil, nem têm os “donos” políticos que a maioria imagina. No início dos anos 1950, o brasileiro Josué Apolônio de Castro, médico e nutrólogo pernambucano, tornou-se presidente do Conselho da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Naquela oportunidade, disse: “No Brasil, ninguém dorme em razão da fome. Metade porque está com fome, e a outra metade porque tem medo de quem tem fome”. E sugeriu um programa contra o problema.

Quanto ao Bolsa Família, o idealizador do programa foi o sociólogo brasileiro Herbert José de Souza, o Betinho, inspirado em projeto anterior —o Bolsa Família (2001), criado pelo educador Cristovam Buarque quando governador do Distrito Federal (1995-1998). Os diferentes programas sociais “bolsa” foram unificados por Ruth Cardoso no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e oficializados no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Uma das principais promessas da campanha de Jair Bolsonaro (PL) quando disputou a Presidência da República era a de que não faria a “velha política”. Além de descumprir o prometido quando candidato, acaba de praticar um dos marcos da mais antiga ação eleitoreira: mudou o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil às vésperas de um ano eleitoral no qual pretende candidatar-se à reeleição.

Medida populista e inconsistente, sem clara fonte de recursos, será usada nas eleições para obter apoio dos menos esclarecidos. É o “Auxílio Votos”. A fome por votos é tão grande no Brasil quanto a fome por comida, que segue longe de ser zero…

Liberal de araque, por Lygia Maria.

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Se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra às Drogas, não veríamos ministro e presidente falando bobagem sobre liberdade e liberalismo

Lygia Maria Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Folha de São Paulo – 15/12/2021

Ao justificar por que é contra a exigência de passaporte vacinal nos aeroportos do país, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que é “melhor perder a vida do que a liberdade”. O presidente da República também já proferiu argumento semelhante, ao concordar com pessoas que não querem se vacinar, os chamados antivax.

Seria o caso, então, de perguntar ao ministro e ao presidente quando o governo legalizará as drogas. Afinal, não há lei que atente mais contra a liberdade do que aquela que proíbe o indivíduo de fazer o que quiser com seu próprio corpo.

O filósofo liberal John Stuart Mill (1806-1873) disse: “A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”. Se o governo se coloca como arauto do liberalismo, não faz sentido manter a criminalização das drogas; ou melhor, só de algumas drogas, pois outras (álcool e tabaco) são comercializadas livremente. Ou seja, temos aqui um liberalismo de araque.

A frase de Mill não implica que não deva haver leis. Para o liberalismo, o indivíduo é soberano para fazer mal a si mesmo, não aos outros. Ora, esse é justamente o caso da vacina contra Covid-19 e da exigência do passaporte vacinal.

Estudos mostram que o risco de pessoas vacinadas transmitirem o vírus é até 70% menor do que o de pessoas não vacinadas. Logo, o indivíduo que não se vacina e o governo que não fiscaliza a vacinação nos aeroportos colocam a saúde e a vida das pessoas em risco. Não há nada de liberal em alegar liberdade para infectar alguém.

Já o uso de drogas prejudica apenas o usuário. Por isso, vários pesquisadores de vertente liberal são a favor da legalização. Por exemplo, o economista Milton Friedman —a propósito, muito citado por bolsonaristas ditos liberais— defendia a legalização das drogas desde os anos 70. Pode-se alegar que drogas geram violência, mas o que gera violência é o tráfico e esse surge com a ilegalidade.

Leis de mercado básicas: produtos proibidos ficam mais caros (durante a Lei Seca, por exemplo, o preço da cerveja subiu 600%, e o uísque, 310%); quanto maior o risco, maior o lucro; o risco leva à aquisição de armas e disputas de mercado entre facções rivais; o preço elevado não leva necessariamente à diminuição robusta do consumo pois há demandas elásticas e inelásticas.

Uma política pública deve ser uma alocação de recursos escassos com base em evidências. A pergunta básica é: para cada real gasto com a proibição das drogas, ganha-se um real de volta? Onde mais esse dinheiro poderia ser investido?

Talvez, se o Brasil tivesse investido mais em educação do que na Guerra as drogas, não veríamos um ministro e um presidente da República falando tanta bobagem sobre liberdade e liberalismo.

Financeirização

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A pandemia está gerando transformação no ambiente internacional, gerando questionamentos sobre a estrutura econômica das nações, o dinamismo de suas sociedades, a solidariedade entre os grupos sociais e as perspectivas para os próximos anos, marcados por inúmeros desafios, oportunidades e grandes mudanças no cenário global. Neste ambiente, a sociedade brasileira precisa repensar suas estratégias, buscando novos espaços de inserção na nova economia do conhecimento, construindo ativamente o desenvolvimento de tecnologias, planejando setores que contribuam para ultrapassar novas fronteiras tecnológicas e deixando de ser consumidora de produtos importados, cujos preços são elevados e contribuem para a perpetuação de uma dependência de outros países.

Até os anos 1980 a estrutura econômica e produtiva brasileira estava em grande ascensão, saímos de um país agroexportador, com baixa alfabetização e uma educação precária, baseada no meio rural, dependente de produtos primários de baixo valor agregado e nos tornamos uma economia em franco crescimento econômico, ganhando espaço no mercado internacional.

Desde então, a estrutura produtiva brasileira perdeu espaço no cenário global, países que viam o país como um exemplo de determinação e dinamismo econômicos superaram nosso país e ganharam espaços preciosos no altamente competitivo mercado global. Diante disso, a pergunta mais intrigante que precisamos responder é: o que aconteceu com a economia nacional nestes últimos trinta anos onde o país perdeu espaço e respeitabilidade no internacional?

Para responder esta indagação, precisamos perceber que a economia internacional, a partir dos anos 1980/1990, passou por grandes alterações, setores menos significativos perderam espaços na agenda econômica e se transformaram em setores dominantes, impondo seus interesses imediatos e altamente lucrativos, contribuindo para a desindustrialização de suas economias e garantindo altos ganhos na financeirização. Este cenário de crescimento das finanças da estrutura econômica garante altos lucros para poucos setores, mesmo nos momentos de crise econômica e de depressão, isso acontece porque estes setores vivem da intermediação de recursos e dependem das altas taxas de juros praticadas na economia, angariando bilhões de reais que garantem lucros elevados e usam sua estrutura política para garantir a isenção tributária, com isso, conseguimos compreender como os ricos ficam cada vez mais ricos, desde os períodos de bonança econômica até nos momentos de turbulência financeira, como vivemos no Brasil contemporâneo.

O assunto é árido e de difícil compreensão, diante disso, percebemos a dificuldade de analisar este fenômeno que não se restringe a países como o Brasil, mas perpassa a sociedade global, sendo que algumas nações já perceberam os impactos negativos da financeirização sobre a estrutura produtiva. Podemos definir a financeirização como um processo do capitalismo onde o dinheiro é usado como mercadoria, usando do dinheiro para fabricar dinheiro, levando ao processo de desindustrialização e da falta de desenvolvimento, onde a indústria se volta para as Bolsas de Valores e ao mercado financeiro, dominando a sociedade e impondo sua agenda, centrada no imediatismo, na instabilidade e nos lucros financeiros em detrimentos do emprego e do desenvolvimento da nação.

Existe uma alta correlação entre o crescimento da financeirização da economia e baixo crescimento econômico. Os países que cresceram no pós-1990 foram aqueles que conseguiram dominar os ganhos exagerados da intermediação financeira, em contrapartida, aqueles que se entregaram à sanha dos agentes financeiros, seu crescimento econômico reduziu expressamente, aumentando as desigualdades de renda e de oportunidades, gerando um retrocesso civilizacional de suas nações. O desenvolvimento econômico deve garantir uma melhora substancial na renda e na oportunidade de todos os cidadãos, garantindo melhoras para todos, não apenas para uma pequena casta de iluminados e dotados do “espírito empreendedor”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/12/2021.

Bolsonaro usará STF e pauta moral em cruzada para se reeleger, diz cientista político

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Para Fernando Abrúcio, presidente trocou retórica de golpe por promessa de colocar ‘os nossos’ na corte

JOELMIR TAVARES – FOLHA DE SÃO PAULO, 14/12/2021

O cientista político e professor Fernando Abrucio relaciona a vitória de Jair Bolsonaro (PL) na indicação de André Mendonça para ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) com o tema central da campanha do presidente à reeleição em 2022.

“O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro”, afirma à Folha o acadêmico, que vê o uso político-eleitoral da corte como sinal de enfraquecimento da democracia.

Para Abrucio, o mandatário vai explorar a promessa de colocar no STF mais ministros cristãos e conservadores, no intuito de acenar ao eleitorado evangélico e reforçar o que chama de cruzada contra valores progressistas associados à esquerda.

O docente da FGV em São Paulo considera um segundo turno contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o cenário mais provável, à luz do quadro atual e das pesquisas mais recentes. “O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro turno”, diz.

Abrucio afirma que, se Bolsonaro vencer, será por uma margem apertada, o que o deixará enfraquecido já no início do eventual segundo mandato. Segundo o professor, isso abriria margem para o debate sobre o semipresidencialismo, sistema defendido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

O que os bastidores da indicação de Mendonça antecipam sobre a campanha de Bolsonaro à reeleição? O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro. Um segundo vértice é o discurso de destruição do inimigo, e nisso a campanha vai ser muito pesada, atingindo várias frentes: comunismo, “extrema imprensa”, retorno da esquerda. E outro eixo serão as políticas públicas, mas o resultado nessa área é muito pequeno, com a crise econômica e social e as ações desastrosas de saúde e educação.

O STF então vira uma das trincheiras da campanha? Sim. Não é mais só dizer: “Vamos fechar o Supremo”, “o Supremo não deixa governar”. Isso fracassou, felizmente para o país. A estratégia agora é a ideia de colocar “os nossos” lá, os que defendam “os nossos valores”.

É um importante argumento eleitoral, possui algum grau de eficácia. Nos Estados Unidos, os republicanos vêm, até mesmo antes da eleição de Donald Trump, fazendo isso de usar a Suprema Corte [hoje com maioria conservadora entre os juízes].

Podemos nos preparar para uma eleição presidencial com o STF no foco? Sim, mas não o STF no sentido de Poder, algo institucional. Para Bolsonaro, o STF será uma espécie de símbolo. Tudo aquilo que ele puder usar para prometer avanço nessa agenda de valores em prol da pátria e da família, ele vai usar. O argumento dele se baseia na justificativa de que o Brasil é um país eminentemente cristão.

Bolsonaro confirmou essa estratégia ao dizer há alguns dias que, se for reeleito, indicará mais dois ministros evangélicos? Isso será constante agora e na campanha. Mas eu diria que essa fala é mais uma promessa do que uma possibilidade.

Por quê? Acho muito difícil que Bolsonaro consiga colocar no Supremo algum conservador muito radical. Não passa no Senado, em hipótese nenhuma. E acho que o Senado na próxima legislatura não vai estar muito diferente do que é hoje, ou seja, ele não terá maioria.

É preciso pontuar que Mendonça pertence a uma denominação moderada [Igreja Presbiteriana], e foi esse o perfil da atuação dele nos últimos anos em Brasília, talvez à exceção do período em que ele foi ministro da Justiça.

Mas, pensando na campanha, apelar para as questões religiosas e de comportamento funcionará para vencer? Ao pregar esse avanço sobre o STF, o argumento é o de que [os conservadores] precisam ter o domínio do controle das instituições. Esse jogo é até mais inteligente politicamente do que ter a Sara Winter pregando fechamento do Supremo. Vamos lembrar que o pessoal que propôs invadir o STF foi todo rifado pelo Bolsonaro.

É uma reciclagem da retórica que vigorou até o 7 de Setembro? É uma mudança, na verdade. Até o 7 de Setembro, era para dar o golpe. E o golpe fracassou. Não acho que o bolsonarismo raiz tenha desistido por completo do golpe. Eles guardaram na gaveta e podem ressuscitar algum dia.

A questão do Supremo hoje é uma estratégia eleitoral, e algo até mais racional do que a proposta de golpe. O objetivo é dizer que o presidente fará uma série de ações para fortalecer a maioria cristã do país.

Em que medida é legítimo levar ao Supremo representantes de segmentos? Não é um argumento ilegítimo, mas precisa estar associado a outra dimensão. O que se espera de um ministro do STF é que, independentemente de ser judeu, cristão ou ateu, ele seja um bom ministro. O aspecto religioso é irrelevante.

Algumas críticas feitas a André Mendonça foram equivocadas. O que deveria impedi-lo é a gestão dele como ministro da Justiça, que foi desastrada para a democracia, com autoritarismo e perseguições. Isso constitui falta de reputação ilibada, nos quesitos de comportamento ético e de respeito à democracia. Mas ele não tem menos qualificações técnicas do que outros ministros, como Dias Toffoli.

O STF também aparece na pré-campanha de Sergio Moro, mas pela via do combate à corrupção, com as críticas do ex-juiz a decisões da corte. A pauta da corrupção, aparentemente, não será relevante nesta eleição. Moro pode até crescer com esse discurso e chegar a uns 15%, mas esse pode ser o teto dele também.

As pessoas vão olhar e dizer: mas ele foi ministro do Bolsonaro, e ficou muito tempo [no governo]! Aliás, essa ligação entre eles será explorada ao máximo pelo Bolsonaro, que já o ridicularizou, por exemplo, por ficar calado nas reuniões de ministérios.

O que essa questão do STF como trincheira político-eleitoral revela sobre o sistema partidário e político brasileiro? Isso mostra um enfraquecimento da democracia brasileira. É um uso equivocado do sentido das instituições, e não é só com o STF.

Como o sr. avalia a relação hoje de Bolsonaro com os evangélicos? É bem provável que ele tenha menos voto dos evangélicos em 2022 do que teve em 2018, porque a crise econômica e social está brava, e o evangélico mediano é pobre e negro. Grande parte dessa fatia não vai votar no Bolsonaro.

No entanto, a situação dele para ir ao segundo turno é mais tranquila do que muitos imaginam. É preciso dizer que, caso ele ganhe a eleição, será por uma margem estreita. O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro
turno.

A pauta moral será suficiente para Bolsonaro se manter competitivo? Ele vai fazer uma campanha, digamos, pró-cristãos. É um dos poucos argumentos do Bolsonaro que sobraram. Com essa linha, ele consegue manter uma quantidade de cristãos que se soma aos conservadores e armamentistas, totalizando algo em torno de 15%. Esse bolsonarismo raiz é o que ainda segura o presidente.

Se ele tiver mais 10%, distribuindo dinheiro, pagando Auxílio Brasil, com a capilaridade do centrão, ele está no segundo turno, que é o que ele quer. E aí no segundo turno é tudo ou nada, naquela cantilena já conhecida: “Lula é comunista”, “o país vai ser dominado pelos chineses” etc.

A guerra cultural será a tônica da campanha de Bolsonaro? É plataforma de campanha e de governo. Afinal, o que tem para mostrar? O Posto Ipiranga [ministro da Economia, Paulo Guedes], o que entregou? Na educação, o que se tem é a agenda evangélica, a batalha contra a tal ideologia de gênero. E na saúde? É liberdade para você morrer? Se fizer um balanço das políticas públicas, não tem nada, é zero. Ele não construiu, só destruiu.

O país está economicamente muito mal, e não acredito que vá melhorar tão cedo. Vai piorar, na verdade. Para quem está na pobreza e buscando formas de comer e sobreviver, os valores cristãos não vão adiantar [na hora de decidir voto].

Vê chances de Bolsonaro estar no segundo turno? Ele precisa de 25% para estar no segundo turno. E ir para o segundo turno contra Lula significará pintar o petista como a ameaça maior ao país. É algo como “Deus contra o Diabo”. É muito difícil que Lula, ainda que derrotado, tenha no segundo turno menos de 45% dos votos. Bolsonaro começaria o governo muito enfraquecido.

Ele fica refém do Congresso e, na primeira crise, instala-se o debate sobre o semipresencialismo. Essa é a ideia do Arthur Lira, que é hoje o homem mais importante da República. Lira sabe que um presidente fraco é bom para o Congresso.

O nível do debate em 2022 será assustador e violento. Vai ser uma campanha suja, no estilo das eleições mexicanas na época do PRI [Partido Revolucionário Institucional], com atentados, assassinatos de candidatos e clima de terror.

Existe alguma forma de evitar isso? Bolsonaro fará uma cruzada pela vitória. Isso é o que deveria dar mais juízo a Lula e à terceira via, no sentido de buscar uma frente ampla, a mais diversa possível, já que o que há do outro lado é alguém que pode, ganhando ou perdendo, dilacerar o país.

Quem assumir em 2023 pegará uma terra arrasada. É sobre isso que o país deveria pensar. As pessoas não estão percebendo o grau de desestruturação do tecido social nos últimos anos. É um declive muito acentuado, desde 2013, o impeachment [de Dilma] e a Lava Jato, acentuado superlativamente sob Bolsonaro. Para consertar, o Brasil vai precisar de mais gente unida do que desunida.

Vê chance de união na chamada terceira via, que ostenta o discurso da convergência? Acho difícil que essa unificação se dê em torno do Moro. Tanto Moro quanto João Dória são filhos da crise de 2013, que produziu a polarização entre Lula e Bolsonaro e acabou engolindo todo o resto.

RAIO-X
Fernando Luiz Abrucio, 52
Doutor em ciência política pela USP, é professor e pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp) e foi pesquisador visitante no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). É autor dos livros “Barões da Federação: Os Governadores e a Redemocratização Brasileira” (1998) e, em parceria com B. Guy Peters e Eduardo Grin, “American Federal Systems and Covid-19” (2021)

Negacionismo na academia, por George Matsas

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Fecham-se os olhos diante de ‘questões mais urgentes’

Folha de São Paulo, 11/12/2021.

George Matsas, Professor do Instituto de Física Teórica da Unesp e membro titular da Academia de Ciência do Estado de São Paulo

Em níveis globais, a varíola foi erradicada, e a Aids, controlada. Para dar exemplo mais próximo a nós, segundo dados do IBGE, a expectativa de vida de brasileiros e brasileiras aumentou 30 anos em seis décadas. Portanto, diante destes e de tantos outros avanços científicos, é incompreensível que ainda haja negacionistas no mundo.

Ainda mais incompreensível (e tremendamente escandaloso) é o fato de eles grassarem por vielas escuras da academia.

Por mais incrível que pareça, a academia abriga negacionistas do aquecimento global, da eficiência das vacinas, da evolução das espécies e de sabe-se lá mais o quê. Isso seria anedótico não fosse o fato de que as universidades públicas são sustentadas pela sociedade para serem santuários da lógica e da razão.

No Brasil, argumentos sussurrados nos corredores da academia alegam que o acionamento dos comitês de ética para denunciar negacionistas —cujo papel se assemelha ao de uma quinta-coluna — poderia ser visto como “caça às bruxas”.

Afirmações descabidas, sem dúvida. Afinal, a Inquisição teve origem em preconceitos e crendices, não no pensamento racional.

Outro sofismo diversionista: comparar sanções de comitês de ética —órgãos democraticamente eleitos— a censuras arbitrárias decretadas por regimes ditatoriais. A liberdade acadêmica não é passaporte para negar a própria missão da universidade, e a academia não tem o direito de fechar os olhos para isso.

Então, o que explicaria a inação da academia?

Em primeiro lugar, o salário dos negacionistas não é pago pelos demais acadêmicos —ah, sim, porque a primeira coisa que qualquer um faria se descobrisse que a pessoa que pensou ter contratado como contador é, na verdade, um estelionatário seria demiti-la por justa causa.

Assim, não impactando no bolso destes, nem prejudicando a própria carreira e a de colegas, parece sempre conveniente recorrer a um lugar-comum: há outras questões mais urgentes. Ora, sempre há! No Brasil, autocrítica é matéria rara, e a academia, onde ela deveria ser exercida por dever de ofício, não é exceção. Em segundo lugar, há o instinto de corporativismo. A história tem mostrado que não é fácil lutar contra ele.

Como consequência do corporativismo, a academia é rápida em criticar cortes de verbas, usando o discurso coerente de que isso vai prejudicar a sociedade no curto e médio prazo. Também é ágil, por meios de suas sociedades representativas e profissionais, em criticar malfeitorias de outras instituições, corrupção na administração pública e maus políticos, por exemplo.

Mas é lenta em cortar na própria carne, por mais que isso seja igualmente necessário para defender a sociedade, a qual ela alega ser sua prioridade. Isso não está certo.

A permissividade da academia diante da existência de negacionistas confessos em suas fileiras é irracional do ponto de vista lógico e inaceitável do ponto de vista ético.

Mudanças climáticas são oportunidade de reformular política, diz historiadora

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Para Tatiana Roque, pactos entre ciência, sociedade e poder precisam ser refeitos

Cristiane Fontes
Marcelo Leite

Folha de São Paulo – 09/12/2021

OXFORD E SÃO PAULO
A matemática, filósofa e historiadora Tatiana Roque acaba de lançar “O Dia em que Voltamos de Marte: Uma História da Ciência e do Poder com Pistas para um Novo Presente”. No livro, ela detalha os avanços tecnológicos e disputas em torno dos paradigmas científicos nos últimos 400 anos.

“Nós vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais”, afirma. Para Roque, um dos principais problemas do neodesenvolvimentismo latino-americano, como no caso do PT, é o de se apoiar numa concepção historicamente datada, uma vez que a crise climática coloca em xeque justamente o modelo industrial do pós-guerra.

“Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós”, defende. “Ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.”

Para ela, o mais interessante da COP 26 (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas) foi o contraponto de uma sociedade civil brasileira ativa a um governo catastrófico, com destaque para o movimento negro colocando o racismo ambiental como uma questão central.

A questão é como transformar essa movimentação social em renovação político-partidária, não só de pessoas, mas de agendas. “Vejam os discursos incríveis que Lula fez na Europa, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro!”

O que levou você a escrever “O Dia em que Voltamos de Marte”? O que a história diz sobre os caminhos que nos trouxeram até aqui? Resolvi escrever um livro histórico, porque a história presente não encontra paralelos. Nós
vivemos tempos inéditos, tempos sem precedentes, que demandam respostas originais.

Esse é um dos argumentos principais do livro, tentar mostrar que nós vivemos tempos que não têm comparação com nada que a gente já viveu anteriormente e, portanto, esses pactos entre ciência e sociedade, entre ciência e poder, precisam ser refeitos e não vão mais se refazer imitando ou reproduzindo aquilo que foi feito em outros momentos históricos.

Portanto, não há paralelos. Mas aí, qual passa a ser o guia? Essa é uma dificuldade que a gente precisa reconhecer para encontrar soluções. No livro, uso muito o historiador Dipesh Chakrabarty, que fala sobre essa interseção entre duas histórias.

A gente sempre costumou pensar as mudanças atmosféricas e geológicas como mudanças que se localizavam num tempo muito longo, incompatível com o tempo da vida humana. Agora, a gente está vendo esses dois tempos se cruzarem, e o homem passou a ser uma força geológica. Como se servir de guias do passado quando a gente vive esse momento em que a vida humana está ameaçada de extinção pela ação da própria humanidade?

Você diz no livro que é preciso repensarmos a vida na Terra. A partir de que pistas a gente tem de enfrentar essa empreitada? O principal guia é o combate às mudanças climáticas. Não é tanto pensar o que nós podemos fazer pelas mudanças climáticas e sim o que as mudanças climáticas podem fazer por nós.

Ou seja, não é ver as mudanças climáticas como um empecilho, como algo que a gente precisa ultrapassar para continuar vivendo como sempre viveu, é ver as mudanças climáticas como uma oportunidade de reformular completamente a nossa vida social e a nossa vida política, que, afinal de contas, não está funcionando tão bem.

Como agir no presente para cuidar do futuro considerando uma sociedade como a brasileira, que tem enormes desigualdades sociais e grave e longa crise política e econômica? O Brasil se identificou bastante e por muito tempo com esse mito do país do futuro. Isso nos atrapalha muito, porque as soluções são sempre jogadas para depois.

Existe uma relação com o tempo que acaba nos impedindo de resolver esses problemas, porque a questão da desigualdade depende de alguma coisa por vir, não é o desafio principal presente.

A gente precisa inverter essa temporalidade e pensar que a gente tem de, primeiro, combater as desigualdades e pensar a partir daí em um novo modelo de desenvolvimento.

O que saiu de mais interessante na COP6, e o que mais preocupa no que foi discutido e definido em Glasgow? No caso do Brasil, a gente mostrou que tem uma sociedade civil ativa, apesar de o governo ser uma catástrofe. Do ponto de vista das negociações, acho que é muito aquém daquilo que a gente precisa. Temos um problema de governança global, não é só na COP, e quase todo mundo reconhece isso.

Esse modelo em que tomadores de decisão assumem compromissos voluntários, em que eles podem cumprir ou não, em que não há nenhuma forma de regulação, é algo que já mostrou bastante insuficiente.

Quais são os temas mais urgentes para o Brasil, considerando as eleições presidenciais do próximo ano? Pensar um modelo de desenvolvimento que não deixe a questão climática e ambiental em segundo plano. A gente tem um longo caminho para renovação da esquerda brasileira e latino-americana. A esquerda tem uma tendência a ser um pouco nostálgica do paradigma do New Deal.

Como recuperar um paradigma industrialista e baseado em um Estado de bem-estar social que funcionou em algumas partes do mundo e não funcionou totalmente nos países do sul? Como recuperar esse paradigma em um momento de crise climática, que coloca em xeque o modelo industrial do pós-guerra? Acho que o problema do neodesenvolvimentismo é justamente se apoiar em uma concepção historicamente datada em face da questão climática.

A ciência continua sendo fundamental para a superação de qualquer crise, especialmente, da crise climática. Como restabelecer a confiança na ciência dentro do fortalecimento do negacionismo e do desmantelamento das políticas públicas de ciência e inovação no Brasil? Acredito que, no Brasil, a crise da confiança na ciência não seja muito profunda. O exemplo das vacinas é muito bom. A gente tem grande confiança nas vacinas, justamente porque as políticas públicas de vacinação têm histórias de sucesso, das campanhas atingirem muita gente, disso ser algo reconhecido pela população.

A confiança na ciência não se dá no vazio. Essa valorização depende de como as pessoas enxergam o impacto da ciência nas suas vidas. Algumas pesquisas sobre confiança na ciência com as quais venho trabalhando mostram justamente isso, que a confiança tem uma correlação com o impacto que as pessoas percebem ou não no seu cotidiano.

Talvez a gente precise se mirar nisso para tratar a ciência de um modo mais implicado na sociedade.

A crise climática finalmente deixou de ser um assunto só da ciência e agora é também um assunto político, econômico, das artes. Quais as pistas para o novo modelo que você aponta? No Brasil, sem dúvida alguma, quem aponta novos paradigmas são os povos indígenas, que apresentam outros modos de vida e formulações muito impactantes, como as que estão no livro “A Queda do Céu”, do [Davi] Kopenawa ou “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, do Aílton Krenak.

Fora isso, tem toda a organização da sociedade civil, o movimento negro, os quilombolas, se organizando e trazendo o racismo ambiental como questão essencial para organizar essas agendas.

O que falta é a gente saber como essa mobilização social e as contribuições científicas, que no Brasil são muitas e muito importante para a questão climática, podem servir para uma renovação política. Ela não vai acontecer sem uma renovação político-partidária, e isso tem de chegar nas agendas dos candidatos, dos partidos.

O campo que tem condições de produzir essas transformações é o da esquerda, mas a gente ainda não conseguiu renovar as nossas lideranças. Vejam os discursos que Lula fez na Europa, incríveis sob muitos pontos de vista, mas, na hora de falar de desenvolvimento, ele falou do quê? De carro! Falou da nossa produção de automóveis e nem mencionou transição energética, carro elétrico, nada disso.

RAIO-X
Tatiana Roque, 51
Professora de matemática, história das ciências e filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi presidente do sindicato docente da UFRJ e liderou campanhas contra os cortes de verbas para as universidades e a ciência. Foi candidata a deputada federal pelo PSOL em 2018.

Fome é produto de um governo que junta incompetência e improviso, por Bruno Boghossian.

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Gestão Bolsonaro desmonta programas e recorre a gambiarras para combater problema crônico

Bruno Boghossian Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Folha de São Paulo, 08/12/2021

No início de maio, alguém avisou a Jair Bolsonaro que o país atravessaria um período de estiagem aguda. O presidente olhou para os reservatórios das usinas hidrelétricas e soltou um lamento. “Estamos vivendo a maior crise hidrológica da história. Eletricidade. Vai ter dor de cabeça”, avisou a seus apoiadores.

Duzentos e onze dias depois, o Brasil parece ter superado o risco imediato de um apagão, mas há gente correndo atrás de lagartos para não passar fome no Rio Grande do Norte. Reportagem da Folha mostrou que metade do estado enfrenta uma situação de “seca grave”, expondo uma população desamparada por um governo incapaz de fazer o mínimo para enfrentar a miséria.

Nessa área, a gestão Bolsonaro exibe uma rara união entre incompetência, desinteresse e improviso. O presidente e seus auxiliares fazem definhar programas consolidados, ignoram consequências visíveis da crise econômica e recorrem a gambiarras para combater um problema crônico como a pobreza.

Em busca de dividendos eleitorais, Bolsonaro rebatizou o Bolsa Família e inventou um benefício adicional que pode valer apenas até o fim de seu mandato. Para completar, o governo barrou uma articulação que acabaria com a fila de espera do programa. Com a manobra, pelo menos 3 milhões de famílias pobres ou miseráveis devem continuar sem receber os pagamentos.

A gestão Bolsonaro ainda fez murchar um programa de enfrentamento à seca que chegou a instalar 100 mil cisternas num único ano. Agora, o governo se arrasta para chegar à marca de 3.000 unidades em 2021, enquanto a estiagem agrava a fome no semiárido. Entidades estimam que mais de 350 mil famílias da região ainda precisam ser atendidas.

A falta de uma rede de proteção social oferecida pelo governo faz com que a fome e a seca voltem a ser problemas políticos. Além das preocupações abrangentes com “a economia”, o país chegará ao debate eleitoral de 2022 diante da miséria que atinge muitos brasileiros.

Políticas Públicas

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A pandemia está gerando grandes transformações para a sociedade brasileira, criando novos desafios e oportunidades que exigem comportamentos variados, diagnósticos precisos, capital humano altamente qualificado, políticas públicas universais, investimentos maciços em ciência e tecnologia, construção de consensos políticos, investimentos estatais e planejamentos públicos. Sem estas agendas, o país tende a amargar mais um período de baixo crescimento econômico com piora dos indicadores sociais e os custos sanitários tendem a disseminar para toda a coletividade, impactando sobre os grupos mais fragilizados, perpetuando as desigualdades que assolam a sociedade nacional.

Neste momento, precisamos repensar as políticas públicas implantadas na sociedade, analisando os custos e os benefícios destas políticas, reestruturando-as quando os objetivos não forem alcançadas, tributando de forma mais equitativa os agentes produtivos, revendo as isenções de tributos para setores que pouco contribuem para o crescimento da coletividade e revendo todos os instrumentos de regulação da economia, evitando os grupos de lobbies que auferem rendas sobre os setores mais degradados da sociedade.

A pandemia nos mostrou a importância das políticas públicas para o desenvolvimento da sociedade, onde destacamos o Sistema Único de Saúde, o SUS, modelo de atendimento universal criado nos anos 1980, cujos desafios são gigantescos, diante disso, fica a pergunta: como seria o país sem este sistema de saúde pública universal num momento de destruição e devastação gerado pela pandemia? Sabemos que o SUS tem muitas dificuldades e limitações, mas deve ser reformulado e melhorado continuadamente, atualizando os serviços, ampliando os atendimentos, remunerando melhor os atores integrados e desenvolvendo novos instrumentos de gestão centrados na eficiência, na transparência e na satisfação da população.

Embora muitas pessoas não conheçam o potencial do SUS, precisamos compreender a dimensão desta política pública, que não se restringe às consultas, exames e atendimentos, o Sistema Único de Saúde é muito mais complexo, abrangendo desde emergência, pesquisa, ensino, pesquisa científica, doação de sangue, pandemia, vacinação, transplantes, SAMU, saúde da família, centro de atenção psicossocial (CAPs), Anvisa, dentre outros. A dimensão do Sistema Único de Saúde é uma política exitosa e de grande relevância para a sociedade brasileira, responsável por atendimentos variados e dotados de profissionais de grande competência técnica que devem ser exaltados, respeitados e valorizados.

Outra política pública relevante para a sociedade brasileira é o Programa Bolsa Família, cujos objetivos devem ser exaltados, melhorados e fortalecidos, que contribuíram para auxiliar na retirada de milhões de famílias do mapa da pobreza, criando novas oportunidades de sobrevivência para grupos sociais vistos como invisíveis, relegados ao esquecimento de uma parte substancial da sociedade. Embora saibamos que essa política apresenta deficiências que devem ser superadas, o modelo é exitoso e deve ser consolidado e aperfeiçoado, ainda mais quando percebemos que este modelo de combate da miséria recebeu elogios de reputadas instituições internacionais que foram recomendadas para inúmeras nações por pesquisadores independentes e com vinculações ideológicas variadas.

A pandemia exige a consolidação de políticas públicas exitosas e reconhecidas nacional e internacionalmente, como as duas citadas anteriormente, ambas foram aprovadas pela sociedade brasileira e devem ser fortalecidas, como forma de capacitar a população para superar os desafios contemporâneos. A pandemia exige o retorno do Estado planejador e empreendedor, como está acontecendo em todas as regiões do mundo, desde os países desenvolvidos como os EUA, a Europa, a China, a Coréia, dentre outros. Infelizmente, o complexo de vira lata persiste na sociedade brasileira, continua insistindo num liberalismo ortodoxo e atrasado, onde mesmo os defensores destas ideias e teorias já evoluíram e abandonaram estes preceitos atrasados e reacionários.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/12/2021.

O declínio, por Leandro Karnal.

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Após quase 200 anos de crescimento da população, números desaceleram na maioria dos países

Leandro Karnal – O Estado de São Paulo, 05/12/2021

No século 18, a população humana se aproximava de um bilhão de pessoas. Levamos milhares de séculos para atingir esse número. De repente, um salto: em pouco mais de 200 anos chegamos a 7,5 bilhões de indivíduos. O ano de 1800 é, simbolicamente, o momento da virada.

O salto começou nas Ilhas Britânicas. Morriam menos crianças e a longevidade aumentou. O padrão médio de vida sofreu uma elevação quase contínua. Ao mesmo tempo, fruto da urbanização e até da alfabetização das mulheres, o número médio de filhos foi decaindo. O “termômetro demográfico” pode ser simbolizado na família real. A rainha inglesa Ana (morreu em 1714) teve 18 gestações. Nenhum filho sobreviveu. Vitória, no século seguinte, teve nove filhos. Todos chegaram à idade adulta. O rei George VI e sua esposa Elizabeth, mãe da atual soberana britânica, tiveram duas filhas no século 20. É uma mudança notável.

Paul Morland escreveu A Maré Humana (subtítulo: A Fantástica História das Mudanças Demográficas e Migrações Que Fizeram e Desfizeram Nações, Continentes e Impérios – editora Zahar, tradução de Maria Luiza Borges). Seu objetivo é analisar a demografia como fator histórico. Exemplo: a resistência russa à invasão nazista sempre é explicada em termos militares ou de nacionalismo eslavo. Porém, para o autor, ela nasce da revolução demográfica russa iniciada no século 19 e que dava a possibilidade de substituir os muitos soldados mortos por novos contingentes humanos.

Para Morland, os nascimentos explicam tanto como as estratégias militares. Nascimentos, sobrevivência de crianças, diminuição da mortalidade e aumento da expectativa média de vida, somados a migrações, explicam uma maré montante ou em refluxo que estaria, para o autor, na base de muitos fenômenos históricos. Existe um outro fator: populações muito jovens são mais agressivas e aderem com maior facilidade a projetos militaristas dos seus respectivos governos. Populações envelhecidas são menos dadas a aventuras imperialistas ou agressivas. Esse seria outro fator para explicar a Grande Guerra, por exemplo, ocorrida quando a Europa Ocidental estava tomada de jovens crescidos da revolução demográfica anterior. Da mesma forma, a Intifada Palestina de 1987 tinha uma população com idade média de 15 anos. A idade aumentou muito nos territórios palestinos e sempre atribuímos um relativo declínio das intifadas a fatores políticos ou econômicos.

Para o autor, devemos levar em conta o envelhecimento. O “bolsão de juventude”, acompanhado de sentimentos de injustiça e desemprego, é terreno bom para fundamentalismos religiosos.

O reverendo Malthus alertou: crescimento geométrico da população levará à fome. Ele trabalhou com os dados disponíveis na época. Em quase todos os países, o baby boom dá origem ao baby bust e passamos da explosão ao declínio generalizado. As linhas não são sempre contínuas. Os EUA, por exemplo, deram um salto no século 19 em função de aumento interno e migrações externas. Depois, nas primeiras décadas do século 20, diminui a taxa de crescimento interno e termina o fluxo imigratório nos moldes massivos. A partir da Segunda Guerra Mundial, ocorre novo crescimento que volta a diminuir a partir dos anos 1960.

O fenômeno demográfico é mundial e o autor quer destacá-lo como player fundamental no jogo de poder. Primavera árabe a partir de 2010? Pode ser relacionada ao crescimento de jovens liderados por políticos idosos no mundo islâmico do Norte da África. Os deslocamentos internos de sunitas para a capital Damasco, por exemplo, desestabilizaram o delicado equilíbrio de poder sírio. As migrações são fundamentais. Morland destaca que não existiria Israel sem maciços aportes populacionais judaicos no século 20. Para o autor, a demografia da faixa de Gaza afastou Ariel Sharon da tentativa de controle do local: a população ali nunca poderia ser superada pelos colonos israelenses.

Analisando gráficos e dados, o pesquisador inglês acha a política chinesa de um filho por casal desnecessária. A urbanização e o crescimento econômico já agiriam mesmo sem a ação de Deng Xiaoping. Os japoneses também envelhecem com menos filhos. Depois de quase 200 anos de crescimento médio global, os números desaceleram na maioria dos países. Em alguns casos, como o citado arquipélago japonês, o envelhecimento preocupa muito.

Há indicativos de menor interesse de jovens por famílias com filhos e até um crescente desinteresse dos jovens por sexo em muitos países. O Brasil, que Paul Morland trata em poucos parágrafos, também está envelhecendo, o que torna nosso censo demográfico necessário de forma quase desesperada. Como lidar com as mudanças que atingem todos? Como a previdência vai sobreviver com a diminuição da base da pirâmide populacional e aumento dos mais velhos? O livro se encerra refletindo que “a demografia moldará o curso da história, enquanto nascimento, morte, casamento e migração continuarem a ser os eventos mais fundamentais das nossas vidas” (pág. 320). Quer ter uma amostra pessoal para encerrar: quantos filhos tiveram sua avó, sua mãe e você? Por quê? Aqui começa um debate sobre crianças e demografia que, como sabemos, são parte da nossa esperança de futuro.