Risco fiscal impede que Brasil surfe na onda chinesa

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Responsabilidade fiscal piora desde 2015, mesmo com as amarras de disciplina fiscal como o teto de gastos

Roberto Dumas Damas

É professor de economia do Insper, mestre em economia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e mestre em economia pela Universidade Fudan, na China

Folha de São Paulo, 17/04/2021

Ninguém pode dizer que o crescimento de 18,3% da economia chinesa durante o primeiro trimestre desse ano em comparação com igual trimestre do ano passado, quando a economia havia recuado 6, 8%, não foi bom. Foi excelente, se olharmos sob essa perspectiva temporal.

Claro que ao analisar números vindos da China, os analistas acabam ficando mal-acostumados, sempre esperando números estelares —e eles vieram na base de comparação anual, apesar de terem crescido apenas 0,6% se comparado com o quarto trimestre de 2020.

Durante o primeiro trimestre de 2020, enquanto ainda havia expectativas de que a economia mundial cresceria um pouco e a então pandemia seria controlada, a China já sofria pesados efeitos em seu crescimento econômico.

Notadamente e sem muita discussão, o país decretou um lockdown draconiano, sem brainstorming político ou com a população, e um controle enorme sobre os infectados, até que logrou controlar a pandemia em sua casa.

Enquanto isso, outros países batiam cabeça. Avaliavam se deveriam fazer lockdowns, se poderiam se abraçar, afinal esse é um direito de todos, e se poderiam espirrar no rosto dos outros sem máscara, afinal parece que tal proteção causa um certo desconforto. Ah vá!

Enfim, o fato é que a China logrou recuperar rapidamente sua economia, não apenas devido às restrições ditatoriais, mas com uma presença forte do Estado “sugerindo” que os governos locais investissem pesadamente em novos projetos de infraestrutura —para lá de duvidosos em relação às suas verdadeiras necessidades e possibilidades de retorno financeiro.

O setor imobiliário chinês acabou também se beneficiando enormemente desse expansionismo. Com esse impulso monetário e fiscal sutil, canalizado pelos principais bancos chineses nesses investimentos, a produção industrial, principalmente de aço, logrou crescer mais de 24% no ano.

Ponto positivo para as commodities metálicas, como o minério de ferro, cobre, zinco, mas que, provavelmente, não continuará com todo esse ímpeto durante o segundo semestre deste ano.

Além disso, com a peste suína ceifando mais de 350 milhões de cabeças de porcos, a China precisou desesperadamente de proteína animal e grãos para alimentar seus novos plantéis. Novamente, ponto positivo para as commodities agrícolas e proteína animal, como soja, milho, carne bovina e suína.

Do lado das importações, a China também se aproveitou da pandemia e do novo modus operandi do “fique em casa” e aumentou seus bens vendidos para o exterior, como equipamentos de proteção individual e produtos eletrônicos —com uma alta de 31% apenas em março deste ano.

Mas, e o Brasil? Com essa bonança nas commodities, por que será que não estamos surfando essa onda como testemunhada nos anos de 2006 e 2007? Por que nosso câmbio insiste em continuar tendo um dos três piores desempenhos, entre os países emergentes, desde o início da pandemia?

A resposta não poderia ser outra a não ser o nosso crescente risco fiscal.

Enquanto durante os anos de 2006 a 2008, a nossa dívida pública bruta em relação ao PIB não passava de 57% e ainda conseguíamos apresentar superávits primários, hoje em dia estamos um pouco mais arriscados, com uma dívida pública beliscando os 91%, déficits primários e manobras do legislativo para furar o teto de gastos com emendas parlamentares, fazendo uso de PECs para ajustar PECs já aprovadas.

Como diz a economista Zeina Latif: “embora a regra do teto esteja sendo cumprida no momento, o espírito do regime fiscal se perdeu”.

E isso não é de agora. Já vem desde 2015 e continua piorando mesmo com as amarras de disciplina fiscal como o teto de gastos, o qual determina que as despesas e os investimentos públicos fiariam limitados ao mesmo valor gasto no ano anterior, ajustado pela inflação.

Como não parece que as novas coligações com o centrão tem se mostrado muito preocupadas com o espírito da lei, os detentores de títulos da dívida pública e investidores —como eu, você, que temos nosso suado dinheirinho investido em fundos de investimentos, tipo DI, multimercado, seguradoras, previdência privada— acabam pedindo maiores retornos, dado o maior risco que corremos com essa dinâmica explosiva da dívida pública.

Maior risco, maior retorno requerido, maiores juros na ponta do consumidor, limitando mais ainda o consumo das famílias e os investimentos.

Para aqueles não contentes com o retorno observada na curva de juros, acabam fugindo e deixando na porta de saída uma pressão cambial, que para deteriorar o cenário, acaba piorando a nossa inflação “importada”, resultado do aumento do preço de commodities em dólares multiplicado pela cotação cambial.

Para segurar esse repasse dos preços de atacado ou do produtor para o consumidor, tome Selic e sua trajetória de alta, restringindo mais ainda o crescimento econômico do Brasil. O Brasil é nosso e os problemas também.

Josué de Castro mostra o paradoxo mais gritante e obsceno do país

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Gilberto Felisberto Vasconcellos – ESPECIAL PARA A FOLHA – 11/08/2001 – CADERNO ILUSTRADA

Não há entre nós assunto mais baixo astral do que a fome. A miséria da fome. É o paradoxo mais gritante e mais obsceno da civilização brasileira.

Somos o país do alimento, mas a maioria da população não tem o que comer. Resulta daí a nossa tragédia existencial e política, inclusive estética, porque a existência da fome é o fenômeno mais irracional da nossa sociedade.

Médico, marxista, terceiro-mundista, filiado ao PTB vargojanguista, perseguido pelo golpe de 64, Josué de Castro nasceu no Recife, “Hong Kong da América com sua miséria acumulada”, escreve neste livro memorialístico e romanceado sobre a promiscuidade dos homens e caranguejos passando fome na lama dos mangues: um engolindo o outro.

Parafraseando a linguagem dos sociólogos e economistas, Castro fala em “ciclo do caranguejo” ou em “sociedade dos caranguejos”. Mocambos. Polis dos mocambos.
Vindo de família abastada, o Engels de Pernambuco, que em 1935 escreveu “As Condições de Vida das Classes Operárias do Recife”, conceitua a fome pelo ângulo da qualidade, ou seja: a carência dos alimentos indispensáveis ao equilíbrio da saúde. Não é a falta de alimento que leva o indivíduo à morte. Nesse sentido a totalidade da sociedade no Brasil é marcada pela condição esfomeada.

Foi nos mangues do rio Capibaribe que Castro tomou consciência do drama da fome, que é uma praga criada pelos homens e cujas raízes encontram-se no processo da colonização, de modo que o colonialismo é que engendra o fenômeno da fome: latifúndio, monocultura e mercado externo.

A forte impregnação visual e aderência à geografia tem a sua explicação biográfica nesta narrativa dos anos de infância de Castro: “Foi o rio o meu primeiro professor de história do Nordeste, da história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos”.

O autor sublinha que compreendeu a angústia da fome, não na Sorbonne parisiense, mas nos mangues e bairros inóspitos do Recife. Pobres coitados alimentados com caranguejo e farinha de mandioca. Mais nada.

Nesse livro aparece a grande loucura da sociedade brasileira, loucura que nos persegue ainda hoje: um povo faminto que não sabe de onde vem a fome e quer ocultá-la ou senão disfarçá-la. E mais: os alimentados não entendem os famintos e vice-versa. E mais: o chamado público letrado não aprecia os intelectuais e artistas que denunciam a irracionalidade da fome popular brasileira.

Novo líder empresarial terá de reduzir foco financeiro e buscar legado, diz diretor de escola de negócios

Para Antonio Batista da Silva Junior, da Fundação Dom Cabral, chefes de empresas devem sair com nova postura da pandemia

Painel Folha de São Paulo, 14/04/2021 – Joana Cunha

Como vocês chegaram à conclusão sobre o perfil de foco financeiro dos líderes atuais?

A gente precisa compreender a evolução da sociedade para poder direcionar nossas ações educacionais. A educação vai para onde vai o mundo.

Uns cinco anos atrás, nós saímos num périplo, conversando com mais de 250 CEOs para entender a angústia, as dores, a percepção deles.

As empresas que vão sobreviver ao final do século 21 são aquelas às quais a sociedade conferir legitimidade para operar. E esse é um mal-estar, porque o executivo que tradicionalmente foi educado e preparado para ser um executivo de entrega de resultado econômico e financeiro, hoje, tem uma nova demanda, que é a de construir legados.

Hoje, o executivo vai ter que ser menos escravo do resultado, e ser mais um agente de progresso. Ele vai ter que saber conciliar performance e progresso, porque as empresas precisam ser produtivas, eficientes e terem lucro, mas não é só isso.

Essa é uma mudança grande no mundo corporativo. É uma demanda nova, um paradigma que está em transição, que vai exigir novos comportamentos.

É um profissional que consegue olhar para as desigualdades?

A pergunta que você faz para um executivo é: ‘através dos produtos e serviços que você faz, qual o problema da humanidade que você tenta resolver?’.

Aí entram problemas de desigualdade social, de clima, de educação, de água, do meio ambiente.
E é possível mudar essa mentalidade? Em quanto tempo?

Claro que eu acho possível. Esse é o nosso papel. A educação é transformadora. E isso é urgente, tem que começar imediatamente.

Fica mais urgente com a pandemia?

Sem dúvida, a pandemia escancarou. Ela aumentou as diferenças sociais e agravou um problema que já era existente no mundo inteiro. Essa dívida social cresce de maneira acelerada. O problema de saúde está rebatendo no problema econômico.

A pandemia vai ter que acelerar essa percepção [de mudança] dos vários setores, do governo e das empresas. Eu acho que o líder não sai incólume dessa pandemia. Ele vai ter que sair com uma nova visão, uma nova postura, uma nova ação.

As novas gerações são muito voltadas para propósito, para emoção, para paixão com ideias. Então, as empresas têm que vincular emocionalmente seu propósito com o propósito da nova geração, que são os funcionários e os consumidores.

É uma tendência no mercado brasileiro e fora?

Acho que sim. É uma tendência mundial. Ainda que o Brasil seja uma economia muito desintegrada do comércio global e que o país tenha perdido sua presença nas grandes pautas como agente protagonista do mundo, o que acontece lá fora acontecerá aqui também mais cedo ou mais tarde, numa velocidade maior ou menor.

Acho que nós temos problemas específicos. Um deles é o grande fosso social. A distribuição da renda no Brasil é criminosa.

com Mariana Grazini e Andressa Motter

A geração dos jovens que não verão país nenhum, por Vinícius Torres Freire.

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Na vida adulta, geração que chega aos 30 só viu país empobrecer e se barbarizar

Folha de São Paulo, 14/04/2021.

As projeções de crescimento da economia para o ano que vem começam a cair para a casa do 1%. É apenas chute vagamente informado, mas essa bola deve cair mesmo no pântano em que vivemos faz tempo. Em 2022, bicentenário da Independência, serão nove anos de pobreza piorada. Ainda estaremos colonizados pelos nossos piores monstros.

Imagine-se uma brasileira que teve a boa sorte de terminar a faculdade no último ano antes da catástrofe, em 2013, nos seus 21 anos. “Boa sorte” porque apenas 1 de cada 4 jovens de 18 a 24 anos está no ensino superior ou concluiu este curso. Há quem tenha largado a escola muito antes e terá vida pior. No ano que vem, essa brasileira fará 30 anos. Terá passado a primeira parte de sua vida adulta em um país em destruição. É apenas um símbolo de uma catástrofe duradoura, uma de várias gerações perdidas.

No ano que vem, o país ainda será mais pobre do que era em 2013: a renda (PIB) per capita deve ser ainda 7,5% menor. Pelas estimativas atuais, voltaremos a 2013 apenas em 2027. Mas chute econômico não é destino. Assistir bestificado à presente destruição vai nos garantir futuro tenebroso.

Mal ou bem, países do centro do mundo planejam a reconstrução depois da epidemia. São grandes projetos de economia verde e pesquisa científica e tecnológica, como biotecnologia e inteligência artificial.

Qual o lugar do Brasil nesse futuro? Uma zona de catástrofe ambiental e sanitária, talvez por isso objeto de sanções econômicas e políticas.

Nossos produtos industriais logo serão ainda mais obsoletos em termos tecnológicos e ambientais. Talvez não queiram também nossos grãos, ferro e petróleo, por prevenção ambiental ou porque a China passou a plantar soja na África ou porque o país é infecto ou avilta o trabalhador. Com o troco que nos sobrar, compraremos produtos “verdes” ou máquinas inteligentes reais e virtuais etc. inventados com pesquisa subsidiada no mundo rico.

O plano Bolsonaro é o avesso podre dos planos de reconstrução: é devastação ambiental e da Educação, sob mando de um adepto do espancamento de crianças. São tempos de dr. Jairzinho e dr. Jairzinho.

Desmontam-se agências e a participação democrática nos conselhos de Estado, avilta-se ou se assedia o corpo técnico de servidores, perseguem-se professores, acelera-se a destruição da pesquisa científica. Capangas oficiais e paramilitares, milícias, talvez colaborem para a implantação de um autoritarismo temperado por farisaísmo, fundamentalismo religioso, patriotada militaresca e ignorância lunática.

Nos acostumamos aos quase nove anos de catástrofe econômica assim como nos acostumamos agora aos 3 mil mortos por dia ou aos crimes de responsabilidade semanais de Jair Bolsonaro. Resta força apenas para combater o regresso autoritário. O Brasil se acostumou a não ter futuro.

É pior do que nos anos perdidos para o horror social e a inflação dos 1980/90. Então se tentava reconstruir um país: Constituição, estabilidade econômica, alguns direitos sociais.

Ainda assim, nossos desastres vêm de longe, pelo menos desde a recessão que começou em 1981, desatino final da ditadura militar. Desde então até 2019, o PIB per capita do Brasil cresceu 36%. O dos países já ricos (OCDE), 85%.
O do mundo, 75%. É o aspecto econômico de um fracasso longo e maior. A diferença agora é que morreu ou está para morrer, sem UTI, a ideia de sucesso ou de progresso.

“Não Verás País Nenhum”, dizia o título do romance presciente de Ignácio de Loyola Brandão (aliás de 1981). Tratava de um Brasil em que a Amazônia se tornou um deserto, em que São Paulo fede a cadáveres e em que militecnos comandam um governo autoritário.

Os invisíveis

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A pandemia está mostrando as marcas das violências que existem na sociedade brasileira, o incremento das desigualdades sociais, o crescimento do desemprego, as desilusões mais íntimas e o aumento dos chamados invisíveis, pessoas que sobrevivem em situação de degradação social, pessoas vivendo nas ruas, comendo alimentos estragados e sem condições sanitárias dignas. Vivemos uma verdadeira contradição, de um lado uma grande parte da população em péssimas condições de vida e, de outro lado, um país marcado por riquezas incalculáveis, espaço geográfico e meio ambiente exuberantes. Vivemos num país que se destaca como o celeiro do mundo, responsável pela produção de grande quantidade de alimentos, alimentando uma parte substancial da população global, mas que mantém, ainda e recorrentemente, uma grande leva de cidadãos na fome e na indignidade.

Os invisíveis brasileiros estão sem ocupação, estão longe dos centros financeiros e dos condomínios de luxo, são pessoas que se alimentam de forma precária, pessoas desesperançadas que percebem do Estado apenas as mãos da repressão, recebendo educação e saúde degradadas, se utilizando de postinhos cheios e sucateados, pessoas esquecidas por uma elite degradada e predatória e uma classe política que se lembra da população mais carente nos momentos eleitorais, fazendo promessas e criando um universo paralelo, distante da maior parte da população. Nesta invisibilidade brasileira destacamos mais de 38 milhões de pessoas, contingente cada vez mais distante do desenvolvimento econômico. Neste momento, estamos cada vez mais próximos dos pelotões intermediários do desenvolvimento, atualmente os dados nos mostram que caímos para 12® lugar dentre as maiores economias do mundo.

A pandemia desmascarou a desigualdade brasileira, muitas pessoas estão acreditando que somos pobres e miseráveis, ledo engano, somos um país rico e dotado de grandes riquezas naturais e uma população empreendedora, somos dotados de sonhos e carecemos de oportunidades. Necessitamos de investimentos públicos em todos os rincões do país, educação de qualidade, estimulando as habilidades socioemocionais, fomentando o pensamento crítico, a diversidade, o respeito pela ciência e pela pesquisa científica.

Precisamos investir na construção de uma sociedade melhor e mais solidária, não apenas a poucos afortunados, dotados de sobrenomes pomposos e heranças garantidas e investimentos improdutivos. Precisamos garantir recursos públicos para os grupos mais fragilizados e garantir serviços para os mais vulneráveis, sabemos que os recursos são escassos, mas para os grupos econômicos os recursos sempre aparecem e aumentam seus lucros e enriquecem seus detentores. Na pandemia percebemos que os grandes desafios deste país são políticos, num mundo marcado pelo desenvolvimento tecnológico e da era da informação, percebemos que para superar as dificuldades precisamos construir um consenso em prol da vida e da solidariedade, deixando os interesses mesquinhos e pensarmos nos grupos mais degradados.

Neste momento estamos próximos de uma convulsão social, as mortes se sucedem em escalas colossais, os pobres e os miseráveis crescem de forma acelerada. A revista Fortune, publicada recentemente, destacou o crescimento do número de bilionários brasileiros, que cresceram de 45 para 65 pessoas, em plena pandemia seus patrimônios cresceram, ao mesmo tempo em que o país ruma para sermos um pária mundial, sem vacinas, sem alimentos, sem perspectivas e sem governos.

A pandemia exige decisões emergenciais, a crise econômica desagregou as cadeias produtivas, levando muitas indústrias a interromperem sua produção. Neste momento, precisamos reconstruir os laços sociais, incrementando o emprego, estimulando os investimentos produtivos e retomando a economia, sem estes, dificilmente conseguiremos nos reconstruir como nação, num momento de desalento, indignidade e desesperança.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia/Unesp e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/04/2021.

EUA precisam empoderar trabalhadores novamente, por Paul Krugman.

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Os sindicatos não são obsoletos, e precisamos recuperá-los

PAUL KRUGMAN – THE NEW YORK TIMES – PUBLICADO NO UOL – 12/04/2021.

Os ativistas pró-trabalhadores esperavam que a votação sobre a sindicalização no armazém da Amazon em Bessemer, no Alabama, fosse um ponto de inflexão, uma inversão na tendência de décadas de declínio dos sindicatos. O que a votação mostrou, porém, foi a persistente eficácia das táticas usadas repetidamente pelos empregadores para derrotar os esforços de organização.

Mas os defensores dos sindicatos não devem desistir. O ambiente político que deu espaço livre aos patrões antissindicais pode estar mudando —o declínio da sindicalização foi acima de tudo político, e não uma consequência necessária de uma economia em transformação. E os EUA precisam de um renascimento sindical se quisermos ter alguma esperança de inverter a espiral de desigualdade.

Comecemos falando sobre por que a afiliação aos sindicatos diminuiu, em primeiro lugar, e por que ainda é possível esperar um renascimento.

Os Estados Unidos já tiveram um poderoso movimento trabalhista. A afiliação aos sindicatos cresceu muito entre 1934 e o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950, aproximadamente um terço dos trabalhadores não agrícolas eram sindicalizados. Ainda em 1980 os sindicatos representavam aproximadamente um quarto da força de trabalho. E os sindicatos fortes tinham um grande impacto mesmo sobre os trabalhadores não sindicalizados, definindo normas de pagamento e colocando os empregadores antissindicais sob aviso de que deviam tratar seus empregados relativamente bem ou enfrentariam o movimento organizado.

Mas a participação nos sindicatos despencou, especialmente no setor privado, durante os anos 1980, e continuou caindo desde então.

Por que isso aconteceu? Muitas vezes encontro afirmativas de que o declínio foi inevitável diante da automação e da globalização —basicamente, que os sindicatos não podiam conseguir salários mais altos quando os patrões tinham a opção de substituir trabalhadores arrogantes por robôs ou mudar a produção para o exterior. Mas a evidência sugere outra coisa.

Apesar de falarmos muito sobre robôs hoje em dia, o progresso tecnológico foi na verdade mais rápido durante a maré alta da sindicalização do que nos últimos anos; a produção por trabalhador-hora aumentou duas vezes mais depressa de 1947 a 1973 do que depois de 2007. Isso não impediu os sindicatos de terem uma grande influência nos salários.

O impacto da globalização também é frequentemente exagerado. Cerca de três quartos do emprego nos países avançados são em atividades que não podem ser transferidas para outros países, proporção que não mudou muito com o tempo.

Na verdade, a Amazon é um caso típico: enquanto muitos dos produtos que se podem comprar online são importados, a posição de mercado da Amazon repousa sobre um enorme sistema de armazéns —como o de Bessemer— que empregam centenas de milhares de trabalhadores. E esses armazéns não podem ser transferidos para o exterior; seu objetivo é manter os estoques próximos dos grandes mercados, para que a Amazon possa entregar as coisas em poucos dias.

Se o setor de serviços fosse sindicalizado, os empregadores não achariam fácil substituir trabalhadores empoderados por robôs ou produção offshore. De fato, outras economias avançadas como a Dinamarca, que são tão globalizadas quanto nós, ainda têm forças de trabalho amplamente sindicalizadas; até o Canadá mantém um movimento sindical muito maior que o nosso.

Por que os sindicatos são tão fracos nos EUA? Enquanto os detalhes são discutíveis, a política americana deu uma virada rápida contra os sindicatos sob Ronald Reagan, incentivando os empregadores a jogar duro contra os sindicalistas. Isso significou que, enquanto o centro de gravidade da economia americana mudava da manufatura para os serviços, os trabalhadores nos setores em crescimento ficaram amplamente desorganizados.

E esse declínio na sindicalização teve consequências terríveis. Em seu momento áureo, os sindicatos foram uma força poderosa a favor da igualdade; sua influência reduziu a desigualdade geral dos salários e também reduziu as disparidades salariais associadas a diferentes níveis de educação e até à raça. O aumento da afiliação aos sindicatos parece ter sido um fator chave na “Grande Compressão”, a rápida redução da desigualdade que ocorreu entre meados dos anos 1930 e 1945, transformando os EUA em um país de classe média.

Inversamente, o declínio dos sindicatos teve um grande papel no aumento da desigualdade e na estagnação dos salários. E os trabalhadores perderam o poder de negociação conforme políticas antitruste permitiram que as corporações ganhassem cada vez mais poder de mercado.

Mais uma coisa: não precisamos de sindicatos fortes só para nivelar o campo de jogo econômico.

Embora seja animador ver o governo Biden propor uma reversão dos presentes dados pelo governo Trump às empresas, ainda é verdade que o dinheiro grande tem enorme influência política. Não é simplesmente uma questão de contribuições de campanha. Os interesses corporativos também conseguem definir os termos do debate por meio de sua capacidade de oferecer empregos lucrativos a ex-políticos e autoridades, apoio generoso a grupos de pensadores amigos, etc.

A força de trabalho organizada costumava oferecer um contrapeso à influência corporativa. Os sindicatos nunca estiveram em posição de se equiparar ao poder do dólar corporativo, mas podiam oferecer às pessoas poder —a capacidade de mobilizar seus membros e seus amigos e vizinhos de um modo que as corporações não podiam. E mais que nunca precisamos desse poder compensador.

Então esperemos que os ativistas trabalhistas tratem Bessemer como uma experiência de aprendizado, e não um motivo de desespero. Ainda precisamos recuperar os sindicatos fortes.

Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves

A pandemia trará o apartheid global? por Joseph Stiglitz.

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Ao Norte, créditos ilimitados e bem-estar social. Ao Sul, endividamento e o inferno da “austeridade”. Mas vírus é ameaça mundial – e saídas devem ser coletivas. Uma delas pode vir de lugar improvável: os bilhões da reserva do FMI

Joseph Stiglitz e outros – Outras Palavras – 31/03/2021

“Os líderes políticos do mundo desenvolvido deveriam reconhecer que ninguém estará seguro até que todos estejam seguros e que uma economia global saudável não é possível sem uma forte recuperação mundo afora.” Um relatório importante do Institute for New Economic Thinking está trazendo a dimensão mundial dos nossos desafios. De certa forma, está em jogo a tradicional estratégia dos países ricos resolverem os seus problemas às custas do resto do mundo:

“Atraso da vacinação das pessoas pelo mundo afora aumenta as possibilidades de mutações do vírus, reduzindo a habilidade de controlar a pandemia até em países ricos que embolsaram as vacinas.”

O artigo curto em português traz o link de relatório em inglês, sobre temas tão chave como repensar patentes, perdoar dívidas e usar o FMI para financiar os mais frágeis. Temos de pensar globalmente.

Os Estados Unidos esperam poder “comemorar a independência” da covid-19 até o dia da Independência (4 de julho), quando as vacinas terão sido disponibilizadas para toda a população adulta. Mas, para muitos países em desenvolvimento e mercados emergentes, o fim da crise ainda está bem distante. Como mostramos em um relatório para a Comissão de Transformação Econômica Global do Instituto do Novo Pensamento Econômico (INET), alcançar uma rápida recuperação global requer que todos os países possam declarar independência do vírus.

Como o coronavírus sofre mutações, se ele continuar se desenvolvendo em qualquer lugar do planeta, colocará o mundo inteiro em risco. Portanto, é fundamental que vacinas, equipamentos de proteção individual e medicamentos terapêuticos sejam distribuídos em todos os lugares, o mais rapidamente possível. E como as atuais restrições de oferta são resultado de um regime de propriedade intelectual internacional muito mal projetado, elas são basicamente artificiais.

Embora a reforma sobre a Propriedade Intelectual (PI) permanece defasada, o mais urgente agora é a suspensão ou agrupamento dos direitos de PI vinculados aos produtos necessários para combater a covid-19. Muitos países imploram por isso, mas os lobbies corporativos nos países ricos resistem — e seus governos sucumbiram à miopia. A ascensão do “nacionalismo pandêmico” expôs uma série de deficiências no comércio global, nos investimentos e regimes de PI (que a Comissão do INET tratará em posterior relatório).

Nações desenvolvidas, especialmente os EUA, agiram com força para restabelecer suas economias e apoiar empresas e famílias vulneráveis. O país aprendeu, mesmo que apenas muito recentemente, que a austeridade é profundamente contraproducente durante crises. A maioria dos países em desenvolvimento, entretanto, luta para obter fundos e manter os programas de apoio existentes, sobretudo para absorver os custos adicionais impostos pela pandemia.

Enquanto os EUA gastaram cerca de 25% do PIB para manter sua economia (e conter em grande parte a magnitude da retração), os países em desenvolvimento só puderam gastar uma pequena fração dessa quantia.

Nossos cálculos, com base nos dados do Banco Mundial mostram que, com quase US$ 17 mil dólares per capita, os gastos dos Estados Unidos foram cerca de oito mil vezes mais altos do que os dos países menos desenvolvidos.

Além de ativar seu poder de fogo fiscal, os países ricos ajudariam a si mesmos e à recuperação global adotando três políticas. Primeira: devem pressionar por uma grande emissão de direitos de saque especiais (DES), o ativo de reserva global do Fundo Monetário Internacional (FMI). Do jeito que as coisas estão, o FMI poderia emitir imediatamente cerca de US$ 650 bilhões em DES, sem precisar da aprovação dos representantes dos estados-membros. E o efeito expansionista poderia ser aumentado significativamente, se os países ricos transferissem suas alocações desproporcionalmente maiores para os países que precisam de dinheiro.

O segundo conjunto de ações também envolve o FMI, dado o seu grande papel na formulação de políticas macroeconômicas no mundo em desenvolvimento, especialmente nos países que buscam ajuda para resolver problemas na balança de pagamentos. Em um sinal encorajador, o FMI tem apoiado ativamente a busca por pacotes fiscais sólidos e prolongados pelos Estados Unidos e pela União Europeia, e até mesmo reconheceu a necessidade de aumentar os gastos públicos nos países em desenvolvimento, apesar das condições externas adversas.

Mas, quando se trata de definir os termos dos empréstimos a países que enfrentam problemas na balança de pagamentos, as ações do FMI nem sempre condizem com suas declarações. Uma análise da Oxfam International sobre recentes acordos em espera e em andamento conclui que, entre março e setembro de 2020, 76 dos 91 empréstimos do FMI negociados com 81 países, exigiram cortes nas despesas públicas que poderiam prejudicar os sistemas de saúde e as pensões, congelar os salários dos trabalhadores do setor público (incluindo médicos, enfermeiras e professores) e reduzir o seguro-desemprego, auxílio-doença e outros benefícios sociais. A austeridade – especialmente, com cortes nessas áreas vitais – não deve funcionar melhor para os países em desenvolvimento do que funcionaria para os desenvolvidos. E mais assistência, incluindo as propostas de DES discutidas acima, daria a esses países um respiro fiscal extra.

Por último, os países desenvolvidos poderiam orquestrar uma resposta abrangente aos enormes problemas de dívida que muitos países enfrentam. O dinheiro gasto com o pagamento da dívida é dinheiro que não está ajudando os países a combater o vírus nem a reiniciar suas economias. Nos estágios iniciais da pandemia, esperava-se que uma suspensão do pagamento da dívida para os países em desenvolvimento e mercados emergentes fosse suficiente. Mas já se passou mais de um ano e alguns países precisam de uma reestruturação abrangente dela, em vez dos habituais curativos que apenas preparam o terreno para outra crise daqui a alguns anos.

Existem várias maneiras pelas quais os governos credores podem facilitar essas reestruturações e induzir uma participação mais ativa do setor privado, que até agora tem sido relativamente recalcitrante. Como o relatório da Comissão do INET enfatiza, se há um momento para reconhecer os princípios de força maior e necessidade, agora é a hora. Os países não devem ser forçados a pagar o que não podem pagar, especialmente porque isso causaria enorme sofrimento.

As políticas descritas aqui seriam de enorme benefício para o mundo em desenvolvimento e teriam pouco ou nenhum custo para os países desenvolvidos. Na verdade, é de interesse próprio desses países fazer o que puderem pelas pessoas nos países em desenvolvimento e nos mercados emergentes, especialmente quando o que eles podem fazer já está disponível imediatamente e traria enormes benefícios para bilhões de pessoas. Os líderes políticos do mundo desenvolvido deveriam reconhecer que ninguém estará seguro até que todos estejam seguros e que uma economia global saudável não é possível sem uma forte recuperação mundo afora.

Guerras produtivas

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O mercado globalizado gerou grandes transformações nas nações, com impactos sobre todos os grupos sociais, incrementando a tecnologia, sofisticando as estruturas produtivas, estimulando o aumento da qualificação dos trabalhadores e intensificou a competição entre todos os agentes econômicos e sociais. A tecnologia ganhou espaço na sociedade, alterando o comportamento dos indivíduos, alterando o consumo, moldando as relações sociais, aproximando os contatos sociais digitais e, ao mesmo tempo, afastando os contatos físicos.

Nesta nova sociedade, percebemos novos modelos produtivos que, anteriormente, estavam centrados no fordismo, marcados por grandes unidades de produção, alto contingente de trabalhadores, salários elevados e produção em série. Este modelo perdeu força nos anos 1970, sendo substituído por um modelo mais flexível, marcado pela desagregação produtiva, alta tecnologia e redução do contingente de trabalhadores, incrementando setores de comunicação e de informática.

Os países mais dinâmicos e flexíveis foram aqueles que se saíram melhores nesta transição de modelo da estrutura global, enquanto aquelas nações que foram mais inflexíveis e menos dinâmicos, perderam espaços na economia internacional, diminuíram suas participações nos mercados globais e foram superados por outras nações, perderam riquezas e se tornaram mais pobres, incremento da pobreza e das desigualdades.

Os grandes ganhadores da economia internacional no período 1990/2020 foram aquelas economias que conseguiram construir projetos de desenvolvimento, centrados numa ideia de nação, adotaram um planejamento estratégico, investindo em educação de qualidade, protegendo suas estruturas produtivas, estimularam a competitividade nos mercados internacionais, adotaram políticas industriais efetivas e dinâmicas, garantindo a compra de produtos nacionais e exigindo dos produtores locais o incremento da qualidade dos produtos nacionais, garantindo financiamentos subsidiados e garantindo aumento da qualidade das mercadorias locais. Embora muitos críticos defenestrem as políticas industriais e as políticas de proteção, vistas como uma intervenção excessiva na estrutura produtiva, todas as nações que conseguiram dar um salto no desenvolvimento econômico adotaram políticas intervencionistas, centradas em planejamento, subsídios e concorrência.

Investimento em educação de qualidade é fundamental para o desenvolvimento econômico e para a melhoria da qualidade de vida da população, além de políticas de incentivos científicos e tecnológicos são cruciais para garantirem autonomia no mercado internacional. Mas precisamos entender que é fundamental atrelarmos investimentos em capital humano com políticas de desenvolvimento industrial, garantindo compras governamentais, incentivos maciços para inovação e estímulos para competição no mercado internacional, melhorando a estrutura produtiva e garantindo novos mercados no ambiente global. A proteção deve ser acompanhada de incremento na produtividade e ganho de mercados externos e maior lucratividade.

Os países que investiram excessivamente nos setores financeiros perderam espaços na economia global, nações que deixaram de lado os setores industriais colheram desindustrialização, piora dos meios de trocas, redução dos salários, degradação das estruturas produtivas, incrementando do desemprego e da desigualdade. Os pacotes econômicos do novo governo norte-americano devem servir de norte para a economia nacional.

Não se constrói uma nação pensando no curto prazo, não se constrói uma nação pensando nos interesses imediatos de corporações e de grupos organizados, não se constrói uma nação criando desemprego, desesperança e exclusão, não se constrói uma nação sem solidariedade. Todos os países que conseguiram vencer o desafio do desenvolvimento conseguiram vencer os conflitos internos, as contradições mais imediatas, vencendo todos os males que pululam nas almas daqueles que acreditam que o indivíduo é mais importante do que o coletivo. Na pandemia, neste momento de dificuldades, de incertezas e desesperanças, estamos percebendo que não se faz uma nação deixando um rastro de degradação, de desigualdade e de exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal da Região, Caderno Economia, 07/04/2021.

Os ‘genocidas’ do mercado financeiro, por João Roberto Lopes Pinto.

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Instituições comandam o cassino financeiro, drenando para os seus acionistas e cotistas a riqueza gerada pela população

Folha de São Paulo, 05/04/2021

João Roberto Lopes Pinto
Professor de ciência política da Unirio e da PUC-Rio, e coordenador do Instituto Mais Democracia

O Brasil vive um dos momentos mais trágicos da sua história, mas em 2020, que terminou com 195 mil mortos pela Covid-19 e um PIB (Produto Interno Bruto) que encolheu 4%, a movimentação financeira na Bolsa de Valores (B3) bateu recorde de pontos e de volume negociado.

O Índice Bovespa ultrapassou a marca inédita de 120 mil pontos, e o volume negociado foi de R$ 35 trilhões, quase cinco vezes o PIB do ano.

Como isso foi possível?

O CAPITALISMO FINANCEIRO BRASILEIRO

No caso brasileiro, o pacote do Banco Central de socorro ao sistema financeiro no valor de R$ 1,2 trilhão, anunciado em março de 2020, contribuiu para que os ganhos financeiros crescessem na mesma proporção das mortes por Covid-19 no país.

Vale dizer que a justificativa para o tal pacote era garantir a liquidez dos bancos nas suas operações com os clientes.

Estudo do Instituto de Economia da Universidade de Rio de Janeiro (UFRJ) mostra que pouco mais de 10% desse valor foi efetivamente disponibilizado para o crédito a empresas com dificuldades, em meio à pandemia.

Antonio Gramsci já havia constatado que a função política do fascismo é colocar a pequena burguesia e seu discurso antissistema, bases do movimento fascista, a serviço do capital monopolista financeiro, em tempos de crise.

O “neofascismo” do atual presidente, Jair Bolsonaro, com seus 20 a 30% de seguidores na população e a condução econômica do ministro Paulo Guedes parecem confirmar o diagnóstico gramsciano.

O que constatamos hoje no capitalismo brasileiro vem sendo gestado desde a crise de 2008, que chega ao Brasil somente com a queda dos preços das commodities em 2011.

Assistimos, a partir daí, a um duplo movimento que redundou no golpe de 2016: o aprofundamento da financeirização em escala global e no Brasil; e uma renovada expansão do capital monopolista internacional sobre a economia brasileira.

Em meio a um ambiente global de enormes massas de capital excedente em busca de valorização, o Brasil se viu sob a pressão de grandes grupos econômicos por desnacionalizações, privatizações, flexibilização das relações de trabalho e aprofundamento do ajuste fiscal –a tal “agenda de reformas”, segundo a mídia, ou simplesmente “agenda ultraneoliberal”, em curso desde o governo de Michel Temer.

Não por acaso, o volume negociado na Bolsa mais que dobrou nos últimos quatro anos, descolando-se aceleradamente da economia real.

Em 2016, ano do golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, somava um pouco mais de duas vezes o PIB, alcançando hoje a cifra já mencionada de quase cinco vezes.

OS AGENTES DO MERCADO FINANCEIRO

No controle dos grupos econômicos (estrangeiros e domésticos) estão, normalmente, instituições financeiras como bancos, holdings e fundos de investimento.

São essas instituições que comandam o cassino financeiro, drenando para os seus acionistas e cotistas a riqueza gerada pela população, por meio do seu trabalho e do pagamento de dívidas, taxas e tributos.

Elas se veem, hoje, plenamente representadas no Ministério da Economia de Paulo Guedes (ex-sócio fundador do BTG Pactual) e no agora “autônomo” Banco Central de Roberto Campos Neto (ex-agente de mercado do Santander).

São elas, portanto, que sustentam Bolsonaro e sua camarilha das Forças Armadas, comandadas hoje por uma oficialidade, da geração de 1964, intelectualmente indigente e politicamente servil à agenda neoliberal.

É, pois, na “Faria Lima”, avenida de São Paulo que reúne a nata do setor financeiro, que estão os principais responsáveis, juntamente com o títere Bolsonaro, pelo estado de calamidade em que já se contam mais de 300 mil mortos por covid-19, fruto do negacionismo bolsonarista.

Em nome das tais “reformas econômicas”, eles se dispõem a sacrificar princípios liberais democráticos e a sustentar saídas autocráticas.

Até porque sabem que o caráter antissocial destas reformas exige um governo capaz de impô-las a ferro e fogo à sociedade, a exemplo da aprovação pelo governo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) emergencial que, em troca de um auxílio emergencial de míseros R$ 250, asfixia ainda mais o gasto público.

Certamente, os da Faria Lima atuam para o “genocídio” da população brasileira há tempos, porém hoje o escancaramento desse “necrogoverno” que sustentam impõe que não haja meias palavras sobre a responsabilidade deles.

Mas quem são eles?

Uma pista é olhar para as instituições financeiras que se reúnem em torno da Associação Nacional de Entidades do Mercado Financeiro e de Capitais (Anbima). A Anbima é responsável por autorregular o mercado financeiro, juntamente com a autarquia pública, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A REGULARIZAÇÃO DO MERCADO FINANCEIRO COMO TAREFA PENDENTE

Já se tornou comum chamar a atenção para a elite financeira como aquela que, de fato, dá as cartas na vida política. Mas, diante da situação extrema que vivemos no país, isso se mostra insuficiente.

É preciso nomear, chamar à responsabilidade.

Os endinheirados se acostumaram a ver seus rendimentos se multiplicarem sem se interessarem por saber como tal
multiplicação se faz no mundo real –como alguém já disse, na órbita financeira não há qualquer coágulo de humanidade.

Em uma rápida olhada na composição da diretoria da Anbima, identificamos algumas dessas instituições que comandam a banca.

Destaque para os representantes domésticos Itaú/Unibanco, BTG Pactual, Bradesco, XP Investimentos, Votorantim e Safra; no caso de grupos estrangeiros, Santander, Blackrock, Brookfield, Credit Suisse, JP Morgan e BNP Paribas.
Trata-se de instituições poderosíssimas, algumas delas com o capital bem maior que o PIB brasileiro, mas por isso mesmo precisam ser expostas.

Retiremos, pois, o véu do chamado “mercado financeiro”, que nada mais é do que uma organização que, sob a justificativa do direcionamento de poupança interna e externa para o setor produtivo, atua efetivamente como um parasita que corrói o organismo hospedeiro.

Não se tem a expectativa de sensibilizar os agentes financeiros.

Como diz, também, Gramsci, é um erro esperar que a própria burguesia faça resistência ao fascismo. Seria o mesmo que reconhecer que na recente iniciativa da “Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Covid”, a chamada “carta de economistas e banqueiros”, houvesse um sentido de oposição ao governo Bolsonaro.

Trata-se de uma carta tardia que se limita, em meio ao colapso no sistema de saúde, a apontar gargalos na gestão da pandemia, conhecidos e propalados há muito tempo.

As proposições para garantir renda e proteção social são superficiais, se considerarmos que se tratam de economistas.

Talvez isso se deva ao fato de que tais propostas os levariam a ter que expor sua defesa intransigente da redução, neste momento tão crítico, do gasto público.

Já o intuito aqui é bem menos pretensioso. Simplesmente nomear, tirar da sombra, responsabilizar publicamente a elite financeira, para que o debate se instale, pelo menos, de forma mais clara e direta.

Com a palavra universidades, organizações e movimentos sociais, sobre a urgência de se exercer um controle, um monitoramento social do mercado financeiro.

Ditadura militar foi empreendimento de ódio ao povo brasileiro, por Silvio Almeida.

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São várias as mentiras sobre o regime que mergulhou o Brasil em caos e sangue por 21 anos

Folha de São Paulo, 02/04/2021.

São várias as mentiras contadas sobre a ditadura militar que mergulhou o Brasil em caos e sangue por 21 anos.

Algumas dessas mentiras são mais conhecidas, outras menos.

Das mais conhecidas, destaco duas: 1) a de que o golpe de Estado e a ditadura que se seguiu foram os únicos meios de defender o Brasil de uma suposta “ditadura comunista”; 2) A de que na ditadura militar não houve corrupção.
Sobre isso, além da corrupção primordial que foi o próprio ato de tomar à força as instituições, rasgar a Constituição e trair o povo brasileiro, os golpistas —militares e civis— se envolveram em diversos casos de desvio de dinheiro público e favorecimento pessoal.

Além dessas, há outras mentiras sobre o golpe militar de 1964, menos reproduzidas, provavelmente porque ultrapassam as justificativas morais do golpe. Refiro-me às inverdades que envolvem as consequências politicas e econômicas da ditadura. Com isso, não quero dizer que os aspectos morais não devam ser considerados. A ditadura é em muito responsável pela degradação moral do país.

Está na conta dos golpistas e seus apoiadores a normalização de um padrão de sociabilidade que faz da corrupção, da tortura, do autoritarismo e da desigualdade parte integrante da vida social. Definitivamente, ao apoiador do golpe, da ditadura militar e da tortura —praticada, inclusive, em crianças— não cabe denominação outra que a de aberração moral.

Mas é importante que a conformação política e econômica do golpe militar seja destacada, pois o silêncio sobre esses pontos é que permite que mentalidades e práticas oriundas da ditadura continuem infectando nosso cotidiano.

Ademais, o foco específico na moralidade permite que alguns dos antigos e dos novos apoiadores do regime militar continuem na cena pública apenas inserindo as palavras “democracia” e “legalidade” no meio de um discurso. É com esse expediente retórico que podem, sem sujar as mãos, continuar fornecendo suporte aos dois pilares da ditadura: desigualdade social e entreguismo.

Não foi a delirante ameaça comunista nem a defesa da família que motivou o golpe, mas sim interesses econômicos e políticos contrários à soberania nacional. Pesquisas sobre a economia brasileira têm demonstrado que aquilo que mais orgulha os próceres da ditadura militar, o tal “milagre econômico”, período de significativo crescimento, foi também o momento em que as desigualdades sociais se acentuaram.

Ao final da ditadura militar, como nos mostra o pesquisador Pedro Ferreira de Souza, o 1% mais rico da população detinha 30% de toda a renda do país. Para que a equação crescimento econômico e concentração de renda pudesse funcionar foi necessário temperar a exploração do trabalho com intensa violência politica contra trabalhadores, sindicatos, movimentos sociais e opositores em geral.

Por fim, a ideia de que os golpistas eram nacionalistas e patriotas é outra grande balela. O que se viu em 1964 foi a devastação da soberania nacional e a quebra do dever de lealdade para com o povo brasileiro. Colocou-se a economia a serviço de ricos e estrangeiros, destruiu-se a democracia, conspurcou-se a Constituição.

Com o golpe militar foram destruídas as esperanças de um Brasil altivo e soberano. E como bem lembrou Octávio de Barros em seu Twitter, o golpe foi também contra a inteligência brasileira, contra a ciência, contra a universidade, contra o desenvolvimento nacional, resultando no exílio ou assassinato de muitos professores ou cientistas, casos de Anisio Teixeira, Mario Schenberg, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Ruy Mauro Marini, Vladimir Herzog, Ana Kucinski, Iara Iavelberg, Alberto Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Álvaro Vieira Pinto, Luiz Roberto Salinas Fortes e tantos outros.

Não chegamos até aqui à toa: centenas de milhares de mortos, fome, desemprego, desmonte do sistema de proteção social, um governo incompetente e irresponsável. A ditadura militar de 1964 foi um empreendimento de ódio ao povo brasileiro. Por isso, que não pairem dúvidas sobre como pensa e o que quer para o Brasil quem celebra uma ditadura que nos mergulhou em tantas tragédias.