A Sibéria já não tem mais fronteiras, por Paulo Nogueira Batista Jr.

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‘Ortodoxia de galinheiro’ rege o debate econômico

Folha de São Paulo, 07/02/2021.

O debate econômico nos principais órgãos de comunicação brasileiros quase desapareceu nos anos recentes. Com poucas exceções, lê-se e ouve-se um único ponto de vista.

Só recebe grande veiculação o que eu costumo chamar de “ortodoxia de galinheiro”, uma versão empobrecida da ortodoxia econômica ensinada (mas nem sempre praticada) nos EUA. Em geral, repete-se por aqui o que os ortodoxos de lá consideraram verdadeiro em décadas passadas.

Um debate pobre e unilateral, como o que temos, tem consequências perigosas para um país, pois é da contraposição de ideias que surge o progresso. Sem esse debate livre e aberto, sem as fricções que ele produz, não há avanços, e nem se pode falar propriamente em democracia.

A estagnação ou semiestagnação da economia nos últimos 40 anos é, em parte, resultado da estagnação do debate de ideias entre nós. Com um debate livre, dificilmente teriam prosperado políticas econômicas antinacionais, inconsistentes com os interesses da maioria da população. Dificilmente o Brasil teria importado “consensos” que nos levaram a seguir políticas temerárias em diversos períodos, tais como o excessivo de endividamento em moeda estrangeira, a liberalização prematura dos movimentos de capital, a apreciação exagerada do câmbio e o abandono do

investimento público em infraestrutura.

A pregação de “reformas” é sempre muito seletiva. Quase nunca são lembradas reformas fundamentais como a do sistema financeiro, a “estagnação” do Banco Central a (para torná-lo independente de interesses privados) e a redistribuição ampla da renda, inclusive da tributação, para que ela possa ser socialmente justa.

Nos anos 1980 e 1990, vigorava um sistema de censura na Rede Globo, conduzido por um diretor de jornalismo chamado Evandro Carlos de Andrade. Quando um político, economista ou algum outro profissional atuava de forma, digamos, pouco construtiva do ponto de vista do establishment, caia nas más graças do tal Evandro e passava a ser sistematicamente excluído do noticiário. Não podia ser ouvido, entrevistado ou mesmo mencionado.

Uma curiosidade é que o responsável pela lista dos excluídos era um ex-stalinista, que reproduziu comportamento encontradiço em pessoas com esse passado político: usava, na defesa dos interesses do capital, os métodos e vícios aprendidos na escola do venerável Joseph Stalin, grande especialista em apagar o presente e o passado. O mais destacado dos integrantes da lista era Leonel Brizola, que foi quem lançou o mote que estou recuperando agora. Em entrevista à época, Brizola ironizou: “Mandaram-me para a Sibéria”. A alusão era ao passado stalinista do executivo da Globo.

Hoje, o quadro é pior. Na mídia brasileira, a Sibéria quase não tem mais fronteiras. As suas imensas e lívidas paisagens se alastraram por toda a parte —televisão, rádio, jornais, revistas e canais de internet. Além disso, a lista dos exilados inchou e passou a incluir, com exceções ocasionais, a centro-esquerda e a esquerda inteiras. A Sibéria está ficando “crowdeada”.

Fora da mídia alternativa —basicamente sites, canais e blogs independentes—, quase não há mais espaço para visões críticas ao “consenso do mercado”. Esta Folha, com limitações, é uma das poucas exceções. O brasileiro desavisado haverá de pensar que não existem mais dúvidas sobre os pilares da ortodoxia de galinheiro.

É espantoso, leitor, o que passa por sabedoria econômica no Brasil! Um estágio de curta duração no FMI já faria bem aos economistas do mercado tupiniquim. É que o Fundo, desde a crise de 2008, empreendeu considerável revisão da sua macroeconomia. Hoje, por exemplo, é difícil encontrar na instituição uma defesa radical da austeridade fiscal, que não leve em conta seus efeitos sobre a atividade, o emprego e a distribuição da renda. É verdade que o braço operacional, mais conservador, ainda se mostra relutante em abandonar a abordagem fiscalista. Mas é difícil encontrar algum economista do FMI que elogie, com sinceridade, um teto que congela em termos reais a maior parte do gasto público primário por 20 anos —e ainda por cima inscrito na Constituição.

Como é sintomático do nosso atraso que se possa invocar até o FMI, velho de guerra, para criticar a ortodoxia brasileira!

Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelos Brics em Xangai), ex-diretor-executivo no FMI em Washington e autor de ‘O Brasil não cabe no quintal de ninguém’ (editora LeYa)

O mito do progresso

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A pandemia está desnudando as condições sociais da sociedade internacional, mostrando as negatividades que foram construídas nas últimas décadas, deixando uma sociedade refém das desigualdades e da desesperança, criando medos e instabilidades que levam os seres humanos a preocupações crescentes, ansiedades, depressões e o incremento do suicídio em todas as regiões do mundo. De outro lado, neste momento percebemos que o sistema econômico dominante garante a um reduzido grupo, mas forte econômica e politicamente, o poder e o controle dos recursos monetários, os instrumentos de comunicação, os valores que transitam nas Bolsas globais, os costumes e os comportamentos.

A pandemia está trazendo novos instrumentos de reflexão, o caos gerado pelo vírus mostra como somos frágeis, nos mostra ainda que não estamos capacitados por uma grande degradação econômica e sanitária, os consensos são frágeis e os recursos são concentrados, onde uma pequena parte, algo em torno de 1% da sociedade global, concentrava, em 2018, mais de 85% das riquezas geradas no mundo, perpetuando as desigualdades sociais, levando-nos a indagarmos se o mundo contemporâneo está progredindo ou estamos caminhando a passos largos para uma convulsão social, cujos impactos são impossíveis de serem mensurados.

O desenvolvimento da tecnologia foi assustador nos últimos anos, o crescimento das áreas da saúde, como percebemos neste momento de pandemia, cujas pesquisas culminaram em várias vacinas num período recorde, criando possibilidades e esperanças. O crescimento nas áreas da comunicação e das finanças estão contribuindo para incluir milhões de pessoas, levando a todos os continentes informações e recursos financeiros, dinamizando as regiões e impulsionando novos espaços de produção e de empreendedorismo, com impactos positivos.

Os benefícios da tecnologia são inquestionáveis, doenças que facilmente poderiam levar o ser humano ao óbito, na atualidade, podem ser facilmente tratadas, melhorando a qualidade de vida e o bem-estar social, levando os indivíduos a transformarem suas vidas, abrindo novos mercados de consumo e novas oportunidades para os trabalhadores, com incremento da expectativa de vida. Ao mesmo tempo, temos que refletir sobre os grandes ganhadores deste progresso, onde uma parte da população está desprovido destes benefícios. Neste momento, percebemos um grande contingente de trabalhadores, estimados em 2 bilhões de pessoas, que vivem em residências sem saneamento básico, sem o mínimo acesso à internet, sem serviços de saúde, inexistência de proteção social, sem escolas decentes e perspectivas degradantes, nesta situação, percebemos que a desigualdade está crescendo de forma acelerada, perpetuando pobrezas e indignidades.

Neste ambiente, percebemos discursos centrados na meritocracia, numa sociedade tão marcada por iniquidade, onde as oportunidades inexistem para uma grande parte das pessoas, o discurso do mérito perde a efetividade e a legitimidade, contribuindo para aumentar as frustrações e as desesperanças que permeiam a sociedade contemporânea.

O verdadeiro progresso da humanidade deve melhorar a qualidade de vida e o bem-estar da grande parte da sociedade, garantindo novas oportunidades, melhorias educacionais, incremento dos serviços de saúde dos indivíduos, empregos dignos e bem remunerados. O sonho do progresso é possível desde que os desafios sejam enfrentados de frente, na sociedade global as discussões sobre a desigualdade crescem de forma acelerada, instituições mais ortodoxas e conservadoras estão advogando políticas públicas mais efetivas para combater esta desigualdade, percebendo que dentre os maiores desafios do capitalismo mundial é criar novos espaços de sobrevivências digna e decente, evitando que a sociedade caminhe para a barbárie, a convulsão social e a degradação dos seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/02/2021.

A economista que defende uma mudança radical do capitalismo para o mundo pós-pandemia

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Margarita Rodriguez, BBC News Mundo – 08/08/2020

Mariana Mazzucato é considerada uma das economistas mais influentes dos últimos anos. E existe algo que ela quer ajudar a consertar: a economia global.

“Admirada por Bill Gates, consultada por governos, Mariana Mazzucato é a especialista com quem outras pessoas discutem por sua conta e risco”, escreveu a jornalista Helen Rumbelow no jornal britânico The Times, em um artigo de 2017 intitulado “Não mexa com Mariana Mazzucato, a mais assustadora economista do mundo”.

Para Eshe Nelson, da publicação especializada Quartz, a economista ítalo-americana não é assustadora, mas “franca e direta, a serviço de uma missão que poderia salvar o capitalismo de si mesmo”.

O jornal The New York Times a definiu como “a economista de esquerda com uma nova história sobre o capitalismo”, em 2019. Em maio deste ano, a revista Forbes a incluiu no relatório: “5 economistas que estão redefinindo tudo. Ah, sim, e elas são mulheres”.

“Ela quer fazer com que a economia sirva às pessoas, em vez de focar em sua servidão”, escreveu o colunista Avivah Wittenberg-Cox.

Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação na University College London, na Inglaterra, onde também é diretora-fundadora de um instituto de inovação na mesma universidade. Também é autora do livro O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado

O trabalho de Mazzucato teve inclusive um impacto fora dos círculos dos economistas. “No futuro econômico, a visão da economista Mariana Mazzucato, professora da University College London, é interessante. Acho que ela ajuda para pensar no futuro”, escreveu o papa Francisco, em março, em uma carta dirigida a Roberto Andrés Gallardo, presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Humanos.

Mazzucato acredita que o capitalismo pode ser orientado para um “futuro inovador e sustentável que funcione para todos nós”, diz a organização Ted, que promoveu três palestras com ela.

De fato, Mazzucato considera que a crise desencadeada pela pandemia de covid-19 é uma oportunidade de “fazer um capitalismo diferente”. Ela fala há anos sobre a importância dos investimentos do Estado nos processos de inovação.

Um de seus objetivos é acabar com o mito de que o Estado é uma entidade burocrática que simplesmente promove a lentidão. Outro é demonstrar que na economia “o valor não é apenas o preço”.

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrevistou Mariana Mazzucato. Confira a seguir os principais trechos.

BBC News Mundo – Você já chegou a declarar: ‘Não podemos voltar à normalidade. O normal é o que nos levou não apenas a este caos, mas também à crise financeira e à crise climática’. Essas palavras têm um significado especial para a América Latina, uma região com alto nível de desigualdade e pobreza, que luta contra as mudanças climáticas e com muitas de suas comunidades atingidas pela pandemia de coronavírus. Como podemos evitar voltar à normalidade pré-pandemia? Por que as pessoas não deveriam querer voltar a isso?
Mariana Mazzucato – A crise nos mostrou as deficiências na capacidade dos Estados e também que a maneira como vemos o papel do Estado no último meio século foi completamente inadequada.

Desde a década de 1980, os governos foram instruídos a se sentarem no banco traseiro para permitir que as empresas administrem (a economia) e criem riqueza. O Estado só poderia intervir para resolver problemas eventuais. O resultado é que os governos nem sempre estão adequadamente preparados e equipados para lidar com crises como a pandemia de covid-19 ou a emergência climática. Ao se presumir que os governos precisam esperar até que ocorra um grande choque sistêmico para agir, são tomadas medidas insuficientes.

Nesse processo, as instituições essenciais que fornecem bens e serviços públicos de maneira mais ampla (como o Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido, que teve cortes de verbas de US$ 1 bilhão desde 2015) ficam enfraquecidas. As medidas de austeridade impostas após a crise financeira de 2008 foram o oposto do investimento necessário para aumentar a capacidade do setor público e, assim, prepará-lo para o próximo choque do sistema.

Na América Latina, é fundamental que a agenda se concentre na criação e na redistribuição de valor.

Altos níveis de desigualdade e pobreza significam que existem populações vulneráveis com potencial para enfrentar enormes dificuldades econômicas no contexto de uma crise como a que estamos enfrentando agora. E, para agravar ainda mais as coisas, as economias latino-americanas são caracterizadas por enormes setores informais. Em todo o mundo, incluindo a América Latina, Estados despreparados gastam menos recursos para financiar serviços públicos. Além disso, eles também têm menos opções para ajudar o setor informal, o que é desastroso para as populações vulneráveis.

Portanto, os Estados devem criar valor investindo e inovando para encontrar novas maneiras de fornecer serviços públicos a populações vulneráveis na economia informal. Quando os Estados ficam em segundo plano e não se preparam para crises (o que aconteceu em muitos países, não apenas na América Latina), sua capacidade de oferecer serviços públicos é severamente prejudicada.

Mas esses serviços públicos devem fazer parte de um sistema de inovação: cidades verdes e crescimento inclusivo exigem inovação social e tecnológica. As tendências de desindustrialização na região criam dificuldades adicionais. Os Estados não têm capacidade para exigir que os produtores locais aumentem a criação de bens necessários para enfrentar a crise (por exemplo: suprimentos hospitalares), o que os obriga a depender do mercado internacional em colapso para acessar esses bens.

BBC News Mundo – Você disse que ‘a crise da covid-19 é uma oportunidade de criar um capitalismo diferente’. O que isso quer dizer? O que esta crise está nos dizendo sobre o sistema atual que outras crises não nos disseram?
Mazzucato – Há uma “tripla crise do capitalismo” acontecendo. Uma crise de saúde: a pandemia global confinou a maioria da população mundial, e está claro que somos tão vulneráveis quanto nossos vizinhos, local, nacional e internacionalmente.

Uma crise econômica: a desigualdade é uma causa e uma consequência da pandemia. A crise da covid-19 está expondo ainda mais falhas em nossas estruturas econômicas. A crescente precariedade do trabalho é uma delas. Pior ainda, os governos estão agora emprestando para empresas em um momento em que a dívida privada é historicamente alta, enquanto a dívida pública tem sido vista como um problema na última década de austeridade. Além disso, um setor de negócios excessivamente ‘financeirizado’ tem desviado o valor da economia.

A terceira crise é climática: não podemos voltar aos ‘negócios de sempre’. No início deste ano, antes da pandemia, a mídia estava cheia de imagens aterrorizantes de bombeiros sobrecarregados (tentando apagar incêndios), e não de profissionais de saúde.

BBC News Mundo – O capitalismo como o conhecemos pode sobreviver? Ele deve ser salvo?
Mazzucato – Essa crise e a recuperação de que precisamos nos dão a oportunidade de entender e explorar como fazer o capitalismo de maneira diferente. Isso justifica repensar para que servem os governos: em vez de simplesmente corrigir as falhas de mercado quando elas surgirem, elas devem avançar ativamente para moldar e criar mercados para enfrentar os desafios mais prementes da sociedade.

Eles também devem garantir que as parcerias estabelecidas com empresas, envolvendo fundos governamentais, sejam motivadas pelo interesse público, e não pelo lucro. Quando empresas privadas pedem resgates para os governos, devemos pensar no mundo que queremos construir para o futuro e na direção da inovação que precisamos alcançá-lo, e, com base nisso, adicionar condições que beneficiem o interesse público, não apenas o privado. Isso garantirá a direção da viagem que queremos: verde, sustentável e equitativa.

Quando as condicionalidades são bem-sucedidas, elas alinham o comportamento corporativo às necessidades da sociedade. No curto prazo, isso se concentra na preservação das relações de trabalho durante a crise e na manutenção da capacidade produtiva da economia, evitando a extração de fundos para os mercados financeiros e a remuneração de executivos. A longo prazo, trata-se de garantir que os modelos de negócios levem a um crescimento mais inclusivo e sustentável.

Em 31 de março, em sua conta no Twitter, Mazzucato reagiu às palavras do papa Francisco sobre seu livro: “Estou profundamente honrada pelo papa ter lido meu livro O valor de tudo: criar e absorver a economia global e por concordar que o futuro — especialmente pós-covid-19 — tem a ver com uma repriorização de ‘valor ‘acima’ preço'”.

A especialista disse à BBC News Mundo que ela foi convidada a participar de uma comissão do Vaticano focada na economia no âmbito da pandemia da covid-19 e nos contou sobre essa experiência: “Fornecemos relatórios semanais ao papa e à Diretoria do Vaticano, antes dos discursos semanais do papa, sobre aspectos-chave da resposta econômica à covid-19. É uma grande honra”.

“Nosso instituto de pesquisa e inovação se junta ao grupo de trabalho de outras universidades, incluindo a Georgetown, nos Estados Unidos, e do World Resources Institute. Esses relatórios variam da economia política do alívio da dívida à reestruturação das relações econômicas público-privadas”, prossegue.

“Nosso principal interesse é trabalhar com o Vaticano sobre como seu conceito de ‘bem comum’, do qual falamos em termos de ‘valor público’, pode ser usado para estruturar a forma de investimento e colaboração públicos e privados. Sem isso, corremos o risco de fazer o mesmo que aconteceu com a crise financeira de 2008: bilhões foram injetados sem afetar a economia real. A maior parte disso voltou ao setor financeiro e a crise seguinte começou a crescer”, diz ela.

“Para construir um crescimento inclusivo e sustentável, precisamos de investimento público impulsionado pelo conceito de bem comum e novos tipos de relações público-privadas que são estruturadas sob condições que criam um ecossistema mais simbiótico e não-parasitário. E temos que trazer grupos de cidadãos e sindicatos para a mesa de discussão, para garantir que não apenas tenhamos uma transição mais justa, mas que também haja vozes diferentes para definir que tipo de sociedade queremos. Acredito que a energia renovada por trás dos movimentos sociais, como o Black Lives Matter, é um bom sinal de que haverá uma forte pressão para que nossas sociedades evoluam progressivamente. Se não o fizermos, perderemos.”
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O Brasil não é só uma grande fazenda, por Marcus V. Rodrigues.

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Folha de São Paulo, 08/02/2021.

Desconhecer este fato é grave erro para alguns e ‘crime’ para outros

Em tempos de fake news, não acreditei, num primeiro momento, na veracidade das declarações recentes do sr. Carlos von Doellinger, dirigente maior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), defendendo a desindustrialização do Brasil nas atividades não vinculadas à agricultura e à mineração.

Um jovem assistente meu chegou a dizer, de forma humorada, que ele deve ter um doutorado em economia em Chicago, como muitos dos geniais burocratas da atual equipe de economistas do Ministério da Economia, que não são favoráveis e não entendem do tema desenvolvimento industrial.

Logo depois, também com o humor brasileiro, levantou a hipótese de que ele tinha tomado a vacina, e isso poderia ter alterado seu DNA, fazendo com que perdesse o bom senso ou esquecesse os ensinamentos básicos de uma especialização que fez em engenharia de produção e fabricação na PUC-RJ.

Mas nada disso! O atual presidente do Ipea, uma instituição que abriga os mais bem formados doutores em economia do país, possui somente um mestrado. E, pelas informações a que se teve acesso, ainda não tomou a vacina contra a Covid 19.

O Ipea é uma das instituições de referência e excelência, herança bendita dos governos militares, com o legado de “pensar o Brasil” e que ajudou a forjar o milagre econômico dos anos 1970. Historicamente, ele tem a função de dar suporte técnico ao governo para a formulação de políticas públicas destinadas aos programas de desenvolvimento.

Portanto, seu dirigente maior deveria ter uma visão macro e atualizada do contexto atual e ser independente do órgão responsável pelos programas de desenvolvimento, hoje o Ministério da Economia. Mas o atual presidente do Ipea foi indicação pessoal, segundo informações da imprensa, do titular do citado ministério, Paulo Guedes.

Assim, tudo foi explicado. Nem fake news, nem os efeitos da vacina, nem Chicago. O que pode ter ocorrido foi um saudosismo no retorno aos debates da “política do café com leite” da República Velha, quando se discutia o que era mais importante: a industrialização ou vender commodities. Posições míopes e desatualizadas quanto ao desenvolvimento, com foco apenas nos aspectos macroeconômicos, desprezando conhecimentos atuais e experiências de nações que cresceram e empregaram seus cidadãos a partir do setor industrial.

Hoje não existe nação forte, independente e soberana sem um parque industrial moderno, abrangente, diversificado e ativo, que fabrique de alfinetes a aviões. O exemplo disso é a recente pandemia que explicitou o erro estratégico das nações ocidentais ao terceirizar suas produções industriais, passando a administrar apenas marcas, marketing e fumaça. O desespero de muitas para comprar respiradores, e agora os insumos para a vacina, despertou o Ocidente para o erro cometido. Mas, diante das recentes declarações do titular do Ipea, o instituto que “pensa o Brasil”, o posicionamento brasileiro deveria ser o oposto.

É inconsequente e irresponsável que se defenda a desindustrialização de atividades não vinculadas à agricultura e à mineração. Isso poderia ser um crime de traição à pátria? Não tenho conhecimento jurídico para responder.

E tudo isso durante a quarta fase da Revolução Industrial, que tem como foco a inteligência artificial e que bate às nossas portas. No Brasil, a produção primária e a manufatura de seus produtos se fazem imperiosas sim. Mas só isso é pouco! Seria como planejar o fim dos sonhos de um país independente e autossuficiente.

Mas o Brasil é forte, grande e inovador. E o empresário brasileiro tem garra, é empreendedor e pensa grande —não vai se adequar somente à produção ou manufatura das commodities como foi sugerido, de forma limitada e infeliz, por um frentista do posto Ipiranga.

Pense mais, Ipea. Faça o seu papel e ajude a acordar o Brasil!

Marcus Vinicius Rodrigues
Doutor em engenharia da produção e autor de livros na temática qualidade e produtividade, é membro do Conselho Editorial do Instituto General Villas Bôas e da Academia Brasileira de Ciências da Administração e ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)

O desafio dos sem-escola, por Renata Cafardo.

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Problema da evasão escolar, que já era sério antes, passa longe da atenção do governo

Renata Cafardo, O Estado de S. Paulo – 06/02/2021

Entre os prejuízos já tão enumerados da falta de escola durante o ano passado, há um que permanece invisível aos olhos da sociedade que ainda briga para abrir ou não a escola. Há meninos e meninas, de todas as idades, que deixaram a escola em 2020 e nunca mais vão voltar se ninguém correr atrás deles. Claro, isso infelizmente já acontecia antes da pandemia, mas os primeiros indicadores mostram que, como se previa, piorou.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad feita durante a pandemia, indicam o número assustador de 1,3 milhão de crianças e adolescentes que não estavam frequentando a escola – presencial ou remota – em outubro.

Isso representa 3,8% da população entre 6 e 17 anos. Pré-pandemia, era quase a metade, 2%. Além deles, outros 4 milhões não tiveram acesso a nenhuma atividade escolar. Com isso, 5,5 milhões de brasileiros de 6 a 17 anos não têm seu direito à educação preservado. Ou seja, não têm escola.

Para eles, a discussão sobre abrir ou não escola importa apenas se, quando aberta, alguém estiver disposto a procurá-lo e levá-lo de volta. Porque está claro que, enquanto fechada, nada foi feito para isso em muitos lugares. Os maiores índices são no Norte e Nordeste do País. O Estado mais crítico é Roraima, com 15% das crianças e adolescentes nessa situação. Em São Paulo, são 4%.

Esses dados estão em relatório recente do Unicef, organização que há tempos se dedica a ir atrás dessas crianças, com um programa da chamada busca ativa. Municípios e Estados inscritos podem acessar uma plataforma onde são colocados os dados das crianças fora da escola. Técnicos batem de porta em porta, sobem na bicicleta ou no jegue, atrás de quem não apareceu mais para estudar. Em 2020, conseguiram que 80 mil fossem rematriculados, 35 mil durante a pandemia.

O Unicef ensina que o trabalho não é apenas da educação. Isso porque os motivos de deixar a escola não têm necessariamente a ver com uma educação de má qualidade. O que leva crianças e adolescentes são o trabalho infantil, o abuso sexual, a violência dentro de casa ou na própria escola, a falta de transporte, a gravidez precoce. Por isso, cidades dispostas a não deixar seus pequenos cidadãos para trás precisam unir Saúde, Educação e Assistência Social para buscá-los e convencê-los a voltar.

Gestores precisam olhar para o problema como prioridade. As matrículas para 2021 já foram feitas, muitas escolas já estão reabrindo, todos devem se preocupar com cada um que não apareceu. Como já era esperado, não há qualquer olhar federal para o problema. O Ministério da Educação não fala em evasão escolar na pandemia.

Mas, mesmo em meio à confusão de pós-eleição do presidente da Câmara, deputados da bancada da educação – Tábata Amaral (PDT-SP), Idilvan Alencar (PDT-CE), Professor Israel Batista (PV-DF), Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), entre outros – apresentaram semana passada um projeto de lei que prevê uma bolsa para adolescentes pobres que continuarem estudando.

A ideia é pagar R$ 500 a quem concluir o 1.º ano do ensino médio, R$ 600 para o que terminar o 2.º e R$ 700 no fim do 3.º. Os que tivessem nota acima na média no Enem ganhariam um pouco mais. Segundo Tábata, o foco é no adolescente porque os índices de evasão já são altíssimos nessa etapa. O benefício seria incorporado ao Bolsa Família e atingiria 4 milhões de jovens.

Como diz a deputada, a auto estima do adolescente não anda bem. Ele não acredita que a educação vai levá-lo a algum lugar. Mas, com certeza, há um destino melhor para quem não deixa a escola. Com mais dinheiro, melhor emprego, mais saúde, mais anos de vida. É preciso repetir isso sempre, para que excluídos não continuem cada vez mais excluídos.

É REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADO E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)

‘Brasil ainda vive mundo pré-Revolução Francesa’, diz Eduardo Giannetti

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Para o economista, que publicou em novembro o livro ‘O Anel de Giges’, elite brasileira ainda acredita poder transgredir leis impunemente

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 05/02/2021

Ética é o tema central do último livro do economista Eduardo Giannetti O Anel de Giges, publicado em novembro.

Nele, o autor conta como diferentes correntes de pensamento abordam as respostas do homem para a certeza de impunidade. A obra é uma reflexão sobre “elementos universais da psicologia moral dos seres humanos”. “Embora esse livro não fale de Brasil, ele parte de uma experiência de um cidadão brasileiro, que percebe como a ética é talvez o fulcro maior das nossas dificuldades”, diz o economista.
Giannetti não trata de brasileiros nem de nenhuma sociedade específica, mas, quando questionado sobre os padrões éticos locais e atuais, afirma que o País está no século 18. “O Brasil vive o Antigo Regime, aquele mundo pré-revolução francesa, em que uma classe de pessoas ricas, poderosas e famosas se sente acima dos demais e acredita que pode, impunemente, transgredir normas e leis que regem a vida em sociedade.”

O economista diz também que acreditava que esse cenário poderia mudar com a Lava Jato, mas que o País acabou retrocedendo nos últimos anos. “(A Lava Jato) não teve sequência, não mudou as práticas políticas. Não construímos um regime que torne muito mais onerosa e custosa uma prática corrupta.”

Em Anel de Giges, o autor parte da fábula de Giges – relatada no livro República, de Platão -, em que um camponês encontra um anel que lhe dá o poder da invisibilidade. Sem censuras sociais e podendo violar a lei sem ser punido, Giges seduz a rainha, mata o rei e se apossa do trono. Giannetti questiona o que cada um de nós faria no lugar de Giges. Seríamos o “Giges-sem-lei”? Isto é, um Giges que age como “a fera da ambição desmedida”. Ou o “Giges-cristão”? Ou seja, um Giges que se abstém de usar o anel por ser livre de tentações. Giannetti, novamente, trata do homem de forma universal, mas, nesta entrevista ao Estadão, admite que o brasileiro pode ser um “Giges-sem-lei afetuoso”, mais passional e menos calculista.

No livro, o sr. afirma que ética e virtude não são mais frágeis que desonestidade e má-fé. Isso é válido para todas as sociedades independentemente dos períodos? Às vezes é difícil acreditar nisso quando vivemos momentos trágicos como o atual e vemos pessoas e governantes tirando vantagem sem nem mesmo precisar de um anel de Giges.

Esse livro não é referido a um contexto histórico. A palavra Brasil sequer ocorre no livro inteiro. Estou tentando pensar elementos universais da psicologia moral dos seres humanos. Aquela corrente do Giges-sem-lei, que começa com o Gláucon (irmão mais velho de Platão, que conta a história de Giges), em República, passa na filosofia moderna, entre outros, por Hobbes e Rousseau e reaparece na obra do Freud, toma a parte pelo todo. Ela se foca muito nos elementos antissociais da psicologia humana: agressividade, sexualidade abusiva, desejo de tirar proveito sem nenhuma preocupação com o outro. Ela não leva em conta que o ser humano tem um princípio de sociabilidade muito profundo. Nós buscamos construir vínculos densos de afetividade com pessoas que importam para nós. Isso foi completamente subestimado. O Giges-sem-lei que trata os outros de forma puramente instrumental e calculista termina solitário. Criando um deserto à sua volta. Ele está permanentemente em uma postura de manipulador. Procuro mostrar que essa concepção de felicidade é limitada. Ela não dá conta dos anseios constitutivos do ser humano. Adam Smith e David Hume colocam um contraponto. Hume fala de uma pessoa que tem todos os poderes do universo, mas que, enquanto não tiver uma pessoa com quem possa compartilhar isso de maneira sincera e espontânea, é o mais miserável dos homens. Adam Smith diz que o maior charlatão tem algum princípio na sua constituição psicológica que o leva a ter algum grau de empatia com os demais. (O homem) não é totalmente isolado dos sentimentos morais da comunidade.

Por outro lado, o sr. também coloca críticas ao Giges de Platão e ao Giges-cristão.

Eles colocam demandas sobre-humanas para que alcancemos um ideal de perfeição ética completamente irreal, dada a nossa psicologia moral e dado o nosso psiquismo arcaico, que é herdado do ambiente evolucionário. Assim como nosso corpo é uma relíquia de tempos ancestrais – ele foi moldado ao longo de um processo evolutivo de centenas de milhares de anos -, algo semelhante ocorre em relação à psique humana. Ela foi moldada ao longo de um processo evolutivo. Nós somos herdeiros de um psiquismo arcaico, que não escolhemos ter. Essas duas correntes filosóficas e Kant também ignoram por completo esse psiquismo arcaico do qual nós somos herdeiros independentemente da nossa vontade. São partes constitutivas do nosso ser. Não são visíveis a olho nu como é o nosso corpo, mas pertencem a nós e são parte da nossa interioridade. Muitas das pulsões antissociais que temos são fruto dessa herança evolutiva.

Apesar de o livro não tratar de uma sociedade específica, é possível relacioná-lo à nossa sociedade?

Tem dois vínculos que dá para fazer entre os temas do livro e a realidade brasileira. O primeiro é que o Brasil ainda parece ser um país que vive o Antigo Regime, aquele mundo pré-revolução francesa, em que uma classe de pessoas ricas, poderosas e famosas se sente acima dos demais e acredita que pode, impunemente, transgredir normas e leis que regem a vida em sociedade. A palavra privilégio, a etimologia dela, vem daí. Privilégio é uma lei privada que não se aplica a todos. Muitas autoridades e pessoas poderosas acreditam que sua condição lhes dá o privilégio de fazer impunemente ações que agridem os direitos dos demais. Tem tantos exemplos, de foro privilegiado, de supersalários, autoridades que afrontam a polícia, que abusam de todas as prerrogativas para exercer os seus desmandos. Vou ler um trecho de um romance do Marquês de Sade que cito no livro. O Marquês de Sade está descrevendo o que era o mundo do Antigo Regime francês e coloca na boca de um de seus personagens, Verneuil, a presunção de quase irrestrita impunidade da elite aristocrática, dos ricos, poderosos e famosos daquela época. Ele diz: ‘É impossível que as leis sejam igualmente aplicáveis a todos os homens. Esses remédios morais não são diferentes dos remédios físicos: não nos riríamos de um curandeiro que, possuindo apenas um remédio para todos os fregueses, tratasse um estivador da mesma forma que a uma solteirona frívola? Claro que sim! As leis são feitas somente para gente comum, os que necessitam de restrições e que nada tem a ver com o homem poderoso, a quem elas não dizem respeito. Em qualquer governo, o essencial é que o povo jamais invada a autoridade dos poderosos.” Isso é a presunção de impunidade e a condição de privilégio da elite do Antigo Regime. Eu acredito que o Brasil ainda vive isso em grande medida. Boa parte da nossa elite acredita que a lei é para os outros, para o povão. Aproveita qualquer situação para abusar da condição de privilégio que têm.

O livro traz um experimento de impunidade real, em que foram analisados diplomatas que podiam estacionar em locais proibidos em Nova York sem serem multados. O sr. não cita como os brasileiros se comportaram, mas, pelo experimento, eles tiveram uma média de 29,9 infrações por diplomata e ficaram na 29ª posição no ranking dos mais corruptos, entre 146 nacionalidades. O sr. afirma que a adesão às normas, mesmo quando se tem impunidade, depende da existência de uma rede de crenças morais compartilhadas pelas pessoas. Isso significa que no Brasil haveria um menor compartilhamento?

Outro tema que liga (o livro) com o Brasil é um fenômeno que chamei de “paradoxo do brasileiro”. Cada brasileiro, individualmente, acredita ser muito distinto de tudo o que vê ao seu redor. Ele vê um mundo de corrupção, de abuso de autoridade, de desmandos, de incompetência. Mas todos nós nos achamos, de alguma maneira, diferentes e superiores a tudo isso. No entanto, todos nós juntos somos exatamente tudo isso que aí está. Isso é um paradoxo.

Temos um ponto cego em relação a nós mesmos e um olho de lince em relação às falhas dos demais. Eu posso te dar depoimento como professor, por 30 anos, do que eu vi em sala de aula, mas tem mil outras situações. Os alunos vão às ruas, protestam contra corrupção, exigem ética na política, querem mudar o modo como se governa o Brasil. Tem de fazer isso mesmo. Essa indignação é o que pode mudar as coisas. No entanto, esses mesmos alunos, quando termina o ano e eu vou dar a prova, começam a colar e não percebem que essas duas coisas são incompatíveis. Você não pode estar um dia na rua pedindo ética na política e, quando chega o momento de dar o exemplo mais comezinho de comportamento ético, pisa na bola. Será que esses jovens não ligam as pontas? Não percebem que esse exercício de racionalização do seu próprio caso individual é que vai levando a essa situação que é tudo isso que aí está? Quem começa colocando na faculdade daqui a pouco está roubando no Congresso, fraudando Orçamento. E vai racionalizando o seu próprio caso com enorme criatividade: ‘é um pecadilho, está todo mundo fazendo’. O Brasil sempre foi assim.

Quem é o mestre na descrição disso é o Machado de Assis. Por isso, eu dediquei um capítulo a ele, que mostra no detalhe, até com certo sadismo, a nossa riquíssima vocação para a desonestidade criativa. Nós nos justificamos aos nossos próprios olhos naquilo que nós fazemos de errado. As pessoas não se percebem como parte do todo e não percebem que o que aí está é o resultado de todos nós juntos. Eu não me excluo desse paradoxo. Sou parte dele.
Mas isso não significa que compartilhamos menos uma rede de crenças morais.

Aí é uma coisa delicada. Tem um filósofo inglês do século 18, Joseph Butlin, que tem uma colocação que não está no livro, mas vai muito nessa pergunta. Ele questiona o seguinte: qual é o padrão de moral vigente em uma sociedade?

Ele fala: se você quer saber qual é o padrão das crenças compartilhadas em um determinado agrupamento humano, basta observar o que estão todos se esforçando em parecer que são: honestos, competentes, cumpridores do dever, atenciosos. O hipócrita e o corrupto sabem melhor do que ninguém quais são as crenças morais compartilhadas socialmente, mesmo que não as pratique. A prova disso é que eles são hiper cuidadosos quando se trata de ocultá-las e de não se traírem aos olhos dos demais. Isso é a demonstração de que eles sabem e compartilham, embora não pratiquem. Os brasileiros sabem o que é certo e o que é errado. Por isso que os hipócritas e corruptos se dão tanto ao trabalho de ocultar as práticas que cometem. A Lava Jato foi um exemplo monumental disso. Quantos de nós no Brasil poderíamos supor que, ao longo de tantos anos, a Petrobrás tinha se tornado o que ela mostrou ter se tornado. Foi preciso um trabalho de investigação para que aquilo aflorasse. As pessoas que estavam ocultando sabiam perfeitamente quão errado era aquilo. Acho que uma característica histórica e de origem da formação social e cultural brasileira é um individualismo exacerbado. As pessoas pensam em si e nas suas famílias. Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei. É um fenômeno chamado de familismo amoral. É desse individualismo anárquico que resulta nossa dificuldade em ter instituições, em ter comportamentos que nos permitam nos reconhecermos como coletividade. Não é um problema original do Brasil. O Sólon, legislador e poeta ateniense, responsável pela primeira constituição democrática do Ocidente, tem um verso que acredito que se encaixe como uma luva para a experiência brasileira. Ele está falando dos atenienses no século 6 AC: “Cada um de vós em separado tem a alma astuta da raposa, mas, todos juntos, sois como um tolo de cabeça oca”.

Isso significa que, no Brasil, o Giges-sem-lei tem uma certa predominância?

Há uma sensação de impunidade por parte de um contingente fundamental da sociedade, principalmente na elite. Ao mesmo tempo, há uma outra característica da cultura brasileira que é a cordialidade, no sentido em que o Sérgio Buarque de Holanda definia, que não é ser afetuoso ou bonzinho. É a prevalência das emoções e dos impulsos no comportamento acima de qualquer consideração sobre regras impessoais e sobre princípios universais. Isso não é bem o Giges-sem-lei. O Giges-sem-lei é um manipulador, um calculista, uma pessoa muito ciosa de uma certa racionalidade instrumental, que procura o benefício individual sem se importar com as leis e com o direito alheio. O brasileiro é um Giges-sem-lei afetuoso, passional.

O sr. citou a Lava Jato, que talvez tenha sido a primeira vez em que os brasileiros viram ricos e poderosos sendo condenados. Antes, era como se eles fossem impunes, usassem o anel de Giges. Como vê isso após a operação?

Retrocedemos na política e na Justiça. Fui muito esperançoso em relação à Lava Jato como um divisor de águas, como foi a redemocratização e o Plano Real. Infelizmente, não foi o caso. Não teve sequência, não mudou as práticas políticas, não construímos um regime que torne muito mais onerosa e custosa uma prática corrupta. Há um abafamento e até um retrocesso em relação às punições. A coisa foi se perdendo ao longo do caminho e ficou muito mais complicada por conta da eleição de 2018 e toda a polarização raivosa que tomou conta da política brasileira. Agora, eu insisto: tenho muitas vezes a clara percepção de que o Brasil, em grande medida, vive ainda uma situação de Antigo Regime pré-Revolução Francesa. E vejo que ondas de insatisfação vem se sucedendo na vida brasileira. Nós tivemos junho de 2013. Depois, a onda anti-establishment político que quase elegeu a Marina Silva em 2014. Tivemos a onda que gerou o impeachment da Dilma. A greve dos caminhoneiros. Por fim, a eleição do Bolsonaro, que foi uma onda violentíssima também anti-establishment político, antipetismo, mas que manifestou de maneira eloquente o descontentamento e a insatisfação de um segmento majoritário e amplo da sociedade brasileira. Será que essas ondas terminaram? Tendo a crer que não. Tendo a crer que essas ondas são movimentos sucessivos e que estão levando a uma situação de ruptura. É um movimento característico de sociedades que caminham para um fim de antigo regime, que está sendo colocado em cheque. Como é que o Estado brasileiro arrecada 33% do PIB em impostos e, em pleno século 21, quase a metade dos domicílios não tem coleta de esgoto? Eu não estou manifestando um desejo por isso. Estou observando friamente um movimento. O Estado brasileiro não representa os anseios e as demandas legítimas da sociedade brasileira. Nós tivemos esquerda, direita, democracia, autoritarismo. Tivemos tudo, e os problemas fundamentais não foram atendidos. Ensino fundamental de qualidade universal, saneamento básico, segurança pública, transporte coletivo. É uma situação que não se sustenta indefinidamente.

Há um fosso entre novos bilionários e ex-pobres na China.

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Desigualdade não é algo novo, mas atacá-la tornou-se urgente para Pequim

Tatiana Prazeres – Folha de São Paulo, 05/02/2021

Se os 400 bilionários da China continental formassem um país, ele seria a 8ª economia do mundo. Seu PIB seria maior que o do Brasil. Sim, são 400 pessoas com a riqueza superior a de 210 milhões de brasileiros.

Em 2020, esses bilionários viram sua fortuna crescer US$ 750 bilhões (R$ 4 trilhões), um aumento espantoso de 60% em relação a 2019, segundo a Forbes. De longe, a China foi o país onde os ricos se tornaram ainda mais ricos.

Hoje, às vésperas do feriado do Ano-Novo chinês, as filas em frente às lojas de luxo em Pequim são apenas o sinal mais visível desse fenômeno.

O contraste é também de espantar. Com uma população de 1,4 bilhão de habitantes, a China tem 600 milhões de pessoas vivendo com até US$ 150 (R$ 815) por mês, como lembrou o primeiro-ministro Li Keqian no ano passado.

De fato, se o crescimento na China foi acelerado, o aumento da distância entre a base e o topo da pirâmide o também o foi.

Em 2017, o economista francês Thomas Piketty notou que, no passado, o nível de desigualdade na China era próximo ao dos países nórdicos. Claro, os chineses eram, digamos, igualmente pobres.

A questão é que, com o tempo, a desigualdade foi se aproximando do nível dos EUA. Segundo Piketty, os 10% do topo da pirâmide tinham 41% da riqueza nacional em 2015, mas detinham apenas 27% em 1978. (No Brasil, os 10% possuíam 42,5% em 2018, segundo o Banco Mundial.)

Pelas contas de Pequim, a pobreza não é exatamente um problema na China desde o fim de 2020. Com isso, atacar a desigualdade e expandir a classe média ganharão importância entre as prioridades nacionais.

No ano passado, Xi Jinping falou claramente na necessidade de distribuir os frutos do crescimento de forma mais justa. Na semana passada, voltou a falar sobre disparidade de renda e diferença entre campo e cidade, possivelmente o maior desafio na distribuição de riqueza no país.

A desigualdade não é algo novo, mas atacá-la tornou-se urgente para a China porque diminuir a brecha da riqueza tornou-se um imperativo econômico. Pelo novo plano quinquenal, o governo pretende estimular o crescimento da economia por meio de consumo doméstico. No entanto, a concentração excessiva de renda limita a expansão do mercado de consumo.

Como em outras partes do mundo, a pandemia agravou a desigualdade. Trabalhadores migrantes foram especialmente prejudicados. A recuperação econômica foi rápida – mas não balanceada. Os bilionários, como indica a Forbes, saíram muito à frente.

“Devemos deixar que alguns fiquem ricos primeiro”, é uma frase de Deng Xiaoping citada com frequência. Deng completou: “para que todos atinjam a prosperidade depois” —mas essa parte nem sempre é lembrada.

De fato, a China não teria chegado aonde chegou se quisesse fazer subir igualmente todos os barcos ao mesmo tempo. No entanto, como lembrava Deng, ricos e super-ricos deveriam servir de alavanca para a renda dos demais.

Não pega bem para um país que se diz socialista, comandado por um partido comunista, deter o título de uma das sociedades mais desiguais do mundo. Além de constituir um imperativo ético e uma necessidade econômica, o combate à desigualdade é uma questão de legitimidade para o modelo político chinês.

Desigualdade receberá mais atenção agora que os pobres são ex-pobres. E os bilionários, mais bilionários que nunca.

Tatiana Prazeres
Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Individualismos, Neoliberalismo e Sociedade de Consumo

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Desde a Revolução Industrial percebemos o começo de grandes transformações nas bases da sociedade mundial, de uma organização centrada no meio rural e no trabalho doméstico, onde os trabalhadores residiam no meio rural, trabalhavam e sobreviviam nas fazendas em troca nas atividades rurais, para uma nova organização da sociedade centrada nas cidades, nas indústrias, nas relações entre capital e trabalho e, principalmente numa nova relação centrada na acumulação de recursos monetários, centrada no entesouramento de capitais, no controle das atividades produtivas e na busca crescente dos ganhos materiais.

Neste momento, percebemos a consolidação de uma nova sociedade centrada no trabalho assalariado, onde os trabalhadores passam a perceber novos desafios, de um lado, estes indivíduos passam a vender sua única forma de angariar recursos monetários, a venda de sua forma de trabalho em troca de um salário. De outro lado, estes novos trabalhadores passaram a se organizar para sobreviver com as limitações de recursos monetários, ou seja, passam a sobreviver com uma limitação de recursos que anteriormente não eram necessárias, surgindo novos produtos e mercadorias no mercado estimulando o consumo e a ostentação, embora incipiente os germes do mercado de consumo estavam presentes.

Neste momento, percebemos a relação entre capital e trabalho, marcada por grandes conflitos, muito bem analisado pelo sociólogo alemão Karl Marx, que enxerga este momento de grandes conflitos sociais, oriundo de interesses diferentes, cada um dos grupos sociais busca angariar maiores lucros monetários e interesses imediatos.

O capitalismo recebe o impulso da ciência e eleva os cientistas a um novo espaço na sociedade, isto porque, anteriormente os cientistas eram vistas como pessoas estranhas e perturbadas, pessoas esquisitas e viviam fazendo experiências. A revolução industrial elevou os burgueses a se tornar a classe social dominante na sociedade e, ao estimular o crescimento dos cientistas, conseguiu interiorizar os interesses dos capitais, levando muitos trabalhadores a refletirem de acordo com os interesses dos grupos mais favorecidos, criando o conceito de alienação e fortalecendo os interesses e pensamentos da burguesia. Neste momento, percebemos um grupo de trabalhadores que se vendem para ganhar as sobras dos recursos dos grandes donos do dinheiro, estes indivíduos sobrevivem melhores do que os grupos mais fragilizados, mas nunca vão conseguir ascender melhores espaços na estrutura social, permanecerá sempre explorados e humilhados pelos grandes donos dos recursos financeiros.

Nesta época percebemos ainda, a fragilização das religiões, que passam a perder espaços na sociedade em detrimento dos interesses da burguesia centrada no pensamento científico. Além da fragilização das religiões, que sempre se destacou com o estímulo da coletividade, da solidariedade e dos pensamentos cristãos, centrados na humildade, na caridade e na sensibilização social, abrindo espaço para o fortalecimento dos valores centrados na produção, no lucro e no consumo, com isso, percebemos que as mudanças ocorrem lentamente, mas percebemos que os valores cristãos perdem espaço para os valores do capitalismo, dos interesses materiais, do lucro e na acumulação financeira.

Os grandes sociólogos da sociedade internacional passaram a se debruçar sobre os grandes desafios da sociedade, dentre eles destacaram Karl Marx, Weber, Durkheim, Conte, dentre outros, que impulsionaram esta área do conhecimento para buscar a compreensão dos novos desafios para a sociedade, inaugurando uma nova ciência, a Sociologia, a parte da ciência social que estuda os grandes movimentos em curso da sociedade, buscando entender os grandes movimentos da sociedade, dos grupos sociais, do Estado Nacional, dentre outros.

O crescimento do capitalismo gerou grandes transformações para a sociedade, nunca existiu na humanidade um sistema produtivo que criasse mais riqueza do que o capitalismo, gerando novos interesses no estudo deste sistema produtivo. Embora o capitalismo era o sistema econômico descrito como o grande criador de riqueza da sociedade, ele tem um grande vício de origem, o sistema era concentrador de renda e cria novos espaços de miséria e exploração, com isso, as críticas eram crescentes e fortalecia os pensamentos contrários ao sistema capitalismo, surgindo novos modelos econômicos e políticos, onde podemos destacar o Socialismo, ou Comunismo, Anarquismos, dentre outros.

No século XX percebemos o crescimento do capitalismo, encontramos inúmeros sistemas políticos e econômicos, dentre eles, o Nazismo, o fascismo, o comunismo, nestes embates conseguiu se fortalecer a angariar novos espaços decrescimento e consolidação, se expandindo para todas as regiões e se estruturasse como o sistema econômico dominante.

Nos últimos anos, principalmente a partir dos anos 1970, percebemos que o sistema capitalismo se tornou cada vez mais agressivo, desde os governos conservadores de R. Reagan (Estados Unidos) e M. Thatcher (Inglaterra), que inicia uma ampla ofensiva sobre os Estados como agentes de atuação dos desenvolvimentos econômicos, retirando o Estado e aumentando as atuações dos mercados, impulsionando a concorrência, a busca crescente por lucros, a competição entre empresas, governos e indivíduos, gerando uma sociedade fortemente centrada na competição, o individualismo e os interesses imediatos, somamos a um crescimento dos interesses dos setores financeiros, gerando uma sociedade centrada nas incertezas e nas instabilidades, reduzindo os espaços de atuação dos Estados Nacionais como agentes estratégicos e de planejamentos.

Nesta nova sociedade o liberalismo ganha espaço, renomeado como neoliberalismo, que passa a controlar a sociedade e impor os interesses dos setores dominantes, usando seus instrumentos para dominar a sociedade e garantir o controle da sociedade.

Nesta sociedade, percebemos as críticas contidas na citação de Lipovetski, que analisa o crescimento do crescimento na sociedade do consumo, onde os indivíduos passam a ser visto como a sua capacidade de consumir, sua capacidade de recursos, suas rendas e seus interesses monetários, o mundo cada vez mais centrado no TER ao infelizmente no SER, como destacou as reflexões cristãs.

“Desde a entrada das nossas sociedades na era do consumo de massa, predominam os valores individualistas do prazer e da felicidade, da satisfação íntima, não mais a entrega da pessoa a uma causa, a uma virtude austera, a renúncia de si mesmo.” (LIPOVETSKY, 2004, p. 23)

Estamos centrados no poder das grandes corporações, os grandes conglomerados econômicos que passam a controlar a sociedade, impondo aos consumidores seus interesses e se utilizam do seu poder financeiro no controle da sociedade, contratando os melhores profissionais do mercado, os mais brilhantes advogados, economistas, contadores, financistas, administradores e gestores para incutir na mente os sentimentos de consumo, criando uma sociedade centrada no consumismo.

Um traço interessante e vale a pena refletir sobre, foi que no pós segunda guerra mundial, os Estados Unidos passou a dominar a sociedade global, exportando todos os instrumentos para a dominação e subjugação social, desde recursos monetários, escolas, universidades, livros, marketing, novos instrumentos de gestão, tais como o fordismo, que se expandiu para toda a sociedade global, mostrando o poder dos Estados Unidos para criar uma sociedade de acordo com seus interesses políticos, econômicos e culturais.

A sociedade que temos está centrada no consumo e nos prazeres do imediato, como destaca Gilles Lipovetski. Uma sociedade centrada na compra, na satisfação do consumo, o ato da compra é prazeroso e leva os indivíduos a angariar satisfação, dá prazer e leva os indivíduos a sentir-se feliz a satisfeito, muitas vezes estes prazeres são passageiros e, posteriormente, as pessoas entram em depressão em decorrência das compras elevadas e centradas em desejos desnecessários e descartáveis.

Outro teórico da sociologia que nos traz elementos para a compreensão das transformações da sociedade, é o polonês Zygmunt Bauman, cujas teses trouxeram grandes capacidades de compreensão da sociedade, neste pensamento, o sociólogo Bauman nos mostra os desafios centrados num mundo líquido, onde tudo perde a consistência, tudo se torna líquido, sem substância e sem estruturas sólidas, os relacionamentos são frágeis, as amizades suas reduzidas, os medos são líquidos, dentre eles…

Nesta sociedade centrada no individualismo, percebemos que os laços sociais perdem força, os relacionamentos são frágeis, as amizades perdem forças, as pessoas são cada vez mais individualistas, buscam seus interesses imediatos, deixam de planejar no longo prazo como se a lógica do mercado financeiro se tornasse a regra dominante, com isso, as pessoas querem ter prazer e gozos imediatos, sem estratégias e sem planejamentos.

Vivemos numa sociedade centrada no agora, no gozo e dos prazeres, querer ter felicidades e, como não se encontram facilmente, entram em depressões, em ansiedades crescentes e, no limite, se suicidam em forma de fugir dos conflitos mais íntimos e pessoais.

Dependência e Subordinação

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A globalização foi um dos processos mais intensos de transformação da sociedade mundial das últimas décadas, cujos impactos foram crescentes em todas as regiões do mundo, gerando ganhos substanciais para todos os agentes sociais, com desafios enormes e perdas consideráveis. De um lado, alguns países conseguiram crescer na escala tecnológica e incluírem suas populações, de outro lado, percebemos uma degradação interna, aumento do desemprego e desindustrialização.

No período pós-segunda guerra, auge da exportação do modelo de produção fordista, a sociedade norte-americana se transformou no centro hegemônico da economia internacional, exportando suas empresas, sua cultura, seus filmes, seu consumo, sua moeda e sua forma de enxergar o mundo, centrado no American Way of life. Neste momento a sociedade norte-americana dominava o mundo, aumentando a dominação dos países e estimulava seu alinhamento como forma de garantir novos mercados consumidores e, ao mesmo tempo, uma forma de evitar que os países se alinhassem ao modelo soviético, um período marcado por incertezas, rivalidades e altos investimentos militares, que impulsionaram a ciência, as pesquisas e os conhecimentos científicos.

No período 1945/1973 o mundo viveu um momento de grande crescimento econômico, forte intervenção do Estado, incremento do emprego, melhorias crescentes da renda e dos salários, período denominado por “Era Dourada”, termo cunhado pelo historiador Eric Hobsbawn. A situação começou a se inverter no final dos anos 70, quando da crise da dívida externa levou a sociedade brasileira à bancarrota, dívida externa crescente e inflação acelerada, gerando incertezas e preocupações fiscais e financeiras, sucumbindo a adoção de um projeto autônomo e dependente, cujos reflexos estão claros nas dificuldades econômicas e políticas atuais.

No início dos anos 80, o parque industrial brasileiro era maior do que os somados da China e da Coréia, com isso, percebemos que nos últimos 40 anos a economia brasileira perdeu espaço na economia global. A indústria nacional perdeu fôlego e percebemos, na contemporaneidade, espaços crescentes de desindustrialização, nos tornando um exemplo claro de país que se caracteriza por uma desindustrialização precoce, perdendo espaço para países asiáticos, que se tornaram os grandes produtores da indústria mundial, ganhando espaços na economia internacional, melhorando os indicadores sociais, incrementando os salários e a ascensão de milhões de trabalhadores que passaram a se instalar nos meios urbanos.

Alguns países asiáticos, dentre eles destacamos a China e a Coréia, estão conseguindo superar a armadilha da classe média, levando suas populações a saltos tecnológicos, construindo empresas globais e abrindo espaço para participarem ativamente do cenário internacional. Empresas que anteriormente eram locais e pouco representativas na sociedade global, passaram a ganhar relevância e se transformaram em grandes conglomerados internacionais, como LG, Samsung, Hyundai, Kia, Tencent, Alibaba, Lenovo, Huawei, Xiaomi, Chery, dentre outras.

Estas empresas nasceram e se desenvolveram da integração entre Estado e Mercado, onde os dois agentes se integraram em torno de um projeto nacional em prol do desenvolvimento econômico, deixando de lado o antagonismo entre Estado X Mercado, que existe na sociedade brasileira, perpetuando as desigualdades internas e a dependência da economia internacional. Na pandemia, percebemos a dependência de produtos estrangeiros, ausência de insumos relevantes para a confecção das vacinas, mostrando limitações internas na construção de um projeto nacional, enfatizando uma sociedade dependente e subordinada dos grandes grupos globais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/02/2021.

‘Não olhe para sua vida como se fosse uma empresa’, diz psicanalista.

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Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, fala sobre fatores que levam a sintomas e doenças mentais entre empreendedores e dá dicas para manter os estados emocional e psicológico estáveis.

Entrevista com Christian Dunker psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP

Ludimila Honorato, O Estado de S.Paulo – 22/01/2021

A saúde mental e emocional das pessoas deve ser tema prioritário de discussão em todos os ambientes. No mundo dos negócios, o assunto torna-se relevante pela quantidade de empreendedores que são afetados por sintomas ou doenças da mente. Em 2020, devido à pressão que a pandemia exerceu sobre os donos de negócios, o nível médio de estresse, ansiedade e depressão deles foi similar ao de profissionais de saúde. Dos 653 entrevistados, 15% relataram ter iniciado o uso de antidepressivo, ansiolítico ou ambos.

Mas antes da crise sanitária, a responsabilidade de estar no comando de uma empresa, lidar com fornecedores e funcionários, cumprir prazos e atingir metas já contribuíam para o desenvolvimento de transtornos mentais nesse público. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos e publicada em 2018 na revista Small Business Economics mostrou que 72% dos 242 empreendedores entrevistados eram direta ou indiretamente afetados por questões de saúde mental. Em comparação, 48% dos não empreendedores (93) relataram o mesmo.

O levantamento mostrou, também, que os donos de negócio relataram ter mais depressão (30%), TDAH (29%), fazer uso de substâncias (12%) e transtorno bipolar (11%) do que os participantes do grupo comparativo. Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, transformações no modo de trabalho, a digitalização e as relações pessoais e coletivas contribuem para esse cenário.

“Há formas de transtornos considerados totalmente normais, mas são patológicos e como estão de acordo com ideais da época, a gente não consegue perceber que é prejudicial”, afirma o especialista. Ele exemplifica com o quadro de mania, que promove um perfil adequado a muitos ambientes de trabalho, mas causa o adoecimento da mente. Uma das dicas que ele dá ao empreendedor é não encarar a própria vida como uma empresa.

O Estadão PME entrevistou o psicólogo para falar mais sobre a saúde mental do empreendedor, com dicas para manter o emocional e psicológico estáveis. Confira a seguir:

Antes mesmo da pandemia, pesquisas já indicavam a maior prevalência de sintomas ou doenças mentais entre empreendedores em relação a não empreendedores. Que fatores levam a esse cenário?

O primeiro fator genérico é a transformação no nosso modo de trabalho, intermitente, a vida nas corporações muito regrada pelo ‘avalicionismo’, produtivismo, contratos de trabalho mais instáveis. Para os trabalhadores liberais, no ramo de serviços, acarretou jornadas extensas. É o neoliberalismo, bastante baseado na administração de sofrimento nas pessoas. A concorrência, distribuição de bônus, microgestão, isso no pacote é um fator muito importante de transtornos no ambiente de trabalho.

O segundo fator é a linguagem digital, de impessoalizar relações e agilizar processos, que diminui a fronteira entre vida pública e privada. Sendo mais sujeita a opiniões alheias, a pessoa pensa em como está sendo reconhecida.

O terceiro fator são as transformações no modo de relação entre comunidade e instituições. A gente vai colocar uma transformação muito importante que é o uso de substâncias, legais e ilegais, que criam estados que não estavam presentes, como potência de atenção, vigília, ligação com o trabalho. A pessoa começa a perder a fronteira entre doping e dedicação.

De que maneira a saúde mental da pessoa que empreende afeta o negócio dela e os colaboradores?
Aqui, a gente tem um novo agrupamento de determinantes. Vamos considerar um percurso bastante recorrente de pessoa que tem experiência em grande corporação e sai dela porque não consegue aplicar o que aprendeu, não tem muita autonomia para decisão e acredita que, fazendo seu próprio negócio, pode rapidamente se colocar no azul e não terá esses problemas. Ela está pressionada por um certo tempo para que as coisas aconteçam e pela ilusão de que, uma vez proprietário, aquilo que encontrou na corporação não vai acontecer. Esses problemas voltam criando um sentimento de decepção dupla.

A isso se acrescenta a relação entre saúde mental e individualização. Quem está mais sujeito a sofrer mais é aquele que acha que o sintoma só pertence a ele, é culpa dele e tem vergonha de compartilhar. Quem vai para startups, geralmente, faz uma suposição de hiper individualização, pensando que tem o negócio nas mãos. Na prática, percebe que depende do sócio, do contador, do investidor, vê que depende mais dos outros e isso o expõe a sofrer.

Como a pandemia agravou esse cenário?
Aí tem outro percurso, que é o de milhares de falências. A falência não é só um fracasso financeiro, que implica perdas muitas vezes dramáticas, mas é a pessoa, a família e a comunidade em que está inserida. A falência é tomada como um fracasso moral, como algo que teve erro e não soube conduzir, e isso tem consequências devastadoras: a pessoa tende a se culpar, se afastar das outras, se recriminar excessivamente. Isso cria um passivo que facilmente evolui para alcoolismo, uso de substâncias, desorganização da família. E muitas vezes recai no que se chama de erro sequencial: a pessoa pensa ‘agora sei o que fiz de errado, vou pegar nome da filha, esposa, e abrir outra empresa porque já tenho meu autodiagnóstico’. Isso é tolo, mostra falta de entendimento, e as pessoas aprendem muito pouco com seus erros na vida econômica.

Quais habilidades de que o empreendedor precisa podem ser afetadas por condições mentais a ponto de prejudicar a empresa e o desempenho dele?

Há formas de transtornos considerados totalmente normais, mas são patológicos, e outros que se acham altamente patológicos e não é tanto assim. Uma pessoa que sempre está bem disposta, alegre, otimista, que trabalha muito e vê que o trabalho é a situação em que se sente completamente realizada pode ser o candidato que você quer como seu orientando, o seu gerente de marketing ou vendas, ou um quadro maníaco. Todos são possíveis, mas é um quadro clínico chamado mania e é quase uma condição para perfis de trabalho, mas são patológicos. Como estão de acordo com ideais da época, a gente não consegue perceber que é prejudicial.

Há habilidades como criatividade que são muito contextuais e específicas, porque ser criativo na empresa é diferente de ser no jardim de casa. Grandes categorias como criatividade, inteligência, são muito pouco preditivas. Inovação tem a ver com o que as escolas chamam hoje de habilidades socioemocionais: trabalho em grupo, capacidade de planejamento, solidariedade, abertura para experiências. Mas a tendência é individualizar o sofrimento, fracassos e dificuldades, típico de pessoa que precisa resolver os problemas dela mesma. Em regra, generalizando, são pessoas que vão entender os sintomas psicológicos como defeito, não como sinal de que algo precisa ser dito de outra maneira.

Como identificar que esses comportamentos considerados positivos no trabalho são, na verdade, transtornos mentais?
Primeiro, não olhe para sua vida como se fosse uma empresa, como se estivesse o tempo todo em sistema de trocas.

Quem faz isso está em zona de maior risco. Tem de prestar atenção nos sintomas, não se enganar com falsas explicações de que isso é fase, cansaço, sendo que é desde sempre. Sintomas são coisas que se repetem e não são tratados por educação, porque outro erro comum é achar que vai estudar, entender o que é e tudo bem. Outro elemento é perceber se transformou a família em parte do trabalho, ver o tempo que dedica à família. Também, faça terapia, algum tipo de tratamento. Diante de uma insônia, não tome sonífero por anos a fio, não tome antidepressivo porque isso é um doping. Em geral, bons empreendedores sabem traduzir, perceber detalhes, ambientes da situação econômica, então é escutar a si mesmo.

Após quase um ano de pandemia, como o empreendedor pode se manter emocional e mentalmente estável para lidar com os desafios que as readaptações ainda vão exigir?

Uma orientação indireta, mas importante para o empresariado em geral é: estude. Hoje, a quantidade de discursos de pós-verdade, de enganação que tem entre os motivadores e coaching de empresa é muito grande. Estudar te coloca numa zona de trabalho regrado, disciplinado, que não está ligado à mera gestão da empresa. Isso é importante para a sobrevivência psíquica, porque também te coloca em contato com outras pessoas de maneiras diferentes. O estudo promove integração entre áreas de conhecimento e essa capacidade funciona como exemplo de compartilhamento, que é a base para se abrir para experiências novas. Olhar para a literatura, poesia, teatro e cinema não só como entretenimento, mas um repertório de soluções para conflitos, impasses e sofrimentos humanos.