Banco Central errou a mão nos juros e Bolsonaro precisa começar a governar, diz Affonso Pastore

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Para ex-presidente do BC, Selic deveria ter sido revista antes para conter a inflação e crescimento fraco em 2022 é inevitável

Douglas Gavras – Folha de São Paulo, 20/08/2021 – SÃO PAULO

Para o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, o BC errou ao demorar a subir a Selic, o que vai custar uma desaceleração do crescimento no ano que vem, que já é notada nas revisões pessimistas para o PIB (Produto Interno Bruto) de 2022.

Na avaliação do economista, os ataques do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao sistema democrático e ministros do Supremo Tribunal Federal só servem para piorar um cenário que já é complicado, afastando investimentos e mergulhando o país em mais insegurança –e o presidente precisa começar a governar.

Ele ressalta que a alta de juros demora de três a seis meses para começar a fazer efeito na atividade econômica, ou seja, o impacto dos aumentos da Selic só vai se dar no ano que vem. “O próximo ano será de crescimento abaixo de 2%, e as pessoas já estão percebendo isso.”

As revisões mais pessimistas dos indicadores, em um momento de avanço da vacinação, mostram que os problemas do país iam além do que a pandemia causou? Isso tem a ver com a política monetária e com o fato de o Banco Central ter ficado atrás da curva. Ele colocou estímulos demais na pandemia. Quando a crise sanitária começou, o Brasil entrou em recessão e era preciso tomar duas medidas. [A primeira era] combater a pandemia para normalizar a mobilidade social. E a segunda coisa era dar duas ordens de estímulos: uma, por meio de crédito, para evitar que as empresas quebrassem e evitar um desemprego maior; e outro estímulo para dar renda para as classes mais baixas. Tudo isso foi feito em 2020. Além disso, o BC reduziu a taxa de juros, como deveria mesmo ter feito e todos os bancos centrais do mundo fizeram.

Além disso, estamos passando por choques de inflação desde que a economia começou a reagir, certo? Conforme a economia foi se recuperando, começamos a ter choques inflacionários. O primeiro deles veio do câmbio, que gerou aumento de alimentos, junto com uma alta do preço das commodities. Quando se tem um choque, não dá para ir contra ele, mas acomodar a política monetária a uma nova realidade. É preciso calibrar a taxa de juros para cima, para evitar que isso se propague para outros bens. Então, veio um segundo choque, que atingiu os preços administrados. O preço do petróleo subiu, o do gás também. O BC acomoda esse choque e calibra os juros.

Depois, veio um terceiro choque, nas cadeias de suprimento. Não adianta dar estímulo monetário para as pessoas comprarem mais automóveis, se você não consegue aumentar a produção por não ter a parte eletrônica, que não pode ser produzida pela falta de oferta de semicondutores. Com o estímulo, as pessoas querem comprar automóveis e não há veículos para entregar, isso tem o efeito de aumento de preços.

Estamos sofrendo os efeitos da desorganização das cadeias de produção? Os dados de confiança da indústria que a FGV [Fundação Getulio Vargas] capta mostram que a produção está sendo limitada por falta de matéria-prima. A pandemia produziu o rompimento de cadeias de suprimentos no mundo inteiro. O BC só resolveu subir os juros agora, depois que a inflação já deu 9% ao ano. Ele desancorou as expectativas, aumenta a inércia inflacionária e ele é obrigado a subir o juro real de mercado acima do juro neutro. Em vez de crescer, acaba reduzindo o PIB [Produto Interno Bruto]. Quando chegamos neste estágio, somos obrigado a reduzir o crescimento econômico. Tudo isso tem a ver com um erro de política monetária e com um erro de política fiscal. Já está determinado, não tem o que fazer, agora é aguentar as consequências.

Isso é um reflexo da política do Banco Central? Quem está tomando a atitude de reduzir o crescimento é o Brasil e ele está fazendo isso por ter ficado sem alternativa. Ele se preocupou demais com a atividade econômica durante a pandemia, não com a meta de inflação. E agora ele vai ter de produzir uma desaceleração de crescimento do PIB.

Acontece que a defasagem de política monetária é longa e ainda não chegamos acima dos juros neutros [estimados hoje em 6,5% ao ano], deve atingir isso no fim desse ciclo de alta dos juros. Isso demora de três a seis meses para começar a fazer efeito na atividade econômica, ou seja, esse efeito só vai se dar no ano que vem. O ano que vem será de crescimento abaixo de 2%, e as pessoas já estão percebendo isso e revendo o crescimento.

Esse clima ruim já é um reflexo do aumento de gastos com a aproximação da eleição do ano que vem? O câmbio no Brasil depreciou mais do que em outros países e mesmo quando aumentou, a valorização foi menor do que em países.

Isso é um prêmio de risco que vem do risco fiscal. Há uns quatro meses, quando a inflação começou a subir, ela fez aumentar o PIB nominal. Quando sobem os preços, aumenta a arrecadação e reduziu o deficit primário. O lado fiscal melhorou, por ter inflação. Vamos chegar no fim do ano com a dívida/PIB entre 81% e 83% do PIB, um patamar muito menor do que se imaginava no começo do ano.

A inflação causou uma falsa sensação de que a questão fiscal estava encaminhada? Em um certo momento, as pessoas olharam e acharam que o risco fiscal tinha caído. Agora, elas percebem que isso derivou da inflação. É como uma maré que subiu, com a inflação, e agora baixou —e agora a gente consegue ver quem estava nadando sem calção. No ano que vem, tem uma eleição e o governo não tem espaço no teto. Existe uma probabilidade de que o governo aumente gastos para ganhar a eleição, já que a economia vai estar crescendo pouco e temos um desemprego ainda alto e que não vai cair tão cedo.

As pessoas que julgavam que a valorização do câmbio poderia ajudar a inflação a cair agora estão vendo que tem um risco razoável de mais gastos públicos no ano que vem, o que reforça a ideia de que o BC vai ter de manter os juros reais altos e que o crescimento do ano que vem será menor.

A folga no teto de gastos, com a inflação mais alta, para a área social também é menor do que se imaginava? A folga se dá da seguinte forma: o teto deste ano é corrigido pela inflação de junho, para gerar o teto do ano que vem. A inflação foi de 8,3%. Todo mundo ficou contente, com uma folga estimada em R$ 120 bilhões. Mas acontece que os gastos sociais também são corrigidos pela inflação, mas não pelo índice de junho e nem pelo IPCA [Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, considerado a inflação oficial]. Os gastos sociais são corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor, o INPC, de dezembro, e todas as projeções são de que ele deve ficar em torno de 7,5%.

Quando se corrigir os gastos sociais, aquela projeção de R$ 120 bilhões de folga virarão R$ 30 bilhões. O governo agora tenta aprovar uma PEC dos precatórios, que joga um pedaço de gastos para reabrir uma folga no teto, que não é grande, mas tem de acomodar os gastos com o novo Bolsa Família que o governo nem divulgou quanto vai custar. A confiança no governo caiu e o risco vai aparecendo –a taxa de juros longos já está refletindo isso.

A crise política provocada pelos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e a investida contra ministros do Supremo pode atrapalhar ainda mais o crescimento da economia? Ele está provocando uma crise institucional, que obviamente aumenta os riscos e ficamos com um ambiente de negócios que não estimula investimentos e piora o quadro atual, que já é difícil.

E tem alguma coisa que o governo poderia fazer para melhorar o crescimento no ano que vem? Sim, começar a governar. Se eles começarem a governar, as coisas melhoram. Mas se continuarem criando esses confrontos desnecessários, contra as instituições, a começar pelo presidente da República, que é o maior iludido com regimes autoritários, não tem como dar certo.

RAIO-X
AFFONSO CELSO PASTORE, 82
Formado economia pela Universidade de São Paulo, foi assessor do secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e presidente do Banco Central. Hoje é consultor na Pastore & Associados.

Ciência e Tecnologia

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Numa sociedade marcada por grandes transformações tecnológicas, percebemos que as alterações recentes estão gerando grandes oportunidades e desafios, neste ambiente, os investimentos em ciência e tecnologia ganham espaços nas economias como forma de melhorar os indicadores sociais e o bem-estar da coletividade. Os investimentos em ciência e tecnologia são cruciais para aumentar a autonomia e a soberania nacionais, num momento de conflitos geopolíticos, econômicos e financeiros.

Ao analisar os países desenvolvidos percebemos fortes investimentos pregressos em capital humano, pesquisa, ciência e tecnologia, melhorando as estruturas produtivas, aumentando a produtividade e incrementando o bem-estar da população. Os países subdesenvolvidos ou periféricos, carecem de investimentos em capital humano, com isso, constroem sociedades atrasadas socialmente e frágeis estruturas econômicas, perpetuando atraso e degradações.

Os investimentos em ciência e tecnologia, centrados em inovação exigem a construção de consensos sociais e políticos, colocando os investimentos produtivos, tanto público quanto privado, em ascensão, estimulando a produção científica das universidades, das faculdades e dos centros de pesquisas, agentes centrais do desenvolvimento de novas tecnologias, contribuindo para a capacitação dos setores produtivos para a competição da contemporaneidade.

Os países que se desenvolveram economicamente conseguiram alçar novos degraus tecnológicos, construíram sólidos espaços de inovação e fortes instrumentos de fomento a ciência e a tecnologia, onde destacamos os países asiáticos, que conseguiram angariar novas posições na concorrência global, construindo indústrias de ponta e desenvolveram novos modelos de negócios que revolucionaram o cenário global, levando estes países para o centro das inovações globais.

As inovações foram motivadas por fortes e consistentes projetos nacionais, centrados em planejamento, com políticas efetivas de inovação, cobranças por retornos no longo prazo, financiamento fartos e taxas de juros baixas, compras governamentais, proteção de setores estratégicos e fortes investimentos em educação, desde as tenras idades até as universidades, construindo centros de pesquisas e laboratórios de inovação e de empreendedorismo, criando um ambiente de cooperação entre os setores privados e os órgãos governamentais.

Os investimentos em educação geram grandes retornos econômicos e sociais para a coletividade, exigindo um direcionamento da sociedade para a construção de setores produtivos dinâmicos, eficientes e flexíveis, garantindo a atração de profissionais de alta qualificação, garantindo salários elevados e estímulos crescentes para o mercado consumidor.

Sabemos que os investimentos em inovação são altamente arriscados e são marcados por grandes riscos. Os recursos são vultosos e as perdas são imensas, os países que conseguiram construir grandes setores produtivos tiveram altas perdas na caminhada, mas conseguiram construir novos empreendedores, novos modelos de negócios e lucros extraordinários. Uma das empresas mais admiradas da sociedade global, a norte-americana Apple, foi construída não apenas pela genialidade de seu criador, mas contou por investimentos vultosos do governo dos Estados Unidos, além de pesquisas desenvolvidas pelas forças armadas e pelos órgãos de pesquisas oficiais. Diante disso, percebemos que a inovação é um investimento de longo prazo, cujos recursos iniciais foram iniciados pelos governos nacionais, sem estes, estas tecnologias dificilmente existiriam.

Na contramão dos países desenvolvidos, que construíram uma ampla discussão política entre os atores econômicos e produtivos, o Brasil materializa seu atraso no ranking internacional da educação, das ciências e das tecnologias. Na ausência de estratégias claras e eficientes, sem planejamento e coordenação do Estado Nacional, estamos condenando o futuro do país a ser uma economia exportadora de produtos agrícolas e extrativos de baixo valor agregado. Estamos rifando o futuro do país e perpetuando a subserviência econômica e política de outras nações que, anteriormente, conseguiram investir em inovação e passaram a dominar as cadeias globais de tecnologia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 18/08/2021.

Ensino híbrido não vai resolver um ano e meio sem escola, diz professor brasileiro de Columbia

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Para Paulo Blikstein, pandemia trouxe uma ideia “messiânica” sobre tecnologia na educação e é preciso se preocupar com empresas tendo acesso a notas e outros dados de alunos. Ele diz ainda que o foco do ensino tem que continuar no professor

Paulo Blikstein professor da Universidade Columbia

Renata Cafardo – O Estado de São Paulo, 15/08/2021

Apesar de dedicar toda a sua carreira à pesquisa do uso da tecnologia na educação, Paulo Blikstein acha que a lição da pandemia é valorizar mais o professor. Não que o especialista em Educação e Ciência da Computação da Universidade Columbia, em Nova York, defenda crianças em bolhas analógicas. “A tecnologia é uma ferramenta muito poderosa de criação, de motivação, de empoderamento”, explica ele, que é o criador do primeiro programa acadêmico de educação maker do mundo, o FabLearn. “Mas não adianta pegar uma aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar isso numa telinha de celular de 10 centímetros”.

Ele está convencido de que não existe mais a discussão sobre se a tecnologia vai estar na escola e, sim, como. E a resposta são vídeos que as crianças possam fazer com celular sobre problemas da sua comunidade, fotos da vegetação da região, entrevistas com a família, projetos de robótica e programação. “Tem essa coisa messiânica de o ensino híbrido vai nos salvar, que vai recuperar um ano e meio fora da escola. O que vai realmente recuperar é o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola”, diz ele, que assina um relatório sobre o assunto feito para uma parceria entre o grupo D3e, Todos Pela Educação e laboratório Transformative Learning Technology, de Columbia.

Blikstein diz ainda se preocupar com a segurança dos dados dos estudantes, já que grandes empresas de tecnologia entraram em massa nas escolas durante a pandemia, sem legislação no País. “Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula, anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem.”

Com a volta às aulas neste segundo semestre, a tecnologia vai estar cada vez mais presente na escola?
No Brasil, alunos de escolas particulares e de algumas regiões voltam em situação melhor, por estarem em situação de privilégio, tiveram aprendizado diferente com pais, família e internet. Mas tem um contingente muito grande de crianças em situação diferente. Sem condições de conectividade, sem um lugar pra estudar, não tinham quarto, uma mesa, computador, estavam assistindo aulas em condições precárias. Eles voltam não só tendo perdido o ano como esquecido muitas coisas e até com experiências traumáticas. São necessárias políticas públicas bem planejadas e realistas para recuperar. Vejo muito essa visão messiânica, milagrosa, dizendo que a gente vai usar o ensino híbrido para recuperar perdas de um ano e meio. Não tem tecnologia nenhuma que vai recuperar estar longe da escola.

E, sim, o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola. Se for a criança da escola particular, um ou dois dias em casa, estudando no computador, no quarto, com os pais ajudando, talvez até funcione. Mas a gente está falando de um país de desigualdades gigantescas. Achar que uma criança de uma comunidade de baixa renda vai ficar três dias por semana em casa, calmamente, sentada num lugar estudando, é completamente fora da realidade.

O ensino híbrido não funciona?
O ensino híbrido virou uma jabuticaba, ninguém sabe definir e as pessoas estão fazendo uma grande confusão. Tem algumas modalidades híbridas de educação que funcionam, por exemplo, fazer projetos na sua comunidade, na sua casa, trazer dados de fora para a escola, assistir um vídeo ou até uma aula numa quantidade em torno de 10% do tempo da presencial. O dia em casa é pra fazer projetos, coletar dados, não pra ficar assistindo aula em casa. Entrevistar pessoas na sua casa ou pelo zoom, fazer projetos em casa. Se for um ensino criativo e híbrido, tudo bem, mas se for mais do mesmo, um pouco online e outro na sala de aula, não tem sentido nenhum. Infelizmente tem muita conversa de ensino híbrido que é só fazer mais do mesmo, mas um pouco mais virtual. Acho complicado confiar tanto na tecnologia sem ter evidência de que funciona. Essas soluções funcionam quando são guiadas pelo professor.

Qual seria a saída para essas crianças então, se todas ainda não puderem estar na escola todos os dias por causa dos protocolos?
Deveríamos estar pensando em fazer projetos, vamos pedir para a criança usar o celular para tirar fotos da comunidade, fazer um vídeo dos problemas, tirar foto da vegetação da região, fazer um filme sobre os pratos que sua família cozinha, fazer projetos com tecnologia, usando várias mídias, projetos interessantes pra criança, que dialoguem com a vida dela, dos familiares. Nas redes sociais, em vez de postar memes, postar uma entrevista com o avô, um vídeo sobre o córrego da comunidade, o trânsito? Há mil possibilidades de uma educação mais relevante, que também usa tecnologia e está pouco aproveitada. Ao contrário, o que se está fazendo é pegar a aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar numa telinha de 10 centímetros do celular. Mandar o aluno ficar horas vendo isso e depois fazer um monte de exercícios é pedir para ele se desmotivar, sair da escola.

Em seu relatório mais recente você fala justamente disso: que não se discute mais se a tecnologia vai estar na escola, mas, sim, como. É disso que está falando?
Sim. Antigamente, o computador entrava na escola quando o governo falava que ia fazer salas de informática, o governo tinha esse monopólio de colocar a tecnologia, hoje ela já está na escola, ou por alunos que já têm celular ou por empresas que fazem projetos com escolas. Não é mais o “se”, não tem mais sentido criar uma bolha e dizer: aqui não entra tecnologia, é só livro, papel e caneta. Mas tem que pensar no “como”. Os alunos têm celular, então vamos mandar fazer pesquisas de campo. Também não pode dar tablet para as crianças e esperar um milagre. Tem que ter currículos que vão usar isso de forma interessante, não é pra ler PDF ou fazer prova de múltipla escolha no tablet em vez do papel, que é a mesma coisa, mas com verniz digital.

Mas os professores muitas vezes não têm formação para isso.

A gente não pode colocar nas costas do professor e professora a responsabilidade de saber usar a tecnologia de uma forma interessante, mas as redes precisam criar estrutura para dar suporte a eles. Tem redes que criaram equipes de tecnologia pedagógica, não é o cara da TI, é uma pessoa que entende de redesenho curricular com tecnologia. Em Sobral, colocaram um professor a mais por escola, que senta com o professor e ensina a transformar a unidade curricular com tecnologia. Aí ele dá uma aula de biologia, usando robótica, programação. O professor contribui com a experiência que ele tem de sala de aula e o novo professor, de tecnologia, com ideias de como fazer aquilo mais interessante. Claro que tem custo. Mas acho melhor contratar um professor a mais por escola do que comprar 30 lousas eletrônicas que ninguém vai saber usar.

E as crianças precisam ter computador para fazer essas novas aulas?
Num país como o Brasil não se pode esperar que toda criança vai ter um celular com internet ilimitada. Então, assim como o Estado provê carteira, livro, mesa, ele tem que prover acesso à internet e aos dispositivos. Celular e tablet não são a melhor forma, não tem teclado, a tela é pequena. Tem que ter salas para as crianças usarem computadores, laptops que podem ser compartilhados. Tem que encarar esses materiais como básicos. Há computadores de baixo custo. A USP tem um projeto que produz um computador de 40 dólares, sem monitor, que funciona para as coisas básicas de educação. Há várias soluções para universalizar o acesso que não são comprando um Macbook para 1 milhão de crianças.

Na pandemia, empresas como o Google entraram fortemente nas escolas. O que acha disso?
Sem citar nomes, é muito preocupante elas entrarem sem um referencial de legislação. É claro que tinha uma emergência e que bom que muitas ajudaram, forneceram gratuitamente, mas quando começa a se tornar permanente é difícil. É preciso pensar sobre a proteção dos dados das crianças, onde eles estão, os pais podem requisitar, apagar, o que acontece se a empresa for vendida? A gente não tem nada equacionado. Esses dados estão sendo fornecidos para essas empresas sem que os pais e as redes de ensino tenham controle nenhum disso. Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, anotando se elas estão estressadas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem. Há uma tentativa de mistificar a tecnologia, como se ela fosse claramente benéfica e transformadora.

Além dos dados, há outros benefícios para as empresas.
Sim. Tem uma base de usuários de graça, faz uma geração de crianças que usam a ferramenta X da empresa X, com benefícios financeiros a longo prazo. É um oportunismo na pandemia. Claro que as empresas ajudam, não é para acabar com tudo, mas isso tem que ser regulado. Tem empresa que chegou nas prefeituras e deu produto de graça, não precisa de concorrência. Há também questões ligadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente, da publicidade infantil.

Escolas com logotipo da empresa pintado na escola, nos materiais online. Como não pode ter na escola propaganda de um brinquedo, isso também não pode. Existe um discurso de falar que professor é tudo velho, o computador é muito mais personalizado, mas o professor é muito mais personalizado que um vídeo, que uma aula digital. Falam em educação 4.0, híbrida, tudo é uma cortina de fumaça para as pessoas engolirem essa presença das empresas sem controle.

Tem também o outro lado, dos pais que agora não querem mais nada de tecnologia na escola pelo tempo que o filho passou usando.

Tem o tipo de tecnologia que tem que ser controlado, quando a criança fica jogando, vendo vídeo, sendo sugado pelas telas, que foram desenhadas com esse objetivo. Ou as redes sociais, que realmente são coisas que até os adultos têm problemas em se controlar. Eu não acho que a criança tem que ir pra escola e ficar na frente de um computador, mas tem um outro tipo de tecnologia. Como ir ao laboratório de ciência e usar um computador para fazer o experimento, colocar os dados, fazer um projeto de robótica, de ativismo digital, de arte interativa. A tecnologia como matéria prima para construir coisas. É um uso muito diferente, instrumental, que não é esse viciante que a gente conhece.

Essa ideia de colocar a criança numa bolha sem tecnologia é um problema, é você tirar dela uma ferramenta muito poderosa de criação.

O que fica de lição da pandemia para a tecnologia?
O que fica de lição é, primeiro, tem que levar a sério essa desigualdade de conectividade e acesso. A escola não tinha internet, mas isso nunca tinha sido posto à prova. É uma lição de casa enorme conseguir oferecer para as crianças o mesmo ponto de partida. Mas também mostrou para algumas empresas que achavam que as crianças iam ficar em casa e aprender no seu próprio ritmo…isso foi um desastre. A gente não quer esse mundo dos utopistas da tecnologia, a gente quer o mundo que as crianças vão pra escola, se sujem e convivam, aprendam de outras pessoas, conversem com outras crianças. A escola não é só lugar de aprender o conteúdo, mas de ser cidadão, ser gente, ser amigo, todas essas coisas que se achava que era secundário. Outra lição é como é importante investir no professor.

Nos sistemas em que a tecnologia na educação funciona melhor, ela sempre funciona como ferramenta que é colocada na mão do professor. É algo como o médico usa a tecnologia, ele tem que saber medicina, mas às vezes ele usa uma máquina pra fazer raio x, ressonância, mas o médico tá no controle.

Caindo na real, por Afonso Celso Pastore.

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Por conta da alta dos juros para segurar a inflação, no início de 2022 ficará claro que o crescimento do PIB será bem menos do que 2%

Afonso Celso Pastore – O Estado de São Paulo, 15/08/2021

Para quem ainda não se deu conta do significado da expressão “taxa de juros acima da neutra”, usada pelo Banco Central a partir de quando começou a reconhecer o descontrole da inflação, aqui vai a definição: é uma política monetária restritiva, que faz com que o crescimento do PIB atual se mantenha abaixo do seu potencial, alargando um hiato que já é negativo. Ou seja, para iniciar uma lenta e penosa convergência da inflação para a meta, o Banco Central terá de manter a taxa real de juros suficientemente elevada para provocar uma contração da demanda agregada, produzindo sensível redução do crescimento econômico.

Como as defasagens da política monetária são longas, nos próximos meses ainda não deverá ocorrer um encolhimento do PIB, mantendo-se a ilusão de um crescimento forte em 2022. Porém, já no início do próximo ano ficará claro que o crescimento será bem menor do que 2%, que era a estimativa de crescimento do PIB potencial antes da pandemia. Em 2022, teremos inflações e taxas reais de juros altas, com um crescimento medíocre do PIB, sem que se possa descartar uma queda em um ou outro trimestre.

Para minha surpresa, quando eu esboço esse quadro, a reação frequente do interlocutor é um par de olhos arregalados. Talvez isso se deva à ilusão de que a inflação seria apenas a consequência de uma sucessão de choques de oferta, independentes entre si, que se dissipariam sozinhos, sem contaminar as expectativas. Não é o que está escrito no primeiro capítulo do Manual do Regime de Metas de Inflação, que recomenda que, embora o Banco Central deva acomodar o efeito primário de um choque de oferta, tem de elevar a taxa de juros para dissipar seus efeitos secundários, o que não vinha sendo feito nos últimos 18 meses.

A segunda surpresa foi o otimismo do mercado quando o aumento da inflação gerou a ilusão de queda do risco fiscal. Reconheço que desta vez a ajuda não se deu através do imposto inflacionário, e sim por seu efeito sobre o crescimento da receita, que reduziu o déficit primário abaixo de 1,5% do PIB. Se a inflação não fosse tão alta, não teria ocorrido um crescimento do PIB nominal bem acima da dívida nominal, provocando em 2021 uma queda significativa da relação dívida/PIB. Contudo, ainda que isto não revelasse a melhora da política fiscal, provocou um rally nos preços dos ativos, com uma valorização temporária do real e do Ibovespa.

A ilusão de que tudo estaria bem impediu que se prestasse atenção aos efeitos de um aumento da taxa real de juros sobre o crescimento. Talvez isso se deva à expectativa de que a queda do risco fiscal, associada à taxa de juros mais alta, atrairia capitais que valorizariam o real, que poderia chegar a R$ 4,70/US$ ao final de 2021, contribuindo para a queda da inflação. Com isso, a perspectiva era de um retorno mais rápido da inflação à meta, com um sacrifício pequeno em termos de perda de produto.

Antes do alerta de que os gastos sociais também são reajustados pela inflação, acreditava-se que o IPCA de 8,3% em junho de 2021 teria gerado, em 2022, um aumento de R$ 120 bilhões dos gastos primários dentro do teto. A ilusão de que haveria uma gordura que permitiria aumentar os gastos desapareceu com a lembrança de que os gastos sociais têm de ser corrigidos pelo INPC de dezembro, o que come ¾ da suposta folga no teto, e a surpresa dos precatórios acentuou as preocupações. Ainda que a PEC dos precatórios aumente um espaço residual para acomodar o projeto do novo Bolsa Família, a incerteza já provocou efeitos, levando o real de volta aos R$ 5,20/US$.

Entraremos em 2022 com um crescimento econômico abaixo do potencial, com a taxa de desemprego alta e uma piora na distribuição de rendas. Com os EUA, Europa e China voltando a crescer perto dos respectivos potenciais, não teremos mais o impulso do comércio exterior e dos preços de commodities, que se soma ao desestímulo da taxa real de juros no campo restritivo da atividade econômica.

Crescimento econômico baixo reduz a popularidade do presidente, o que pode forçá-lo a optar pelo aumento nos gastos, excedendo o teto, com sua vida sendo facilitada pela aliança com o Centrão, que não tem a mínima preocupação com a responsabilidade fiscal. A piora da situação fiscal acentua a depreciação cambial, que aumenta a inflação, restando ao Banco Central a opção entre aumentar ainda mais a taxa de juros, reduzindo o crescimento, ou acomodar a política monetária, elevando a inflação. Tudo isso em um ano de eleição…

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Livro traça o pensamento econômico de 17 ministros da Fazenda de 1889 a 1985

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Admiração por ideias liberais é ponto comum a quase todos os biografados, assim como é constante a dificuldades em colocá-las em prática

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO, 14/08/2021.

De Rui Barbosa a Ernane Galvêas, o livro “Os Homens do Cofre – O que pensavam os ministros da Fazenda do Brasil republicano” discorre sobre o pensamento econômico de 17 ministros da Fazenda que comandaram a economia do país da Proclamação da República (1889) até o fim da Ditadura Militar, em 1985.

Os nomes selecionados, entre os quase cem titulares da pasta nesse período, incluem dois presidentes da República, Rodrigues Alves e Getúlio Vargas, além de figuras históricas como José Maria Whitaker, Oswaldo Aranha, Horácio Lafer e Eugênio Gudin.

Como destacam os autores, nenhum desses era economista de formação, embora tivessem vasto conhecimento sobre as teorias do liberalismo clássico e os debates econômicos da época nas economias mais avançadas.

Só a partir de 1964 o ministério passaria a ser comandado predominantemente por economistas, classe que assumiria ascendência sobre a administração do país com status que não haviam ostentado até então, segundo o organizador da obra, o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná Ivan Colangelo Salomão.

Desse período mais recente, foram selecionados Octávio Gouveia de Bulhões, Antonio Delfim Netto (que assina o prefácio do livro), Mario Henrique Simonsen e Ernane Galvêas.

Segundo o organizador, foram escolhidos os 17 ministros com maior destaque no cenário público brasileiro desse período, independentemente do tempo em que atuaram. Rui Barbosa, Getulio e Moreira Salles, por exemplo, ficaram pouco mais de um ano no cargo.

Também foram considerados nomes a respeito dos quais houvesse documentação disponível. Buscou-se ainda distribuir os nomes de forma uniforme por esse período.

A admiração pelas ideias liberais é ponto comum a quase todos os biografados, assim como é constante a dificuldades em colocá-las em prática diante de interesses políticos e econômicos —e da realidade de uma economia periférica e ainda em processo de industrialização.

Também não são poucos os que, tendo criticado a leniência dos antecessores com a inflação e os déficits públicos crônicos, acabam por ver frustradas suas tentativas de mudar os rumos da economia brasileira.

Uma economia ainda dependente do setor primário e do crédito internacional, com um sistema cambial instável e uma dívida externa sendo constantemente renegociada também compõe o cenário da maior parte desses quase cem anos iniciais da República.

O livro também mapeia o surgimento do pensamento desenvolvimentista. Primeiro ministro da Fazenda da República, Rui Barbosa é apresentado como um intelectual de formação ortodoxa que acaba por adotar políticas econômicas classificadas pelos autores como um ensaio do desenvolvimentismo que surgiria quatro décadas depois, a partir da Era Vargas.

Um exemplo da aplicação desse pensamento é o capítulo dedicado ao mais longevo ministro da Fazenda da história brasileira, Artur de Souza Costa, que ocupou a cadeira por 11 anos e três meses (de julho de 1934 a outubro de 1945).

No prefácio, o ex-ministro e colunista da Folha Delfim Netto afirma que o Brasil não se saiu tão mal, a despeito de tantas e tão variadas experiências no comando da economia desses anos: no período, o PIB real do país cresceu aproximadamente 5% ao ano, mais do que a média mundial. Situação que, aliás, não voltaria a se repetir nos 35 anos seguintes.

Escrito por diversos autores, alguns capítulos apresentam uma linguagem mais atrativa e uma narrativa mais dinâmica que outros.

Destinado ao público mais especializado em temas econômicos, o livro alcança os objetivos propostos, se dividindo entre o aspecto biográfico e a história do pensamento de cada personagem, usando como referência ampla bibliografia sobre o período.

OS HOMENS DO COFRE: O QUE PENSAVAM OS MINISTROS DA FAZENDA DO BRASIL REPUBLICANO (1889-1985)
Preço R$ 67
Autor Ivan Colangelo Salomão (Org.)
Editora Editora Unesp (520 págs.)

A China adotaria barreiras ao agro brasileiro por motivos climáticos? por Tatiana Prazeres

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Cálculo político sobre restrições comerciais pode mudar à medida que China reduza emissões

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 13/08/2021

A China, destino de um terço das exportações do agronegócio brasileiro, poderia lhe impor barreiras comerciais por razões climáticas?

Pois não é descabida a pergunta, ainda que a agenda de sustentabilidade da China represente também uma oportunidade para o agro brasileiro.

Em julho, Pequim colocou em funcionamento o mercado nacional de crédito de carbono, que imporá um custo às empresas chinesas em função de suas emissões.

Na União Europeia, esse mesmo tipo de mercado levou a que, hoje, o bloco queira implementar um imposto de importação por motivos climáticos, teoricamente estendendo aos importados os custos que passaram a recair sobre produtos europeus.

Meu palpite? No curto prazo é improvável que a China adote esse mesmo caminho de restrições comerciais por razões climáticas. Mais importante: o cálculo político pode mudar à medida que a China avance rumo à neutralidade de carbono.

A lógica remete à atitude chinesa diante de propriedade intelectual. Enquanto o país basicamente copiava, a agenda de proteger conhecimento não convinha. Agora que inova, a conversa é outra.

Igualmente importante: antes de barreiras comerciais, instrumentos menos evidentes mas poderosos, como financiamento atrelado a metas de sustentabilidade, terão impacto nas importações chinesas do agro brasileiro.

Neste momento, no entanto, Pequim tem motivos econômicos e políticos para evitar barreiras comerciais.

A China é o maior emissor de carbono e também o maior exportador de bens do mundo. Com esse duplo título, o país antes receia se tornar alvo de barreiras ao comércio por motivos climáticos. Ao adotar obstáculos comerciais, estaria especialmente vulnerável a respostas equivalentes.

No entanto, à medida que os custos da transição climática do país pesem sobre as empresas chinesas, uma nova conta se impõe a Pequim. Se as exportações chinesas sofrerem barreiras por motivos ambientais, idem.

Especificamente em relação ao agro brasileiro, o argumento da segurança alimentar na China joga contra a adoção de restrições. Dos alimentos que importa, 18% vêm do Brasil.

Ocorre que, do universo de itens do agro exportados para o país asiático, apenas na soja e no suco de laranja há uma grande dependência do fornecimento do Brasil no consumo doméstico chinês. E suco de laranja, convenhamos, não ameaça a segurança alimentar de ninguém. Soja é outra história.

Nos casos em que há grande produção na China e mercados fornecedores alternativos, o argumento da segurança alimentar não oferece blindagem segura contra barreiras.

Há ainda motivos políticos para a China resistir a essas restrições comerciais. O país valoriza a não-interferência em assuntos internos —inclusive porque não quer ingerência externa aqui. A lógica de realpolitik seria, digamos, tratar Amazônia e Xinjiang como assuntos domésticos.

Se hoje barreiras ao agro brasileiro por motivos climáticos parecem improváveis, não custa lembrar a velocidade com que o cálculo de Pequim pode mudar. O vendaval regulatório que acaba de atingir setores de tecnologia e educação privada na China serve de lembrete.

Num cenário de políticas inadequadas no Brasil e, na China, de reais esforços climáticos e inclinações protecionistas, é possível que empresas brasileiras venham a enfrentar barreiras ao comércio por razões ambientais.

Mas o processo seria sutil. Longe de banir importações, o movimento começaria, por exemplo, com certificações climáticas não-obrigatórias —e o sarrafo poderia subir.

Antes mesmo de barreiras comerciais, incentivos reputacionais e financeiros para empresas importadoras, investidores, bancos e fundos chineses terão impacto no agro brasileiro. A China não quer ser vista, por exemplo, como responsável por desmatamento na Amazônica pelas importações de carne.

Menos óbvios que barreiras comerciais, esses incentivos podem ser igualmente poderosos e, principalmente, chegarão primeiro ao agro do Brasil.

‘Há outros vírus só esperando para emergir’, afirma Jared Diamond

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Pesquisador da Universidade da Califórnia abre série de conferências Fronteiras do Pensamento, em formato virtual

REINALDO JOSÉ LOPES – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/08/2021

Para quem tinha alguma esperança de que a Covid-19 seria o tipo de evento que só acontece uma vez a cada século, o biogeógrafo americano Jared Diamond, 83, tem uma má notícia.

“Eu diria que a Covid-19 é o começo do futuro”, afirmou Diamond, autor do clássico “Armas, Germes e Aço”, em entrevista à Folha por vídeo. “Está mais claro do estava um ano atrás que a atual pandemia é um evento único sem precedentes no passado, mas que terá muitos imitadores a partir de agora. Ou seja, a Covid-19 é a primeira pandemia realmente global graças à sua capacidade de se espalhar por aviões a jato, embora a pandemia de gripe espanhola de 1918 tenha chegado perto.”

O pesquisador da Universidade da Califórnia em Los Angeles é o primeiro convidado deste ano da série de conferências Fronteiras do Pensamento, que acontece em formato virtual. Sua palestra para o público brasileiro acontece no dia 25 de agosto.

Diamond se notabilizou pela capacidade de sintetizar uma imensa gama de informações biológicas, geográficas, arqueológicas e antropológicas para tentar encontrar os grandes fios da meada da história humana. Uma das constantes, segundo ele, é o papel das doenças infecciosas, como sugere a palavra “germes” no título de seu principal livro —foram eles os principais responsáveis pela relativa facilidade com que os europeus dominaram as populações nativas de continentes como a América e a Oceania.

As civilizações da Europa e da Ásia contaram com essa vantagem em relação a indígenas americanos e aborígines australianos graças, em grande parte, aos seus rebanhos de animais domésticos, que eram raros ou inexistentes nos locais invadidos.

Os micróbios e vírus dos bichos passaram milhares de anos saltando para seus donos e adaptando-se a eles em território europeu, enquanto nenhum processo parecido se deu entre os nativos do Brasil, dos EUA ou da Austrália.

Com isso, essas populações não tinham nenhuma resistência natural a moléstias como sarampo, varíola e gripe, frequentemente sendo dizimadas pelos germes sem que fosse preciso disparar um só tiro.

A semelhança com o novo coronavírus, contra o qual nenhum ser humano tinha resistência natural quando ele começou a se espalhar no fim de 2019, não é mera coincidência.

“Há outros vírus só esperando para emergir. Temos algo como 30 milhões de espécies de animais por aí, e cada um desses animais têm suas próprias doenças”, aponta Diamond. “Pegamos febre amarela de macacos, malária de primatas do Velho Mundo, pegamos a Sars [doença causada por outro coronavírus no começo dos anos 2000] de animais do Sudeste Asiático. Portanto, você pode apostar que elas vão continuar aparecendo enquanto os seres humanos tiverem contato com animais.”

A relação entre animais domésticos, doenças infeciosas e conquista europeia exemplifica o enfoque dado pelo especialista a suas análises da história humana. Para Diamond, as grandes linhas dos confrontos entre civilizações foram definidas por condições ambientais de cada continente e região, as quais muito raramente estão sob controle de cada povo.

Essa é uma das razões pelas quais ele é um adversário ferrenho da ideia de que supostas diferenças genéticas entre raças ou grupos étnicas, em especial as que afetariam a inteligência, teriam levado ao triunfo de certos povos sobre outros.

“É claro que existem algumas diferenças genéticas entre as populações de cada continente, que possuem razões ambientais sólidas para existir. Os habitantes das regiões tropicais do Velho Mundo, por exemplo, têm genes de resistência à malária porque passaram milênios enfrentando a doença, coisa que os suecos não têm. Já os habitantes do norte da Europa, que consomem leite há milhares de anos, carregam mutações que permitem que os adultos sejam capazes de digerir os açúcares do leite. Mas, no que diz respeito à capacidade do cérebro, não há evidência nenhuma de diferenças”, destaca ele.

“Com base na minha experiência na Nova Guiné, onde faço meu trabalho de campo, posso dizer que os americanos burros conseguem não apenas sobreviver como até acabam indo votar”, ironiza. “Já um nativo da Nova Guiné burro não sobrevive o suficiente para se reproduzir.”

As décadas de contato com as sociedades tradicionais da ilha do Pacífico é uma das bases de outro de seus livros, “O mundo Até Ontem”, no qual Diamond mostra o que é possível aprender com populações que ainda vivem de maneira muito parecida com nossos ancestrais de 10 mil anos ou 5.000 anos atrás. Para o pesquisador, tais grupos abrem uma janela para estratégias de interação social e desenvolvimento humano que continuam sendo valiosas.

“Os povos indígenas têm sociedades que são o resultado de centenas de milhares de anos de evolução e 75 mil anos da evolução dos seres humanos modernos. Eles têm muitas maneiras de criar seus filhos, muitas maneiras de cuidar dos idosos, muitas maneiras de aprender habilidades sociais. Na Nova Guiné, fiquei muito impressionado quando vi que crianças de cinco anos de idade conseguem negociar com adultos como eu muito melhor do que americanos de cinco anos”, conta ele. “Imagino que os brasileiros com mais de 70 anos ou 80 anos em geral estão muito infelizes, tal como os americanos com essa idade. Sentem e conversem com os povos da floresta sobre como eles enfrentam a velhice.”

Ensaio sobre prisões na pandemia implica quem ‘não tem nada a ver com isso’

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Juliana Borges desmantela engrenagens que forjaram terceira maior população prisional do planeta

FERNANDA MENA – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/08/2021

O silêncio sobre contradições fundamenta mitos. Essa afirmação da intelectual brasileira Lélia Gonzalez é evocada pela escritora e pesquisadora de política criminal Juliana Borges em seu contundente ensaio “Prisões: Espelhos de Nós”.

Em cinco capítulos, Borges faz uma ampla análise das engrenagens do sistema de justiça criminal brasileiro e de seu resultado — a terceira maior população carcerária do planeta em estabelecimentos precários e superlotados— sob a luz, ou melhor, sob as trevas da pandemia da Covid 19.

Atrás apenas de Estados Unidos e da China, o Brasil chegou a cerca de 760 mil pessoas privadas de liberdade em junho de 2020, segundo dados do Depen, abusando do instituto da prisão provisória, aquela que ocorre antes do julgamento e da sentença e sob a qual estão detidos cerca de 35%do total de presos e presas do país.

Mais do que isso, Borges desmantela os mecanismos que entrelaçam nossas violentas heranças colonial e escravagista para evidenciar de que maneira elas determinam quem são os “cidadãos de bem” e quem são os “inimigos da sociedade”.

Sintetizada naquilo que hoje reconhecemos como racismo estrutural opera uma máquina de prender pessoas jovens (55% da população prisional), negras (64%), pobres e de baixa escolaridade (51% não possuem o ensino fundamental), como demonstra a autora.

“A construção da figura do criminoso na sociedade brasileira é um processo totalmente atravessado pelo racismo”, escreve ela, que é também consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência, da OAB-SP e conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.

Borges articula filósofos e intelectuais peso-pesado, como Frantz Fanon, Grada Kilomba, Abdias do Nascimento, Pierre Bourdieu, Angela Davis e Michel Foucault, autor do clássico dos estudos sobre prisões “Vigiar e Punir”.

A escritora, que também é autora do livro “Encarceramento em Massa” (Jandaíra), retoma as políticas de embranquecimento da sociedade brasileira e a marginalização da população negra enquanto projeto, a criminalizada por sua condição social de abandono a partir de institutos como a lei da vadiagem, que colocava atrás das grades aqueles que não tinham destino certo que não as ruas da cidade.

A seletividade das prisões em flagrante, responsáveis por parcela importante da população prisional, é uma espécie de atualização informal desses institutos: só são presos aqueles que estão nas ruas e, portanto, podem ser abordados pela polícia. Em geral, homens jovens, negros e periféricos são desproporcionalmente considerados como suspeitos.

Com a chegada da pandemia, penitenciárias superlotadas, onde violações de direitos fundamentais são regra, e não exceção, passaram por um processo de prisão dentro da prisão, e de abandono sobre abandono.

As visitas foram suspensas, assim como as poucas atividades de trabalho e educação. Em muitos casos, até o banho de sol foi cancelado ou ainda mais restrito. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas apontou que 7 de cada 10 famílias de pessoas presas ouvidas afirmaram não ter acesso a qualquer informação sobre seus parentes durante a pandemia. As medidas, defende a autora, transformaram presídios em caixa-preta.

Soma-se a isso a questão do descumprimento da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciado no relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que aponta que 3 de cada 4 pessoas que poderiam ter deixado a prisão na pandemia foram mantidas atrás das grades por juízes de São Paulo.

Ao denunciar os motores do encarceramento em massa, o combustível da negação de direitos fora e dentro dos muros e o negacionismo de parte do Judiciário brasileiro no contexto da pandemia, Juliana Borges ajuda a romper o tal silêncio sobre contradições que fundamentam mitos. Com isso, cria o desconforto necessário à responsabilização. O maior mito deles é talvez o mais recorrente e reconfortante: a falsa ideia de que não temos nada a ver com isso.

PRISÕES – ESPELHOS DE NÓS
Preço R$ 30 (56 págs).
Autor Juliana Borges
Editora Todavia

Recuperação ameaçada

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A pandemia gerou graves constrangimentos na sociedade global, afetando comportamentos, alterando hábitos, crises econômicas, desemprego em ascensão, desesperanças e perspectivas preocupantes, levando os governos a atuações mais intensas em seus sistemas econômicos e produtivos, injetando recursos, protegendo setores, aumentando os investimentos em políticas sociais, retomando planejamento e políticas intervencionistas.

Diante deste ambiente, muitos analistas econômicos, defendiam a tese de que a economia brasileira estava em recuperação, construindo uma narrativa de que o pior teria ficado para trás. A recuperação era vista como sólida e consistente, motivando os investimentos, a geração de empregos e perspectivas de melhorias no incremento da renda, dos salários e do consumo. Infelizmente, as perspectivas positivas estão se mostrando exageradas e a recuperação econômica está se mostrando fraca e limitada.

O cenário do segundo semestre vai ficando turvo para a economia brasileira diante do crescimento de múltiplos riscos: inflação persistente, seca histórica que compromete o abastecimento de energia elétrica e do agronegócio, altas de juros e desarranjo fiscal somado à deterioração do ambiente político e institucional. A recuperação em V tão alardeada pelos integrantes da equipe econômica nos parece bastante distante da realidade do país, com graves constrangimentos para o equilíbrio político, social e institucional.

A recuperação econômica, depois de uma queda elevada no ano passado, pressupõe uma política consistente e organizada, onde os setores econômicos precisam de um ambiente centrado na confiança e no aumento da credibilidade, criando os consensos necessários e imprescindíveis para que os investimentos produtivos voltem a estimular o crescimento econômico. Sem investimentos produtivos não teremos recuperação econômica.

Falar em recuperação econômica com quase 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e 20 milhões de subempregados é uma temeridade e uma verdadeira irresponsabilidade, contribuindo para criar uma narrativa inconsistente que não tem lastro na realidade. O combate ao desemprego deve ser visto como uma prioridade nacional, a geração de emprego prescinde de investimentos em obras públicas e centrados na economia verde e, infelizmente, as discussões se concentram em políticas para reduzir os benefícios sociais que estimulam empregos degradados e a diminuição da renda do trabalhador que contribui para este cenário de desalento e desesperança.

Destacamos ainda o crescimento da inflação que levou o governo a aumentar as taxas de juros na economia, cujos impactos são negativos sobre a renda da população, diminuindo os investimentos produtivos e elevando as dívidas das famílias. Tudo isso contribuiu enormemente para a degradação econômica e fragiliza o discurso da recuperação da economia, que esconde inoperância e a ausência de um projeto nacional consistente.

As contas públicas sempre geraram instabilidades na economia brasileira, no começo do ano muitas previsões de especialistas era que caminhávamos para uma escalada na dívida pública. A relação dívida/PIB se reduziu, gerando expectativas positivas, mas isso não ocorreu por alguma reforma fiscal, a reversão aconteceu em decorrência do incremento da inflação que escondeu parte do problema e, posteriormente, voltará a aparecer quando a inflação diminuir.

Para contribuir negativamente, a crise de energia e a variante Delta geram mais incertezas e instabilidades, impactando sobre a recuperação econômica, afastando investimentos internos e estrangeiros e postergando a construção de um ciclo de crescimento econômico. Nos países avançados, a recuperação econômica está centrada em dois elementos fundamentais: a vacinação, com a economia voltando a um nível de normalidade e estímulos fiscais. Sem estas medidas efetivas de incentivos econômicos e do incremento da imunização, a economia brasileira não conseguirá se reerguer, o cenário permanecerá instável e as narrativas de recuperação se mostrarão cada vez mais reduzidas e limitadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal da Região, Caderno Economia, 11/08/2021.

A tributação no Brasil incentiva o que deve ser evitado

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Fim da isenção sobre lucros e dividendos produzirá mais justiça fiscal

Rodrigo Spada, Presidente da Febrafite (Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais)

Jefferson Valentin, Agente fiscal de rendas do estado de São Paulo
Folha de São Paulo, 09/08/2021

A disfuncionalidade do sistema tributário brasileiro faz com que sejam incentivadas práticas que em outros países são combatidas. Aqui, por exemplo, quem ganha menos paga proporcionalmente mais impostos do que quem ganha mais.
Outro ponto que escancara nossos problemas tributários é o fato de ser mais lucrativo ao empresário retirar dinheiro de sua empresa do que reinvesti-lo, fortalecendo a companhia e a economia nacional.

O lobby político explica, em boa parte, o fato de a regressividade dos tributos sobre o consumo beirar o limite do insuportável e de o imposto sobre a renda ser mais um exemplo de regressividade, sobretudo por conta da isenção atribuída à distribuição de lucros e dividendos. Entre as maiores economias do mundo, o Brasil é o único país no qual essa distribuição é isenta. Será que nós estamos certos e o resto do mundo está errado?

Os defensores da isenção argumentam que as empresas já pagam alíquotas de Imposto de Renda mais altas que em outros países. Falam em 34%, dos quais seriam 25% de IR e 9% de CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). O argumento é falacioso por uma série de fatores, mas principalmente porque há diferenças na tributação dos diversos países, e uma comparação só seria razoável se partisse de uma alíquota efetiva média. Há diversos mecanismos que reduzem a alíquota efetiva do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) nacional.

É comum encontrar, no Brasil, empregados que pagam mais IR que o proprietário da empresa. Para se ter uma ideia do desatino, segundo dados da Receita Federal, em 2018, 26.099 pessoas físicas declararam rendimentos acima de 320 salários mínimos. Destas, apenas 2.364 foram tributadas normalmente, enquanto 4.257 foram tributadas exclusivamente na fonte (ganhos de capital, aplicações financeiras etc.) e 19.478 receberam rendimentos isentos. Ou seja, cerca de 75% dos maiores rendimentos recebidos por pessoas físicas foram isentos.

Em 2019, R$ 359,15 bilhões foram pagos a pessoas físicas sócias de empresas optantes pelo lucro real ou presumido, e outros R$ 120,51 bilhões foram pagos por empresas optantes do Simples Nacional. Somados, quase meio trilhão de reais totalmente isento de Imposto de Renda enquanto a tabela progressiva está há anos sem correção, avançando cada vez mais sobre o trabalhador de mais baixa renda.

Se a empresa retém lucros para investimentos, gerando mais emprego e renda, aumenta o valor de mercado de suas ações ou quotas —e, caso o empresário venda tais participações por valor maior do que as comprou, pagará Imposto de Renda sobre ganho de capital. Por outro lado, se a empresa distribui os dividendos em vez de investi-los, o empresário os receberá livre de tributação. A isenção sobre lucros e dividendos, portanto, representa um incentivo para que o empresário retire dinheiro da empresa.

Diante disso, concluímos que, neste ponto, a proposta do governo, no projeto de lei 2.337/202, caminha na direção correta, pois, ao acabar com a isenção sobre lucros e dividendos, melhora a progressividade do IR e gera mais justiça fiscal à matriz tributária brasileira. E é exatamente por isso que a proposta sofrerá poderosos ataques de uma elite empresarial que, longe de querer o desenvolvimento do país, preocupa-se exclusivamente com seus privilégios.