Guerras produtivas

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O mercado globalizado gerou grandes transformações nas nações, com impactos sobre todos os grupos sociais, incrementando a tecnologia, sofisticando as estruturas produtivas, estimulando o aumento da qualificação dos trabalhadores e intensificou a competição entre todos os agentes econômicos e sociais. A tecnologia ganhou espaço na sociedade, alterando o comportamento dos indivíduos, alterando o consumo, moldando as relações sociais, aproximando os contatos sociais digitais e, ao mesmo tempo, afastando os contatos físicos.

Nesta nova sociedade, percebemos novos modelos produtivos que, anteriormente, estavam centrados no fordismo, marcados por grandes unidades de produção, alto contingente de trabalhadores, salários elevados e produção em série. Este modelo perdeu força nos anos 1970, sendo substituído por um modelo mais flexível, marcado pela desagregação produtiva, alta tecnologia e redução do contingente de trabalhadores, incrementando setores de comunicação e de informática.

Os países mais dinâmicos e flexíveis foram aqueles que se saíram melhores nesta transição de modelo da estrutura global, enquanto aquelas nações que foram mais inflexíveis e menos dinâmicos, perderam espaços na economia internacional, diminuíram suas participações nos mercados globais e foram superados por outras nações, perderam riquezas e se tornaram mais pobres, incremento da pobreza e das desigualdades.

Os grandes ganhadores da economia internacional no período 1990/2020 foram aquelas economias que conseguiram construir projetos de desenvolvimento, centrados numa ideia de nação, adotaram um planejamento estratégico, investindo em educação de qualidade, protegendo suas estruturas produtivas, estimularam a competitividade nos mercados internacionais, adotaram políticas industriais efetivas e dinâmicas, garantindo a compra de produtos nacionais e exigindo dos produtores locais o incremento da qualidade dos produtos nacionais, garantindo financiamentos subsidiados e garantindo aumento da qualidade das mercadorias locais. Embora muitos críticos defenestrem as políticas industriais e as políticas de proteção, vistas como uma intervenção excessiva na estrutura produtiva, todas as nações que conseguiram dar um salto no desenvolvimento econômico adotaram políticas intervencionistas, centradas em planejamento, subsídios e concorrência.

Investimento em educação de qualidade é fundamental para o desenvolvimento econômico e para a melhoria da qualidade de vida da população, além de políticas de incentivos científicos e tecnológicos são cruciais para garantirem autonomia no mercado internacional. Mas precisamos entender que é fundamental atrelarmos investimentos em capital humano com políticas de desenvolvimento industrial, garantindo compras governamentais, incentivos maciços para inovação e estímulos para competição no mercado internacional, melhorando a estrutura produtiva e garantindo novos mercados no ambiente global. A proteção deve ser acompanhada de incremento na produtividade e ganho de mercados externos e maior lucratividade.

Os países que investiram excessivamente nos setores financeiros perderam espaços na economia global, nações que deixaram de lado os setores industriais colheram desindustrialização, piora dos meios de trocas, redução dos salários, degradação das estruturas produtivas, incrementando do desemprego e da desigualdade. Os pacotes econômicos do novo governo norte-americano devem servir de norte para a economia nacional.

Não se constrói uma nação pensando no curto prazo, não se constrói uma nação pensando nos interesses imediatos de corporações e de grupos organizados, não se constrói uma nação criando desemprego, desesperança e exclusão, não se constrói uma nação sem solidariedade. Todos os países que conseguiram vencer o desafio do desenvolvimento conseguiram vencer os conflitos internos, as contradições mais imediatas, vencendo todos os males que pululam nas almas daqueles que acreditam que o indivíduo é mais importante do que o coletivo. Na pandemia, neste momento de dificuldades, de incertezas e desesperanças, estamos percebendo que não se faz uma nação deixando um rastro de degradação, de desigualdade e de exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal da Região, Caderno Economia, 07/04/2021.

Os ‘genocidas’ do mercado financeiro, por João Roberto Lopes Pinto.

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Instituições comandam o cassino financeiro, drenando para os seus acionistas e cotistas a riqueza gerada pela população

Folha de São Paulo, 05/04/2021

João Roberto Lopes Pinto
Professor de ciência política da Unirio e da PUC-Rio, e coordenador do Instituto Mais Democracia

O Brasil vive um dos momentos mais trágicos da sua história, mas em 2020, que terminou com 195 mil mortos pela Covid-19 e um PIB (Produto Interno Bruto) que encolheu 4%, a movimentação financeira na Bolsa de Valores (B3) bateu recorde de pontos e de volume negociado.

O Índice Bovespa ultrapassou a marca inédita de 120 mil pontos, e o volume negociado foi de R$ 35 trilhões, quase cinco vezes o PIB do ano.

Como isso foi possível?

O CAPITALISMO FINANCEIRO BRASILEIRO

No caso brasileiro, o pacote do Banco Central de socorro ao sistema financeiro no valor de R$ 1,2 trilhão, anunciado em março de 2020, contribuiu para que os ganhos financeiros crescessem na mesma proporção das mortes por Covid-19 no país.

Vale dizer que a justificativa para o tal pacote era garantir a liquidez dos bancos nas suas operações com os clientes.

Estudo do Instituto de Economia da Universidade de Rio de Janeiro (UFRJ) mostra que pouco mais de 10% desse valor foi efetivamente disponibilizado para o crédito a empresas com dificuldades, em meio à pandemia.

Antonio Gramsci já havia constatado que a função política do fascismo é colocar a pequena burguesia e seu discurso antissistema, bases do movimento fascista, a serviço do capital monopolista financeiro, em tempos de crise.

O “neofascismo” do atual presidente, Jair Bolsonaro, com seus 20 a 30% de seguidores na população e a condução econômica do ministro Paulo Guedes parecem confirmar o diagnóstico gramsciano.

O que constatamos hoje no capitalismo brasileiro vem sendo gestado desde a crise de 2008, que chega ao Brasil somente com a queda dos preços das commodities em 2011.

Assistimos, a partir daí, a um duplo movimento que redundou no golpe de 2016: o aprofundamento da financeirização em escala global e no Brasil; e uma renovada expansão do capital monopolista internacional sobre a economia brasileira.

Em meio a um ambiente global de enormes massas de capital excedente em busca de valorização, o Brasil se viu sob a pressão de grandes grupos econômicos por desnacionalizações, privatizações, flexibilização das relações de trabalho e aprofundamento do ajuste fiscal –a tal “agenda de reformas”, segundo a mídia, ou simplesmente “agenda ultraneoliberal”, em curso desde o governo de Michel Temer.

Não por acaso, o volume negociado na Bolsa mais que dobrou nos últimos quatro anos, descolando-se aceleradamente da economia real.

Em 2016, ano do golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, somava um pouco mais de duas vezes o PIB, alcançando hoje a cifra já mencionada de quase cinco vezes.

OS AGENTES DO MERCADO FINANCEIRO

No controle dos grupos econômicos (estrangeiros e domésticos) estão, normalmente, instituições financeiras como bancos, holdings e fundos de investimento.

São essas instituições que comandam o cassino financeiro, drenando para os seus acionistas e cotistas a riqueza gerada pela população, por meio do seu trabalho e do pagamento de dívidas, taxas e tributos.

Elas se veem, hoje, plenamente representadas no Ministério da Economia de Paulo Guedes (ex-sócio fundador do BTG Pactual) e no agora “autônomo” Banco Central de Roberto Campos Neto (ex-agente de mercado do Santander).

São elas, portanto, que sustentam Bolsonaro e sua camarilha das Forças Armadas, comandadas hoje por uma oficialidade, da geração de 1964, intelectualmente indigente e politicamente servil à agenda neoliberal.

É, pois, na “Faria Lima”, avenida de São Paulo que reúne a nata do setor financeiro, que estão os principais responsáveis, juntamente com o títere Bolsonaro, pelo estado de calamidade em que já se contam mais de 300 mil mortos por covid-19, fruto do negacionismo bolsonarista.

Em nome das tais “reformas econômicas”, eles se dispõem a sacrificar princípios liberais democráticos e a sustentar saídas autocráticas.

Até porque sabem que o caráter antissocial destas reformas exige um governo capaz de impô-las a ferro e fogo à sociedade, a exemplo da aprovação pelo governo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) emergencial que, em troca de um auxílio emergencial de míseros R$ 250, asfixia ainda mais o gasto público.

Certamente, os da Faria Lima atuam para o “genocídio” da população brasileira há tempos, porém hoje o escancaramento desse “necrogoverno” que sustentam impõe que não haja meias palavras sobre a responsabilidade deles.

Mas quem são eles?

Uma pista é olhar para as instituições financeiras que se reúnem em torno da Associação Nacional de Entidades do Mercado Financeiro e de Capitais (Anbima). A Anbima é responsável por autorregular o mercado financeiro, juntamente com a autarquia pública, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A REGULARIZAÇÃO DO MERCADO FINANCEIRO COMO TAREFA PENDENTE

Já se tornou comum chamar a atenção para a elite financeira como aquela que, de fato, dá as cartas na vida política. Mas, diante da situação extrema que vivemos no país, isso se mostra insuficiente.

É preciso nomear, chamar à responsabilidade.

Os endinheirados se acostumaram a ver seus rendimentos se multiplicarem sem se interessarem por saber como tal
multiplicação se faz no mundo real –como alguém já disse, na órbita financeira não há qualquer coágulo de humanidade.

Em uma rápida olhada na composição da diretoria da Anbima, identificamos algumas dessas instituições que comandam a banca.

Destaque para os representantes domésticos Itaú/Unibanco, BTG Pactual, Bradesco, XP Investimentos, Votorantim e Safra; no caso de grupos estrangeiros, Santander, Blackrock, Brookfield, Credit Suisse, JP Morgan e BNP Paribas.
Trata-se de instituições poderosíssimas, algumas delas com o capital bem maior que o PIB brasileiro, mas por isso mesmo precisam ser expostas.

Retiremos, pois, o véu do chamado “mercado financeiro”, que nada mais é do que uma organização que, sob a justificativa do direcionamento de poupança interna e externa para o setor produtivo, atua efetivamente como um parasita que corrói o organismo hospedeiro.

Não se tem a expectativa de sensibilizar os agentes financeiros.

Como diz, também, Gramsci, é um erro esperar que a própria burguesia faça resistência ao fascismo. Seria o mesmo que reconhecer que na recente iniciativa da “Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Covid”, a chamada “carta de economistas e banqueiros”, houvesse um sentido de oposição ao governo Bolsonaro.

Trata-se de uma carta tardia que se limita, em meio ao colapso no sistema de saúde, a apontar gargalos na gestão da pandemia, conhecidos e propalados há muito tempo.

As proposições para garantir renda e proteção social são superficiais, se considerarmos que se tratam de economistas.

Talvez isso se deva ao fato de que tais propostas os levariam a ter que expor sua defesa intransigente da redução, neste momento tão crítico, do gasto público.

Já o intuito aqui é bem menos pretensioso. Simplesmente nomear, tirar da sombra, responsabilizar publicamente a elite financeira, para que o debate se instale, pelo menos, de forma mais clara e direta.

Com a palavra universidades, organizações e movimentos sociais, sobre a urgência de se exercer um controle, um monitoramento social do mercado financeiro.

Ditadura militar foi empreendimento de ódio ao povo brasileiro, por Silvio Almeida.

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São várias as mentiras sobre o regime que mergulhou o Brasil em caos e sangue por 21 anos

Folha de São Paulo, 02/04/2021.

São várias as mentiras contadas sobre a ditadura militar que mergulhou o Brasil em caos e sangue por 21 anos.

Algumas dessas mentiras são mais conhecidas, outras menos.

Das mais conhecidas, destaco duas: 1) a de que o golpe de Estado e a ditadura que se seguiu foram os únicos meios de defender o Brasil de uma suposta “ditadura comunista”; 2) A de que na ditadura militar não houve corrupção.
Sobre isso, além da corrupção primordial que foi o próprio ato de tomar à força as instituições, rasgar a Constituição e trair o povo brasileiro, os golpistas —militares e civis— se envolveram em diversos casos de desvio de dinheiro público e favorecimento pessoal.

Além dessas, há outras mentiras sobre o golpe militar de 1964, menos reproduzidas, provavelmente porque ultrapassam as justificativas morais do golpe. Refiro-me às inverdades que envolvem as consequências politicas e econômicas da ditadura. Com isso, não quero dizer que os aspectos morais não devam ser considerados. A ditadura é em muito responsável pela degradação moral do país.

Está na conta dos golpistas e seus apoiadores a normalização de um padrão de sociabilidade que faz da corrupção, da tortura, do autoritarismo e da desigualdade parte integrante da vida social. Definitivamente, ao apoiador do golpe, da ditadura militar e da tortura —praticada, inclusive, em crianças— não cabe denominação outra que a de aberração moral.

Mas é importante que a conformação política e econômica do golpe militar seja destacada, pois o silêncio sobre esses pontos é que permite que mentalidades e práticas oriundas da ditadura continuem infectando nosso cotidiano.

Ademais, o foco específico na moralidade permite que alguns dos antigos e dos novos apoiadores do regime militar continuem na cena pública apenas inserindo as palavras “democracia” e “legalidade” no meio de um discurso. É com esse expediente retórico que podem, sem sujar as mãos, continuar fornecendo suporte aos dois pilares da ditadura: desigualdade social e entreguismo.

Não foi a delirante ameaça comunista nem a defesa da família que motivou o golpe, mas sim interesses econômicos e políticos contrários à soberania nacional. Pesquisas sobre a economia brasileira têm demonstrado que aquilo que mais orgulha os próceres da ditadura militar, o tal “milagre econômico”, período de significativo crescimento, foi também o momento em que as desigualdades sociais se acentuaram.

Ao final da ditadura militar, como nos mostra o pesquisador Pedro Ferreira de Souza, o 1% mais rico da população detinha 30% de toda a renda do país. Para que a equação crescimento econômico e concentração de renda pudesse funcionar foi necessário temperar a exploração do trabalho com intensa violência politica contra trabalhadores, sindicatos, movimentos sociais e opositores em geral.

Por fim, a ideia de que os golpistas eram nacionalistas e patriotas é outra grande balela. O que se viu em 1964 foi a devastação da soberania nacional e a quebra do dever de lealdade para com o povo brasileiro. Colocou-se a economia a serviço de ricos e estrangeiros, destruiu-se a democracia, conspurcou-se a Constituição.

Com o golpe militar foram destruídas as esperanças de um Brasil altivo e soberano. E como bem lembrou Octávio de Barros em seu Twitter, o golpe foi também contra a inteligência brasileira, contra a ciência, contra a universidade, contra o desenvolvimento nacional, resultando no exílio ou assassinato de muitos professores ou cientistas, casos de Anisio Teixeira, Mario Schenberg, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Ruy Mauro Marini, Vladimir Herzog, Ana Kucinski, Iara Iavelberg, Alberto Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Álvaro Vieira Pinto, Luiz Roberto Salinas Fortes e tantos outros.

Não chegamos até aqui à toa: centenas de milhares de mortos, fome, desemprego, desmonte do sistema de proteção social, um governo incompetente e irresponsável. A ditadura militar de 1964 foi um empreendimento de ódio ao povo brasileiro. Por isso, que não pairem dúvidas sobre como pensa e o que quer para o Brasil quem celebra uma ditadura que nos mergulhou em tantas tragédias.

China dobra aposta em tecnologia, por Tatiana Prazeres.

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País mobiliza grandes investimentos para projetos de tecnologia em estágios iniciais

Folha de São Paulo, 02/04/2021

Volumes fabulosos de recursos já foram investidos no desenvolvimento de semicondutores e, apesar disso, a China segue altamente dependente da importação desses insumos.

Anos de expectativas frustradas incomodam o governo chinês. Não apenas porque isso evidencia a dificuldade de transformar desejos em realidade, mas também porque coloca a China numa posição vulnerável do ponto de vista tecnológico.

Do total de semicondutores que consome, a China produz apenas 30% e importa o restante, numa proporção que há anos insiste em não se alterar.

A China depende de chips para produzir outros bens, para exportar e para inovar. Produtores de carros chineses, por exemplo, importam 90% dos semicondutores de que necessitam.

Os EUA enxergaram na fragilidade chinesa uma oportunidade. Adotaram medidas para restringir suas exportações de semicondutores para a China. Foram além e criaram dificuldades para que empresas estrangeiras mesmo fora dos EUA vendessem, para a China, equipamentos e software para a produção de chips.

Ainda que em escala menor, histórias parecidas se repetem em outras tecnologias. É extensa a lista de empresas chinesas proibidas de fazer negócios com firmas americanas. Com isso, limita-se o acesso chinês a certos insumos estratégicos.

Qual a consequência do outro lado do mundo? O Estado-investidor chinês aumenta seu apetite pelo risco. Pequim passa a atuar como um “venture capitalist” —como argumentou Arthur Kroeber num webinário organizado pelo Cebri e Conselho Empresarial Brasil-China nesta semana.

Claro, investimentos em política industrial, em tecnologia e mesmo em autossuficiência não são novidade na China. No entanto, agora Pequim mais que dobrou a aposta.

O que há de novo são a ousadia na maneira de investir, o volume de recursos envolvidos na empreitada e a coerência estratégica da intervenção do Estado, segundo Kroeber.

Pequim passa a mobilizar grandes investimentos em setores intensivos em tecnologia, especialmente para vários projetos em estágios iniciais —arriscados, mas potencialmente promissores.

Como é típico do modelo de “venture capitalism”, nem todas as apostas vão se revelar acertadas. Mas, claro, a ideia é de que haja vencedores suficientes para compensar os investimentos que inevitavelmente fracassarão.

Apesar de tudo, o sucesso não é garantido. As dificuldades normalmente associadas a política industrial estão presentes também na China. Há espaço para desperdício, favorecimentos, distorções e corrupção.

Quando, no ano passado, Pequim definiu novos incentivos para o desenvolvimento de semicondutores, empresas de todos os tipos se aprontaram para pleitear benesses. O governo precisou agir para evitar abusos. Definiu três “nãos”.

Empresas sem experiência, sem tecnologia e sem capital humano na área não deveriam se aventurar aí —não com recursos públicos.

Se o intervencionismo estatal tem seus riscos, a lógica do relacionamento entre Estado e mercado na China, no entanto, sempre foi diferente. O setor público é visto sobretudo como parte de solução e não como o problema na economia.

Expressões como China Inc. e capitalismo de Estado, por exemplo, representam o esforço de capturar a essência deste modelo híbrido —e que também se transforma. Mas enquanto o resto do mundo aponta para as contradições, os chineses enxergam as sinergias da relação.

Nas atuais circunstâncias, a dependência tecnológica da China e o ambiente internacional difícil para o país contribuem para a ousadia do Estado-investidor. Não por acaso o recém-adotado plano quinquenal prioriza autossuficiência tecnológica.

Se fosse um investidor privado, a China de hoje teria perfil arrojado. O risco é alto, mas o retorno também pode ser. Em jogo, estão os rumos da competição tecnológica, econômica e geopolítica. Com bolsos mais fundos que no passado, Pequim está disposta a pagar para ver.

A reforma revolucionária de Biden, por Nelson Barbosa.

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Se proposta tiver sucesso, acabará o festival de planejamento tributário nos EUA

Nelson Barbosa – Folha de São Paulo, 02/04/2021

O governo Biden mais uma vez mostrou o caminho para sair da crise, confirmando o que vários economistas heterodoxos vêm dizendo, há décadas, nos EUA e por aqui. Aos números.

Depois de aprovar um “programa de resgate” de US$ 1,9 trilhão, focado em transferência de renda aos mais pobres e mais recursos para saúde e educação, Biden lançou um “programa de emprego” de US$ 2,3 trilhões nesta semana.

O valor da segunda iniciativa se divide em: US$ 621 bilhões em infraestrutura de transporte (incluindo rede de energia para veículos elétricos), US$ 689 bilhões em habitação e serviços públicos (como saúde, educação e creches), US$ 578 bilhões em inovação e geração de empregos (política industrial e tecnológica) e US$ 400 bilhões para expandir e melhorar o cuidado de idosos e pessoas portadoras de necessidade especiais.

Somando os planos de resgate e emprego, o “Pacote Biden” está em US$ 4,2 trilhões. O valor parece alto, mas como o programa de emprego será distribuído em oito anos, seu impacto imediato na economia não é grande. Por esse motivo Biden já recebeu críticas da extrema-esquerda dos EUA, que desejava um valor maior.

Biden foi “comedido” no programa de emprego porque foi ousado no programa de resgate. O US$ 1,9 trilhão já aprovados pelo Congresso terá impacto maior em 2021-22, ajudando os EUA a sair rapidamente da crise.

A ideia do plano de emprego é suceder as ações de resgate, de modo crescente a partir de 2022, gerando sustentação econômica, social e política para um novo ciclo de desenvolvimento dos EUA. Por este motivo, o pacote Biden já seria revolucionário, mas tem mais.

Para pagar o aumento do gasto, Biden também propõe ampla revisão tributária, cobrando mais do “andar de cima”. Rompendo a lógica de desoneração do capital que domina a política econômica desde 1980, Biden quer aumentar a tributação sobre o lucro das empresas e das famílias mais ricas, desfazendo parte da desoneração regressiva adotada por Trump.

Mais importante, o novo governo dos EUA discute que, acima de um valor anual mínimo, toda renda pessoal do capital seja taxada pela mesma alíquota de imposto de renda aplicada à renda do trabalho. E como se isso não fosse suficientemente progressista, Biden também quer alíquota mínima de imposto de renda sobre empresas, tanto sobre lucros domésticos (de 15%) quanto sobre lucros no exterior (de 21%).

Se a proposta tributária de Biden tiver sucesso (tomara que tenha), acabará o festival de planejamento tributário nos EUA, com efeito altamente positivo sobre todo o mundo ocidental.

Há 40 anos, o movimento Thatcher-Reagan gerou grande desoneração do capital, com aumento da desigualdade e volatilidade econômica, culminando na crise financeira de 2008 e estagnação econômica da década seguinte.

Agora, seja por demanda popular, seja por pressão da competição com a China, os EUA finalmente parecem se mover na direção contrária do neoliberalismo, adotando tributação mais progressiva e aumento do investimento público, com “pegada” ambiental e social.

Não sei se Biden terá sucesso. O plano de resgate já foi aprovado pelo Congresso, mas haverá oposição ferrenha de Wall Street e do Vale do Silício às iniciativas tributárias anunciadas nesta semana.

Torço e até rezo para que Biden prevaleça sobre a Faria Lima deles, pois isso melhorará a situação da maioria da população norte-americana e abrirá possibilidade de que outros países sigam o mesmo caminho.

Armadilhas

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A pandemia está trazendo grandes transformações para a sociedade, criando novos desafios, novas oportunidades e novas preocupações. A sociedade global vive um momento de desesperança, para muitos especialistas, a globalização era uma realidade inexorável e todas as nações deveriam se adaptar, abrir suas economias e se integrar os fluxos de comércio e de finanças. Se não nos adaptássemos aos ventos da globalização seríamos deixados de lado diante do progresso e renegados do desenvolvimento econômico. Na verdade, com as mudanças contemporâneas, alguns mitos estão perdendo espaço, levando a novas estratégias e novas formas de planejamento, não apenas centrados nos governos, mas na integração entre os governos e os mercados. Neste momento, todas as nações que estão superando este momento de incertezas e instabilidades são os que conseguiram construir um projeto nacional.

A pandemia deixou claro para a sociedade que é fundamental um setor industrial moderno e dinâmico, sem isso, nossa dependência será mais visível, deixando claro a nossa pouca autonomia. Sem desenvolver o setor industrial, somos uma nação dependente de insumos farmacêuticos, dependentes da importação de produtos hospitalares, respiradores e outros insumos fundamentais para a tão proclamada independência nacional.

Estamos numa situação de crescimento da dependência externa, somos importadores de produtos que, anteriormente, éramos autossuficientes. Deixamos de lado os sucessivos investimentos em ciência e tecnologia, reduzimos os recursos para os centros de pesquisas e passamos a acreditar que, num momento de instabilidade, seríamos socorridos pelos parceiros internacionais. Ledo engano, percebemos que precisamos construir nossas tecnologias e, para isso, não existe fórmulas rápidas e imediatas, demandam investimentos, focos na pesquisa científica, na formação de capital humano qualificado, ensino da ciência e o estímulo constante ao desenvolvimento da investigação científica.

Sem estes recursos, sem uma política pública concatenada pelos gestores públicos e pelos investimentos privados, vamos continuar formando profissionais de alta qualificação, cujos custos são elevados e, na maioria das vezes são formados por instituições públicas e, sem oportunidades internas e digna remuneração, são contratados por outras nações, cujos investimentos são valorizados no desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas.

A globalização nos trouxe grandes transformações, alterou a estrutura produtiva, aumentou os investimentos em ciência e tecnologia, mas ao mesmo tempo, deixou claro a necessidade de um projeto nacional, um plano concatenado que deve unir todos os setores da sociedade e estimulando a construção de um setor produtivo consolidado e diversificado. Nesta empreitada, percebemos que é fundamental a construção de um consenso político, consciente de que os entraves são violentos, tanto internos e externos. De um lado, encontramos grupos ganhadores desta situação de degradação social e pobreza crescentes, pessoas e grupos socais que ganham fortunas com a miséria que degrada a sociedade. De outro lado, países que sempre atuaram para impedir o desenvolvimento das potencialidades deste país, estimulando a perpetuação desta situação de desgoverno, desigualdade e degradação da sociedade.

Precisamos estimular a reflexão e a reconstrução da sociedade, a globalização reduziu os poderes nacionais e transferiu poder para os grandes grupos econômicos e financeiros, reduziu os poderes dos trabalhadores e criando espaços de dependência que ultrapassam as autonomias nacionais, aumentando as fragilidades e reduzindo a soberania.

Neste momento, precisamos retomar o controle dos rumos da sociedade, reconstruindo as estruturas industriais e consolidando nossa soberania. Nesta pandemia, percebemos o incremento da dependência externa, precisamos urgentemente de um grande projeto de desenvolvimento, fortalecendo os setores produtivos, investimento em capital humano e mostrando a importância da ciência nacional, retomando espaços de destaque na sociedade global.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, professor universitário. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/03/2021.

Pesquisador critica fetiche pelo novo e o ‘discurso ilusório’ do Vale do Silício

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Em entrevista à Folha, Lee Vinsel argumeta que inovação nem sempre é positiva, já que pode criar expectativas irreais

Bárbara Blum – Folha de São Paulo, 29/03/2021 – SÃO PAULO

‘Mova-se rápido e quebre as coisas”. O mote da gigante de tecnologia Facebook resume o tom que dita a conversa sobre inovação hoje: é importante ser disruptivo. A hipervalorização dessa abordagem, comum ao modelo de startups, porém, nem sempre produz inovação de fato e pode prejudicar setores da economia e profissionais que não se pautam pela ruptura para medir o sucesso.

Essa é a leitura que faz Lee Vinsel, historiador especializado em tecnologia, no livro “The Innovation Delusion: How Our Obsession with the New Has Disrupted the Work That Matters Most” (“A ilusão da inovação: como nossa obsessão pelo novo corrompeu o trabalho que mais importa”, em tradução livre), publicado em 2020 nos Estados Unidos.

Vinsel argumenta que é importante distinguir entre inovação real e o discurso sobre inovação —marcados pelo léxico e por valores da indústria da tecnologia que incluem destruição criativa, velocidade e uma mente brilhante por trás das novidades. Para o pesquisador, a inovação nem sempre é positiva, já que pode destruir empregos e criar expectativas irreais.

Como distinguir inovação de verdade de ilusão de inovação? Existe a diferença do que chamo no livro de inovação de fato e o discurso da inovação. O primeiro seria a introdução de novos métodos, produtos e tecnologias na sociedade.
O discurso de inovação, por outro lado, é a forma como falamos e pensamos sobre essas mudanças. Quando pensamos na história da palavra inovação, ela não era tão usada antes da Segunda Guerra e os anos 1960.

Como esse discurso de inovação se tornou dominante na vida cotidiana? Parte da minha teoria sobre o assunto é que o discurso sobre disrupção é um produto dos anos 1990. Acredito que essa forma de falar ascendeu junto com a internet. Existem áreas de disrupção clássica que vieram com a internet, como o streaming, que acabou com as grandes redes de locação de filmes. Houve uma fase em que se pensava que todos os aspectos da vida seriam alterados pela internet. E é um processo ligado ao Vale do Silício, justamente porque são pessoas interessadas em usar a internet para quebrar uma ou outra indústria. Mas hoje já vimos que nem todas podem sofrer esse processo. É difícil pensar na disrupção via aplicativo da indústria de aço e de biocombustível. Houve muito hype envolvido nesse discurso. A geração constante de novidades em métodos e produtos não se aplica a todos os campos de produção.

No livro você menciona a importância da manutenção e do cuidado, setores importantes, mas desvalorizados, caso dos serviços de enfermagem, cuidado com idosos, reparos em estruturas físicas. Como a pandemia impactou as percepções sobre os trabalhos de cuidado e manutenção?
A pandemia trouxe à tona a importância dos trabalhos essenciais. O discurso nos Estados Unidos é a favor dos trabalhadores essenciais. Porém, não há conversas sobre mudanças estruturais capazes de melhorar a vida dessas pessoas, e muitos desses trabalhos são mal pagos. Existe um impacto maior disso nas mulheres e minorias étnicas. É um problema profundamente conectado com a desigualdade. Quando falamos em cuidado, estamos falando em mulheres, especialmente pertencentes a minorias. Seria possível usar o discurso dos trabalhadores essenciais para discutir essas desigualdades.

Empresas de tecnologia não têm interesse em investir em manutenção? É um desinteresse movido por razões econômicas ou ligado à ideia de manter inovações em curso? 
As empresas não apenas não estão interessadas em manutenção, como fecham as iniciativas que aparecem. Com certeza isso é movido por lucro, mas em um nível mais profundo é uma questão cultural. Nós nos tornamos uma sociedade ‘‘throw-away’’ (do desperdício). Existe uma conspiração entre consumidores e as grandes empresas que sabotam o reparo e a manutenção. Consumidores não querem se incomodar com o reparo, preferem comprar um item novo.

Como é construída a relação entre as ocupações ligadas a cuidados e as características sociais desses trabalhadores — principalmente mulheres? O trabalho é desvalorizado por causa do grupo que o realiza ou os grupos que o realizam têm acesso a ele por já ser culturalmente desvalorizado? 
Existe uma hierarquia de status de trabalho e, a partir disso, criamos ideias de quais tipos de pessoas realizam cada tipo de trabalho.

Existe um discurso da manutenção da mesma forma que existe um discurso da inovação? No livro, decidimos não fazer uma lista de recomendações de políticas para manutenção. Trabalhamos com níveis diferentes: nacional, de organizações e individual. Fazer com que líderes de organizações pensem mais a longo prazo, respeitem mais os responsáveis por manutenção. Precisamos de melhorias na infraestrutura e na manutenção dela, precisamos de mudanças de legislação que encorajem organizações a pensar no longo prazo. Existem estruturas hoje que nos fazem pensar em crescimento e lucro. Precisamos do pensamento a longo prazo.

O discurso de inovação, no livro, é focado no gênio, no indivíduo que tem sozinho novas ideias. É uma figura nova? Mesmo no início do século 20 era possível identificar alguns CEOs carismáticos, como Henry Ford. Mas após a Segunda Guerra Mundial, que é quando a obsessão com crescimento emerge, companhias estão sempre procurando aquela novidade que vai colocá-los na frente de todo mundo. Existe um sistema de recompensa que incentiva esse comportamento. Mas existe uma performance do inovador, e se forma uma estrutura de trabalho na qual pessoas precisam se apresentar dessa forma. Tem até um visual, um código de conduta.

Você diz que a relação entre inovação e crescimento não é quantificável e que talvez não deveríamos incentivar tanto o crescimento. Pode aprofundar essa análise? 
O avanço tecnológico é ligado ao crescimento econômico. Mas, embora falemos cada vez mais em inovação, não é verdade que estejamos inovando cada vez mais. Talvez seja até possível falar em redução da inovação desde os anos 1970. Existe uma desconexão entre o discurso e a coisa em si, mesmo em negócios que querem ser grandes inovadores. Só o discurso não vai levá-los à inovação.

Na política, é mais importante inaugurar projetos do que fazer manutenção dos antigos? 
Vivemos uma cultura de cortar o laço: inauguramos estradas, pontes. É fácil receber crédito fazendo coisas novas, e não é tão fácil receber crédito por manter o bom funcionamento. É um incentivo ao pensamento a curto prazo.

Existe um descompasso entre a forma como o discurso da inovação aparece na educação e as funções que os jovens de fato vão realizar na vida profissional? 
Quando olhamos para disciplinas STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática), tudo ali é voltado a inovação. Estudantes de engenharia fazem competições de robôs. Essa abordagem pode ser prejudicial para a autoestima dos jovens, pois esse não é o tipo de trabalho que eles vão fazer quando se formarem. Vemos muito burnout nesses campos, não surpreende que esses jovens fiquem deprimidos. Precisamos de uma representação mais fiel do tipo de trabalho que existe. Além disso, a figura do inovador é excludente para grupos como mulheres e minorias raciais. Se apostássemos nas figuras do cuidador, do provedor, em detrimento do inovador seria mais apelativo. É o cuidado com o mundo. Talvez não seja tão sexy quanto a figura do inovador, mas é muito importante.

De fato, numericamente nem todos podem ser líderes inovadores. Mas o discurso do que é desejável profissionalmente é voltado para a inovação. Com certeza. É matematicamente impossível que todos os estudantes em uma sala sejam CEOs. Ignorar que os trabalhos são majoritariamente de manutenção é a ilusão de inovação da qual falo no livro. É ignorar o lugar de onde estamos falando, ignorar o mundo ao redor. Temos que lidar com desigualdade, mudança climática. E não vamos conseguir sem olhar para as coisas pequenas. Por exemplo, se uma estrada está se deteriorando, se vamos envelhecer com conforto… Precisamos colocar os pés no chão.

RAIO-X
Lee Vinsel, 41
Professor da universidade Virginia Tech, nos EUA, onde leciona sobre sociedade, ciência e tecnologia. Fundou o grupo The Maintainers (Os mantenedores), dedicado à pesquisa sobre manutenção e trabalho cotidiano com tecnologia. É autor de “Moving Violations” (Johns Hopkins University Press, 2019) e “The Innovation Delusion’’ (Currency, 2020), este com Andrew L. Russell.

Remédio amargo

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O termo lockdown ganhou espaço no vocabulário nos últimos meses, podemos defini-lo como a versão mais rígida do distanciamento social e quando a recomendação se torna obrigatória. Neste período muitos especialistas destacaram-na como a forma de auxiliar no combate ao coronavírus, responsável por uma das maiores crises sanitárias do país.

Neste momento precisamos construir laços sociais, políticos e econômicos para garantir o isolamento de todos os grupos sociais, empresas e instituições, levando-as para, literalmente, reduzir suas atividades. Nos exemplos mais exitosos de Lockdown, todos os grupos sociais atenderam ao chamado das autoridades, cabendo ao poder público construir uma estratégica de comunicação eficiente, garantindo auxílios monetários e financeiros, aumento e rapidez da vacinação. Na sociedade brasileira, marcada por grandes desigualdades e crises de emprego e queda da renda, percebemos que os conflitos são generalizados, confrontos políticos, falsos argumentos e incompetência na gestão, com isso, percebemos que caminhamos rapidamente para o colapso e para as convulsões. O lockdown é necessário e imprescindível, depois de contabilizarmos 300 mil mortes, com uma gestão pública caótica, adotá-lo é a única forma de diminuir o colapso que se avizinha para a sociedade. Além do lockdown, precisamos acelerar o auxílio emergencial e acelerar a vacinação. Sem organização e na ausência de liderança os problemas tendem a piorar rapidamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/03/2021.

Invisíveis, por Fernando Schuller,

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A desigualdade é ‘funcional’ no Brasil, e isso vem travando as políticas de isolamento

Fernando Schuller – Folha de São Paulo, 25/03/2021

Ele trabalha na segurança do prédio. Está sempre lá, cedo de manhã, o João. Nunca soube de onde ele vem e como chega até aqui. Um dia perguntei. “Pego um ônibus, embarco no metrô” e depois caminho um pedaço de Moema pra chegar aqui.”

Me lembrei do João quando vi um comunicador reclamando que a cidade andava “quase normal”, no meio de pandemia, com o transporte lotado e tal. Perguntei de onde as pessoas imaginam que surgem os entregadores de pizza, diaristas, motoristas, frentistas e porteiros que atendem o andar de cima, silenciosamente, todos os dias?

Alguém me disse que a pergunta era inconveniente e podia servir de boicote às medidas de isolamento. Era melhor manter essa coisa meio “invisível”. Achei curioso. Naquela visão, devíamos fingir que o problema não existia, ou quem sabe nem bem aquelas pessoas todas existiam. E irmos pra cama tranquilos depois de um filme na Netflix.

O problema da autoilusão é que você dá um drible na realidade, xinga seu adversário pra disfarçar, mas o mundo frio dos indicadores e as estações lotadas continuam lá, todas as manhãs. Os dados mostram que a taxa de isolamento social em São Paulo caiu a apenas 43%, agora no auge da pandemia. A pergunta é por que, e quem está pagando a conta.

Uma pista foi dada no estudo publicado no Journal of Population Economics, mostrando como diferenças de renda afetam as pessoas na pandemia. O grupo de maior renda tem até 54% a mais de chances em relação ao de menor renda de tomar medidas de proteção como o distanciamento social.

Há muitas pesquisas apontando nessa mesma direção. Uma das mais cruéis mostrou que a pandemia tem sido muito letal entre a população negra, no estado de São Paulo. Se estivéssemos na Dinamarca ou na Suécia, com uma estrutura social mais homogênea, medidas de isolamento atenderiam a todos de modo mais uniforme. Mas estamos no Brasil, com seu enorme contingente de pobreza. E aí as coisas se complicam.

Dan Ariely usou um termo difícil pra explicar o fenômeno. Sugeriu que a vulnerabilidade econômica leva as pessoas a fazer um “desconto hiperbólico”, priorizando os temas ligados à subsistência em detrimento de regras e cuidados com o futuro.

Meu ponto é que pouca gente parece de fato disposta a sair da retórica e encarar o problema. A maior probabilidade é de irmos levando. Podemos até fazer de conta que o auxílio emergencial vai resolver o problema, mas ele não vai.

Seu alcance é, quando muito, amenizar a situação de quem vive abaixo da linha de pobreza.

A verdade é que se trata, em boa medida, de um problema sem solução. O sistema político até poderia ter feito um ajuste duro e gerado uma transferência de renda mais robusta, mas não o fez. A elite do funcionalismo abriu mão de ganhar acima do teto? Os partidos abriram mão do fundão? Alguém topou discutir redução temporária de jornada na área pública, em meio à maré de demissões no lado privado?

Contar com a disposição da sociedade para isso é uma quimera. A mistura de pobreza e desigualdade é “confortável” no Brasil. Que percentual de famílias com maior renda deixa que a empregada fique em casa? Dias atrás vi o oposto: a família demite a empregada que precisava acompanhar o pai na UTI. Ela agora está “na batalha”, como me disse dia desses, no elevador. O risco da Covid não é o primeiro item de sua escala de urgências.

Escutei muita gente boa sobre como lidar com o problema. Há quem imagine que a solução é ir ao Supremo e aumentar o valor do auxílio. Quem sabe o STF ajude também a achar a fonte do recurso. Um interlocutor me falou de “pequenas medidas práticas”, como ampliar frotas de transporte e evitar aglomeração. “Não há bala de prata”, me disse ainda outro, “e já é quase tarde demais para tentar alguma coisa”.

Talvez ele esteja certo e o que nos resta, enquanto esperamos pela vacina, é exercitar a raiva política (quem sabe nossa grande especialidade) e evitar as perguntas inconvenientes. A opção seria ter liderança. Pactuar medidas duras e acelerar o fim dessa tragédia, mas não vejo disposição de quase ninguém nesta direção.

Oportunidades pós-pandemia

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O mundo vive momentos de ansiedade e preocupações, a pandemia está redefinindo as estruturas da sociedade, levando os indivíduos, as empresas e os governos a se reinventarem, buscando novos horizontes e perspectivas para a coletividade, reconstruindo novos espaços de produção e solidariedade dos seres humanos. Neste momento de crise sanitária global, ainda não conseguimos enxergar os horizontes que devem ser abertos para a sociedade global no período posterior a pandemia, mesmo assim, algumas características estão nítidas, criando desafios inéditos, preocupações crescentes e novas oportunidades, onde os atores mais preparados, ágeis e flexíveis, tendem a ganhar espaços na economia internacional.

Muitos acadêmicos estão refletindo sobre a sociedade internacional nos momentos posteriores da pandemia, cada um defende suas teses para compreenderem o comportamento dos consumidores, das empresas e governos dos próximos anos. Diante disso, percebemos que a grande maioria dos teóricos acreditam que o mundo pós pandemia será mais desigual e com novas formas de globalização, com novos modelos de produção, novos modelos de negócios e um aprofundamento da desigualdade e da exclusão social entre todas as regiões do mundo, exigindo uma atuação mais efetivas dos Estados Nacionais.

A indústria brasileira perdeu espaço na economia nacional, deixando claro a dependência de insumos importados, faz-se necessário um novo consenso entre todos os agentes econômicos e políticos para a reconstrução da indústria nacional. Reestruturando urgentemente os setores que foram impactados, tais como a indústria da saúde, que das últimas décadas perderam espaço na economia. Este fortalecimento reduzirá a dependência de parceiros internacionais, que num momento de crise, como a que vivenciamos, privilegiam sua produção interna e o bem-estar de sua população, reduzindo nossa autonomia. Neste momento, precisamos reconstruir nossa estrutura industrial e garantir forças produtivas autônomas e capacitadas para sobreviver e garantir a sobrevivência em momentos de crises, sejam sanitárias, econômicas, políticas e convulsões sociais. E fundamental aprendermos com a pandemia, que pode nos legar melhoras na estrutura econômica e produtiva, melhorando emprego e diminuindo a dependência internacional.

A pós-pandemia prescinde de uma consolidação da economia digital, que precisamos para concorrer e sobreviver no cenário internacional, onde as potencialidades das nações devem exigir investimentos adicionais na formação de capital humano, além de garantir investimentos científicos e tecnológicos, sem estes recursos as posições nos rankings educacionais e de produtividade tendem a piorar e perpetuar as péssimas condições de vida da população.

As novas tecnologias estão gerando grandes transformações na sociedade, neste momento precisamos construir as tecnologias 5G, estimular estas tecnologias e diminuir os hiatos crescentes com as nações desenvolvidas. No futuro devemos compatibilizar modelos híbridos entre atividades presenciais e digitais, exigindo a capacitação dos trabalhadores, estudos crescentes e contínuos, exigindo investimentos em inclusão digital, sem esta inclusão as desigualdades tendem a crescer, fragilizando o capital humano e diminuindo o desenvolvimento econômico.

O mundo pós pandemia exige uma maior cooperação entre as nações, internamente percebemos que vivemos num momento preocupante, existem inúmeras oportunidades para todos os agentes econômicos e políticos, mas faz-se necessário uma união e a busca de um consenso imediato. Neste momento se faz necessárias ações urgentes, precisamos reconstruir a indústria brasileira, esta reconstrução deve estimular a produção interna, a capacitação do capital humano, os investimentos de agências de fomento público, investimentos em pesquisas, ciência e tecnologia e políticas de proteção nacional, centrado no estímulo local e estímulo da concorrência global, com metas sólidas de vendas externas e incremento da produtividade. Sem atuações efetivas, serenas e imediatas, a sociedade tende a amargar outra década perdida.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário de Região, Caderno Economia, 24/03/2021.