A educação de elite, a educação sucateada e o fosso social no Brasil, por Dora Incontri.

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Essa semana saiu a notícia de uma escola no Rio, para a elite da elite – 3.800,00 reais por mês – inspirada nos badalados métodos de educação da Finlândia. O principal acionista da escola é Paulo Lemann, dono do Burger King.

Dora Incontri

Para quem milita por uma educação de qualidade e inovadora para todos os brasileiros e brasileiras, essa notícia tem um sabor amargo, num momento em que a escola pública está sofrendo o seu último desmonte. Fechamento de escolas em Estados e municípios, anúncios de terceirização da educação em escolas estaduais, bloqueio federal de investimentos na Saúde e Educação por 20 anos, mexida reducionista e autoritária no currículo, extirpando-se ou diminuindo-se significativamente as matérias que ensinam a pensar e a entender o mundo, como História, Geografia, Filosofia e Sociologia… – são alguns dos retrocessos lamentáveis do momento em que vivemos no Brasil. Retrocessos acompanhados de outros, referentes aos direitos da classe trabalhadora. Ou seja, é o avanço para o achatamento cultural da população e da sua escravização no trabalho. Tudo combinando: menos escola, menos matérias que ensinam a pensar, menos ou quase nenhum direito no trabalho. Os poderes econômicos nacionais e internacionais querem todos escravos, ignorantes e submissos.

Mas a elite… a elite tem colégios como esses do Rio, como tantos em SP, alguns onde se aprende até mandarim (talvez já se pensando na aliança com o próximo Império, quando o Império americano ruir, afinal as elites sempre fazem alianças vantajosas para si com os que dominam o mundo e traem a população de seu pais – lembremos por exemplo de Herodes, aliado dos romanos dominadores, para recuarmos na história antiga). Mas esses, cujos filhos estudam até mandarim, pagam o preço de uma faculdade para crianças em pré-escola.

Elite muitíssimo instruída, plugada internacionalmente e o povão com escola sucateada, com ensino medíocre (de preferência numa Escola sem Partido, que, ao invés do que se pensa, não é a escola neutra – que aliás não existe – mas a escola em que não se pode pensar e discutir e entender as estruturas históricas e sociais que nos condicionam).

A classe média fica espremida entre os dois extremos, na maioria das vezes, sem se incomodar com o sucateamento da escola pública, porque ela dá a vida para pagar uma escola razoável para os filhos.

O método de ensino na Finlândia é promovido pelo Estado, para todos os cidadãos. Aí que está a graça da escola. É um projeto pedagógico pensado a partir da realidade local e uma oportunidade igualitária de desenvolvimento humano da população e não uma moda importada para servir de marqueting para uma escola para pouquíssimos privilegiados.

A diminuição das funções do Estado é algo que está se dando no mundo inteiro, pelo sistema hegemônico do neoliberalismo, que prega o Estado mínimo, o que menos gasta – ou não gasta nada – com benefícios sociais. É o modelo norte-americano, é o cada um por si. Se você consegue emprego (sem férias e nenhuma garantia), você paga a escola do seu filho, o convênio médico, a casa própria e tudo o mais. Se você não consegue… azar seu! Você não se esforçou o bastante. Se perde o emprego, azar, e se não consegue mais pagar o convênio, morra; se não consegue mais pagar a casa, vá para a rua (como tantos vivem em treilers nos EUA).

Se você já veio de uma situação de desvantagem – cresceu numa favela, ou é de uma etnia que foi historicamente marginalizada, como os afrodescendentes no Brasil e nos Estados Unidos, é deficiente físico ou ficou órfão de pai e mãe, você tem que esforçar mais. Se não conseguir, azar seu. Afinal, todo um continente – a África, que foi roubada, violentada, escravizada, durante séculos, está abaixo da linha da pobreza… azar dos africanos. É a lei do mais forte. É a chamada meritocracia – que na verdade é o mérito dos que já têm privilégios, mais dinheiro e mais poder.

Assim é o sistema capitalista no seu auge neoliberal. É a expulsão cada vez maior do Estado de todo benefício social, que vinha no último século tentado corrigir minimamente o desbalanceamento econômico nos países e proteger os mais fracos, os mais em desvantagem, os mais historicamente desmerecidos e conter os abusos das corporações.

O Estado está de joelhos diante do capital. As chamadas democracias são comandadas por políticos corruptos – não só no Brasil e não só de um partido!! – porque vendidos aos interesses das grandes corporações. O Estado sempre esteve comprometido com os ricos e os poderosos. Mas, durante um século, com o chamado Estado do bem-estar social, houve uma honesta tentativa de consertar um tanto as injustiças do sistema. Em alguns países essa tentativa foi bem sucedida e por isso ainda restam Estados, como a Finlândia ou a Alemanha que, embora tenham diminuído seus benefícios, ainda conservam muito do que foi construído, porque está solidamente assentado. No Brasil, havíamos conquistado muito – o SUS, por exemplo, por mais críticas que tenhamos, é um sistema que salva muitas vidas e atende à população, os EUA não tem SUS. A escola pública, por pior que fosse, ainda é uma possível porta de acesso a uma faculdade. A CLT, uma proteção aos trabalhadores dos abusos dos empregadores.

Por pior que tenham sido as tão criticadas últimas gestões, programas como bolsa-família (que aliás era condicionada às crianças irem à escola, o que colocou milhões de crianças dentro do processo de escolarização), a cota por pobreza ou etnia, os financiamentos para o estudo superior, o incentivo à casa própria… foram ajustes sociais que possibilitaram maior equalização de oportunidades.

Agora, está tudo ruindo. Estamos caminhando para um período de privação de direitos básicos e de aprofundamento do fosso social no país.

E o que fazer?

Tenho minhas dúvidas, como anarquista que sou, que possamos recuperar esse Estado de bem-estar social. Forças econômicas e militares poderosíssimas estão por trás desse desmonte mundial de Estados de Direito, dessa escravidão generalizada – basta ver as crianças trabalhando pelas indústrias de chocolate na África, basta saber que quase todos os produtos que usamos vêm de uma China, onde o trabalhador não tem praticamente nenhum direito…

Mas penso que há o que se fazer!

Temos que começar a nos organizarmos em sistemas de troca, de ajuda mútua, de cooperativas – e isso serve para escolas, sistemas de produção, bancos de crédito… Ou seja, temos que dispensar o Estado e resistir ao capital. Utópico? Nem tanto, porque esse sistema não se sustenta. Afinal, se grande parte da população mundial for sendo progressivamente escravizada e empobrecida, quem vai consumir? O sistema é autofágico. Então, temos que nos preparar para quando ele ruir. Estarmos solidariamente organizados para isso.

Castells debate pandemia, Público e Educação

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Para o pensador catalão, agora ministro espanhol das Universidades, o eurocentrismo e o projeto liberal entram em crise profunda. Mas a quarentena ajuda a refletir sobre o Comum – e o aspecto libertador da internet pode ressurgir

Entrevista a Álex Rodríguez e Carina Farreras, em La Vanguardia | Tradução: Antonio Martins

Sua vida é um laboratório. Analisa e conclui. Sociólogo honoris causa por inúmeras universidades, prêmio Holberg, considerado por alguns o Nobel das Ciências Sociais, Manuel Castells, aos 78 anos, é agora ministro das Universidades da Espanha. Nesta entrevista, defende uma governação global e lamenta que nos deparemos a covid-19 divididos.

Um vírus colocou o mundo em xeque. Por que acredita que não estávamos preparados para enfrentá-lo? Que lição é possível tirar, para o futuro?

Subjetivamente, por arrogância, por acreditar que nossa tecnologia pode tudo. Objetivamente, pelos cortes substanciais nos orçamentos dos sistemas de Saúde, durante as políticas suicidas de “austeridade” após a crise de 2008. A principal lição é que a Saúde é nossa infraestrutura de vida e requer cooperação global.

A pandemia pilhou o Ocidente e o mundo sem liderança clara, já que os EUA de Trump recusaram-se a exercê-la.

Trump é um nacionalista norte-americano. Pretende liderar o mundo mas para proveito exclusivo dos Estados Unidos, de modo que perde a condição de ser um líder mundial.

A China, onde nasceu o novo coronavírus e onde não há praticamente um momento da vida cotidiana que escape à vigilância digital, parece ter sob controle a situação. Será a nova superpotência?

A China não foi capaz de superar, mas sim de controlar a pandemia. Ainda assim, pode crescer 2% este ano. E tem capacidade para produzir, exportar e até doar material de Saúde ao resto do mundo. É preciso reconhecer isso. Já é uma superpotência, mas não a única – porque não pode comparar-se militarmente aos Estados Unidos.

Os cidadãos da Coreia do Sul e de Taiwan aceitaram ser monitorados, através do uso da tecnologia e da inteligência artificial, para combater a pandemia. Perderam liberdades e privacidade? O mesmo ocorrerá no Ocidente? Estas concessões perdurarão? É preciso perder liberdades para estar seguros?

Historicamente, em todas as situações de emergência, os Estados restringem os direitos das pessoas, por necessidade e, em alguns casos, aproveitando-se da situação. E os cidadãos aceitam por convicção ou por medo. Mas até um certo limite, que é perigoso ultrapassar.
Ninguém no Ocidente pareceu intuir o perigo que representava a covid-19, até que ele entrou na sala de suas casas. Por que?

Porque a paralisação da economia e da vida social é algo que muda tudo e não se pensava necessário, até que uma boa parte da população foi infectada. Dizia-se: “não somos a China”. Mas não se avisou ao vírus.

A Itália enfrenta a situação de uma maneira, a Alemanha e a França, de outra. Também a Espanha, o Reino Unido, os Estados Unidos, o Brasil. O vírus é o mesmo, mas as políticas contra ele diferem muito em cada país. Seria necessária uma governação global?

Sim – nisso como em tudo. Um sistema global interdependente requer governação global – não necessariamente um governo global. Mas os Estados-Nação resistem a perder seu poder e cada um utiliza mecanismos de governança supostamente globais para defender seus interesses nacionais.

Na Europa, reabre-se a brecha norte-sul. Que lhe parece a maneira de agir da União Europeia diante da crise? Será que ela não alimenta o desencanto entre os cidadãos, que veem como se dilui o princípio de solidariedade, um dos que supostamente fundou o projeto europeus?

Estamos outra vez no mesmo debate colocado na crise financeira de 2008, o que demonstra a ausência de identidade europeia, exceto em alguns setores sociais, mais escolarizados e jovens.

Algo que estudo e sobre o que publico há muito tempo. Desta vez, ao menos, o Banco Central Europeu e a Comissão europeia adotaram uma postura mais solidária – mas o Reino Unido está fora e a Alemanha e seus aliados mais próximos querem intervir nas políticas econômicas de todos os países que resgatam. Obviamente, a Europa do sul e a França não aceitam e, portanto, enfrentamos desunidos a ameaça mais grave com que a humanidade se depara desde a II Guerra Mundial.

Você acredita que seria possível fazer algo para que situações com a que estamos atravessando não voltassem a ocorrer, ou para que ao menos estivéssemos melhor preparados?

Levar a sério os aplausos das sacadas, ao pessoal da Saúde, e traduzi-los em políticas de financiamento, de formação, de equipamento, de investigação científica e de prevenção. É nosso salva-vidas no mundo em que entramos. Qualquer que seja o custo, é mais barato que a morte e o colapso econômico.

A covid-19 emergiu como pandemia num momento de auge da ultradireita e das democracias liberais. Você que pensa que isso vai se aprofundar, ou que um dos grandes perdedores desta crise será a democracia liberal?

Publiquei um livro recente sobre a crise da democracia liberal, que foi perdendo legitimidade entre a cidadania por razões profundas, comuns a todas as sociedades. A extensão da pandemia em intensidade e tempo pode colocar ainda mais em xeque um sistema político que havia trazido relativa civilidade a nossa vida institucional.

Não houve revoltas na crise de 2008, porque os aposentados e a família ajudaram a suportar situações desesperadas. Agora, recomenda-se que não se coloque em respiradores os pacientes com mais de 80 anos. Que reflexões isto suscita?

Miséria da espécie humana que, se for de fato assim, talvez não mereça sobreviver. Em alguns setores, há pouca solidariedade com as gerações futuras, como mostra a indiferença diante da mudança climática. E agora há indícios, minoritários, de que começa a faltar solidariedade com os velhos. Por sorte, a maioria das pessoas mostra generosidade e empatia. Ainda apoiam as famílias, mas protegendo sobretudo aos seus.

Como você acredita que o mundo mudará?

Já mudou, e nunca voltará a ser como aquele em que vivemos. O que não sabemos é como será. Talvez o melhor seria que o decidíssemos e o construíssemos, em vez de nos resignarmos ao destino

As universidades a distância cresceram nos últimos anos e você foi professor de uma delas, na Catalunha. Acredita que a covid-19 ampliará os estudos online, e que eles substituirão progressivamente os estudos presenciais?

A pandemia mostrou a extraordinária utilidade da internet em todos os âmbitos. E particularmente nas universidades, que completarão seus cursos, principalmente, por meio do ensino online de qualidade. Houve um processo acelerado de formação prática de estudantes e professorado neste sentido, em poucas semanas, e sobre isso podermos construir coisas novas no futuro. Não apenas para emergências, mas para um sistema em que ambas modalidades se complementem em todas as universidades. O ensino presencial nunca desaparecerá, porque sua largura de banda é muito maior que a da rede de fibra ótica. Esta articulação deve ser um projeto de futuro imediato, quando acabe a guerra.

Muitas universidades tiveram de se adaptar da noite para o dia para dar aulas não presenciais, com dificuldades tecnológicas e de preparação dos professores. É possível garantir um mínimo de qualidade às titulações neste contexto?

Na Espanha, isso será controlado e garantido, de modo coordenado, pelas agências de qualidade de cada região autônoma, e pela Aneca, a agência do Estado espanhol. Não tenho a menor inquietude sobre este assunto, que sigo de perto.

Você acredita que, nesta situação, todos os universitários tenham igualdade de oportunidades? Não há alunos que enfrentam carências tecnológicas?

Há desigualdade tecnológica como há desigualdade social em todos os âmbitos. E portanto, as universidades terão de levar em conta estas situações particulares e ajudar os estudantes desfavorecidos. Porém a difusão da internet é muito ampla, assim como o uso de computadores. E, algo em que não se pensa, a imensa maioria dos estudantes tem um computador no bolso, que chamamos de telefone celular. A questão é desenvolver protocolos de ensino que possam ser adaptados ao uso destes aparelhos como terminais. O que chamamos m-learning. Neste processo estão várias universidades – por exemplo, segundo minha informação, a de Barcelona.

Que rastros a covid-19 deixará nas universidades?

A capacidade de liberar o potencial de ensino virtual, que estava injustamente menosprezada, e a exigência de uma digitalização mais avançada do conjunto do sistema universitário. Uma grande fronteira de inovação pedagógica e de investimento em ensino.

Nível de coordenação do Estado brasileiro contra o coronavírus é zero, diz Sérgio Lazzarini

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Professor do Insper diz que, com estratégia, poderia haver incentivo para a fabricação de máscaras e aumento da infraestrutura de leitos

ÉRICA FRAGA – FSP – 12/04/2020 – SÃO PAULO

A redução dos danos que a Covid-19 causará à saúde pública e à economia demanda uma estratégia de expansão rápida e muito bem planejada do Estado, incluindo critérios para a reversão futura das medidas adotadas.
O nível de coordenação do governo brasileiro nessa direção, até agora, é zero, segundo o pesquisador Sérgio Lazzarini, do Insper, que estuda esse tema.

Em trabalhos como o livro “Capitalismo de Laços”, Lazzarini tem demonstrado que conexões entre os setores público e privado, forjadas algumas vezes em momentos de crise como o atual, podem gerar custos altos e desnecessários para a sociedade.

Em co-autoria com o economista mexicano Aldo Musacchio, ele acaba de escrever um artigo que alerta para o risco de repetição desse cenário caso governos não reajam adequadamente à pandemia.

Intitulado “Leviathan as a Partial Cure? Opportunities and Pitfalls of Using the State-Owned Apparatus to Respond to the Covid-19 Crisis”, o texto será publicado, em breve, pela Revista de Administração Pública, da FGV.

O setor privado conseguiria oferecer, sozinho, as respostas para a crise atual?
Não. Precisamos de uma infraestrutura de crise, como lugares em hospitais e produção de máscaras, respiradores. A pergunta é: o mercado dá conta disso? Os mais liberais dirão que precisamos criar regulamentações nesta direção. Isso, realmente, é necessário. Melhor deixar o setor produtivo produzir em caráter de urgência emergencial, sem restrições sobre poder ou não produzir máscara, por exemplo. Essa é uma discussão mundial. Nos Estados Unidos, foram afrouxadas uma série de regras.

Mas isso é suficiente? Não, porque é necessário um esforço de coordenação. Estamos vendo empresários se comprometendo a produzir determinadas coisas, expandir os hospitais privados. Mas, no fim do dia, os governos estão precisando ir atrás de hotéis para conseguir leitos. As ações não precisam ser, exclusivamente, estatais. Podem ocorrer parcerias público-privadas.

O que deverá sobreviver dessa nova atuação estatal?
A gente vai se perguntar se temos uma estrutura mínima de proteção para esses eventos mais relevantes e difíceis de prever. A incerteza na economia aumentou a tal ponto que evidenciou o risco já existente desses eventos. Qual a probabilidade de haver outra pandemia dessas? Vai ficar claro que não sabemos.

A gente vinha em uma linha de “surgiu o Uber, um monte de profissionais autônomos, deixa eles, deixa o mercado funcionar”. Agora estamos pensando: “calma, que rede de proteção esse pessoal tem contra esses eventos extremos?”

E podemos falar de eventos extremos de forma bem ampla, incluindo crises políticas e de outras naturezas. Isso nos levará a pensar em estrutura de segurança que incluirá o Estado porque, de novo, o setor privado não tem interesse nisso. Mas precisamos também considerar que isso terá custos, que muitos dos investimentos serão ineficientes.
Como reduzir esses custos?

O que aprendemos com eventos anteriores, como a crise financeira global em 2008, é que há momentos em que a expansão do Estado é inevitável, mas precisamos definir estratégias de saída e de acompanhamento contínuos.
Por que vocês se opõem ao resgate de setores afetados inteiros?

Se você falar que precisa resgatar o setor aéreo, virá o de hotéis, e teremos de considerar: por que não hotéis? Aí virá o de restaurantes, o de shows. Vamos fazer uma discussão interminável. O BNDES anunciou discussões com o setor aéreo e está uma briga sobre qual será o preço. Eu não faria esse tipo de discussão setorial, eu faria uma discussão horizontal. Firmas com necessidades serão avaliadas de acordo com determinados critérios preestabelecidos.

Quem fez algo nessa linha foi o KfW [banco de desenvolvimento alemão]. Criou uma linha para empresas com dificuldades financeiras. Elas podem pegar empréstimo, expandir atividade, rolar sua dívida. Empresas grandes, de forma geral, não deveriam ser prioritárias, apenas as de médio porte para baixo.

Vocês ressaltam que é importante considerar também que ocorrerão mudanças de hábitos. Por quê?
O setor aéreo passará por uma queda de demanda, as pessoas vão mudar seus estilos de vida, de forma talvez permanente. Na China, os restaurantes reabriram, mas as pessoas estão reticentes, o formato de vendas está migrando para entregas, com detalhamento sobre a forma de preparo e de higienização da comida, sobre as credenciais do produtor, e assim por diante. Novos formatos de negócios serão testados.

A gente pode querer tentar salvar o setor aéreo, mas ele será diferente. Então, certas discussões serão inócuas e há um risco de que terminem favorecendo os setores mais organizados e, não necessariamente, os negócios mais eficientes.
Esse é outro motivo para termos critérios mais horizontais.

Por que é importante que o governo aja rápido?
Os modelos estão nos indicando que para controlar essa pandemia precisamos agir o quanto antes. A melhor estratégia parece ser o isolamento social rápido e, ao mesmo tempo, expandir a estrutura de suporte, criar uma estrutura de proteção para que as pessoas tenham renda neste período.

Se você demorar muito, vai estender a crise e as dificuldades financeiras das empresas, aumentando a chance de precisar resgatá-las, dar mais crédito, dar mais renda, no futuro.

Se você não usar o Estado agora inteligentemente, terá de usá-lo mais no futuro, com um custo elevadíssimo lá para a frente.

Mas também precisamos estabelecer as condições de saída. O que são elas? Se o governo precisar assumir o capital de uma empresa, tem de deixar claro quanto tempo isso vai durar, assim como monitorar indicadores preestabelecidos de seu progresso.

As ações de transferência de renda têm de ser condicionais à evolução dos programas de isolamento e as próprias curvas de contaminação. Depois, terão de ser suspensas. Senão, teremos pedidos intermináveis. Isso precisa estar claro desde o início.

Depois da crise de 2008, expandimos o Estado. Fizemos com que o BNDES ampliasse suas operações, mas ele continuou se expandindo porque foi criada uma mentalidade de que o Estado resolve tudo, sempre. Essas condições de saída, com cláusulas de término, são essenciais para a gente evitar que isso se repita.

Essa tendência brasileira de apego a um Estado grande pode dificultar a reversão futura da expansão atual?
Sim. Nosso arranjo institucional ainda é muito permeável a interesses, mesmo sem considerar corrupção. Há setores e grupos mais organizados que exercem maior poder de influência sobre governos, que vão dizer que a vida está ruim, difícil. Não precisam ser grandes empresas. Podem ser, por exemplo, os caminhoneiros.

Imagine um cenário em que acabou a crise e grupos venham dizer que sofreram muito e precisam de compensações. Por isso, o estabelecimento de métricas, indicadores, prazos, condições é, absolutamente, fundamental. É uma forma de, agora, você se comprometer a cumprir os objetivos necessários para amenizar os efeitos da crise, mas evitando que a expansão do Estado seja indefinida. Mas, para que esse processo seja bem sucedido, é necessária uma grande coordenação de política pública.

Que nível de coordenação o Estado brasileiro tem demonstrado?
Zero. A gente tem conflitos entre governos, na esfera federal e estadual, sobre a estratégia de achatar a curva. Não estamos em um uníssono na direção de achatar a curva agora, ter uma estrutura de proteção de renda e recuperar a economia mais para a frente.

Estamos batendo cabeça, o que é muito ruim. Há algumas iniciativas inteligentes. O BNDES e o Banco Central anunciaram uma linha de crédito para a folha de pagamento das empresas, garantida pelo Tesouro [Nacional]. É uma iniciativa engenhosa, de liquidez e garantia de emprego. Mas esse tipo de iniciativa ainda é isolado.

A partir do momento em que temos claro que a estratégia nacional é o isolamento social e medidas preventivas, damos um norte para a produção. Isso cria incentivo para a fabricação de máscaras, produtos de higiene e o aumento da infraestrutura de leitos. Aí poderíamos criar, de forma mais acelerada, mais linhas de crédito especificas.

Em que estágio de reação à crise o Brasil está?
Estamos em um processo grave, uma briga do governo federal com os governos estaduais e municipais. Não se pode nem falar em coordenação. Vamos coordenar o que? Para qual direção? Não sabemos nem se o ministro da Saúde vai continuar no cargo até amanhã.

Caminhamos, então, para arcar com custos maiores dessa crise no futuro?
Acho que não estamos no cenário ideal de tomada de iniciativas mais rápidas. Na verdade, estamos nos distanciando disso. Se a gente continuar batendo cabeça, descoordenados, vamos reduzir bastante a chance de ser um processo curto.

Saldo pode ser a volta da credibilidade da ciência’, diz Cortella sobre pandemia.

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Filósofo vê chance de retomada da crença na mídia durante pandemia e sugere transparência e didatismo aos políticos
Entrevista com Mario Sergio Cortella, filósofo e escritor

Adriana Ferraz, O Estado de S. Paulo. 

05 de abril de 2020

Autor de mais de 40 livros, o filósofo Mário Sérgio Cortella, de 66 anos, acredita que o enfrentamento da pandemia do coronavírus pode deixar alguns legados para a sociedade, além dos problemas sanitários e econômicos. Para ele, a ciência e a mídia devem recuperar sua credibilidade, e o distanciamento social pode ser uma oportunidade para fazer coisas que o “cotidiano atribulado” não permite. 

Ao responder sobre o que acha da atuação do presidente Jair Bolsonaro na crise, Cortella lembra que é importante, neste momento, que as lideranças políticas sejam didáticas e transparentes ao se comunicar com a população. “Não estamos tendo ainda esse conjunto virtuoso por parte de quem deveria”, disse na entrevista, respondida por e-mail. O filósofo diz que tem seguido as orientações para ficar em casa e que, desde que começou seu distanciamento, só saiu de carro duas vezes.  

Leia os principais trechos da entrevista: 

O sr. acha que vivemos uma situação de guerra? Nessa situação, o coronavírus é o único inimigo? Ou também devemos combater a negação à ciência e a propagação de fake news?

O vírus já resulta em malefício suficiente sem que precisemos perder energia lidando com negações contínuas que tentam nos enganar ou que implicam má e falsa informação. Ainda assim, um saldo menos virulento deste momento será uma maior seletividade de fontes e uma retomada da confiabilidade e credibilidade de instituições, como a ciência e a mídia decentes.

As pessoas esperam uma liderança do presidente da República nesse momento? Acha que a atuação de Jair Bolsonaro, quando ataca medidas de restrição de circulação adotadas em todo o mundo, pode frustrá-las?

Toda liderança precisa, acima de tudo, ser didática, transparente e nítida nas trilhas que sugere e nos esforços que estimula. Não estamos tendo ainda esse conjunto virtuoso por parte de quem deveria.

A que o sr. atribui a lentidão na tomada de decisão de alguns presidentes, como Bolsonaro, Donald Trump e López Obrador, e como vê o desprezo pela ciência?

A ciência, de modo geral, não é infalível. É preciso submeter intenções, processos e resultados à análise crítica dos pares e, inclusive, admitir ser desmentido, advertido ou ultrapassado, sem que soe como ofensa ou desacato. Nem todas as pessoas têm permeabilidade intelectual para tais requisitos, e, por isso, costumam menosprezar e subestimar a validação que ultrapasse a opinião vulgar. 

Como o senhor vê esse suposto dilema entre salvar vidas e salvar a economia?
Relegar qualquer um dos polos à penumbra será funesto. Não há pessoas vivas sem economia operante e não há economia sem pessoas salvas. O crucial agora é discernir quais procedimentos são prioritários. 

Nos últimos dias, vimos panelaços contra o presidente e também carreatas a favor do fim do isolamento social. A crise desperta essa ideia de separação – e não só a da solidariedade? 

A crise não inaugura personalidades oportunistas e dissimuladas. A crise apenas as revela e alicerça naquilo que já eram capazes de ser e fazer, independentemente de a crise existir.  

Que influência as redes sociais têm nessa polarização?

Toda polarização inútil neste instante dificulta e delonga alternativas de solução e torna-se aliada poderosa do vírus. Assim, urge avaliar se devemos mesmo empregar nosso escasso tempo em fomentar um viés deletério nas redes sociais, que podem e são frequentemente colaborativas.  

Como essa crise pode afetar as relações entre pessoas? 

Estivemos e ainda estamos colocando à prova nossa sensibilidade de convivência e tendo de manejar com mais habilidade a idiossincrasia e os melindres individuais. Em outras palavras, o necessário e compulsório isolamento social nos remeteu para um nicho familiar que não permite tanto o famoso “vou sair para esfriar a cabeça” ou o, agora arriscado, “não estou nem aí com você”. Entendo que o núcleo familiar terá um número maior de sinergias e fissuras. Se a segunda vencer, o vírus carregará mais esse dano.  

O que de positivo pode ser tirado do distanciamento social?

Alguma reclusão, sem que implique em solidão, é bastante benéfica, pois possibilita um uso mais liberado e seletivo do tempo disponível. Neste instante, o distanciamento servirá também para múltiplas ações que o cotidiano atribulado não permite com intensidade, desde convivências até reorganizações dos espaços e coisas. Além, claro, da dedicação ao ócio recreativo. 

O senhor tem 66 anos, faz parte do grupo de risco para o vírus, e dá aula, palestras, escreve livros. Que cuidados tem tomado?

Desde o dia 16 de março estou em reclusão organizada, tendo saído de carro por algumas horas em dias distantes, sem contato inseguro com outras pessoas, para duas tarefas imprescindíveis e salvaguardadas. Afinal, embora me saiba mortal, quero adiar essa ocasião no limite máximo da minha saudabilidade e consciência livre.  

O que a pandemia pode nos ensinar sob a ótica da filosofia?

Que a nossa eventual e iludida soberba como espécie encontra mais guarida no campo do nosso desejo do que naquilo que a natureza é capaz de erigir. 

‘Temos governos que não acreditam na ciência’, diz Joseph Stiglitz.

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Para economista, crise causada pelo coronavírus explicita a postura desastrosa de líderes como Trump e Bolsonaro

Entrevista com
Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia

Breno Pires, Estadão, 05/04/2020.

O economista Joseph Stiglitz avalia que líderes que emergiram da negação da política mostram-se, nesta pandemia do coronavírus, oportunistas e focados em seus projetos eleitorais, com posturas hesitantes que trarão consequências desastrosas. Prêmio Nobel de Economia em 2001, ele critica a atuação do americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro para defender um novo contrato entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. Em entrevista ao Estado, o professor da Universidade Columbia afirma que a atual crise destaca a importância de um equilíbrio da economia e da ciência, que precisa pautar os governos. “É notável a rapidez com que conseguimos analisar o vírus e descobrir de onde ele veio, desenvolvendo o teste. E toda a ciência é baseada em apoio governamental”, observa. “No Brasil e nos Estados Unidos, temos governos que não acreditam em ciência e estamos vendo as consequências.” As avaliações de Stiglitz também serão detalhadas num livro que o economista lançará, em setembro, no Brasil: People, Power and Profit (Pessoas, Poder e Lucro, numa tradução literal – ainda não tem título em português). 

Existe um dilema entre salvar a economia e salvar vidas?
O fato é que, se você não salvar as pessoas, a economia será devastada. Pessoas não irão ao restaurante, ficarão nervosas quanto a ir ao trabalho, não irão voar por aí, haverá medo no ar. Basicamente, a economia se encaminhará para a paralisia se não pararmos a pandemia. Por isso, é uma boa decisão colocar a prioridade nas pessoas e controlar a pandemia. Fizemos isso nos EUA depois de pressão dos democratas e para criar as condições para ressuscitar a economia quando a pandemia estiver sob controle. Mas ainda há buracos. 

O sr. costuma afirmar que a economia capturou a política. É possível que líderes que emergiram da negação da política, como Trump e Bolsonaro, de alguma forma tenham terminado sendo representantes ideais das grandes corporações?

Em primeiro lugar, pessoas como Trump são interessadas na sua própria reeleição, no seu próprio poder, e isso torna difícil descobrir o que de fato apoiam. Não apoiam nada. Não há um princípio conservador. Não há princípios. Trump ganhou apoio da grande indústria, então, não surpreende que ela esteja no topo da sua agenda. A primeira resposta dele foi o corte de impostos para corporações, apesar de não ter nada a ver com a crise. Devemos enxergar o que eles têm feito não como algo baseado em um conjunto de princípios ideológicos coerentes, mas como um oportunista tentando lidar com a situação. No começo ele pensou que poderia apenas negar, dizer que está tudo bem. A razão de o avanço da doença estar tão grave é porque não fizemos nada por muito tempo. 

Qual é a consequência desse comportamento de Trump em relação às políticas para conter o coronavírus?

As consequências, francamente, são desastrosas. E seriam piores se não fosse o fato de termos uma burocracia tão dedicada. Instituições como o nosso Centro para Controle de Doenças, que são muito profissionais, e médicos, que de alguma maneira nos salvaram. Também fomos salvos pela intervenção de governadores, mas eles não podem resolver o problema da oferta, da falta de máscaras, de equipamento de proteção e de ventiladores. E a falta de testes – de responsabilidade do governo federal, que não faz seu papel. Faltou fazermos testes por semanas a fio e o resultado, francamente, é que existe sangue nas mãos de Trump. As pessoas estão morrendo porá sua causa de inação.

O sr. inclui Jair Bolsonaro na mesma posição que Trump?

Não tenho seguido os detalhes do que está acontecendo no Brasil, mas penso que o País poderia estar em situação pior se não tivesse uma burocracia dedicada, médicos dedicados. 

Nesse ponto, o sr. vê semelhança entre o Brasil e EUA?

Nós temos sido salvos pelas nossas instituições. 
No Brasil, o presidente se colocou contra orientações do próprio Ministério da Saúde, foi a uma manifestação de rua e criticou fechamento de escolas e templos.
Essas ações são custosas em muitos aspectos. De uma maneira mais ampla, é muito difícil para indivíduos manter distância, pessoas querem interagir, então é essencial dizer às pessoas que é perigoso se aproximar de outras pessoas para impedir a propagação da doença. É para isso que precisamos de liderança. E nós não temos essa liderança (nos EUA). E vocês (no Brasil) têm uma liderança ainda pior. 

Qual a importância do financiamento estatal de despesas nesse momento?

Crucial. A única forma de evitar o colapso do sistema é o dinheiro governamental. Para conter a pandemia, a saúde é o mais importante e isso tem de ser priorizado em termos de orçamento. A grande diferença em relação aos mercados emergentes é que nos EUA não nos perguntamos se podemos bancar isso.

Ampliamos o déficit de US$ 1 trilhão, 5% do produto interno bruto, em US$ 2 trilhões, 15%. Podemos explodir o orçamento sem nos importarmos com isso. A maioria dos países em desenvolvimento não pode. 

E quanto isso atrapalha a tomada de medidas emergenciais pelo Brasil?

Bastante. E certamente exige uma “repriorização”, pelo menos temporária. Talvez exija um corte temporário em parte das pensões, com uma renda mais alta. Um aumento temporário nos impostos de pessoas com maior renda. Vai ser necessário estabelecer novas prioridades pelo menos neste ano e provavelmente para os próximos dois anos. O Brasil e outros países vão sofrer restrições orçamentárias, então precisam levantar dinheiro. A comunidade internacional deveria fornecer mais apoio a países em desenvolvimento e aos mercados emergentes. 

O sr. vai lançar seu próximo livro em setembro no Brasil. O que o País, que tem vivido instabilidade na política e na economia ao longo da década, pode aprender com seu livro?

Primeiro, deixe-me tentar fazer uma conexão entre o que vai acontecer e o livro. Isso é relevante para o Brasil, é relevante para os EUA. O livro apresenta dois pontos muito relevantes: que precisamos de um novo contrato social, um novo equilíbrio entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. Nós nos voltamos para o governo quando temos uma crise. O mercado não avaliou adequadamente os riscos, não lidou adequadamente com os riscos de uma pandemia, com o risco de mudanças climáticas, todos os riscos sociais. Isso destaca o papel central do governo em nosso bem-estar. E, quando temos escassez, como temos nos EUA, de máscaras, ventiladores e testes, é um fracasso do mercado. Precisamos da intervenção do governo e, quando ele não intervém, nós sofremos. A realidade é que confiamos demais no setor privado e, em países como os EUA, onde o governo não funcionou, estamos vendo as taxas de mortes. Em países como a Coreia do Sul, onde o governo fez seu trabalho, a pandemia foi controlada rapidamente. Isso mostra o papel crítico do governo. A segunda parte é o papel da ciência. É notável a rapidez com que conseguimos analisar o vírus e descobrir de onde ele veio, desenvolvendo o teste. E toda a ciência é baseada em apoio governamental. Esse é outro exemplo da importância do governo. E no Brasil e nos EUA, temos governos que não acreditam em ciência. E nós vemos as consequências. 

O sr. afirma que o conceito de capitalismo progressista que defende é mais importante que nunca para o bem-estar dos povos?

Sim. O mundo do século XXI é um em que o governo terá de assumir um papel maior do que no passado – a razão pela qual eu defendo um capitalismo progressista. Quero enfatizar que os mercados ainda serão importantes. Mas não podem ser os mercados irrestritos do neoliberalismo. A desigualdade cresceu. E é por isso que nossa política ficou tão feia. O Brasil tem os mesmos problemas. Vocês progrediram na redução da desigualdade, fornecendo educação, em governos de centro-esquerda e de centro-direita, com (Fernando Henrique) Cardoso e Lula. Mostraram que poderiam crescer com prosperidade compartilhada e diminuir a desigualdade. Mas Bolsonaro está indo na direção oposta e isso significa que a proteção do meio ambiente será pior, e você estará exposto a mais doenças, e a educação será prejudicada. O futuro do Brasil está sendo colocado em risco. Eu escrevi minha mensagem em parte em resposta ao dano que Trump está causando aos EUA. Precisamos dessa visão como uma alternativa à destruição de Trump à nossa democracia, economia e sociedade. Mas essas mensagens são ainda mais relevantes para o caso do Brasil.

Keynes volta a galope, Hayek no limbo da história por André Motta Araujo

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Jornal GGN, 03/04/2020

A História é fruto das grandes crises, dos cataclismas religiosos, bélicos, sanitários, da luta pelo poder, das ondas migratórias, das fomes provocadas por fenômenos naturais, fatores incontroláveis, gigantescos, muito maiores que ciclos econômicos naturais, processos menores apesar de aparentarem serem protagonistas da História.

O que é a China de hoje senão a expressão geopolítica produzida pela Revolução Comunista de 1949, que unificou um país até então dilacerado por senhores regionais, os “warlords” de Chiang Kai Shek roubando até o último grão de arroz dos camponeses? Os grandes cataclismas moldam a História e por causa, e gerado por eles, nascem gigantes com um Lord Keynes, que salvou a economia mundial nos anos 30. Parece que as crises criam seus grandes homens, produzidos antes, mas revelados pela crise.

KEYNES, UM HUMANISTA

Ao contrário do espirito mesquinho e pequeno de Hayek, apostando uma ideologia econômica em um vício do ser humano, a ganância, Keynes não tinha ideologia, pensava e agia de acordo com as circunstâncias, podia ser conservador e no momento seguinte ser heterodoxo inovador, depois voltando a ser ortodoxo mas sempre com inteligência, o Keynes do New Deal era um criativo de ideias novas e, em 1944, em Bretton Woods, inventou a catedral da ortodoxia econômica, o Fundo Monetário Internacional.

Como o costureiro capaz de desenhar vestidos longos para as grandes damas e na semana seguinte produzir uma coleção “pret a porter” ou o pianista clássico que também sabe tocar bossa nova, Keynes fazia parte das MENTES ECLÉTICAS, as únicas que representam a inteligência natural do ser humano. Os cérebros com ideias fixas, como os neoliberais de Hayek, não são inteligentes, são meros crentes de uma ideologia congelada no tempo e que nunca foi valiosa e muito menos é universal, uma receitinha que serve em algumas épocas e em alguns territórios, descartável quando aparecem os cataclismas como o vírus e as guerras dilacerantes.

Como o mundo pode aceitar pela boca de Mrs.Thatcher um sistema econômico baseado em DEFEITO do ser humano, um modelo baseado na ganância?

O homem deve visar seu aperfeiçoamento moral e não seu pecado como se esse fosse qualidade. O neoliberalismo é um mecanismo vicioso, mau na essência, porque não é lastreado no humanismo e na solidariedade, é calçado na ambição egoísta, apresentada como virtude, uma torção intelectual inaceitável, o que é ruim não pode virar bom.

A fragilidade moral do neoliberalismo é seu buraco no caso, no limite o excesso de ganância afunda o barco, todos não podem ser gananciosos ao mesmo tempo. O neoliberalismo é um aleijão social e moral que no fim de cada ciclo gera uma crise que, além de financeira, é também moral, provocada pelos excessos do egoísmo de mercado.

PENSAMENTO ECONÔMICO IDEOLÓGICO É UM CONTRASSENSO HISTÓRICO

Friedrich von Hayek, cientista político austríaco criou a ideologia do “mercado” como antídoto contra as tiranias que geraram a Segunda Grande Guerra. Em 1944 fundou a Sociedade do Monte Pelerin e publicou o livro-base O CAMINHO DA SERVIDÃO, bíblia dos avôs dos atuais neoliberais, movimento dos anos 70 lastreado em Hayek e apresentado como ideário contra o Estado Social Democrata Europeu. O grande defeito desse conjunto de ideias que formam a IDEOLOGIA DO LIVRE MERCADO é que não prevê crises.

Com crises tanto financeiras, como as de 2008, como epidêmicas, como a atual ou com guerras de todos os calibres, a ideologia neoliberal não funciona. E não funciona porque o ferramental da grande política, onde se insere uma política econômica, NÃO TEM IDEOLOGIA, depende das circunstâncias. Essa foi a grande visão de Keynes.

É infantil alguém pretender operar a economia a partir de uma ideologia universal, que serve para todas as geografias físicas e humanas, para todos os contextos políticos e sociais, a gestão da economia depende do território, de tipologia humana e social, do nível de educação, da índole do povo, cada contexto um tipo de política.

Keynes não foi o único grande pensador eclético em economia. Hjalmar Schacht, economista alemão era tão eclético quanto Keynes, mas queimou sua biografia ao servir ao nazismo como Ministro da Economia do Terceiro Reich. O mesmo cérebro era ultra ortodoxo ao liquidar com a hiperinflação alemã de 1923, um trabalho brilhante que serviu de base ao Plano Real brasileiro e foi ultra heterodoxo ao criar os mecanismos monetários para tirar a Alemanha da recessão em 1933, muito antes dos EUA, de um desemprego de 40% em 1933 chegou a pleno emprego em 1936, financiando sem dificuldades a recuperação da indústria alemã e o enorme rearmamento do Reich.

Processado em Nuremberg, Schacht foi absolvido e teve uma terceira e bem sucedida carreira de consultor econômico para países.  Que contraste desses grandes cérebros com um medíocre Hayek, cozinheiro de um prato só, propondo um sistema que inevitavelmente produz crises, como as de 2008, a serem resolvidas pelo mesmo Estado que ele propõe reduzir.

A CRISE DO NEOLIBERALISMO É ANTERIOR AO CORONAVÍRUS

A “economia de mercado” já estava em crise mundial antes do Coronavírus. A absurda concentração de renda e riqueza provocada pelo encolhimento das políticas públicas, a liberdade licenciosa para os “mercados” operarem contra o interesse geral da sociedade, caso das FUSÕES de empresas onde só ganham os acionistas e perdem todos os demais interessados, dos consumidores aos empregados, enquanto executivos nadam em bônus indecentes, banqueiros faturam comissões sobre riqueza papel fictícia e advogados jogam na mesa faturas de milhões de dólares, a sociedade é quem paga a conta como perdedora nesse processo.

O Coronavírus apenas apressará a liquidação desse modelo vicioso reciclado por Hayek e repaginado por Mrs.Thatcher e o Presidente Reagan, país do modelo renascido nos anos 7O. Nada disso sobreviverá após o Coronavírus porque agora volta com toda a força o Estado para refazer os estragos antigos e novos, da crise do modelo e da crise da saúde.

Pascácios neoliberais acham que tudo volta ao normal depois da crise sanitária. Ledo engano. A operação keynesiana nos países ricos e suas vertentes nos emergentes vai mudar a geografia do dinheiro e contas serão apresentadas.

O derrame de liquidez a partir dos EUA vai provocar mudanças nos canais mundiais do dinheiro, para o bem ou para o mal. Modelos serão revistos, nasce um novo mundo.

Mais do que nunca, como no pós-guerra de 1945, os Estados serão demandados para resolver monumentais crises sociais e econômicas, adeus neoliberais, fiquem na saudade.

Chegou a hora de o andar de cima colaborar, por Paulo Feldman.

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Imposto emergencial de 4% para o 1% mais rico da população seria decisivo

Folha de São Paulo, 04/04/2020

Claro que o problema mais sério decorrente da pandemia são os doentes e as vidas que estão indo embora —e que, infelizmente, vai aumentar. Mas o país precisa derrotar o vírus da Covid-19 com todas as suas forças, inclusive econômicas. E as projeções sobre a necessidade de recursos ultrapassam os R$ 300 bilhões.

Uma quantia gigantesca, mas fundamental para melhor equipar nossos hospitais públicos, o SUS e dotar os mais necessitados e desempregados de alguma renda básica para sua sobrevivência durante os meses de crise mais aguda.

Como resolver essa questão? Sem esses gastos 2020 já fecharia no vermelho, com um déficit fiscal previsto em R$ 150 bilhões. Agora, com esse montante adicional, o governo federal terá um rombo da ordem de meio trilhão de reais. Para resolver o colapso econômico pós-vírus, teremos que enfrentar alguns anos de recessão.

A solução existe e está em se fazer algo que nunca fizemos: taxar a riqueza. Dados recentemente divulgados pela Receita Federal e Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) mostram que a riqueza total do país —ou seja, patrimônio, imóveis, propriedades, aplicações financeiras e ações em poder das famílias brasileiras— atinge R$ 16,3 trilhões, sendo que 49% deste valor (R$ 8 trilhões) estão na mão de apenas 1% das famílias. Um imposto emergencial de 4%, aplicável apenas a essas famílias super-ricas, conseguiria eliminar todo o rombo acima mencionado.

Alternativa mais branda seria taxar apenas as aplicações financeiras. Nesse caso, segundo dado de 2019 divulgado pelo respeitado Banco Credit Suisse, existem no Brasil 259 mil famílias com aplicações superiores a R$ 5 milhões.

São chamadas pelos bancos de famílias milionárias ou super-ricas. Mas, em média, cada uma dessas famílias possui o dobro deste valor. Se resolvêssemos taxar apenas essa categoria, e com a mesma alíquota de 4% acima exemplificada para o patrimônio total, então conseguiríamos arrecadar cerca de R$ 100 bilhões; ou seja, um terço do que o país vai precisar. Claro, já seria uma ajuda considerável na guerra contra o vírus.

Taxar a riqueza é algo trivial nos países mais desenvolvidos, e precisamos caminhar para isso, pois estamos entre as nações mais desiguais do mundo. Da lista divulgada no último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, estamos entre os dez piores, ao lado de países africanos muito pobres. Aliás, entre esses países paupérrimos, somos o único que tem alguma importância na economia mundial.

A proposta de taxar a riqueza é necessária apesar de a desigualdade nos países ser medida mais pela renda e menos por propriedade e patrimônio. Mas, quando consideramos a renda, a situação também é calamitosa: o 1% mais rico da população possui 28% da renda total. Só existe um outro país no mundo com tamanha aberração. É o Qatar, uma nação pequena de xeiques e emires.

A verdade é que o Brasil não possui um sistema tributário adequado. Aliás, não fosse o coronavírus, a discussão da reforma tributária estaria efervescente no Congresso neste exato momento. Entre as mudanças necessárias está a necessidade de fazer com que pessoas físicas que possuem lucros em suas empresas ou ganhos em aplicações financeiras e ações voltem a pagar impostos. Como era antes de 1996.

Ao taxarmos os ricos e as grandes fortunas vamos não apenas vencer a guerra contra o novo coronavírus, mas também evitar o colapso econômico iminente. Chegou a hora de o andar de cima colaborar.

Paulo Feldmann
Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas)

De onde veio o dinheiro?, por Nelson Barbosa.

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O dinheiro contra a crise já existia, devido ao desemprego e à ociosidade da economia

A crise da Covid-19 produziu um raro consenso entre economistas. Acostumados a divergir em várias coisas, hoje quase todos nós achamos necessário um aumento temporário e substancial do déficit público para salvar vidas e evitar uma queda maior da economia.

Quase que em um passe de mágica, besteiras como “acabou o dinheiro” ou “PIB público versus PIB privado” desapareceram do debate público. Hoje somos todos keynesianos contra crise.

Diante da mudança de opinião por parte de vários colegas, sinto-me no dever de explicar de onde apareceu tanto dinheiro para combater a Covid-19.

O dinheiro já existia havia algum tempo, devido ao alto desemprego e à alto desemprego e à elevada ociosidade da economia desde 2016, mas vários colegas escondiam esse fato, pois do contrário não poderiam defender um ajuste fiscal draconiano.

Vamos por partes.

O governo financiará suas políticas anticrise com emissão de dívida. O Tesouro colocará mais títulos no mercado, retirando moeda da economia. Ato contínuo, o Tesouro gastará os recursos, reinjetando moeda na economia.

No fim do processo, a dívida pública em poder do mercado subirá, isto é, a sociedade terá emitido uma obrigação contra si mesma, criando poder de compra hoje para ser pago com resultado primário no futuro.

Quanto? A resposta depende do próprio sucesso da política de estabilização. Se as iniciativas derem certo e o PIB se recuperar rapidamente, a sociedade demandará mais moeda, e o Banco Central o poderá criá-la comprando parte dos novos títulos emitidos pelo Tesouro. Como o BC é 100% do Tesouro, isso significa cancelamento de dívida pública por emissão não inflacionária de moeda. O governo não é uma dona de casa.

O restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito, pois o governo não é uma dona de casa. Nesse processo, talvez o resultado primário nem precise subir muito no futuro, se a taxa real de juro cair bastante e o crescimento da economia subir de modo duradouro.

Mas sejamos conservadores. Assumamos que será preciso elevar bastante o resultado primário mais à frente para pagar parte da dívida emitida hoje. Quando?

O ajuste fiscal poderá ser abrupto ou gradual. Se for muito rápido, ele poderá prejudicar a própria recuperação da economia. Se for muito lento, ele também poderá atrapalhar a retomada, consumindo recursos com juros elevados. A arte da política econômica é achar a velocidade ideal e, em breve, nós, economistas, voltaremos a divergir nesse ponto.

Porém, dado que hoje todos corretamente admitem isolamento social para achatar a curva de contágio da Covid-19, espero que a mesma lógica seja aplicada no pós-crise, para achatar o custo social do ajuste fiscal que será necessário.

Por fim, voltando ao tamanho do ajuste em si, tudo depende da taxa de juro real e do crescimento da economia, o que nós, economistas, chamamos de “r menos g” (eu sei, eu sei).

Se a taxa de juro cair de modo duradouro, a conta de juros será menor e, portanto, será necessário menos resultado primário para estabilizar e depois reduzir o endividamento público no futuro.

Mais importante, se a recuperação econômica for mais rápida, parte dos juros será paga com o aumento da arrecadação sobre um PIB maior, diminuindo a necessidade de ajuste fiscal por razões financeiras.

Persistirá a necessidade de ajuste fiscal por questões sociais, para promover justiça tributária e diminuir desigualdade, mas isso é outra história, para outra coluna.

Paro por aqui para respeitar nossa ortodoxia enquanto ela se recupera de keynesianismo pós-traumático.
Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research

Avanços e retrocessos da sociedade brasileira no século XXI: uma análise dos governos petistas e sua herança econômica.

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O artigo faz uma reflexão sobre os governos petistas, dando ênfase do Governo de Dilma Rousseff, seus desafios, impactos e características. Este artigo foi publicado, em quatro mãos, com a professora Deise Maria Marques da Silva Ramos, na Revista Olhar Tecnológica, Volume 5, número 1/2019, ISSN 2358-470X.

 

Leia o artigo completo aqui!

O impacto da crise econômica na juventude, segundo Marcelo Neri.

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A crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas, diz em entrevista exclusiva Marcelo Neri, da FGV Social

Por Davi Franzon – Revista Ensino Superior – Abril/2020.

O agravamento da crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas durante o período mais profundo da recessão. Esse quadro é apresentado com nitidez pela pesquisa “Juventude e trabalho”, realizada pela FGV Social. Na tentativa de compreender a situação enfrentada por aqueles que buscam a primeira oportunidade no mercado de trabalho ou uma recolocação profissional, a Ensino Superior conversou com o economista Marcelo Neri, responsável pelo levantamento. Confira os principais trechos da conversa.

A pesquisa aponta que o agravamento da crise da renda ocorreu nos últimos cinco anos. Qual foi o impacto sobre os ganhos dos jovens brasileiros?

Tivemos um aumento expressivo da desigualdade no Brasil. Uma elevação por 18 trimestres consecutivos. Dentro desse quadro, o jovem brasileiro foi o que perdeu mais, a elevação da desigualdade foi maior. Comparativamente, a crise impactou mais a renda dele (jovem) do que a de grupos tradicionalmente excluídos da população brasileira, como negros, analfabetos e moradores das regiões Norte e Nordeste. Para esta camada da sociedade, a redução foi duas vezes maior que a registrada nas demais. No caso do jovem, ela foi de cinco a sete vezes.

Quando ocorreu esse impacto sobre a renda dos jovens e como isso aconteceu?

A piora da renda dos mais jovens tem seu início no 4o trimestre de 2014, logo na sequência do 2o turno da eleição presidencial, e chega ao 2o trimestre de 2019. Na média, essa perda foi de 14,6%. O ganho médio passou de R$ 664 para R$ 567. Quando falamos nas causas, temos um somatório de situações. O desemprego aumentou muito na base da distribuição, em especial entre os jovens mais pobres, e há também um achatamento dos salários por causa da
precarização. Esse quadro é agravado quando analisamos a situação do jovem de baixa renda.

Falando em emprego, a sondagem mostra uma queda maior dos ganhos entre os jovens com idade entre 15 e 19 anos. A crise impacta diretamente aqueles que estão entrando no mercado de trabalho?

Eu acredito que sim. Nessa faixa, a redução foi de 26,54%, mas é preciso olhar para os componentes desse quadro. O desemprego já era elevado e aumentou muito. O que podemos identificar, como disse acima, é um avanço da precarização, da informalidade. O jovem entra no mercado de trabalho sem a garantia do conjunto de proteção social.

Esse quadro atinge diretamente a renda. Essa faixa da população também enfrenta uma mudança drástica no cenário do emprego. Saímos de um quadro de quase pleno emprego para um universo expressivo de desempregados. O volume de vagas caiu em seis meses o que ofereceu em seis anos.

Esse quadro deixa o mercado mais exigente? A pesquisa mostra uma perda de renda na faixa de 20 a 24 anos. Essa parcela da população, que na maioria dos casos já possui uma experiência, também tem enfrentado dificuldades?

Aqui, temos situações distintas. No caso do jovem que busca o primeiro emprego, ele acaba naquele processo: não tem experiência e não consegue ser contratado e vice-versa. Quando você entra nessa outra faixa etária, as histórias de vida são muito diferentes. Podemos encontrar o jovem que não conseguiu entrar antes dos 20 anos no mercado de trabalho ou aquele que só teve acesso em um mercado precarizado. São trajetórias distintas.

Nesse sentido, a partir dos números da sondagem, temos um quadro de desigualdade entre os jovens brasileiros?

Sim. Essa crise evidencia claramente essa situação. Veja, a população jovem é grande no Brasil e continuará nos próximos anos. Com esse cenário de crise, ocorre uma clara desigualdade dentro desse conjunto da população. Como eu mostrei acima, a perda média de renda do jovem foi de 14%. Quando entramos nas camadas da pesquisa, essa queda é de 24% na parcela mais pobre. No caso dos analfabetos, esse percentual sobe para 51%. Mesmo em um grupo que, na média, não perdeu, como é o caso das mulheres, as mais jovens apresentaram uma retração na renda.

Foi possível identificar os fatores que mais contribuem com a desigualdade entre os jovens brasileiros?

De maneira geral, as causas dessa desigualdade não diferenciam muito daquelas que atingem o conjunto da sociedade brasileira. Temos o aumento do desemprego, a redução da jornada de trabalho e a queda do salário por hora/ano de estudo. Essa é uma característica importante dessa crise, ela devolveu uma importância para a manutenção ou aumento de renda para os mais escolarizados.

Essa característica (a importância do estudo) é diferente do quadro diagnosticado antes do agravamento da crise econômica?

Completamente. A situação até o quarto trimestre de 2014, início de 2015, era totalmente distinta. Tivemos, nesse período, um boom social. A renda da camada menos escolarizada da população apresentou um aumento superior ao da mais escolarizada. Houve um ganho para quem possuía apenas o ensino médio e uma queda entre os que possuíam nível superior. A partir da crise, houve uma inversão.

Seguindo essa análise, essa crise da renda deu mais peso para o ingresso e, principalmente, conclusão de um curso de ensino superior?

Sim. O jovem com maior tempo de estudo ganha mais e tem outras vantagens. Claro, você sempre vai ouvir a história do engenheiro que está dirigindo para empresas de aplicativos e outros profissionais que não exercem a profissão escolhida. Mas, na média, o número de engenheiros fora do mercado de trabalho é menor quando comparado com aqueles que têm apenas o ensino médio.

É possível quantificar essas diferenças entre os mais e menos escolarizados na sociedade brasileira?

É sim. Um profissional com ensino médio completo ganha, em média, R$ 2,2 mil por mês. Quando você pega aquele que tem superior completo, esse valor salta pra R$ 4,7 mil. Vamos falar de empregabilidade. O percentual para o ensino médio é de 84%, para o superior, 90%. A formalidade também é maior: 79,6% (superior) e 70% (médio). O ensino superior só é menor quando o tema é jornada de trabalho, 42,2 horas (médio) ante 41,4 horas (superior). Ou seja, ele possui mais tempo para realizar outras atividades.

A pesquisa aponta uma evolução do chamado “nem-nem” (não estuda e não trabalha). Foi possível identificar os fatores dessa evolução?

Nesse tema, os fatores passam pela recessão, precarização e também uma questão de gênero. Juntos, eles permitem um entendimento desse quadro dos “nem-nem”. No recorte da pesquisa, ele passou de 21,19%, no 4o trimestre de 2014, para 24,53%, no 2o trimestre de 2019. Em contrapartida, houve uma redução, ainda que pequena, entre os jovens que
estudam e trabalham de 12,33% para 11,60%.

As mulheres ainda são as que mais se enquadram nessa situação?

Quando você olha para o quadro fixo, elas são, sim, maioria entre os nem-nem. No segundo trimestre de 2019, o percentual chegou a 30,59%. No caso dos homens, ele é de 18,56%. No entanto, as mulheres, quando comparamos com 2014, apresentaram um avanço mais lento do que o dos homens. Ou seja, como elas estão mais escolarizadas, houve um avanço nos anos de estudo e de acesso ao mercado de trabalho.

Há uma expectativa de melhora nessa crise da renda dos jovens?

Temos alguns sinais a partir de 2017. Não uma retomada do crescimento da renda, mas uma desaceleração das perdas. A decisão do governo de oferecer redução de encargos trabalhistas para a oferta do primeiro emprego para jovens com idade entre 18 e 29 anos pode ajudar nesse quadro. Também temos uma melhora, ainda que tímida, na frequência escolar. Mas ainda há muito a ser feito.

No caso do governo, a pesquisa revela uma insatisfação grande por parte dos jovens. Quais as causas desse quadro?

Os dados são muito claros. Enquanto em outros países a parcela de jovens que confia no governo é de 57,4%, no Brasil ela é de 12%. O jovem brasileiro ocupa a terceira posição entre aqueles que menos confiam nas instituições.

Esse quadro pode ser explicado pela falta de proteção social oferecida para eles. Essa parcela da população não tem uma política voltada para ela. Eles estão em um quadro de precarização do trabalho, de empregos sem carteira assinada, ou seja, sem proteção alguma. Veja o caso da reforma da previdência. Agora, teremos um grupo com direito à aposentadoria e um que terá muita dificuldade para consegui-la. Os mais velhos conseguiram defender sua cota de proteção social, os mais jovens terão que pensar em capitalização, previdência privada. Isso ajuda a entender esse descrédito para com o governo. Temos de lembrar, também, que os estados estão quebrados. E isso impacta diretamente a vida dessa população, seja em relação à oferta de transporte público, de empregos e no combate à violência. Fatores com impacto direto no dia a dia.

Olhando para o ensino superior ofertado no Brasil. Ele dá conta das necessidades dos jovens?

As universidades, hoje, acabam suprindo deficiências da origem dos estudantes. Elas têm de oferecer cursos de português, matemática e outros para permitir que o aluno siga no curso. Esse quadro, obviamente, impacta a formação do futuro profissional. No geral, temos uma boa oferta de cursos superiores. Agora, se dá muita ênfase em cursos profissionalizantes, cursos técnicos. Há um debate sobre um suposto bacharelismo no Brasil, se a busca por um diploma é ou não a solução para poucos. Mas é preciso lembrar que, ao se olhar para o conjunto da sociedade brasileira, o grupo com curso superior completo ainda é relativamente baixo.