Federico Finchelstein: ‘Brasil abdicou de sua liderança regional’

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Segundo especialista, preocupa a intolerância do governo Bolsonaro e a falta de interesse pelos outros países da região

Entrevista com: Federico Finchelstein, diretor do depto. de estudos sobre América Latina da New School for Social Research

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo – 05 de julho de 2020

Em vez de liderar a América do Sul, como no passado, o Brasil tem se desinteressado pelo continente, afirma o professor Federico Finchelstein, diretor do departamento de estudos sobre América Latina da New School for Social Research, de Nova York. Argentino radicado nos EUA, ele é autor do livro Do Fascismo ao Populismo na História e analisa o avanço desses movimentos nos últimos anos. A seguir, trechos da conversa de Finchelstein com o Estadão.

Como o sr. vê o momento da relação entre Brasil e Argentina?

A diferença entre Alberto Fernandez e Jair Bolsonaro não é só uma questão de posição política. Tem a ver com o conceito de democracia. O Brasil, claramente o país mais importante da região, e sobretudo o mais importante para a Argentina, seu grande sócio, é visto com preocupação entre os argentinos, e não somente pela esquerda, mas também pela direita. Há preocupação com a falta de responsabilidade do governo, com a intolerância, com as políticas e esse desinteresse total por tudo que acontece no restante da região.

Como o sr. vê o papel do Brasil como líder da América do Sul? 

Os países estão coordenando uma resposta ao coronavírus e o Brasil não participa porque, em nível federal, nega até a problemática do vírus. O Brasil deveria ser o líder da região e essa falta de liderança é muito ruim. Do lado da Argentina, que é um país onde todos estão sempre brigando, com uma grande dose de instabilidade, sempre se olhava para o Brasil como um país estável. Agora, parece que o Brasil está mais argentino que a Argentina, com grande instabilidade. A liderança do Brasil é muito importante e necessária para a região, mas o que vemos é, para dizer em termos de futebol, um país que sempre jogava em equipe e agora prefere jogar sozinho. Essa é uma percepção em muitos países da América do Sul. O Brasil deixou de ser líder e se tornou um país desinteressado pela região.

O sr. ainda acha que Bolsonaro é um dos líderes populistas mais próximos do fascismo? 

Não só continuo com a avaliação como, lamentavelmente, minha preocupação se aprofundou. Cada vez ele se aproxima mais do fascismo ao passar do autoritarismo para tentativas de destruição da democracia, que são típicas de ditaduras e do fascismo. Os exemplos são as ideias de fechar o Supremo Tribunal Federal, o Congresso e estabelecer um tipo de pretorianismo (influência abusiva do poder militar) nada democrático e tampouco típico do populismo.

O sr. diz que esses movimentos populistas estão se reformulando ao longo dos anos. Como se dá esse processo? 

Os elementos centrais do fascismo não são centrais no populismo, de esquerda ou de direita. De Perón a Vargas, de Cristina Kirchner a Silvio Berlusconi, não vemos elementos como violência política ou racismo, mas sim um desprezo pelas instituições, um certo autoritarismo, mas sempre em democracia. Com o surgimento de líderes como Donald Trump (EUA), Narendra Mori (Índia), Viktor Orbán (Hungria) e Jair Bolsonaro, eles retomam elementos que haviam ficado no passado. Trump se lançou na campanha com diversos termos racistas contra mexicanos e imigrantes. Bolsonaro fez campanha imitando um revólver na mão. Ou seja, a glorificação da violência como símbolo da política.

Como o racismo se encaixa dentro desse populismo?

Com a glorificação da violência voltam o racismo, a discriminação, a xenofobia, o fazer política com intolerância contra as minorias. Isso vira um eixo central da política. São argumentos fascistas. O elemento que falta, para passar de populismo para fascismo, é a destruição da democracia e a instauração de uma ditadura. Depende dos brasileiros resistir aos ataques contra a democracia. Também é fundamental o trabalho das instituições e do jornalismo, para que mostre os fatos para a população.

Na polarização, qualquer crítica ao governo é taxada de comunista. Como o sr. vê essa argumentação?

Essa pergunta é importantíssima para entender o fenômeno. Quando escutava falar de Bolsonaro durante a campanha, me lembrava dos discursos de Goebbels, o grande mentiroso das campanhas nazistas. Há outro elemento central desse novo populismo: são grandes mentirosos. Mas mentirosos não em um sentido cotidiano, mas em termos da técnica de propaganda. Todos que conhecessem história sabem o que é comunismo. Estamos falando de fatos históricos. Mas eles não estão falando disso, e sim de fantasias, de mitos, de propaganda que eles mesmos creem e utilizam para enganar a população. Por isso, tanto ódio ao jornalismo, porque os jornalistas mostram os fatos para os cidadãos interpretarem. E mostrar fatos vai contra as fantasias oficiais. Bolsonaro diz que o vírus é uma gripezinha, mas é uma pandemia global como vimos, a maior em cem anos.

Qual o papel de quem não está no poder? 

É importante que, frente a esse ataque, as diferenças entre setores políticos sejam menores. É preciso haver uma frente de defesa da democracia, não importa o nome. O importante é que os políticos do lado da democracia, os cidadãos e os funcionários do Estado devem defendê-la. Não é como em outros tempos. A história deixa a lição de que o fascismo venceu quando isso não aconteceu.

Pesquisas mostram a dificuldade de Trump conseguir a reeleição. Uma derrota dele enfraqueceria o movimento?

A defesa de democracia, atacada em nível global, tem de ser global. É preciso colocar evidência nas mentiras de Trump e em seu autoritarismo, suas políticas contra a ciência que provocaram mais mortes na pandemia. Isso é uma tarefa global. Então, uma derrota de Trump, já que muitos copiam o que ele faz, seria importante. Mas faltam muitos meses. No fundo, é importante que prevaleça uma defesa das instituições de Estado.

Vamos ter uma alteração estrutural da economia no pós-covid, diz Edmar Bacha

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Integrante da equipe que criou o Plano Real disse que recuperação do Brasil será lenta, mas abrirá espaço para a questão da distribuição de renda do País e o aumento dos gastos públicos

Entrevista com Edmar Bacha, economista

Vinicius Neder, O Estado de S. Paulo, 29/06/2020

Estamos em meio à recessão, mas há espaço para recuperação em “V”?

Nos Estados Unidos, como reportou a Marcelle (Chauvet, professora da Universidade da Califórnia, integrante do Codace, na reunião da última sexta-feira, 26), foi feita uma pesquisa muito interessante com economistas sobre a forma da retomada. Já houve duas rodadas da pesquisa. Na primeira, a maior parte dos economistas colocou o “V”, e, agora, todo mundo mudou do “V”, para algo que começa com um “V” inclinado, mas logo depois atinge um platô. E essa questão do platô é fundamentalmente por causa do esgotamento dos impulsos fiscal e creditício que o governo está dando. Quando isso acabar, como vai ficar? Depois, do lado do vírus, tem a questão de que isso vai exigir uma realocação muito pronunciada da atividade econômica. O mundo pós-covid não vai ser o mesmo. Vai ser bastante diferente. A natureza da atividade econômica vai ser muito distinta, com setores que vão ser beneficiados e os setores que vão ser prejudicados. Vamos ter uma alteração estrutural, se não permanente, pelo menos prolongada na estrutura das atividades econômicas.

No caso do Brasil, o quadro é diferente, já que o espaço fiscal para manter medidas é menor?

Obviamente, o Brasil tem bastante menos espaço fiscal do que os países que têm moeda-reserva. (…) Com esse agravamento do quadro fiscal, estamos indo para uma relação dívida pública sobre PIB de 100%. Agora, se temos menos espaço fiscal, temos um pouquinho mais de espaço monetário. Os juros lá (nos países desenvolvidos) já estão em zero. Isso é uma questão complexa, que vai depender muito da capacidade que temos de reestabelecer o ânimo empresarial e a disposição dos consumidores a gastar.

Os impulsos ficais ajudam no consumo das famílias, não?

Nos Estados Unidos, por causa das transferências, houve uma retomada muito forte, praticamente no nível anterior, do consumo das classes mais pobres. O consumo que está retraído é o consumo dos 25% mais ricos, do pessoal que fugiu de Manhattan. Esse consumo vai voltar quando o medo passar. O curso do vírus é que vai determinar um pouco esse processo de retomada do consumo da parte mais substantiva do total. Embora seja menos gente (os 25% mais ricos), o poder de compra é muito maior.

Isso vai acontecer no Brasil ainda?

Com certeza. Não temos ainda esse tipo de dado. Nos Estados Unidos é um pouco mais fácil porque aqui as pessoas mais pobres ainda gastam em dinheiro. Isso é mais difícil de traçar.

Diante disso, deveríamos investir na manutenção dos auxílios emergenciais?

O ideal seria a gente encontrar um espaço fiscal para fazer uma ampliação do Bolsa Família. Esse é um tema que está em discussão muito ampla, tem propostas pipocando para todo lado, algumas mais fantasiosas, outras mais realistas. Há uma coisa emergencial, que é o prolongamento do auxílio dado que o vírus não se abateu no período que estávamos com esperança que se abatesse. A outra questão é como será o formato mais ou menos prolongado desse processo.

O sr. é favorável a uma ampliação das transferências?

Acho importante, temos que discutir isso. Podemos fazer desta crise uma oportunidade para uma discussão séria sobre distribuição de renda no País.

É possível fazer isso sem reformas, como a administrativa e a tributária?

A alternativa a isso seria aumentar brutalmente os impostos, o que não é o caso. Já estamos com uma carga tributária, para nosso nível de renda, bastante alta. Temos que conseguir um jeito é de redistribuir o gasto. E tem que melhorar a qualidade dos impostos, obviamente.

Qual a consequência de continuar aumentando a dívida pública?

Isso seria autodestrutivo, porque a retomada depende do restabelecimento de um ambiente de negócios. As oportunidades estão aí. A do saneamento está sendo criada (com a aprovação, na semana passada, do novo marco regulatório para o setor). A questão é saber se o pessoal (os investidores) vai vir. Para vir, precisa ter confiança no ambiente de negócios e em tudo o mais. Num País que está com a dívida descontrolada, quem vai ser louco (de investir)?

Como fazer as reformas?

Vai ter que fazer uma redistribuição. Então, vai haver perdedores, sem dúvida. Não é fácil. Não é uma coisa para fazer do dia para a noite. Vai precisar de um debate amplo na sociedade, para ter uma avaliação muito clara para as pessoas do que se trata. Não vai chover dinheiro. Vamos tirar dinheiro de um lado e colocar no outro. É importante que esse debate seja bastante amplo, porque se depender só dos lobbies que pressionam o Congresso, não vamos chegar a lugar algum.

O sr. está mais pessimista ou otimista com os rumos da economia?

Estamos numa situação extremamente difícil. Normalmente, os períodos de expansão são muito mais prolongados do que os períodos recessivos. É uma característica do ciclo econômico tradicional. Agora, pega essa última leva. Tivemos um período recessivo, de 2014 a 2016, que é praticamente da mesma extensão (11 trimestres) que a expansão que tivemos até o ultimo trimestre do ano passado (de 12 trimestres). Só isso já é uma sinalização bastante clara da precariedade. A economia já estava andando de lado. Essa expansão não foi nada para ficar muito entusiasmado. A economia já não vinha bem das pernas. Precisamos ter um conjunto de mudanças muito substantivas para uma retomada mais vigorosa e para termos um espaço mais amplo para essa discussão dos sistemas redistributivos, que são tão importantes no Brasil.

As medidas dos países desenvolvidos podem beneficiar o Brasil com um crescimento global maior?

Já estamos nos beneficiando da retomada na Ásia. As exportações brasileiras para a Ásia estão indo muito bem, obrigado. Nesse sentido, sim, mas isso olhando para os próximos meses. A questão que se coloca mais à frente, pós-covid, é como vai ser essa reestruturação, a recomposição da economia mundial, toda essa questão do protecionismo e do papel das organizações internacionais. Isso vai depender muito do resultado das eleições (presidenciais) americanas (marcadas para novembro).

Paulo Guedes, coautor do desastre por Paulo Nogueira Batista Jr.

Jornal GGN, 30/06/2020

O presidente Bolsonaro sofre rejeição e críticas crescentes. Curiosamente, a área econômica do seu governo nem tanto. Pode até escapar de um eventual naufrágio. Para alguns setores influentes (nem preciso dizer quem são), tudo se passa como se o ministro da Economia e sua equipe estivessem em uma esfera à parte e precisassem ser preservados de alguma maneira. Mas é uma ginástica e tanto. Bolsonaro e Guedes são dois lados da mesma moeda.

A fragilidade da tentativa de separá-los salta aos olhos. Bolsonaro vem caprichando no esforço de desorganizar e desestabilizar o país, não há dúvida. Poucos se equiparam ao presidente em matéria de talento destrutivo. Como ignorar, entretanto, que ele conta com a sincera colaboração da sua equipe econômica? São muitas as contribuições do ministério da Economia ao rebaixamento do Brasil. Não só na área econômica doméstica, mas também – aspecto menos notado – na área internacional. Pretendo tratar neste texto dos dois aspectos, mas principalmente do segundo, que tem recebido pouca atenção.

Antes de prosseguir, quero deixar claro que o que me move a tratar criticamente desse tema não é nenhuma animosidade pessoal contra o ministro e sua equipe. De forma alguma. Nem conheço a grande maioria deles. Mas, convenhamos: não é por acaso que Guedes se tornou ministro da Economia de Bolsonaro. As afinidades são visíveis. Os dois são extremistas por vocação e trajetória. E o que temos em Brasília hoje é nada mais nada menos do que o casamento do extremismo político com o extremismo econômico.

O radicalismo do presidente é notório. O do ministro da Economia talvez seja um pouco menos conhecido, mas tem raízes antigas. Paulo Guedes é um adepto da escola de Chicago, onde estudou na década de 1970. Essa escola é a vertente radical da economia ortodoxa. Os traços centrais da ortodoxia aparecem ali magnificados e exacerbados. A começar pela propensão a superestimar, de maneira dogmática, o papel das forças de mercado e do setor privado. E a subestimar, em contrapartida, a necessidade que têm as economias modernas de um Estado atuante no campo econômico. Problemas centrais como distribuição de renda são negligenciados ou tratados de forma insuficiente. A questão nacional é ignorada ou vista como mero anacronismo.

É o chamado “fundamentalismo de mercado”, vício que leva economistas supostamente científicos a defender com fervor religioso teses no mínimo discutíveis, às vezes claramente falsas, sobre o que fazer ou não fazer na condução das políticas públicas. Já deveríamos saber, a esta altura, que a economia é uma ciência inexata, que se presta mal à defesa rígida e fervorosa de propostas específica. Mas vá tentar, leitor, convencer os seguidores dessa seita de que ceticismo e distanciamento críticos são sempre necessários para lidar com temas econômicos – temas que são sempre políticos e sociais ao mesmo tempo. A ideologia, como dizia Maria da Conceição Tavares, é uma plataforma precária.

Chicago em Brasília

O espírito crítico foi para o espaço. No Brasil, os xiitas da economia se uniram aos xiitas da política. E ficamos então submetidos, desde 2019, à aplicação de certo tipo de teoria econômica. Já tive ocasião de escrever a esse respeito em artigos publicados na minha coluna na revista Carta Capital (elas podem ser encontradas na minha página na internet: www.nogueirabatista.com.br). A ideia central de Guedes e cia era submeter a economia brasileira a reformas ditas estruturais, a começar pela da Previdência, acelerando e radicalizando o que vinha sendo feito no governo Temer. O objetivo era – e ainda é – reduzir o tamanho do Estado, via mudanças constitucionais e outras medidas, privatizar o que fosse possível – inclusive as estatais estratégicas – e tentar reduzir o déficit fiscal rapidamente, sem levar na devida conta os efeitos desse ajustamento sobre a economia, o emprego e a distribuição da renda.

Um ajustamento regressivo, em suma. Os resultados foram pífios. Como se podia prever, não se confirmou a promessa de que o “choque de confiança” provocado por políticas radicais traria uma recuperação econômica liderada pelo setor privado. A economia continuou se arrastando, crescendo pouco ou nada em termos de PIB per capita. Antes da chegada do novo coronavírus, a tendência para o nível de atividade em 2020 era, na melhor das hipóteses, mais um voo de galinha. Guedes perdeu credibilidade quando garantiu, repetidamente e sem a mínima base, que a economia brasileira estava “decolando”.

Veio então a pandemia e aí foi um verdadeiro deus nos acuda. A inadequação da equipe econômica aos desafios de uma crise dessa magnitude ficou totalmente escancarada. Não sei se o leitor se recorda, mas houve um momento em que a mensagem que se tentou passar era de que a melhor “vacina” contra o vírus era, no plano econômico, a continuação das reformas estruturais! O suprassumo do ridículo nacional.

A participação do Estado na economia, sempre necessária em alguma medida, se torna urgente e indispensável em momentos de crise aguda. Prisioneira de dogmatismos e preconceitos, Guedes e sua equipe resistiram ao óbvio e demoraram a reagir. Quando o fizeram, as medidas foram incompletas, mal formuladas ou implementadas sem convicção. Resultados: a economia mergulhou em recessão profunda, empresas brasileiras estão sendo destruídas, o desemprego cresceu de forma alarmante, a renda nacional se concentrou e aumentou a pobreza. O FMI, por exemplo, prevê agora queda de 9,1% no PIB brasileiro em 2020. Uma recessão sem precedentes na história das contas nacionais brasileiras.

Para ser justo, é preciso dizer que, nas circunstâncias, uma recessão era inevitável e que qualquer ministro da Economia governo teria enorme dificuldade de enfrentar o desafio. Não se pode tampouco botar toda a culpa pelo que vem ocorrendo em 2020 na conta da equipe econômica. O resto do governo deu a sua contribuição – e notável – ao colapso da economia, em especial com a atuação tumultuada e incompetente na área da saúde pública.

Atuação na área financeira internacional

Mas não foi só no campo da macroeconomia que Paulo Guedes e seus auxiliares se destacaram negativamente. Diferentemente do que às vezes se imagina, a política externa do país não é prerrogativa apenas do Itamaraty. O ministério da Economia e outros ministérios também têm responsabilidades importantes na área internacional.

Uma das razões que levam o ministro da Economia a ter protagonismo na política externa é o fato de ele ser o principal representante político do país em organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Novo Banco de Desenvolvimento. No jargão adotado nessas instituições, ele é o “governador” do Brasil. Com essas alavancas nas mãos, pode-se fazer muito de positivo – e também, claro, muito estrago. O atual ministro, infelizmente, vem se notabilizando pelos estragos que faz no campo financeiro multilateral.

É um tema que conheço bem, pois trabalhei por mais de dez anos em instituições multilaterais, em Washington e Xangai, entre 2007 e 2017. O Brasil era outro, bem sei, principalmente até 2014. Depois veio a decadência política do governo Dilma, seguida do medíocre governo Temer. Mas nada, nada mesmo, se compara ao que tem feito o atual governo nesse campo. Nem mesmo a indigência manifesta da equipe econômica de Temer se compara ao que temos hoje.

Banco dos BRICS

Alguns exemplos. Ao Brasil tocava, em 2020, indicar o segundo presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos BRICS, para um mandato de 5 anos a partir de julho. Foi o resultado de uma difícil negociação, concluída na cúpula dos líderes dos BRICS, em Fortaleza, em 2014. A presidente Dilma Rousseff queria muito que o Brasil indicasse o primeiro presidente. A Índia insistia em garantir para si essa possibilidade. Depois de muita discussão, o Brasil concordou em ceder e ficou com o direito de indicar o presidente seguinte. Na delegação brasileira, eu fui um dos que argumentaram que era mais importante assinar logo o acordo de criação do NBD, em Fortaleza, do que continuar insistindo em indicar o primeiro presidente.

Em retrospecto, parece claro que foi um erro. A Índia acabou indicando um presidente apagado, o banqueiro K.V. Kamath, de carreira ilustre, mas já em idade avançada e em regime de pré-aposentadoria. Durante os seus 5 anos no comando do NBD, sobressaiu-se pela inércia. (Uma avaliação crítica da fase inicial do banco, do qual fui vice-presidente até fins de 2017, pode ser encontrada no livro que publiquei no final do ano passado, O Brasil não cabe no quintal de ninguém, pela editora LeYa.) Quando estávamos em Fortaleza, finalizando a dura negociação do NBD, nunca em nossos piores pesadelos poderíamos imaginar, leitor, que 6 anos depois o Brasil teria como presidente um personagem caricato como Jair Bolsonaro e, como ministro da Economia, o inefável Paulo Guedes. Se tivéssemos bola de cristal, teríamos talvez preferido indicar o terceiro ou quarto presidente do banco!

Mas aqui estamos. Guedes exerceu o direito de indicar e escolheu um certo Marcos Troyjo, figura relativamente obscura e sem experiência relevante. Espero estar errado, mas o que se sabe sobre o novo presidente do NBD não nos autoriza a esperar grande coisa. Dificilmente será capaz de proporcionar a reorientação e o impulso requeridos para uma instituição que começou mal sob a presidência de K.V. Kamath. O leitor pode imaginar a minha frustração ao ver um banco promissor, do qual fui um dos fundadores, passar das mãos de um presidente indiano inerte a um presidente brasileiro aparentemente despreparado para o cargo.

Banco Mundial 

A atuação de Paulo Guedes como governador do Brasil em instituições sediadas em Washington também se mostra altamente problemática, para dizer o mínimo. O caso mais comentado é o da diretoria executiva do Brasil no Banco Mundial. Guedes deixou a posição desocupada por cerca de sete meses para depois, a pedido de Bolsonaro, indicar o ex-ministro Abraham Weintraub, nome escandalosamente inadequado. Desnecessário frisar o rebaixamento do Brasil que resulta dessa indicação. Weintraub como diretor executivo do Banco Mundial é coisa de Quarto Mundo!

O pior é que fizemos, em anos recentes, um esforço considerável, do qual eu mesmo participei, para assegurar a posição de diretor executivo exclusivamente para o Brasil, sem ter que compartilhá-la com outros países do nosso grupo no Banco Mundial.

Explico em poucas palavras. Quando cheguei a Washington, em 2007, para assumir a posição de diretor executivo pelo Brasil e outros países no Fundo Monetário Internacional, o Brasil apresentava uma vulnerabilidade importante: o nosso poder de voto no FMI era insuficiente para garantir com segurança a posição de diretor executivo para o país. A solução encontrada por meus antecessores tinha sido negociar com os países do nosso grupo nas instituições em Washington – grupo que era essencialmente o mesmo no FMI e no Banco Mundial – o seguinte arranjo: o Brasil reteria o comando exclusivo no FMI, mas aceitaria uma rotação na posição de diretor executivo no Banco Mundial com Colômbia e Filipinas. Os meus antecessores acreditavam, com razão, que o FMI era mais importante do que o Banco Mundial, valendo assim a pena aceitar a rotação na diretoria executiva desse último para garantir exclusividade na diretoria do primeiro.

Mas esse arranjo não era satisfatório. Geralmente, eram fracos, às vezes muito fracos, os nomes indicados por Colômbia e Filipinas para a rotação no cargo de diretor executivo, e a nossa atuação no Banco Mundial sofria com isso. No meu período em Washington, negociamos a duras penas, com sacrifício e não sem muitos embates, um aumento sem precedentes do poder de voto do Brasil no FMI. Tudo isso está relatado em detalhes no livro acima referido, que publiquei recentemente. Graças a esse fortalecimento na nossa posição no FMI, foi possível em seguida dispensar a rotação no Banco Mundial com Colômbia e Filipinas – não sem desagradar esses países, claro, que insistiam em conservá-la.

Pois bem, o que faz Paulo Guedes? Primeiro, deixa o cargo desocupado por cerca de 7 meses, como mencionei. E, depois, indica o deplorável Abraham Weintraub. Foi para isso que o Brasil tanto insistiu em manter o comando permanente do nosso grupo de países no Banco Mundial?

Banco Interamericano de Desenvolvimento

Absurda, também, foi a atuação no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Trata-se de banco importante para a América Latina e o Caribe, que tem condições de mobilizar volume expressivo de recursos para projetos de investimento e desenvolvimento econômico e social na região. Haverá em breve eleição para a presidência do BID. Existe uma regra não escrita, mas sempre respeitada desde a criação do BID, em 1959, de que presidência fica com um latino-americano. Da mesma forma, regras não escritas reservam a presidência do Banco Mundial para um americano, e a do FMI para um europeu.

Guedes resolveu apresentar candidato brasileiro, escolhendo um nome praticamente desconhecido da área bancária privada. Contava aparentemente com apoio americano, em razão da relação supostamente especial entre Trump e Bolsonaro. Não funcionou. O governo Trump atropelou a candidatura posta por Guedes e resolveu apresentar candidato próprio, Mauricio Claver-Carone, um cidadão americano, de ultradireita, integrante do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Trump mostrou assim disposição de violar a regra sempre respeitada por todos os países membros, inclusive os Estados Unidos, de que a presidência cabia a um latino-americano.

O que faz então Guedes? Cúmulo da indignidade, emite uma nota conjunta com o chanceler Ernesto Araújo, dando boas-vindas à candidatura americana! Ou seja, concordando com a disposição dos Estados Unidos de violar a regra não escrita que favorece a América Latina e, na prática, jogando o candidato brasileiro ao mar. Como observou alguém, a definição de vira-lata foi atualizada com sucesso.

A bem verdade, a metáfora de Nelson Rodrigues – o célebre complexo de vira-lata que caracteriza o comportamento do brasileiro diante de americanos e europeus – já nem mais dá conta do grau de subserviência exibido pelos integrantes do governo brasileiro, a começar pelo próprio Bolsonaro.

Há um agravante, que ainda não foi noticiado no Brasil. Em entrevista à agência EFE, publicada em 17 de junho, Claver-Carone afirmou que a ideia da candidatura americana teria partido, por incrível que pareça, do próprio Bolsonaro: “Em uma chamada telefônica, casual, há duas semanas”, disse ele, “o presidente Bolsonaro havia dito ao presidente Trump que estava pensando em um candidato (para o BID), mas que apoiaria um candidato norte-americano, se fosse apresentado. E com isso começamos a pensar nas circunstâncias, e se era factível fazê-lo nesses momentos excepcionais”.

Talvez não seja verdade, mas faço o registro. Caberia apurar. Custo a crer que um presidente brasileiro, mesmo Bolsonaro, se rebaixe dessa maneira. A ser verdadeira essa informação, já não estaríamos diante de vira-latismo ou complexo de inferioridade, como mencionei, mas da mais pura e abjeta vassalagem.

 

A nossa infelicidade, volto a dizer, é a combinação letal do pior governo da nossa história com a pior crise da nossa história. E ninguém deve se iludir ou tentar iludir outros: Paulo Guedes e sua equipe constituem parte integrante – e destacada – desse desastre.

A parte inicial deste texto foi publicada como artigo na revista Carta Capital, em 26 de junho de 2020.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final do ano passado, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.

Pandemia, desorganização social e futuro desolador  

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Desde o começo de março a sociedade brasileira se vê à volta com a maior crise sanitária de sua história recente, nesta situação de pandemia as nossas entranhas estão as mostras, a desigualdade assombrosa escancara as dificuldades das questões sociais, nossos medos mais íntimos e pessoais e as expectativas de um futuro melhor e mais convincente se tornam cada vez mais distantes, estamos afogados numa crise sanitária, somada a uma grande crise econômica e, uns falam em uma queda de mais de 5% do produto interno bruto, outros falam em mais de uma queda ainda maior, para piorar as condições sociais, tão degradadas nos anos recentes, uma enorme crise política e rumamos para um risco institucional, cujas repercussões ainda não podem ser mensuradas.

Como a situação atual, percebemos um Estado absurdamente incompetente e sem organização, onde os gestores responsáveis pelas políticas públicas estão dando-nos mostras claras de desculpas esfarrapadas marcadas pela incompetência, com isso, percebemos uma sociedade indefesa e assustada, reféns de um vírus assustador, levando milhares de pessoas ao falecimento iminente, gerando na sociedade marcas e sentimentos sinceros de que as coisas poderiam ser evitadas, desde que as ações fossem organizadas, planejadas e imediatas.

A situação econômica do país é assustadora, o incremento no desemprego é uma realidade cruel, muitos empresários e empreendedores que precisam fechar suas portas marcadas por uma pilha imensa de boletos não pagos e dívidas crescentes, crianças presas em casas e impedidos de suas brincadeiras, levando um aumento da depressão, da ansiedade e de todos os mais violentos transtornos mentais e emocionais, gerando uma coletividade agressiva e desesperança, onde a solidariedade se torna uma forma de uma seleção social, diferenciando pessoas e comportamentos dos indivíduos.

Neste ambiente, percebemos que a grande maioria dos países do mundo estão recorrendo aos recursos do Estado, criando instrumentos monetários para aumentar a quantidade de liquidez, dos créditos e dos investimentos, para evitar que a solução se aprofundem, levando recursos para todos os grupos e coletividades para que morram de inanição e da desesperança. Diante desta situação marcada pelo caos social e econômica, os grupos mais ortodoxos e liberais, defensores do Estado mínimo e a pouca intervenção do Estado na lógica dos defensores dos interesses da superioridade dos Mercados, sendo obrigados a defenderem política que não acreditam, fazendo-as de forma tímida e sem empolgações, passando uma imagem de desorganização e inconsistência, abrindo espaços para instabilidades e incertezas.

Neste ambiente marcado pelas necessidades de isolamento social, quarentena e pouco social, os indivíduos são impulsionados ao medo e para as preocupações de um futuro marcado pelas incertezas, que se somam aos medos contemporâneos já existentes, levando as pessoas a buscar crescentes, gerando desequilíbrios emocionais e problemas variados existenciais, nesta sociedade os seres humanos se encontram em uma grande encruzilhada, onde as escolhas devem ser feitas com calma e paciência, mesmo sabendo que vivemos em uma sociedade que exija respostas rápidas e decisões imediatas e dinâmicas.

A crise do coronavírus, vitimada pelo covid-19, leva a economia global a desequilíbrios crescentes, pela primeira vez, estamos vivenciando um momento marcado por crises que afetam, concomitantemente, os dois lados da teoria econômica, impactando os lados da oferta e da demanda, gerando um grave desequilíbrio nas cadeias globais de produção, gerando desabastecimento na estrutura produtiva, obrigando países e regiões a terem suas produções reduzidas e de forma abruptas, diante disso, a crise local se espalha para todos os polos da economia internacional. Nesta situação de instabilidades, movimentos marcados pelo nacionalismo e pelo populismo ganham espaço na sociedade, gerando o surgimento de movimentos fascistas e autoritários, que passam a enfraquecer as democracias contemporâneas, levando a críticas ácidas e agressivas à ciência e a racionalidade científica, muitos destes movimentos pressionam as forças da globalização e uma defesa pela desglobalização, a um fechamento econômico e de estímulos as políticas protecionistas.

Neste ambiente marcado por milhões de mortes vitimadas pelo covid-19 em escalas internacionais, os governos devem se unir em escala global e ao mesmo tempo, os governos locais devem se fortalecer em prol dos seus concidadãos, aumentando os investimentos em saúde e pela defesa da vida, máquinas e tecnologias médicas, estas devem ser vistas como a situação racional, necessária e urgente de um governo nacional e consciente das necessidades da sua população.

Na sociedade brasileira, percebemos inúmeros desajustes na atuação desta crise sanitária, de um lado governantes que acreditam que o coronavírus deve ser visto como uma gripezinha, mesmo sabendo que o poder de destruição é violento, de outro lado, suas decisões são lentas e inoperantes, recursos canalizados para as micros, pequenas e médias empresas demoram a se efetivar, levando muitos grupos a insolvência e a falência generalizadas, fortalecendo um ambiente marcado pelos generosos privilégios para uma parte da coletividade, enquanto a grande massa da população se encontram chafurdando na degradação e da desesperança, sem créditos, sem empregos e sem futuros, caminhando rapidamente para o caos econômico e pelas insolvências social e moral.

Os socorros chegam rapidamente quando os poucos afortunados estão demandando recursos do governo nacional, neste momento surgem créditos suplementares que brotam em contas correntes de polpudos afiliados dos privilegiados, neste momento bilhões e bilhões de reais abastecem seus negócios, enquanto os mais desprovidos de recursos esperam meses e meses para ter acesso a fundos criados para garantir recursos futuros, que rendem valores irrisórios e vexaminosos, perpetuando uma situação de degradação social e exploração crescente e incessantes.

O Brasil vive uma situação sui generis, percebemos na contemporaneidade um aumento da degradação do meio ambiente, que cresce de forma acelerada e estimulando muitos investidores internacionais a reduzirem os investimentos no nosso país, neste momento percebemos que um grupo de gestores de fundos de investimentos, responsáveis pela administração de mais de 17 trilhões de dólares, publicando uma carta endereçada ao governo federal, com ameaças de diminuir os investimentos na economia brasileira, na carta os fundos criticam fortemente o aumento da devastação da floresta Amazônica, o desprezo com o meio ambiente e o incremento da devastação do clima, com isso, percebemos uma imagem do Brasil no cenário bastante negativo, com fortes prejuízos para a sociedade nacional, ainda mais, no momento de auge da pandemia e das dificuldades econômicas, sanitárias, sociais e políticas.

Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU), apresentou um relatório da atuação do governo federal diante na situação de pandemia, onde ficamos conhecendo como o quadro é sombrio e assustador, cujas políticas públicas se caracterizaram pelo amadorismo e incompetência, sem organização e ausência de planejamento, gastos desnecessários e políticas ineficiente, neste ambiente de tremendo desastre, o balanço do combate do coronavírus apresenta graves deficiências, que se materializam em mais de 1,2 milhão de infectados e mais de sessenta mil mortos, um verdadeiro genocídio, com impactos devem povoar a sociedade durante muito tempo.

Nesta sociedade, alguns se especializaram na espoliação da esperança da população, na conjuntura de caos generalizado, percebemos projetos que persistem em entrar na pauta dos grupos mais amoedados, persistem em reformas equivocadas, mudanças que aumentam os privilégios de uma minoria em detrimento de uma grande parte da sociedade, uma elite imediatista, hipócrita e degradante que nos conduz para um retrocesso civilizatório, com matanças de populações indígenas, de negros e de pobres.

O grande inimigo é o vírus, a crise está sendo agravada pelas atitudes equivocadas e limitadas, embora percebamos muitas pressões sociais pela abertura das atividades, a abertura sem encontrarmos um pico de infectados, veremos uma situação marcada por abertura alternadas por fechamentos, gerando maiores prejuízos na sociedade, mortalidades em alta, falências generalizadas e apreensão de todos os grupos sociais. Nesta sociedade, o vírus nos mostra, como somos uma sociedade pobre e desigual, embora tenhamos um produto interno bruto algo na casa dos 6,7 trilhões de reais, temos uma estrutura social marcada por fortes desigualdades, neste ambiente, uma parte significativa da sociedade não pode ficar alguns meses em casa, pois correm o risco de morrer sem alimentos, sem esperanças, sem perspectivas e vitimado pela depressão.

Numa sociedade onde o governo federal demora a estruturar formas de socorro da sociedade e, principalmente, dos grupos de menos recursos monetários, percebemos um verdadeiro genocídio, que levam grandes levas de cidadãos a inanição e desesperança. Neste ambiente, uma intervenção governamental é fundamental para evitarmos mortes crescentes, recursos devem ser injetados na economia, políticas públicas devem ser construídas em caráter de emergência, sem estas atuações urgentes e necessárias, o país brevemente se tornará o grande líder dos infectados e seus impactos econômicos, sociais e políticos seriam incomensuráveis.

Estamos vivenciando um grande retrocesso civilizatório, depois de um incremento de políticas direcionadas a grupos e minorias, vivemos uma reversão de políticas inclusivas, reduzindo de investimentos sociais generalizados e uma convicção centrada em austeridades, redução dos gastos sociais e aumento dos gastos de dívidas públicas, uma verdadeira estrutura de criar degradação social, pobrezas crescentes e medos generalizadas. Depois de forte crescimento econômico e políticas inclusivas, que levaram revistas internacionais, dentre elas destacamos a célebre capa da revista The Economist que retratava o Cristo Redentor decolando, percebemos a morte da esperança e do crescimento da desesperança, do medo e da redução da solidariedade, onde uns poucos controlam as estruturas políticas, os recursos econômicos e financeiros, vivemos na atualidade uma tempestade perfeita.

Desde 2015/2016, a economia brasileira vivemos de grande degradação, neste ambiente rumamos para um incremento acelerado do desemprego, cujas perspectivas estamos caminhando para mais de 25 milhões de cidadãos sem empregos, sem políticas claras e emergentes, nosso futuro comem deve ser tornar mais nebuloso, do desemprego rumamos para um incremento no subemprego e na informalidade, cujos impactos são a violência e a exclusão social, uma verdadeira degradação social e emocional, com aumento na depressão, na ansiedade, no suicídio e transtornos variados.

A sociedade está se degradante de forma  acelerada, muitos governos estão querendo terceirizar as suas responsabilidades, empresários gananciosos e imediatistas pressionam para a abertura atabalhoada e uma população fortemente amedrontada, uma sociedade marcada pela ausência da cidadania e de carências crescentes, neste momento precisamos de um norte, um rumo, uma liderança consistente e confiável para buscarmos novas expectativas e maiores perspectivas de uma construção interrompida, sem estes instrumentos políticos, nossa sociedade viverá mais do que uma década perdida, mas um século de atrasos e desesperanças.

 

 

 

 

Se as pessoas não acreditarem na democracia, instituições serão frágeis contra autoritarismo, por Renato Janine.

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É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Folha de São Paulo, 27/06/2020.

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.

Uma comissão da verdade demorou décadas para ser criada. A anistia que o regime de exceção deu a si mesmo, embora condenada internacionalmente, foi mantida pelo STF.

A fraqueza de nossa democracia é a fraqueza da convicção democrática dos brasileiros. Não emplacamos a ideia de que a divergência política é legítima. Na verdade, aumentou a crença de que quem diverge de nós é corrupto. Ora, na política democrática sempre há ao menos duas vias legítimas e diferentes.

Mas nossas últimas campanhas eleitorais, bem como o antipetismo, fundaram-se na deslegitimação do adversário, convertido em inimigo porque seria ladrão.

Além disso, a democracia não resolveu nossos problemas sociais. De Itamar Franco a Dilma Rousseff, diferentes governos o tentaram. O IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano de Municípios) melhorou sensivelmente. Os governos petistas foram mais longe neste rumo, mas a trilha foi aberta por Itamar e FHC.

Porém, não se construiu a consciência de que os avanços se deviam a políticas públicas —ou à política.

Em vez disso, multidões atribuíram sua melhora de vida, nos anos prósperos do começo do século, a Deus ou ao esforço pessoal, esquecendo a dimensão coletiva, pública, que é a da política.

Esse é o problema. Foi e é uma ilusão olhar só as instituições. Podemos vibrar com uma ação do presidente da Câmara ou de alguns ministros do STF, mas eles não substituem a fonte do poder, que na democracia é o povo.

Sem uma convicção e práticas democráticas enraizadas, nossa democracia continuará, como diz a revista britânica The Economist, “flawed”, ferida, defeituosa.

O erro não é de Yascha Mounk, mas de seus informantes brasileiros, que não viram esse déficit inquietante de consciência política.

Renato Janine Ribeiro

Professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT). Autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

 

Eugenia e coronavírus, por Cida Bento.

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Crianças e adolescentes da periferia e das favelas são os mais atingidos pela Covid-19

Folha de São Paulo – 25/06/2020

Inúmeras são as reportagens e estudos apontando que o ocultamento ou manipulação do dado cor/raça nos formulários de notificação da Covid-19 e, acrescente-se a esse contexto, a retirada do CEP dos registros representam um esforço de encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados.

Assim, o crescimento e a ampliação de vozes contra a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras, que caracteriza o fascismo e o racismo, é fundamental como forma de preservar e fortalecer as instituições, que devem se posicionar firmemente protegendo os direitos de sua população, em particular de suas crianças e adolescentes.

No Brasil, o número de mortes e internações de crianças e adolescentes na pandemia está muito acima dos demais países, e a maior parte dessas crianças e adolescentes são negras, vivem em periferias, favelas ou bairros pobres, de acordo com artigo de Julia Dolce, da Agência Pública, de junho de 2020.
No universo dos adolescentes, são 59,4% de negros entre os casos notificados, ante 38,8% dos de brancos.

Dolce destaca ainda que a mortalidade de jovem brasileiro por covid-19 é praticamente dois terços maior do que a verificada em países ricos, segundo pesquisa da Universidade de Paris.

No entanto, o dado cor/raça, fundamental para compreender melhor essa situação, figura como “ignorado” ou mesmo não preenchido em aproximadamente 40% dos formulários de hospitalizações e óbitos, indicando que a lei não vem sendo cumprida e o Estado não desenvolveu campanhas explicativas sobre a importância dessa informação para a definição de políticas públicas a fim de enfrentar os desafios da pandemia.

Importa destacar aqui que a mortalidade de crianças e jovens negros, de indígenas, idosos, quilombolas, seja pela ação, seja pela omissão do estado, pode representar a política eugenista, na atualidade.

A eugenia significa esterilizar, exterminar, invisibilizar, separar os indesejáveis. Assim, se crianças e adolescentes das periferias e favelas são atingidos diferencialmente pela Covid-19, eles também o são pela brutalidade policial, como observamos no aumento de assassinatos de crianças e adolescentes nos últimos anos.

Em 2019, cinco crianças de menos de 12 anos e 43 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos nas favelas do Rio de Janeiro por agentes do Estado brasileiro —policiais.

E, segundo o Atlas da Violência 2019, na idade de 21 anos, quando ocorre o pico dos riscos de uma pessoa ser vítima de homicídio, negros têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos.
Mortos em casa, em parques de diversões, nas escolas, em diferentes lugares das periferias e favelas onde deveriam estar protegidos. Diversos estudos têm revelado que a identificação do local é um dos elementos que legitimam a morte.

A ideia de favela construída como ausência, ilegalidade e desordem, um “problema” a ser solucionado, vem permitindo a entrada abusiva do Estado para lidar com a violência. Então, retirar o CEP de registros não é invisibilizar a política nas periferias e favelas?

Mais do que nunca, precisamos juntar as diferentes vozes da sociedade brasileira na retomada dos pactos civilizatórios que possibilitam o cumprimento do que define a Constituição Federal: a proteção integral de todas as crianças e adolescentes e de segmentos vulnerabilizados da sociedade.

Cida Bento

Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

 

No mundo de Bolsonaro, neoliberalismo e maluquice servem a mesmo propósito

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A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei

Marcelo Coelho – Folha de São Paulo – 24/06/2020

Não é preciso insistir no que houve de ignorância e despropósito durante a passagem de Abraham Weintraud pelo Ministério da Educação.

Acho interessante outro tipo de comentário. A saber, o de que Weintraub “não fez nada”, deixou tudo parado, não “tocou nenhum projeto”.

Na verdade, o objetivo era esse mesmo. Na famosa reunião ministerial, Weintraub se limitou a expressar o desejo de ver membros do STF na cadeia.

Ele também explicou o que o fizera aderir ao governo Bolsonaro: a “luta pela liberdade”. “Não quero ser escravo neste país”, acrescentou.

O povo não está gritando “por mais projetos”, disse ele. “Está lutando pela liberdade”. Toda essa discussão de “vamos fazer isso, vamos fazer aquilo” não seria capaz de mobilizá-lo. O principal, repetiu, era lutar —e não dialogar— contra os que querem “as tetas” do Estado.

Vieram, como condimento, confissões de “ódio” aos partidos comunistas, às expressões “povos indígenas” e “povo cigano” e, como se sabe, ao STF.

Esse discurso se deu numa ocasião em que se apresentava, justamente, um “plano” para a recuperação econômica do país. Nada de concreto, como se sabe, mas o suficiente para justificar projeções de PowerPoint e palavras de confiança no futuro.

O que deduzir disso?

É possível que exista um setor do governo, composto por ministros militares como o da Infraestrutura, ainda ligado à ideia de que o Estado serve para “fazer alguma coisa”.

O sentido básico do governo Bolsonaro, entretanto, é claramente outro. A ala financeira de Paulo Guedes, assim como a ala dos fanáticos evangélicos e olavistas, está unificada num propósito claro —o de destruir o Estado.

Neoliberalismo feroz e maluquice conspiratória são faces da mesma moeda. O núcleo supostamente técnico de Paulo Guedes e a turma delirante da guerra contra índios, quilombolas e comunistas compartilham da mesma visão de mundo.

Fascismo? O filósofo político Renato Lessa, numa discussão disponível no Youtube (procure por “Simpósio Direitas Brasileiras”), questiona essa caracterização.

Claro que podemos chamar de “fascista” esse governo e seus seguidores. São truculentos, extremistas, vulgares, despreparados, belicosos e idiotas.

Mas o fascismo, lembra Renato Lessa, buscava incorporar todos à máquina do Estado. Havia destacamentos infantis, associações de jovens, alas femininas. Desenvolvo a ideia por minha conta: o plano era criar uma escola fascista, uma arte fascista, uma medicina fascista. A ideologia era totalitária, de fato, porque absorvia toda a sociedade (excluídos os “elementos indesejáveis”) em organizações de Estado.

O plano de Bolsonaro é sem dúvida inverso —embora a mentalidade ativista e truculenta seja comparável à dos camisas-negras. Trata-se de unificar não só os que são contra o Estado, mas também os que estão à margem, ou fora, da lei.

É a ilegalidade no poder: isso unifica milícias, madeireiros, invasores de terra indígena, destruidores de patrimônio histórico, infratores contumazes de trânsito, sonegadores de impostos, policiais torturadores, militantes racistas, compradores de armas de fogo.

Uma ampla parcela de trabalhadores informais, de pequenos empreendedores, de profissionais liberais que acham complicado preencher nota fiscal, de donas de casa revoltadas com os novos direitos das domésticas, alia-se ao clube.

Os antigos representantes do pensamento econômico liberal encontraram, assim, uma base social imprevista.

O Estado brasileiro, que já não funcionava, deixou abandonada uma gente que se acostumou a se virar sozinha, fugindo de fiscais, empregando ou sendo empregada sem respeito à CLT, estudando em faculdades particulares de última categoria.

Estado para quê? “Só serve para atrapalhar”, pensa essa população que, na verdade, é vítima precisamente da falta de um Estado que funcione. “Melhor a milícia! Melhor a gente se armar! Melhor o Guedes!”

Do outro lado, temos os evidentes casos de corrupção, de crise fiscal e de carência nos serviços públicos a alimentar com fatos reais o delírio extremista e destrutivo.

Não é por acaso que o bolsonarismo se volte contra o Judiciário, de cujas ações se beneficiou. A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei.

Marcelo Coelho

Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

 

A intransigência da retórica liberal, por Luiz Guilherme Piva

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Não cabe agora discurso ortodoxo da futilidade, da perversidade e da ameaça3

Luiz Guilherme Piva

Folha de São Paulo – 23/06/2020

A pandemia de Covid-19 está agravando o já alarmante quadro brasileiro, de mais de 12 milhões de desempregados, de 40 milhões de trabalhadores informais, de 6.000 mortes anuais por fome, de 5 milhões de desnutridos e de 24 milhões vivendo em extrema pobreza.

Além disso, milhares de pequenas e médias empresas estão fechando, e boa parte das grandes, quebrando ou entrando em recuperação judicial, com perda de produção e riqueza.

Antes da pandemia, os economistas liberais ortodoxos já se posicionavam, por princípio, contrariamente a ações públicas. Isso porque creem que a obtenção de superávits primários é a panaceia que infunde confiança nos atores privados e os faz agir para suprir as necessidades sociais de investimentos, bens e serviços —daí a pregação pelo Estado mínimo.

Com a destruição vinda com a pandemia, tendo surgido proporções de atuação governamental, até com apoio de economistas liberais, muitos deles, não obstante, reiteraram sua resistência. Faz sentido. Vários dos economistas dessa linha acreditam que, frente a um problema complexo, se ninguém fizer nada, tudo dará certo.

Tal resistência abriga o que o economista Albert Hirschman (1915-2012) denominou retórica da intransigência, associada à aversão a mudanças. Ela contém três teses: a da futilidade, segundo a qual tentativas de promover mudanças são inúteis (porque, no caso aqui tratado, o mercado é quem traria a solução estrutural); a da perversidade, que advoga que elas só agravam o quadro existente (no nosso quadro, piorariam o desemprego, a miséria e a desigualdade); e a da ameaça, que esgrima que o custo de mudanças é elevado e compromete conquistas já obtidas (no caso em tela, os gastos públicos arruinariam o ajuste fiscal, entornando o remédio e seus benefícios).

O debate econômico acerca da linhagem liberal é rico, e há nuances importantes dentro dela, mesmo no cenário brasileiro atual. Mas, em momentos trágicos como o que vivemos, não se entende que muitos de seus membros, mais ortodoxos, questionem a validade de políticas públicas ativas nos campos social e econômico.

Pode-se discutir acerca do alcance da injeção de recursos: a gradação vai desde a escolha de regiões, setores e públicos-alvo até a distribuição irrestrita, que o heterodoxo Nobel de economia Paul Krugman defende e chama de “helicopter money” —imagem, aliás, lançada com viés mais crítico em 1969 pelo ultraliberal e também Nobel de economia Milton Friedman (1912-2006). Mas neste momento não cabe o discurso da futilidade, da perversidade e da ameaça que muitos liberais ortodoxos têm emitido.

E o fazem com alarido, o que cria um paradoxo com o conceito, do mesmo Hirschman, de “voice” (voz), contraposto ao de “exit” (saída). Enquanto esta é a recusa silenciosa, e predominantemente individual, a um produto ou a uma política, aquela se faz pela manifestação ruidosa e coletiva em prol de mudanças e de quebra de padrões.

E o que temos por aqui é, contraditoriamente, a retórica barulhenta de um grupo de economistas ortodoxos que escrevem, palestram e dão entrevistas altissonantes contra ações mudancistas e em defesa da inércia conservadora.

Enquanto isso, a pandemia segue matando, pela doença e pelo desemparo econômico e social, milhares de brasileiros.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

‘Estado brasileiro concentra renda e terá de ser repensado’, diz Eduardo Giannetti

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Para economista, crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Ele também avalia que o ritmo de recuperação será modesto diante do quadro de incertezas com a evolução da doença.

Por Luiz Guilherme Gerbelli, G1 – 01/06/2020  

O economista Eduardo Giannetti afirma que a crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Responsável por absorver 39% da renda nacional, o Estado brasileiro, segundo ele, tem atuado na direção de concentrar a renda e terá de ser repensado depois de superada a pandemia.

Num cenário que combina um quadro sanitário grave, aprofundamento da crise econômica e incerteza política, Giannetti avalia que a recuperação da economia será claudicante. “É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar apreensivos por algum tempo com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado”, diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao G1.

  • Qual avaliação que o sr. faz do momento atual da economia? 

Essa crise é totalmente diferente do que nós estamos acostumados a ver. Há duas diferenças. Primeiro, a crise vem de fora da economia. É um vírus, que conseguiu pular as espécies e entrar no ser-humano. A segunda característica diferenciadora é que não é uma recessão nem uma depressão. É um colapso. É uma parada súbita. Repentinamente a produção e o consumo se viram dramaticamente tolhidos pela necessidade de conter a propagação de um vírus letal.

  • E qual é o cenário que se desenha para a economia? 

Eu trabalho com três cenários e eles têm probabilidade distintas. Tem o cenário de recuperação vigorosa. Ou seja, ultrapassada a fase crítica da pandemia, a economia rapidamente retoma o nível de atividade pré-crise. O segundo cenário é de uma recuperação claudicante. É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar por algum tempo apreensivos com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado.

O terceiro cenário é de depressão. Se nós tivermos novas ondas sérias de contaminação, se as coisas pioram, podemos entrar num período longo de confinamento e falta de perspectiva, o que pode levar a economia para um período prolongado e muito abaixo do nível de normalidade.

  • Desses cenários, qual deve ser o mais provável para a economia? 

Os dois cenários extremos, de recuperação vigorosa e a prolongada depressão, são menos prováveis. Eu aposto nesse cenário que está se desenhando, de uma recuperação claudicante.

  • Além da questão sanitária, o Brasil ainda tem um agravamento do quadro econômico e lida com a incerteza política. Como o país sai dessa crise? 

O Brasil tem uma boa notícia na comparação com o mundo emergente: nós estamos com as contas externas muito equilibradas e robustas. Não temos obrigações em moedas estrangeiras que nos deixam vulneráveis. Nosso déficit em conta corrente é pequeno e vem sendo plena e confortavelmente financiado pelo investimento direto estrangeiro. Temos reservas cambiais e as nossas exportações estão se mostrando muito resilientes ao longo do coronavírus.

  • E o que fragiliza o Brasil? 

São duas coisas. Primeiro, a obscena desigualdade que prevalece na sociedade brasileira. São dezenas de milhões de brasileiros que vivem numa situação de extrema vulnerabilidade. São trabalhadores informais que vivem numa situação de completa precariedade, não tem uma situação regular de emprego. Vamos ter de pensar com muito mais seriedade, passada essa crise, como é que nós vamos, para começo de conversar, prevenir ou impedir que dezenas de milhões de brasileiros não tenham sequer uma situação regular de emprego. Isso não é normal, isso é uma aberração institucional brasileira.

  • E a segunda fragilidade? 

Está na política. O Brasil foi pego nessa tremenda emergência com uma presidência da República disfuncional, com um presidente que demite o ministro da Saúde em plena pandemia por discordar dele numa questão técnica. É alguém que acredita em pensamento mágico, alguém que quer resolver as questões na bravata e ainda se vê envolvido numa crise política de enormes proporções.

  • O que será necessário repensar do Estado brasileiro? 

O Estado brasileiro arrecada anualmente 33% do PIB em impostos. A nossa carga tributária bruta está fora do padrão para um país de renda média. O Estado brasileiro também gasta mais do que arrecada. O nosso déficit nominal, antes da crise sanitária, estava em torno de 6% do PIB. Estamos falando de 39% da renda nacional intermediada pelo setor público brasileiro.

  • E o que tem de ser feito para corrigir? 

O sistema brasileiro tributa desproporcionalmente quem menos pode pagar porque está calcado em impostos indiretos, que incidem sobre o consumo e a produção. Nós temos que redesenhar o sistema tributário.

Temos de repensar o modelo de Estado no Brasil, que é altamente centralizado no governo central. O dinheiro vai até Brasília para depois voltar para os entes federativos, que têm as atribuições de interesse dos cidadãos: educação, saúde, saneamento, segurança e transporte. O cidadão não tem a menor ideia de quanto paga de impostos da sua renda, não sabe para onde vai o tributo. Não existe cidadania tributária no Brasil. Não estou questionando o tamanho da carga tributária. Temos de colocar o Estado a serviço da grande maioria desassistida da população. É o grande desafio que temos de enfrentar necessariamente depois dessa crise. Essa crise escancarou essa realidade.

  • Essa vai ser uma cobrança da sociedade? 

Essa questão está amadurecendo na consciência da sociedade brasileira. Não posso garantir, mas eu acho que a sociedade vai ter de acordar para essa desfuncionalidade do Estado. Nesse ponto, a agenda da equipe econômica liderada pelo Paulo Guedes é correta. Menos Brasília, mais Brasil. O cidadão não mora no governo federal, mora no município. Ele tem de pagar impostos no município e receber recursos de volta, cobrando do município.

  • A agenda de reformas saiu do foco por causa da pandemia. Mas qual é o futuro dela? 

O Brasil estava saindo da emergência fiscal no momento em que foi atingido pelo coronavírus. Era o momento de começar a visualizar uma ancoragem fiscal e estava delineado um caminho em que a dívida pública como proporção do PIB se estabilizaria e passaria a declinar lentamente depois de algum tempo. Agora, o que está contratado, em função da crise, é um crescimento da dívida pública. Vamos sair dessa crise com alguma coisa ao redor de 90%, 100% do PIB de dívida pública.

  • É preocupante esse patamar de dívida pública? 

Não é uma situação inadministrável. O que tem de ficar claro é que mudou o patamar da dívida pública, mas ela não pode continuar crescendo no ritmo em que ela cresceu durante a crise. Vamos ter de garantir que ela se estabilize e, a partir daí, vamos repensar para saber como diminuir o tamanho da dívida em relação ao PIB. É uma questão de fluxo, não de estoque. E vai exigir atenção para que o fluxo não continue numa trajetória explosiva para o setor público brasileiro não quebrar.

  • Do que vai depender essa estabilização da dívida? 

Vai depender de uma série de esforços, da eficiência do setor público, manter juros baixos, uma reforma administrativa. Eu acredito que é importante essa contrapartida que o governo federal está exigindo dos estados de não reajustar salário de servidores por um bom tempo daqui para frente.