“Epidemia e Crise Social”. Artigo de José de Souza Martins.

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“As justificativas geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de 2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do descarte daqueles que não tiveram acesso a UTI, nem a tratamento, nem à recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção da riqueza social.

O peneiramento definirá a consciência política da crise”, escreve José de Souza Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34).
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Segundo o sociólogo, “quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade. A sociedade de setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de referência serão outros, seus sentimentos outros, suas crenças outras. O governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente”.

Esta epidemia a Covid-19 terá consequências socialmente duradouras, como já aconteceu, em várias sociedades, em outras situações de pânico e em situações de guerra. Nesses momentos, as insuficiências, fragilidades e limites de uma sociedade ficam expostos e motivam o despertar do lado crítico da consciência social.

Reinterpretações até radicais substituem a passividade do senso comum. Emerge a possibilidade de transformações sociais necessárias à correção dos problemas de organização da sociedade revelados pelas ocorrências inesperadas. Pandemias são expressões, também, da fragilidade social e da limitada durabilidade das estruturas sociais. Se elas não se renovam na vida cotidiana, se a sociedade não se reproduz, o vazio expõe os carecimentos radicais que promovem a revolução das inovações sociais profundas que possa resolvê-los.

Nossa sociedade ainda não se deu conta da extensão das mudanças sociais que decorrerão da pandemia, tanto na enfermidade quanto nas fantasias que alcançarão a mentalidade popular e as normas sociais com elas relacionadas. São as racionalizações para explicar o inexplicável, tentativas de senso comum para adivinhar causas e fatores das ocorrências e reagir a eles.

Tardiamente, descobriremos, em comparação com países prósperos, alcançados pela pandemia, que a cópia de modelo econômico aqui implantada em 1964 permitiu à economia brasileira produzir lucros de primeiro mundo graças à remuneração do trabalho de terceiro mundo. Relativizaram-se os direitos sociais, o que vem sendo completado no governo de Jair Messias. Implantou-se no país um capitalismo imprevidente e sem horizontes. O empresariado não é inocente nesse equívoco lucrativo, mas anticapitalista. Não foi capaz de construir um capitalismo que, para sê-lo, não pode ser imprevidente, não pode desconhecer o direito de todos a uma quota-parte dos frutos do trabalho social.

As justificativas geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de 2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do descarte daqueles que não tiveram acesso a UTI, nem a tratamento, nem à recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção da riqueza social.

O peneiramento definirá a consciência política da crise.

A pandemia nos dirá o que somos porque anulará a eficácia das máscaras sociais de que a sociedade moderna carece para parecer o que não é, para legitimar-se, desde que nelas acreditemos. A Covid-19 as derreterá. Nossa inautenticidade de sobrevivência será corroída pelo vírus invisível. O próprio rei já está nu.

Uma das várias consequências de desastres como esse é a de anular a relevância das certezas, mesmo de muitas certezas científicas. São desastres que anulam o sentido de normas e valores sociais, das referências da conduta costumeira.

A primeira tendência é a da desagregação da ordem social, o que, em decorrência pode desagregar a ordem econômica e a própria ordem política. É pouquíssimo provável que a sociedade contemporânea, como a conhecemos, sobreviverá ao poder destrutivo do vírus. De vários modos, a sociedade já será outra daqui a seis meses. Nesse meio tempo, terá ela inventado novas regras sociais, novos hábitos, redefinirá prioridades. Relativizará referências que nos regulam há, pelo menos, três gerações. O que valia ainda no outro dia já terá deixado de valer. O modo de vida de classe média a que estamos acostumados, nestas horas, já estará reformulado.

A raiva de classe média que sustentou a irresistível ascensão de Jair Messias ao poder terá sido derrotada pelos sentimentos comunitários que estão renascendo intensamente sobre as cinzas da sociedade que renunciou aos seus deveres na eleição de outubro.

Quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade. A sociedade de setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de referência serão outros, seus sentimentos outros, suas crenças outras. O governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente. Isso valerá tanto para o presidente da República, quanto para senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais.

Sob outro tipo de catástrofe, algo parecido já havia derrubado o petismo. O escândalo do mensalão corroeu a base moral do PT e do sistema partidário. Apesar das reeleições, tanto de Lula em 2006, quando de Dilma, a sociedade já se distanciara deles, o que se evidenciou nos movimentos de rua de 2013. Bolsonaro também poderá provar o gosto da ruptura agora.

‘Uberização’ do trabalho. Entrevista com Ricardo Antunes.

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O sociólogo Ricardo Antunes é um incansável pensador sobre o mundo do trabalho. Pós-doutor pela Universidade de Sussex (Inglaterra) e professor titular de Sociologia do Trabalho na Unicamp, perdeu a conta dos artigos científicos, capítulos, e, claro, livros lançados no Brasil e no exterior ao longo de sua carreira acadêmica. Publicações em que aprofunda análises sobre as dinâmicas, contradições e opressões do mercado de trabalho nas últimas décadas.

O livro mais recente tem no título o que pode ser tomado, dentro de uma relação de trabalho, como uma ironia ou provocação ao lado mais forte da corda (o do empregador), em razão das agruras a que vem submetendo o lado mais fraco dela (naturalmente, o do empregado). Relação, a propósito, em condições flagrante e abertamente desequilibradas, dada a situação dos agonizantes direitos trabalhistas, atacados em múltiplas frentes, sobretudo nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro (mas com balões de ensaio ainda nos anos de Collor e FHC).

A entrevista é de Heitor Peixoto, publicada por Congresso em Foco, 25-07-2019.

A obra é “O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital”, lançado pela Boitempo Editorial. A primeira parte do título, a tal provocação mencionada acima, é citação literal garimpada do escritor e filósofo Albert Camus. No livro de Antunes, é como uma alegoria sobre a situação vivida por um número crescente de trabalhadores no Brasil, especialmente aqueles que vêm se agarrando ao precário trabalho em aplicativos como Uber, Cabify, Rappi e tantos outros, para mover o pescoço acima do pântano do desemprego crônico e persistente nos últimos cinco anos.

Em tempos do que o sociólogo chama de “uberização” do trabalho, “se homens e mulheres tiverem sorte hoje, o seu trabalho será precário”. Serão servos, e isso ainda assim será um privilégio, em comparação com o desastre ainda maior, que é o do desemprego.

Foi neste julho friorento que Antunes deu uma pausa em suas férias acadêmicas para, literalmente, falar de trabalho, nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.

Eis a entrevista.

O livro expõe as vísceras do que chama de “uberização” do trabalho, processo que talvez devesse suscitar um urgente debate sobre consciência de classe, dada a precarização a que esses trabalhadores estão submetidos. Mas como fazer esse debate e promover uma luta contra esses efeitos, quando esse trabalho precarizado é tudo o que restou para tantos trabalhadores brasileiros?

Essa forma que nós hoje denominamos como “uberização do trabalho” é o mascaramento de relações assalariadas, que assumem a aparência do trabalho do empreendedor, do trabalho do prestador de serviços, dos trabalhos desprovidos de direitos.

Nós vimos recentemente a morte de um trabalhador que estava entregando alimentos do Rappi. Quando ele começou a se sentir mal, não teve nenhum tipo de atendimento digno dentro da empresa para a qual estava entregando aquilo que foi solicitado a essa empresa, não teve atendimento por parte do serviço público de saúde, e essa é a tragédia dos trabalhadores, digamos assim, “uberizados”.

São trabalhadores que seguem o que na Inglaterra se chama “o contrato de zero hora” (“zero-hour contract” em inglês; ou os “recibos verdes” em Portugal; ou o que existiu na Itália até 2017: o trabalho pago por voucher). São modalidades de trabalho intermitente, em que os trabalhadores são chamados a trabalhar, e só recebem por aquelas horas que trabalham. O tempo que eles ficam esperando, eles não trabalham.

Os direitos desaparecem, porque se desvanece a figura do trabalhador ou da trabalhadora, e se faz aflorar a falsa ideia de um empreendedor, de um PJ, de um trabalhador que é dono do seu instrumental de trabalho, e isso faz com que a degradação da vida no trabalho no capitalismo do nosso tempo chegue a um patamar que se assemelha, em plena era informacional-digital, à era da revolução industrial.

É por isso que eu digo no meu livro que nós estamos vivendo uma era de escravidão digital. O mundo maquínico informacional-digital, ao invés de trazer a redução do tempo de trabalho, as melhores condições de trabalho, mais tempo de vida fora do trabalho, menos penúria no trabalho, tem sido o oposto.

Por quê? Isso é muito importante: porque se trata de uma tecnologia que não tem valores humanos ou societais. O mundo informacional do nosso tempo, do qual a indústria 4.0 é o seu pretenso ápice, não tem um sentido humano ou societal, e sim um sentido de valorizar, ampliar a riqueza das grandes corporações.

O resultado disso é que nós temos uma heterogeneidade muito grande do trabalho, mas com um traço em comum: a homogeneização que caracteriza esse mosaico de trabalhos distintos, que é a tendência à precarização. Esse vai ser, digamos assim, o ponto mais importante nas lutas do nosso tempo.

Nós vimos em maio deste ano uma primeira paralisação, uma primeira greve de amplitude global dos trabalhadores e das trabalhadoras da Uber. Naturalmente, que ninguém possa esperar que a primeira greve seja a mais potente de todas, mas ela é um exemplo de descontentamento frente a esse tipo de trabalho. Os trabalhadores e as trabalhadoras sabem que para sobreviver trabalhando numa empresa como Uber, Cabify, 99, Rappi e todas as outras que nós não paramos de ver crescer, eles têm que trabalhar 10, 12, 14, 16, às vezes 18 horas por dia. Isso coloca uma questão fundamental: não é possível aceitar.

E como é que é possível lutar contra esses efeitos?
Primeiro: retomar as questões vitais. O trabalho deve ter, na medida em que ele se constitui numa atividade vital, elementos de dignidade, que essa nova modalidade de trabalho não apresenta. Segundo: não é possível aceitar a corrosão, a derrelição, a devastação cabal dos direitos do trabalho.

Nós acabamos de ver no Congresso essa medida horrorosa da chamada liberalização econômica, em que, de sopetão, algumas dezenas de artigos da CLT estão sendo fraudados novamente. O Brasil está se convertendo numa Índia. Esse monumental país da Ásia, com mais de um bilhão de habitantes, tem centenas de milhões de trabalhadores desempregados. E mais: a Índia tem um contingente imenso de indivíduos que estão abaixo da linha mínima da dignidade humana. São pessoas que vivem um padrão de vida típico de um indivíduo que tenta sobreviver na indigência.

O Brasil caminha tragicamente para esse quadro de indigência que tipifica a Índia, e não é por acaso. Tanto lá na Índia como aqui, há uma burguesia riquíssima, que não tem limites em se expandir. Basta dizer que os cinco maiores e mais ricos empresários brasileiros recebem uma renda que se aproxima àquela que é produzida por 100 milhões de pessoas no mesmo país. É esse nível de tragédia social que nós não podemos aceitar.

Na obra, você mostra que também a classe média estaria num processo de corrosão, que a aproxima mais do proletariado do que da elite, dando como exemplo profissões outrora elitizadas, mas que já começaram a enfrentar a precarização (como médicos e advogados). A falta de consciência de classe também está presente entre esses?

A primeira questão importante aí é que a consciência de classe é algo que articula elementos objetivos e subjetivos. Por exemplo: a “uberização” do trabalho leva à fragmentação, à intensificação do trabalho, à exploração, à individualização, mas, num dado momento, esse processo, essa intensidade, esse ritmo e essa superexploração do trabalho acabam gerando formas de solidariedade, de sociabilidade, que resultaram, em meados de maio deste ano, na primeira paralisação global da Uber.

As classes médias são um contingente social heterogêneo. As classes médias mais altas, que vivem estritamente do trabalho intelectual, já não têm mais as mesmas condições sociais do passado. Hoje você tem médicos que estão proletarizados, que trabalham em várias empresas fornecedoras de serviços de saúde (convênios). Nós temos advogados hoje que trabalham como “sócios” de escritórios. Se eles não levam trabalho para esse escritório e não realizam esses trabalhos, não recebem. É uma espécie de trabalhador que tem que buscar o seu trabalho. Para poder vendê-lo. Para depois poder sobreviver.
Tudo isso cria dificuldades com relação à consciência de classe. Ela decorre também do espírito do tempo, e o espírito do nosso tempo é de devastação, de contrarrevolução, de neoliberalização, de financiarização. Nós estamos vivendo uma etapa difícil da história mundial.

Os anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e especialmente o ano de 2013 foram de rebeliões. Começou pela Tunísia, esparramou-se por todo o Oriente Médio, Egito e tantas outras partes; rebeliões na Europa, como na França, na Inglaterra, na Grécia, em Portugal, na Espanha; o Occupy Wall Street nos EUA. Houve um conjunto de descontentamentos, revoltas e rebeliões.

De algum modo, [os atos] foram se escasseando, foram se exaurindo, e, a essa era de rebeliões, sucedeu-se uma era de contrarrevoluções. Isso se expressa politicamente na vitória da direita e da extrema-direita em várias partes do mundo, como um desencanto com o período anterior. Não é a direita que está sendo vitoriosa. É a extrema-direita, como nós estamos vendo inclusive no caso brasileiro.

Ainda no seu estudo, vemos que Collor e FHC tentaram promover alterações mais profundas na legislação trabalhista e não conseguiram. O que faltou aos dois em suas respectivas conjunturas, e que, adiante (no caso, nesses últimos anos), deixou de ser obstáculo às medidas rumo à precarização?

Collor e Fernando Henrique Cardoso foram vitoriosos (eleitoralmente) em um outro momento da história. Foram governos subsequentes à ditadura militar. Como sabemos, o primeiro governo foi de Sarney, uma espécie de governo inusitado, tampão (porque Sarney não foi eleito; quem foi eleito pela via indireta foi Tancredo Neves), mas Collor e Fernando Henrique tentaram introduzir o neoliberalismo no Brasil e, consequentemente, essas reformas nefastas, e havia naquele período um sentimento antineoliberal muito importante aqui.

Na década de 1980, houve no Brasil os mais altos níveis de greves, inclusive comparado a outros países. Esse movimento dos anos 80 constituiu uma barreira importante para Collor: esse governo grotesco, esse neoliberalismo completamente irracional no seu modus operandi, essa irracionalidade, tudo isso fez com que em dois anos esse governo desaparecesse. O impeachment o levou de roldão. E o Fernando Henrique Cardoso subiu para implantar um neoliberalismo racional, mas ele sofreu também muita oposição.

O que é diferente em relação ao período atual? Vamos pegar o governo Temer e agora Bolsonaro: é uma era de contrarrevolução preventiva de amplitude global, de neoliberalismo extremado, de financeirização sem limites da economia, de devastação dos direitos sociais. É o fim de qualquer experiência de conciliação de classes. E este cenário – a vitória de Trump nos EUA; o Brexit na Inglaterra; a Le Pen quase ganhando as eleições na França, e Macron conseguindo derrotá-la porque contou com o apoio dos votos do centro e da esquerda, temerosos que estavam, com medo de um governo fascista como Le Pen; a vitória de um governo protofascista na Hungria; a expansão do neonazismo na Alemanha e em várias outras partes do mundo -, todo esse cenário favoreceu com que o neoliberalismo extremado vivesse o seu período de ataque frontal.
A diferença é essa: aquele primeiro momento, com Collor e Fernando Henrique, era uma época de avanço contra o neoliberalismo. Agora, nós estamos vivendo uma era de contrarrevolução, que quer aprofundar um liberalismo extremado.

No meio desses modelos neoliberais que já comandaram o país, tivemos na primeira década do século a ascensão de governos do PT no plano federal, partido nascido da classe trabalhadora. Você fala em avanços e recuos ocorridos nos governos petistas. Quais são eles?

Eu procuro trabalhar mais detalhadamente esse tema no meu livro. O PT nasceu talvez como o mais importante partido de massas, de esquerda, na América Latina, e que tanta influência teve em tantos países do mundo. Mas entre os anos de nascimento do PT – a sua primeira década – e o que veio depois, pouco a pouco o PT foi deixando de ser um partido de classe e de massas, para se tornar um partido adequado ao processo eleitoral. E quanto mais ele adentrava no processo eleitoral e fazia uma mutação – metamorfoses para se tornar palatável, aceito pela ordem no Brasil -, mais ele perdia o vínculo original de classe.

De tal modo que o PT que ganhou as eleições em 2002 é muito diferente do PT que perdeu as eleições em 1989. O que ganhou tinha em suas propostas a “Carta aos Brasileiros” que deixava claro que os bancos não teriam que ter nenhum receio com relação ao governo do PT. E assim foi. Foi essencialmente um governo de conciliação de classes, um governo que trouxe avanços, é inegável, especialmente durante os dois primeiros governos Lula (especialmente o segundo governo) e parte do primeiro governo Dilma.

Mas a partir de um dado momento, quando a crise econômica global atingiu o Brasil (a partir de 2013), a devastação aqui foi de grande monta. Aliás, as rebeliões de 2013 sinalizaram isso, e o governo Dilma foi incapaz de entender que o descontentamento que ali emergia tinha similitudes com esses descontentamentos que estávamos vivenciando em várias partes do mundo.

O resultado, isso é muito triste, mas é importante constatar: o governo do PT, mesmo criando 20 milhões de empregos, o Bolsa Família, e trazendo um pequeno mas relativo aumento salarial, especialmente quando comparado ao do governo Fernando Henrique Cardoso, no conjunto das suas medidas, das suas ações, não trouxe nenhuma mudança estrutural significativa. A estrutura concentrada da terra se manteve, mas o governo do PT foi um enorme incentivador do agronegócio – o Lula chegou a dizer, pasmem, que os grandes heróis brasileiros eram os donos do agronegócio (eu espero que ele tenha se arrependido profundamente dessa frase, dado o absurdo que ela significa, e o que se passou com o [próprio] Lula depois). E nenhum interesse financeiro foi tocado.

O Lula também disse que nunca os bancos tinham ganho tanto dinheiro como no seu governo. E ele tinha razão. Só há um equivalente ao lucro bancário quando a ditadura militar também veio e o incentivou. Foi o primeiro salto financista no Brasil. Sob o governo Lula, os bancos se expandiram, bem como a indústria da construção civil e várias outras, com os vários projetos do BNDES, de incentivo ao empresariado brasileiro. Favoreceram a transnacionalização de alguns setores da nossa burguesia, que entraram no mercado externo.

Foi inclusive essa simbiose entre os governos do PT (especialmente sob Lula) e esse empresariado que se expandiu, que fez com que, aos poucos, o PT adentrasse num terreno do qual ele sempre foi crítico, que foi o terreno da corrupção. Todos nós sabemos que a corrupção não nasceu com o PT. Todos nós sabemos que a corrupção sempre foi o espaço preferencial da direita, da centro-direita e dos partidos burgueses.
Por certo, é verdadeiramente uma tragédia que, num dado momento, um partido de esquerda como o PT tenha sido partícipe dessa tragédia da corrupção, que foi um dos elementos que levaram, inclusive, à sua derrota e ao impeachment da presidente Dilma. Nós sabemos que esse impeachment se deu não pela chamada corrupção, mas quando, na crise de 2013 para cá, aos poucos os interesses da burguesia começaram a ser afetados.

Num momento de crise, a primeira decisão das nações burguesas é “vamos jogar o ônus da crise em cima da classe trabalhadora”. O que estão fazendo [agora], e que o governo Temer fez por excelência. Todas as medidas do Temer eram de um verdadeiro governo terceirizado. Temer foi posto por um golpe, para começar a devastação social no Brasil que o governo de conciliação do PT não podia fazer nessa intensidade. E isso fez com que o quadro se modificasse profundamente.

Então, as vantagens ocorreram: aumento de emprego, melhor política salarial, mas as questões estruturais não foram afetadas, seja no plano da estrutura agrária, financeira, urbana, da política de transporte coletivo, da saúde pública e de um conjunto de outros elementos com os quais, em 2013, com as rebeliões, nós víamos a população manifestar um enorme descontentamento.

Mesmo com toda a aridez da realidade que traz em seu livro, você demonstra algum otimismo, ao dizer que não imagina que a história do trabalho terminará nos parâmetros de hoje. Que horizonte vislumbra à frente e, antes disso, como os trabalhadores de agora conseguirão vencer essa conjuntura tão nefasta?

O genial dos processos históricos, da construção humana ao longo da história, é que ela é imprevisível. Nós tivemos depois da era das trevas da Idade Média um período espetacular do Renascimento. Depois da era feudal, do obscurantismo da igreja durante a Idade Média, dos governos absolutistas profundamente autocráticos, nós tivemos a Revolução Francesa, com a liberdade, a igualdade e a fraternidade, com lutas sociais. Depois do fracasso da Revolução Francesa, nós tivemos as revoluções de 1848 e a eclosão da Comuna de Paris, em 1871.

Ou seja, a história é imprevisível, e não é possível que no caso brasileiro, 30 milhões de trabalhadores sem emprego ou com emprego precarizado, uma taxa de informalidade explosiva, uma corrosão completa dos direitos sociais, a perda dos direitos previdenciários… É impossível imaginar que essa sociedade não tenha força para se rebelar.

Que horizonte eu vislumbro? Florestan Fernandes falava de uma era de contrarrevolução preventiva (quando não há o risco das revoluções). É o período em que as classes dominantes se reorganizam e fazem uma era de devastação. Mas também a era das contrarrevoluções é finita.

Não há na história um período eterno. E o que é mais importante: nós adentramos em uma nova era de lutas sociais de tipos diferentes. Nós não temos mais a mesma classe trabalhadora que tínhamos nos séculos XVIII e XIX, seja nos EUA, seja na Europa, seja na China, seja na Índia, seja no Brasil. Mas nós temos uma nova morfologia da classe trabalhadora, em que, por exemplo, a explosão do proletariado de serviços da era digital é o elemento quantitativa e qualitativamente mais importante.

Esse novo proletariado de serviços das empresas de call-center, telemarketing, hipermercados, fast-food, indústria de turismo, indústria hoteleira, motoboys; essa massa de trabalhadores que hoje está uberizada, trabalhando em empresas sob as condições mais violentas; é evidente que está nascendo aí um novo contingente heterogêneo dentro da classe trabalhadora, e que vai ser responsável por muitas lutas sociais.

Para quem olha a história, não para os últimos cinco anos, mas olha a história por um longo e amplo período, para quem olha a história na amplitude que ela tem, a história não é nem linear, nem estável, mas o mais espetacular dela é a sua imprevisibilidade.

Quem podia imaginar que a China, um país enorme, que fez uma revolução camponesa e popular em 1949, liderada por um partido comunista, e que num primeiro ciclo tentou instaurar um modelo autárquico, fechado, depois de 20 ou 30 anos passasse por um processo que fez com que se tornasse um país que hoje disputa no mundo global o papel de grande potência capitalista? Eu não vou discutir aqui o caráter da China, mas imaginar que a China seja hoje uma potência socialista… É preciso uma dose razoável de otimismo para ver o socialismo onde a exploração do trabalho é intensa, a destruição ambiental é intensa, as lutas sociais são intensas…

Ou seja, o mundo é imprevisível. É isso que permite que o otimismo seja um traço da minha perspectiva, mesmo quando a análise que eu faço do cenário global seja dura e pessimista.

Você é um crítico agudo do capitalismo, atribuindo a ele “a tragédia do desemprego, da destruição ambiental, do risco iminente de guerras mundiais, da propriedade privada das grandes corporações” e de outras mazelas. Por que, contudo, o grupo que exalta esse modelo saiu tão fortalecido das últimas eleições? E por que o socialismo continua sendo visto de maneira tão negativa por parcelas tão numerosas da sociedade brasileira?
O capitalismo vive um momento vitorioso? Vive. Por quê? Porque nós tivemos neste último período, especialmente o período que eu chamei “a era das rebeliões”, um refortalecimento do capitalismo pela via da extrema-direita.

É um período de contrarrevolução de amplitude global, em que houve um desgaste das chamadas experiências “socialistas”, não só o “socialismo” da URSS, do leste europeu, da Coreia, da China, e aí há uma imprecisão na social-democracia europeia: no Partido Socialista francês, desde Mitterrand até Hollande, em todos os governos que foram “socialistas”, não houve nenhuma mudança substantiva da sociedade francesa. O governo “socialista” na Inglaterra, desde o antigo Labour Party(o antigo Partido Trabalhista inglês), até o período do New Labour, com Tony Blair, foi uma vertente branda do neoliberalismo, ou, como eu costumo chamar, uma vertente social-liberal.

Ou seja, em nome do socialismo, práticas capitalistas no fundo neoliberais foram feitas.
O mesmo se passou na América Latina. O governo Lula, eu não caracterizo como um governo socialista. Foi um governo social-liberal. Os pilares fundamentais da política econômica do governo Lula foram neoliberais. Não é por acaso que teve um papel proeminente no governo Lula o ministro Meirelles, que foi chamado para ser presidente do Banco Central, e que tinha sido até pouco tempo antes presidente mundial do Banco de Boston. Isso fala por si só.

Ou seja, aquele pêndulo eleitoral que é muito presente na Europa (partido conservador e partido liberal, ou partido democrático, ou partido socialista); nos EUA (partido democrata e partido conservador); na Inglaterra (Labour Party e o “tories”, o partido conservador); na França (o partido de “esquerda” e o partido de direita). Esse pêndulo levou a um desgaste profundo. As democracias do capital se mostraram incapazes de preservar as conquistas sociais, por exemplo, dos países do Welfare State [estado de bem-estar social].

Então, o cenário é muito complicado. E as revoluções socialistas também fracassaram. Quase todas as experiências socialistas foram fracassadas. Isso é uma evidência. De tal modo que o socialismo tem que ser reinventado. E ele será reinventado a partir de uma autocrítica profunda das suas experiências anteriores.

Por que que ele é mal visto no Brasil? Porque a extrema-direita que venceu as eleições em vários países (nos EUA; na Hungria; nas Filipinas; tem um primeiro-ministro na Itália de claro traço fascista; no caso brasileiro, não paira dúvida de que o grupo vitorioso foi a extrema-direita) jogou em cima desse quadro muito caótico do nosso tempo, de contrarrevolução, de medo de perda de emprego, de ódio ao imigrante, de ódio ao estrangeiro, de ódio aos, digamos assim, chamados “vermelhos”.

Você imagina: o governo do PT não tomou nenhuma medida socialista no Brasil, não há nenhuma medida que aproxime levemente o governo do PT ao socialismo, não há nenhuma medida tomada pelos governos no Uruguai, no Chile, no período de centro-esquerda desses países, que poderia ser chamada de medidas socialistas. Nem a mais remota. Mas estamos vivendo uma era tenebrosa, das trevas.

Ela vai passar, mas a contrarrevolução tem que criar alguns dos seus inimigos. E o que é essa era de contrarrevolução? Ela é impulsionada por uma trípode destrutiva: 1) uma reestruturação permanente do capital, que cria essa mutação tecnológica ilimitada; 2) o neoliberalismo extremado; e 3), que é o mais importante (e isso é passageiro na história, mas é um período de hegemonia): do mais parasitário, da mais destrutiva de todas as formas do capital, que é o capital financeiro.

Se houve um momento em que o neoliberalismo estava abaixo do nível mais baixo da fossa, agora é um momento de hegemonia da aberração neoliberal. A história é imprevisível, para um lado e para o outro. E é dessa imprevisibilidade que há momentos de ascensão e mesmo de hegemonia de valores de esquerda, e há momento de ascensão e de hegemonia de valores e de aberrações da extrema-direita.

Você aponta a inviabilidade do modelo de trabalho intermitente, por não permitir qualquer perspectiva de futuro. E por falar em futuro, estamos no auge dos debates sobre reforma da previdência. Que leitura faz do projeto em tramitação no congresso? Ele permitirá alguma saída para o país, como defendem seus autores, ou intensificará as mazelas do mercado de trabalho adiante?

Não paira nenhuma dúvida nesse ponto. A chamada “Nova Previdência” é o fim da previdência pública no Brasil. Ela é a expressão mais pura de um projeto cujo objetivo principal é tirar do Estado a obrigatoriedade de um sistema previdenciário minimamente digno e justo. Transferi-lo para o mercado, pela via medonha da capitalização, e, desse modo, fazer com que os trabalhadores e as trabalhadoras tenham que pagar, sem a presença do patronato e sem a presença do Estado. Pela via da capitalização, como se os trabalhadores e as trabalhadoras pudessem fazer poupanças “poupudas” para o seu futuro, se quiserem ter previdência. [Nesse ponto, Ricardo Antunes lembra que a proposta da capitalização está, por ora, afastada, mas não duvida de que a ideia possa ser recuperada adiante].

É evidente que há um ponto crucial nessa reforma, que é pouco tratado: se no Brasil, expande-se hoje o trabalho intermitente; se no Brasil, generalizou-se o trabalho flexível; se no Brasil, generalizou-se o espaço da terceirização, que é, em si e por si, o espaço da burla, como é que eu posso imaginar que os trabalhadores e as trabalhadoras mais pobres, das cidades, do campo, possam tirar recursos para capitalizar, para fazer uma poupança capitalizada? Quantos anos os trabalhadores terão que viver para se aposentar, se o seu trabalho é intermitente? Se ora trabalha e ora não trabalha? Quantos anos vão ter que trabalhar, ou vão ter que pagar sem receber?

Então, a reforma da previdência na verdade é o fim da previdência pública no Brasil. As classes médias vão se virar com a capitalização, e as classes ricas, as classes burguesas, essas não precisam de previdência. A sua previdência está garantida pelos bancos que têm, pelas indústrias, pelas fazendas, pelas fábricas, pelo comércio, pelas propriedades em geral que têm.

O elemento mais nefasto dessa reforma é como tornar previdente o trabalho intermitente. É evidente que essa reforma não trata disso. Ela já foi alterada pelo Congresso, mas é um Congresso de maioria neoliberal. Aliás, essa é a “grande qualidade” do [Rodrigo] Maia. O Maia se mostra um político competente, de alma neoliberal, e por isso é que ele está sendo um batalhador da reforma que nasceu das mãos – ou dos pés – do Guedes.

Nós estamos num quadro e num momento difícil. Mais uma desmontagem que nós estamos vivendo no Brasil. Entre tantas outras.

Você diz que o livro é uma resposta a um conjunto de mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho nas últimas quatro décadas. Que mudanças são essas, e, mais do que isso, que resposta a sua análise nos traz?

As mudanças que vêm ocorrendo no mundo do trabalho decorrem de um processo que se inicia com a crise estrutural de 1973, portanto, algumas décadas atrás, quando o padrão taylorista e fordista (a grande fábrica, a grande indústria, a grande empresa, que teve vigência e dominância no século XX) entrou em processo de crise profunda.

Ela foi substituída pela concepção de uma chamada “empresa enxuta” (em inglês, “lean production”). Uma empresa onde cada vez mais o trabalho vivo é retraído, e cada vez mais se expande o trabalho morto, o maquinário informacional digital. E a partir daí, desenvolve-se um processo de computadores, smartphones, essa miríade de equipamentos do chamado mundo informacional digital, que não para de se expandir, porque ele é comandado pelo capital financeiro e pela necessidade das grandes corporações globais. Dez, quinze, vinte grandes corporações globais, que impulsionam esse processo, naquilo que o Karl Polanyi chamava de um “moinho satânico”, e o resultado disso é o plano da classe trabalhadora em escala global: mais informalidade, mais flexibilidade, mais precarização.

A indústria 4.0, por exemplo, que é a proposta que está sendo hoje apresentada em todos os cantos do mundo vai consolidar esse projeto. Tal como ela está sendo proposta, ela terá como consequência a criação de um núcleo pequeno de novos trabalhos, aqueles mais sintonizados com as tecnologias de informação e comunicação, e uma destruição em massa, em escala monumental, profunda nos países capitalistas do norte e mais profunda ainda nos países capitalistas do sul, daquele conjunto de empregos que vão ser substituídos pela internet das coisas, pela inteligência artificial, pela impressão 3D, pelo big data, ou seja, esse arsenal tecno-informacional-digital, que, se fosse voltado para o atendimento das necessidades humano-sociais, teria uma resultante. Mas a finalidade desse processo é, na verdade, o avanço das grandes corporações.

Eu dou um exemplo: a disputa entre a chinesa Huawei e a Apple norte-americana. Em que isso afeta a humanidade? E o que de positivo isso traz para a humanidade? Nada. É uma disputa entre quem vai dominar o mundo informacional digital, o mercado consumidor dos smartphones nos próximos anos. E isso, digamos assim, não tem significado humano ou societal de grande amplitude.

“Pandemia democratizou poder de matar” segundo Achille Mbembe.

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Diogo Bercito
FSP – 31/03/2020

O coronavírus está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Ao sair de casa, afinal, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Já há mais de 775 mil casos confirmados e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”, Mbembe afirma. “O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder”.

Mbembe, 62, é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo “necropolítica”. Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá —e de que maneira viverão e morrerão.

Ele leciona na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Na sexta-feira (27), a África do Sul registrou as primeiras mortes pelo coronavírus.
A necropolítica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todas as pessoas de uma maneira igual.

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtividade.

“Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida”, disse o brasileiro recentemente.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado”.

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia? Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavírus é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar…

E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando. Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte? Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamento. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outras pessoas também se isolarem? Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incineradas ou enterradas imediatamente, sem demora.

Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidamente possível.
Essa lógica de descarte ocorre justamente em um momento em que precisamos, ao menos em tese, da nossa comunidade. E não existe comunidade sem podermos dizer adeus àqueles que partiram, organizar funerais. A questão é: como criar comunidades em um momento de calamidade?

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade? A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.
Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa. Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratizado. O isolamento é precisamente uma forma de regular esse poder.

Outro debate que evoca a necropolítica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorização do resgate da economia. 

Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexuais, usuários de droga? 

Na teoria, o coronavírus pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados. Mas uma coisa é estar confinado num subúrbio, numa segunda residência em uma área rural. Outra coisa é estar na linha de frente. Trabalhar num centro de saúde sem máscara. Há uma escala em como os riscos são distribuídos hoje.

Diversos presidentes têm se referido ao combate ao coronavírus como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolítica. 

Existe dificuldade em dar um nome ao que está acontecendo no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados em todo o mundo retomar as antigas terminologias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalismo durante esta pandemia? 

Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalistas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes? 

Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo. O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida.

Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

ACHILLE MBEMBE, 62
Filósofo e cientista político camaronense, é formado em história na Sorbonne e em ciência política no Instituto de Estudos Políticos. Lecionou nas universidades Columbia, Yale e Duke; é atualmente professor na Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo. É conhecido pelo ensaio “Necropolítica”, publicado em 2003, em que discute como governos escolhem quem vive e quem morre; escreveu também sobre o pós-colonialismo no continente africano.

Quem elogia tortura, admira torturador, não se coloca no lugar do outro, diz Miriam Chnaiderman

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Para psicóloga e psicanalista, está faltando total empatia ao presidente Bolsonaro durante a pandemia de coronavírus.

Claudia Collucci – FSP, 30/03/2020

O isolamento social e toda a angústia gerada pela pandemia do novo coronavírus trazem à tona o melhor e o pior do ser humano. De um lado, muitas pessoas com gestos de empatia e solidariedade, do outro, outras tantas com atos de egoísmo, falta de compaixão.

Para a psicóloga e psicanalista Miriam Chnaiderman, professora do Instituto Sedes Sapientiae, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem minimizado a pandemia e defendido isolamento só para idosos e grupos de risco, enquadra-se no segundo grupo.

“Falta total empatia. É uma coisa absolutamente autorreferente. É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro”, afirma ela, também documentarista e doutora em artes pela USP.
Segundo Chnaiderman, esse é o momento em que todos os fantasmas internos se concretizam. “A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real. É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia.”

Na opinião da psicanalista, as pessoas precisam aceitar a condição de vulnerabilidade e descobrir truques para lidar com essa angústia, caso queiram preservar a saúde mental nesse período tão exigente. 

“Fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários e contar sobre essa experiência. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento”, afirma.

Como a empatia pode ajudar a passar pela pandemia do novo coronavírus? Só empatia junto com a solidariedade é capaz de nos mover e nos ajudar a superar todas as restrições que estão sendo impostas. A gente não escolheu isso. As pessoas se sentem violentadas de não terem escolhido não sair de casa. Mas a gente está fazendo isso, acima de tudo, pelo outro.

O filósofo Max Scheller (1874-1928) diz que a empatia é um ato mediante o qual se realizam a percepção e compreensão do estado de alma de um outro. Por essa razão, condiciona todas as formas de compaixão. Para se ter compaixão de alguém, é necessário conhecer antes o sofrimento do outro.

Esse isolamento social então é uma oportunidade para exercer a empatia? Estão acontecendo gestos incríveis, a empatia que move a vizinhança toda se mobilizar para comemorar o aniversário de uma senhorinha lá nos EUA, ou de uma menininha num condomínio aqui de São Paulo. Ou mesmo tudo o que se cria num panelaço ou nos aplausos aos funcionários da saúde. Você precisa se colocar no lugar do outro.

Têm coisas muito bonitas acontecendo, vizinhança se mobilizando, os mais jovens se oferecendo para comprar coisas aos mais velhos.

É muito novo isso no Brasil. A gente está sendo obrigado a acolher aquilo que não acolhe, como a velhice e a doença.

Por outro lado, aparece também o pior do ser humano nesses momentos. Como gente estocando papel higiênico ou álcool em gel… Sim, é uma coisa atroz, total falta de empatia, total egoísmo, vou pensar só em mim, que se arrebente o outro. As pessoas não percebem que se o outro se arrebenta, você se arrebenta junto também.

Essa coisa do papel higiênico, só a psicanálise mesmo para interpretar. É a fantasia de que se você tiver como limpar aquilo que sai do corpo como sujeira, você não vai adoecer. É uma falência das mediações entre os instintos, as pulsões e o mundo simbólico.

Vivemos num país de muita desigualdade social, intolerância e ataques a minorias. Você vê nessa crise alguma chance de as pessoas reverem valores e comportamentos? Não sei. Depois dessas falas do presidente Jair Bolsonaro, soube de bairros onde as pessoas estão fazendo campanha para sair para as ruas, para acabar com o isolamento. É um discurso que exacerba isso tudo.

Têm pessoas mobilizadas para ajudar travestis, moradores de rua. Mas essas pessoas que saíram comprando feito malucas estão pensando nelas e pronto. Toda essa questão aparece na postura do presidente de só pensar nos negócios e não as pessoas.

Falta empatia ao presidente? Falta total. É uma coisa absolutamente autorreferente, que quer o poder a todo custo, que pensa só na reeleição. É o neoliberalismo e o egoísmo que ficam em questão com o que está acontecendo. É uma explosão de uma coisa terrível que já vinha acontecendo e que se concretiza nessa pandemia.

Tem muita gente falando numa ruptura no jeito de governar, de conduzir a vida. Se você não tem o que a gente chama de empatia, se não é tocado por um mundo que não é o seu, é terrível.

É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro. As pessoas morrem de medo de se colocar no lugar do outro porque se sentem frágeis, se sentem podendo elas degringolarem, de ficarem sem nada.

Nessas horas de tanto medo muitos fantasmas saem do armário, certo? É um momento bem delicado porque todos os fantasminhas internos que todos nós temos estão concretizados numa realidade. A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real.

É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia. As pessoas que eu tenho ouvido não estão conseguindo ler, estar com elas mesmas. Ou grudam na televisão, na internet, ou ficam limpando a casa o dia todo.

Atividades como ouvir música, ver aquele filme que você sempre teve vontade, mas não teve tempo estão sendo difíceis de acontecer. Trabalhar com essa angústia de morte te exaure, te suga. As pessoas não dormem bem.

A história mostra que depois de grandes catástrofes podem surgir coisas boas. Após a peste negra, por exemplo, veio a Renascença. Pode sair coisa boa depois da pandemia de Covid-19? Poder, pode. Mas não sei se há uma mobilização para isso. A gente está vivendo um destroçamento das forças mais libertárias, que buscam um mundo de outro jeito.

Eu vejo como mais possível uma comoção social, as pessoas vão ficar sem dinheiro, não vão ter o que comer, vão ter mudar seus hábitos.
Estamos num momento muito amargo do mundo, de falta de lideranças, de falta de mobilização. É meio imprevisível. Só quem trabalha o sofrimento internamente, pode se identificar com quem sofre.

A gente está num mundo consumista do prazer imediato, onde ter a capacidade de se identificar com a dor do outro e poder acolher a dor em você é considerado fragilidade, você é um nada. Porque o objetivo é o ganho imediato, o prazer imediato.

De qualquer forma, é um abalo. A gente vai sair dessa com um ônus terrível. Alguma coisa vai ter que mudar. Tomara que essa solidariedade, essa empatia que temos visto se introduza de fato na sociedade, que seja algo mais duradouro.

A verdade é que todos nós estamos nos sentindo vulneráveis… Sim, até porque a vulnerabilidade é uma realidade do ser humano. Todo mundo nega. Quando o presidente chega e fala: ‘vai ser uma gripezinha porque eu tenho uma história de atleta’, ele se coloca como um ser não vulnerável, é um deus.

Está todo mundo tendo que trabalhar isso em si, algo foi profundamente abalado nessa história toda. Antes, muitas pessoas pensavam: ‘Ah! eu vou para Europa, vou para Nova York. Ou vou aproveitar que aqui está essa coisa, e vou para a praia’.

Agora não tem mais para onde ir. Todos estamos vivendo essa vulnerabilidade, essa ameaça de morte. É um marco na história da humanidade.

Como cuidar da saúde mental nesse momento? As pessoas estão sofrendo muito com o isolamento, se sentindo muito solitárias. Um caminho seria fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários, contar sobre essa experiência. Isso ajudaria.

Inventar jeitos. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. Para outros, essa vida online pode ser muito frustrante. As pessoas precisam descobrir truques para lidar com a angústia.

Mas é um momento e vai passar. As pessoas não suportam quebrar com que vinham fazendo, com o jeito de atuar. Aproveita e se repensa. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento.

É chato. Eu mesmo estou com essa questão. Tenho mais de 60 anos, fico louca para ir ao supermercado e está sendo superdifícil não ir. Uma das coisas para manter a saúde mental é a manter a casa funcionando, aprender a cozinhar, aprender a passar. Isso porque estou imaginando que a essa altura todos já tenham liberado a empregada.

A gente não teve escolha sobre essa pandemia, mas têm coisas que a gente tem escolha. Como deixar a casa bonita, levantar e se arrumar, passar batom.
As pessoas precisam inventar jeitos de se sentirem donas da própria vida nesse momento em que a gente não escolheu o que está acontecendo.

E como lidar com as crianças nesse contexto todo? Existem pais enlouquecendo no home office com as crianças trancadas em casa… Eu acho que as crianças têm mais recursos que a gente para lidar com esse momento. Elas têm o mundo da fantasia, fica mais solto, né? Elas têm o lúdico, se abrem mais para o brincar.

O problema são as mães, os pais aguentarem as 24 horas de convivência.
Mas talvez as crianças têm bastante para ensinar pra gente neste momento. Te arranca da angústia na marra. Porque querem jogar, querem brincar, querem ver filminho.

A questão é você ter que suportar essa demanda ou poder transformá-la em algo lúdico para você também.

O caminho é se apropriar da situação, pensando em como tornar isso um aprendizado do contato com os recursos que cada um tem com o isolamento, com a ruptura de hábitos muito arraigados.

Eu acho que cada um vai sair transformado disso. Uma experiência dessa vai te levar a romper com hábitos. É muito duro isso, mas quando você rompe, você se abre também. Eu espero (risos).

Miriam Chnaiderman
Formada em psicologia pela USP, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, doutora em artes pela USP. É psicanalista e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Também autora dos livros “O hiato convexo: literatura e psicanálise” (Brasiliense) e “Ensaios de Psicanálise e Semiótica” (Escuta) e diretora de vários documentários e do longa-metragem “De gravata e unha vermelha” (2014)

Laurentino Gomes: “Um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo”

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Em entrevista à GALILEU, autor de “Escravidão” afirma que estudar o passado é essencial para combater o racismo

ROGER MARZOCHI/ 26/12/2019

Durante mais de três séculos, o Brasil foi protagonista de uma das maiores atrocidades da história: dos 12,5 milhões de pessoas que foram transportadas à força da África para as Américas, 4,9 milhões desembarcaram em território nacional para serem escravizadas em grandes plantações de cana-de-açúcar e café, nas minas que extraíam metais preciosos ou para servirem às casas de seus “senhores” brancos.

Ao menos 2 milhões de habitantes de diversos territórios do continente africano nem sequer completaram a travessia pelo Oceano Atlântico e morreram em navios que amontoavam humanos como simples mercadorias. Mais de 130 anos depois da abolição da escravidão no Brasil, os reflexos desse período histórico não são difíceis de perceber: dados recentes do IBGE indicam que entre os 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros. De acordo com informações do Atlas da Violência divulgado em 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no país são negras.

Autor das premiadas obras “1808”, “1822” e “1889”, que resgatam detalhes da história brasileira, o escritor paranaense Laurentino Gomes se deu conta de que o assunto mais importante do passado nacional não eram os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. Era a escravidão. “Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas”, afirma.

E foi pensando nisso que ele escreveu “Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares”, livro lançado em setembro pela Globo Livros e que é o primeiro volume da trilogia que resgata o processo econômico, político e social que envolveu os séculos de escravidão no Brasil.

Para realizar a obra, Gomes consultou centenas de documentos históricos e viajou por 12 países em três continentes, passando por locais como a Serra da Barriga, onde se localizava o Quilombo dos Palmares, até fortificações nas quais os escravos aguardavam os navios responsáveis pelo tráfico.

Defensor das cotas preferenciais para afrodescendentes, ele acredita que o preconceito ainda presente em nosso país deve ser combatido por meio do estudo da nossa história. “Esse é um assunto ainda vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta”.

A seguir, leia a entrevista completa com o escritor.

Como surgiu o interesse de escrever sobre a escravidão no Brasil?
Eu tinha planos de escrever sobre a escravidão desde que comecei a pesquisar meu primeiro livro, 12 anos atrás. Ao tentar descrever o que era o Brasil em 1808, ano da chegada da corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro, me dei conta de que o tráfico negreiro e o uso intensivo de cativos africanos tinham sido a principal característica da colônia portuguesa nos três séculos anteriores.

Essa mesma percepção se repetiu ao me debruçar sobre as duas datas seguintes, 1822 e 1889. É quase impossível explicar o processo de independência, o primeiro e o segundo reinados e, depois, a Proclamação da República sem estudar a escravidão. É como se fosse o fio condutor dos nossos principais eventos históricos.

Era um tema totalmente relacionado com suas obras anteriores…
No livro “1822”, por exemplo, explico que o Brasil se manteve como monarquia depois da independência devido à soma de dois medos: o de uma guerra civil republicana que dividisse o país, a exemplo do que estava ocorrendo na América Espanhola, e o de uma guerra étnica, em que os escravos pegassem em armas contra seus senhores.

Esses dois medos fizeram com que a elite rural escravista brasileira cerrasse fileiras para que o futuro imperador Pedro I rompesse os vínculos com Portugal, mas mantivesse intacta a estrutura social vigente, sobretudo a escravidão e o tráfico negreiro.

Para entender como chegamos até aqui é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos índios e negros, entender quem teve acesso a oportunidades e privilégios ao longo desses últimos 500 anos e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje.

Ao fazer esse mergulho profundo, me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas.

Você trabalhou ao longo de seis anos nesse novo projeto. O que foi mais desafiador durante o processo?

No Brasil, tornou-se uma ideia comum que os documentos da escravidão teriam sido destruídos e estariam malconservados, o que tornaria o estudo do tema difícil, quando não impossível. Isso é verdade apenas em parte.

De fato, parte da documentação histórica, relacionada aos registros de compra e venda de escravos na antiga Alfândega do Rio de Janeiro, foi destruída por ordem de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, logo depois da proclamação da República. Com essa medida, os republicanos queriam, como se dizia na época, “apagar uma mancha” na história brasileira, o que, obviamente, foi inútil, porque a “mancha” nunca se apagou.

Mas, apesar disso, restaram inúmeras outras fontes preciosas, relativamente intactas e pouco exploradas. Isso inclui inquéritos policiais e processos na Justiça envolvendo os escravos e seus senhores; testamentos e inventários pós-morte; certidões de batismo, casamento e óbito; anúncios de fuga ou de compra e venda de cativos registrados nos jornais da época ou em documentação cartorial.
Hoje já se sabe com relativa precisão quantos eram e de que regiões saíam os escravos, quantos morreram no caminho e quantos chegaram ao Brasil e aos demais territórios da América.

Houve algum momento de comoção ao realizar o trabalho de pesquisa?
Fiquei particularmente tocado ao visitar as fortificações do tráfico de escravos na costa da África. Existem dezenas delas, em especial na atual República de Gana. Eram depósitos de seres humanos, onde milhares e milhares de africanos escravizados ficavam à espera da chegada dos navios negreiros como se fossem mercadorias prontas para serem distribuídas aos seus novos donos e compradores.

Um dos maiores e mais antigos é o castelo de São Jorge de Elmina. Dali saíram os antepassados da ex-primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama. Seus porões são visitados hoje por turistas afrodescendentes norte-americanos, que ali depositam coroas de flores em memória aos que partiram ou morreram.

Passei algum tempo sozinho num desses porões, um lugar úmido, frio, muito escuro, onde ficavam as mulheres. Algumas chegavam ali grávidas e davam à luz enquanto aguardavam para ser transferidas para um navio sujo, desconfortável e perigoso. Ali também amamentavam seus filhos recém-nascidos. Muitas morriam de fome, de doenças ou de desespero.

Foi uma experiência que me cortou o coração. Tive seguidas noites de insônia e pesadelos depois de passar por lá. Mas acho também que ninguém pesquisa e escreve um livro sobre a escravidão como se tivesse dando um passeio. Essa é, basicamente, uma história de dor e sofrimento. E para entendê-la precisamos nos aproximar dessa dor e desse sofrimento.

Como tem sido a recepção de sua obra pelo público e pela academia?
Já fiz lançamentos em diversos estados e cidades, incluindo, por exemplo, Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, e Salvador, a maior cidade africana fora da África. As pessoas têm demonstrado um interesse muito grande pelo tema.

Acredito que essa obra pode inspirar algum traço de racionalidade numa discussão que, nas redes sociais e nos pronunciamentos políticos, muitas vezes se resume a gritaria, polarização e intolerância. Apesar do fôlego aparente, em três volumes, esta série de livros não pretende nem poderia ser um estudo exaustivo ou definitivo da escravidão. Seria impossível, além de arrogante, qualquer tentativa de esgotar um assunto tão vasto, importante e premente, embora numa obra que, no conjunto, terá cerca de 1,5 mil páginas.

Meu propósito é destacar e explicar alguns aspectos que julgo importantes na análise do tema seguindo a fórmula já utilizada nos livros anteriores, mediante o uso de linguagem jornalística, simples e fácil de entender. Ou seja, mais uma vez quero ser um “abridor de portas”, especialmente para leitores jovens, mais leigos, ou que nunca se interessaram pelo assunto.

Sua obra explica que foi apenas na América que surgiu uma ideologia racista baseada na cor da pele para legitimar a escravidão. Como é possível superar esse preconceito ainda persistente?

A melhor maneira de enfrentar esses desafios é por meio do estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. Uma sociedade ou um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo porque desconhece suas raízes. Como não sabe de onde veio, provavelmente também não saberá o que (ou quem) é hoje e muito menos o que será no futuro.

Só pelo estudo de história será possível preparar — ou qualificar — os cidadãos brasileiros para a difícil tarefa de fazer escolhas e organizar a realização do país dos nossos sonhos. Isso inclui o racismo e o passivo social resultante da escravidão. Esse não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado.

Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta entre nós. E que ainda dói muito porque nunca foi devidamente tratada.

Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez.

E como todos esses fatores se refletem em nosso presente?
Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte. O resultado está hoje nas estatísticas e nos indicadores sociais, em que a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade que tem menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira.

Um segundo legado da escravidão é o preconceito. É uma das marcas terríveis das nossas relações sociais, embora sempre procuremos disfarçá-la construindo mitos a respeito de nós mesmos — por exemplo, a ilusão de que seríamos uma grande e exemplar democracia racial. O noticiário do dia a dia se encarrega de desmentir isso. É um tema que incomoda muita gente, porque desmente os nossos mitos mais arraigados.

Qual é sua opinião sobre a política de cotas no Brasil?
Sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada.

A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes.

Há ainda muita reação contrária…
Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da República, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram da escravidão e lucraram com ela, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria por que indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso.

Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.
Como é sua rotina de trabalho e onde você busca inspiração?
Antes eu fazia reportagens para jornais e revistas, agora faço livros-reportagem. Mas a essência do meu trabalho continua a mesma, o jornalismo. Convivia com muitos colegas nas redações. Era um ambiente mais animado e barulhento. Hoje, meu trabalho é mais solitário. Mas prefiro assim.
Gosto de pesquisar e pensar sozinho a respeito do que pretendo fazer. E gosto mais de ler do que escrever. É na poesia e nos romances que encontro a verdadeira inspiração para escrever. A literatura de ficção permite um mergulho mais profundo na alma humana do que os livros de não ficção, que, em geral, são obras de natureza técnica.
Leio e releio muito Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Pablo Neruda. Meus romances preferidos são “Sagarana”, de João Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez

Salvar as pessoas, as empresas e o emprego, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Valor Econômico, 23.3.2020

O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa o
custo do ponto de vista fiscal

Há duas semanas a economista Leda Paulani afirmou que a crise do coronavírus seria mais grave do que a crise de 2008. Minha reação foi um “talvez”. Talvez viesse a ser, mas eu não estava seguro. Agora, estou. Associada à pandemia há uma gravíssima crise econômica em formação que levará ao desemprego e à quebra das empresas de todo o mundo, ou, pelo menos, à uma forte redução de suas receitas e dos seus lucros.

As empresas de serviço estão parando porque todos os eventos que puderem ser adiados estão sendo adiados. As famílias, ameaçadas pelo desemprego, estão reduzindo as suas compras. As empresas comerciais estão enfrentando uma forte queda de vendas, e as empresas industriais, mesmo que não tenham sido obrigadas a reduzir a produção para evitar a propagação do vírus, não têm alternativa senão diminuir sua produção dada a falta de demanda.

O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa o custo do ponto de vista fiscal

Na China, onde primeiro apareceu o coronavírus, houve uma prática bem-sucedida de isolamento ou confinamento social e a expansão da doença parece ter sido controlada, mas diversos estudos indicam que nos primeiros três meses a redução da produção naquele país foi de 30%. É muita coisa. Mesmo que façamos a previsão otimista que no segundo trimestre a produção ficará no nível do ano anterior, e nos dois últimos trimestres aumente 8% a cada trimestre, a queda do PIB chinês em 2020 será de 8% (- 12+2+2). É muita coisa, e desconfio que estou sendo muito otimista.

Que fazer diante de um quadro como este? No plano da saúde é o isolamento e o aumento urgente da capacidade do SUS de enfrentar a pandemia. É não poupar gastos para dar capacidade ao Estado de proteger a saúde da população. E no plano econômico? Não pode haver nenhuma dúvida a respeito. O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa quanto custe do ponto de vista fiscal.

Uma crise financeira como a Crise Financeira Global de 2008 resultou da quebra de alguns grandes bancos e empresas de seguro e de muitas famílias – todos porque haviam se endividado de maneira irresponsável. Agora não há irresponsabilidade de alguns agentes econômicos situados em posições-chave na economia, mas há a perspectiva de grave redução das vendas e maior redução dos lucros, acompanhada de forte aumento do desemprego porque a melhor defesa que a sociedade tem contra o vírus é o isolamento das pessoas.

A economia mundial deverá ser praticamente paralisada por pelo menos três meses, mas os custos das empresas continuarão a ser incorridos, não apenas os custos fixos, mas também grande parte dos custos variáveis precisarão ser mantidos dado o objetivo de manter o emprego. Em momentos como este, vemos quão importante é ter um Estado forte e capaz. E saber usá-lo. O governo já decretou situação de calamidade pública. Fez bem. Isto o libera dos limites legais estabelecidos para o seu gasto. Está prometendo crédito paras as empresas.

Isto é o mínimo. Mas em um quadro completamente novo como esse que o mundo e o Brasil estão enfrentando, o governo precisa também pensar de maneira nova. Agora o que o governo brasileiro, como, aliás, os governos de todos os países, deve fazer é usar seu Estado para salvar as pessoas da morte, para salvar as empresas da quebra, e para salvar os empregos. O Estado em cada nação tem esse tríplice salvamento como capacidade e como missão. Seu governo não pode ficar calculando qual será o impacto de cada medida que tome na dívida pública. Ela aumentará agora como aumentou em todo o mundo em 2008.

Não basta aumentar o crédito para as empresas. No seu último artigo no Valor Martin Wolf relata a proposta de dois notáveis economistas, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, Berkeley. Para eles “a forma mais direta de prover […] seguro é ter um governo atuando como comprador de última instância. Se o governo substituir totalmente a demanda que se evapora, cada empresa pode continuar pagando seus trabalhadores e mantendo seu estoque de capital, como se estivesse operando […] normalmente”.

Para colocar em prática uma política como essa é preciso haver coordenação com o Banco Central. Este já reduziu os juros, e foi importante que o fizesse, mas há uma segunda crise, mais precisamente, ameaça de crise que não pode ser desconsiderada. Antes do coronavírus o liberalismo econômico radical do governo, além de causar estagnação econômica, já nos ameaçava com crise financeira – com a continuidade da crise financeira de 2014. Esta foi uma crise financeira interna; foi definida pela falta de expectativas de lucro das empresas e paralisação do crédito privado.

Agora é o crédito externo que está diminuindo, como vemos pela retirada maciça de recursos estrangeiros da Bolsa de Valores brasileira, enquanto o déficit em conta- corrente aumenta principalmente devido ao aumento dos juros, dividendos e serviços pagos ao exterior. É a conta da desnacionalização que nos está sendo cobrada. Com o aumento do déficit em conta-corrente e a diminuição dos financiamentos externos, o dólar alcança a cada dia um novo recorde.

Uma crise financeira crônica? Pode parecer estranho, mas em dezembro de 1998 desencadeou-se uma crise financeira que se tornou crônica, só tendo realmente terminado com a crise financeira de dezembro de 2002. Desta vez, a crise financeira de 2014 e a recessão de 2015-2016 causaram a queda dos salários, da inflação e dos juros, mas a crise não chegou à sua solução por falta de demanda.
Os países ricos estão tomando medidas de emergência para enfrentar a propagação do vírus e a recessão provocada pela paralisação das empresas. O atraso da Itália neste ponto está tendo consequências trágicas para o país. Como vários governadores já se deram conta, o Brasil também não pode se atrasar. Mas seus poderes são limitados. Além de enfrentar o coronavírus e enfrentar a própria recessão, o Brasil precisa recuperar a confiança externa, que foi destruída neste último ano. É preciso que os credores externos vejam que nós também estamos fazendo com responsabilidade a nossa parte no enfrentamento da crise.

A crise do coronavírus, por Yuval Harari.

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Extraído de HSM – 16/03/2020

O historiador, filósofo e autor dos best-sellers “Sapiens” e “Homo Deus – Uma breve história do Amanhã”, Yuval Noah Harari, trouxe à tona sua percepção da pandemia que a humanidade está enfrentando.
Trouxemos os principais pontos do artigo publicado na Revista Time, no último domingo (15).

“A melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação”

Muitas pessoas culpam a epidemia de coronavírus pela globalização e dizem que a única maneira de evitar mais surtos desse tipo é “desglobalizar” o mundo. Construa muros, restrinja viagens, reduza o comércio. No entanto, embora a quarentena de curto prazo seja essencial para interromper as epidemias, o isolacionismo de longo prazo levará ao colapso econômico sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas. Exatamente o oposto. O verdadeiro antídoto para a epidemia não é a segregação, mas a cooperação.

As epidemias mataram milhões de pessoas muito antes da era atual da globalização. No entanto, a incidência e o impacto das epidemias diminuíram drasticamente. Apesar de surtos horrendos, como AIDS e Ebola, no século XXI as epidemias matam uma proporção muito menor de humanos do que em qualquer outro período anterior à Idade da Pedra. Isso ocorre porque a melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação. A humanidade tem vencido a guerra contra epidemias porque, na corrida armamentista entre patógenos e médicos, os patógenos dependem de mutações cegas, enquanto os médicos dependem da análise científica da informação.

Ganhando a guerra contra patógenos
Durante o século passado, cientistas, médicos e enfermeiros em todo o mundo reuniram informações e, juntos, conseguiram entender o mecanismo por trás das epidemias e os meios para combatê-las. A teoria da evolução explicou por que e como surgem novas doenças e doenças antigas se tornam mais virulentas. A genética permitiu que os cientistas espiassem o próprio manual de instruções dos patógenos. Embora o povo medieval nunca tenha descoberto o que causou a Peste Negra, os cientistas levaram apenas duas semanas para identificar o novo coronavírus, sequenciar seu genoma e desenvolver um teste confiável para identificar pessoas infectadas.

Depois que os cientistas entenderam o que causa as epidemias, ficou muito mais fácil combatê-las. Vacinas, antibióticos, higiene aprimorada e uma infra-estrutura médica muito melhor permitiram que a humanidade ganhasse vantagem sobre seus predadores invisíveis. Em 1967, a varíola ainda infectou 15 milhões de pessoas e matou 2 milhões delas. Mas, na década seguinte, uma campanha global de vacinação contra a varíola foi tão bem-sucedida que, em 1979, a Organização Mundial da Saúde declarou que a humanidade havia vencido e que a varíola havia sido completamente erradicada. Em 2019, nenhuma pessoa foi infectada ou morta por varíola.

O que a história nos ensina para a atual epidemia de coronavírus?
Você não pode se proteger fechando permanentemente suas fronteiras. Lembre-se de que as epidemias se espalharam rapidamente, mesmo na Idade Média, muito antes da era da globalização. Portanto, mesmo que você reduza suas conexões globais ao nível da Inglaterra em 1348 – isso ainda não seria suficiente. Para realmente se proteger através do isolamento, ficar medieval não serve. Você teria que ficar na Idade da Pedra. Você pode fazer aquilo?

A história indica que a proteção real vem do compartilhamento de informações científicas confiáveis ​​e da solidariedade global. Quando um país é atingido por uma epidemia, deve estar disposto a compartilhar honestamente informações sobre o surto, sem medo de uma catástrofe econômica – enquanto outros países devem poder confiar nessas informações e devem estender a mão amiga, em vez de ostracizar a vítima. Hoje, a China pode ensinar aos países de todo o mundo muitas lições importantes sobre o coronavírus, mas isso exige um alto nível de confiança e cooperação internacional.

A cooperação internacional é necessária também para medidas efetivas de quarentena. Quarentena e bloqueio são essenciais para impedir a propagação de epidemias. Mas quando os países desconfiam um do outro e cada país sente que é o seu próprio país, os governos hesitam em tomar medidas tão drásticas. Se você descobrisse 100 casos de coronavírus no seu país, iria bloquear imediatamente cidades e regiões inteiras? Em grande medida, isso depende do que você espera de outros países. Bloquear suas próprias cidades pode levar ao colapso econômico. Se você acha que outros países irão ajudá-lo – será mais provável que você adote essa medida drástica. Mas se você pensa que outros países o abandonarão, provavelmente hesitaria até que seja tarde demais.

“Não se trata mais de nações, mas da espécie humana”
Talvez a coisa mais importante que as pessoas devam perceber sobre essas epidemias seja que a disseminação da epidemia em qualquer país ponha em perigo toda a espécie humana. Isso ocorre porque os vírus evoluem. Vírus como a corona se originam em animais, como os morcegos. Quando eles pulam para os seres humanos, inicialmente os vírus estão mal adaptados aos seus hospedeiros humanos. Enquanto se replicam em humanos, os vírus ocasionalmente sofrem mutações. A maioria das mutações é inofensiva. Mas, de vez em quando, uma mutação torna o vírus mais infeccioso ou mais resistente ao sistema imunológico humano – e essa cepa mutante do vírus se espalha rapidamente na população humana. Como uma única pessoa pode hospedar trilhões de partículas de vírus que sofrem replicação constante, toda pessoa infectada oferece ao vírus trilhões de novas oportunidades para se tornar mais adaptado aos seres humanos. Cada transportadora humana é como uma máquina de jogo que fornece ao vírus trilhões de bilhetes de loteria – e o vírus precisa comprar apenas um bilhete vencedor para prosperar.

Enquanto você lê essas linhas, talvez uma mutação semelhante esteja ocorrendo em um único gene no coronavírus que infectou uma pessoa em Teerã, Milão ou Wuhan. Se isso de fato está acontecendo, é uma ameaça direta não apenas aos iranianos, italianos ou chineses, mas também à sua vida. Pessoas de todo o mundo compartilham um interesse de vida ou morte em não dar ao coronavírus essa oportunidade. E isso significa que precisamos proteger todas as pessoas em todos os países.

Na luta contra vírus, a humanidade precisa proteger estreitamente as fronteiras. Mas não as fronteiras entre os países. Pelo contrário, precisa proteger a fronteira entre o mundo humano e a esfera do vírus. O planeta Terra está se unindo a inúmeros vírus, e novos vírus estão em constante evolução devido a mutações genéticas. A fronteira que separa essa esfera de vírus do mundo humano passa dentro do corpo de todo e qualquer ser humano. Se um vírus perigoso consegue penetrar nesta fronteira em qualquer lugar do mundo, coloca toda a espécie humana em perigo.

Ao longo do século passado, a humanidade fortaleceu essa fronteira como nunca antes. Os modernos sistemas de saúde foram construídos para servir de barreira nessa fronteira, e enfermeiros, médicos e cientistas são os guardas que a patrulham e repelem os invasores. No entanto, longas seções dessa fronteira foram deixadas lamentavelmente expostas. Existem centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que carecem de serviços de saúde básicos. Isso coloca em perigo todos nós. Estamos acostumados a pensar em saúde em termos nacionais, mas fornecer melhores cuidados de saúde para iranianos e chineses ajuda a proteger israelenses e americanos também de epidemias. Essa verdade simples deve ser óbvia para todos, mas infelizmente ela escapa até mesmo às pessoas mais importantes do mundo.

Um mundo sem líder
Hoje a humanidade enfrenta uma crise aguda, não apenas devido ao coronavírus, mas também devido à falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam confiar em especialistas científicos, os cidadãos precisam confiar nas autoridades públicas e os países precisam confiar uns nos outros. Nos últimos anos, políticos irresponsáveis ​​minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Como resultado, agora estamos enfrentando esta crise desprovida de líderes globais que podem inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada.

Xenofobia, isolacionismo e desconfiança agora caracterizam a maior parte do sistema internacional. Sem confiança e solidariedade global, não seremos capazes de parar a epidemia de coronavírus, e provavelmente veremos mais dessas epidemias no futuro. Mas toda crise também é uma oportunidade. Esperamos que a epidemia atual ajude a humanidade a perceber o grave perigo que representa a desunião global.

Neste momento de crise, a luta crucial ocorre dentro da própria humanidade. Se essa epidemia resultar em maior desunião e desconfiança entre os seres humanos, será a maior vitória do vírus. Quando os humanos brigam – os vírus dobram. Por outro lado, se a epidemia resultar em uma cooperação global mais estreita, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todos os patógenos futuros.

‘Coronavírus isolou líderes populistas’: Para Steven Levitsky

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Para Steven Levitsky, cientista político americano e coautor de ‘Como as Democracias Morrrem’, ignorar especialistas fez líderes como Trump e Bolsonaro reagirem tarde à pandemia
José Eduardo Barella / O Estado de S. Paulo 
29/03/2020

Acostumados a fazer dos adversários inimigos mortais e desprezar o que chamam de elite política, acadêmica, científica e cultural, muitos líderes populistas estão experimentando o próprio veneno. Pegos de surpresa pelo novo coronavírus, eles reagiram tarde à pandemia e estão às voltas com o aumento de casos e mortes, além da expectativa de uma gravíssima crise econômica. 

Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.  

A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky. 

Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.  

Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo. 

No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento? 
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.  

Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento. 

Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.  

A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump. 

Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.  

Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?
Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.  

É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?
Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará. 

Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder. 

Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento? 
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.  

Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada. 

Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero. 

O coronavírus revelou o essencial: o professor. Por Alexandre Schneider

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Mesmo com escolas fechadas, o papel deles é central no desenho e implementação das políticas educacionais

Um momento de distração ao olhar pela janela a rua vazia é interrompido por um chamado de meu filho de 11 anos, às voltas com uma pesquisa sobre o confucionismo. Tomás, assim como seus mais de um milhão de colegas da rede pública da cidade de Nova York, iniciou a semana com uma nova experiência: suas aulas agora são à distância.
 
No Brasil e no mundo, escolas públicas e privadas estão enfrentando o desafio de manter o processo de aprendizagem em novas bases, com o fechamento das escolas por tempo indeterminado, uma das medidas de contenção do coronavírus. A medida já alcançou 157 países e cerca de 1,4 bilhão de alunos, segundo a Unesco.

Diante da necessidade de isolamento social, há duas decisões possíveis, a de antecipar as férias ou a de lançar mão do uso de plataformas digitais e do ensino à distância. Qualquer das escolhas depende de outros dois aspectos fundamentais: a existência de um bom planejamento pedagógico e, sobretudo, a liberdade de escolha pedagógica do professor.

Há inúmeras evidências na literatura educacional a demonstrar que, controlados os demais fatores, estudantes submetidos ao ensino à distância aprendem menos do que aqueles que frequentam aulas presenciais. Como agravante, os mais vulneráveis aprendem ainda menos.

A cidade de Nova York tomou a decisão de cancelar as aulas de sua rede pública na semana passada. O secretário de educação propôs que cada escola realizasse um plano de implantação de ensino à distância, a partir de sua realidade.
Umbigo do mundo capitalista, Nova York é uma cidade muito desigual. Dos cerca de 1,1 milhão de alunos, 300 mil não possuem um equipamento ou acesso a internet.

Para esses, a Prefeitura garantiu o empréstimo de computadores — em muitos casos os das próprias escolas— e o fornecimento de roteadores de acesso à internet com apoio de parceiros da iniciativa privada.

Conversei com estudantes, professores e gestores de escolas públicas e privadas da cidade. Os estudantes me revelaram que se sentem mais cansados no final do dia e que sentem falta dos colegas. Por outro lado, percebem que há continuidade entre o que vinham aprendendo nas aulas presenciais e nas aulas à distância.

O testemunho dos gestores e professores também é o mesmo: estão aprendendo enquanto fazem. Os princípios comuns são os de respeitar o planejamento previsto antes da crise, preparar materiais que provoquem reflexão e pesquisa dos estudantes e estarem preparados para mudar sua estratégia de acordo com a resposta dos mesmos.

Os pais de Helena, que tem 16 anos e estuda em uma disputada escola pública de ensino médio com foco em ciências e matemática, receberam o planejamento das aulas à distância e o calendário escolar no domingo anterior ao início das aulas em modo remoto. O mesmo ocorreu com Tomás, que tem 11 anos e estuda em uma middle school pública (o que equivale ao Fundamental 2 no Brasil).

As duas escolas já utilizavam uma plataforma de relacionamento com alunos e pais. Por ela, além de informações gerais, cada professor envia tarefas de casa, vídeos, materiais de apoio, avaliações dos alunos, realiza mentoria e acompanha se os estudantes estão ou não conectados e se dedicando às tarefas.

Nina tem a mesma idade de Helena e estuda em uma escola privada de qualidade alta. Sua experiência foi um pouco distinta. A escola escolheu utilizar uma plataforma de comunicação em vídeo para que os professores dessem aulas à distância nos mesmos horários em que ocorriam as aulas presenciais. A iniciativa não fez muito sucesso com os estudantes, que se disseram cansados com o método.

A escola rapidamente mudou o desenho, intercalando aulas à distância via plataforma de vídeo, tarefas, mentoria e trabalho em grupo.

No Brasil temos dois grupos de iniciativas. Nas escolas particulares, vêm sendo utilizados vários recursos, como o de vídeo ao vivo ou gravado, reproduzindo o ambiente de uma sala de aula, o envio de tarefas, a mentoria e sessões em grupos menores para tirar dúvidas dos alunos. Muitas vezes essas estratégias são combinadas.

O grande desafio que as escolas particulares terão caso as medidas de isolamento sejam prolongadas é sua sustentabilidade. Os pais precisam compreender que os custos não mudam e que a maior riqueza de uma escola é a qualidade de seus profissionais.

As melhores escolas públicas e privadas de Nova York, assim como as escolas de elite no Brasil, se basearam na continuidade do que foi planejado pelos professores e pelas escolas. Ninguém adotou soluções mágicas que batem à porta nesse momento, como a venda de sistemas, aplicativos e plataformas de apoio didático. Mais do que a tecnologia, as soluções se estruturaram na confiança do compromisso das pessoas que estão no coração do processo: os professores.

A escolas públicas brasileiras estão fechadas. Algumas redes anteciparam o recesso de julho, o que é uma decisão correta. É hora de os secretários estaduais e municipais discutirem com suas equipes pedagógicas as diretrizes para o retorno às aulas presenciais e o que fazer em caso de se optar pelas aulas à distância.

No caso de um prolongamento das medidas de quarentena, um sistema de comunicação simples entre as escolas, estudantes e pais, com a distribuição de materiais preparados pelos professores é suficiente. Para aqueles estudantes que não possuem computadores ou internet, poderia se adaptar espaços que respeitem as regras sanitárias de distância necessárias.

A principal lição desse momento é que mesmo com as escolas fechadas, o papel dos professores é central no desenho e implementação das políticas educacionais.

Para que eles consigam apoiar seus alunos em pleno exercício de suas capacidades, a sociedade precisa garantir-lhes recursos à altura dos desafios que a profissão lhes impõe, como uma carreira que possibilite a esses profissionais trabalhar em uma única escola, como ocorre nas melhores redes públicas do mundo e nas melhores escolas particulares do Brasil.

Deixo aqui sugestões mais gerais a quem está na linha de frente, gerenciando nossas redes públicas. Desenhem soluções capazes de garantir o melhor aos alunos mais vulneráveis de suas redes. Uma solução que os atenda será capaz de atender a todos.

Confiem nos seus profissionais. Peçam a cada uma das escolas um plano específico para esse momento difícil e criem um método de monitoramento dos mesmos. Por fim, deixem os professores livres para realizarem suas escolhas pedagógicas.

Alexandre Schneider
Pesquisador visitante e professor adjunto da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP, consultor e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

Uma depressão ainda maior? Por Nouriel Roubini

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Project Syndicate 
26 de março de 2020

Com a pandemia da covid-19 ainda fora de controle, o melhor resultado econômico que se pode esperar é uma recessão mais profunda do que aquela que se seguiu à crise financeira de 2008. Mas, dada a instabilidade das respostas políticas até agora, as chances de um resultado muito pior estão aumentando a cada dia.
NOVA YORK – O choque da covid-19 na economia global foi mais rápido e mais severo que a Crise Financeira Global de 2008 (GFC, na sigla em inglês) e até mesmo que a Grande Depressão. Nos dois episódios anteriores, as bolsas de valores caíram em 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, grandes falências se sucederam, as taxas de desemprego saltaram acima de 10% e o PIB se contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas tudo isso levou cerca de três anos para acontecer. Na crise atual, resultados macroeconômicos e financeiros igualmente terríveis se materializaram em três semanas.

No início deste mês, foram necessários apenas 15 dias para o mercado de ações dos Estados Unidos despencar para um território de baixa (um declínio de 20% em relação ao pico, o mais rápido já registrado).

Agora, os mercados já caíram 35%, os mercados de crédito se paralisaram e os spreads de crédito (como os de títulos indesejados) subiram para os níveis de 2008. Até mesmo as empresas financeiras mainstream, como Goldman Sachs, JP Morgan e Morgan Stanley, esperam que o PIB americano caia a uma taxa anualizada de 6% no primeiro trimestre e de 24% a 30% no segundo. O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steve Mnuchin, alertou que a taxa de desemprego pode subir para mais de 20% (o dobro do maior nível registrado durante a GFC).

Em outras palavras, todos os componentes da demanda agregada – consumo, investimento em bens de capital, exportações – estão em uma queda livre sem precedentes. Ainda que a maioria dos comentaristas prefira antecipar uma desaceleração em forma de V – com a produção caindo acentuadamente por um trimestre e se recuperando rapidamente no próximo –, agora já deveria estar bem claro que a crise da covid-19 é uma coisa completamente diferente. A contração que está em andamento não parece ter forma de V, nem de U, nem mesmo de L (desaceleração acentuada seguida de estagnação). Pelo contrário, parece um I: uma linha vertical que representa os mercados financeiros e a economia real em queda. 

Nem mesmo durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial a maior parte da atividade econômica foi literalmente fechada, como está ocorrendo na China, nos Estados Unidos e na Europa nos dias de hoje. O melhor cenário seria uma desaceleração mais severa que a GFC (em termos de redução da produção global), mas de vida mais curta, possibilitando um retorno ao crescimento positivo até o quarto trimestre deste ano. Nesse caso, os mercados começariam a se recuperar assim que aparecesse a luz no fim do túnel. 

Mas o melhor cenário pressupõe várias condições. Primeiro, os Estados Unidos, a Europa e outras economias fortemente afetadas precisariam implementar vastas medidas de teste, rastreamento e tratamento da covid-19, quarentenas forçadas e um bloqueio generalizado do tipo que a China implementou. E, como pode levar 18 meses para que uma vacina seja desenvolvida e produzida para toda a população, antivirais e outros medicamentos precisariam ser introduzidos em larga escala. 

Segundo, os formuladores de políticas monetárias – que já fizeram em menos de um mês o que demoraram três anos para fazer depois da CGF – precisariam continuar tirando da cartola medidas não convencionais para combater a crise. Isso significa taxas de juros zero ou negativas; intensificação do forward guidance [ou seja, mais clareza por parte dos bancos centrais na sinalização da trajetória futura da taxa de juros]; flexibilização quantitativa; e facilitação do crédito (compra de ativos privados) para ajudar bancos, instituições financeiras não bancárias, fundos do mercado monetário e até grandes corporações (commercial papers [notas promissórias comerciais] e títulos privados). O Federal Reserve dos Estados Unidos expandiu suas linhas de swaps para atender à enorme escassez de liquidez em dólar nos mercados globais, mas agora precisamos de mais instrumentos para incentivar os bancos a emprestar a pequenas e médias empresas sem liquidez, mas ainda solventes. 

Terceiro, os governos precisariam implantar estímulos fiscais maciços, inclusive por meio de “dinheiro jogado de helicóptero”, ou seja, transferências diretas em dinheiro para as famílias. Dado o tamanho do choque econômico, os déficits fiscais nas economias avançadas precisariam aumentar de 2 a 3% do PIB para cerca de 10% ou ainda mais. Somente os governos centrais têm balanços grandes e fortes o suficiente para impedir o colapso do setor privado. 

Mas essas intervenções financiadas pelo déficit devem ser totalmente monetizadas. Se elas forem financiadas por meio da dívida pública padrão, as taxas de juros subiriam acentuadamente e a recuperação morreria sufocada antes de sair do berço. Dadas as circunstâncias, as intervenções há muito propostas pelos esquerdistas da escola da Teoria Monetária Moderna, entre elas o “dinheiro de helicóptero”, tornaram-se mainstream. 

Infelizmente, a reação da saúde pública nas economias avançadas ficou muito aquém do necessário para conter a pandemia, e o pacote de políticas fiscais hoje em debate não está amplo nem rápido o suficiente para criar condições para uma recuperação oportuna. Assim, o risco de uma nova Grande Depressão pior que a original – uma Depressão Ainda Maior – aumenta a cada dia. 

A menos que a pandemia seja interrompida, as economias e os mercados do mundo todo continuarão em queda livre. Mas, mesmo que a pandemia seja mais ou menos contida, o crescimento geral não retornará até o final de 2020. Afinal, até lá, é provável que comece outra temporada de vírus, com novas mutações; intervenções terapêuticas com as quais muitos estão contando podem se mostrar menos eficazes do que se espera. Assim, as economias se contrairão mais uma vez, e os mercados cairão mais uma vez. 

Além disso, a resposta fiscal pode chegar a um limite se a monetização de déficits maciços começar a gerar inflação alta, especialmente se uma série de choques negativos na oferta, relacionados ao vírus, reduzir o crescimento potencial. E muitos países simplesmente não conseguem fazer esses empréstimos em sua própria moeda. Quem socorrerá governos, corporações, bancos e famílias em mercados emergentes? 

De qualquer forma, mesmo que a pandemia e as consequências econômicas forem controladas, a economia global ainda poderia se ver sujeita a vários riscos da chamada cauda de “cisne branco”. Com a eleição presidencial americana se aproximando, a crise da covid-19 dará lugar a novos conflitos entre o Ocidente e pelo menos quatro potências revisionistas: China, Rússia, Irã e Coréia do Norte, que já estão se valendo da ciberguerra assimétrica para minar os Estados Unidos por dentro. Os inevitáveis ataques cibernéticos ao processo eleitoral americano podem gerar contestação do resultado final, com acusações de “manipulação” e possibilidade de violência e desordem civil. 

De maneira similar, como já argumentei em outra ocasião, os mercados estão subestimando enormemente o risco de uma guerra entre os Estados Unidos e o Irã ainda este ano; a deterioração das relações sino-americanas vem se acelerando, pois um lado culpa o outro pela escala da pandemia da covid-19. É provável que a atual crise precipite a balcanização e o esfacelamento da economia global nos próximos meses e anos. 

Essa trindade de riscos – pandemias não contidas, arsenais de política econômica insuficientes e cisnes brancos geopolíticos – será o bastante para jogar a economia global em uma recessão persistente e produzir um colapso descontrolado do mercado financeiro. Depois do crash de 2008, uma resposta forte (ainda que demorada) afastou a economia global do abismo. Pode ser que não tenhamos tanta sorte desta vez. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

* Nouriel Roubini, professor de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova York e presidente da Roubini Macro Associates, foi economista para assuntos internacionais do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca durante o governo Clinton. Ele trabalhou para o Fundo Monetário Internacional, o Federal Reserve dos Estados Unidos e o Banco Mundial. Seu site é NourielRoubini.com.