A banalização do mal e a desumanização do indivíduo

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Escrevo num momento de reflexão sobre os rumos da sociedade mundial, somente nesta semana a sociedade internacional se assustou com dois eventos que trouxeram perplexidade, medos e desesperanças, os eventos inexplicáveis protagonizados por dois adolescentes que invadiram uma escola estadual e mataram oito pessoas e as atrocidades cometidas na Nova Zelândia, onde um atirador matou mais de quarenta pessoas com requintes de violência e traços acelerados de insanidade, diante disso, todos estão se perguntando para onde a sociedade internacional está caminhando e quais os motivos que levam cidadãos considerados normais a cometeram uma crueldade como esta?

Nos momentos iniciais destas atrocidades, os indivíduos buscam explicações, teorias e respostas variadas dos motivos que levaram os indivíduos a cometerem crimes tão violentos, destruindo sonhos, degradando famílias e destilando ódio, rancor e ressentimentos por todos os poros da sociedade, gerando nuvens de medo, desesperança e instabilidades.

Muitas questões são aventadas por especialistas, todos dotados de teorias e grandes instrumentos científicos para opinar e dar suas opiniões, cercados por uma mídia sedenta por respostas e por uma sociedade atônita por explicações mais bem estruturadas e convincentes, que possam trazer um pouquinho mais de esperança e confiança para a coletividade.

Estamos inseridos em uma sociedade que se transforma com grande rapidez, as mudanças tecnológicas deixaram as fábricas e as organizações empresariais e estão, cada dia de forma mais intensa, adentrando nossas casas e residências, exigindo dos trabalhadores uma ampla capacidade de adaptação, capacitação e qualificação constantes, tudo isto exige dos indivíduos uma centralidade maior do mundo do trabalho em nossas vidas contemporâneas, diminuindo o tempo que passamos com nossas famílias, nossos filhos, amantes e conosco mesmo, o trabalho nos consome mais do que queremos e mais, ao nos consumir diuturnamente, passa a nos transformar intimamente.

Anteriormente, as famílias se subdividiam, os homens saíam de casa para o trabalho cotidiano e as mulheres eram responsáveis pelas atividades do lar e pela educação dos filhos, desta forma a figura da família estava sempre presente na vida dos filhos, gerando proximidade, intimidade, responsabilidade e segurança, estas características estão ausentes na família contemporânea, gerando desequilíbrios e desestruturas.

O mundo do trabalho exige dos indivíduos uma constante transformação, sob pena de exclusão e dificuldades de inserção neste mercado que, cotidianamente, se transforma, gerando desafios que os indivíduos não estão mais em condição de suportar, tudo isso leva o cidadão a desequilíbrios generalizados, medos incessantes e transtornos psicológicos, emocionais e espirituais em escalas até então jamais vistas e imaginadas.

Além das mudanças constantes na sociedade contemporânea, este mundo do trabalho exige dos trabalhadores uma guerra constante, palavras como metas, produtividade, empreendedorismo, bônus, competição, lucro e competitividade, são constantes no vocabulário do mundo da gestão, levando os indivíduos a uma interiorização destes conceitos no ideário de cada trabalhador, busca-se uma racionalidade, uma maximização de lucros e uma minimização de custos que coloca o trabalhador na berlinda, dando-lhe uma centralidade na produção e na prestação de serviços e, ao mesmo tempo, retirando-lhe uma forte capacidade de participação mais intensa nas decisões.

Nesta sociedade, percebemos uma crise do indivíduo, os relacionamentos não mais se sustentam, os enamorados se afastam uns dos outros, o medo do fracasso e da frustração leva o indivíduo a se distanciar da realidade e, muitas vezes, levando-o a construir mundos paralelos para dar vazão a insegurança, criando perfis falsos e acessando mercados obscuros nas redes sociais para dar vazão a uma intolerância crescente.

Nesta sociedade encontramos uma grande competição entre todos, Estados competem uns com os outros, empresas se digladiam por mais mercados, lucros e rentabilidade, trabalhadores se encontram perdidos e perplexos com as cobranças que se avolumem cotidianamente, obrigando-os a se adaptarem a estas transformações frenéticas e alucinantes, neste clima de constante competição estamos cada vez mais estressados, cansados e desesperançados, muitos se rendem a depressão que aflige mais de 300 milhões de pessoas no mundo, enquanto outros optam pelo suicídio, acreditando com isto, que estão se escondendo dos duros embates da vida contemporânea.

A desagregação das famílias está associada ao excesso de cobranças na sociedade, às transformações do mercado de trabalho, que obrigam os pais a se ausentarem de suas casas para buscar o alimento necessário para a reprodução dos seus entes queridos, nesta nova sociedade marcada pela crescente introdução de máquinas e tecnologias, além de sua formação inicial, faz-se fundamental uma atualização constante, obrigando os trabalhadores a se ausentarem de suas casas ou a se fechar em seus escritórios, deixando filhos e familiares sem os contatos essenciais para a construção contínua da personalidade e da segurança de seus filhos, amados e dependentes.

Com a ausência dos genitores, os filhos passam a ser educados pela escola e pela televisão, que tem importância central na sociedade, mas não dispõem dos aparatos necessários para auxiliar na construção da personalidade de crianças e adolescentes, com isso, estes últimos passam a atrair pessoas com interesses negativos diversos, desde drogas, álcool e prostituição, dificultando uma possível melhoria num futuro imediato.

As causas destas dificuldades estão na busca constante pelo prazer, pelo gozo farto e pelas responsabilidades mínimas, sexo, drogas, álcool e dinheiro nos trazem um prazer imediato e nos leva a um precipício, o hedonismo nos seduz e esconde as nossas responsabilidades enquanto pais, cônjuges e profissionais, quando acordamos deste pesadelo nos assustamos com nossas escolhas individuais e nos amedrontamos diante da vida.

O mundo do trabalho exige cada vez mais dos trabalhadores, nos lares mais abastados os problemas estão na complexidade das atividades imateriais, enquanto nos lares mais desprovidos de recursos financeiros, os trabalhadores passam grande parte seu tempo em condução, com isso, estar próximo de filhos e familiares é um luxo incomensurável, gerando sempre insatisfação e consciência intranquila, medos e preocupações.

Nestas mudanças do mundo da gestão, as empresas trocam mão de obra por tecnologia, levando os trabalhadores a uma situação de constante instabilidades e medos de serem substituídos por máquinas, na atualidade o medo aumenta porque esta troca está atingindo trabalhadores mais qualificados e em cargos de diretoria e supervisão, que sofrem a concorrência com a inteligência artificial, obrigando-os a novas capacitações e constantes atualizações, tudo isso leva as famílias a um distanciamento crescente, uma desumanização ascensional e uma perda das funções sociais dos pais, gerando um caos generalizados na sociedade e uma perda de referências positivas no cotidiano das crianças e adolescentes.

Somos vítimas de uma sociedade centrada no lucro e na acumulação financeira, enterramos nossas vidas na loucura da competição desenfreada do mundo moderno e nos esquecemos dos compromissos familiares anteriores, neste ambiente, algumas famílias desistem de ter filhos e buscam uma vida que lhes garanta uma maior acumulação financeira e orçamentária, garantindo-lhes, nos momentos de senilidade, bolsos cheios de recursos, propriedades e tesouros monetários e corações marcados por parcos sentimentos de solidariedade e uma grande porção de solidão e desesperança.

A legitimação desta sociedade está nas vitrines das lojas e nas televisões de alta resolução, nos prazeres dos desfiles nos shoppings, no espetáculo da tecnologia, nos avanços das comunicações e nas facilidades dos smartphones que nos conectam com um mundo de sonho e fantasia, onde não existe espaço para tristezas, onde as postagens são sempre de pessoas alegres e bem sucedidas e as homenagens são feitas, na grande maioria, aqueles que menos fizeram para a coletividade, mas que mais apareceram para a mídia e para a coletividade.

A busca constante por lucros está matando o ser humano, enterrando os sentimentos mais nobres, isolando os indivíduos, degradando a natureza e condenando as pessoas a uma perda constante de sua sensibilidade social, os dramas no mundo não mais nos assustam, os medos das pessoas não mais nos levam a empatia e a perspectivas de uma melhora, esta está diretamente ligada as mudanças que devem ser conduzidas e empreendidas por cada indivíduo em sua intimidade, o mundo só muda quando o ser humano se transforma, esta transformação é urgente e necessária, se não a fizermos, em pouco tempo, estaremos novamente discutindo questões importantes, mas interpretando os fatos de forma equivocada e fugindo de discussões mais relevantes e fundamentais.

Os massacres assistidos quase ao vivo nesta semana mexeram com todos os indivíduos, uns se sensibilizam mais enquanto outros pouco se sintonizaram com a dor alheia, nesta busca por explicações das razões e dos motivos que levaram pessoas descritas como normais a adotarem atitudes irracionais, tentemos encontrar explicações nas escolhas que estamos fazendo nos últimos anos, deixemos de lado este excesso de tecnologias e as substituamos por mais diálogo, conversas e proximidade, substituamos presentes e mercadorias caras por mais limites, direitos e deveres,  assumamos a responsabilidade que cabe a cada um de nós e voltemos a mostrar a importância das crenças e dos valores morais, se não aprendermos com mais uma destas monstruosidades, muito brevemente estaremos conversando sobre os mesmos crimes e as mesmas violências, sempre buscando responsáveis e nos eximindo de nossas culpas.

Todos os seres humanos devem ser vistos como um misto de bem e de mal, nenhum indivíduo é dotado apenas de coisas boas e edificantes, aumentar nossas virtudes e reduzir nossas indigências nos levam a sinais claros de progressos visível e fundamental, este crescimento está centrado em valores e sentimentos melhores que demandam um incremento da educação, não uma educação que se concentre apenas em instrumentos cognitivos de compreensão do mundo, mas em uma educação que além destes instrumentos cognitivos nos auxilia na construção de valores maiores e mais sólidos, somente esta educação capacita o ser humano para a compreensão da vida e da sociedade e o aproxima dos valores que sustentam uma obra maior e mais consistente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os impactos da financeirização sobre o sujeito

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IHU – Junho 2010.

A financeirização é uma forma de biopoder, teoriza o economista Andrea Fumagalli. A autonomia pessoal é hoje muito mais limitada do que há três décadas, e a individualidade foi suplantada pelo individualismo: a alienação física tende a converter-se em cerebral

“No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia”, reflete o economista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a crise financeira é, também, uma crise de desenvolvimento capitalista, e a crise da governança não é apenas técnica, mas também política. Outro nexo entre a financeirização como forma de biopoder é a crescente privatização dos serviços de saúde, que “aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental”. Segundo Fumagalli, em nossos dias a “alienação do corpo tende a tornar-se cerebral”. O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário. Paradoxalmente, continua, a autonomia pessoal é muito mais limitada hoje do que há 30 anos: “A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho acabava em favor de outras estruturas disciplinares”. Resulta que atualmente a autonomia individual é limitada e reprimida, em plena “era da ideologia do indivíduo livre”. Em lugar da individualidade, reifica-se o individualismo.

Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006) e Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Verona: Ombre corte, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que considera a financeirização como uma forma de biopoder?

Andrea Fumagalli – No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia. Eles representam o lugar onde valoriza-se, ao mesmo tempo, a produtividade intangível e cognitiva e executa-se a privatização dos serviços sociais. Canalizando de modo forçado parte crescente da renda do trabalho (pensões e indenizações, além de renda que, por intermédio do estado social, traduzem-se nas instituições de proteção da saúde e da educação pública), substituíram o Estado como segurador social. Desse ponto de vista, representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Exercitam, portanto, o biopoder. Os mercados financeiros, assim, assumem o lugar do antigo estado de bem-estar keynesiano e levam a cabo as formas indiretas de redistribuição do capital para o trabalho, gerenciando de modo direto e distorcido as quotas crescentes de rendimento do trabalho que ali são canalizadas de forma mais ou menos forçada. Enquanto isso, as grandes instituições financeiras multinacionais são hoje organizações que valorizam “indiretamente” a acumulação da produção mundial, assim como no paradigma fordista os lucros das grandes multinacionais manufatureiras foram o espelho das relações de força entre o capital industrial e o trabalho assalariado.

Os mercados financeiros — por meio dos índices de mercado — representam, em resumo, um tipo de multiplicador real da economia, e neles condensam-se todas as expectativas dos grandes operadores econômicos. Não é por acaso que, na década passada, os bancos centrais fizeram depender as escolhas de política monetária (taxas de juro e a oferta de moeda corrente), em função do objetivo de estabilizar a dinâmica dos mercados financeiros, com a esperança — totalmente ilusória — de limitar as oscilações e a volatilidade. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de exploração perde a unidade de medida quantitativa ligada à produção industrial. Tal medida foi, de alguma forma, definida pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, medida pela tangibilidade da produção própria e pelo tempo necessário para a produção.

Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a engajar-se nas várias formas de trabalho, que tragam as horas de trabalho efetivamente autorizadas para coincidir sempre mais com o tempo de vida. Hoje, o valor do trabalho na base da acumulação capitalista é também o valor do conhecimento, dos afetos e dos relacionamentos, do imaginário e do simbólico. O êxito dessas transformações biopolíticas é a crise da medida tradicional do valor-trabalho e, com ela, a crise da forma-lucro. Uma possível solução “capitalista” era medir a exploração da cooperação social e do intelecto geral por intermédio da dinâmica dos valores de mercado. O lucro transforma-se assim em renda, e os mercados financeiros tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, o que se transforma em valor-finança que não é outro senão a expressão subjetiva da expectativa dos lucros futuros realizados pelos mercados financeiros que acumulam, desse modo, um rendimento. É esse o biopoder das finanças contemporâneas.

IHU On-Line – Em que sentido a crise das finanças é crise de governança financeira do biopoder atual?

Andrea Fumagalli – A crise de governança socioeconômica com base no papel dos mercados financeiros tem duas origens. A primeira diz respeito ao fato de que a atual crise financeira marca o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma medida de trabalho, pelo menos no contexto atual de fracasso da governança cognitiva do capitalismo contemporâneo. Assim, a crise financeira é também uma crise do desenvolvimento capitalista.

A segunda está na instabilidade estrutural do capitalismo atual, o que não pode ser sanado com ações corretivas de natureza reformista. Na presença de ganhos de capital, os mercados financeiros desempenham no sistema econômico o mesmo papel que, no contexto fordista, desempenhava o multiplicador keynesiano (ativado por gastos deficitários). No entanto — ao contrário do multiplicador keynesiano tradicional — isso leva a uma redistribuição destorcida de renda. Para que tal multiplicador seja operativo (> 1), é necessário que a base financeira (ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente aumentando e que os ganhos de capital acumulados sejam, em média, superiores à perda do salário mediano (que, a partir de 1975 em diante, foi de aproximadamente vinte por cento). Por outro lado, a polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas que estão na base do crescimento da mesma base financeira e reduz o salário médio. Aqui, então, abre-se a primeira contradição que faz com que a governança socioeconômica dos mercados financeiros, por intermédio da distribuição dos ganhos de capital, possa ser sustentada ao longo do tempo.

Endividamento crescente

A crise da governança não é apenas uma crise “técnica”, mas é também, e sobretudo, uma crise “política”. A condição para que os mercados financeiros possam apoiar as fases de expansão e de crescimento real seria o aumento constante da base financeira. Em outras palavras, é necessário que a quota de riqueza mundial canalizada para os mesmos mercados financeiros cresça constantemente. Isso implica um contínuo aumento da relação entre débito e crédito ou por meio do aumento do número de pessoas endividadas (grau de extensão dos mercados financeiros) ou por meio da construção de novos instrumentos financeiros que se alimentam do comércio financeiro já existente (o grau de intensidade mercados financeiros). Os produtos derivados são um exemplo clássico dessa segunda modalidade de expansão dos mesmos mercados financeiros. Sejam quais forem os fatores considerados, a expansão dos mercados financeiros é acompanhada necessariamente ou pelo aumento do endividamento ou pelo aumento da atividade especulativa e dos riscos envolvidos. Trata-se de uma dinâmica intrínseca ao papel dos mercados financeiros como a pedra angular do capitalismo cognitivo.

Falar sobre a especulação excessiva para a ganância dos gestores ou dos bancos não tem absolutamente nenhum sentido e só pode servir somente para desviar a atenção das verdadeiras causas estruturais dessa crise. O resultado final é, necessariamente, a insustentabilidade de um endividamento crescente, especialmente quando começa a ficar endividada parte da população com maior risco de insolvência: exatamente aqueles estratos sociais que, devido à precariedade dos processos de trabalho, não estão em condições de desfrutar daquele “efeito riqueza” que a participação nos ganhos do mercado de ações permitia aos estratos sociais mais abastados.

Nó contraditório

A crise de inadimplência no crédito imobiliário tem, assim, a sua origem em uma das contradições do capitalismo cognitivo contemporâneo: a natureza irreconciliável de uma distribuição desigual de renda com a necessidade de alargar-se a base financeira para continuar a desenvolver o processo de acumulação. Esse nó contraditório não é outro senão o vir à luz de uma irredutibilidade (superávit) da vida de boa parte dos atores sociais para subsunção (eles são fragmentados em singularidade ou definíveis nos segmentos de classe). Um superávit que hoje se expressa em uma multiplicidade de comportamentos: das formas de infidelidade às hierarquias corporativas, à presença de comunidades que se opõem à governança territorial, ao êxodo individual e grupal dos ditames de vida impostos pelas convenções sociais vigentes, até ao desenvolvimento de formas de auto-organização no mundo do trabalho e da revolta aberta contra novos e velhas formas de exploração nas favelas das megalópolis do Sul do mundo, nas metrópoles ocidentais, nas áreas de maior industrialização recente no sudeste da Ásia como na América do Sul. Um excedente que pode ser encontrado, declarando em uníssono, nos quatro cantos do planeta, que não está disponível para pagar por essa crise. A instabilidade incurável do capitalismo contemporâneo é também o resultado desse excedente.

IHU On-Line – Quais são os efeitos dessa crise em termos econômicos e subjetivos?

Andrea Fumagalli – Os efeitos da crise podem ser analisados em diferentes níveis: o macroeconômico e o macrorregional, ou seja, do ponto de vista dos efeitos sobre as hierarquias econômicas mundiais e o nível mais microeconômico e subjetivo relativo aos efeitos sobre a vida dos seres humanos.

Nível macroeconômico

A capacidade dos mercados financeiros para criar “valor” está relacionada ao desenvolvimento de “convenções” (bolhas especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente homogêneas que empurram os principais operadores financeiros a apoiarem determinados tipos de atividade financeira. Na década de 1990, era a Economia da Internet; nos anos 2000, a atração veio do desenvolvimento de mercados asiáticos (com a China entrando na OMC em dezembro de 2001) e da propriedade imobiliária. Os efeitos devastadores do colapso da bolha imobiliária, em 2008, exigiam uma forte intervenção do estado para tapar as lacunas da balança abertas nas grandes instituições bancárias, de seguros e financeiras. O Estado desenvolveu assim o papel de emprestador de última instância, e, consequentemente, a fundo perdido e sem qualquer estímulo ao pedido. É a recessão atual e a forte introdução de liquidez pública, mais que o excesso de despesas públicas, a principal causa do déficit/PIB. Em um cenário similar, estão os países mais dependentes da dinâmica econômica internacional a serem os mais penalizados, ou seja, os países que desempenham o papel de subfornecedores, sem poderem influenciar a trajetória tecnológica dominante. A área do Mediterrâneo está entre eles.

A especulação financeira pretende, assim, desenvolver uma nova convenção, que podemos definir como “Acordo do bem-estar”, em que o objeto dessa mesma especulação é diretamente a prosperidade (o bios) dos indivíduos. Dos acordos de tipo setorial à alta intensidade cognitiva (economia de internet), passando pelas convenções relacionadas ao desenvolvimento de áreas territoriais globais, chega-se, assim, a acordos que têm como objeto as condições de vida e de trabalho dos seres humanos. O biopoder das finanças confirma-se penetrante e cada vez mais direta. A crise europeia e as dificuldades dos EUA e do Japão evidenciam a capacidade de manutenção econômica demonstrada pelos países do Leste da Ásia e da América Latina (e, em primeiro lugar, do Brasil). A crise atual, portanto, põe em discussão a questão da hegemonia financeira dos EUA e a centralidade dos mercados de ações anglo-saxões no processo de financiamento. A saída dessa crise, necessariamente, marcará um deslocamento do centro de gravidade financeiro para o Leste e em parte para o Sul (América). Já, em nível produtivo e de controle dos escambos comerciais, ou seja, em nível real, os processos de globalização cada vez mais evidenciaram uma mudança do centro produtivo para o leste e para o sul do mundo. Desse ponto de vista, a atual crise financeira pôs fim a um tipo de anomalia que tinha caracterizado a primeira fase da expansão do capitalismo cognitivo: o deslocamento da centralidade tecnológica e do trabalho cognitivo para Índia e para a China, na presença da manutenção da hegemonia financeira no Ocidente. Quando o desenvolvimento dos países orientais (China e Índia), do Brasil e África do Sul era ainda impulsionado pelos processos de terceirização e subcontratação laboral no estrangeiro ditadas pelas grandes corporações ocidentais, não era possível identificar uma distonia espacial entre as duas principais variáveis de controle do capitalismo cognitivo: o controle da moeda-finança, por um lado, e o controle da tecnologia de outro. A atual crise financeira pôs fim à tal distonia espacial.
O primado tecnológico e o financeiro tendem desde então a se articular também em nível geoeconômico. Resulta que o capitalismo cognitivo, como um paradigma de acúmulo bioeconômico, torna-se hegemônico até na China, na Índia e no Sul do mundo. Isso não significa, seja dito claramente, que eles tenham deixado de ter importantes diferenças também radicais entre as diferentes áreas e os diferentes tempos por meio dos quais se distendem os processos capitalistas de valorização e por meio dos quais se rearticula continuamente a composição de trabalho controlado e explorado pelo capital.Também não é possível, então, estabelecer uma série de conceitos passepartout que são igualmente aplicáveis em Nairóbi, em Nova Iorque e em Xangai. O ponto é, especialmente, que o próprio sentido das diferenças radicais entre as localidades, as regiões e os continentes deve ser recomprimido dentro da rede heterogênea de sistemas de produção, de temporalidade e experiências subjetivas do trabalho, que constituem o capitalismo cognitivo.

Nível subjetivo e microeconômico

Os principais efeitos microeconômicos preocupam-se com a dinâmica do mercado de trabalho. As crises econômicas raramente produzem processos de transformações sociais, especialmente rebeliões. E frequentemente são utilizadas como uma gazua para iniciar o processo de reestruturação, também nos contextos em que não seriam justificadas. O resultado final, na verdade, é um aumento da insegurança, habitualmente justificada pela necessidade de combater o desemprego crescente. Se, depois de tudo isso, vêm unidas a políticas econômicas fiscais recessivas (como está acontecendo na Europa), ao agravamento das condições de trabalho e renda, também se adicionam o desmantelamento dos serviços sociais e a privatização da vida. Aqui estão as principais tendências:
• Uma vez terminada a fase decadente e recessiva do PIB, na atual fase de estagnação, o mercado de trabalho torna-se ainda mais flexível.
• Nesse contexto, a crise evidencia o grau e a intensidade da insegurança.
• Favorece-se relativamente a inserção de trabalhadores jovens (que são mais baratos e mais fáceis de serem demitidos) para substituir os de mais de quarenta anos com contratos de trabalho estáveis. Aumenta-se assim o problema dos acima de quarenta sem trabalho.
• Acentua-se o processo de terceirização, o que facilita ainda mais o processo de insegurança. Além disso, a quota de contratos atípicos aumenta também na indústria. A precariedade é condição comum, mesmo que prevaleça no setor de serviços.
• É penalizado o emprego das mulheres e interrompe-se o processo de feminização do trabalho.
• Não admira que o trabalho migrante venha ulteriormente penalizado, por meio da expulsão do mercado de trabalho.
• Em conclusão, o trabalhador e a trabalhadora migrantes são diretamente dispensados; o trabalhador e a trabalhadora indígenas, primeiro, são tornados inseguros e só sucessiva e eventualmente demitidos.

IHU On-Line – Como podemos compreender a alienação e as doenças enquanto efeitos dessa financeirização e biopoder?

Andrea Fumagalli – Nos últimos vinte anos, o processo de mercantilização da vida (da bios) deu passos gigantescos não só do ponto de vista tecnológico (por exemplo, o desenvolvimento da genética e da biotecnologia), mas também no que respeita à subsunção das atividades culturais, criativas e ambientais. O processo de “remodelação” interessou às estruturas espaço-urbanísticas das grandes cidades, modificando de modo estrutural a relação centro/periferia. A atividade cultural que é relacional; tornou-se uma fonte de valorização. A condição feminina e a atividade de reprodução tornaram-se paradigmas da condição econômica e precária da pós-modernidade. Tal processo teve repercussões graves para a saúde do gênero humano.

A crescente privatização dos serviços de saúde aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental. Em termos de corpo físico, está se ampliando no mundo uma divisão social e geográfica entre os que têm acesso à medicação e ao tratamento, e os que não o têm. A instituição pública não é mais uma garantia da saúde pública, assim como tinha evoluído na Europa tecnocrática do século passado no sentido foucaltiano. Da mesma forma, o desenvolvimento da divisão cognitiva do trabalho, graças aos processos de desmantelamento da educação e da sua privatização, determina novas segmentações sociais com base na possibilidade de acesso aos diferentes níveis de ensino, muitas vezes em detrimento do desenvolvimento de uma abordagem cultural crítica e sistêmica.
Hoje, a alienação do corpo tende a tornar-se cerebral. Reduziu-se a separação entre as atividades manuais (o braço) e a atividade intelectual (o cérebro), entre o processo de trabalho e o produto do trabalho, mas cada vez mais, uma vez que o cérebro se tornou máquina, desenvolveu-se uma alienação cerebral, totalmente interna ao próprio processo de trabalho e à vida humana. A alienação cerebral produzida de maneira sofisticada por causa do controle social é o instrumento de domínio do biopoder atual.

IHU On-Line – Como esse biopoder e financeirização impactam na constituição do sujeito e sua autonomia?

Andrea Fumagalli – O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário (também do ponto de vista existencial), o consenso do imaginário estereotipado veiculado pelo sistema de informação e de comunicação simbólico (considera-se o papel dos meios de comunicação como o Facebook e a internet, bem como o processo de atribuição de marca do consumo). A autonomia pessoal é hoje, de longe, muito mais limitada do que há trinta anos, nos dias de trabalho na fábrica. A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida (não automaticamente) também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho (principalmente no corpo físico) acabava em favor de outras estruturas disciplinares (família, gênero, escolaridade, raça etc.), embora menos difundidas sobre a mente humana a respeito das formas de controle e condicionamento social que hoje parecem prevalecer, quando as faculdades cognitivas são os principais fatores produtivos.
A autonomia individual resulta muito limitada e reprimida. È paradoxal que, na era da ideologia do indivíduo livre, o que vem reprimido é a individualidade em favor do individualismo. E sabemos bem que, entre a individualidade entendida como expressão potencial dos seus próprios talentos criativos e humanos e o individualismo como comportamento oportunista e egoísta, há uma grande diferença. Hoje, a negação da individualidade (e da sua autonomia) é expressa exatamente com a exaltação do individualismo.

 

A ética do mercado financeiro internacional é o lucro

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IHU – Outubro de 2008.

Para o professor Gilberto Dupas, a persistir essa crise no nível em que está, temos de esquecer realmente o patamar de crescimento de 5% pelo menos por um ano ou talvez mais.

Os fatores principais de preocupação em relação à renda e à demanda brasileira em função da crise financeira internacional, sob o olhar do professor Gilberto Dupas, é a “diminuição da demanda externa de commodities, que afetam nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país”. Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, Dupas alerta para o fato de que continuamos praticando, no Brasil, as maiores taxas de juros do mercado internacional. “Então, evidentemente que a diminuição da taxa de juros seria uma condição essencial, que não foi alcançada, para estarmos num período de maior estabilidade do crescimento”.

Gilberto Dupas é professor visitante da Universidade de Paris II e da Universidade Nacional de Córdoba e membro da Comissão de Ética da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES). Entre seus livros mais recentes publicados, citamos O mito do progresso (São Paulo: UNESP, 2006) e Espaços para o crescimento sustentado da economia brasileira (São Paulo: UNESP, 2007).

IHU On-Line – Com a melhora na renda dos brasileiros, aumentou o consumo também. O que muda e como esse cenário se transforma a partir da crise financeira internacional?

Gilberto Dupas – Nós passamos, na economia brasileira, por uma fase interessante, que foi disparada pela explosão das exportações de commodities neste século, a partir do grande aumento da demanda chinesa. Nesta fase, num primeiro tempo, a renda foi alimentada pelas exportações. Num segundo momento, que é esse onde estávamos um pouco antes da crise, vários outros fatores alimentaram a renda; não só o crescimento do emprego, como o crescimento da demanda interna, especialmente em alguns setores, como construção civil, além do fator de previdência e aposentadoria. Então, estávamos num momento da economia brasileira, crescendo mais de 5% ao ano, em que se associavam aos ganhos motivados pela exportação fatores endógenos, que significavam a expansão do mercado interno, que permitia esse crescimento. Precisamos lembrar, também, que, ao mesmo tempo em que crescia a renda, também crescia o endividamento de médio e longo prazo. A estabilidade relativa da inflação tinha permitido, ainda que com taxas de juro muito altas, recordes no mundo, com o Selic a 14%, que a expansão do prazo de financiamento, tanto de bens de consumo duráveis como de residências, proporcionasse um significativo aumento do endividamento, comprometendo, portanto, a renda futura do brasileiro. Evidentemente que já havia sinais de preocupação, embora pequenos, porque, como o prazo do endividamento aumentou e essas dívidas eram sustentadas por uma taxa de juros muito alta, imaginava-se que poderia haver na frente um ciclo de inadimplência por conta destes prazos longos de financiamento. Este era o quadro antes da crise internacional que tínhamos aqui no Brasil.

Depois da crise

Agora, podemos dizer que crise internacional afeta, fundamentalmente, duas coisas. Primeiro: a capacidade do Brasil de manter níveis de exportação da mesma magnitude em dólar que mantinha anteriormente, em função da queda da economia mundial. E, em segundo lugar, é preciso reconhecer que os efeitos desta queda da economia mundial caem sobre a própria renda interna, considerando que, se o país vier a crescer menos no ano que vem (já se fala em números da ordem de 2 a 3%), evidentemente a expansão da renda deve acompanhar essa diminuição do crescimento. Esses são os fatores principais de preocupação do lado da renda e da demanda: uma diminuição da demanda externa de commodities, o que afeta nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país.

IHU On-Line – Com a crise financeira internacional, como fica a questão dos empréstimos e financiamentos bancários?

Gilberto Dupas – Isso depende, justamente, deste quadro de projeção da renda futura do brasileiro. Houve uma sensível melhora nas rendas, especialmente das classes baixas. Uma parte muito significativa dos pobres foi incorporada à chamada classe média baixa.  Então, isso significou a possibilidade de uma classe social, que basicamente consumia poucos bens de consumo duráveis, entrar numa fase nova, que foi a que nós vimos até então. Vamos nos lembrar que financiamento é basicamente comprometimento das rendas futuras. E, portanto, as rendas futuras caindo, a lógica será de tomar novos empréstimos e diminuir o pagamento dos empréstimos em curso. Isso pode afetar o consumo. Outro fator preocupante também se refere à questão da casa própria. Especialmente nas classes de renda baixa, mas, em geral, o que tem predominado agora é não só o emprego formal, mas também o emprego flexível. E isso faz com que o tempo de permanência no emprego, na mesma atividade, encurte, o que significa também que os deslocamentos do local de trabalho devem ser mais intensos. Se a liquidez no mercado de imóveis estiver muito boa, o sujeito que comprou um imóvel e seu emprego passou para um lugar distante, pode vender esse imóvel e passar para a frente. Se, por acaso, a liquidez imobiliária estiver baixa, num momento de maior contração, e a sua condição de pagar as prestações de casa própria diminuírem, nós teremos provavelmente um imóvel abandonado, com dificuldades de liquidez. Então, esses são os fatores principais que podem afetar a questão dos empréstimos. Não nos esquecendo nunca que continuamos praticando as maiores taxas de juros do mercado internacional. Então, evidentemente que a diminuição da taxa de juros seria uma condição essencial, que não foi alcançada, para estarmos num período de maior estabilidade do crescimento. Pelo contrário, do jeito que as coisas caminham hoje, com o dólar neste novo patamar, e com a nossa dependência muito grande de importações (dado que acabamos nos acostumando em exportar commodities e importar tecnologia), significa um encarecimento muito grande das importações. Isso pode ter pressões inflacionárias e a tendência normal de um Banco Central ortodoxo como o nosso é reagir ao aumento de pressão de preços com aumento de juros ainda mais. O que pode tornar complicada não só a questão da inadimplência, mas também a própria condição de crescimento a níveis em que estávamos antes. O que quer dizer que, em última análise, a persistir essa crise no nível em que está, precisamos esquecer realmente o patamar de crescimento de 5% pelo menos por um ano ou talvez mais.

IHU On-Line – Considerando o capitalismo neste mundo globalizado, quais os maiores riscos para a economia nacional da crise financeira que abala principalmente os Estados Unidos?

Gilberto Dupas – Em primeiro lugar, essa crise nos pega e pega a maioria dos países da América Latina também numa posição de reservas bastante forte. É absolutamente inédito na história brasileira a reserva de mais de 200 bilhões de dólares. Isso pode nos dar, num primeiro momento, uma certa sensação de conforto. Mas precisamos imaginar que essas reservas têm como correspondentes, do outro lado, um estoque muito grande de capital especulativo, de capital flutuante internacional, ou de brasileiros do exterior que reaplicam aqui, que se movem com grande velocidade nos momentos de crise. Vimos agora, nestes dias, o impacto disso não só na bolsa de valores, como também no crédito de curto prazo. Estima-se que esse capital volátil deve atingir em torno de 280 bilhões e é possível que nesta crise tenham saído uns 30 bilhões. Isso quer dizer que há muito capital volátil ainda a sair. E se nós tivermos uma crise de grandes proporções, que junte uma recessão internacional com a diminuição das exportações do Brasil e com o aumento da taxa do dólar, nós poderemos ter sinais de crise de contas correntes, que já estão por aí. Isso pode significar que essas reservas, na pior das hipóteses, possam ser consumidas com grande rapidez, o que não só acenderia um sinal amarelo sobre a questão da dívida externa, mas também da dívida interna brasileira. Isso é tudo o que nós gostaríamos que não acontecesse.

IHU On-Line – Quais as principais repercussões no mundo inteiro da reprovação inicial do pacote bilionário de Bush para salvar os bancos americanos? Como entra aqui a discussão sobre a tensão entre público e privado, considerando o uso do dinheiro do Estado para recuperar instituições privadas como os bancos?

Gilberto Dupas – Tem se falado muito em Keynes nesses últimos tempos. Vocês mesmos estão nessa edição da revista preocupados com isso. Isso tem muito a ver, porque Keynes trabalhou com essa idéia da diferença entre especulador e investidor, caracterizando o mercado financeiro fundamentalmente como volátil, do ponto de vista do especulador, e a atividade produtiva como sendo o mercado do investidor. Keynes dizia que os mercados financeiros favorecem o investimento e sustentam a demanda agregada, na medida em que diminuem o risco do investidor de assumir posições ilíquidas. Porque, no caso, por exemplo, do mercado de ações, o investidor, quando investe num mercado estável, sabe que se essa companhia tiver uma rentabilidade menor do que a de uma bolsa estável, ele pode sempre vender suas ações em bolsa e poder fazer sua liquidez. O que quer dizer, nesse caso, que o mercado financeiro para ele poderia ser até um mercado bastante positivo com relação à dinâmica capitalista. Só que Keynes lembra que o investidor incorpora a idéia de que ele pode sempre sair da sua posição de ações e daí, citando o clássico, “o que vale para todos individualmente, mas que não vale para nenhum enquanto conjunto”. O que quer dizer o seguinte: se vem uma crise de grandes proporções e o mercado financeiro perde liquidez e trava, como o que vimos, acontece o que tipicamente chamamos de “comportamento de manada”; se todos querem sair ao mesmo tempo, ninguém pode sair. Foi o que vimos recentemente com relação às ações dos bancos americanos, que tiveram uma queda muito grande e que, portanto, viraram pó. Keynes estabelece claramente um perfil para a atividade de especulação, que diz ser uma atividade que consiste em prever a psicologia do mercado. E que “os especuladores podem não causar dano quando são apenas bolhas num fluxo constante de empreendimento, mas a situação torna-se séria quando o empreendimento de converte em bolhas num turbilhão especulativo”. É exatamente o que nós temos aqui agora. Basicamente, o mercado especulativo no mercado financeiro se transformou num jogo de pôquer.

IHU On-Line – Que previsões podemos fazer para o crescimento econômico brasileiro, tendo em vista o desfavorável cenário financeiro internacional?

Gilberto Dupas – Tudo indica que esta fase de crescimento de mais de 5% no Brasil deve refluir para níveis em torno de 3%, se tudo estiver mais ou menos bem no ano que vem. As repercussões mais profundas da crise sobre os bancos brasileiros, por exemplo, é muito provável que sejam bastante pequenas, porque não só os bancos brasileiros não entraram como os bancos americanos, de maneira tão intensa nesse mercado especulativo de segundo e terceiro nível, mas porque também o Brasil tem fundamentos razoáveis agora para não estar tão atingido por essa crise. Mas estará atingido, sem dúvida, e, evidentemente, o quadro só se tornará mais grave se tivermos efetivamente uma erosão rápida das nossas reservas por conta de uma crise de conta corrente, envolvendo a diminuição das exportações e a dificuldade de diminuir as importações, além de pressões inflacionárias por conta do preço dessas importações no consumo interno, e algum sinal de preocupação com relação à dívida interna realimentada à taxa de juros muito alta. Se a crise internacional for grande o suficiente para que contamine dessa forma o quadro brasileiro, aí poderíamos ter cenários mais preocupantes no Brasil.

IHU On-Line – Como o capitalismo e o mercado liberal podem enfrentar o “mal financeiro” constituído? Podemos vislumbrar possíveis transformações na estrutura do capitalismo?

Gilberto Dupas – Essa é uma questão muito relevante e difícil. De um lado, podemos dizer que a história do capitalismo é a história das suas crises. Capitalismo sem crise não é capitalismo. Fazendo uma retrospectiva histórica, lembramos que o capitalismo se tornou o sistema dominante depois da derrocada dos regimes socialistas reais e, sendo dominante, se viu desobrigado a trazer efetivamente o que prometia, que era o bem-estar geral, da inclusão de populações maiores. Pelo contrário, o que vemos é um aumento da população pobre no mundo. O que fez diminuir o número de pobres nesses últimos 20 anos foi o crescimento da China, que se deu aplicando regras contrárias aos princípios liberais. No entanto, não há nenhum sistema alternativo que podemos propor quando criticamos o capitalismo. Mas temos de fazer essa crítica, esperando que o capitalismo possa se reformar. Quais são as chances de uma reforma no sistema capitalista? É muito complicado, porque o risco e a capacidade do empreendedor de buscar oportunidades de maximização do lucro onde quer que elas estejam e passando por cima de valores de natureza social e política só pode ser controlado com Estados fortes e com instituições reguladoras internacionais fortes, que possam definir as regras, que limitem o tamanho das “garras” do capitalismo, de tal forma que as empresas possam exercer sua atividade de maximização do lucro sem danos sociais muito intensos. Estamos vendo o sintoma de que as instituições financeiras internacionais não funcionam mais neste nível do capitalismo globalizado, operando com grande velocidade e transferência de fluxos em tempos reais em mercados especulativos. A grande pergunta é: o capitalismo quer ser regulado? E a segunda pergunta é: o capitalismo pode ser regulado por instituições reguladoras internacionais?

IHU On-Line – Qual a ética predominante no sistema financeiro internacional, que nos permite entender as origens e os rumos da atual crise?

Gilberto Dupas – A ética do mercado financeiro internacional e a ética do capitalismo é o lucro. Este é o grande problema. Portanto, a sociedade precisa criar a sua ética para definir limites para essa mola fundamental da lógica capitalista. Este é o grande dilema: a sociedade civil, através do exercício da política, das suas entidades políticas, tem de buscar uma ética que procure definir regulações que permitam ao capitalismo exercer a sua dinâmica de tal modo que a “fúria” do empreendedor não bata de frente com as necessidades da sociedade e com os princípios éticos mais fundamentais da promoção do ser humano, da inclusão social mínima, da proteção contra a fome, do emprego mínimo decente. Vamos ver se a ética da sociedade pode combinar com a ética do lucro.

 

O cinismo da argumentação econômico-financeirista

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IHU – Março de 2015.

Para o professor Ladislau Dowbor vivemos um momento dramático em que as soluções às crises afetam as populações mais pobres

Ao focar os desequilíbrios e contradições das soluções financeiristas para a atual crise econômica, o professor Ladislau Dowbor argumenta que atingir os grandes eixos de despesa do Estado só agrava a situação das populações mais miseráveis. “O Estado tem um papel de redistribuição dos recursos e da redução das desigualdades, então quando se reduzem os gastos apenas do lado do governo, se está, em grande parte, atingindo os recursos que dizem respeito à parte mais pobre da sociedade”, sustenta, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “É natural que a ideia de restringir as reformas ao reajuste fiscal seja amplamente apoiada pelas elites”, complementa.

Em seu sentido mais amplo, a crise que vivenciamos é uma crise do humanismo, como atesta Dowbor. “O momento é dramático porque está todo mundo querendo consumir mais. Toda a mídia, todo o sistema de informação que é financiado por empresas produtoras quer que a gente consuma mais. Esse negócio está, simplesmente, gerando um efeito catastrófico: temos o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, a liquidação dos mares, e por aí vai”, explica. “Nós temos uma área de miséria, baseada nos 4 bilhões da base da pirâmide social, quase dois terços da população, chamada ‘educadamente’ pelo Banco Mundial como ‘as pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização’, são os pobres do planeta”, sustenta.

Há contradições prementes na sociedade brasileira, como o fato de existir televisão em mais de 97% dos domicílios, mas não ter saneamento básico em 40%. Ocorre que, na opinião do pesquisador, testemunhamos, atualmente, um novo tipo de pobre. “Nós temos uma pressão imensa do que se convencionou chamar de ‘elite’, mas é uma elite extremamente retrógrada reagindo de maneira visceral, muito mais com o fígado que com a cabeça, ao fato que os pobres estão levantando a cabeça, estão frequentando aeroportos, estão começando a participar da vida social. Então a parte das elites e grande parte da classe média alta acha isso escandaloso”, provoca.

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. Além disso, é consultor de diversas agências das Nações Unidas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para compreendermos melhor a questão de fundo da economia brasileira, gostaria que o senhor explicasse as diferenças entre “reajuste financeiro” e “reajuste fiscal”…

Ladislau Dowbor – O ciclo de recursos monetários e financeiros na economia é basicamente o mesmo. Quando falamos em reajuste fiscal a tendência é focar nos desequilíbrios das contas de governo. Quando falamos em ajustes financeiros engloba o ajuste fiscal, mas é mais amplo. A parte da fiscalidade, que se cobra via imposto e que se orça para os gastos, verifica o equilíbrio do montante para as contas públicas. Já o equilíbrio financeiro vai incluir as dinâmicas de toda a movimentação privada de recursos através dos bancos, dos crediários, por meio dos sistemas privados, ou seja, o conceito é mais amplo.

IHU On-Line – De que forma o reajuste fiscal está mais alinhado à perspectiva política do que à econômica?

Ladislau Dowbor – Quando se focam os desequilíbrios na conta pública e entra uma visão política de que o Estado é quem deve reduzir os seus gastos, isso vai atingir os grandes eixos de despesa do Estado que são, em particular, as áreas sociais como saúde e educação; vai atingir as infraestruturas; e vai atingir as áreas de transferência de recursos dos diversos setores sociais que podem ser tanto a previdência quanto o Bolsa Família, além dos diversos programas deste tipo. O Estado tem um papel de redistribuição dos recursos e da redução das desigualdades, então quando se reduzem os gastos apenas do lado do governo, se está, em grande parte, atingindo os recursos que dizem respeito à parte mais pobre da sociedade. É natural que a ideia de restringir as reformas ao reajuste fiscal seja amplamente apoiada pelas elites.

IHU On-Line – Uma das alternativas à questão econômica apresentada pelo atual governo, por meio do Ministério da Fazenda, é de que é preciso cortar gastos e continuar elevando os juros. Mas como resolver a contradição posta nesta solução? Que setores são beneficiados por essa dinâmica e quais são os mais prejudicados?

Ladislau Dowbor – Quando se fala em cortar gastos, um certo reajuste fiscal pode ser até interessante na medida em que ele conduza a um certo enxugamento da máquina (estatal) e a uma busca de maior eficiência do uso dos recursos. Fazer isso periodicamente nos governos e nos países, em si, não é mal, mas não reduzindo estruturalmente a participação do governo na sociedade. Quanto aos juros, há uma confusão que é feita por praticamente todos os meios de comunicação. Há, por um lado, uma taxa sobre a dívida pública que agora é de 12,75%. Há outra, ao tomador final (os consumidores), que pagamos no crediário, no cartão de crédito, nos bancos, para a pessoa física e jurídica e sobre estas devemos pensar separadamente. Essa parte dos juros deve ser dividida em separado.

Os juros que consistem na Taxa Selic, os juros sobre a dívida pública, são basicamente a taxa que o governo vai pegar dos nossos impostos para transferir os juros para quem aplica na dívida pública, essencialmente os bancos, o mercado financeiro, os intermediários. Isto é, quando eu tenho minha poupança, o banco pega o meu dinheiro e vai aplicar em títulos da dívida pública que vão pagar a 12,75% e somente o banco vai receber esses juros. É uma transferência de dinheiro público para os bancos. A grande justificativa é que isso é necessário para combater a inflação. É um argumento falacioso, porque esse juro não é utilizado no comércio, nas empresas e coisas do gênero. Na verdade é uma pressão dos grandes intermediários financeiros para que o governo transfira mais dinheiro de nossos impostos para os bancos. Isso não contempla só os bancos, mas também diversos grupos de seguradoras.

Quando observamos as variações dos juros sobre a dívida pública — a Taxa Selic era de 7,5% — é por pressão dos bancos que querem voltar a ter estas transferências do governo sem precisar produzir. É uma pressão essencialmente política e a inflação é utilizada como argumento de justificação. Portanto, “não” se estariam aumentando os juros sobre a dívida pública para engordar os bancos, mas sim para proteger os bancos; no Brasil tudo se faz para as elites e não para o bem-estar da população. Por outro lado, ao observarmos a taxa de juros da Selic, percebemos que não houve mudança na taxa de juros comerciais, que são absolutamente escorchantes. Na realidade não se está modificando a dinâmica da inflação.

IHU On-Line – Como a capacidade de compra da maior parte da população foi “drenada” pelos bancos e de que forma isso impacta no processo de redistribuição de renda e crescimento do país?

Ladislau Dowbor – Na última década foi feito um imenso esforço de trazer para dentro do mercado cerca de 40 milhões de pessoas, foram gerados cerca de 20 milhões de empregos formais e tivemos um avanço imenso. Por exemplo, em 1991 a expectativa de vida do brasileiro era de 65 anos e, atualmente, é de 75 anos. Nas duas últimas décadas o brasileiro passou a viver em média dez anos a mais, isto é, ele tem dez anos a mais para reclamar. Há avanços significativos na interiorização do desenvolvimento. Em 1991, 85% dos municípios brasileiros — existem 5.575 cidades — estavam em termos de Indicador de Desenvolvimento Humano – IDH em um nível muito baixo, abaixo de 0.50. Em 2010, apenas 32 municípios, portanto, 0,6%, estavam nesse nível catastrófico. Fazendo uma relação desses avanços com a capacidade de compra da sociedade, gerou um momento de forte avanço do sistema econômico. O sistema financeiro, por sua vez, com suas diversas ferramentas, se adaptou rapidamente e começou a sugar esses recursos que aumentaram na base da sociedade.

Por exemplo, as pessoas que veem a oportunidade de comprar uma geladeira obviamente têm dificuldades de pagar à vista, então vai ter um crediário que vai apresentar ao cliente uma prestação que cabe no bolso, sabendo que de modo geral as pessoas não têm ideia do cálculo financeiro e o do imposto. A Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contábeis – Anefac apresenta uma média de juros dos artigos do comércio de 104%. A pessoa vai comprar sua geladeira ou seu fogão, que são bens de necessidade básica, mas paga o dobro do que outra pessoa que paga à vista. Então na realidade se está drenando a capacidade de compra, pois como se paga o dobro, no âmbito geral, a pessoa somente poderá gastar a metade de seu rendimento, porque se endivida muito, mas não compra muito; se diz que a prestação cabe no bolso, mas tem que caber no bolso durante 24 meses.

Agora somamos o que as pessoas compram com cartão. O que se paga no cartão a crédito, em geral, os bancos vão reter 5% do valor das compras, no débito é cerca de 2% a 3%. De qualquer forma, sempre que se comprar com o cartão os bancos vão drenar entre 2% e 5% do valor da compra. Se somarmos toda a massa de compras com cartão que a população faz dá uma conta gigantesca de recursos. Para exemplificar, sobre todas as movimentações em que incidia a antiga CPMF , que na época era de 0,31%, eram gerados, segundo a revista Veja, R$ 40 bilhões por ano. Atualmente, somente no cartão, sem entrar no rotativo, já se está pagando um valor, pois a loja recebe dos bancos com os 5% já descontados. Então imagine a compra sobre a base daquilo que fica no rotativo, ou seja, quando as pessoas não têm dinheiro suficiente para pagar no cartão. No meu caso, a PUC me paga pelo Santander cujo rotativo é de 633,21%. Isto é, uma coisa absolutamente abominável, um suicídio financeiro, mas isso é tratado como uma coisa normal.

É interessante fazer uma comparação. Fui ver o Media Markt , uma rede europeia parecida com as Casas Bahia, ou esses outros similares, e eles cobram 1,05% ao mês. Assim uma compra de R$ 600 em 18 meses vai resultar, ao final, em um gasto de R$ 699. Eu fiz um estudo em uma loja de Joinville, em Santa Catarina, de uma televisão de R$ 690 e o custo final dela será de mais de R$ 1,4 mil. Então se somar os crediários, o cartão de crédito simples pagando na modalidade de crédito e os rotativos, a população tem a capacidade de compra sugada pelos intermediários financeiros, que não produzem nada.

Ainda tem a modalidade de crédito para a pessoa física. O governo criou um sistema de crédito consignado com a modalidade de juros entre 25% e 30%, o que é escorchante. Esse tipo de crédito, na Europa, está na faixa de 4% a 5% ao ano. No geral a pessoa física que vai pedir um crédito no banco vai pagar cerca de 100%. Portanto, a metade da capacidade de compra vai para o banco. O crédito à pessoa jurídica, que está na base de 40% a 50%, torna inviável criar uma empresa e pagar esse tipo de juro. O resultado que se tem com esses diversos elementos é, de um lado, a redução drástica da capacidade de compra da população e, com isso, o efeito de dinamização da economia, através da compra, esfria; de outra parte, isso impacta o empresário produtor que está recebendo muito pouco por seu produto, porque o grosso do lucro está sendo sugado pelo intermediário financeiro. Se o produtor recebe pouco e a população está perdendo a possibilidade de compra pelo grau de endividamento, há um duplo esfriamento da economia seja pela capacidade de investimento por meio da produção, seja pela capacidade de compra do cidadão.

Como a Taxa Selic é extremamente elevada e o governo cede para o intermediário financeiro cerca de R$ 250 bilhões a R$ 300 bilhões dos nossos impostos, em vez de aplicar isso em infraestrutura, saúde, educação e semelhantes, há uma esfriamento da economia por parte da capacidade de investimento do Estado. Chamo isso de “Triângulo das Bermudas” porque você está travando a demanda, os investimentos e as políticas sociais do governo. Na realidade o exercício que eu fiz — é o mesmo que fiz para muitos países das Nações Unidas — é o do ciclo financeiro completo. Então, para fechar esse circuito analisamos os intermediários financeiros, que se enchem de dinheiro tanto pela taxa Selic quanto pelas diversas modalidades de crédito, e percebemos que eles não só não reaplicam esse dinheiro na economia como jogam o dinheiro para fora em paraísos fiscais e, portanto, deixam de pagar impostos.

Se o banco pegasse nossas finanças e aplicasse em uma empresa que fabrica sapatos seria ótimo. Vai gerar lucro para o empresário, parte desse lucro ele vai devolver com o pagamento dos juros e o sistema circula de maneira adequada. O problema é que aqui se formou um cartel de bancos que trava o efeito dinamizador dos nossos recursos que coloca a economia em funcionamento e não há economia que sobreviva a um sistema como este.

IHU On-Line – Por que, apesar de institucionalmente o Estado afirmar que tem uma política tributária progressiva, na prática ela se torna regressiva? De que forma essa dinâmica corrobora a tese de Piketty  sobre a desigualdade, desta vez com dados do Brasil?

Ladislau Dowbor – O paralelo com o Piketty é interessante porque ele mostra, nos estados em que ele analisa, particularmente os Estados Unidos e os países desenvolvidos, que as grandes fortunas estão se formando por aplicações financeiras e funcionam sem estímulo ao desenvolvimento. Piketty mostra a desigualdade, sobretudo no 0,1% das gigantescas fortunas que se formam.

Nós tivemos agora, em Davos, no Fórum Econômico Mundial, o estudo da Universidade de Oxford mostrando que no planeta 85 famílias têm mais patrimônio acumulado que a metade mais pobre da população mundial, ou seja, 3,5 bilhões de pessoas. Essa concentração de renda e patrimônio em nível planetário tem sua representação no Brasil. Essa diferença vem de onde? Esse dinheiro tem que ser tirado do bolso de milhões de pessoas que estão pagando no cartão de crédito, no crediário, nas diversas formas de dívida.

O que Piketty estava mostrando nos seus estudos é como isso tem impacto nos países em desenvolvimento. Um banco como o Santander, um gigante mundial, 25% a 30% dos seus lucros ele tira do Brasil. Na realidade, nós pagamos o desenvolvimento do sistema financeiro internacional. Há um conjunto de estudos que se desenvolveram em nível mundial, por exemplo, Tax Justice Network , nos Estados Unidos; os estudos sobre as transferências ilegais, chamado Global Financial Integrity

No caso brasileiro cerca de R$ 7 bilhões são transferidos ilegalmente através de um mecanismo chamado de missing voicing, que é fraude sobre fatura, onde se sobrefatura ou subfatura as ações internacionais para fazer transferência para fora do país. Se alguém transfere para fora do país R$ 100 milhões e o Produto Interno Bruto – PIB do Brasil é de R$ 5 bilhões, cerca de 2% da riqueza que deveria somar à economia interna são transferidos para o exterior. Nosso crescimento já estaria, por exemplo, em torno dos 3%.

Há outros mecanismos que, com a crise financeira mundial, também estão sendo estudados para outros continentes. O Kofi Annan , que foi secretário geral da Organização das Nações Unidas – ONU considera que esse sistema de missing voicing puxa da renda da África do Sul cerca de 40 milhões de dólares por ano. De certa maneira, o exercício que eu fiz é a dimensão brasileira de um serviço de financeirização nacional que drena os recursos da parte mais pobre da população e fica difícil para os empresários investirem naquilo que chamamos de economia real, o que significa dificuldade de aumentar os salários e que gera a redução da pulsão da economia produtiva por meio da drenagem do capital financeiro.

IHU On-Line – O capitalismo financeirista ficou velho demais para nossas sociedades tecnocientíficas? Que alternativas poderíamos vislumbrar em um novo horizonte?

Ladislau Dowbor – Quando observamos o que acontece em diversos lugares, há coisas interessantes. Por exemplo, a Alemanha se protegeu razoavelmente, apesar das dificuldades, e o crescimento deles foi praticamente zero ano passado, pelo fato de que as poupanças não estão alocadas em bancos, mas em caixas municipais de poupança e isso vai financiar pequenos investimentos locais, que geram emprego e rendimento à população da região. Na Polônia, que segundo o The Economist foi o país que melhor escapou da crise financeira mundial, existem cerca de 472 bancos cooperativos. Então não se drena a capacidade econômica, senão, usa-se o dinheiro das pessoas para desenvolver projetos produtivos para as diversas regiões. O desafio principal é que os nossos recursos que estão sendo drenados para a financeirização voltem para o sistema produtivo, voltem a pagar os impostos para pagar as políticas sociais de modo que as gerações futuras possam se desenvolver.

IHU On-Line – Estamos sempre à beira de uma “crise financeira mundial”, em que os Estados devem sempre manter a austeridade para “salvar” a economia. Que lições a Islândia tem a oferecer para o mundo? Como o senhor avalia a realização de um plebiscito no Brasil sobre a dívida pública?

Ladislau Dowbor – Há uma série de alternativas. Nos Estados Unidos há o trabalho da senadora Hazel Henderson  nas propostas de expansão dos bancos públicos. Há a opção da Islândia que foi nacionalizar os bancos para gerar controle sobre os sistemas especulativos. Há iniciativas de se criar um sistema entre as nações de comunicação de evasão para enfrentar os paraísos fiscais e enfrentar o tipo de organização surrealista que se vê através do HSBC. Este banco, em suas contas suíças, ajuda a fazer evasão fiscal e só de brasileiros são aproximadamente 8.600 contas de fortunas catalogadas nesses dados que saíram agora. Há uma dimensão de alternativas em determinadas nações de travar o sistema especulativo e há as iniciativas internacionais de obrigar os grandes grupos financeiros a informar sobre os fluxos; além disso, nesses principais centros de regulação, promover um avanço de se criar um arcabouço jurídico, que nos Estados Unidos se chama Lei Dodd-Frank , mas que está sofrendo imensa resistência por parte dos grupos financeiros. Está se tentando uma regulação semelhante na Europa, pelo Banco Central Europeu.

Eu acrescentaria um quarto eixo que é interessante. Em inúmeros lugares as pessoas estão saindo dos bancos. Por exemplo, nos Estados Unidos há um sistema peer-to-peer em que as pessoas repassam recursos diretamente a quem precisa um empréstimo sem passar por nenhum banco, trata-se de uma desintermediação do sistema financeiro. Se pegarmos o Banco Palmas , em Fortaleza, eles criaram a própria moeda e pegaram o Banco Comunitário de Desenvolvimento que ajuda a financiar os pequenos projetos sem pagar os juros escorchantes do cartão de crédito e coisas do gênero.

Atualmente uma pesquisa da Universidade de São Paulo – USP mostrou a existência de 103 bancos comunitários no Brasil e temos algumas dezenas de municípios que já imprimem moeda própria e facilitam o desenvolvimento local. Em Imperatriz, no Maranhão, 90% do que se encontra nas prateleiras do mercado vêm do Sudeste. Isso é um absurdo, pois faz os produtos viajarem por quase dois mil quilômetros gastando estradas, gastando diesel, gastando caminhão, em vez de estimular a produção local e o autoconsumo, que gera emprego, gera produção mais barata, gera produtos sem tantos conservantes, etc. Então, na realidade, todo o sistema de especulação financeira tem de voltar a ser um sistema que ajude a desenvolver a economia real e não a aumentar fortunas privadas de grandes magnatas das finanças.

No Brasil, os bancos chamam de “investimento” o que é aplicação financeira. Nos Estados Unidos não existe a palavra de aplicação financeira, eles chamam tudo de investiment. Essa distinção é muito importante para termos mais pessoas entendendo o processo. Outra dinâmica que dificulta o entendimento é que no Brasil, para confundir, os grandes grupos apresentam o juro mensal. Isso é treta, porque o juro tem que ser calculado ao ano, porque as pessoas pensam que um juro mensal de 2% é menos se comparado ao juro anual de 6%, que é três vezes maior, mas não é. Eu tive um aluno que trabalhava nessas redes e ele dizia “professor, aqui (no Brasil), vender a prazo é muito fácil, pois ninguém entende de matemática financeira”. Quando se apresenta um juro de 2% a uma pessoa, ela pensa “isso é uma merreca, uma bobagem”, mas não é. O fato de apresentar juros ao mês é uma coisa escandalosa, porque tira a capacidade das pessoas de entenderem que tipo de negócio está sendo feito. Se colocam na negociação “você vai pagar 100% de juros” a pessoa entende que a metade do investimento que é feito vai para o intermediário financeiro e a outra metade é para comprar o produto.

A Akatu  teve uma iniciativa interessante criando e publicando uma cartilha em defesa dos consumidores que querem comprar legitimamente sua geladeira ou equipamentos eletrodomésticos básicos. Isso ocorreu, sobretudo, porque os intermediários financeiros descobriram esse dinheiro picado e distribuído entre milhões de pessoas e o sistema financeiro de juros permite a eles sugarem e com isso esterilizarem o imenso esforço de distribuição de renda feito no país.

IHU On-Line – Em que medida a crise civilizacional que vivenciamos não pode ser reduzida às questões política e econômica? Estamos diante de uma crise do humanismo?

Ladislau Dowbor – Esse é uma dimensão mais ampla. Ela se conecta com a primeira, mas na verdade é mais complexa. Nós temos 7,2 bilhões de habitantes. Só para as pessoas entenderem o que isso significa, pensemos quando nasceu o meu pai, em 1900, éramos 1,5 bilhão, atualmente somos 7,2 bilhões, repito. O aumento é dramático, está todo mundo querendo consumir mais. Toda a mídia, todo o sistema de informação que é financiado por empresas produtoras quer que a gente consuma mais. Esse negócio está, simplesmente, gerando um efeito catastrófico: temos o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, a liquidação dos mares, e por aí vai. O WWF  publicou há dois meses um relatório sobre a destruição da vida dos vertebrados no planeta. Nós perdemos, entre 1970 e 2010, 52% da vida de vertebrados do planeta. Ou seja, nós estamos destruindo a vida em um ritmo absolutamente avassalador. Isso é irrefutável, os dados estão aí.

De um lado estamos destruindo o planeta em função da ganância de grupos que querem ganhar cada vez mais e mais; os americanos dizem “greed is good”, “a ganância é boa”. O segundo elemento dessa crise civilizacional é que estão deixando o planeta para aproximadamente um terço da população mundial, que são os grandes privilegiados, sobretudo o 1% que está no topo da pirâmide, ilustrada nas 85 famílias que têm um patrimônio acumulado maior que o da metade da população. Isso tem efeitos práticos, como o 1,3 bilhão de pessoas sem acesso à luz elétrica; pense que todas as crianças nessas casas não podem estudar decentemente, não têm acesso à informática e aos sistemas modernos. Está se preparando uma nova geração de desigualdade. Há 2 bilhões de pessoas que não têm acesso à água limpa e sabemos que a água contaminada é o principal vetor de doenças, o que gera mais gastos. Temos, segundo o Banco Mundial, 1,3 bilhão de pessoas que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. Nós temos uma área de miséria, baseada nos 4 bilhões da base da pirâmide social, quase dois terços da população, chamada “educadamente” pelo Banco Mundial como “as pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização”, são os pobres do planeta.

Esse lado social está implodindo o planeta de outra forma. As explosões não são só nos países árabes, há movimentos de marginalizados por toda a parte, porque vivenciamos uma situação muito espantosa. Encontraremos, por exemplo, dados de que há televisão em 97% dos domicílios brasileiros, mas, no caso do saneamento básico, temos cerca de 40% das residências sem esse serviço. O problema é que as pessoas sabem, por meio da televisão, que podem ter direito à educação decente para os filhos, a uma saúde decente, isto é, não são mais pobres como antigamente de cabeça baixa e analfabetos completos. As pessoas agora querem exigir seus direitos. Então se esse planeta, pela parte das elites, não acordar e começar a realmente utilizar o volume gigantesco de recursos parados em paraísos fiscais ou nos sistemas especulativos e reinventar isso para financiar o desenvolvimento efetivo dos países para reforçar a inclusão produtiva, o desenvolvimento vai para o brejo.

IHU On-Line – Que Brasil teremos nos próximos quatro anos?

Ladislau Dowbor – Nós temos uma pressão imensa do que se convencionou chamar de “elite”, mas é uma elite extremamente retrógrada reagindo de maneira visceral, muito mais com o fígado que com a cabeça ao fato que os pobres estão levantando a cabeça, frequentando aeroportos, estão começando a participar da vida social. Então a parte das elites e grande parte da classe média alta acha isso escandaloso. Esse tipo de reação emocional não é só aqui, em 1964 vimos as madames que saíram na “Marcha da família com Deus” e coisas do gênero. Vimos as tentativas que foram feitas na véspera do suicídio de Vargas  tentando uma dinâmica de que tudo é corrupto e que temos que derrubar o Vargas. Nós temos hoje uma elite política golpista, na minha compreensão, que quer um certo retrocesso. Quando olhamos as manifestações de Junho de 2013 percebemos ali, misturado, gente que quer fazer pressão política por mudança só que com sinais contraditórios, onde tem uma parte, a da direita, querendo garantir seus privilégios, mas também há pessoas que, legitimamente, estão dizendo que devemos ir muito mais além, mais Prouni , mais extensão dos sistemas de formação profissional, mais investimento social, mais tecnologia para a agricultura familiar e por aí vai. Na verdade eu me colocaria na posição de quem quer que o Brasil volte a avançar.

O problema é que a pressão por parte do sistema financeiro trava o desenvolvimento. Então vejamos, a Europa baixou a cabeça, transferiu trilhões de dólares para os bancos, assim como os Estados Unidos fizeram para salvar seus bancos. O desafio é muito grande, mas essencialmente político, de uma classe conservadora de privilegiados que vêm mantendo um elitismo de Estado. Superamos a escravidão, e isso nem faz tanto tempo assim, conseguimos que a mulher tivesse direito ao voto — e estamos começando a ampliar os direitos das mulheres —, conseguimos eliminar do mundo o coronelismo. Quando olhamos em termos históricos tivemos avanços significativos, estamos em um mundo com muitas democracias. Entretanto, vamos sentir por toda parte a reação contra as democracias. Os ataques dos Estados Unidos à Venezuela por conta do petróleo; os ataques da direita na Bolívia, no Equador, na Argentina e outros.

De certa maneira o Brasil não é uma ilha. Em um clima de insegurança geral e especulação financeira a nossa grande vantagem é de ser um país que tem 200 milhões de consumidores. Nós temos uma base interna econômica muito forte e podemos depender menos de todo o sistema internacional e precisamos incluir de maneira decente muitíssima gente que somente começou a consumir um pouquinho. Então, o horizonte interno de preencher um espaço econômico gera uma capacidade fundamental, mas isso não ocorre diminuindo o investimento público, reduzindo os salários, pelo contrário, isso se faz gerando a capacidade de compra que permita dinamizar o conjunto. Junto com a África Subsaariana, temos a maior reserva de terras agrícolas do planeta e temos água. Com a expansão da população mundial há uma demanda muito forte por produtos agrícolas, que não é só alimento, mas também ração animal, biocombustível e fibras.

Sobre a crítica de o Brasil estar se reprimarizando, isso é uma grande bobagem. Se observarmos o setor da agricultura moderna, ele não tem nada a ver com o setor primário. O sistema de gestão do solo é extremamente sofisticado, inclusive demais, pois considero que há um processo químico exagerado. O Brasil não necessariamente vai encontrar o seu caminho somente por meio da indústria. Na realidade, com a necessidade de inclusão de uma imensa faixa da população que cria um horizonte de expansão interno, que não nos torna reféns da economia internacional, nos deixa em situação de um imenso potencial de fornecimento das necessidades básicas que o planeta demanda. Para o mercado interno se desenvolve um conjunto de áreas de bens e serviços diversificados e para fora se aproveitam as nossas vantagens em comparação com outros países. A América Latina é oca economicamente.

 

 

A “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado

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Fernando Ferrari Filho destaca que em situações de crises de demanda efetiva, políticas fi scal e monetária contra-cíclicas e políticas de renda são imprescindíveis para mitigar os problemas de desemprego

Conforme análise do economista Fernando Ferrari Filho, “em um mundo globalizado e financeirizado, de livre mobilidade de capitais, a crise do sub-prime é a expressão mais clara e contundente de como a demanda por riqueza financeira e especulativa acaba gerando crises econômicas”. Com certeza, continua ele, “Keynes e os pós-keynesianos são as referências para entendermos os turbulentos dias atuais”. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, Fernando Ferrari afirma que “a crise de liquidez financeira dos Estados Unidos sem dúvida alguma afeta o lado real da economia norte-americana, ocasionando deflação dos ativos e recessão, e desencadeia um efeito contágio na economia mundial, principalmente na economia européia, especialmente a região do Euro, e a economia asiática”.

Fernando Ferrari Filho é graduado em Economia, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Economia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia, pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-doutor pela University of Tennessee System (1996). Atualmente, é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele publicou, nos Cadernos IHU Idéias nº 37 o artigo: As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econômica de Keynes. O texto está disponível para download em www.unisinos.br/ihu

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Keynes podem ser úteis no sentido de compreender a crise financeira internacional? Keynes contribui para vislumbrarmos alguma saída ou alternativa?

Fernando Ferrari Filho – A origem da crise do subprime está relacionada às perdas causada pelo crescente default dos empréstimos das hipotecas de subprime, grande parte delas “securitizadas” e distribuídas a investidores do mercado global. O agravamento da referida crise, por sua vez, passa pelo aumento da fragilidade financeira produzida por um lento e não percebido processo de erosão das margens de segurança de firmas e bancos, visto que os agentes apresentam posturas especulativas, que resultam em práticas de empréstimos de alto risco. Pois bem, sabendo que a teoria keynesiana explica os motivos pelos quais economias monetárias/capitalistas são inerentemente instáveis – sinteticamente, em um contexto de incerteza aguçada em relação aos resultados econômicos esperados em um futuro próximo e diante de um ambiente institucional desfavorável às tomadas de decisões, os agentes econômicos postergam decisão de gastos (consumo e investimento) e preferem liquidez (manutenção da riqueza na forma monetária) –, logo, em um mundo globalizado e “financeirizado” e de livre mobilidade de capitais, a crise do subprime é a expressão mais clara e contundente de como a demanda por riqueza financeira e especulativa (“securitizada” e “coberta”) acaba gerando crises econômicas. Com certeza, Keynes e os pós-keynesianos, dentre os quais H. Minsky, são as referências para entendermos os turbulentos dias atuais.

IHU On-Line – O senhor acredita que a crise financeira internacional em efeito dominó pode provocar mudanças no capitalismo?

Fernando Ferrari Filho – A crise do subprime e, por conseguinte, a crise de liquidez financeira dos Estados Unidos, sem dúvida alguma afeta o lado real da economia norte-americana, ocasionando deflação dos ativos e recessão, e desencadeia um efeito contágio na economia mundial, principalmente na economia européia, especialmente a região do Euro, e a economia asiática.

IHU On-Line – Segundo Keynes, o que é necessário para assegurar a estabilidade econômica e a harmonia social?

Fernando Ferrari Filho – Em situações de crises de demanda efetiva, políticas fiscal e monetária contra-cíclicas e políticas de renda são imprescindíveis para mitigar os problemas de desemprego. Essa, sem dúvida, é a principal mensagem do capítulo 24 da The general of employment, interest and money, de J. M. Keynes.

IHU On-Line – Qual a contribuição do Estado para a sobrevivência do capitalismo? Como o senhor avalia, nesse sentido, a postura do presidente Bush e do presidente Lula?

Fernando Ferrari Filho – A “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado. Em outras palavras, pelo fato de os mercados terem, inerentemente, falhas de coordenação, a intervenção do Estado, visando criar um ambiente institucional favorável à realização de investimentos privados e expandindo a demanda efetiva, é imprescindível. Sem dúvida alguma, a discussão internacional atual não está centrada na questão terrorista, mas, sim, na crise financeira mundial, no fracasso da Rodada de Doha e na perspectiva da recessão mundial, entre outros temas econômicos. Nesse sentido, o discurso de Lula da Silva foi muito mais relevante do que o de G. W. Bush.

IHU On-Line – Podemos imaginar no contexto atual a proposta de Keynes de um capitalismo administrado, em que as disfunções do mercado fossem supridas pela intervenção do Estado?

Fernando Ferrari Filho – As crises cambiais e financeiras dos últimos anos, tais como as cambiais dos países emergentes ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000 e a recente crise norte-americana, mostram que a reestruturação do sistema monetário internacional está na ordem do dia. Nesse particular, mais uma vez, o legado de Keynes é de fundamental importância para se pensar a referida reestruturação. Uma proposta de reestruturação do sistema monetário internacional, tendo como base as idéias de Keynes, passa, pelo menos, por quatro pontos: (1) criação de um international market maker, emissor de uma moeda de conversibilidade, capaz de assegurar a liquidez necessária à expansão da demanda efetiva mundial; (2) controle dos fluxos de capitais de curto prazo (especulativos); (3) mecanismos de reciprocidade de ajustamento de balanço de pagamentos; e (4) taxas de câmbio administradas. Em outras palavras, a reestruturação do sistema monetário internacional precisa ser arquitetada de forma tal que o referido sistema não fique à mercê do livre mercado e, principalmente, da hegemonia econômico-financeira de determinado país.

IHU On-Line – Como Keynes veria o chamado “livre mercado”?

Fernando Ferrari Filho – Com ceticismo. Keynes, a partir, dos anos 1920, passa a ser bastante crítico do capitalismo à la laissez-faire. Por exemplo, em um artigo intitulado “The end of laissez-faire”, Keynes já argumentava que “o capitalismo, relativamente, administrado poderia ser mais eficiente”.

IHU On-Line – Podemos perceber algo das proposições de Keynes na política econômica do governo Lula?

Fernando Ferrari Filho – Em termos do tripé da política macroeconômica, qual seja, regime de metas de inflação, metas de superávit fiscal e flexibilidade cambial com livre mobilidade de capitais, política que vem sendo implementada no país desde 1999 e que foi endossada pelo governo Lula da Silva, não há similaridade entre a referida política e as proposições de Keynes. Todavia, se levarmos em consideração os programas de natureza social, tais como Bolsa Família e o Programa de Aceleração do Crescimento, pode-se dizer que esses programas procuram distribuir renda e criar um ambiente institucional favorável à realização dos investimentos privados, respectivamente.

IHU On-Line – Como entender, principalmente no contexto econômico atual, a afirmação de Keynes de que, em uma economia monetária, a moeda nunca é neutra?

Fernando Ferrari Filho – Em um mundo no qual o futuro é incerto e desconhecido, os indivíduos preferem reter moeda e, por conseguinte, suas decisões de gasto, sejam de consumo, sejam de investimento, são postergadas. Em outras palavras, a retenção de moeda, por parte dos indivíduos, se constitui em uma forma de segurança contra a incerteza em relação aos seus planos de transações e produção. Por que moeda? Porque moeda é o ativo líquido par excellence.

IHU On-Line – Quais as principais mudanças na economia introduzidas pela revolução teórica de Keynes e que permanecem com força até os dias atuais?

Fernando Ferrari Filho – As principais contribuições da teoria keynesiana são o “princípio da demanda efetiva” e a “teoria monetária da produção”. As duas contribuições ajudam a explicar porque as economias capitalistas não convergem para o pleno emprego e, mais ainda, são sujeitas a recorrentes instabilidades. O principal legado em termos de política econômica e que é válido nos dias de hoje? Estado e mercado são duas instituições complementares. Há uma sinergia entre ambas as instituições. A intervenção do Estado, seja em termos, eventualmente, de atividade produtiva e de políticas públicas, seja no sentido de criar mecanismos que propiciem um ambiente institucional favorável às tomadas de decisões dos indivíduos, constitui-se na solução para as crises de demanda efetiva e de desemprego.

 

 

Heranças coloniais e inserção econômica internacional

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Um dos grandes desafios para a economia de um país gigantesco como o Brasil, é como se inserir na economia internacional, numa sociedade que passa por grandes e rápidas transformações, se posicionar no novo modelo econômico e produtivo global é um imenso desafio, sem esta inserção o país estará condenado a uma mediocridade perpétua, relegando sua autonomia e soberania para outros países e outras nações, perdendo uma grande oportunidade de levar o país a alçar altos voos e melhorar as condições de vida da população.

Se olharmos para a história econômica brasileira, perceberemos que o país já se inseriu na lógica global em alguns momentos de sua trajetória, principalmente quando ainda era uma colônia de Portugal e nos caracterizávamos como uma economia agroexportadora, baseada em produtos primários de baixo valor agregado, voltado ao mercado externo e marcada por ciclos de monoculturas que se alteravam com constância, sem uma maior profissionalização e marcado por um grande amadorismo na gestão.

Como destacou o economista Celso Furtado no monumental Formação Econômica do Brasil, nossa nação durante muitos séculos foi descrita como uma economia baseada em ciclos econômicos que se alternavam, inicialmente com o pau-brasil, depois a cana de açúcar, os metais preciosos e o ciclo cafeeiro, todos estes ciclos contribuíram para que a metrópole extraísse uma ampla gama de recursos da colônia, mantendo esta última empobrecida e não melhorando de forma estrutural a riqueza de Portugal, estes recursos serviram apenas para satisfazer os luxos e os confortos de uma elite degradada.

Nestes ciclos encontramos uma estrutura centrada na extração e posterior embarque de produtos para a metrópole, com isso, as mercadorias daqui extraídas não colaboraram para melhorar as condições sociais da população, eram riquezas que foram transportadas para Portugal e este se utilizou dos recursos advindos desta venda para a aquisição de produtos e mercadorias industrializadas da Inglaterra, sem visão estratégia os portugueses perderam a oportunidade de construir uma estrutura produtiva moderna e dinâmica.

O Brasil estava inserido no comércio global, os portugueses carregavam seus navios com mercadorias advindas do Oriente Médio, principalmente temperos, frutos do mar, tecidos, lãs, dentre outros. Estes produtos eram trocados com as colônias portuguesas da África por escravos e levados ao Brasil, onde estes últimos eram deixados e os navios eram novamente carregados com produtos extraídos da colônia, principalmente cana de açúcar, pau-brasil e metais preciosos, o Brasil desde seu nascimento estava inserido no comércio internacional como uma colônia produtora de produtos primários e de baixo valor agregado.

Neste período de grande exploração, os portugueses não conseguiram introduzir um novo modelo econômico e produtivo, embora tenham extraído grandes fortunas e imensas riquezas do “comércio” com o Brasil, uma pequena parte destes recursos foi diretamente investido na economia portuguesa, como o país não tinha as perspectivas imediatas de desenvolver sua indústria ou outros setores estratégicos, continuou sua dependência de outros países na região, principalmente sua ampla dependência dos ingleses, na época a maior economia do mundo e dona da hegemonia no comércio internacional, país com inúmeras colônias, grande capacidade de empreender e ótima localização geográfica

A colonização brasileira teve início com a descoberta do país, em 1500, e terminou com a independência, fato este ocorrido em 1822, nestes mais de trezentos anos, a economia do país esteve sempre atrelada a uma economia mais estruturada, depois da colonização nossa dependência econômica passou para a Inglaterra, na época a grande pioneira da Revolução Industrial, momento central da história da humanidade que trouxe um salto tecnológico e produtivo em escala internacional e contribuiu para o crescimento da migração das pessoas do campo para as cidades e para um incremento de produtividade.

A colonização brasileira foi descrita como uma colonização de exploração, o que nos diferenciou da colonização dos Estados Unidos, cuja modelo foi chamada de povoamento, enquanto as riquezas da colônia portuguesas eram nítidas e bastante evidentes, na colônia inglesa, as montanhas e os territórios inóspitos, contribuíram para que os Estados Unidos fossem pouco explorados pelos descobridores, algo diferente aconteceu com o Brasil, que desde seus primórdios se caracterizou como uma economia explorada e muito mal gerida pela metrópole, com heranças negativas que se perpetuaram no tempo e ainda hoje podem ser vistas como características intrínsecas ao país.

Os portugueses legaram ao Brasil, um modelo muito burocratizado e marcado por traços fortes de intervencionismo e corrupção, as decisões deviam ser sempre tomadas e autorizadas pelo imperador, o que fazia com que tais decisões demorassem muitos meses, obrigando os investimentos e os empreendimentos a se perpetuarem durante muitos anos. Nos Estados Unidos encontramos uma situação bastante diferente, com um modelo mais descentralizado e dinâmico, as decisões eram sempre mais rápidas e dinâmicas, marcadas por um espírito mais acelerado, empreendedor e bastante flexível.

A base da economia colonial estava assentava na mão de obra escrava, com isso, o Brasil vai ficar muito distante da introdução de um mercado consumidor de massas, com grande parte do trabalho centrada na escravidão, o sistema capitalista nacional apresentava severas limitações, sem emprego e renda o sistema ficava inviabilizado na sua essência.

A escravidão também foi central para a construção de uma sociedade excludente, como uma grande parcela desta sociedade estava ausente desta estrutura de emprego, salário, renda e consumo, construímos um modelo onde a renda e a riqueza se concentrou na mão de poucos e a pobreza era uma característica geral e marcante, esta herança se mantem até os dias atuais fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

Dos quatro grandes ciclos econômicos vividos pelo país no período da colonização, o que mais contribuiu para o crescimento do país foi o ciclo do café, iniciado na metade do século XVIII, este ciclo teve seu maior progresso no século XIX, quando impulsionou a economia do país e contribuiu para que o processo de desenvolvimento adentrasse ao interior do país, inicialmente na região do norte fluminense, região de Campos dos Goytacazes e Vassoura e, posteriormente, na região do noroeste paulista, principalmente no entorno de Bauru, onde se desenvolveu imensamente, contribuindo para o crescimento do país e o fortalecimento do capitalismo nacional, além de impulsionar o crescimento das ferrovias que transformaram a região e abriram caminho para um forte ciclo de crescimento e desenvolvimento da região.

No século XIX, o país visualiza um embate na cultura cafeeira, que denota claramente como era a estrutura produtiva do país, de um lado o Brasil arcaico, escravista, marcado por baixa produtividade e com apoio político como instrumento de controle das varáveis econômicas e, de outro, um Brasil mais moderno, a favor de trabalhadores livres e adepto de investimentos variados para diversificar a produção e diminuir a dependência dos produtos primários de baixo valor agregado, neste embate  o Brasil moderno se sai melhor mas, quando toma o poder, percebe-se que o chamado de moderno não é tão moderno assim, com o poder nas mãos passa a adotar políticas tradicionais e conservadoras, mantendo o poder político para extrair do Estado Nacional as mais variadas benesses.

Ao analisarmos a sociedade brasileira percebemos que esta é uma das grandes características do Brasil, o moderno se une ao arcaico e constroem juntos um novo modelo de gestão, não existe uma ruptura com a sociedade tradicional e a construção de uma nova organização social, com isto estamos sempre presos a interesses e teorias antigas e ultrapassadas, enquanto o mundo avança o país se ressente de mais modernidade, uma modernidade verdadeira e dinâmica, mas o que vemos é uma modernidade conservadora.

Os ciclos anteriores foram pródigos em extrair grandes somas de riquezas do país e levá-las para o exterior, alimentando uma casta portuguesa cheia de interesses imediatistas, muito dinheiro, muita riqueza e nenhum projeto de desenvolvimento, o resultado desta política foi um incremento na importações de produtos ingleses que, com estes recursos, angariaram grandes somas de recursos para financiar o seu desenvolvimento industrial, se tornando o berço da civilização industrial e a economia dominante do mundo até o começo do século XX.

A ausência de uma estratégia de desenvolvimento para Portugal foi transplantada para o Brasil que, durante muitos anos depois da independência, se caracterizou por disputas predatórias entres grupos variados, principalmente entre setores da economia agrícola e, posteriormente, depois da Revolução de 1930, quando se confrontaram os agroexportadores e defensores de um Brasil agrícola e, de outro, um Brasil industrializado, que via na indústria uma estratégia central de desenvolvimento e de melhoria nas condições sociais da população, na sua maioria marcada pela pobreza extrema e pela marginalidade, tão bem retratados na obra Os bestializados de José Murilo de Carvalho.

A inserção do país na economia global, no período colonial, trazia alguns constrangimentos para a economia brasileira, de um lado, os produtos agrícolas tinham seus preços definidos pelo mercado externo, os demandantes tinham grande poder sobre a definição dos preços destes produtos. De outro, os produtos importados por países como o Brasil, na sua maioria mercadorias industrializadas, tinham seus preços definidos pelo produtor, com esta estrutura de preços do comércio internacional, percebíamos que a economia global privilegiava os países dotados de um maior desenvolvimento industrial em detrimento dos países agrícolas, o que inviabilizava uma estratégia de planejamento estratégico e perpetuava o poder e a dominação dos países ricos e industrializados.

O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a escravidão, postergamos o máximo possível em colocar um ponto final nesta situação degradante, mesmo sofrendo a pressão dos ingleses, que viam na escravidão um entrave ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ainda conseguimos manter uma estrutura escravocrata durante muitas décadas, desta forma percebemos uma herança de exploração, sofrimentos, altos custos e baixa produtividade, todas estas características que dão ao Brasil uma sociedade dividida entre exploradores e exploradas, com salários baixos e pouco dinamismo econômico.

As nossas escolhas sempre foram truncadas, nossas chamadas revoluções carecem de transformações estruturais, nossas leis sempre foram burladas de acordo com interesses de grupos poderosos e forças escusas e nossos sonhos sempre foram deixados de lado, desde sempre somos o país do futuro, nosso passado foi marcado por grandes exploração e desigualdade, fomos fundamentais para financiar grandes revoluções em outros países e regiões, impulsionamos com estas riquezas solos e regiões distantes mas, ainda não conseguimos encontrar um caminho para nosso próprio desenvolvimento, nossa elite se satisfaz com o desenvolvimento de outras regiões e evita contribuir para o desenvolvimento local, algo que só as teorias da psicanálise podem nos explicar convincentemente.

A estrutura agroexportadora perdeu força no Brasil com a crise de 1929, neste momento os nossos maiores compradores reduziram imensamente a compra de produtos brasileiros em decorrência da depressão em curso nos Estados Unidos e que se espalhou para toda a economia internacional. Com estoques elevados e preços em queda, o governo foi obrigado a interferir no mercado para evitar a quebra da economia cafeeira, neste momento os estoques de café são incinerados e os preços voltam ao ponto de equilíbrio, mas a economia cafeeira entra em colapso e abre espaço para novos grupos políticos, econômicos e sociais, tudo isso culmina na chamada Revolução de 30 e na ascensão de Getúlio Vargas ao poder, inicia-se o processo de industrialização brasileira.

O Estado sempre foi o local das grandes lutas políticas no Brasil, desde a independência até a Revolução de 30, o grande detentor dos poderes estatais eram os cafeicultores, que se utilizaram de seu poder para criar leis e construir políticas para satisfazer seus interesses econômicos e financeiros. Com a ascensão dos industriais a partir de Getúlio Vargas, percebemos uma outra elite dominando as estruturas do Estado e se utilizando deste poder para demarcar suas políticas e interesses, o Brasil rural perde espaço para um país mais urbano, novas formas de trabalho e instrumentos de estímulo ao setor produtivo, determinando os interesses do setor industrial.

O Estado brasileiro sempre defendeu os interesses dos grupos que o comanda, os setores mais fragilizados e depauperados são relegados ao esquecimento, sendo entregues a estes setores apenas as migalhas do capitalismo e os pequenos benesses do capital.

No começo do século XXI o Brasil se depara com desafios diferentes, a industrialização não trouxe os ganhos prometidos e o grande agente econômico é o setor do agronegócio, o país hoje pode ser descrito como um dos maiores exportadores de produtos agrícolas, para muitos especialistas temos um potencial para sermos o celeiro do mundo, temos clima e terra em abundância e solos e regiões ainda inexplorados, temos tecnologias de pontas construídas pelas empresas em parcerias com universidades e centros de pesquisas públicas e privadas, somos um dos maiores responsáveis pelos saltos de produtividade no campo e temos espaços de sobra para assumir esta liderança, o que nos falta é uma estratégia centrada em interesses maiores, estratégias que coloquem no centro os desejos e os anseios da sociedade brasileira, o fim da desigualdade e da pobreza, sem isto o país vai continuar sendo descrito como o país do futuro, um futuro sempre distante e que nunca chega.

 

 

 

 

 

 

 

O desafio dos bons empregos

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Dani Rodrik – Valor Econômico – 11/02/2019

No mundo inteiro, atualmente, o principal desafio para conquistar a prosperidade econômica inclusiva é a criação de números suficientes de “bons empregos”. Sem emprego produtivo e confiável para a vasta maioria da população em idade ativa de um país, ou o crescimento da economia continua fugaz ou seus benefícios acabam concentrados em uma minoria insignificante. A escassez de bons empregos também solapa a confiança nas elites políticas, o que alimenta a reação adversa autoritária e nativista que afeta muitos países atualmente.

A definição de um bom emprego depende, evidentemente, do nível de desenvolvimento econômico do país em questão. É, normalmente, um cargo estável no setor formal que vem acompanhado de salvaguardas trabalhistas essenciais, como condições de trabalho seguras, direitos de barganha coletivos e regulamentações contra demissões arbitrárias. Isso possibilita, no mínimo, manter um estilo de vida de classe média, de acordo com os padrões do país em questão, com renda suficiente para moradia, alimentação, transportes, educação e outros gastos da família, além de alguma poupança. Como argumenta há muito tempo Zeynep Ton, do MIT, as estratégias de “bons empregos” podem ser tão lucrativas para as empresas quanto o são para os trabalhadores.

Mas o problema mais profundo é o de caráter estrutural. Tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento sofrem hoje de uma crescente incompatibilidade entre a estrutura da produção e a estrutura da população em idade ativa. A produção está se tornando cada vez mais intensiva em qualificação, enquanto o grosso da força de trabalho continua de baixa qualificação. Isso gera uma disparidade entre os tipos de empregos e os tipos de trabalhadores disponíveis.

A tecnologia e a globalização conspiraram para ampliar essa discrepância, com a automação e a digitalização cada vez maiores da indústria e dos serviços. Embora as novas tecnologias pudessem ter beneficiado trabalhadores de baixas qualificações, em princípio, na prática o avanço tecnológico foi, em grande medida, de substituição de mão de obra. Além disso, o comércio e os fluxos de investimento internacionais, e as cadeias de valor mundiais, em especial, homogeneizaram as técnicas de produção no mundo inteiro, tornando muito difícil para países mais pobres competir nos mercados mundiais sem adotar técnicas intensivas em qualificações e em capital semelhantes às utilizadas nas economias avançadas.

O resultado disso é a intensificação do dualismo econômico. Toda economia do mundo de hoje é dividida entre um segmento avançado, geralmente mundialmente integrado, que emprega uma parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários e sob condições precárias.

Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais.

Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários.

Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa.

Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados.

Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital.

Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação.

A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção.

A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski).

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O resultado disso é Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais. Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa. Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados. Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital. Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação. A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção. A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski)

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

Desigualdade, Políticas Sociais e crescimento econômico: uma análise de duas experiências exitosas de combate à exclusão social no Brasil contemporâneo.

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Artigo escrito com o intuito de contribuir para a discussão da desigualdade recente no Brasil e no mundo, destacando os avanços na sociedade brasileira e analisando dois programas exitosos de políticas públicas.

Sociedade da vigilância em rede

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Ricardo Abramovay – Revista Quatro Cinco Um: a revista dos livros – 08/03/2019

Três livros ainda inéditos no Brasil expõem o desencanto de pensadores com as promessas da inteligência artificial

A vigilância tornou-se a marca característica das sociedades contemporâneas ao final da segunda década do milênio. Não se trata de perseguição política, de arapongas ou de bisbilhotice, e sim de algo muito mais profundo, pervasivo e impactante: a vigilância se converteu em parte decisiva da nossa sociabilidade, ou seja, da maneira como nos relacionamos uns com os outros e com as coisas. E assim é porque a vigilância ocupa o epicentro do modelo de negócios das mais importantes empresas da economia contemporânea, ou seja, as de maior valor, de maior presença em nossa vida cotidiana, que concentram o cerne da inovação tecnológica e espalham pelo conjunto da sociedade o uso de dispositivos conectados ao ecossistema corporativo que lideram. O Estado não é seu principal vetor, embora tenha participado (às vezes ativamente, às vezes por omissão) em sua emergência.

“Compartilhamento” é a forma adocicada de sua apresentação pública. Os 510 mil comentários e as 136 mil fotos postadas no Facebook por minuto, as 40 mil buscas no Google por segundo (1,2 trilhão em 2018) ou os 60 milhões de fotos que sobem ao Instagram todos os dias nos perfis de seus 500 milhões de usuários diários são a matéria-prima da mais importante inovação tecnológica do século 21: a inteligência artificial.

O que caracteriza a vigilância não é só o sistema de captação de dados embutidos em nossos computadores, celulares e em todas as dimensões de nossa vida — quando fazemos compras, quando nos deslocamos de carro ou de transporte coletivo, e também os momentos em que estamos dentro de casa ou no trabalho. Tão importante quanto a captação desses dados é a capacidade daqueles que os usam de fazer inferências a respeito do nosso comportamento, abrindo caminho para que nos conheçam melhor e possam aplicar modelos às nossas atitudes com o objetivo de prever o que faremos.

O que foi caracterizado, há vinte anos, por Manuel Castells, em sua clássica trilogia, como a “sociedade da informação em rede”, converteu-se na “sociedade da vigilância em rede, que integra um conjunto de sensores embutidos não só nos dispositivos que identificamos como produtores de dados (computadores e celulares), mas também em equipamentos que se integram de maneira imperceptível para nós, com o objetivo não só de conhecer o nosso comportamento, mas, sobretudo, de interferir em nossa conduta como consumidores e cidadãos. A computação não é mais uma atividade específica: ela se tornou ubíqua.

Churchill dizia: ‘Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam’. Isso se aplica às tecnologias que marcam as mudanças sociais, em qualquer época

É verdade que novas tecnologias têm sempre o impressionante poder de modificar a sociabilidade humana. Como mostra Robert Gordon  em The Rise and Fall of American Growth [ascensão e queda do crescimento americano], a água encanada, a coleta de lixo, a eletricidade, o telefone, o rádio, a TV, o automóvel, o transporte de massas, os antibióticos e o raio X mudaram completamente a sociabilidade e a própria subjetividade dos habitantes dos países que puderam adotar essas transformações de forma generalizada, no início do século 20. Winston Churchill dizia: “Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam”. É claro que isso se aplica às tecnologias que marcam as mais importantes mudanças sociais, em qualquer época. Elas sempre nos moldam de alguma forma, assim como os prédios de Churchill.

Mas a capacidade de nos moldar vinda das tecnologias contemporâneas, sobretudo da inteligência artificial, é inédita. Por mais que o automóvel, o elevador, os túneis e os viadutos alterem a nossa percepção sobre o espaço, as distâncias e os territórios, eles estão fora de nós, diferentemente dos dispositivos digitais, que não apenas colocam a vigilância no nosso bolso, no nosso corpo, na nossa casa, no nosso carro e nas ruas, mas usam-na para prever e, cada vez mais, determinar o que fazemos. São tecnologias que interferem de maneira direta e voluntária em nossa mente.

Três livros recentes, ainda não publicados no Brasil, estudam algumas das mais importantes dimensões desse fenômeno: a moldagem dos comportamentos humanos, a orientação da política na era da vigilância em rede e o lugar histórico da vigilância na evolução do próprio capitalismo.

Arquitetura do comportamento

Não existe em português uma boa tradução para o verbo que dá título ao livro de Brett Frischmann (da Villanova University e de Stanford) e Evan Selinger (do Rochester Institute of Tecnology), Re-Engineering HumanityEngineering, em inglês, aproxima-se de um conjunto que inclui construir, influenciar, moldar, manipular e fazer. “Re-engenheirar” a humanidade não é simplesmente um meio de ampliar as vendas, com base nas informações coletadas sobre as preferências das pessoas oferecendo-lhes, nas palavras de Mark Zuckerberg, anúncios que lhes sejam relevantes. Na verdade, as informações permanentemente coletadas e analisadas por algoritmos, cujo funcionamento nos é completamente opaco, permitem que nossa conduta seja previsível e, justamente por isso, abrem caminho a uma interferência em nosso cotidiano que é inédita e atinge todas as esferas da vida social.

Em 2014, por exemplo, a Amazon patenteou um sistema que permite antecipar o que os clientes querem comprar, antes mesmo que eles próprios o saibam. A mágica está nas informações reunidas sobre cada um de nós e na análise que delas é feita. Essa é uma das explicações para a compra pela Amazon, em fevereiro de 2019, da Eero, uma start up que amplia o alcance das conexões de wi-fi e elimina os pontos cegos (ou surdos) no interior das residências. Boa notícia, salvo, como lembra matéria do Financial Times, o fato de que o dispositivo terá o condão de ampliar a quantidade e a variedade de dados domésticos que a Amazon recebe sobre os usuários da inovação, fortalecendo assim sua capacidade preditiva sobre o nosso comportamento e somando-se às informações já hoje fornecidas pelo robô doméstico Alexa, do qual já foram vendidos nada menos que 100 milhões de unidades. Somando-se Alexa, Siri (da Apple) ou Google Assistant, um quarto dos domicílios norte-americanos possui hoje um smart speaker. A eles podem-se acrescentar outros dispositivos de vigilância como as tvs inteligentes da Samsung, que não só respondem a comandos de voz, mas registram e armazenam as informações derivadas de conversas no local onde o aparelho se encontra. Ou, então, equipamentos capazes de informar a quem está em casa sobre o estado de espírito de um membro da família que vem chegando da rua.

A Amazon patenteou um sistema que antecipa o que os clientes querem comprar, antes que eles o saibam

Da mesma forma que o gps vai subtraindo das pessoas a capacidade de se localizar, serão cada vez mais frequentes os dispositivos voltados a substituir a nossa percepção, a nossa intuição e a nossa empatia por informações que orientam o nosso comportamento. A atenção moral e o cuidado com o outro são superados pelos resultados matematicamente certeiros da mineração de dados. Reduzem-se os custos de transação nas relações pessoais, mas essa redução, ao mesmo tempo, abre caminho para que a compreensão do outro seja terceirizada para as máquinas. As trocas pessoais são “re-engenheiradas”.

Em última análise, o caminho tomado pelas tecnologias digitais está desafiando a ideia-chave do Iluminismo de que somos indivíduos autônomos e responsáveis por nossas decisões. Claro que essas capacidades humanas são aprendidas e desenvolvidas na vida social. O problema é que as bases para uma formação individual voltada ao exercício da liberdade podem ser solapadas por dispositivos que, sob o pretexto de ampliar nossa mente, de operar como próteses cognitivas, acabam inibindo o nosso maior bem comum, que é a capacidade autônoma de conviver com os outros.

A conclusão é que um dos mais importantes desafios do século 21 está na liberdade de nos desconectarmos e de nos tornarmos independentes do poder, embutido nos dispositivos em que estamos imersos, de determinar quem somos e como nos relacionamos.

Engenheiros filósofos

Os impactos políticos das tecnologias de vigilância são estudados pelo advogado britânico Jamie Susskind, ex-assessor de Tony Blair e do senador Edward Kennedy, em Future Politics. Sua tese central é que as leis, nas sociedades contemporâneas, serão executadas (enforced) e estarão cada vez mais embutidas nos dispositivos digitais que usamos. É o veículo autônomo (e não seu condutor) que vai submeter-se aos limites de velocidade e à regulamentação para estacionar. O tema já havia sido estudado, desde 1999, nos trabalhos do advogado e ativista norte-americano Lawrence Lessig, que o sintetizou na fórmula “code is law”. Os programas digitais terão a força de determinar a nossa conduta.

Se, durante o século 20, se tratava de saber em que medida a nossa vida era determinada pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade civil, agora a questão (que norteia o livro de Susskind) é outra: em que medida a nossa vida será determinada por poderosos sistemas digitais e em que termos esse poder será exercido.

A dominação — a capacidade de fazer os outros agirem segundo a vontade do dominador, na célebre definição de Max Weber — cada vez mais estará em códigos a partir dos quais nossos equipamentos trarão a instrução sobre o que podemos e o que não podemos fazer. No lugar das regulamentações escritas virão as prescrições programadas. A força, até aqui concentrada numa esfera pública (o Estado), vai se transferindo para a esfera privada, controlada pelos gigantes das tecnologias digitais. Assim, os que controlam essas tecnologias terão crescente poder sobre a vida social e, portanto, sobre o futuro da democracia e da liberdade.

Nos processos legislativos democráticos, as leis mudam com base em discussões públicas, orientadas por representantes eleitos, por mais que haja falhas nessa representação. No mundo da vida digital, a mudança é adaptativa, e, mesmo quando responde a pressões sociais (como a decisão do WhatsApp de reduzir para cinco o número de destinatários de mensagens encaminhadas simultaneamente), ela não passa por um debate público.

Mais que isso: a tradição liberal na política sempre exaltou o caráter experimental dos processos legislativos. Tanto Karl Popper quanto Friedrich Hayek sustentavam a impossibilidade de conhecer a vida social na sua totalidade e a importância do erro e de suas correções como expressões das virtudes da democracia. Ninguém poderia ter certeza de que possuía a solução correta para determinado problema, e por isso o debate democrático deveria ocupar o centro da vida política. A principal consequência política da nossa dependência dos dispositivos digitais é que eles abrem caminho a soluções políticas resultantes daquilo que pontificam os algoritmos e não dos representantes políticos.

Os algoritmos vão se tornando cada vez mais misteriosos conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas

A nossa própria percepção do mundo é cada vez mais controlada pelos sistemas digitais que filtram a maneira como nos informamos. Os mediadores humanos são substituídos por sistemas automatizados. Daí resulta, para Susskind, uma fragmentação social que bloqueia o próprio debate público. Contrariamente à expectativa inicial de seus pioneiros e de seus mais importantes teóricos, o alargamento esperado da nossa capacidade comunicativa e da variedade de informações que formam a nossa cultura política converteu-se nas bolhas de repetição e redundância a que o escrutínio minucioso e personalizado dos algoritmos nos submete. Tanto mais que os algoritmos, além de propriedade privada, vão se tornando eles mesmos cada vez mais misteriosos, conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas.

A opacidade das decisões tomadas pelos algoritmos chegou a tal ponto que a Darpa (a agência militar norte-americana onde nasceu a internet) criou um programa (Explainable Artificial Intelligence) para que os pesquisadores tentem entender as decisões resultantes dos processos autônomos de aprendizagem de máquinas.  Pois é essa autonomia (das máquinas, não nossa!) que está desempenhando e vai desempenhar um papel cada vez mais importante na regulação das nossas atividades, ou seja, na política.

A mais importante conclusão de Susskind, inspirada por Tim Berners Lee, inventor da World Wide Web, é que o mundo precisa com urgência de “engenheiros filósofos”. Não se trata de uma opção tecnocrática que concentre ainda mais poder em alguns sábios, e sim da urgência de que o desenvolvimento tecnológico esteja organicamente vinculado a opções éticas não só sobre os impactos, mas também sobre o próprio sentido dos aparatos digitais em que nossa vida está mergulhada. E isso só se faz com amplo debate público.

Capitalismo de vigilância

Publicado em janeiro, The Age of Surveillance Capitalism [A era do capitalismo de vigilância], de Shoshana Zuboff — psicóloga e uma das primeiras mulheres a conquistar uma cátedra na escola de negócios de Harvard —, já foi comparado à Primavera silenciosa de Rachel Carson e até ao Capital de Marx. O evidente exagero deve-se à ambição de suas setecentas páginas. Zuboff procura nada menos que os fundamentos teóricos capazes de explicar a nova modalidade de capitalismo trazida pelos gigantes digitais e cuja essência pode ser assim resumida: se no capitalismo do século 20 o controle dos meios de produção era a base para a extração do trabalho humano em que se apoiam os ganhos empresariais, hoje os lucros corporativos provêm de um conjunto amplo e generalizado de meios de modificação do nosso comportamento.

Não é mais o trabalho, e sim a experiência humana, em todas as suas dimensões, que é apropriada e transformada em dados para servir de base para uma interferência cada vez maior na nossa vida. A marca central das sociedades contemporâneas (o que já havia sido antecipado de forma pioneira pela obra de André Gorz, que, infelizmente, Zuboff nem sequer menciona) não é mais a exploração do trabalho, e sim aquilo que Jürgen Habermas chamou de colonização do mundo da vida, ou seja, a transformação de nossas relações pessoais, de nossa intimidade, de nossa interação, em base para a acumulação capitalista por meio justamente da vigilância. No lugar de “modo de produção”, surgem dispositivos que criam “modos de modificação de comportamento”. O excedente econômico torna-se, assim, comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância, em que é fundamental o sistema ubíquo de computação que a internet das coisas está ampliando com velocidade estonteante.

Mas a vigilância está longe de ser um fenômeno fundamentalmente econômico. Psicóloga de formação, Zuboff conheceu pessoalmente B. F. Skinner durante sua graduação. Skinner concebia a liberdade humana como uma completa ilusão, derivada apenas da nossa ignorância. Caso tivéssemos instrumentos capazes de obter e analisar os dados em função dos quais agimos, veríamos, sustentava Skinner, que as nossas ações são sempre condicionadas a estímulos, incentivos, punições ou aos contextos que produzem esses estímulos. Assim, para Skinner, a liberdade e os valores básicos que o Iluminismo (sobretudo Kant) expressou na ideia de autonomia humana são fruto da nossa ignorância, e não virtudes que deveríamos exaltar. Essas ideias, publicadas por Skinner em Além da liberdade e da dignidade (1971), estão, mostra Zuboff, na raiz do capitalismo de vigilância.

Em nossa época, o excedente econômico torna-se comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância 

É claro que estas linhas não fazem justiça à riqueza de dados e de explicações sobre essa obra, que já está marcando tão fortemente o debate sobre o significado histórico da revolução digital e de sua modalidade presente, que Zuboff denomina capitalismo de vigilância. Chama a atenção a escassez de menções a movimentos de resistência às práticas dos gigantes digitais contemporâneos. Da mesma forma, há uma hesitação no livro entre a ideia de que o que está em questão é o capitalismo (e não as tecnologias) e a ausência total de qualquer menção àquilo que poderia ser uma abordagem não capitalista do uso dos dispositivos digitais na vida social. Nada disso, porém, tira o imenso valor do livro.

Na verdade, os três livros aqui comentados exprimem o desencanto do pensamento contemporâneo com relação a dispositivos que vinte anos atrás prometiam abrir portas para a emancipação social. Mas, em comum, as três obras levantam a bandeira da liberdade e da autonomia humanas contra um sistema que, em nome da eficiência, reduz a nossa iniciativa, a nossa capacidade de ação independente e ameaça a nossa dignidade.

Frischmann, Brett; Selinger, Evan
Re-Engineering Humanity  Cambridge University Press • 430 pp • R$ a definir

Susskind, Jamie
Future Politics Oxford University Press • 544 pp • R$ a definir

Zuboff, Shoshana
The Age of Surveillance Capitalism PublicAffairs • 704 pp • R$ a definer

https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/economia/sociedade-da-vigilancia-em-rede

Economia do baixo crescimento e das Instabilidades crescentes

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Depois de um período de recessão marcado por baixíssimo crescimento econômico, aumento no desemprego, redução na renda e nos salários e queda vertiginosa nos investimentos, as perspectivas para este ano são menos empolgantes, depois de um momento de êxtase nos mercados financeiros, com queda no dólar e recorde na Bolsa, o Brasil vive um período de incertezas e inseguranças no campo econômico.

Nos primeiros sessenta dias do novo governo percebemos um misto de imaturidade política, amadorismo crescente e um falatório generalizado, um governo novo com vícios antigos e conhecidos, alguns falam demais, emitem opinião sobre tudo e todos, enquanto outros falam de menos, com isso, percebemos na sociedade e no mercado financeiro uma grande apreensão, sem mudanças sólidas o país não tem chances de superar este crescimento medíocre e insuficiente.

Depois de uma década de forte crescimento, o país se depara, a partir de 2014, com graves problemas econômicos e políticos, o lado fiscal da economia se ressente de um maior equilíbrio, os déficits crescem de forma acelerada, os gastos públicos são reduzidos e a economia perde seu motor mais importante, com isso, o país amarga uma de suas maiores recessões, em 2015 o PIB caiu 3,9%, em 2016 outro tombo de 3,6%, em 2017 algum crescimento, modestos 1,1%, neste momento a economia sai da recessão e as perspectivas para o ano seguinte passam a ser melhores, uns acreditando em quase 3%, outros defendendo números mais modestos, na casa do 2%, depois dos doze meses percebemos um crescimento ridículo na casa dos 1,1%, repetindo valores do ano anterior e aumentando as incertezas sobre a economia e as perspectivas para o sistema produtivo.

O Brasil vive um período de grandes transformações, depois de um aumento das intervenções estatais e de gastos públicos que incrementaram o crescimento econômico mas, ao mesmo tempo, degradaram as finanças públicas e abriram espaço para uma recessão sem precedentes, obrigando os governantes a adotarem políticas mais efetivas no controle dos gastos públicos, com isso, a economia literalmente entrou em um sinal de baixo crescimento e a recuperação está se mostrando cada vez mais complexa, exigindo novos esforços de uma população depauperada pelas crises constantes.

Se olharmos para os indicadores macroeconômicos, perceberemos que o país apresenta um superávit nas contas externas e uma grande quantidade de reservas em moeda estrangeira, os preços internos estão controlados e a taxa de juros se encontra em números reduzidos se comparado com períodos anteriores, de outro lado encontramos uma situação fiscal degradada com déficits acima dos 100 bilhões de reais e um desemprego na casa dos 12% da população, inviabilizando investimentos e melhores resultados no futuro.

A inflação baixa e controlada está mais atrelada ao baixo consumo e a recessão do que a outros instrumentos de política monetária, a população se encontra endividada, as empresas de análise de crédito estimam em mais de 60 milhões de brasileiros inadimplentes, os empresários estão com estoques altos e as vendas estão em compasso de espera, com isso, os investimentos estão sendo postergados para momentos melhores e mais consistentes, sem consumo e sem investimentos a economia não anda e a situação do país se agrava, gerando incertezas e instabilidades crescentes.

A situação econômica exige um forte choque de confiança e de credibilidade, cabe aos agentes econômicos mostrar a sociedade novos caminhos para o crescimento, para que isso aconteça algumas medidas importantes precisam de tomadas, controlar os gastos do Estado é fundamental para melhorar as perspectivas fiscais e abrir espaço para novos investimentos governamentais, gerando novos empregos, melhorando a renda e estimulando o sistema econômico. Controlar os gastos é uma medida crucial, mas insuficiente para melhorar o universo fiscal do Estado, uma política mais estrutural exige uma consistente reforma previdenciária, que seja implementada para produzir uma economia no médio e no curto prazos, reduzindo os privilégios e melhorando as condições de alguns grupos vulneráveis da sociedade brasileira, uma reforma tributária que aumente a quantidade de pessoas que pagam impostos, um forte combate a sonegação e a evasão fiscal, e uma maior tributação sobre setores mais abastados, inclusive reduzindo isenções de inúmeros setores econômicos, dentre eles o agronegócio e o financeiro, segundo especialistas, o Brasil vem, nos últimos anos, deixando de arrecadar mais de 4% do produto interno Bruto, algo em torno de 250 bilhões de reais, com estes recursos os déficits nas contas públicos não existiriam e o país poderia melhorar rapidamente sua condição macroeconômica.

Destacamos ainda, como fundamental para a melhora das instituições do país a reforma política e eleitoral, como se governa uma sociedade com uma gama tão ampla de partidos políticos como temos na atualidade no Brasil? Uma grande parte destas agremiações foram criadas por grupos políticos minoritários que se utilizem destas estruturas para abocanhar os fundos partidários, com prestação de contas inexistentes e desvios generosos para políticos e expoentes de destaque na organização político-partidária.

Outro ponto importante que deve ser privilegiado pelo novo governo é referente ao sistema bancário e financeiro, os bancos são detentores de grandes lucro, mesmo com uma economia em forte recessão, faz-se fundamental aumentar a competição no sistema estimulando e regulando as fintechs, incrementando a inserção da população no sistema financeiro, acelerando reformas microeconômicas, aumentando o acesso ao crédito, reduzindo as taxas de juros de forma consistente e melhorando o ambiente de negócios. Uma política forte na diminuição da burocracia é fundamental para o crescimento dos investimentos públicos e privados, nos últimos anos foram sendo criadas instituições estatais que atuam de forma exagerada na fiscalização e regulação, ministérios, agências reguladoras, cada uma disputando poder e buscando uma maior influência nos negócios, isso sem falar no aparelhamento políticos destas organizações, instrumentos importantes tecnicamente acabaram se tornando espaços degenerados e disputados por grupos políticos como forma de mostrar poder e influência sobre a sociedade.

No cenário internacional, faz-se necessário uma observação mais consistente da economia global, depois da crise de 2008, os governos atuaram fortemente no sentido de injetar bilhões e bilhões de dólares e euros nos mercados domésticos, os países conseguiram melhorar suas performances mas não conseguiram gerar crescimentos mais sólidos, diante disso, os governos dos países desenvolvidos estão, novamente, aumentando os incentivos para seus setores produtivos, como se vê na China, Estados Unidos, Japão e Europa, incrementando suas dívidas e empurrando a resolução do problema para um futuro muito próximo, neste ambiente de protecionismo e nacionalismo, onde os governos estão protegendo empresas e setores temos que tomar cuidado com um discurso liberal, por mais que concordemos com grande parte deste discurso, faz-se fundamental observar os cenários externos, privatização e redução do papel do Estado é fundamental, apenas precisamos entender se este é o momento correto para a alienação deste patrimônio.

Estamos vivendo um período muito conturbado na economia mundial, o protagonismo asiático no cenário internacional, conquistado nas últimas décadas tem levado países desenvolvidos a adotarem políticas para reduzir a perda de espaço de suas empresas para as empresas asiáticas, estas políticas, claramente protecionistas, estão aumentando as divergências e os conflitos comerciais, reduzindo os acordos e as trocas entre nações, ao Brasil cabe uma política mais moderada, nosso comércio com a China se tornou muito relevante e precisa ser conservado em bases sólidas e consistentes, além disso, precisamos abrir novos mercados para nossos produtos, a redução da burocracia é fundamental e a melhora da competitividade dos nossos produtos uma condição primordial, para que isto aconteça, o país precisa se abrir para o comércio internacional como é o desejo do novo Ministro da Economia, Paulo Guedes, o fundamental é encontrar a melhor forma de fazer e exigindo sempre contrapartidas palpáveis dos nossos parceiros comerciais, menos ideologia e mais pragmatismo.

O discurso liberal é bem encantador e sedutor, a redução da intervenção do Estado na economia depois do malogro petista agrada a classe média e os grupos empresariais formadores de opinião, o grande problema desta visão, ou limitação, é que muitos setores precisam fortemente dos incentivos e subsídios estatais para a sua sobrevivência, sem estes muitas empresas sucumbiriam a competição com grupos transnacionais externos, o que percebemos deste discurso é de defesa de mais competição e maior concorrência mas, nas entrelinhas percebemos dos grupos nacionais, que seus privilégios e subsídios devem ser mantidos e, se possível, ampliados e melhorados.

Neste ambiente de controle dos gastos públicos e austeridade fiscal, muitos grupos econômicos precisam se conscientizar da importância de uma política econômica mais racional, percebendo com isso, que muitas das antigas tradições econômicas precisam ser alteradas, os subsídios fiscais que sempre foram dados pelo governo brasileiro precisam ser repensados a luz de um momento de escassez, estudar as políticas de subsídios e compreender seus resultados, consertando os erros cometidos anteriormente e mantendo as políticas exitosas e, além disso, privilegiando os mais eficientes, esta deve ser a tônica desta nova empreitada econômica, mais concorrência e menos protecionismo.

Depois de um começo de governo avassalador, o mercado passou a se preocupar mais com os rumos da economia neste novo governo, se na agenda econômica percebemos uma maior clareza, embora o ritmo ainda esteja bastante lento, no front político percebemos muitas dissonâncias, falas desnecessárias e discursos inflamados, tudo como se estivéssemos, ainda, em um ambiente de embate eleitoral, percebemos autoridades com discursos detonando os partidos políticos, a classe política e os grupos sociais, muitos destes grupos são fundamentais para a aprovação de reformas importantes para o êxito deste governo, descer do palanque eleitoral, moderar o discurso político, construir maiorias sólidas e consistentes, deveriam ser as prioridades centrais do novo governo, acreditamos que não se governa democraticamente um país como o Brasil detonando a classe política e contra os adversários, o regime democrático nos estimula a lidar com o contraditório, esta postura imatura tende a levar o governo a acumular derrotas e reduzir as perspectivas positivas da sociedade para o futuro e, sem mudanças nas expectativas, dificilmente teremos a transformação que almejamos para o país.

Novas tecnologias alterando o mundo do trabalho, incertezas generalizadas no cenário econômico nacional, endividamento elevado da população, guerras comerciais, aumento do nacionalismo e do protecionismo, crescimento da intolerância e do sectarismo e um ambiente conflagrado nas redes sociais, todas estas situações fomentam um clima de grandes medos e desesperanças para a economia brasileira, diante disso, o que nos resta é acreditar que os grupos responsáveis pela gestão do Estado consigam transformar sonhos em esperanças e os medos em perspectivas mais promissoras, todos devemos acreditar, embora estejamos dominados por um certo ceticismo, a esperança deve sempre prevalecer, embora não tenha votado neste grupo político, o caos e a degradação não nos interesse, este clima apenas nos trará destruição e desigualdades.