Trabalhos, resgates e assistências no mundo espiritual

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A grande maioria das pessoas acredita que a morte é o fim de todos os laços que unem os seres humanos a vida, desconhecem a existência de um mundo espiritual e acreditam que quando a morte chegar, entrarão em compasso de espera para o grande julgamento, o juízo final, onde os bons serão admitidos no mundo dos justos enquanto os ruins serão condenados ao fogo intenso do purgatório, como nos foi ensinado, a colheita é livre e a semeadura é obrigatória.

            Nesta teoria, ao morrermos esperaremos o fim dos tempos para o verdadeiro julgamento, neste momento o sono nos dominará por completo e seremos condenados a uma posição de passividade total, onde aguardaremos durante muitos anos, décadas, séculos ou milênios. Quando imaginamos aqueles indivíduos que povoaram a Terra a muitos séculos e se encontram nas fileiras do sono eterno aguardando o juízo final nos perguntamos, quanto tempo mais aguardaremos a justiça divina para o julgamento final?

A Doutrina Espírita nos traz uma nova forma de compreender a vida, nos mostra que a morte não existe e que o mundo espiritual é o local de vivência onde os espíritos realmente se entrelaçam em prol de seu crescimento e desenvolvimento, neste local a vida transcorre naturalmente, nele acordamos dos períodos vividos no mundo material, nele compreendemos realidades que muitas vezes não queremos enxergar e nele nos percebemos quanto espíritos imortais, o Espiritismo nos descortina uma vida até então desconhecida para uma grande parte da humanidade, com ele não podemos mais alegar ignorância nem desconhecimento das Leis de Deus.

O trabalho é uma benção divina, no mundo material temos que agradecer a oportunidade de, com ele, angariar recursos para suprir nossas necessidades materiais, adquirir alimentos e vestuários, além de dispêndios com lazer e diversão. No mundo espiritual, o trabalho deve ser visto como uma forma sublime de crescimento espiritual e moral, quando chegamos do mundo material envolto em desajustes e desequilíbrios, necessitamos deste trabalho para nos equilibrar e compreender mais claramente as necessidades e equívocos cometidos em vidas anteriores.

O Espiritismo nos mostra a existência de cidades e colônias no mundo espiritual, nelas vivem inúmeras pessoas, estes espaços são dotados de regras, de governantes, de casas e conjuntos habitacionais, pavilhões de estudo e de reflexão, além de departamentos variados, todos visando o comprometimento de cada um de seus moradores nas atividades cotidianos, na organização e no desenvolvimento individual e coletivo.

No livro Nosso Lar, o espírito André Luiz nos mostra claramente como se dá a vida em uma colônia espiritual, as ruas, as avenidas, a organização, as regras e a função de cada um de seus moradores, o funcionamento do bônus hora, remuneração dada a todos os trabalhadores que se dedicam em prol da comunidade, neste local não existe espaço para o chamado jeitinho brasileiro, a palavra meritocracia se mostra na sua essência, tudo se dá de acordo com o merecimento individual de cada morador.

Nas cidades espirituais encontramos dirigentes que se caracterizam por sua liderança técnica, sua competência e, principalmente, por sua alta envergadura ética e moral, onde seu cargo está diretamente atrelado a anos de trabalho ininterruptos na causa, passando por inúmeras áreas da colônia angariando admiração, respeito e merecimento.

As moradias são garantidas a todos aqueles que se desdobram no auxílio no bem, a entrega efetiva nos trabalhos da colônia lhes garante recursos amoedados – os bônus horas – que são trocados por residências nas colônias que são utilizadas para abrigar a todos os seus familiares, garantindo um certo conforto aos que trabalham e se dedicam ao bem coletivo.

Encontramos trabalhadores nas mais variadas áreas e setores no mundo espiritual, nos atendimentos emergenciais de espíritos que chegam debilitados depois de resgates em cidades espirituais de baixo teor vibratório, em enfermarias e em hospitais de tratamentos que atendem irmãos que se recuperam de intervenções cirúrgicas feitas para remover danos nos períspiritos contaminados por energias negativas e desequilibradas.

Muitos irmãos no plano material se utilizam de frases de efeito quando pessoas desencarnam, dentre elas destacamos, o irmão passou desta para uma melhor, embora esta frase seja muito utilizada no mundo material, a doutrina espírita nos mostra que as coisas não funcionam desta forma na maioria das vezes, muitos irmãos, com o desencarne vão para planos muito piores, mais agressivos e centrados no mal, no rancor e no ressentimento, tudo isto está diretamente ligado aos valores e aos sentimentos que pululam no coração de cada pessoa, ninguém se transforma com a morte, ninguém se melhora com o desencarne, a morte serve como um instrumento para nos desnudar, se somos bons, dotados de bons sentimentos, cultivamos o hábito da oração e nos mantemos equilibrados espiritualmente, o desencarne servirá como um alento para o espírito que, com certeza, vai se encontrar em uma situação melhor e mais desenvolvida, lembremos sempre da lei de ação e reação, pois ela nos ajuda a compreender melhor a sociedade e, principalmente, as Leis eternas e imutáveis de Deus.

Outro ponto importante que devemos destacar, é o papel desempenhado pelos espíritos que atuam em regiões umbralinas, são espíritos iluminados e destemidos que se embrenham em regiões tenebrosas e assustadoras para resgatar irmãos sofredores que, depois de muito tempo sofrendo e sendo molestados por espíritos ora renitentes no mal e na vingança, oram e pedem socorro para Deus, neste momento estes irmãos se endereçam para os resgates, um exemplo destes trabalhadores foi retratado no livro Memórias de um suicida, psicografado por Yvonne Pereira e ditado pelo escritor português Camilo Castelo Branco, nesta obra destacamos o trabalho abnegado da Legião dos Servos de Maria, trabalhadores incansáveis que se dedicam ao resgate de irmãos em condições deploráveis, muitos deles vivendo nestas condições durante muitos séculos.

A imersão nestas regiões exige destes espíritos um alto teor de equilíbrio, constante refúgio na oração, treinamentos constantes e grande confiança no poder de Deus, somente espíritos dotados destas habilidades e conscientes da importância do auxílio como instrumento de depuração conseguem vencer estes desafios e auxiliar os irmãos que se descuidaram dos mais sinceros ensinamentos deixados pela passagem de Jesus Cristo.

Nos resgates, nossos irmãos missionários são testados diretamente, ao mergulhar nos escaninhos do Umbral se deparam com estupradores, prostitutas, assassinos contumazes, pedófilos, além de corruptos de todas as naturezas, estes irmãos que ora mourejam no mal, no rancor e no ressentimento, exalam uma energia degradante, marcadas por teores intensos de negatividades, são espíritos que se comprazem com estas energias e usam seu poder de persuasão e hipnose para converter os trabalhadores mais incautos, diante disso, estes irmãos são preparados para os combater mais terríveis e violentos, mergulham no fundo do poço, resgatam irmãos agredidos e violentados e se equilibram mostrando a importância dos ideais eternos da espiritualidade maior.

Nos variados resgates nos deparamos com histórias variadas, nestas experiências percebemos que todos, inicialmente, se dizem vítimas de algozes terríveis e violentos, justificam suas desditas a vingança de irmãos que lhes orquestraram maldades e agressividades, esquecem deliberadamente que nas rodas da vida não existem vítimas, somos todos algozes uns dos outros, se na experiência anterior cometemos equívocos contra algum desafeto e nesta somos por ele perturbado, se não perdoarmos e nos desvencilharmos deste irmão, vamos carregar durante muitos séculos sentimentos de vingança, sendo tragados pelos caminhos mais nebulosos do mundo espiritual inferior e pior, tendo ao nosso lado um obsessor que nos agride e é por nós agredido.

O trabalho é constante no mundo espiritual, aqueles que acreditarem que, ao morrer, vão descansar ou entrar em um momento de hibernação até a chegada do juízo final, podem esquecer estas teorias e se acostumar com a certeza de que o trabalho é uma lei universal e todos trabalhamos e trabalharemos sempre, encarnados e desencarnados.

O livro Nosso Lar nos trouxe grandes informações sobre a vida no mundo espiritual, nesta obra percebemos claramente que os espíritos estudam constantemente, nos relatos da obra, percebemos que muitos espíritos estudam todos os dias, leem obras de grande conteúdo moral e científica para se preparar para mais uma aventura na carne, estes irmãos estão sendo preparados para uma breve reencarnação, estudam línguas, informática, genética, química, matemática. Filosofia, sociologia, dentre outras áreas e ciências, objetivando um maior avanço em suas encarnações, como percebemos o planejamento caracteriza o mundo espiritual, visando um maior êxito e sucesso nas novas oportunidades no corpo material.

A literatura nos mostra claramente que todos nós já fomos resgatados nos mundos espirituais inferiores, se olharmos para dentro de cada um de nós, vamos nos deparar com um alto teor de degradação, somos um pouco de cada coisa ruim que encontramos no mundo, nossas inúmeras experiências no mundo material cunharam pessoas melhores, sem dúvida, hoje somos melhores que nas vidas anteriores mas, mesmo assim, estamos longe dos ideais dos missionários descritos nas obras de Emmanuel, ainda vamos chegar a uma situação intermediária, mas para isso temos que nos dedicar intensamente, expulsando os males e a intolerância que ainda mourejam em nossos espíritos.

Somos espíritos em constante aperfeiçoamento, o trabalho e a assistência espiritual é uma constante em nosso processo evolutivo, o desencarne nada mais é que a passagem de um mundo material para o imaterial, nesta passagem não existe mudanças de valores e comportamentos, o desencarne não impulsiona a evolução, o trabalho constante nos auxilia imensamente neste crescimento espiritual, como na obra Missionários da Luz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, a transformação de Segismundo nos leva a compreender a importância deste crescimento ascensional, depois de graves desequilíbrios na experiência anterior, marcados por assassinatos e suicídios, com o desencarne, a conscientização e o trabalho incessante no bem, no auxílio aos mais desvalidos e na intransigência nos ideais do bem, a recompensa surge de forma verdadeira e imediata, o trabalho é uma das fontes mais seguras e serenas para o progresso espiritual, entendamos esta lei e nos conscientizemos de que fora do trabalho não existe salvação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Libertação

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O livro Libertação, de André Luiz e Francisco Cândido Xavier, da coleção A vida no mundo espiritual, nos leva a cidade dos gregorianos para acompanhar um resgate emocionante, nesta aventura vamos conhecer muitas histórias envolventes e entender um pouco mais do trabalhos dos amigos espirituais, uma obra envolvente.

 

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Morte e o morrer:  medos, tabus e os dilemas da humanidade

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Um dos maiores medos do homem e da civilização humana está associado à morte, todos sabemos que estamos condenados a perecer mas, constantemente, ficamos apavorados e amedrontados com a chegada deste momento que gera tanto desespero nos indivíduos e nas coletividades, levando muitos indivíduos a desequilíbrios intensos e frenéticos.

Desde os primórdios da humanidade, o ser humano vem se debatendo com a possibilidade da morte, tribos indígenas e culturas orientais constroem verdadeiros rituais para homenagear seus mortos e fazer com que estejam todos vivos na mente e no imaginário da sociedade, mesmo assim a morte causa repulsa e desespero em muitos indivíduos, somos racionais e nos julgamos modernos, mas ainda temos medo daquilo que pretensamente não conhecemos, digo pretensamente porque, segundo o conhecimento espírita, nascemos e morremos muitas vezes.

As religiões apresentam visões diferentes da morte, umas acreditam que o indivíduo quando morre passa a viver ao lado de Deus, outros acreditam que vamos mergulhar em um sono intenso, acordando apenas no dia do juízo final, neste momento seremos julgados por nossos atos na vida física, se formos absolvidos ganharemos o reino do céu agora, se formos condenados seremos expurgados para os locais de desesperança, rancor e desequilíbrios.

A doutrina espírita apresenta uma visão muito particular sobre a morte, para os espíritas a morte não existe, somos espíritos e estagiamos no corpo material como um instrumento de depuração e crescimento, nascemos e morremos inúmeras vezes para nos melhorarmos como seres humanos, desenvolvermos nosso desprendimento e nossos valores mais íntimos e pessoais, a vida no corpo material funciona como uma grande escola de aprendizados e ensinamentos onde aprendemos os verdadeiros sentidos da palavra amor.

Muitos questionam o porque não nos lembramos de nossas existências anteriores, se tivéssemos a possibilidade de lembrar as nossas vidas pregressas, poderíamos evoluir de uma forma mais rápida, argumentam estes indivíduos. A doutrina dos espíritos estimula o livre pensamento e aceita bem estas colocações mas acredita que, dentre os motivos de não lembrarmos de nossas vidas anteriores, é que não saberíamos como reagir a descobertas intimas e pessoais assustadoras, se vivemos inúmeras vezes e nestas experiências acumulamos muitos afetos, amores e sentimentos nobres, em contrapartida, acumulamos ainda, inúmeros desafetos, desamores e sentimentos menores, nas vivências passamos por muitas coisas e a lembrança efetiva poderia nos gerar graves constrangimentos morais, físicos e psicológicos.

Para o espiritismo as vivências são oportunidades sublimes de crescimento e de melhorias comportamentais e para o desenvolvimento de sentimentos e pensamentos mais avançados, deixando de lado uma vida marcada por desejos e buscas materiais e hedonistas e sua substituição por sentimentos e vivências mais intensas e estimulantes, com crescimento e desenvolvimento espiritual, nossa passagem pelo mundo espiritual tem este objetivo, crescer e se melhorar continuamente, afinal, esta é a lei de Deus, a lei natural que rege a sociedade e todos estamos naturalmente sujeitos a ela.

Vivemos em uma sociedade muito materializada, os valores do dinheiro e do poder material domina as mentes e os corações incautos, estamos nas afastando de Deus e as religiões tradicionais estão se deixando conduzir por interesses mesquinhos e, cada vez mais, marcados pelo materialismo, o dinheiro como meio está se tornando um fim para muitas sociedades e os excessos estão surgindo de forma acelerada, neste ambiente estamos tendo que conviver com um forte crescimento tecnológico em consonância com graves desajustes íntimos dos indivíduos, depressão, ansiedade, transtornos generalizados e suicídio são males modernos que estão afetando a todos os indivíduos e coletividades.

Neste mundo dominado pelo prazer material, pelo imediatismo e pelo hedonismo, somos impulsionados a gozar a vida todos os momentos, nos despindo do futuro e nos entregando ao gozo imediato, quando desencarnamos e percebemos que ainda nos encontramos vivos, somos acometidos de uma grande frustração, os momentos perdidos em farras e em prazeres sensoriais passam a nos cobrar a ausência de obras edificantes, quando acordamos estamos em situação de desespero e desesperança, marcados pelo medo e pela intensa decepção.

Outro ponto importante para se destacar, grande parte daqueles espíritos que desencarnam, desconhecem a sua nova situação, percebem algumas mudanças em suas vidas mais relutam em aceitar que desencarnaram, acreditam ou querem acreditar que o mal estar é algo temporário, com isso geram constrangimentos intensos em seus familiares e postergam esclarecimentos que são cruciais para sua nova condição de vida.

A morte é uma grande incógnita para a sociedade mundial e para o indivíduo particularmente, todos ouvimos desde pequenos que a morte é certa, a hora é que é incerta.   Esta frase representa uma grande verdade, sabemos que um determinado momento iremos passar para um outro mundo, este conhecimento nos parece inscrito no interior de cada um de nós, são informações que estão inseridas em nosso corpo espiritual e levamos para todo sempre.

Muitos acreditam que quando o indivíduo morre, ele parte desta vida para uma melhor, apesar de ser uma frase repetida exaustivamente pela sociedade e muitos acreditarem, os espíritas acreditam que existe uma inconsistência muito forte neste pensamento, muitos ao desencarnarem partem desta vida para locais muito piores, assustadores e infelizes, marcados por dores intensas, gemidos ensurdecedores e um cheiro insuportável, para muitos se trata do inferno agora, para os espíritas, o local é conhecido como umbral, local este imortalizado na obra clássica de André Luiz, Nosso lar.

            Existem vários equívocos sobre a morte que foram construídos pela sociedade desde seus primórdios, dentre elas,  que a morte torna a pessoa mais sábia, incrementa seus conhecimentos e as exime de seus erros ou equívocos anteriores, diante disso, todos que partem para o mundo espiritual devem ser lembrados com carinho e com atenção, os familiares e amigos daqueles que “partiram” devem orar constantemente e guardar sempre um respeito e um pensamento positivo de sua memória, como forma de auxiliá-lo em sua nova condição de vida e em seu aprimoramento espiritual.

Muitos fazem inúmeros pedidos para seus familiares e amigos desencarnados, pedem ajuda para superar momentos de dificuldades e estão, constantemente, solicitando a presença do desencarnado, estas atitudes geram severos constrangimentos no recém desencarnado, criando neste graves desequilíbrios e desajustes. Muitos desencarnados, ou ouvirem os pedidos e os choros de seus colegas ou familiares desencarnados entram em desespero querendo auxiliar, muitos deixam suas colônias e retornam ao mundo material com o intuito de amparar, infelizmente nesta atitude acabam causando maiores desequilíbrios e constrangimento aos colegas encarnados, gerando processos constantes de desequilíbrios mútuos e obsessões severas.

            Para muitos a morte assusta porque leva o indivíduo a um local desconhecido, com o conhecimento espírita a sociedade passou a conhecer melhor o significado da morte, destacando a vida no mundo espiritual, as vivências do espírito, as atividades desenvolvidas e os sentimentos que os dominam, deixando claro a existência de um verdadeiro espaço de interdependência entre os indivíduos encarnados e desencarnados, todos convivendo lado a lado, sofrendo as dores e gozando os prazeres da convivência compartilhada.

A Doutrina Espírita nos descortina a existência da morte, somos espíritos estagiando em corpos materiais, reencarnamos lado a lado para progredirmos coletivamente, nesta convivência nos encontramos debaixo dos mesmos lares como familiares, recebemos como filhos desafetos de outras existências físicas e nos embrenhamos em relacionamentos com pessoas conhecidas de muitas existências como forma de nos depurarmos de desajustes e desequilíbrios anteriores, onde ofendemos e fomos ofendidos, onde agredimos e fomos agredidos, onde matamos e fomos mortos, num espiral incrível regido pela espiritualidade maior em busca de um progresso que será alcançado por todos, indistintamente.

Ao desencarnar nos deparamos com nossas virtudes e nossos equívocos, quando acordamos no mundo espiritual vamos perceber como foi nossa existência no corpo físico, se formos para locais ermos, mal cheirosos e violentos, pode ter certeza que sua construção na matéria foi deficiente agora, se ao acordar pudermos nos enxergar em locais mais sublimes, acompanhados por pessoas mais equilibradas e serenas, nossos passagem no mundo da matéria foi exitosa e os frutos destes merecidos êxitos serão colhidos intensamente.

Na coleção  A vida no mundo espiritual, ditada pelo espírito André Luiz ao médium Francisco Cândido Xavier, os espíritos nos mostram que quando retornam ao mundo espiritual se entregam ao trabalho estimulador, servir aos irmãos mais necessitados, estudar as leis da natureza e se entregar ao conhecimento libertador auxilia e abre espaço para um crescimento continuado e edificante, para aqueles que se veem na ociosidade no mundo espiritual, o pós morte pode ser algo frustrante e decepcionante.

O crescimento deve ser visto como um esforço pessoal e individual, todos podemos e devemos crescer e nos desenvolver, nos melhorarmos como espírito, agregarmos conhecimento e buscarmos uma evolução constante, para isso somos auxiliados por missionários espirituais, irmãos dedicados que se entregam ao melhoramento contínuo. Um exemplo sempre presente nas obras iluminadas da doutrina espírita, é o caso de Segismundo, contida no livro Missionários da Luz, da lavra de André Luiz em parceria com o médium Francisco Cândido Xavier, depois de muitos desequilíbrios e desajustes na vida anterior, onde cometeu as mais severas insanidades, no mundo espiritual, depois de muitas dificuldades, tomou consciência de seus desajustes mais intensos, trabalhou intensamente, se dedicando de corpo e de alma para o auxílio dos irmãos sofredores e, com isso, conseguiu angariar virtudes e inúmeros créditos para uma verdadeira transformação moral e espiritual, que possamos acompanhar a experiência deste espírito abençoado e iluminado.

Numa sociedade marcada por intensa violência, como a que vivemos na atualidade, muitos irmãos estão retornando ao mundo espiritual em condições difíceis, exigindo dos trabalhadores da imortalidade uma vigília constante na sociedade, estes trabalhadores se desdobram no processo de orientação e auxílio para os recém chegados, amparando e auxiliando neste momento que, embora acreditem ser inéditos, são momentos vividos por todos os indivíduos inúmeras vezes nas mais variadas existências que todos experienciamos.

A morte é um momento doloroso para muitos, ainda mais quando somos separados daqueles que amamos intensamente, nestas separações somos tentados a bradar contra Deus, a xingar e a ofender, como se desta forma pudéssemos colocar pra fora nossa ira e nosso ressentimento, embora muitas vezes não entendamos os verdadeiros motivos da separação, a verdadeira fé nos leva a acreditar nos desígnios divinos, nestes momentos passamos a compreender que, na verdade, somos muito pequenos e insignificantes, conhecemos muito pouco da vida e estamos no mundo para crescer e as perdas são instrumentos importantes para compreender a justiça divina.

Diante do exposto acima, percebemos que a morte não mais existe como acreditamos, a doutrina codificada por Allan Kardec nos auxilia na compreensão dos verdadeiros ideais do mundo e da sociedade, mesmo assim sabemos que, com nossa insignificância e pequenez, temos muitas experiências para viver neste mundo e muitas perdas para computar em nossa trajetória de crescimento e de melhoramento espiritual.

 

Adriano Calsone, autor do livro Madame Kardec

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Adriano Calsoni

Olá Adriano, desde já agradecemos pela atenção e presteza em nos responder a algumas perguntas a respeito do livro espírita “Madame Kardec” que foi recentemente lançado.

Agradeço muitíssimo a confiança em nosso livro Madame Kardec, ciente de que estamos apresentando, aos leitores do Clube do Livro Letra Espírita, uma literatura genuinamente espírita e de qualidade.

A seguir algumas perguntas formuladas por nossa equipe com base nas curiosidades dos nossos leitores sobre a obra literária em comento.

Quando você tornou-se espírita e como descobriu o dom de escrever livros? Por que optou por escrever obras espíritas?

Me tornei espiritista nos anos 2000, na época da faculdade. Foi uma situação bastante inusitada, pois “desafiei” os espíritos a me transmitirem uma comunicação mediúnica na biblioteca da universidade. Daí, eu apanhei uma caneta e um pedaço de papel e me concentrei com muito ceticismo para um transe mediúnico – sem saber ao certo o que estava fazendo. Foi quando a minha mão direita (involuntariamente) começou a se movimentar e a escrever um pensamento muito diferente do meu. O acontecimento mecânico me chocou por horas. Ao sair da universidade, passei numa papelaria e comprei telas e tintas, e o ato se repetiu com muito mais intensidade. Em casa, logo me chamaram de médium e fui orientado a procurar a Federação Espírita do Estado de São Paulo. Permaneci nessa Instituição por quatro anos, fazendo os cursos de evangelização e de educação mediúnica. Minha chegada no Espiritismo foi assim: um misto de curiosidade com desafio.

Não enxergo, necessariamente, o ato de escrever livros como um dom. Vejo mais como uma paixão pela literatura espírita de qualidade, reforçada por uma entrega desinteressada em prol da Doutrina-Luz. É o que venho fazendo e é o que vem funcionando, sem pretensão alguma, em nome da verdade mais próxima da verdade.

A opção por escrever obras espíritas surgiu em 2002, quando senti a necessidade de se pesquisar sobre a pintura mediúnica que vinha exercendo à época, pois eu tinha muitas dúvidas sobre essa mediunidade. Foi aí que surgiu o nosso primeiro livro, Pintura Mediúnica – A visão espírita em ampla pesquisa (Mythos Books), coletânea espírita que nos facilitou o acesso à participação na primeira pesquisa científica mundial sobre pintura mediúnica e neuroimagem, que aconteceu em 2013, na Universidade de Aachen, na Alemanha.

Qual foi a sua principal motivação para escrever o livro “Madame Kardec” e o que pretende transmitir ao leitor?

A principal motivação surgiu ao constatarmos que a biografia de Amélie-Gabrielle Boudet estava completamente apagada dos anais do Espiritismo mundial, e que os espíritas haviam se esquecido da importância que a esposa de Allan Kardec exerceu na Doutrina Espírita, seja como espírita empreendedora, seja como a continuadora do legado espírita deixado pelo seu marido. Por meio de nossas pesquisas, fomos descobrindo que desapareceram (propositalmente) com a história de Amélie, ou seja, ocultaram a sua biografia num descaso sem tamanho. Tudo por conta dos interesses escusos de um grupo de “amigos” de Allan Kardec, os que se sentiram incomodados com as muitas iniciativas espíritas de Amélie. Em verdade: quiseram riscá-la do mapa do Espiritismo, mas não conseguiram…

O que pretendemos transmitir ao leitor, por meio da obra Madame Kardec é, justamente, a relevante militância da mulher mais importante do Espiritismo francês do século 19. Madame Kardec, como empreendedora inteligente, soube conduzir o legado espírita de maneira exemplar, cuidando da imagem póstuma de Allan Kardec e preservando as dez obras fundamentais do Espiritismo, principalmente contra as deturpações em seus originais, que se tornaram uma sorrateira ameaça.

Talvez, o principal destaque do trabalho discreto de Amélie está na defesa de nossa Doutrina. Ele teve que enfrentar os muitos “reformadores” sincréticos de plantão, que desejavam imiscuir teorias e sistemas esdrúxulos na água potável do Espiritismo. Muitas dessas enxertias
atentavam contra os preceitos espíritas, como fora o caso dos conceitos roustenistas e teosóficos (ambos aceitam, por exemplo, a retrogradação dos espíritos por meio da metempsicose), concepções que surgiram com a pretensão de “atualizar” a Doutrina ou mesmo “modernizar” Allan Kardec. Um aspecto contraditório nisso tudo foi que os próprios “espíritas” franceses consentiram essas aproximações difamatórias, o que ocasionou um fenômeno irreversível de cisão que, infelizmente, vem se repetindo nos dias de hoje, dentro do sincrético Movimento Espírita Brasileiro. Enfim, o passado espírita se repete…

Como foi realizada a elaboração e o desenvolvimento da obra? Houve orientações da Espiritualidade? Em caso afirmativo, poderia nos contar como ocorreram?

Madame Kardec é um trabalho de pesquisa espírita, não se trata de romance ou obra de ficção. Procuramos compor uma leitura leve e agradável, indo direto aos assuntos, sem rodeiros. O livro levou cinco anos para ficar pronto, haja vista a enorme dificuldade que encontramos para localizar, no Brasil e no exterior, fontes primárias e secundárias (inéditas) sobre a esposa do mestre. Tudo foi muito difícil, pois os historiadores espíritas do passado nos fizeram o grande favor de estilhaçar a biografia de Amélie, tendo nós, na atualidade, que juntar esses cacos biográficos, a fim de preservarmos a história que quase se apagou e o trabalho espírita de nossa biografada.

No decorrer das pesquisas, descobrimos a existência de Madame Berthe Fropo, mulher forte que fora amiga íntima de Amélie, e que a ajudou na manutenção da coerência doutrinária depois da morte de Allan Kardec. Durante a escrita da nossa obra, pressentimos, por diversas vezes, a aproximação do Espírito Fropo, nos sugerindo orientações sobre os caminhos literários que a biografia de Madame Kardec podia tomar. Inclusive, é da valente Fropo a belíssima mensagem espiritual que abre a nossa obra, psicografada pela médium Sandra Carneiro, de Atibaia-SP.

Mensalmente são lançadas dezenas de obras espíritas, mas poucas alcançam tanta repercussão como “Madame Kardec” está tendo nas redes sociais. Você esperava tamanha repercussão?

Acredito que a nossa obra vem ganhando tal repercussão por conta do ineditismo da pesquisa biográfica sobre Madame Kardec, como também pelo trabalho editorial realizado pela Vivaluz Editora Espírita. Eles produzem livros espíritas como obras de arte, com projetos gráficos impecáveis, como deveria ser toda obra espírita, pois os nossos leitores merecem um produto de alta qualidade.

O nosso trabalho alcança popularidade porque há nele muitas verdades, revelando uma Madame Kardec em sua plenitude. A obra não engana os seus leitores com distorções historiográficas, muito menos maquia os fatos espíritas do passado, já que é dever de todo historiador não ser conivente com falsários e exploradores que se passam (até hoje) por “benfeitores” do Espiritismo francês. Enfim, o livro deposita valores espíritas em quem realmente os merece: Madame Kardec, Berthe Fropo e Gabriel Delanne são exemplos de espíritas merecedores desses valores, principalmente pela vigilância redobrada na coerência doutrinária – em respeito ao legado espírita que Allan Kardec nos deixou.

Madame Kardec é considerada uma das figuras femininas mais importantes para a história do Espiritismo que em modo geral sempre teve homens como grandes expositores. Como você vê a relevância da mulher à frente da Divulgação Doutrinária?

Vejo como atos de conquista e persistência femininas. Hoje, nos encontramos num cenário muito diferente, onde a mulher espírita tem liberdade e voz ativa, é escritora respeitada, conferencista competente, dirigente eficiente e até vice-presidente de instituições espíritas respeitadas, como é o caso atual da Federação Espírita Brasileira. Sou otimista em acreditar que, em menos de uma década, uma mulher assumirá a presidência da FEB, posição secular que até hoje foi absorvida apenas por homens. Tempos atrás, essa presença feminina em cargos importantes no meio espírita nacional ou internacional era muito subjetiva e, no Espiritismo francês do século 19, pouco provável, também por conta dos preconceitos de gênero.

Fizemos um levantamento para descobrir quantas mulheres espíritas francesas frequentaram a antiga Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, presidida por Kardec nos idos de 1860. Descobrimos que não passavam de meia dúzia. Na década de 1880, esse número subiu para uma dúzia de militantes, diante de centenas de sócios homens, muitos desses, machistas e com ideias preconcebidas sobre como deveria se comportar a mulher na sociedade francesa.

Amélie-Gabrielle Boudet foi rara exceção entre as mulheres espíritas francesas, sempre respeitada pelo marido Allan Kardec, que compreendia muitíssimo bem a sua importância. Isso deixou de acontecer quando Kardec desencarnou, depois de março de 1869. Viúva Kardec, acabrunhada, passou a ser extremamente desrespeitada por aqueles mesmos “amigos” íntimos do mestre, sendo, inclusive, assediada moralmente pelo seu mandatário, o senhor Pierre-Gaëtan Leymarie, que foi o braço direito do mestre. Leymarie, como teósofo e roustenista convicto, sentiu-se “o sucessor de Kardec” sem o ser, o que o levou a subestimar as iniciativas espíritas da idosa viúva, a ponto de ignorá-la completamente como a responsável pela Revista Espírita, pela Livraria Espírita e demais ações que criou e desempenhou, onde seguia como a detentora do legado kardeciano. Infelizmente, encontramos algumas citações de fontes confiáveis sobre o assédio moral praticado por esse sincretista, o que levou a lúcida Amélie a um rápido adoecimento, como relatamos minuciosamente em nosso livro. Inclusive, as tristes circunstâncias da morte de nossa biografada têm muitíssima relação com essa montanha de descaso e assédio moral.

Como você vê o Movimento Espírita Brasileiro na atualidade com a expansão da literatura espírita?

A literatura genuinamente espírita sempre será o maior patrimônio da nossa cultura espírita. O que vemos hoje, no Movimento Espírita Brasileiro, é uma enxurrada de literatices se passando por espírita. São as abusivas pseudo-literaturas espíritas de baixíssima qualidade, até mesmo como literatura espiritualista.

Há um compromisso importante que o leitor espírita, ou simpatizante da literatura espírita, deve assumir como confrade consciencioso: ler de tudo que pousar em suas mãos, mas prezando sempre a qualidade doutrinária em Kardec. Isso equivale a dizer que as obras que contradizerem os preceitos espíritas devem ser compreendidas como literaturas não espíritas, e que essas não deveriam ser vendidas em livrarias espíritas, não deveriam ser aceitas em bibliotecas espíritas ou mesmo em feiras do livro espírita. Neste sentido também, sempre haverá a necessidade de seleção editorial rigorosa por parte dos dirigentes e/ou responsáveis por departamentos vitais nas casas espíritas. O que vem acontecendo ultimamente é uma verdadeira inversão de valores: obras não espíritas se passando por espíritas e sendo aceitas no Espiritismo sem critério algum. Isso incorre numa incoerência coletiva: a de estarmos sendo coniventes com esses rasos literatismos, permitindo a adoção e a prática de seus conceitos ou sistemas que impugnam o que já foi estabelecido como preceito espírita pelos espíritos superiores nas obras fundamentais da Doutrina Espírita.

Por fim, não façamos do incorruptível Espiritismo caricatura grosseira, permitindo a infiltração dos caracteres maléficos dessas literatices oportunistas.

 

Grupos religiosos promovem revanche teológica no país.

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Roberto Romano – Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Firmada pela Constituição de 1891, separação de Estado e igreja no Brasil passou por retrocessos desde então e permanece sob ataque de grupos que pretendem impor a religião à vida pública, diz autor.

Nos tratos entre poder civil e mando religioso, a grande tese da Igreja Romana foi expressa por Leão 13 na encíclica “Immortale Dei”: “A Igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”. A doutrina vem de longe, mas foi sintetizada por Roberto Belarmino, com a proposta de uma “soberania espiritual indireta” do papa sobre o Estado secular. Se o dirigente político deixa a fé, surgem ameaças à saúde coletiva.

Ao mover sua imprensa e para censurar os jornais não católicos, o clero brasileiro gastou recursos de propaganda contra os maçons (algo que já vinha do Império), liberais, espíritas, anarquistas e todos os que poderiam pôr em dúvida a “soberania espiritual” do Sumo Pontífice. O protestantismo foi particularmente visado. Na Revista Eclesiástica Brasileira, na Revista Vozes ou em pasquins diocesanos, os protestantes eram descritos como o grande malefício.

Um livro virulento do padre Soares d’Azevedo comparava o protestantismo à peste, ao anarquismo e a outras “doenças” sociais. Quem no Brasil adere à reforma, diz o sacerdote, só pode ser espião imperialista —no caso, dos EUA. A invasão protestante ameaçaria a integridade do Estado, visto que as instituições nacionais tinham como essência e origem o catolicismo. Apenas os católicos seriam patriotas, somente eles garantiriam a soberania nacional.

O mesmo ataque foi retribuído, contra os católicos, pelos defensores do laicismo: o Vaticano seria uma potência estrangeira capaz de ameaçar nosso Estado soberano. Note-se a mudança nas cores da paleta: no século 20 ser católico era prova de patriotismo. Hoje, na visão de grupos do governo Bolsonaro, a Igreja Romana põe em perigo a segurança e a soberania do Estado. Mudaram os personagens, o problema continua: agora os evangélicos imaginam que suas congregações e o poder estatal formam um só corpo.

Acusam-se os católicos de lesa-pátria, sobretudo com o próximo sínodo sobre a Amazônia, congresso de bispos a ser realizado em outubro, em Roma. O general Augusto Heleno queixou-se de que o encontro seria “interferência em assunto interno” do Brasil, o que evidencia nova crise entre Estado e Igreja. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o governo brasileiro monitora com preocupação a ação do clero e pediria ajuda à Itália para travar a exploração de temas da Igreja que considera ligados à esquerda.

Depois Heleno negou plano de espionar membros da igreja, mas reafirmou sua preocupação, uma vez que alguns dos temas do Congresso, segundo ele, “são de interesse da segurança nacional”. “Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil”, afirmou. Espionar clérigos, de fato, não é uma tarefa digna da sociedade civil ou do Estado. E, no campo diplomático, pedir auxílio da Itália para pressionar o Vaticano é ignorar a natureza do adversário.

Num gesto cesaropapista, setores oficiais postulam a participação, no sínodo, de autoridades civis. Todos esses programas e teses, que tentam expulsar da vida pública religiões concorrentes, levam à única conclusão racional: o Estado não pode ser o corpo de uma crença no sagrado; deve permanecer neutro para escapar da destruição que devastou a Europa moderna nas guerras de religião.

O que significa um Estado laico? Examinemos a tese política que recusa qualquer religião como fonte do poder público. Ao contrário do vocábulo “demos”, “laós” (povo) não tem etimologia confiável, mas o nome surge na prosa e poesia gregas. Em Homero pode significar “gente, súditos, cidadãos, assembleia”. Como não há na Grécia distinção forte entre clero e fiéis, apenas no Egito são diretamente opostos o laós e o sacerdote.

No aristocrata autor da “Ilíada”, o nome se aproxima do pejorativo. Em Platão indica um aglomerado humano. As pessoas no teatro e na assembleia integravam o laós. No cristianismo primitivo o termo representa os fiéis opostos aos pagãos.

A Igreja assumiu várias doutrinas filosóficas para refletir sobre o Cristo e a vida coletiva. Alguns padres seguiram o estoicismo, outros o neoplatonismo. Neste último o representante máximo foi Santo Agostinho, cuja importância sofreu a concorrência do misterioso Dionísio, o Areopagita. No livro dos Atos mencionam-se discursos do apóstolo Paulo em Atenas. Aquelas falas teriam sido assumidas por Dionísio.

Apenas como curiosidade, com ele havia uma crente cujo nome era Damaris…. Soa atual no Brasil, apesar de a letra “i” ter sumido em favor do “e”.

Por volta de 840, os escritos de Dionísio foram traduzidos por João Escoto Erígena e usados como autoridade na Idade Média. Neles, o conceito fundamental é o de hierarquia. O termo reúne “hieros” (sagrado) e “arché” (princípio, poder, início). O que é uma hierarquia? Resposta: “Um sistema de patamares com respeito ao conhecimento e à eficácia”. Até hoje a Igreja segue os parâmetros definidos por Dionísio nos campos do saber e da realidade.

Ao dizermos algo a respeito de Deus, sabemos que dele jorra uma luz espalhada pelos seres. Quanto mais próximo do ser divino, mais brilhante e digna a criatura. Há na ordem cósmica e humana uma escada para cima (superior) e outra para baixo. Aos seus degraus chamamos hierarquia.

Cada ente, natural ou humano, recebe sua luz de outro, mais elevado, e a transmite ao inferior. O mundo terreno reflete o celeste, os anjos são “espelhos espirituais do abismo divino”, disse o teólogo Paul Tillich. Jacques Maritain, filósofo importante da Igreja no século 20, publicou um livro célebre cujo título é totalmente dionisíaco: “Distinguir para Unir, os Graus do Saber”.

Cosmos e saber são hierarquizados, assim como a estrutura da Igreja e dos poderes políticos. A diferença entre superiores e inferiores não pode ser abolida. Tentar sua igualização é destruir a ordem divina. No mais alto posto situa-se o clero. Abaixo, os reis e nobres. E no plano mais baixo estão os leigos, o povo, o laós. Tal sistema nega a igualdade política. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e pensamento semelhante imaginário.

É impossível quebrar a escala hierárquica, dos anjos aos homens. À pergunta “se Deus fez todas as coisas, por que não as fez iguais?”, Agostinho apresenta uma fórmula: “Non essent omnia, si essent aequalia”. Cada coisa ocupa um lugar diferente na ordem dos seres. A igualdade seria oposta à natureza, ao mundo social e político. Daí surge a tese da soberania eclesiástica na Idade Média —e depois a da soberania pontifícia indireta, após a Reforma Protestante.

Com Lutero e Calvino temos uma inversão do pensamento ordenado por Dionísio. Quando os reformadores negam a autoridade eclesiástica, bem como a existência de intermediários entre o mundo finito e o além, abrem a via para instaurar uma sociedade laica e um Estado idem. Evidentemente, tal mudança não ocorre de imediato. Nos “heréticos” restam traços do poder clerical e da hierarquia na vida humana.

Quando seus discípulos se insurgem, exigindo igualdade política, Lutero defende os príncipes e amaldiçoa os líderes da Revolução Camponesa, sobretudo Thomas Münzer. Apesar de tudo, na reforma, o poder laico firma-se de modo perene. A Igreja é a união do povo comum, os leigos, e dispensa hierarcas religiosos. Logo dispensará os hierarcas políticos. Todos os reacionários do século 19, de Joseph de Maistre a Donoso Cortés, identificam a gênese da “fatal democracia” em Lutero.

No movimento luterano —e depois, calvinista—, fortaleceu-se a luta pela igualdade e a busca do poder laico sem guantes clericais. Não por acaso, o coletivo que mais contribuiu para o reforço do sistema parlamentar e da república inglesa ostenta o nome de Os Niveladores (Levellers). No mesmo passo, Francis Bacon defende a ciência e o ensino com base no método, não em fórmulas metafísicas. Exemplo dado por ele: para desenhar um círculo perfeito é preciso raro gênio. Com o compasso, todos cometem a proeza.

A democratização trazida pelo método segue para as hostes políticas puritanas e civis. A genialidade e o milagre, bases do aristocratismo hierárquico, deixam a cena em prol do trabalho científico disciplinado. O mundo perde o encanto e se transforma em algo prosaico, sem hierarquias sagradas.

As Luzes continuam as lutas da reforma e da ciência. Desde então, o saber se transforma na política cujas bases é a laicidade plena, afastando o religioso. Kant, um filósofo que segue a reforma, proclama: “Nosso tempo é o tempo da crítica, à qual tudo deve se submeter. A religião, por sua santidade, a legislação, por sua majestade, desejam dela fugir. Mas então elas suscitam uma justa suspeita e não podem desejar o respeito sincero que a razão concede apenas ao que pode ser sustentado em livre e público exame”.

No poder e na ciência laicos não existe “magister dixit” (porque o mestre falou). Quem diz hierarquia religiosa diz ocultamento ou censura, como no “Index Librorum Prohibitorum” (índice dos livros proibidos). Daquele volume para a totalitária fogueira de livros o passo é curto. A vida laica repele todo ato censor ou tutela sobre coletivos e indivíduos. Nenhuma autoridade recebe o mando do ser divino, mas do povo.

É a tese avançada pelo francês Diderot, assumida na Constituição dos Estados Unidos da América: “Nous, le peuple”… “We, the people” (nós, o povo). O Estado laico, ou do povo, triunfa e, com ele, a democracia. É abolida no espaço público a figura da hierarquia divina. Todos são iguais. Contra semelhante atitude, nos séculos 19 e 20, a Santa Sé se une aos movimentos baseados na hierarquia do mando, com Mussolini, Hitler e outros.

Logo após 1500, o Brasil conhece a contrarreforma, reação aos movimentos protestantes. Adeptos da nova religião aqui estiveram, sobretudo franceses e holandeses. Mostraram posição mais etnocêntrica do que os jesuítas. Intolerantes para com as crenças indígenas, afirmavam serem as danças e cantos das tribos, bem como seus costumes, obra do Diabo.

Com a expulsão dos invasores (como se os portugueses não tivessem invadido o território…), o catolicismo retoma a hegemonia. Nos séculos seguintes, tal preponderância sofre sob o padroado, o acordo entre Estado e Vaticano cujo modelo herdamos de Portugal. O poder laico do rei controla a Igreja, dá-lhe pouca liberdade. Várias medidas estatais reduzem o poder de fogo eclesiástico. No final do Império, a “soberania espiritual” era só um desejo do clero ultramontano.

Na República, são claras duas políticas contrárias à presença religiosa no ordenamento coletivo. Os seguidores de Auguste Comte, embora com forte número de militares, almejam um poder civil: “Se, no regime democrático (…), é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar abusos e prepotências”, afirmou Benjamin Constant em 1877.

Os positivistas adotam a separação de Igreja e Estado e proclamam que o segundo não deve “apoiar com a força do poder o ensino de qualquer doutrina”. Como diz João Cruz Costa, o programa positivista lançou “as bases de uma política racional para o Brasil”, a despeito de recuos táticos (com o voto positivista foi mantida a proibição do divórcio).

Entre os liberais a predominância da Igreja foi entendida como “imperialismo católico”. O Vaticano, pensavam, seria um Estado com agências no Brasil, o que traria óbices para o país soberano. O mais forte argumento liberal encontra-se na tese, como vimos acima fundamentada, de que o ensino da Igreja pregava a desigualdade civil.

Radicalizando, Saldanha Marinho denuncia o poder eclesiástico “por sua campanha infernal contra a civilização”. O programa se firmou como laico para garantir ao Estado o monopólio da imposição legal. “Medida indispensável de progresso e até de segurança pública a decretação do divórcio perpétuo da Roma eclesiástica do Brasil político” (Saldanha Marinho, citado por Maria Stella Bresciani).

Na Constituição de 1891, a primeira da República, surgem os pontos defendidos por positivistas e liberais. Na Carta se firmou a laicidade do Estado. A partir daí, vicissitudes nacionais definiram avanços e retrocessos no trato entre religião e vida pública.

Sob Getúlio Vargas ocorreu um retorno aos privilégios eclesiásticos em detrimento da laicidade, apesar dos elos getulistas com as raízes positivistas. Foi a hora em que a Igreja moveu massas humanas para garantir leis favoráveis às suas exigências. Seguindo a retomada do vínculo entre poder civil e religioso (cujos resultados marcantes foram o Tratado de Latrão com Mussolini e a Concordata com Hitler), a Igreja “consagrou” o Brasil ao Sagrado Coração de Jesus, marca da “soberania espiritual” católica. O símbolo de tal consagração é o Cristo Redentor no Rio de Janeiro.

No regime militar de 1964, a Igreja Católica, via CNBB, aprova os atos institucionais, incluindo o de número 5. Fora a minoria de bispos, padres, freiras e leigos, ela apoia o Executivo. Naquele momento, as seitas neopentecostais aumentam seu número e a quantidade de fiéis. Os protestantes, antes minoritários e perseguidos, expandem suas hostes.

Embalada desde Vargas pelas benesses do Estado, a Igreja não percebeu, sobretudo no pontificado de João Paulo 2º —personagem presente em escândalos como o Irã-Contras, apoiador de Pinochet e outros regimes absolutistas—, a concorrência que ameaçava sua hegemonia.

Hoje lideranças católicas, unidas a igrejas e movimentos evangélicos, pretendem dar ao Estado e à sociedade formas legais contra o laicismo. Os evangélicos substituem o catolicismo, agora se imaginam a nova alma do corpo estatal.

O presidente eleito deu a senha: somos um Estado cristão, não laico. Assim, o religioso retoma suas pretensões políticas sob a diretriz de seitas que não seguem com justeza a reforma, não valorizam o traço civil dos assuntos estatais. Por enquanto, notemos, os pastores são obrigados a dividir espaço com os militares de tradição católica e laica.

Assistimos à revanche do campo teológico-político contra os princípios democráticos da Reforma Protestante, do liberalismo e do programa positivista que exigiam a separação de Igreja e Estado. Os sinais de imposição religiosa nos campi e nas escolas brasileiras são evidentes, com ataques à teoria da evolução e com a defesa do criacionismo.

Mais grave é a guerra contra os direitos humanos, sobretudo os da mulher e das minorias. A acreditar nas declarações de representantes religiosos acerca de como deve ser o Estado brasileiro, à mulher se reservam os famosos três C vigentes no período mais negro da história ocidental: casa, cozinha, crianças.
Estado laico é sinônimo de poder democrático, do povo. Se ocorrer a sua morte e se forem restaurados os hierarcas (de qualquer religião), a democracia será definitivamente banida. O futuro dirá.

Roberto Romano, professor de ética e política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, é autor de “Razão de Estado e Outros Estados da Razão” (ed. Perspectiva), entre outros.

 

Bancada religiosa e baixo número de filhos desafiam Estado laico

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 LUIZ FELIPE PONDÉ Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Escritor identifica na atividade legislativa e na baixa taxa de natalidade verificada entre defensores do secularismo os desafios mais importantes para a manutenção do Estado laico.

O Brasil corre o risco de deixar de ser um Estado laico? E pior: passaria a ser um Estado teocrático? E pior ainda: seria o Deus brega da classe média que tomaria conta do país? Sim, porque até entre os deuses há diferenças de classes. Se for um Deus chique que combine com vinho branco gelado no verão e incenso, está valendo. Mas, se for um Deus brega de “crente”, “tô fora”. Seria essa afirmação um preconceito?

Estado laico e sociedade secular, conceitos afins, são realidades históricas; logo, podem deixar de existir, pelo menos em teoria. Tudo que é histórico é, de alguma forma, efêmero. As angústias pela fundamentação absoluta da moral brotam dessa agonia com o transitório, o relativo e o efêmero. Por isso, a questão de se o Brasil (ou qualquer outro Estado) corre o risco de deixar de ser laico pode ser sempre levantada.

A máxima de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, é uma ameaça velada ao Estado laico no Brasil ou é pura retórica? Na democracia tudo é retórica e, por isso, tudo é para valer, já que não existe nada fora da retórica. Não acho que Bolsonaro esteja “brincando” quando fala isso, mas não acho que ele vá pegar ninguém pelo braço e jogar dentro da igreja ou proibir o ensino de Darwin (e se tentar proibir o de Marx ou qualquer outro autor, vamos berrar) nas escolas.

Pelo contrário: acho que ele fala isso porque grande parte do povo brasileiro pensa assim, mas não no sentido de abrir mão do Estado laico ou da sociedade secular; pensa assim como quem se lembra de uma antiga cantiga de ninar familiar —se bem que hoje, como não existem quase mães e avós, essa comparação que fiz pode ser incompreensível. Você não entendeu o que Estado laico e sociedade secular têm a ver com o assunto de mães e avós em extinção? Têm muito, espere um pouco e verá.

Enfim, Bolsonaro fala “Deus acima de todos” da mesma forma que pode falar “bandido bom é bandido preso” ou “vou acabar com a corrupção”. Dizer “Deus acima de todos” acalma muitas almas. Outras se acalmam com #EleNão, outras com “namastê”, outras com Viagra.

Há gradientes entre uma sociedade secular e seu irmão gêmeo, o Estado laico, e seu oposto teocrático —e o Brasil está bem longe deste oposto. Há, no entanto, nuances, e o vetor pode pender mais para um lado ou para o outro.

Um teste possível para ver se um Estado deixou, de fato, de ser laico não é se há crucifixo nas paredes ou se na Constituição daquele país se evoca Deus, mas sim se um juiz aceita o depoimento de um pastor dizendo que fulano matou a mulher porque ouviu vozes do Diabo mandando que a matasse. E a partir disso declara que fulano foi vítima de manipulação espiritual maligna.

Por outro lado, se um Estado proíbe o aborto em nome da crença de que “a vida pertence a Deus”, está dando uma atenuada na sua condição de laicidade. Entre esses dois polos, já vemos o gradiente em ação.

O chamado Estado laico (separação de religião e Estado) é fruto histórico das guerras religiosas na Europa entre católicos e protestantes. A defesa de um Estado “sem religião” decorreu do esgotamento espiritual, físico, econômico, social, político e psicológico causado por essas guerras.

O filósofo romeno Emil Cioran dizia que sua busca na vida era “tornar-se virtuoso pelo cansaço”. Essa máxima aplica-se bem ao caso. O Estado laico não foi buscado como meta —chegou como resultado do cansaço das guerras religiosas na Europa. A discussão sobre o conceito vai nascendo como fruto dessa constatação.

Os acordos conhecidos como Paz de Vestfália —que não existiu como tratado único— são identificados como a data fundante (1648), de modo simbólico, do Estado moderno, e, consequentemente, do nascimento do Estado laico. Por quê? Porque as guerras entre católicos e protestantes deram empate.

Homens, mulheres, crianças, estradas, casas, cavalos, cidades, riquezas, tudo destruído e ninguém vencia ninguém. Como consequência, decidiu-se que ninguém poderia interferir no território de outro príncipe a fim de se meter na religião ali vigente.

Para quem conhece um pouco a história, a vitória simbólica foi do protestantismo, pois este já nasceu submetido ao poder secular (não religioso, isto é, poder sobre o tempo histórico), enquanto os católicos combatiam a favor de uma Igreja Católica que sempre viveu às turras com o poder secular, caso este não aceitasse a ingerência “divina” do papa e seu clero.

Por isso os protestantes cultos, quando indagados se o movimento evangélico gostaria de destruir o Estado laico, respondem com a seguinte pergunta: “Você acha que queremos destruir nossa própria invenção?”.

Um Estado sem religião é bom para todos, porque a opinião religiosa das pessoas pode mudar —e quem mandava pode passar a vítima dos novos mandantes. A neutralidade religiosa garante a vida saudável das próprias religiões. É isso o que significa ser um religioso moderno. Religiosos ignorantes querem que o Estado se mele com religiões.

O filósofo Charles Taylor, no seu monumental “Uma Era Secular”, ensina que o processo de secularização da sociedade foi longo. Iniciado no século 15, passou pelas guerras religiosas, pelos avanços da burguesia comercial urbana e acabou por se organizar ao redor de dois vetores essenciais, que são, por si próprios, externos à política, ainda que a tenham impactado, levando a Europa à experiência laica e secular. Taylor fala de duas condições básicas de possibilidade do surgimento do Estado laico e da sociedade secular.

A primeira condição é o sucesso da técnica causado pelo avanço do método científico, baseado na experimentação empírica, a partir da “matematização” da natureza. Isso significou uma relativização, ainda que “inconsciente”, da necessidade das práticas religiosas cotidianas para resolução de problemas relacionados à saúde e ao sofrimento físico em geral.

A melhoria das condições materiais de vida, impactando as condições psicológicas e sociais, levaram a população europeia a experimentar um recuo na dependência da crença.

A segunda condição é o surgimento da organização do Estado moderno e de Direito. A melhoria da operação do Estado na lida com a organização da vida social, que dependeu do avanço técnico e científico, também implicou um recuo prático da dependência das expectativas religiosas como solução para os problemas do dia do dia no que tange a condições materiais urbanas, resolução de conflitos jurídicos, avanços na racionalização econômica —enfim, tudo que causa uma redução no sofrimento em escala social e política.

Segundo Taylor, mesmo o ateísmo orgânico —aquele ao qual a pessoa chega sem esforço de pensamento, mas por desinteresse prático numa vida religiosa— é fruto desse processo. Muitas pessoas mantiveram suas crenças, ainda que de modo atenuado.

A pergunta que deve ser feita: quem optaria pela mágica ou pela oração antes de buscar o antibiótico ou o juiz? Isso não significa que muitas pessoas não busquem ajuda de xamãs, como o ex-famoso João de Deus, mas o fato é que o médico e o juiz são os arquétipos do processo bem-sucedido de combate ao sofrimento levado a cabo pela condição laica e secular.

Agora perguntemos, os brasileiros estariam dispostos a abrir mão do médico e do juiz em favor da mágica e da oração naquilo que de fato impacta o sofrimento e a morte, por conta de uma frase de Bolsonaro ou de sua eleição? Não creio. Mas há risco de atenuação do gradiente de nuances em favor de uma religiosidade mais prática? Sim, há algum risco. Apontaria dois deles, maiores em termos de processo.

O primeiro é o uso do Legislativo para atingir hábitos e costumes. Se uma bancada religiosa prática se tornar significativa, pode haver algum risco.

No entanto, o histórico do movimento evangélico no Brasil tem sido de pragmatismo político beirando o fisiologismo (mesmo o PT, que posa de defensor do Estado laico e da sociedade secular, foi parceiro de atores políticos evangélicos) e de liberalismo popular periférico, melhorando mesmo as condições de vida de populações abaixo da classe média que perderam a “fé na política”. Talvez essas camadas a tenham recuperado na última eleição, mas isso leva tempo.

Outro impacto, também lento no seu efeito, contra o experimento laico e secular, e que não é apenas traço do Brasil —e nisso ele é mais sério, de certa forma—, é aquele ligado a mães e avós, que citei acima. Eric Kaufmann, demógrafo das religiões, publicou em 2010 um estudo comparativo, e provocativo, da fertilidade feminina entre mulheres seculares e mulheres de adesão religiosa estrita no Ocidente (em português comum, “religiosas praticantes”).

Em “Shall the Religious Inherit the Earth?” (os religiosos herdarão a Terra?), ele mostra como o experimento laico e secular pode ser duramente afetado nos próximos 50 a 100 anos pelo fato de que “os seculares têm ótimas ideias, mas os religiosos têm mais bebês”.

Os seculares defendem o darwinismo, mas quem o pratica são os religiosos, segundo Kaufmann, porque o darwinismo é, no limite, uma teoria demográfica: quem tem mais prole está mais bem adaptado —e se impõe. Resultado: a sociedade secular e o Estado laico podem sofrer sérias baixas, simplesmente, pelo fato de que os seculares preferem cachorros, um filho só (quando muito), bikes e mídia social.

À medida que as mulheres optam por papéis sociais que não a maternidade, “bebês seculares” deixam de nascer. A Europa agoniza de pânico diante desse risco. A solução é “atacar” os muitos jovens que vivem em famílias de adesão estrita e “convertê-los” à vida secular. O ciclo, porém, tende a se repetir. Cachorros e bikes não sustentarão o Estado laico nem a sociedade secular.

Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, escritor e ensaísta, é autor de “Os Dez Mandamentos (+ Um)” e “Marketing Existencial”, ambos da Três Estrelas. É doutor em filosofia pela USP.

 

 

Só a retomada salva o País

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José Luís Oreiro – Valor Econômico, 22 de fevereiro de 2019.

A sociedade brasileira passa por uma profunda crise econômica, política e social desde 2013. As manifestações de 2013 foram o evento catalizador de um processo de crescente descrédito na classe política e, posteriormente, de outras instituições da República.

A insatisfação de parte expressiva da população com a performance dos políticos, em particular, e do Estado, em geral, foi incrementada pelos efeitos deletérios da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 – que foi detonada por um colapso do investimento do setor privado, que se contraiu por três trimestres consecutivos, a taxa de 10% por trimestre. Isso resultou de um processo de “profit squeeze”, ou seja, queda das margens de lucro e da taxa de retorno sobre o capital próprio das empresas não financeiras, a qual se tornou na mais duradoura e profunda crise econômica do Brasil nos últimos 30 anos. No auge da crise, mais de 14 milhões de brasileiros estavam desempregados e o PIB apresentou retração superior a 8% em termos reais, com destruição de riqueza de R$ 600 bilhões.

A recessão acelerou o desequilíbrio fiscal da União e dos entes subnacionais, muitos dos quais passaram a enfrentar dificuldades crescentes para manter o pagamento dos servidores em dia. A deterioração crescente do resultado primário da União a partir de 2014 gerou um crescimento acelerado da dívida pública como proporção do PIB, colocando o endividamento da União em trajetória claramente insustentável. A perda de espaço fiscal decorrente desses desdobramentos impediu a realização de uma política fiscal anticíclica justamente no momento em que a mesma era mais necessária. Pelo contrário, a política fiscal executada em 2015 foi francamente contracionista, amplificando assim os efeitos da recessão iniciada em 2014.

Outro fator que amplificou os efeitos recessivos do colapso do investimento privado foi a elevação da taxa básica de juros promovida pelo Banco Central em 2015, na tentativa de debelar os efeitos de segunda ordem que o aumento das tarifas dos públicas e dos combustíveis poderiam ter sobre a dinâmica da taxa de inflação.

O desemprego crescente aguçou a percepção de que a crise brasileira era o resultado da corrupção generalizada dentro do Estado, tal como estava sendo revelado ao público pela Lava-Jato. Essa percepção acabou por gerar um sentimento difuso de “ódio” à classe política, principalmente aos políticos diretamente ligados ao PT.

O imenso apoio popular ao impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a demonstração clara de que, na cabeça do cidadão mediano, a crise era resultado direto da corrupção dirigida e organizada pelo PT e seus aliados. Nesse contexto, uma ampla parcela da população acreditava que o afastamento do PT do poder, pelo impeachment, cujas bases jurídicas eram duvidosas, seria uma condição necessária, quando não suficiente, para o fim da corrupção e para a retomada do crescimento econômico.

Os primeiros meses do governo Michel Temer pareciam apontar para uma retomada robusta do crescimento no início de 2017, ainda que poucas pessoas acreditassem na vontade do governo de combater a corrupção.

O governo Temer apresentou à sociedade brasileira uma narrativa essencialmente ortodoxa das causas da crise de 2014 a 2016. O problema fundamental era o desequilíbrio fiscal estrutural, resultado do “contrato social” estabelecido pela Constituição de 1988. Segundo economistas ligados ao governo, a Constituição havia produzido um conjunto de benefícios sociais para os mais pobres e de privilégios para os funcionários públicos que impunham um ritmo para o crescimento dos gastos públicos (entre 5 a 6% ao ano em termos reais) que era muito superior à capacidade de crescimento da economia.

Durante um certo período foi possível acomodar esse aumento dos gastos com o aumento da carga tributária. Contudo, a partir de 2011, a receita passou a crescer mais ou menos em linha com o PIB de tal forma que a deterioração do resultado primário da União tornou-se inevitável. Essa deterioração teria sido “mascarada” pelas “pedaladas fiscais” e outros artifícios de “contabilidade criativa”; mas, a partir de 2014, ficou impossível encobrir a verdade nua e crua de que o governo não era mais capaz de gerar superávits primários e que, portanto, a dívida pública entraria em trajetória explosiva. O desequilíbrio fiscal crescente acabou por gerar perda de confiança dos empresários no governo, o que se refletiu em elevação do prêmio de risco país, desvalorização da taxa de câmbio, queda dos preços das ações e elevação dos juros futuros. Esse quadro levou a uma queda dos gastos de investimento e de consumo, fazendo com que o país entrasse na pior recessão dos últimos 30 anos.

Face a essa narrativa, a solução para a crise era muito clara: o governo precisava fazer um ajuste fiscal estrutural, cujo foco deveria ser a redução do ritmo de crescimento das despesas. Para tanto, foi desenhada uma estratégia em duas etapas. Na primeira, o governo enviou para o Congresso uma PEC criando um teto de gastos para o governo federal. Esse teto não seria a solução do problema fiscal, mas apenas uma espécie de mecanismo que explicitaria o conflito distributivo existente dentro do orçamento. A ideia era congelar os gastos primários da União em termos reais por dez anos, ao final dos quais poderia ser modificado o indexador dos gastos públicos, que havia sido definido como a variação do IPCA no período inicial de vigência do teto.

O problema é que todos os itens das despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões, salários do funcionalismo público, gastos com saúde e educação) apresentaram nos últimos 20 anos uma taxa de crescimento muito acima da variação do IPCA. Dessa forma, se nada fosse feito para reduzir o ritmo de crescimento desses gastos, o cumprimento da regra do teto obrigaria a administração federal a reduzir progressivamente os gastos discricionários, que incluem gastos com o investimento em infraestrutura, com o reaparelhamento das Forças Armadas e com a manutenção de instalações do governo federal.

Como é impossível manter o funcionamento da máquina pública federal sem a realização de um valor mínimo de gastos discricionários, segue-se que a ameaça de “shutdown” obrigaria o Congresso a realizar aquilo que foi denominado de “a mãe de todas as reformas”, a reforma da Previdência. Uma vez aprovada uma “boa” reforma, o desequilíbrio fiscal estrutural seria eliminado, e o teto dos gastos poderia, eventualmente, ser abolido. Nessas condições, o Brasil poderia retomar o crescimento em bases sustentáveis, pois se produziria uma “contração fiscal expansionista”, ou seja, o ajuste das contas públicas levaria automaticamente a um aumento do investimento e do consumo do setor privado.

A PEC do teto dos gastos foi aprovada no final de 2016 e tudo apontava para a aprovação de uma reforma da Previdência em 2017. As condições financeiras da economia brasileira (risco país, taxa de câmbio, juros futuros e índice Bovespa) apresentavam nítidos sinais de melhora no primeiro trimestre de 2017. A melhoria das condições financeiras ocorrida a partir do segundo semestre de 2016 permitiu ao BC iniciar um processo “lento, gradual e seguro” de redução da taxa de juros, o qual deveria, em algum momento, estimular o crescimento.

Mas no meio do caminho havia uma pedra, e essa pedra foi o escândalo da gravação das conversas, por assim dizer, pouco republicanas, entre o presidente da República e Joesley Batista, da JBS. A divulgação desses áudios produziu uma crise política de proporções gigantescas, obrigando o presidente a gastar todo o seu capital político e otras cositas más na tentativa de angariar apoio político para o seu governo e impedir um novo processo de impeachment. No fim do ano de 2017 já estava claro que a reforma da Previdência não teria condições políticas de ser aprovada durante o governo Temer.

Surpreendentemente os mercados financeiros não desabaram com o adiamento da reforma da Previdência. Índices de condições financeiras continuaram relativamente bem-comportados ao longo do segundo semestre de 2017 e no primeiro trimestre de 2018. Apesar disso, o crescimento foi decepcionante em 2017. O PIB apresentou expansão de 1,1% em termos reais, após dois anos de queda acentuada. No fim de 2017, a economia ainda se encontrava 6% abaixo do nível observado em 2013. E o pior, o desemprego superava 13 milhões de pessoas. A produção industrial encontrava-se ao nível de 2004, recuo de mais de 10 anos.

O ano de 2018 se inicia com grandes expectativas de aceleração do crescimento. O ministro da Fazenda esperava um crescimento entre 2,5% a 3%. Se essas expectativas se confirmassem, a taxa de desemprego poderia fechar o ano em torno de 10% da força de trabalho, gerando um saldo de 2 a 3 milhões de novos empregos. Nesse cenário róseo, o candidato à Presidência da República que encarnasse a continuidade da política econômica do governo Temer seria praticamente imbatível nas eleições de outubro.

Mas o otimismo de Henrique Meirelles mostrou-se sem fundamento. No primeiro semestre de 2018 a atividade mostrava sinais de recuperação muito lenta, embora a grande recessão tivesse oficialmente terminado no fim de 2016. A implantação do teto dos gastos pode ter até ancorado as expectativas dos agentes do mercado financeiro, contribuindo assim para a relativa estabilidade dos índices de condições financeiras; contudo, o seu cumprimento estava impondo redução sem precedentes, nos últimos 15 anos, dos gastos com investimento público.

A contração do investimento público – justamente o componente da despesa primária que possui o maior efeito multiplicador – atuou como mecanismo de desestímulo à demanda agregada, numa economia que estava operando com nível absurdamente elevado, para seus padrões históricos, de ociosidade da capacidade produtiva. A greve dos caminhoneiros, a crise econômica na Turquia e Argentina e a indefinição do quadro eleitoral contribuíram para aumentar a incerteza reinante entre agentes econômicos, que se expressou numa deterioração significativa do índice de condições financeiras ao longo do segundo semestre de 2018. Como resultado desses desdobramentos, o ritmo de recuperação da atividade econômica desacelerou e a economia deve ter fechado o ano passado com um crescimento em torno de 1%.

O quadro econômico desolador combinado com a constatação de que a corrupção na máquina pública não estava restrita ao PT levou uma ampla parcela da população a acreditar que os problemas só seriam resolvidos por um outsider da política tradicional. A maioria dos eleitores identificou em Jair Bolsonaro a pessoa que encarnava o anti-establishment.

Mas será que o governo Bolsonaro poderá atender ao desejo de mudança, ou melhor, será que o novo governo poderá recolocar o Brasil na trajetória de desenvolvimento?

Bolsonaro, influenciado pelo czar da economia, Paulo Guedes, parece acreditar que a reforma da Previdência, combinada com um programa ambicioso de privatizações, irá fazer o país sair daquilo que o próprio Guedes chamou de “armadilha de baixo crescimento”. Não é a primeira vez que se propõe uma ampla agenda de privatizações como solução para os problemas nacionais. Essa agenda foi extensamente adotada nos governos Collor e FHC.

A taxa média de crescimento no período 1990-2002 foi inferior a 2,5%, mesmo se expurgarmos os dois primeiros anos do governo Collor, quando a economia entrou em recessão devido ao “confisco das poupanças”. Também não é a primeira vez que se diz que um ajuste fiscal é fundamental para a retomada do desenvolvimento. Ajustes fiscais foram feitos em 1994-1995; 1999-2000, 2003-2004, 2011, 2015, 2016-2018. Nesses casos, apenas um deles, o período 2003-2004, foi seguido por um período de aceleração significativa e razoavelmente duradoura do crescimento. Nesse caso, a contração fiscal se mostrou expansionista devido ao espetacular aumento das exportações de manufaturados ocorrida no período 2002-2004, decorrente da enorme desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2002. Em todos os demais casos, ou não houve aceleração do crescimento, ou a aceleração foi pequena e curta ou ocorreu queda do nível de atividade econômica. Em suma, o ajuste fiscal pode ser necessário para evitar um desastre, mas não é nem de perto condição suficiente para a retomada do crescimento.

Esta requer o atendimento de duas condições. No curto prazo é necessária expansão da demanda agregada para que se possa eliminar a ociosidade na capacidade produtiva e para dar emprego digno a mais de 12 milhões de brasileiros. Essa expansão da demanda agregada não poderá vir do investimento, devido à enorme ociosidade da capacidade produtiva e nem do consumo das famílias, devido ao nível elevado de desemprego. O desequilíbrio fiscal também impede uma expansão significativa do investimento público.

A expansão da demanda agregada só pode advir de um forte crescimento das exportações, principalmente das exportações de produtos manufaturados, o que requer taxa real de câmbio estável e competitiva. No médio e longo prazos, contudo, o crescimento só será sustentável se for acompanhado por aumento da produtividade. Ao contrário do que pregam economistas liberais que acham que a produtividade é uma característica embutida nos trabalhadores por intermédio da educação, a boa teoria econômica e a experiência internacional mostram que a produtividade é uma variável cujo comportamento é regido por uma série de fatores, sendo a educação apenas um entre vários.

A produtividade é afetada pela quantidade e a diversificação do conhecimento técnico e científico que está embutido nas pessoas (capital humano), nas máquinas e equipamentos (capital físico), na capacidade das pessoas em se conectarem e assim trocar informações (capital social). Dessa forma, aquilo que uma economia produz e exporta revela a sofisticação ou complexidade das suas capacitações produtivas. A estrutura produtiva importa para o crescimento econômico.

Tendo em vista esse entendimento sobre as causas da produtividade, a retomada do desenvolvimento exige que o Brasil reinicie o processo de “catching-up” industrial e tecnológico interrompido na década de 1980. Um elemento essencial dessa retomada será a reindustrialização, ou seja, o crescimento da participação do valor adicionado da indústria no PIB e do emprego industrial no emprego total. Esse processo irá demandar uma mudança no regime macroeconômico, de forma a manter a taxa de câmbio em níveis competitivos internacionalmente, a exemplo do que foi adotado, de forma bem-sucedida, nos países do Leste Asiático; como também a adoção de uma política industrial que permita aumentar a complexidade tecnológica da pauta de exportações do Brasil. A exemplo do que é feito nos Estados Unidos, Japão, China, e países da Europa Ocidental, o desenvolvimento de um complexo industrial militar no Brasil, puxado por gastos necessários para o reaparelhamento das Forças Armadas, atualmente em grau acentuado de sucateamento, pode ser um dos eixos dessa política.

Se o governo Bolsonaro não trilhar esse caminho e insistir apenas na agenda privatização-reforma da Previdência, então a economia continuará trilhando trajetória de baixo crescimento, provavelmente em torno de 2% ao ano. Esse ritmo será insuficiente para gerar empregos na quantidade suficiente para absorver a enorme massa de desempregados, bem como os brasileiros que ingressam todos os anos no mercado de trabalho. A força de trabalho cresce atualmente 1% ao ano, o que significa que, para manter a taxa de desemprego estável ao longo do tempo, é necessário criar, pelo menos, 1 milhão de postos de trabalho por ano. Considerando crescimento da produtividade de 1% ao ano (o que destrói postos de trabalho na velocidade de 1 milhão de empregos por ano) no cenário no qual não ocorre a mudança estrutural descrita, uma taxa de crescimento de 2% ao ano irá criar postos de trabalho apenas na magnitude necessária para manter o desemprego indefinidamente acima de 10 % da força de trabalho.

Dada a pequena duração do seguro-desemprego e a baixa densidade da rede de proteção social, é pouco provável que a permanência da taxa de desemprego em patamares tão elevados por um período tão longo de tempo seja social e politicamente sustentável. Nesse cenário a desordem social poderá aumentar rapidamente. Além disso, o crescimento econômico anêmico irá agudizar a crise fiscal dos Estados, podendo, inclusive, fortalecer movimentos separatistas no Sul, haja vista que, para parte significativa da população desses Estados, a sua crise fiscal resulta do fato de que (sic) “o Sul tem que sustentar os vagabundos do Nordeste com o Bolsa Família”.

O exemplo recente da tentativa de secessão na Catalunha – resultado dos efeitos da crise econômica de 2008-2012 – mostra que o risco de movimento separatista no Brasil não pode ser subestimado. Daqui se segue, portanto, que ou o governo Bolsonaro coloca o Brasil na rota do desenvolvimento econômico – o que implica em mudança estrutural e catching-up com respeito aos países ricos – ou o clima de insatisfação social reinante culmine numa crescente desordem, podendo levar, no limite, à guerra civil.

José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq

 

A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício

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Modelo de desenvolvimento conduz a sacrifício da vida e destruição da natureza, escreve autor

Márcio Seligmann-Silva – Folha de São Paulo – Ilustríssima 17 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Antigo meio para garantir a sobrevivência da humanidade, a técnica, argumenta o autor, acoplou-se a um modelo de desenvolvimento que passou a ter por fim o sacrifício da vida e a destruição da natureza.

De certo modo, a história da técnica se confunde com a história da humanidade. Tornamo-nos humanos na medida em que nos separamos da natureza: ao menos esse é o nosso mito originário “ocidental”. Prometeu presenteou a humanidade com o fogo, ou seja, com o saber técnico, e foi castigado por isso. Zeus não o perdoou por tornar os humanos inteligentes como os deuses.

Já em outro veio poderoso dessa tradição, no Antigo Testamento, quando, no Gênesis, Deus nos expulsou do Paraíso, condenou-nos ao trabalho duro e a suar para podermos garantir o nosso sustento. Segundo o relato, Ele nos deu vestes, os primeiros produtos de uma técnica ainda divina. O homem trabalhador é o homem que vai depender cada vez mais de técnicas.

Por outro lado, é notório que desde o início do século 19, com a Revolução Industrial, a técnica sofreu uma abrupta mudança em sua natureza. De meio de garantir a sobrevivência humana na face da Terra, ela foi acoplada a um projeto capitalista que em pouco tempo —200 anos diante dos mais de 5 bilhões de anos da Terra e de dezenas de milênios de existência do que podemos chamar de humanidade— transformou o planeta a tal ponto que ele não só está irreconhecível, como à beira de um colapso.

Desde seu nascimento, essa técnica moderna dividiu as opiniões entre entusiastas e críticos. Dentre estes últimos, havia tanto uma corrente conservadora como uma de tendência transformadora, que percebia na técnica capitalista apenas uma perversão dos verdadeiros e revolucionários potenciais da técnica.

Na primeira categoria, Goethe, em 1825, ou seja, de dentro de uma Alemanha ainda fragmentada em pequenos Estados e predominantemente agrícola, queixava-se em carta a seu amigo Zelter: “Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor, e todas as possíveis facilidades de comunicação são as coisas que o mundo culto deseja a fim de se sofisticar e assim permanecer na mediocridade”. Incrível a atualidade dessas palavras, de quase 200 atrás.

No final de sua obra máxima, o “Fausto”, Goethe imagina justamente esse moderno homem empreendedor, desapropriando e atropelando os mais frágeis economicamente para abrir terreno para a agricultura, conquistando terras à água por meio de um dique. Ele não deixa, porém, de destacar o tema da arrogância dessa empreitada e do seu risco: “Cá dentro é um paraíso a terra nossa;/ Que suba lá fora a maré furiosa/ E se, violenta, tentar abrir brecha,/ Em comum esforço acorre o povo e a fecha”.

O capitalismo e sua técnica já eram vistos pelo velho Goethe, portanto, como ambíguos portadores de belas invenções e de altos riscos. Represas estavam na origem da riqueza e do terror. Também aqui encontramos uma macabra contemporaneidade. Diques e represas são marcos decisivos na história da técnica, símbolos da domesticação da natureza e de sua força.

Pouco mais de um século depois, Walter Benjamin, que admirava e citava essas passagens de Goethe mencionadas aqui, lapidou a máxima nas suas famosas teses “Sobre o Conceito da História”, de 1939: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”.

Não há, portanto, nenhum motivo para que nos surpreendamos diante das catástrofes tecnológicas: elas fazem parte do programa e, devido à rápida velocidade do avanço da técnica predatória, devem ser cada vez mais aniquiladoras e frequentes. A menos, é claro, que a humanidade —ou aqueles que decidem por ela— desperte para a necessidade de puxar um freio nesse percurso em direção ao abismo.

Para Benjamin, essa técnica moderna, que denominou de “primeira técnica”, tem como fim o sacrifício da vida, a destruição, o controle e a dominação da natureza que leva à sua asfixia. A vanguarda dessa técnica, não por acaso, é a indústria armamentista. Ela leva a uma política da morte, tanatopolítica, à nossa autoaniquilação. Nas palavras de Benjamin: “Para que falar de progresso a um mundo que afunda na rigidez cadavérica? (…) Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catástrofe”.

Nessa mencionada linhagem de crítica positiva, ele sonhou com uma “segunda técnica”, emancipadora, calcada em um jogo com a natureza e que nos libertaria das penas do trabalho. Em sua visão, a fotografia e o cinema seriam os exemplos principais: duas técnicas que alargam o nosso campo de ação, nos empoderam, ao invés de destruírem as naturezas interna (tornando o homem alienado) e externa (acabando com a nossa “casa”): “A técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre natureza e humanidade”.

Benjamin criticou o conceito utilitarista da social-democracia de um Josef Dietzgen, que via no trabalho apenas um meio de conquista e submissão da natureza: “Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo”.

Ou seja, essa concepção capitalista (e mesmo a social-democrata) do trabalho associa-se à “primeira técnica” e tem a sua figura máxima no fascismo. Esse raciocínio de Benjamin também se revela acurado e profético. Como anotou em 1948 Robert Antelme, que lutou na resistência à ocupação nazista na França: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”.

Aparentemente, a marcha incontornável da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalistas puros, nos de capitalismo de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavelmente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica e dos gadgets.

Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamente racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticados”. Benjamin, novamente, criticando o modelo de progresso incorporado inclusive pelo marxismo, anotou: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o freio de emergência da humanidade que viaja neste trem”. Se não soubermos responder ao Kairós, ao tempo oportuno, para ceder a esse reflexo de puxar o freio, poderá ser tarde demais.

A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamente manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalismo se alimenta da Terra, mas desconsidera que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.

O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (1903-1993) à construção de uma nova ética da responsabilidade à altura desses desafios contemporâneos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.

Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabeleceu o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casa-Terra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilidade de vida futura.

Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucionária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra”, ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivência. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecendo que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.

Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” —a saber, uma pedagogia da humanidade que se transformaria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo— soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecendo que suas ideias influenciaram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.

Observando a sequência de crimes socioambientais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofes, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pela razão instrumental e sua promessa (distópica) de transformar a natureza em mercadoria.

A questão é: quem vai estar aqui para consumir quando apenas 50 bilionários tiverem a mesma riqueza que 6 bilhões de habitantes da Terra e, pior, quando a Terra estiver chapinhando no cafarnaum a que nos leva esse modelo de progresso?

Diretora da Oxfam Internacional, Winnie Byanyima tem repetido que os 26 bilionários mais ricos do mundo possuem o mesmo que os 3,8 bilhões de habitantes mais pobres dessa bola azul. A entropia ecológica e a social caminham de mãos dadas e devem ser combatidas juntas.

Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramos em termos dessa submissão a um determinado modelo liberal associado a uma técnica espoliadora e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).

Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotência pode justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalações dos funcionários da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica.

O cerne do capitalismo é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassar 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinhos e indígenas pataxó que dependiam diretamente do rio Paraopeba para a sua sobrevivência. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradoras e de hidroelétricas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.

O caso dos índios juruna da Volta Grande do Xingu é paradigmático: essa população que vivia (apesar das pressões do agronegócio e da proximidade da rodovia Transamazônica) em harmonia com o seu meio e de modo feliz viu o seu rio —fonte de sua vida, água, alimentos, transporte, rituais, lazer etc.— baixar a um nível que a transformou, da noite para o dia, em uma população empobrecida e dependente de ajuda.

Detalhe: a queda do nível do rio foi decorrência da instalação e do funcionamento, desde 2015, a poucos quilômetros de sua aldeia, da hidrelétrica de Belo Monte, a terceira maior do mundo.

Esse fato possibilitou que uma mineradora canadense, a gigante Belo Sun, tente agora implementar na mesma região o que será a maior mineração de ouro a céu aberto do Brasil, com direito a uma barragem de rejeito ao lado do rio Xingu. Sintomaticamente, uma grande operação técnica abre caminho para outra.

O ISA (Instituto Socioambiental) tem alertado em muitas ocasiões que, das 63 espécies endêmicas de peixes conhecidas da bacia do rio Xingu, 26 podem ser encontradas apenas na Volta Grande. Com apenas 20% da vazão, elas e uma riqueza de animais e plantas incalculável estão sob risco, para não dizer condenadas à extinção.

O atual modelo de política deste governo, aplicado aos indígenas, implica uma continuidade da ideologia colonial que via no Brasil e na sua população autóctone mera fonte de obtenção de riqueza: a terra é reduzida à categoria de commodity e os habitantes são reduzidos a trabalho escravo ou mal remunerado e (eventualmente) a consumidores de produtos baratos.

A negação da diferença, a anulação do “outro”, a ideia de que “o índio quer vir para a cidade, quer trabalhar e ter seu carro” significam uma continuação do genocídio indígena.

Durante a ditadura militar (1964-1985), esse mesmo tipo de ideologia era propagada. A partir da Doutrina de Segurança Nacional, baseada na ideia de integridade do território e do povo e de proteção contra as ameaças e agressões —base que, portanto, influencia bastante o governo hoje—, a população indígena era vista como “estrangeira” que deveria ou ser forçada a abandonar a sua cultura (produzindo o etnicídio) ou ser exterminada (perpetrando o genocídio).

A princípio, concebia-se a região amazônica como deserta de pessoas, ou seja, negava-se a existência de uma pungente e riquíssima cultura plural, milenar e exemplar. O Estatuto do Índio (lei nº 6.001/1973) permitiu a exploração de madeira em terras indígenas bem como a remoção de suas populações para liberar áreas para a mineração ou outras obras públicas.

Vários e abalizados estudos mostram que as terras indígenas são as mais capazes de preservar a natureza. Essa preservação vai no sentido oposto ao da entropia a que leva nosso atual modelo econômico-tecnológico. Os indígenas são, como mostrou recentemente a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em um artigo na revista piauí (“Povos da megadiversidade”), portadores da diversidade que está no cerne do seu mundo.

No Brasil existem 305 etnias que falam ao todo 274 línguas —que país no mundo possui riqueza cultural igual? São responsáveis pelas “terras pretas”, locais de fantástica fertilidade, herança de milênios de práticas técnicas indígenas, e pela agrodiversidade, sem a qual não pode haver segurança alimentar, deixando a humanidade à mercê de pragas e da fome.

Cito a antropóloga: “No Alto Rio Negro há mais de cem variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimento”. Já o agronegócio com suas monoculturas, como se sabe, via “primeira técnica”, tende a reduzir a biodiversidade a um mínimo.

Voltando ao modelo da “segunda técnica”, podemos dizer que também as técnicas indígenas são lúdicas e visam não uma dominação da natureza, mas um jogar com ela. Na cosmovisão indígena não existe esse traçado entre natureza e cultura, mas, antes, uma série de transformações e mutações que conectam deuses, humanos, animais, vegetais e minerais. Não há espaço em seu panteão para um deus Prometeu da técnica na forma de profeta do deus capital.

A artista mineira Lais Myrrha transmitiu essa ideia de modo muito delicado e preciso em seu trabalho “Dois Pesos e Duas Medidas”, que ocupava o vão central da Bienal de São Paulo de 2016. Essa obra consiste em dois enormes pilares em forma de totens: um construído com material presente nas construções indígenas (barro, palha, cipó, madeira) e outro com técnica “ocidental” de alvenaria (tijolo, cimento, ferragens, PVC, vidro).

O título é importantíssimo, como costuma acontecer em obras conceituais: por que desprezamos a tecnologia indígena, que dura já milênios e nunca destruiu de modo irreversível um centímetro da Terra, e, por outro lado, veneramos a nossa técnica prometeica ocidental, que em 200 anos praticamente asfixiou a Terra, mudou seu clima e instaurou uma nova era geológica, o Antropoceno?

Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa natureza ferida.

Como escreve Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo”. A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.

Afinal, o ser humano é, antes de mais nada, capaz de responder pelos seus atos. Se somos essencialmente seres capazes de assumir responsabilidade, aparentemente uma parte de nossa humanidade está sendo negada quando crimes socioambientais —ou seja, contra a população e a natureza— como esses ocorridos no Brasil são assimilados sem que ninguém seja responsabilizado.

Temos que reestabelecer a lei da multiplicidade que até hoje garantiu a reprodução da vida sobre a Terra. Os perigos da (primeira) técnica não podem ser ocultados sob a luz brilhante do fascínio por suas conquistas.

Entenda-se: não se trata de uma cruzada obscurantista contra a técnica, muito menos contra as ciências, muito pelo contrário. A própria ciência de ponta aporta os dados incontornáveis quanto à necessidade de mudarmos de rumo. Temos poder demais, não de menos —e, por outro lado, também temos a liberdade de escolher um novo rumo. Ou pelo menos: temos a liberdade de poder lutar por essa liberdade.

A responsabilidade não poderia existir sem o “a priori” da liberdade. O poder tecnológico pode ser transformado em potência que nos permitirá frear nossa “locomotiva”, evitando outras Bhopal, Chernobyl, Fukushima, Samarco, Vale, o césio 137 em Goiânia, o derrame de óleo do Exxon Valdez, o aquecimento global etc.

No entanto, a dificuldade da ética do futuro, proposta por Hans Jonas, é que a compaixão se dá com relação aos que estão próximos. O filósofo afirma: “A caridade começa em casa”. Exigir compaixão para com os pósteros demanda um nível de abstração e de altruísmo raros. Daí ser mais efetiva uma heurística do medo voltada para os perigos do presente e que inscreva a história das nossas catástrofes, em oposição a uma falsa história triunfal autocomplacente.

Um amigo e contemporâneo de Hans Jonas, Günther Anders (o primeiro marido de Hannah Arendt e primo de Walter Benjamin), pensou de modo claro essa necessidade de termos diante dos olhos as catástrofes do passado e do presente, como meio de uma educação moral da humanidade.

Ele afirmava que é necessário, seguindo-se um imperativo da memória, dar-se uma “nota de eternidade” a cada choque. Anders tinha consciência de que vivemos em um estado de emergência no que tange a nosso (des)equilíbrio ecológico, que exige atitudes firmes.

Concluo citando as generosas palavras que compõem o último trecho do poderoso relato que Davi Kopenawa fez ao antropólogo Bruce Albert, publicado no livro que precisamente leva o título de “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami”: “Os xapiri [espíritos] se esforçam para defender os brancos tanto quanto a nós. Se o sol escurecer e a terra ficar toda alagada, eles não vão poder mais ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco, se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo! No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparados. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar”.

Ao invés da autoimagem arrogante do “homo faber” prometeico e poderoso, que levou a um modelo de desenvolvimento que privilegia a poucos e destrói o chão em que vivemos, essa figura de nossa fragilidade me parece muito mais empoderadora para enfrentarmos os enormes desafios que temos diante de nós.

Ela poderá estar na base de um “princípio de moderação” que seria capaz de nos garantir uma maior sobrevivência sobre esta esfera azul e, sobretudo, um “viver em comum” mais ético.

Márcio Seligmann-Silva é professor titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

 

‘Aposentadoria como conhecemos hoje vai desaparecer’, diz economista

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Para Hélio Zylberstajn, com menos vínculos de emprego, Previdência do futuro vai depender de renda básica universal e poupança individual

Ana Estela de Sousa Pinto Folha de São Paulo – 21 de janeiro de 2019

Os vínculos de emprego são cada vez mais raros e, no futuro, a aposentadoria como conhecemos vai acabar, afirma o professor da USP e pesquisador da Fipe Hélio Zylberstajn.

Para substituir um sistema hoje dependente de contribuições sobre a folha de salário, ele defende uma aposentadoria de três pernas: renda universal para idosos, Previdência no modelo atual e sistema de capitalização (no qual quem ganha acima de um teto tem uma conta individual).

A proposta da Fipe, coordenada por Zylberstajn, é apoiada por entidades do mercado de planos de previdência —Fenaprevi, Abrapp, CNseg e ICSS. “É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.”

No modelo sugerido, o setor privado administraria  as contas individuais. Para impedir que má gestão pulverize a poupança do trabalhador, planos que não entreguem bom rendimento seriam dissolvidos, e as contas seriam transferidas para os mais rentáveis.

“É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança”, afirma ele.

O economista afirma que o ideal seria votar primeiro a reforma do setor público. “Assim ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem seus privilégios.” Mas também vê riscos na estratégia de fatiamento da reforma.

Para os críticos, uma reforma mais radical da Previdência, estrutural, pode atrasar mais mudanças urgentes. Vale a pena correr esse risco?

A reforma estrutural é para o futuro, não teria por que atrasar. Mas, se atrasar mais três, seis meses e chegar a uma solução definitiva, vale a pena. E, se mudar tudo junto, quem está há pouco tempo no sistema atual já migra para o novo, o que traz ganhos mais imediatos.

Outra crítica é que a capitalização tem mais risco. Exemplos citados são o do Chile e os de Argentina e Hungria, que recuaram.

Nesses países, eles transformaram totalmente o sistema de repartição em capitalização. Nossa proposta dilui os riscos, porque tem três pilares. Renda básica, de risco zero, e sistema de repartição —pequeno e sustentável— repõem a renda de 75% dos trabalhadores. A capitalização tem o risco de mercado, mas também a possibilidade de ganhar valor.

Uma questão importante é o financiamento da transição. Nosso projeto não afeta as contas públicas. A arrecadação do INSS é preservada. A parte de capitalização recebe dinheiro que hoje vai para o Fundo de Garantia [FGTS]. Outras propostas sugerem capitalização só escritural. Uma parte da arrecadação do INSS é remunerada, mas continua no Estado. Nós propomos investir no mercado, e gerar investimento e crescimento.

O fato de ter o apoio de entidades desse mercado não abre um flanco para críticas de que serve aos interesses desses agentes?

Neste país, sempre que há um setor empresarial querendo propor uma política aparece o temor da identificação. As entidades que apoiam o projeto da Fipe concordaram em aparecer como financiadoras. É o contrário do que se critica: é transparência. É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.

Seriam poucos tipos de plano, parecidos, e quem oferecer mais rentabilidade a menor custo ganha a competição. Estamos propondo um mercado competitivo, e o Brasil tem escala para criá-lo de forma transparente e regulada.

Como impedir que má gestão acabe com a previdência do trabalhador?

O mercado terá que criar regras. Por exemplo, um rendimento menor que uma faixa em torno da média levaria à dissolução do plano e as contas seriam transferidas para outro plano mais rentável. É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança.

Tanto a Fipe quanto a equipe de Paulo Tafner propõem uma renda mínima para o idoso, mas na sua proposta o valor é mais baixo, pouco mais da metade do salário mínimo. Não é pouco para quem não conseguir entrar no mercado de trabalho formal?

É um incentivo para que as pessoas procurem entrar no mercado de trabalho. Alguém que ficou 20 anos registrado vai ter a renda mínima mais metade do salário de contribuição. Se ela ganhava o salário mínimo, a aposentadoria será 75% do salário mínimo. Ela não parte do zero, e ao mesmo tempo você está dizendo “esforce-se para conseguir”.

Mas não falamos em salário mínimo, e sim em reais. O salário mínimo desaparece como moeda na Previdência.

Um sistema de Previdência está ligado ao mercado de trabalho formal. Mas caminhamos para um mundo com menos vínculos.

É verdade, todas essas políticas estão sedimentadas no vínculo de emprego, e ele está desaparecendo. Será preciso repensar toda a regulamentação, todo o direito do trabalho.

Daqui a 30 ou 40 anos, a aposentadoria como conhecemos vai desaparecer ou se reduzir muito, porque ninguém vai ter emprego. Mas todo mundo precisará ter poupança. Provavelmente a aposentadoria do futuro vai ser a renda universal e a capitalização, e nossa proposta já encaminha para isso.

A proposta da Fipe menciona um pilar de poupança voluntária, mas estudos mostram que os brasileiros têm pouca propensão à poupança.

Em parte isso acontece por causa do nosso modelo atual, de repartição. Por que vou poupar se o Estado vai cuidar da minha aposentadoria? Para incentivar o investimento, é preciso reduzir a parte de repartição.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o trabalhador tem um plano fechado, da empresa em que trabalha e faz uma aposentadoria privada. A aposentadoria de Previdência é deste tamanhinho.

É uma concepção diferente de papel do Estado, não é?

As propostas que criam pilar de capitalização vão nesse sentido também, de transferir responsabilidade para o indivíduo. Pelo que vem sendo divulgado, eles vão propor uma perna de mercado, mas ela não vai ser dominante.

Temer errou na comunicação. Prevaleceu o discurso de que iriam “matar os velhinhos”. Como evitar esse revés?

A estratégia pode ser ainda mais importante que a comunicação. Quando junta tudo, grupos que não querem ter seus privilégios atingidos atacam o projeto dizendo que ele prejudica os pobres. Bagunça tudo.

Defende fatiar a reforma? Sim e não. Se fosse possível, o ideal seria votar primeiro a nova Previdência, que é só para o futuro, mais fácil de explicar e de passar. Depois, a parte dos funcionários públicos. Só eles. Porque aí ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem tanto seus privilégios. Por que se aposentam com salário integral? Reajuste igual ao da ativa?

O terceiro passo seria o INSS, e mostrar que o pobre já se aposenta por idade mínima, de 65 anos. Nada mais justo que 65 para todo mundo.

O ideal seria fatiar nessa ordem. Mas qual é o governo que conseguiria ganhar três batalhas de PEC [proposta de emenda constitucional, que precisa ser aprovada por dois terços dos parlamentares] num mesmo ano?

O trade-off é este:  enviar tudo junto, com alto risco de ter que ceder em pontos importantes, ou algo mais seguro, mas mais difícil de passar.

Sua proposta retira parte da Previdência da Constituição. Não é uma faca de dois gumes? Não facilita mudanças que agravam as contas públicas?

É um dilema que temos enfrentado desde 1988. A ideia de vincular tudo, para que ninguém mexa. Prefiro tratar tudo em legislação complementar ou ordinária, porque essa é a função do Congresso. Quer mudar? Faz um grande debate e vota. Qual o sentido de congelar tudo na Constituição e depois não conseguir mexer?

Raio-X
Hélio Zylberstajn, 73, é professor da Faculdade de Economia da USP, especialista em mercado de trabalho, pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e coordenador de uma proposta de reforma da Previdência enviada ao governo Bolsonaro

 

Os africanos devem se livrar do desejo da Europa

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“De todos os grandes desafios que a África enfrenta nesse início de século, nenhum é tão urgente e tão cheio de consequências quanto a mobilidade de sua população. Em grande medida, o seu futuro imediato dependerá da sua capacidade de garantir que as pessoas possam se deslocar pelo continente tão frequentemente quanto possível, o mais longe possível, o mais rápido possível e, de preferência, sem nenhum entrave”. A reflexão é de Achille Mbembe, em artigo publicado por Le Monde, 10-02-2019. A tradução é de André Langer.

E faz um alerta: “Mas para que os africanos não sejam transformados em fragmentos de um planeta dotado de torres de vigilância, a Africa deve tornar-se seu próprio centro, sua própria potência, um vasto espaço de circulação, um continente-mundo. Deve completar o projeto de descolonização forjando para si uma nova política africana de mobilidade”.

Achille Mbembe é, juntamente com Felwine Sarr, co-autor de Écrire l’Afrique-Monde (Paris, Philippe Rey, 2017) e co-iniciador dos Ateliers de la Pensée de Dakar.

Achille Mbembe é autor do livro A Crítica da razão negra, São Paulo: n-1 edições, 2018.

Eis o artigo.

De todos os grandes desafios que a Africa enfrenta nesse início de século, nenhum é tão urgente e tão cheio de consequências quanto a mobilidade de sua população. Em grande medida, o seu futuro imediato dependerá da sua capacidade de garantir que as pessoas possam se deslocar pelo continente tão frequentemente quanto possível, o mais longe possível, o mais rápido possível e, de preferência, sem nenhum entrave. Além disso, tudo aí se desenvolve: tanto o crescimento da população, a intensificação da depredação econômica, quanto as dinâmicas da mudança climática.

Além disso, as grandes lutas sociais na África neste século se concentrarão tanto na transformação dos sistemas políticos, na extração dos recursos naturais e na distribuição da riqueza quanto no direito à mobilidade. Não há nada na criação digital que não se articulará aos processos de circulação. A revolução da mobilidade provocará profundas tensões e terá um peso nos equilíbrios futuros do continente, bem como sobre os de outras regiões do mundo, como já atestou a chamada crise migratória. E nós somos convidados a refletir sobre essas mudanças.

Para entender as implicações, ainda temos que dar as costas aos discursos neomaltusianos, muitas vezes alimentados com fantasmagorias racistas e que continuam a se espalhar.

 

Violência nas fronteiras

 

A “corrida para a Europa” é, a este respeito, um grande mito. O fato de que um habitante do planeta em quatro seja africano não representa nenhum perigo para ninguém. Afinal, atualmente, dos 420 milhões de habitantes da Europa Ocidental, apenas 1% é composto por africanos subsaarianos. Dos quase 1,3 bilhão de africanos, apenas 29,3 milhões vivem no exterior. Destes 29,3 milhões, 70% não tomaram o caminho da Europa ou de qualquer outra região do mundo. Eles se estabeleceram em outros países da África.

Na realidade, além de ser relativamente pouco povoada em vista de seus 30 milhões de quilômetros quadrados, a África emigra pouco. Em comparação com outros conjuntos continentais, a circulação de bens e de pessoas sofre muitos obstáculos, e é para desmantelar esses obstáculos que os tempos clamam.

Entretanto, é verdade que o custo humano das políticas europeias de controle das fronteiras continua a crescer, acentuando de passagem os riscos em que incorrem os eventuais migrantes. São incontáveis os migrantes que morrem durante a travessia. Cada semana traz a sua cota de histórias, umas mais escabrosas que as outras. Trata-se muitas vezes de histórias de homens, de mulheres e de crianças afogados, desidratados, intoxicados ou asfixiados nas costas do Mediterrâneo, do Mar Egeu, do Atlântico ou, cada vez mais, no deserto do Saara.

A violência nas fronteiras e pelas fronteiras tornou-se uma das características marcantes da situação contemporânea. Pouco a pouco, a luta contra as chamadas migrações ilegais assume a forma de uma guerra social agora travada em escala planetária. Dirigida mais contra as classes de populações do que contra indivíduos em particular, ela combina agora técnicas militares, policiais e de segurança e técnicas burocrático-administrativas, liberando fluxos de uma violência fria e, de vez em quando, não menos sangrenta.

Basta observar, a esse respeito, o vasto mecanismo administrativo que permite a cada ano mergulhar na ilegalidade milhares de pessoas legalmente estabelecidas, a cadeia de expulsões e deportações em condições realmente de tirar o fôlego, a abolição gradual do direito de asilo e a criminalização da hospitalidade.

O que dizer, além disso, da implantação de tecnologias coloniais para a regulação dos movimentos migratórios na era eletrônica, com seu cortejo de violências cotidiana, a exemplo dos intermináveis controles faciais, das incessantes caçadas de migrantes indocumentados, das muitas humilhações nos centros de detenção, dos olhos desfigurados e dos corpos algemados de jovens negros que são arrastados pelos corredores das delegacias de polícia, de onde saem com um olho roxo, com um dente quebrado, com uma mandíbula quebrada, o rosto desfigurado, a multidão de migrantes aos quais arrancam as últimas roupas e os últimos cobertores em pleno inverno, que são impedidos de se sentar nos bancos públicos, na aproximação dos quais fechamos as torneiras de água potável?

 

Novos êxodos

 

No entanto, o século não será apenas o dos obstáculos à mobilidade, tendo como pano de fundo a crise ecológica e a aceleração das velocidades. Também será caracterizado por uma reconfiguração planetária do espaço, da aceleração constante do tempo e uma profunda divisão demográfica.

Com efeito, em 2050, dois continentes reunirão quase dois terços da humanidade. A África subsaariana terá 2,2 bilhões de habitantes, ou seja, 22% da população mundial. A partir de 2060, estará entre as regiões mais populosas do mundo. A mudança demográfica da humanidade em prol do mundo afro-asiático será um fato consumado. O planeta se dividirá em um mundo de pessoas idosas (EuropaEstados UnidosJapão e partes da América Latina) e um mundo emergente, que abrigará as populações mais jovens e numerosas do planeta. O declínio demográfico da Europa e da América do Norte continuará inexoravelmente. As migrações não vão parar. Pelo contrário, a Terra está às vésperas de novos êxodos.

O envelhecimento acelerado das nações ricas do mundo é um evento de grande alcance. Será o reverso dos grandes choques causados pelos excedentes demográficos do século XIX, que levou à colonização europeia de partes inteiras da Terra. Mais do que no passado, o governo da mobilidade humana será o meio pelo qual uma nova repartição do globo será colocada em prática.

Uma linha de fratura de um novo tipo e de alcance planetário desempatará a humanidade. Ela oporá aqueles que gozarão do direito incondicional de circulação e de seu corolário, o direito à velocidade, e aqueles que, tipificados essencialmente pela raça, serão excluídos do desfrute desses privilégios. Aqueles que assumirão os meios de produção da velocidade e das tecnologias da circulação se tornarão os novos mestres do mundo. Somente esses poderão decidir quem pode circular, quem deve ser condenado à imobilidade e quem deve se deslocar apenas em condições cada vez mais draconianas.

 

Um enorme Bantustão

 

Se, nesta nova ordem global da mobilidade, a África não se encarregar do reordenamento de sua economia espacial, ela será duplamente penalizada, de dentro e de fora. Porque a Europa decidiu não apenas militarizar suas fronteiras, mas ampliá-las por toda parte. Estas não se limitam mais ao Mediterrâneo. Elas agora se situam ao longo das rotas em fuga e dos percursos sinuosos que os candidatos à migração tomam. Elas se movem conforme as trajetórias que eles seguem. Na realidade, é o corpo do africano, de cada indivíduo africano tomado individualmente, e de todos os africanos como uma classe racial, que constitui agora a fronteira da Europa.

Esse novo tipo de corpo humano não é apenas a pele do corpo e o corpo abjeto do racismo epidérmico, mas o da segregação. É também o corpo-prisão dobrado do corpo-fronteira, aquele cuja mera aparição no campo fenomenal desperta, desde o início, desconfiança, hostilidade e agressão. O imaginário georacial e geocarcerário que tinha sido aperfeiçoado, não muito tempo atrás, pela África do Sul da época do apartheid não para de se universalizar.

Mais ainda, a Europa quer se arrogar o direito de determinar unilateralmente qual africano poderá se mover e sob quais condições, inclusive dentro do próprio continente. Depois de tê-la desmembrado em 1884-1885, ela busca, no início do século XXI, transformá-la em um imenso Bantustão e acentuar sua inclusão diferencial nos circuitos da guerra e do capital, ao mesmo tempo em que intensifica sua depredação. A política europeia de luta contra a imigração visa, portanto, o advento de um novo regime de segregação global. Isto é, em muitos aspectos, o equivalente da “política racial” de ontem. A África é seu principal alvo.

governo das mobilidades em escala global constitui, como a crise ecológica, um dos maiores desafios do século XXI. A reativação das fronteiras é uma das respostas de curto prazo ao processo de longo prazo de repovoamento do planeta. As fronteiras, no entanto, não resolvem estritamente nada. Elas apenas agravam as contradições resultantes da contração do planeta.

De fato, nosso mundo tornou-se muito pequeno. Nisso, distingue-se do mundo do período das “grandes descobertas”, do mundo colonial das explorações, das conquistas e dos assentamentos. Ele não é mais extensível ao infinito. É um mundo finito, atravessado por todos os tipos de fluxos descontrolados e até mesmo incontroláveis, dos movimentos migratórios, dos movimentos de capital ligados à financeirização extrema das nossas economias e às forças extrativas que dominam a maior parte delas, especialmente no Sul. A tudo isso se deve acrescentar os fluxos imateriais conduzidos pelo advento da razão eletrônica e digital, a aceleração das velocidades e a transformação dos regimes do tempo.

 

Desbalcanizar o continente

 

Como, nesse contexto, pensar a África que vem? Se, fugindo de seus países de origem, muitos africanos correm para lugares onde ninguém os espera ou quer, este é o caso de cidadãos de outras regiões do mundo que, por mais curioso que possa parecer, esperam reconstruir suas vidas na África. Como quem não quer nada com nada, o continente também está prestes a se tornar o centro de gravidade de um novo ciclo de migrações globais. Os chineses se estabeleceram no coração de suas principais cidades e até mesmo em suas aldeias mais remotas, enquanto colônias comerciais africanas se estabelecem em várias megacidades da Ásia.

Dubai, Hong Kong, Istambul, Guangdong e Xangai substituem os principais destinos euro-americanos. Dezenas de milhares de estudantes estão indo para a China, ao passo que Brasil, Índia, Turquia e outras potências emergentes estão batendo à porta. Uma extraordinária vernacularização das formas e estilos está em curso, e está transformando as grandes cidades africanas em capitais mundiais de uma imaginação ao mesmo tempo barroca, crioula e mestiça.

Mas para que os africanos não sejam transformados em fragmentos de um planeta dotado de torres de vigilância, a África deve tornar-se seu próprio centro, sua própria potência, um vasto espaço de circulação, um continente-mundo. Deve completar o projeto de descolonização forjando para si uma nova política africana de mobilidade.

Este não vai acontecer sem uma descolonização cultural. Os africanos devem se livrar do desejo da Europa e aprender a guardar entre si o melhor de si mesmos e da sua gente. O desejo da Europa não pode ser nem seu horizonte existencial nem a última palavra de sua condição.

Depois, a descolonização territorial. Nada, historicamente, justifica o corte do continente entre o norte e o sul do deserto do Saara. Além disso, nenhum africano ou pessoa de origem africana pode ser tratado como um estrangeiro em qualquer parte do continente africano. Desbalcanizar o continente aparece, portanto, cada vez mais, como uma das condições para proteger vidas africanas atormentadas em todo o mundo.

Para conseguir isso, é urgente repensar de alto a baixo o princípio da glaciação das fronteiras coloniais adotado pela Organização da Unidade Africana (OUA, ancestral da União Africana) em 1963. Ao consagrar sua intangibilidade, as fronteiras herdadas da colonização foram transformadas na pedra jurídica explorada pela Europa para acelerar a “bantustanização” do continente.

 

Barreiras a serem removidas

 

A descolonização dificilmente será concluída antes de todos os africanos terem o direito de circular livremente pelo continente. Um primeiro passo nessa direção seria generalizar a concessão de vistos na chegada a todo viajante portador de um passaporte africano. A longo prazo, a liberalização do direito de residência deve complementar o direito de livre circulação das pessoas.

O maior desafio que a África enfrenta não é demográfico. Não é, como na época colonial, fixar as fronteiras, restringir a passagem, forçar as populações a permanecerem imóveis e sedentárias e intensificar os laços locais. É para organizar a circulação e permitir uma intensificação da mobilidade no interior do continente.

É intensificando as mobilidades e desenvolvendo as interconexões entre os lugares que serão desmantelados os antigos esquemas espaciais e infraestruturais que remontam à época da colonização. Hoje, não se trata mais de construir a soberania estatal com base em uma clara diferença entre o interior e o exterior. Trata-se de remover os obstáculos à mobilidade abolindo a multiplicidade de postos de fronteira, removendo barreiras físicas e políticas à fluidificação dos fluxos e desburocratizando o movimento. É assim que a África ganhará em velocidade e os africanos poderão se deslocar dentro do seu continente ao menor custo.