Escolhas

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Vivemos momentos de grandes escolhas na sociedade internacional, neste cenário, percebemos abertamente que a comunidade mundial vem passando por grandes transformações em todas as áreas e setores nas últimas décadas, mudanças que estão impactando todas as nações, alterando culturas e modificando o comportamento dos indivíduos, gerando incertezas e instabilidades, além de novas indagações, novos questionamentos, riscos e oportunidades.

Nos últimos trinta anos, percebemos o aumento da concentração de renda na sociedade global, poucos cidadãos possuem grandes recursos monetários e financeiros em detrimento de uma grande quantidade de indivíduos que vivem à margem desta riqueza global, gerando pressões políticas, acumulando ressentimentos, impulsionando rancores e violências que se espalham para toda a comunidade, levando os governos nacionais a aumentarem os investimentos na segurança pública como forma de debelar esses conflitos sociais que crescem de forma acelerada.

Neste período, percebemos as transformações climáticas na sociedade internacional, eventos distantes e espaçados no tempo estão acontecendo mais constantemente, alterações no clima tendem a transformar a produção de alimentos, a produtividade do solo e a reduzir as reservas de água potável, desta forma, os grandes especialistas vislumbram grandes conflitos militares num futuro próximo, com custos econômicos e sociais perversos.

Vivemos momentos de escolhas difíceis e contraditórias para todas as nações e para todos os governos, necessitamos de líderes conscientes deste desafio histórico e capacidade de analisar a sociedade contemporânea, as escolhas são difíceis e exigem maturidade política, consensos econômicos e uma grande capacidade de alavancar apoios políticos e institucionais, rechaçando respostas fáceis para problemas estruturais e contribuindo para a geração de novos instrumentos de esperança, um desafio gigantesco numa sociedade que se compraz com o medo e a desesperança.

A concorrência internacional motivada pelo processo de globalização econômica e o incremento da tecnologia vem exigindo dos governos e da sociedade fortes investimentos em capital humano, fortalecimento das pesquisas científicas e tecnológicas como forma de alavancar a soberania nacional e consolidando vantagens comparativas. No caso brasileiro, percebemos a ausência de um projeto nacional que coloque os investimentos em capital humano no centro das discussões políticas estratégicas, valorizando a escola, o conhecimento, as universidades e os professores, o que percebemos, infelizmente, são confrontos de lobbies organizados e interesses imediatos que atravancam um projeto mais consistente e que visam a perpetuação de uma condição de colonização e de subserviência no cenário global.

Numa sociedade como a brasileira é inadmissível manter taxas de juros escorchantes a mais de trinta anos, impactando fortemente os setores econômicos, os investimentos produtivos e a geração de renda. São escolhas como essa que perpetuam as desigualdades e nos mantem numa condição de indignidade social, limitação econômica e fragilidade moral.

Vivemos momentos de grandes escolhas políticas, estamos nos aproximando de eleições municipais, um momento de escolhermos os nossos representantes e o que queremos nos próximos anos. Neste momento, precisamos analisar as propostas e a viabilidade dos candidatos, sua trajetória, seus apoiadores e a sua capacidade de gestão administrativa e organização social, senão vamos continuar defendendo e perpetuando que “o inferno são os outros”, como disse, o grande escritor francês Jean-Paul Sartre.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Educação mecanizada, por Martinez, Gama & Melo

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Vinício Carrilho Martinez, Lucas Gama & Samuel Cerqueira Melo –

A Terra é Redonda – 11/07/2024

Mesmo a educação atendendo aos requisitos da sua época, ela não pode reduzir-se ao discurso mecanicista do desenvolvimento econômico

“A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto”
(Darcy Ribeiro)

Por ocasião da aprovação da normativa legal sobre o “novo” projeto de ensino médio, na Câmara dos Deputados, construímos uma reflexão partindo-se da frase (sentença realista) de Darcy Ribeiro: “A crise na educação não é uma crise, é projeto”. [i] Ou seja, é um projeto político que torna a educação pública sempre submissa às crises sistêmicas e, praticamente, não consiga se deslocar desse quadro – principalmente se pensarmos numa educação de qualidade, crítica,
laica, emancipatória.

Neste sentido inicial, diremos que há inúmeras formas de se entender a frase do ex-senador Darcy Ribeiro; no entanto, uma abordagem inquestionável nos diz que, no Brasil, o que se faz ou deixa de fazer em educação é, sem sombra de dúvidas, um conjunto de ações (ou inações) que compõe um projeto político. E qual é esse projeto político, dizendo-se cuidar do futuro dos jovens, mas que é incapaz de se livrar do peso do passado que nos limita e embrutece?

Também há uma visão capitalista, reprodutiva, capacitista e desinteressada da sociabilidade – e muitas outras leituras entre um campo e outro, como temos na famosa tese constitucional da “tríplice hélice”. [ii] Em compasso a isto, tem-se uma tentativa de resposta, com base numa tese correta pela metade: essa tese diz que a sociedade está dentro da escola e, logo, a escola não pode mudar muita coisa. Trata-se de uma interpretação que se propõe materialista, mas que é reducionista, mecanicista. Sociologicamente, reproduz o funcionalismo de Émile Durkheim, sem que saibam disso.

Uma simples avaliação binária, maniqueísta, mostraria que há uma possibilidade de engenharia reversa nessa lógica mecanizada. E, assim, a escola poderia ir à sociedade, com a formação crítica dos jovens e não mais “passivos”.

Também é possível entender essa tese a partir de relações orgânicas (como ocorre com o próprio metabolismo “capital x Estado x sociedade”) – e essas relações se mostrariam reveladoras. Ou seja, organicamente, a escola (educação pública) tanto reflete o atraso empoeirado, o rancor do passado, o Fascismo e a luta de classes, quanto é um entreposto empoderado de resistência.

A relação entre sociedade (Estado) e educação é uma via de muitas mãos, não se trata apenas de uma “mão dupla”: há avanços em direção ao Processo Civilizatório e há retrocessos; porém, mesmo nos avanços podem correr distúrbios, bem como nos retrocessos as ações de resistência podem criar enfrentamentos e rupturas.

Então, a educação pública (a escola pública) pode e deve ser pensada como resistência e mudança, e não apenas, sob o reducionismo, como “resistência à mudança”. 2015, em São Paulo, é um dado histórico, concreto e preciso dessa análise orgânica.

Aliás, se a tese mecanizada fosse correta (afinal, uma rodinha puxa a outra), neste exato momento nós estaríamos ensinando coisas estranhas da sociedade brasileira: (i) O que fazer para ser um populista tirânico? (ii) como surrupiar o Estado e “lavar dinheiro”? (iii) o fascismo é top; (iv) o racismo é massa; (v) o futuro depende do macho tóxico; (vi) fique milionário com drogas.

Ou, simplesmente, estaríamos mantendo disciplinas no ensino médio alertando para fatos surpreendentes da realidade, ciosas da capacidade crítica que merecemos ver em quem se propõe ao conhecimento – como é o caso de uma que se chama “O que rola por aí?”. Em especial, essa disciplina fez ou faz parte ativa dos chamados “itinerários formativos” do “Novo ensino médio”. [iii]

Por fim – e não menos importante –, outra conclusão, bem diferente da educação de rodinhas, nos diz que: se a escola pública é militarizada, impregnada de religião, reprodutora dos crimes sociais, é porque isso se deve a um projeto político; se a escola pública – combatendo os crimes sociais – é de qualidade (integral), laica, libertária, é porque se deve a um projeto político.

Se há educação financeira – notadamente para jovens que não tem o que comer, a não ser a merenda –, ao invés de educação sexual, isso é um projeto político. Tanto quanto é um projeto político não abdicar do kit de robótica, mas implementar o ensino da sociologia e da filosofia, com destaque para os clássicos e a formação social brasileira. Por que não ensinar espanhol?

No outro extremo, temos a Inteligência Artificial (IA) do ChatGPT produzindo um texto sobre o “novo” ensino médio que, numa leitura rápida, em tudo se assemelha ao próprio descritivo do dispositivo legal – ou se assemelharia a uma peça publicitária.

Produção da IA do ChatGPT

O Novo Ensino Médio no Brasil é uma reforma educacional implantada com o objetivo de modernizar e flexibilizar a estrutura do ensino para melhor atender às necessidades e interesses dos estudantes. Instituído pela Lei nº 13.415/2017, essa mudança visa promover um ensino mais integrado e dinâmico, preparando os jovens para os desafios do século XXI.

Principais características do Novo Ensino Médio:

(a) Flexibilização do currículo – uma das principais mudanças é a flexibilização do currículo. O novo modelo permite que os estudantes escolham áreas de conhecimento ou formação técnica e profissional de acordo com suas preferências e aspirações futuras. Isso é possível graças à criação dos itinerários formativos, que são conjuntos de disciplinas agrupadas por áreas de interesse, como linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional.

(b) Ampliação da carga horária – A carga horária total do Ensino Médio também foi ampliada. Anteriormente, a carga mínima era de 2.400 horas ao longo dos três anos. Com o Novo Ensino Médio, essa carga passa para 3.000 horas, sendo 1.800 horas destinadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as 1.200 horas restantes distribuídas entre os itinerários formativos escolhidos pelos estudantes.

(c) Integração com o mercado de trabalho – O Novo Ensino Médio também busca aproximar os jovens do mercado de trabalho, oferecendo a possibilidade de formação técnica e profissional durante o período escolar. Isso é feito por meio de parcerias com instituições de ensino técnico e empresas, permitindo que os alunos adquiram competências práticas e específicas que facilitem sua inserção no mundo profissional.

(d) Desenvolvimento de competências e habilidades – A reforma prioriza o desenvolvimento de competências e habilidades essenciais para a vida em sociedade e para o exercício da cidadania.

A BNCC estabelece as competências gerais que todos os estudantes devem desenvolver, tais como o pensamento crítico, a comunicação, a resolução de problemas, a criatividade, o trabalho em equipe e a responsabilidade socioambiental.

(e) Implantação e desafios – a implantação do Novo Ensino Médio é gradual e enfrenta diversos desafios, incluindo a adaptação das escolas, a capacitação dos professores e a adequação dos materiais didáticos. Além disso, é necessário garantir que todas as regiões do país tenham condições de oferecer as diferentes opções de itinerários formativos, o que exige investimentos em infraestrutura e recursos humanos.

Conclusão da IA do ChatGPT

O Novo Ensino Médio no Brasil representa um passo importante na busca por uma educação mais relevante e conectada com as demandas contemporâneas. Ao oferecer maior flexibilidade curricular, ampliar a carga horária e integrar o ensino ao mercado de trabalho, a reforma tem o potencial de proporcionar uma formação mais completa e alinhada com os interesses dos jovens. No entanto, para que seus objetivos sejam plenamente alcançados, é fundamental enfrentar os desafios de implementação e assegurar que todos os estudantes, independentemente de sua localização ou condição socioeconômica, tenham acesso a uma educação de qualidade.

Nossa conclusão

A conclusão geral, inicial, indica o fato de que o “novo” ensino médio – assim como os anteriores – é um projeto político, de sociedade, que se baseia na crise sistêmica, envolto por essa(s) crise(s) sem se pautar pelo interesse de sua mínima resolução. A negação da cidadania, da formação crítica, participativa, propositiva, não se desfez – ao contrário, em certo sentido, agravou-se, se pensarmos que o Kit de robótica é um placebo de modernidade, sobretudo, quando refletirmos na profundidade que uma disciplina, um conjunto de disciplinas (vocacionadas ao século XXI), traria sob a forma, por exemplo, de uma Educação digital/ambiental. Afinal, essas sim são as questões sérias que “rolam por aí”.

Neste contexto, compreende-se que mesmo a educação atendendo aos requisitos da sua época, ela não pode reduzir-se ao discurso mecanicista do desenvolvimento econômico. Isso significa que a educação critica precisa ser enfrentada como um dos pilares fundadores desse ecossistema – ampliando-se a dimensão social, cultural e política dos participantes, engendrando-se possibilidades de modificar a si mesmo e o mundo que se constitui a sua volta.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns Aspectos Político-Jurídico e Psicossociais (APGIQ).
*Lucas Gama é doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da UFSCar.
*Samuel Cerqueira Melo é mestrando em Ciência, Tecnologia e Sociedade na UFSCar.

Referência
DURKHEIM, Émile. A educação como processo socializador: função homogeneizadora e função diferenciadora. In: Foracchi, Marialice M. (org). Educação e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.

O militar e a fé religiosa, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 07/07/2024

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas?
Um vídeo circulou essa semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre à margem do calendário da Igreja Católica.

A postagem maldosa inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe esperar aberrações sem limites.

Até a recente invasão da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de sangue: “Coisas admiráveis são vistas… Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres… No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes… Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”.

Sabemos dos estragos do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem potencial nefasto.

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel.

A entidade que justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente, Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade: remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade.

O combatente contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e estimulam processos sociais.

A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios pode ser compreendido como desconexo.

As distinções arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

Se o Estado laico não pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo.

É hora de rever a chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à diversidade religiosa.

Quanto à pessoa que apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

A uberização e a crise da previdência, por Pedro Henrique M. Aniceto

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Pedro Henrique M. Aniceto – A Terra é Redonda – 05/07/2024

A desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social

Nos últimos anos, a transformação do mercado de trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pelo crescimento das plataformas digitais, trouxe à tona um fenômeno denominado “uberização do trabalho”. Esse modelo, caracterizado pela intermediação entre prestadores de serviço e clientes por meio de aplicativos, promete flexibilidade e autonomia aos trabalhadores. No entanto, ao se analisar mais profundamente, especialmente sob a ótica social, torna-se mais que evidente que essa aparente liberdade vem acompanhada de uma série de precariedades e significativos problemas.

A previdência social desempenha um papel importante e necessário na proteção dos trabalhadores, garantindo uma rede de segurança que lhes permite enfrentar momentos de vulnerabilidade, como doença, desemprego ou velhice. O sistema previdenciário foi concebido para assegurar que, após anos de contribuição, os trabalhadores tenham direito a uma aposentadoria digna, proporcionando-lhes estabilidade financeira na terceira idade.

No modelo tradicional de emprego, essa segurança é garantida por contribuições regulares tanto dos empregados quanto dos empregadores, criando uma base sólida para o financiamento dos benefícios sociais e manutenção da seguridade da sociedade. A previdência é um componente essencial do Estado de bem-estar social, promovendo a equidade e a justiça social ao redistribuir renda e oferecer proteção a todos os trabalhadores, independentemente de sua posição econômica.

No contexto da uberização do trabalho, essa estrutura de proteção é significativamente enfraquecida. Os trabalhadores de plataformas digitais, muitas vezes classificados como autônomos, não têm acesso aos mesmos direitos e benefícios dos empregados formais. A ausência de contribuições previdenciárias regulares por parte desses trabalhadores compromete não apenas sua própria segurança futura, mas também a sustentabilidade do sistema previdenciário como um todo.

Sem a garantia de um contrato formal e das contribuições correspondentes, esses trabalhadores ficam desprotegidos e enfrentam uma maior incerteza econômica. Esse modelo de trabalho exacerba a vulnerabilidade dos trabalhadores, que são frequentemente sujeitos a jornadas de trabalho extenuantes e a uma instabilidade financeira crônica, sem o amparo de uma rede de proteção social.

A precarização das condições de trabalho decorrente da uberização também afeta diretamente a arrecadação fiscal. Com menos trabalhadores contribuindo regularmente para a previdência, a capacidade do sistema de fornecer benefícios adequados é severamente reduzida.

Isso não apenas coloca em risco a aposentadoria de milhões de pessoas, mas também a viabilidade de outros benefícios sociais, como o seguro-desemprego e o auxílio-doença, que são essenciais para a estabilidade econômica dos trabalhadores em momentos de crise. A redução na arrecadação fiscal também limita a capacidade do governo de investir em outras áreas críticas, como saúde e educação, exacerbando ainda mais as desigualdades sociais.

Além disso, a importância da previdência se torna ainda mais evidente quando consideramos o envelhecimento da população. À medida que a expectativa de vida aumenta, mais pessoas dependem dos benefícios previdenciários para manter um padrão de vida digno após a aposentadoria. A uberização, ao promover relações de trabalho mais flexíveis e menos regulamentadas, ameaça agravar o desequilíbrio financeiro dos sistemas previdenciários.

Sem uma base ampla e estável de contribuições, a capacidade de atender às necessidades de uma população envelhecida é comprometida, colocando em risco o bem-estar de futuras gerações. A ausência de contribuições contínuas e regulares pode resultar em um déficit previdenciário extremamente significativo, forçando o Estado a adotar medidas de austeridade que podem prejudicar ainda mais os trabalhadores e a economia como um todo.

O processo de uberização também levanta questões sobre a dignidade e a valorização do trabalho.

Em muitos casos, os trabalhadores de plataformas digitais recebem remuneração abaixo do salário-mínimo, não têm acesso a benefícios básicos e são expostos a condições de trabalho perigosas e insalubres.

Essa desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social. A falta de regulamentação adequada e a exploração dos trabalhadores pela lógica do lucro máximo das plataformas criam um ambiente de trabalho hostil e insustentável, onde os direitos humanos básicos são frequentemente violados.

Portanto, a previdência social é um pilar essencial para a segurança e a dignidade dos trabalhadores, oferecendo uma rede de proteção contra as incertezas econômicas e os riscos da vida. A uberização do trabalho, ao afastar-se dos modelos tradicionais de emprego formal, impõe sérios desafios a essa estrutura, enfraquecendo a rede de segurança que sustenta milhões de trabalhadores.

Reconhecer a importância da previdência social e enfrentar as implicações desse novo modelo de trabalho é crucial para garantir uma proteção social justa e eficaz em um mundo cada vez mais digitalizado.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Novo desenvolvimentismo, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 07/07/2024

Por ocasião do lançamento do meu mais recente livro Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política, um repórter perguntou-me o que é o Novo Desenvolvimentismo.

E aproveitou para perguntar se não seria melhor que ‘o presidente trabalhasse mais’ e deixasse de dar entrevistas e criticar o presidente do Banco Central, que faziam o preço do dólar aumentar. Eis minha resposta.
2.
Sobre o Novo Desenvolvimentismo: Um artigo fundador da Teoria Novo-Desenvolvimentista, de 2001, fazia uma crítica cerrada à alta taxa de juros, mostrando que seu nível era mais alto do que o necessário para controlar a inflação e que a despesa fiscal envolvida era enorme.

A Teoria Novo-desenvolvimentista é uma macroeconomia do desenvolvimento que oferece políticas focadas na taxa de juros, na taxa de câmbio, e na crítica aos déficits em conta corrente. Mostra que a taxa de juros deve e pode ser razoavelmente baixa.

A taxa de câmbio deve ser competitiva, ou seja, deve garantir que as empresas que usam a melhor tecnologia sejam internacionalmente competitivas. E a conta corrente (balança comercial mais serviços) deve ser equilibrada; não ser deficitária e, assim, apreciar a taxa de câmbio.

É uma teoria heterodoxa que defende o equilíbrio fiscal, mas defende mais ainda o equilíbrio da conta corrente, que a ortodoxia liberal ignora, não se importando com déficits na conta corrente recorrentes.

Além de uma teoria econômica e uma economia política que foi inicialmente pensada para o Brasil, mas interessa a todos os países, principalmente dos de renda média.

O livro Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política foi inicialmente escrito por encomenda de uma editora inglesa e foi publicado em janeiro no Reino Unido. A versão brasileira é uma versão melhorada da inglesa.

Sobre o equilíbrio fiscal: O Brasil precisa cortar gastos para interromper o crescimento da dívida pública, mas concordo com o presidente Lula: o ajuste não deve ser pago pelos mais pobres.

Entendo que rentistas e os financistas também deviam pagar a sua parte concordando em baixar os juros ao invés de fazerem uma guerra para não deixar que a taxa de juros caia. Discordo, porém, do presidente em um ponto: é preciso vincular as aposentadorias à inflação, não ao salário-mínimo.

Sobre o senhor Roberto Campos Neto: O presidente trabalha muito, e tem razão em criticar o presidente do Banco Central, que hoje é o líder da coalizão financeiro-rentista que domina o país e captura o patrimônio público. O aumento do preço do dólar é pura especulação, é parte dessa guerra contra o Brasil.

Sobre o Plano Real: Ele foi uma maravilha porque, de um dia para o outro, acabou com a alta inflação que assolou o país por 14 anos. Foi um plano rigorosamente heterodoxo baseado na teoria da inflação inercial que eu ajudei a desenvolver no início dos anos 1980. É um engano, porém, supor que ele não teve custo.

Seus economistas, ao assumiram o governo, tornaram-se ortodoxos e estabeleceram juros reais absurdos. Desde então, eles baixaram um pouco mas, com sua ‘bênção’, continuam hoje escandalosamente altos. Por isso eu tenho dito que a herança maldita do Plano Real foram os juros altos.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Referência
Luiz Carlos Bresser-Pereira. Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política. São Paulo, Editora contracorrente, 2024, 348 págs.

O privatismo sem critério de Tarcísio de Freitas, por André Roncaglia

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É imperativo evitar privatização da empresa de saneamento do estado mais rico do Brasil

André Roncaglia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 06/07/2024

Depois do escândalo da privatização da Eletrobras, a Sabesp é a bola da vez.

A venda de participação acionária da empresa teve a ampla concorrência… de uma empresa interessada. Indagado a este respeito, o governo Tarcísio reagiu com a novilíngua privatista:

“Não é falta de concorrência, é uma aderência ao que a gente vem colocando desde o início”.

Especializada em energia elétrica, a Equatorial conta com uma “vasta experiência” de dois anos no setor de saneamento, “conquistada” com a privatização do serviço no Amapá, feita pelo governo Bolsonaro em 2021, sob a batuta do atual governador carioca de São Paulo.

Se efetivada a operação, a Equatorial deterá 15% das ações da Sabesp, adquiridas a preços abaixo dos vigentes no mercado (R$ 67 contra R$ 75). Sim, a privatização do ativo público, subsidiada com o dinheiro do contribuinte, é vista com naturalidade pela patrulha liberal.

Reportagens da Folha fizeram uma radiografia picotada da privataria tarcisiana. Deixe-me organizar os dados para o leitor. Ao se tornar “acionista de referência”, a empresa terá participação acionária de 15% e o poder desproporcional de indicar o CEO da Sabesp, o presidente e três membros do conselho de administração.

Os principais acionistas da Equatorial são “o Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, as gestoras Atmos, Capital World Investors, Squadra Capital e o fundo americano de investimentos Blackrock”. Com efeito, o “futuro plano de eficiência” da Sabesp prevê “redefinir a relação com sindicatos, otimizar benefícios e políticas de remuneração”. E, claro, a governança da Sabesp seguirá a “cultura de dono”, isto é, o “alinhamento de incentivos por performance”. Traduzindo: corte no quadro de funcionários e elevação da remuneração da diretoria executiva. Este arranjo tem dado certo com a Enel em São Paulo, não?

A otimização de custos operacionais e da estrutura de capital da Sabesp visa aumentar o endividamento da empresa para fazer caixa e, assim, aumentar a distribuição de lucros aos acionistas. Com este nível da taxa de juros brasileira, o acionista ganha o retorno hoje e o usuário paulista paga os juros com tarifa mais alta no futuro.

Neste ponto, a racionalidade técnica do exterminador de estatais tem uma solução: utilizar os ganhos com a privatização para subsidiar, nos primeiros anos, as tarifas pagas pelo consumidor paulista. Sim, o governo vai usar o ganho com a venda da casa para financiar o aluguel da casa. “Imprecionante”!

Diferentemente do Amapá, onde a cobertura de serviços de saneamento é muito baixa —apenas metade da população tinha acesso a água tratada e meros 4,5% da população contava com coleta de esgoto—, a situação da cobertura no estado de São Paulo é próxima de total. Em 2022, os índices de cobertura de água (98%), de esgoto (92%) e de tratamento de esgoto coletado (85%) deixam nítido que o contribuinte paulistano já amortizou o investimento na estatal paulista desde 1973, quando foi fundada.

A Sabesp é uma empresa altamente lucrativa e com capital aberto em Bolsa. Mesmo assim, o governo Tarcísio não conseguiu gerar concorrência para privatizar a maior empresa de saneamento do país.

É um feito e tanto!

Com controle da Sabesp, a Equatorial se consolidará como “empresa multiutilidades”; em 2023, sua margem de lucro foi de 77%. A ironia desta história é que um governo bolsonarista está subsidiando, à custa do contribuinte paulista, uma nova campeã nacional.

A reestatização do saneamento em Paris e Berlim —dentre dezenas de cidades mundo afora— questiona a fé inabalável na gestão privada dos recursos hídricos. É imperativo evitar este retrocesso no estado mais rico do Brasil.

Guerras, guerras e mais guerras

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Na sociedade contemporânea, percebemos o crescimento acelerado de conflitos econômicos e produtivos, além de mais confrontos bélicos e militares, que contribuem fortemente para o incremento das incertezas e das instabilidades, que somados aos desequilíbrios emocionais, afetivos e as instabilidades financeiras, estamos vivenciando momentos marcados por grandes volatilidades.

As guerras econômicas crescem de forma generalizada em todas as regiões do globo. As nações desenvolvidas estão aumentando as políticas protecionistas, criando barreiras para a entrada de concorrentes externos, desta forma, buscam proteger suas estruturas produtivas, defendendo a geração de empregos, garantindo a manutenção da renda e dos salários dos trabalhadores domésticos, evitando um processo constante de desnacionalização de seus setores econômicos e a dependência de outras economias.

Destacamos ainda os conflitos financeiros que crescem todos os dias, nações buscam defender suas moedas e seus interesses imediatos, cada país tenta fortalecer seus setores financeiros e garantindo maiores ganhos nas finanças, desta forma, percebemos o crescimento de novos padrões monetários para fragilizar o modelo centrado no dólar americano, criado no período posterior a segunda guerra mundial e foi o responsável pelo fortalecimento da economia dos Estados Unidos no cenário internacional.

Vivemos num momento de grandes conflitos militares, elevando os dispêndios em armas, máquinas e tecnologias bélicas. No momento, percebemos a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, cujos gastos militares estão na casa dos quatrocentos bilhões de dólares, gerando fortes constrangimentos para a sociedade internacional, impactando fortemente sobre a Europa, região que sente na pele os custos deste conflito militar, com aumento generalizado de combustíveis e de alimentos. Isso sem falar das guerras no Oriente Médio, cujas destruições crescentes tendem a ter um potencial muito elevado, impactando fortemente sobre a sociedade internacional, gerando conflitos regionais, aumento da imigração e desequilíbrios econômicos e produtivos.

As guerras e os conflitos militares impulsionam as tecnologias bélicas, novos investimentos em pesquisa científica impactam fortemente sobre a sociedade, grande parte das novas tecnologias que utilizamos no cotidiano foram desenvolvidas dentro das pesquisas militares. De outro lado, os investimentos militares tendem a gerar grandes destruições e alimentam a economia das guerras, aumentando os lucros e os dividendos dos detentores destes conglomerados, somente os custos militares de mais de duas décadas de ocupação das forças norte-americanas no Iraque e no Afeganistão são calculados em mais de 1 trilhão de dólares.

As guerras econômicas, financeiras e militares, além da degradação do Meio Ambiente, do desemprego crescente e da precarização do mundo do trabalho, tudo somado contribuem fortemente para o desenho do novo cenário internacional, gerando mais desesperança na sociedade global, mais medo, rancores e ressentimentos e ajudando a compreender as grandes transformações no ambiente político global, onde destacamos a ascensão da extrema direita em todos os quadrantes da sociedade mundial, defendendo xenofobia, racismo e a intolerância.

A história nos mostra claramente que a sociedade internacional já passou por momentos parecidos e os resultados não foram auspiciosos, muito pelo contrário, os resultados foram a degradação, a violência, os rancores e os ressentimentos que perduram a muitas décadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Brasil – sociedade autoritária, por Fernando Lionel Quiroga.

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Fernando Lionel Quiroga – A Terra é Redonda – 01/07/2024

O que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária é a imagem cada vez mais distante da noção de democracia — uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita

Cabe uma paráfrase sociológica à pergunta feita por Nietzsche em Ecce Homo, “Como alguém se torna o que é” que, reformulada, consistiria na questão: como uma sociedade se torna o que é? A esta questão, segue-se outra: Por quê, no Brasil, resiste uma tradição intensamente autoritária?

Tais questões não oferecem respostas prontas, conhecimentos acabados e embalados, prontos para o uso. E a dificuldade reside no caráter ambíguo de conceitos-chave para a construção das
respostas: o modo pelo qual nos colocamos diante de noções abertas como “democracia”, “direitos humanos”, “sociedade”, “justiça”, “respeito” etc. direciona nosso olhar, ora para um lado, ora para outro.

Embora possa-se admitir algo de imanente na ideia de democracia, de justiça etc. restam os usos sociais e o corpus representacional acerca delas, impedindo que concepções objetivadas coincidam com as formas sociais que elas adquirem nos diversos campos onde se inserem. Assim: a justiça entre irmãos não é a mesma que a justiça entre um casal de namorados. Os múltiplos detalhes da vida cotidiana, uma vez que se acumulam ao longo do tempo, produzem códigos sutis que dão forma à noção de justiça posta entre eles. É na noção de “meio”, desse “entre nós” que termina por ampliar e modelar, como puxando o fluxo temporal da ideia original; e o estrangulando como uma massa colorida, o instrumental de conceitos que utilizamos para explicar a realidade.

Anunciamos, no título deste ensaio, a autoridade reinante na sociedade brasileira. Mas, o que ela é e o que a torna durável, reproduzível? Vamos às pistas. Dizemos que a sociedade é autoritária, e não exclusivamente este ou aquele governo. Eis o ponto: a democracia, no contexto cultural brasileiro, precisa ser reescrita — o que não significa apagar da memória os exemplos daqueles que pelejaram pela sua construção e expansão.

Adianto: a reescrita da democracia não pede um novo texto constitucional. O marco constitucional de 1988 já é o redesenho da democracia após mais de duas décadas de regime militar. Ocorre que, mal a redemocratização havia começado, logo o neoliberalismo vampiresco já presente nas veias abertas da América Latina, especialmente no Chile sob Pinochet, chegava ao Brasil de modo incisivo, dando as caras por meio da hiperinflação que acompanhou todo o governo Sarney (1985-1990), seguido de sucessivos e fracassados planos econômicos.

A ele, seguiu-se, nada mais, nada menos, que Fernando Collor de Mello (1990-1992) – um protótipo neoliberal do que, anos mais tarde, se converteria no estereótipo da extrema direita representada, aqui, por Jair Bolsonaro (2019-2022), nos EUA, por Donald Trump (2017-2021), na Hungria, Viktor Orbán (desde 2010), na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan (Primeiro-ministro, 2003-2014; Presidente desde 2014), na Polônia, Andrzej Duda (desde 2015), nas Filipinas, Rodrigo Duterte (2016-2022), na Itália, Matteo Salvini (Líder da Liga Norte, ex-Vice Primeiro-Ministro e Ministro do Interior, 2018-2019).

Descontado o período em que o Brasil foi governado pelo PT, primeiro por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e, depois, por Dilma Rousseff (2011-2016), os quais merecem um olhar de maior profundidade em face dos efeitos reais produzidos na sociedade, como o surgimento da nova classe média, a expansão da universidade pública, a redução da pobreza e da desigualdade social, dentre outros, de resto, segue-se que, no Brasil, o neoliberalismo coincidente com o processo de redemocratização, dizia respeito à construção de uma nova mentalidade, cujo ponto de partida consistia na satisfação das expectativas mais profundas da população: a da passagem da sociedade controlada – marcada pelos anos da ditadura – para a sociedade livre, inclusiva e plural.

E, então, o corolário dos novos tempos trazia em seu bojo a noção da diversidade e, consequentemente, das pautas identitárias como maiores expressões dessa nova democracia com ares de liberdade. Eis aí um primeiro sinal das engrenagens que perpetuam o funcionamento da sociedade autoritária: a substituição da pauta historicamente legítima da tensão exploração-trabalho por pautas fragmentadas em bolhas reivindicatórias. É o caráter do especialismo introjetado no coração da luta de classes.

Outro sinal é a distribuição de autoridade (e, por extensão, de discurso) por meio do que Pierre Bourdieu chamou de “Inflação de diplomas”, cujas consequências sociais, além do aumento da competitividade em benefício exclusivo do mercado, implica na desvalorização relativa em razão da substituição da noção de distinção por requisito e, por último, a frustração resultante da “promessa” intrínseca no diploma, em contraste ao “poder” do discurso que ele produz, especialmente se considerarmos a inflação de diplomas em níveis mais elevados de formação, como de mestres e doutores.

Então, juntemos as peças do que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária: a imagem cada vez mais distante da noção de democracia (uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita); as pautas reivindicatórias fragmentárias, ideologicamente orientadas; a autoridade do discurso chancelada por um diploma opaco, a que se segue um desesperador ressentimento e cinismo. E, finalmente, podemos compreender porque o ódio é a característica central na sociedade brasileira contemporânea — e porque é urgente repensar a democracia.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Necropolítica nacional sentou praça no Congresso, por Marcelo Leite

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Com decisão sobre maconha, STF se curva à amoralidade parlamentar

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo – 30/06/2024

Após nove anos cozinhando o galo, o STF (Supremo Tribunal Federal) botou um ovo de serpente ao se pronunciar sobre o porte de Cannabis para uso pessoal. Policiais seguirão na função de juízes, decidindo na rua quem é traficante ou usuário.

O STF reconheceu, é verdade, que havia viés racial na prática anterior de quase sempre enquadrar pretos e pobres como traficantes, como bem celebrou Djamila Ribeiro. Talvez o arbítrio dos agentes resulte um pouco dificultado com o limite objetivo que rebaixou de crime para ilícito a posse de até 40 g da maconha. Talvez.

Já o advogado Cristiano Maronna, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) na ação de 2015 no Supremo, apontou a Mônica Bergamo que a decisão favorece “apenas o playboy” consumidor da droga.

“A pressão que a extrema direita fez sobre o STF funcionou”, disse ele à colunista. “O STF se impôs uma autocontenção exagerada. Ficou aquém das decisões tomadas pelas Supremas Cortes de Argentina, Colômbia, México e África do Sul.”

A premissa dos 40 g pode terminar posta de lado quando houver testemunho policial e provas ancoradas nele. Se PMs se investem do poder de matar jovens pardos a qualquer tempo, o que os impedirá de dar falso testemunho e forjar provas?

Maronna assinalou ainda que muitos dos alvos da violência policial são usuários de outras drogas, como o crack. Por prudência ou pusilanimidade (decida o leitor), o ministro Gilmar Mendes as excluiu de seu voto inicial. Abriu a porteira, e a carneirada passou.

Não existe motivo plausível, jurídico ou científico, para fazer essa distinção entre maconha e outras drogas, como observou Hélio Schwartsman. Ela deriva de puro cálculo político; melhor dizendo, do temor de que a decisão constitucional espicaçasse a húbris parlamentar.

Sobre as supremas cabeças paira a PEC das Drogas, desembainhada em setembro pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), após o STF ousar avançar na pauta. Na mesma terça-feira (25) da decisão tão protelada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) oficializou a comissão especial que a analisará.

A comissão já havia sido formalizada uma semana antes por Lira, mas ele só a fez publicar quando a corte se pronunciou. Também na mesma data o deputado alagoano completou 55 anos, que comemorou em Portugal durante festa do grupo Esfera Brasil, um “esquenta” do Fórum Jurídico de Lisboa, vulgo “Gilmarpalooza”.

Pela praxe da Câmara, a composição da comissão seguirá a proporcionalidade das bancadas. Em outras palavras, será dominada pela centro-direita com que cinco ministros do Supremo confraternizam sem corar no convescote lisboeta de Gilmar.

Nenhum dos comensais, juiz, empresário ou banqueiro, se incomoda com Pacheco e Lira brandirem a PEC das Drogas não por convicção, mas oportunismo. Para manter controle sobre a própria sucessão, querem adular a bancada da bala e da bíblia, que depende de realimentar pânico moral entre apoiadores para se reeleger.

Pouco importa se meninos e rapazes escuros forem mortos ou encarcerados injustamente, ao arrepio de garantias constitucionais. A necropolítica sentou praça no Congresso –eis o maior legado das trevas bolsonarianas com que o andar de cima e a Faria Lima voltam a flertar.

O que esperar, se não a mais abjeta amoralidade, de gente que propõe tratar como assassinas garotas estupradas que ultrapassam a 22ª semana de gravidez porque profissionais de saúde fundamentalistas se recusam a realizar abortos a que elas têm direito por lei?

O Real não foi só um plano econômico, por Aloizio Mercadante

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Programa teve êxito contra a inflação, mas não garantiu a retomada do crescimento

Aloizio Mercadante, Economista, é presidente do BNDES. Foi ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e ministro da Educação e da Ciência, Tecnologia e Inovação

Folha de São Paulo – 30/06/2024

O Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira. A Unidade Real de Valor (URV) permitiu a saída de forma criativa e organizada da alta inflação inercial, sem congelamento de preços. Outro elemento crucial foi a renegociação e a securitização da dívida externa pelo Plano Brady.

Na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.

A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano.

Para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.

Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social.

Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999.

O governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao chamado “Consenso de Washington”. Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo.

A estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica. Do lado fiscal, a estabilização está incompleta. Esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia.

Ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população.

É preciso reconhecer a competência e a inovação da equipe técnica que criou o Plano Real, em particular Pérsio Arida e Lara Resende. Eles têm imensa responsabilidade pelas vitórias do PSDB, mas pressões eleitorais no ninho tucano impediram a saída organizada da âncora cambial e empurraram o país para grave crise cambial, desindustrialização, endividamento público elevado e recessão econômica prolongada.

A despeito das nossas divergências, o país sente saudade do tempo em que a polarização se dava entre o PT e o PSDB. Naquele período, havia disputa acirrada, mas qualificada, sem renunciarmos ao compromisso com o Estado democrático de Direito e com a cidadania.