José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos, por Christian Lynch

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Historiador, um dos mais influentes intelectuais públicos brasileiros, morreu aos 83

Christian Lynch – Folha de São Paulo, 22/08/2023

[RESUMO] José Murilo de Carvalho deixou obra incontornável sobre a construção do Império brasileiro e a formação da sociedade no começo da República, destacando como o país falhou, nesses momentos históricos cruciais, em criar uma cultura cívica que superasse o elitismo, o patrimonialismo e o militarismo. Morto aos 83, o historiador deixa às novas gerações a tarefa de enfim aprofundar a cidadania no Brasil.

José Murilo de Carvalho foi um do mais influentes acadêmicos de sua geração. No campo da ciência política, atuou nos programas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No da história, foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e do programa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Tendo se doutorado na Universidade Stanford (EUA), foi professor visitante em um sem número de outras, como Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. A consagração definitiva chegaria com sua eleição para as mais antigas e prestigiosas instituições culturais do país: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL).

Para quem o conhecia, chamava a atenção o contraste entre a monumentalidade de sua obra e a sua personalidade, referida por Ruy Castro como tímida e modesta. Eu acrescentaria esquiva, especialmente em ambiente mundano. Essa discrição indicava, claro, sua origem de mineiro do interior, de que se orgulhava, mas havia mais que o estereótipo regional.

Nascido em 1939, José Murilo estudou em colégio de padres e militou na Ação Popular, grupo cristão de esquerda, ajudando na organização de sindicatos rurais. Para além da “mineirice”, havia também certo espírito de missionário franciscano, que como cientista social cedo elegeu o Brasil como a comunidade ou “República” a cujo serviço se devotaria.

Ele acreditava que os males do Brasil decorriam da insuficiência do equivalente cívico das virtudes cristãs, que eram as virtudes republicanas. Nada surpreendente, já que desde Tiradentes e Teófilo Otoni a república sempre foi o tema por excelência da intelectualidade mineira.

Para bem servir à república como intelectual público (o equivalente secular do missionário), cumpria conhecê-la em sua formação. As inquietações de José Murilo decorriam do trauma comum a toda a primeira geração de cientistas políticos profissionais, o golpe de 1964.

Eles todos haviam na mocidade embarcado no sonho nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio e JK. Acreditavam, pela leitura dos intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que a modernidade brasileira começou com a urbanização e a industrialização a partir da Revolução de 1930; e que as reformas de base eram o corolário lógico de uma nação que não mais cabia na moldura oligárquica do tempo anterior.

A marcha ascensional para patamares superiores de autonomia e igualdade era inevitável. Daí o choque de 1964, que levaria José Murilo a empregar o melhor de suas energias na revisitação do processo de formação do Estado e da sociedade brasileira anterior a 1930, em busca das causas dos males presentes.

Quem admira José Murilo como historiador deve sempre lembrar que a força de suas análises vinha de sua formação em sociologia e política. A UFMG já possuía um núcleo importante de ciência e sociologia política dentro do curso de direito, em torno de Orlando Carvalho e sua revista. Não foi difícil depois dar-lhe autonomia e profissionalizá-lo.

O tema por excelência da ciência social mineira na época era o coronelismo, que explicava a articulação das modernas instituições políticas brasileiras sobre sua arcaica estrutura socioeconômica fundiária. Sob a influência da obra clássica de Victor Nunes Leal, José Murilo escreveu suas duas primeiras obras: a primeira, sobre a política municipal de Barbacena; a segunda, sobre a criação da Escola de Minas de Ouro Preto.

Já então ele questionava a eficácia do marxismo na compreensão dos fenômenos, preferindo o weberianismo dos primeiros membros do Iseb. Quando José Murilo partiu com uma bolsa da Fundação Ford para fazer seu mestrado e doutorado em ciência política em Stanford, lá conheceu o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Foi um encontro providencial. Wanderley o convenceu a trocar sua projetada tese sobre municipalismo por outra, a respeito da construção do Estado brasileiro no século 19. Deu certo.

Na primeira parte da tese, “A Construção da Ordem”, José Murilo argumentava que, diversamente das elites da América hispânica, as do Brasil conseguiram conservar sua unidade política devido seu maior grau de homogeneidade, uma vez que, enviadas a Coimbra, recebiam a mesma formação ideológica e uma socialização burocrática quase consensual em torno de um projeto de Estado reformista e autoritário.

Na segunda parte, “Teatro de Sombras”, ele revelava a dinâmica tensa entre este Estado modernizador e a sociedade escravista agrária que a ele resistia. Quanto mais o Estado fazia uso de seus instrumentos autoritários para liberalizar a sociedade pelo alto, mais solapava os fundamentos de sua própria legitimidade.

Aqui José Murilo já revelava duas características. A primeira, de caráter formal, passava pelo exame do processo político empírico em perspectiva interdisciplinar, pela articulação entre ciência política, história e pensamento brasileiro. A segunda, de caráter substantivo, assinalava a preocupação com a formação da cultura cívica e das instituições “republicanas”.

Sua tese de relativa autonomia do Estado imperial afrontava a literatura marxista então hegemônica, para a qual a monarquia não passava de braço do latifúndio escravista. Por isso, a recepção inicial da primeira parte dessa análise, “A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial” (1980), foi fria.

Em 1978, José Murilo foi convidado por Wanderley para integrar o corpo docente do antigo Iuperj (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj). Em 1986, ele passou a integrar também os quadros da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Nesse tempo, por ele considerado o mais feliz de sua carreira, Murilo desenvolveu as pesquisas sobre a formação da cultura cívica brasileira que o consagraram e que resultariam em “Os Bestializados” (1987), “A Formação das Almas” (1990) e “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005).

Trata-se de um tríptico que, depois do díptico anterior sobre a construção do Estado imperial, investiga a formação da sociedade no começo da República, concluindo pelo fracasso das elites na constituição de uma cultura cívica republicana, atravessada pelo elitismo, pelo patrimonialismo e pelo militarismo.

Em “Os Bestializados”, José Murilo destacava o descolamento entre povo e elites nas primeiras décadas do regime republicano, desenvolvendo o conceito de “estadania” para designar a concepção deformada de cidadania que só reconhecia direitos ao povo desde que subordinado e encaixado na métrica de “civilizado”.

Em “A Formação das Almas”, ele apontava o relativo fracasso das elites —positivistas, jacobinas, liberais— em criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava em construir a nação.

Já “Forças Armadas e Política no Brasil” se dedicava a compreender a origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada, nacionalista e desinteressada.

Tais reflexões caíam como uma luva à época do centenário da República (1989), quando a efeméride incentivava o público a pensar a história como insumo para dotar o regime democrático de substância para além da forma puramente eleitoral.

José Murilo fez assim da denúncia do nosso déficit republicano seu grande tema como intelectual público. Distinguindo a república como modo de convivência cívica da república como mero regime formal, lhe parecia que as últimas décadas do Império teriam sido marcadas por uma efervescência democrática abortada pelo golpe militar republicano. Este seria o tema de suas pesquisas sobre a campanha abolicionista e de livros mais recentes, como “Clamar e Agitar Sempre: Os Radicais na Década de 1860” (2018).

Para José Murilo, o governante mais republicano do Brasil teria sido dom Pedro 2º, a quem dedicou uma biografia: “Ser ou Não ser” (2007). Depois do impeachment de Collor, ele participou das discussões em torno do plebiscito de 1993 de forma provocativa, defendendo a opção da Monarquia para chamar a atenção para a insuficiência da República.

Em debate realizado à época no salão nobre do Palácio do Catete, José Murilo iniciou sua fala se dizendo constrangido em meio a toda aquela “pompa republicana”. A polêmica da época levaria este republicano empedernido a carregar por décadas a pecha de… monarquista.

“Cidadania no Brasil: O Longo Caminho” (2001) se tornaria a obra síntese de José Murilo em relação ao diagnóstico da má formação cívica brasileira e a necessidade de saná-la. Partindo da tese do sociólogo T. H. Marshall de que a sequência clássica da cidadania moderna começaria pelos direitos civis, seguido pelos políticos e depois pelos sociais, Murilo defendia que no Brasil a pirâmide havia sido invertida —e que o principal déficit da República residiria na falta de acesso à Justiça pela inefetividade dos direitos civis.

A exposição objetiva e clara dessa hipótese, entremeada pela narrativa da história do Brasil desde a Independência até o presente, fez desse livro o seu grande best-seller, adotado em todas as graduações de ciências humanas.

Paralelamente, como complemento de seus livros, José Murilo escreveu dezenas de artigos dedicados a fenômenos políticos e sociais, como o mandonismo, e a personagens da vida intelectual brasileira, como Vasconcelos, Uruguai, João Francisco Lisboa, Alencar, Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, José Veríssimo, Eduardo Prado e Juarez Távora.

Os mais importantes, talvez, tenham sido os dois textos dedicados a Oliveira Vianna, autor que considerava crucial para compreender os problemas das elites republicanas e cuja obra cumpria, portanto, “resgatar do inferno”.

José Murilo concluiu sua conversão pública para “historiador” ao se tornar titular do programa de história da UFRJ, em 1997, mas o essencial de suas pesquisas giraria dali por diante no aprofundamento das teses já expostas nos livros anteriores.

Por meio do projeto Caminhos da Política no Império do Brasil, financiado pela CNPq, ele se cercou de uma rede interinstitucional de excelentes historiadores, cujos trabalhos comuns resultaram em várias coletâneas, como “Linguagens e Fronteiras do Poder” (2011).

Uma mudança importante no período foi a maneira de José Murilo pensar a participação popular. As pesquisas com Lúcia Bastos e Marcelo Basile sobre os panfletos da Independência, que resultaram no livro “Guerra Literária” (2014), o convenceram de que, ao contrário do que se dizia, a revolução de emancipação do Brasil teve considerável participação popular, não sendo restrita às elites.

Nos últimos tempos, porém, a fé republicana de José Murilo sofreu múltiplos revezes. A esperança nos governos do PT tropeçou nos escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. As eventuais expectativas de melhora do padrão de vida cívica se esvaíram quando a bandeira anticorrupção passou às mãos da extrema direita aliada ao militarismo.

A história de sua mocidade parecia se repetir na velhice, reavivando seus traumas e decepções cívicas. Se a campanha udenista que denunciara o “mar de lama” resultara no suicídio de Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964, o moralismo lavajatista desaguara na prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.

Nos últimos anos, José Mutilo parecia mais interessado em tirar a limpo o próprio passado, reatando amizades e concedendo depoimentos sobre sua carreira e instituições de que fizera parte. Evitava entrevistas, porque no final de seu longo apostolado lhe parecia que tudo tinha sido inútil.

Em “O Pecado Original da República” (2017), ele chegava a afirmar que a condição republicana parecia incompatível com a identidade brasileira. Poderia ter desabafado como um de seus mestres, o sociólogo Guerreiro Ramos, em entrevista de 1981: “Este é o país da picaretagem. Não tem ninguém com grandeza, a grandeza de Alberto Torres, do Visconde de Uruguai, do Barão do Rio Branco, de José Bonifácio, Getúlio Vargas. Acabou, o país destruiu a nós todos”.

A missão do homem José Murilo de Carvalho, mineiro tímido e modesto, terminou. Ela segue agora por meio de sua obra monumental e de seus admiradores das gerações mais novas, de cujos visionários o Brasil continua precisando para se republicanizar.
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JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Vida
Nasceu em 1939. Formado em sociologia e política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fez mestrado e doutorado em ciência política na Universidade de Stanford, nos EUA. Foi professor nas duas instituições, assim como, no Brasil, na UFRJ e, no exterior, em Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Fazia parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira de Letras (ABL). Morreu em 13 de agosto, aos 83 anos

Principais livros
“A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial” (1980), “Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República Que não Foi” (1987), “Teatro de Sombras: a Política Imperial” (1988), “A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil” (1990), “A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho” (2001), “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005), “D. Pedro 2º: Ser ou Não Ser” (2007)

Perdendo potencial humano, por Priscilla Bacalhau

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É crucial que os indivíduos sejam capazes de aplicar produtivamente seus conhecimentos

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

Folha de São Paulo, 25/08/2023

Uma nação é feita de pessoas. Apenas oferecendo oportunidades para que os indivíduos desenvolvam seu potencial máximo, será possível atingir um nível desejável de desenvolvimento econômico e social. Para isso, é crucial que os indivíduos sejam capazes de aplicar produtivamente seus conhecimentos, habilidades e experiências para criar valor econômico. Esse potencial individual de aplicar habilidades é conhecido como capital humano e é ele que molda a capacidade de uma sociedade prosperar e inovar.

Atualmente no Brasil, os economistas do Banco Mundial, Norbert Schady e Joana Silva, divulgam seus trabalhos para medir o capital humano das nações. Em recente entrevista na Folha, Schady alertou que, sem investimentos em capital humano, os brasileiros poderiam enfrentar uma drástica redução em sua renda.

O Índice de Capital Humano, desenvolvido pela organização, considera três dimensões: sobrevivência infantil até os 5 anos de idade, anos de escolaridade ajustados pela aprendizagem e sobrevivência na idade adulta. Combinados, os indicadores estimam o quanto uma pessoa nascida hoje será produtiva quando chegar à idade adulta.

Os resultados do Brasil não são nada animadores. De acordo com as estimativas, uma criança brasileira nascida em 2019 atingiria apenas 60% do seu potencial, considerando as condições de saúde e educação a que estavam expostas. O Brasil apresenta déficits significativos em termos de aprendizado, mesmo quando comparado a países de desenvolvimento econômico semelhante. Além disso, o país ainda possui uma parcela considerável de trabalhadores com baixo nível educacional, com retornos limitados ao entrar no mercado de trabalho.

Além de os resultados não serem bons na média, as desigualdades de raça, gênero e região são marcantes, como de praxe no país. Crianças do Norte e do Nordeste, por exemplo, têm a oportunidade de desenvolver apenas metade de todo seu potencial, menos do que crianças no Sudeste. Por outro lado, vários municípios no Nordeste apresentaram grande evolução no índice de capital humano entre 2007 e 2019, puxada principalmente por melhorias nos indicadores educacionais.

Os efeitos da pandemia no acúmulo de capital humano podem ser devastadores, tanto regredindo para níveis de uma década atrás, quanto no aprofundamento de desigualdades. Mas ainda há esperança: pode-se aprender com experiências subnacionais e investir em políticas públicas abrangentes, capazes de promover igualdade de oportunidades para acesso à saúde e educação de qualidade. Apenas investindo no potencial das crianças é que o Brasil pode trilhar o caminho rumo a um desenvolvimento condizente com seu verdadeiro potencial.

O agro não é pop… o agro é lobby!, por André Roncáglia

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É o único setor em que benefícios tributários superam a contribuição ao PIB

André Roncáglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 25/08/2023

A teoria das vantagens comparativas é uma das mais bem-sucedidas abstrações na assim chamada ciência econômica. Elaborada pelo economista britânico David Ricardo, ela visava fortalecer a indústria manufatureira, cujo desenvolvimento era inibido por uma política de proteção à agricultura. Ricardo defendia a abolição das tarifas protecionistas à agricultura para que as importações derrubassem o preço dos grãos. A subsequente queda dos salários e da renda dos proprietários de terra abriria espaço para os lucros impulsionarem a indústria.

Curiosamente, o tom industrializante da aplicação da teoria ao império global da época se inverteu ao cruzar a linha do Equador. Na periferia, a teoria recomendava a especialização na exportação de matérias-primas. O Brasil conta, desde então, com um séquito leal de defensores das vantagens comparativas. Deslumbrados com o poder tecnológico dos países do norte, tornaram-se sócios minoritários abastados do nosso subdesenvolvimento.

Sob o manto protetor dessa “boa teoria econômica”, o agronegócio consolidou seu poder econômico, o que lhe permite financiar meios de comunicação para legitimar seu protagonismo e ocultar seus privilégios. Slogans como “o agro é tech, o agro é pop” lançam um verniz mítico sobre um setor que é, na verdade, fortemente subsidiado e protegido pelo Estado há décadas.

A agropecuária representa 7,9% do PIB e míseros 3% dos empregos formais da economia, mas paga menos de 1,5% da arrecadação total de tributos. É o único setor que abocanha uma fatia dos benefícios tributários (13,5%) maior do que sua contribuição ao PIB. Por comparação, a indústria representa 12,9% do PIB e 15% dos empregos formais, sendo responsável por 31% dos tributos arrecadados e 12,5% dos benefícios tributários.

Além disso, o agro não seria tech sem os pesados investimentos feitos pelo Estado em pesquisa agropecuária. A Embrapa custará R$ 3,7 bilhões aos cofres públicos em 2023. Cerca de 2.500 pesquisadores oferecem inovações que melhoram a produtividade do setor. Em contraste, a Embrapii (Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial) recebe R$ 1,1 bilhão, enquanto a Ceitec, estatal do chip que tira o sono dos liberais, custa R$ 53 milhões ao Orçamento federal.

É uma raridade um empresário do agronegócio reclamar da Selic estratosférica. Sabe por quê? O agro conta com o Plano Safra, que oferece crédito com taxas de juros variando de 7% ao ano até 12,5% ao ano. A Selic pode ir pra Marte que o agro não dará um pio. Dificilmente o agro seria pop se pagasse as taxas de juros que a indústria paga, cujo piso médio está em 20% ao ano.

No período 2023-2024, serão R$ 435 bilhões em crédito subsidiado (apenas R$ 73 bilhões serão destinados à agricultura familiar). Em 2015, o crédito direcionado representava 90% do Plano Safra, caindo para cerca de 50% desde então. O motivo é a captação de crédito via Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e nos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), ambos com isenção do Imposto de Renda sobre os rendimentos financeiros.

Na reforma tributária em debate, o agro conseguiu um desconto de 60% na alíquota dos novos tributos (o IBS e a CBS), mas pressiona os congressistas a elevar o desconto para 80%. Essa “meia-entrada agrishow” deverá ser paga sobretudo pela indústria, mas também pelo comércio e pelos serviços.

Alega-se que o agro traz divisas para o Brasil, o que justificaria os subsídios bilionários destinados ao setor. Se tiver a mesma oportunidade, a indústria também pode fazer isso, com efeitos mais robustos em termos de geração de empregos e inovação tecnológica.

Reverter nossa baixa sofisticação produtiva e nossa pauta regressiva de exportações requer nivelar o campo de jogo entre todos os setores.

Tecnologia educacional: aliada ou vilã? por Débora Garofalo

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Mais que restringir, há de se priorizar vivências, inclusive na produção

Débora Garofalo, Mestra em educação, é professora na rede pública de São Paulo; em 2019, foi a primeira sul-americana a disputar o Global Teacher Prize, sendo considerada uma das dez melhores professoras do mundo

Folha de São Paulo, 25/08/2023

Em relatório divulgado recentemente, dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação; a Ciência e a Cultura) alertam sobre o risco do uso de telefone celular na sala de aula e trazem um panorama sobre evidências escassas de impacto positivo da tecnologia digital na área educacional.

O relatório aborda também a questão do abismo digital; o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas e a adaptação da educação; e a oferta de conteúdo online sem regulamentação suficiente do controle de qualidade e/ou diversidade. Alguns dos apontamentos remetem a discussões já realizadas anteriormente em âmbito nacional. Recaem sobre aspectos importantes da compreensão do papel das tecnologias na educação, como objeto de conhecimento e ferramenta de ensino, e da ausência de regulamentações para uso de aparatos tecnológicos e a ineficiência de políticas públicas para a questão da conectividade.

E como evitar as distrações com o uso das tecnologias digitais em sala de aula? Através da intencionalidade pedagógica, permitindo que os estudantes vivenciem a tecnologia e não sejam apenas consumidores, mas produtores dela. Proibir e/ou restringir não são caminhos: o importante é criar regras e oportunizar vivências. Assim, há necessidade de potencializar o aprendizado da tecnologia como objeto de conhecimento e de ferramenta de ensino, principalmente aos estudantes com deficiência.

Nesse sentido, precisamos encontrar o equilíbrio do seu uso em sala de aula e potencializar sua ressignificação. Um exemplo disso é a cultura maker, que possui potencial desde que utilizada com intencionalidade pedagógica, já que é uma abordagem que incentiva os estudantes a resolverem problemas colaborativamente, criando artefatos usando as mãos, sendo porta de entrada para trabalhar a inovação na educação.

Essa abordagem possibilita novas e significativas experiências ao professor, através de estímulos aos estudantes no desenvolvimento de projetos de maneira prática, usando metodologias ativas ao desenvolver habilidades e competências relacionadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seu complemento sobre computação, habilidades socioemocionais e colaborativas.

Um dos principais objetivos da educação maker é proporcionar que os estudantes consigam colocar em prática os conhecimentos adquiridos em sala de aula. Para isso, precisam ser expostos a variadas possibilidades e soluções para os problemas propostos. Essa abordagem representa estratégia para modificar o processo de aprendizagem, já que promove interdisciplinaridade e oferta oportunidade de realizar avaliações diagnósticas personalizadas, por envolver os estudantes em ações pertencentes e experiências de aprendizagem.

É um equívoco pensar que para colocar a mão na massa é necessário ter um ambiente com equipamentos de alta tecnologia. É possível fazer muita coisa com a sala de aula tradicional, proporcionando um ambiente colaborativo e com atividades desplugadas. O pedagógico deve ser realizado de maneira estratégica, com olhar para o ambiente de aprendizagem, flexibilizando o currículo ao permitir que o modelo educacional seja menos teórico e mais participativo.

Maneiras diferentes de enxergar a tecnologia educacional ajudam a romper barreiras e garantem igualdade, inclusão e equidade.

A criminalização dos políticos, por Segadas Vianna

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Por Segadas Vianna – O Terra é Redonda – 21/08/202As

Jornadas de 2013 abriram as portas para a direita envergonhada

Desde a redemocratização até 2013 a direita brasileira ficava pr.ticamente isolada em dois campos: um se abrigava sob o patrimonialismo e o outro ancorado em figuras aparentemente folclóricas e histriônicas isoladas dentro da vida legislativa. E isso muda de forma radical em 2013.

Manifestações surgidas originalmente no Rio de Janeiro contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus logo se transformaram em manifestações contra o governo, evoluíram para manifestações contra “os políticos” e culminaram em incluir os partidos políticos nessa pauta.

Em pouco tempo a direita percebeu essa larga avenida que se abria para ela, onde várias características do fascismo estavam aparentes e incluiu nas manifestações a luta por um Projeto de Lei que viria a dar mais poderes aos Procuradores da República.

Com esse quadro muito vivo e pujante nascem duas outras questões que foram fundamentais nos alicerces da atual direita bolsonarista. O impedimento da presidenta Dilma Rousseff e o início da Lava Jato, dois marcos na criminalização dos políticos, em especial nos políticos da esquerda e mais especialmente nos políticos do PT.

Estava mais do que pronto o quadro para aquela direita que se ocultava ideologicamente com medo de ser tachada e estigmatizada pela esquerda e pelos libertários como ignorante e atrasada começasse a ter um orgulho doentio das posições que defendia e com o crescimento do fascismo tupiniquim, renascido verde amarelo nas manifestações contra Dilma Rousseff, como todo projeto fascista precisa da idolatria foi criada a figura do “Mito” onde o expoente da extrema direita se consolida como liderança nacional das diversas matizes da direita e investe pesadamente na fanatização das massas.

Explorando dois medos incutido no subconsciente da classe média brasileira, um vindo da formação cristã, que é “o medo do comunismo” (ainda que as massas mal saibam o que é comunismo) e o da segurança pessoal e familiar onde supostamente a esquerda apoiaria a atividade criminosa, tese criada pela direita no Rio de Janeiro nos anos 1980 para combater Leonel Brizola, a direita consegue fazer renascer o conceito de um “salvador da pátria e dos valores da família”.

Voltando às jornadas de 2013 outro fator que contribuiu de forma marcante para que o campo para a direita caminhar fosse pavimentado, de forma consciente ou não, foi a atuação de grupos de Black Blocs que teoricamente agiriam “para defender os manifestantes da brutalidade policial” e para ações anarquistas como a depredação de sedes de instituições financeiras. Estas ações que se transformaram em depredações generalizadas e ataques até mesmo a jornalistas, como o que foi vítima fatal de um explosivo, um “morteiro”, e consolidaram na população em geral medo das esquerdas.

Todo o restante, ocorrido no processo da chegada da direita, especialmente a extrema direita ao poder, nasceu, em nossa opinião, nas chamadas jornadas de julho de 2013 que foram na verdade uma espécie de Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade turbinadas e travestidas em uma versão 2.0.

E hoje a sociedade consciente deve aprender também com isso para não haver repetições ou revivals. Cabe às esquerdas aprender que não basta ganhar eleições e chegar ao poder. Que é necessário educar e informar massivamente a população sobre política de forma correta, pois essa direita que está “ferida”, mas ainda bem viva não volte a criar cenários onde ela reapareça para “salvar o Brasil”.

Segadas Vianna é jornalista.

Reforma militar, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 23/08/2023

Resumo das teses apresentadas no livro recém-lançado “O que fazer com o militar”

O militar fracassou em sua missão precípua. Em que pese o Brasil deter capacidade científica e industrial e dispor de um dos maiores orçamentos de Defesa do mundo, o militar não consegue negar os espaços territorial, marítimo, aéreo e cibernético ao desafiante medianamente preparado.

As mudanças no jeito de guerrear, a dinâmica social e o cuidado com a democracia impõem uma reforma militar. Cabe revisar o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas porque o Brasil precisa inserir-se dignamente na ordem internacional e as novas gerações devem ser poupadas das exorbitâncias do quartel.

O brasileiro não se envolve na Defesa Nacional por ser impatriota, mas porque lhe é reiteradamente passada a ideia de que essa política pública cabe exclusivamente ao militar e também porque é escaldado pelo terrorismo de Estado praticado pelos comandos militares.

Muitos admitem que as corporações devem estar subordinadas ao poder político, mas isso é impossível devido à inexistência de um corpo civil especializado e de um acervo de estudos atualizado. O Brasil precisa de uma Universidade da Defesa Nacional dirigida por um civil.

A sociedade e o Estado devem destituir o militar da condição auto-outorgada de apóstolo do patriotismo e do civismo, que afronta a cidadania, anula o espírito republicano, prepara a tirania e deixa o Brasil indefeso.

O valor do soldado não encerra “toda a esperança que um povo alcança”, como diz a canção do Exército. A reforma militar é necessária para que o soldado respeite a sociedade.

O político não pode reconhecer as corporações armadas como interlocutoras. Soldado é treinado para obedecer e mandar, não para dialogar. Comandantes precisam ser consultados sobre a Defesa, mas a sua concepção e condução cabem ao político.

Há generais e tropas em demasia. A distribuição espacial de efetivos e equipamentos é perdulária e inócua para a Defesa.

É necessário rever o serviço militar obrigatório porque a composição da tropa reproduz a iniquidade da estrutura social: aos mais pobres são reservadas as posições hierárquicas inferiores. O serviço militar, como está organizado, reproduz o legado colonial.

Cabem estudos aprofundados e planejamento para a revisão do serviço militar, que implica redimensionamento do tamanho, da estrutura, do funcionamento das corporações e em revisão da carreira militar.

A reforma militar deve atenuar o isolamento do castro. A “família militar” é uma excrescência.

Perturba a coesão dos brasileiros. O militar não pode ficar à margem da sociedade. Os deslocamentos constantes pelas guarnições não lhe permitem inserção social. A endogenia precisa ser contida. Os colégios militares representam despesas desnecessárias para a Defesa.

Adolescentes devem ser socializados em estabelecimentos civis.

É possível imprimir novos rumos às fileiras sem rupturas institucionais: cabe compatibilizá-las com a Constituição. O militar tem que respeitar o pluralismo político que fundamenta a República. Ao diabolizar a esquerda, pisa na Carta e empobrece o intercâmbio de ideias. A reforma deve eliminar seu pavor às mudanças sociais e comportamentais.

As corporações são importantes para o desenvolvimento socioeconômico. Devem ser equipadas com produtos nacionais. A proposta de Política de Defesa Nacional que tramita no Congresso Nacional propõe parcerias com potências detentoras de tecnologia avançada. É a mesma orientação nociva que prevaleceu durante o século passado e que deixou o país desprotegido.

Não há explicações aceitáveis para a elevada dependência externa do Brasil em material bélico.

Os escritórios das Forças Armadas nos Estados Unidos e na Europa precisam ser desmontados. A subalternidade ao estrangeiro poderoso esvazia a retórica da incolumidade territorial.

Sem reforma militar, não haverá Segurança Pública aceitável. Cumpre distinguir o militar do policial. Manter a ordem e combater criminalidade são missões distintas da luta contra o estrangeiro hostil.

A ideia de combate ao “inimigo interno” precisa ser extinta: alimenta o transtorno de personalidade funcional do militar e do policial. Quando o policial age como militar e o militar como policial, a sociedade fica indefesa e o potencial agressor estrangeiro beneficiado.

A noção de “inimigo interno” pressupõe a guerra civil permanente. Entre inimigos não há generosidade, mas ódio cego. Admitir a existência desse “inimigo” é excluir propensões ao agasalho, à tolerância e ao convencimento, fundamentos da comunidade nacional.

O militar deve ser liberado de tarefas que não lhe cabem. Reposições da lei e da ordem devem ser entregues à Segurança Pública. A utilização das corporações para atender demandas crônicas sugere à sociedade noção enganosa do papel do militar e impede o preparo para a Defesa Nacional.

Quem comanda os instrumentos estatais de força, controla o Estado e a sociedade. O ativismo político do militar foi reforçado pelo uso combinado de instrumento letais e não letais, configurando a “guerra híbrida”, da qual a “guerra jurídica” e as “manobras informacionais” são expedientes.

O militar não pode conduzir a Defesa porque forças de terra, ar e mar não se entendem quanto aos seus papeis. O desentrosamento é oneroso: enseja sobreposição de estruturas, em particular no ensino, pesquisa, assistência médica e produção de armas e equipamentos.

Em mãos castrenses, a formulação da Defesa Nacional será limitada em decorrência da unidade política e ideológica dos oficiais. Essa unidade nega a democracia, que tem como fundamento o pluralismo político. É uma forma de corrupção institucional.

A unidade doutrinária é necessidade para a organização, o preparo e o emprego das Forças, mas a unidade ideológica deixa o militar em confronto com a sociedade, cuja coesão passa pelo embate de ideias.

Se o leque de convicções políticas e ideológicas presente na sociedade não se refletir nas corporações, prevalecerá seu uso instrumental por uma corrente política.

O conceito “poder nacional”, disseminado pelo Pentágono e absorvido pelo militar brasileiro, mantém viva a ideologia que orientou a ditadura. Nos Estados Unidos, esse conceito remete ao exercício do mando planetário. No Brasil, ampara o autoritarismo doméstico.

Cumpre ao político deliberar sem pressão castrense sobre gastos militares. Assessorias legislativas, em matéria de Defesa, devem ser entregues ao corpo civil especializado.

Cabe suprimir a cooptação de agentes públicos e privados pelo militar por meio de concessão de medalhas corporativas.

A propaganda das Forças Armadas nos veículos de comunicação é nociva. Quando o militar disputa a simpatia popular, se confunde com o político.

Reformas sociais são indispensáveis a uma Defesa que tenha como viga mestra a coesão nacional. Disparidades de renda e de oportunidades, bem como desigualdades de desenvolvimento entre as regiões desprotegem o Brasil.

A Constituição ordena a mudança social, mas as corporações rejeitam avanços que contrariem os propósitos de suas existências, condicionem sua forma de ser e agridem as convicções ideológicas de seus integrantes.

O combate à mitologia da “união das três raças”, que tenta encobrir o extermínio dos povos originários e esconde a desumanidade da escravidão, é indispensável à uma Defesa consistente.

Vendo-se herdeiro do colonizador, o militar repele Tiradentes porque participou de seu martírio.

Proclamando-se pacificador da sociedade escravocrata, declina do papel de defensor da nacionalidade. Quem ama o colonizador odeia a pátria e semeia a desavença porque dela se abastece. Quem ama o povo brasileiro quer a inclusão de todos.

Passo decisivo da reforma militar é a reverência aos heróis brasileiros. A exaltação da brutalidade do Estado contra a sociedade expõe as Forças Armadas ao desapreço. Não faz sentido o militar glorificar a repressão enquanto a sociedade reverencia suas vítimas.

Tiradentes deve ser o farol da reforma militar. Quando o enfileirado sentir-se um vingador do mártir, a base estruturante das mudanças corporativas estará constituída. O transtorno de personalidade funcional do militar estará sendo vencido.

O Brasil não logrará desenvolvimento econômico sustentável sem abraçar os vizinhos. Não conseguirá controle sanitário nem proteção ambiental. A proteção da Amazônia será uma quimera.

As ilicitudes nas fronteiras persistirão. A Defesa brasileira será dispendiosa e frágil. O subcontinente patinará na busca de futuro promissor.

A coesão dos brasileiros, sendo a viga mestra da Defesa Nacional, a amizade com os vizinhos representa sua primeira grande escora. O militar brasileiro evita a integração sul-americana para não desagradar Washington.

Não obstante Lula ser favorável à integração sul-americana, a Política Nacional de Defesa em análise no Congresso prioriza alianças estratégicas com potências imperialistas. Os Estados Unidos não largam mão do controle do material de guerra produzido no Ocidente. A busca de cooperação com “nações mais avançadas” revela os fundamentos arcaicos da Defesa Nacional.

O Brasil é um dos poucos países em condições de dissuadir potenciais agressores a partir da construção de um sólido bloco capaz de impor respeito no tabuleiro internacional. O Brasil precisa liderar a integração sul-americana.

O militar foge da discussão sobre a Defesa Nacional. Pede mais recursos públicos com argumentos inconsistentes. As dimensões territoriais do país, o tamanho de sua população e de seu PIB não são motivos para engrossar fileiras: a capacidade de uma corporação militar pode ser inversa ao seu tamanho. Diante de mísseis hipersônicos e drones furtivos, pouco valem homens preparados para a luta corpo-a-corpo.

As premissas do planejamento do Exército brasileiro, “agilidade”, “força” e “presença” são insustentáveis e contrárias a uma Defesa Nacional consistente. Precisam ser revisadas.

A “agilidade”, pressupõe o monitoramento de potenciais ofensores, o uso da aviação de combate e de mísseis de grande alcance e velocidade. O deslocamento rápido de tropas faria sentido diante de uma ocupação territorial difícil de imaginar, por supérflua e desarrazoada.

Caso a ocupação de parte do território brasileiro seja tentada, seria inviabilizada pela interrupção de transporte aéreo e marítimo do invasor. O combatente da “selva” formado pelo

Exército passa ao contribuinte a impressão de capacidade para defender a Amazônia, mas serve essencialmente para combater brasileiros insatisfeitos e alimentar propaganda enganosa.

A premissa “força” é negada pelo emprego dos recursos destinados a Defesa. Se as Forças Armadas pretendessem demonstrar “força”, reduziriam seus gastos com pessoal em benefício da produção autônoma de armas e equipamentos avançados.

Quanto à terceira premissa, “presença”, muitos quartéis e extensas fileiras não dissuadem agressor estrangeiro. O militar precisa chegar em qualquer lugar e a qualquer hora, mas para isso precisa priorizar a Força Aérea.

Por deter grande território e extenso mar, o Estado brasileiro deveria ter menos soldados e grande capacidade aeronaval. A supremacia da Força Terrestre serve para o combate ao “inimigo interno”, não para dissuadir estrangeiro hostil.

Espero que meu livro O que fazer com o militar (Gabinete de Leitura) estimule um debate que não pode ser postergado.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

O consumismo põe em risco a vida na Terra, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 22/08/2023

Não interessam os cidadãos nem seu nível de consciência, menos ainda seus problemas existenciais. Interessa que sejam consumidores

Considerando a história humana constatamos que a fome foi, por séculos, um problema permanente. Por não termos, à diferença dos animais, nenhum órgão especializado que garantisse nossa subsistência, logo no início surgiu a urgência de buscar o necessário para matar a fome, seja extraindo o alimento diretamente da natureza, seja conquistando-o pelo trabalho.

A grande virada se deu por volta de 10 mil anos atrás com a introdução da agricultura de irrigação. Ao longo dos grandes rios do Oriente Médio, do Egito, da Índia e da China começou-se a usar a irrigação para produzir mais produtos a par de domesticar animais como a galinha, o porco, a ovelha e a cabra. Produziu-se o excedente que eliminava a fome. Simultaneamente, é preciso dizer, surgiu a guerra, pois os exércitos levavam comida suficiente para enfrentar o inimigo, como por exemplo, entre os impérios mesopotâmicos e o Egito, as potências políticas da época.

Tudo mudou com o advento da era industrial nos séculos XVII e XVIII em diante até os dias de hoje. Começou a produção em massa com a possibilidade de atender as demandas humanas. Ocorre que esse desenvolvimento técnico-científico se operou no quadro do capitalismo. Nele, desde seu início, se estabeleceu a divisão entre o proprietário, possuidor de terras e dos meios de produção e o trabalhador apenas detentor de sua força de trabalho. Essa cisão foi ao longo do tempo se exacerbando a ponto de nos dias atuais os donos das riquezas naturais e tecnológicas controlarem o sistema econômico globalizado com imensa desvantagem para os assalariados, deixando milhões e milhões sem acesso aos bens fundamentais da vida.

A situação se agravou com a assim chamada “Grande Transformação” pela qual uma economia de mercado se transformou numa sociedade só de mercado. Tudo virou mercadoria desde órgãos humanos, saberes, a verdade, a notícia etc.

A lógica capitalista é de obter lucro com tudo, mediante a exploração ilimitada dos bens e serviços da natureza, através de uma feroz competição entre todos os que estão do mercado, supostamente livre e uma acumulação individual ou corporativa que compete com o Estado na gestão da coisa pública.

A produção procura obviamente atender demandas humanas de alimentação e subsistência, desde que tal processo seja lucrativo. A própria produção é levada ao mercado e ganha seu preço no jogo da concorrência, sem o cuidado para com os recursos naturais e a contaminação do meio ambiente (considerada uma “externalidade” a ser resolvida pelo Estado). Como se trata de gerar riqueza ilimitada começou-se produzir produtos não necessários para a vida, mas importantes para fazer dinheiro.

Assim junto com o consumo necessário, surgiu o consumismo. O consumismo se caracteriza pela aquisição de bens e serviços supérfluos, não necessários para a vida, em vista do ganho econômico. Grande parte da produção se destina na produção de tais supérfluos gestando o consumismo principalmente das classes ricas, mas também da própria sociedade.

Para estimulá-lo usa-se a propaganda, as imagens falantes, os quadros sedutores, as músicas, os youtubes, os filmes bem orientados, para levar às pessoas a consumirem tal e tal produto. Não interessam os cidadãos nem seu nível de consciência, menos ainda seus problemas existenciais.

Interessa que sejam consumidores.

O fato é que se criou a cultura do capital. Grande parte dos produtos (TVs, carros, eletrodomésticos, roupas, tênis e infinitos outros itens) caem sob a obsolescência – são feitos para durar por determinado tempo, obrigando o consumidor a substituí-los, comprar e consumir.

Praticamente todos somos reféns da cultura do capital, obrigando-nos a trocar de tempos em tempos os produtos, ou porque ficaram obsoletos como um computador ou pela obsolescência geral. Sabemos da força intrínseca de uma cultura que nos entra por todos os poros e naturaliza o estilo de vida. Como é difícil e longo o processo de sua superação por outra. É a cultura consumista que continuamente renova e prolonga a perpetuidade do capitalismo.

Entretanto, nos últimos anos nos temos confrontado com os limites da Terra. Um planeta limitado não tolera um consumismo ilimitado. Já agora necessitamos de mais de uma Terra para atender o consumo de 8 bilhões de pessoas e o consumismo de fausto e de luxo das classes opulentas.

Demo-nos conta do assim chamado “Dia da Sobrecarga da Terra” (em inglês The Earth Overshoot Day). Cada ano os organismos que estudam a sustentabilidade do planeta, nos oferecem os dados. Neste ano de 2023 foi identificado no dia 2 de agosto. Isto significa que neste dia, os bens e serviços naturais, essenciais e renováveis para a nossa existência, conheceram o fundo do poço. Logicamente, as árvores, o ar, os solos e as águas estão aí. Mas todos eles cada vez mais minguados, poluídos e insustentáveis.

A Terra, um super ente sistêmico e vivo, ao não nos dar o que lhe exigimos, responde com mais aquecimento, com mais eventos extremos, com mais dizimação da biodiversidade e mais vírus danosos e até letais. A relação toda se define na articulação entre “biocapacidade” e a “pegada ecológica”. A biocapacidade significa a capacidade da natureza de ter resiliência e de se auto-regenerar. A pegada ecológica nos indica o quanto de biocapacidade aquenta aquela região ou país. Quanto mais complexa é a região, com cidades, população e indústrias tanto mais recursos naturais demanda.

Nesse momento, tão grave quanto o aumento do aquecimento global, é a rápida a sobrecarga da Terra. Nosso estilo de vida está esgotando o estoque de bens e serviços necessários para a vida. Urge mudar nosso estilo de consumo tornando-o sóbrio, solidário e autolimitado. Xi Jinping propôs para toda a China o ideal de uma “sociedade suficientemente abastecida”. Devemos aprender a viver com o suficiente e o decente, diminuir o consumo de energia e buscar meios de transporte alternativos e menos poluentes.

Se não fizermos este acordo entre todos, nossa existência nesse planeta será miserável e até impossível.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra (Vozes)

Concorrência e cooperação

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes competições entre todos os agentes econômicos, políticos e sociais, onde a concorrência se transformou na tônica da sociedade contemporânea, neste ambiente, marcado pelo incremento do individualismo, do imediatismo e na busca frenética pelos ganhos monetários, percebemos que a sociedade vem perdendo valores fundamentais para a construção de uma sociabilidade mais consistente, abandonando a solidariedade, a compaixão, a honestidade, a lealdade e a harmonia. A ausência destes valores civilizacionais está no centro das dificuldades da sociedade contemporânea, que estimula a malandragem, o ódio, o ressentimento, a exclusão e a violência que crassa a sociedade.

A estrutura produtiva estimula a competição como espaço de desenvolvimento e como forma de crescimento econômico, acreditando que a concorrência entre todos os atores econômicos faz com que a comunidade se desenvolva, as estruturas econômicas cresçam, melhorando as condições sociais e criando oportunidades para os indivíduos, garantindo novos horizontes para os seres humanos.

A competição entre os atores econômicos pode ser muito positiva para a sociedade, garantindo que todos os indivíduos mostrem todas as suas potencialidades, garantindo espaços para os crescimentos individual e coletivo. O grande problema desta concorrência constante ou deste incremento da competição nesta sociedade é que, numa comunidade altamente desigual e com a ausência de oportunidades para uma parte substancial da sociedade, esta competição crescente acaba degradando as estruturas sociais, econômicas e políticas, gerando cada vez mais exclusões, fomentando desigualdades que caracterizam a sociedade contemporânea, elevando as violências, os medos e as desesperanças.

A concorrência e a competição que caracterizam a sociedade mundial, deveriam estimular a cooperação dos agentes econômicos e sociais, levando-os a trabalharem para reduzir os desequilíbrios na sociedade global, somando esforços para combater o aquecimento global, levando as nações e as comunidades, de todas as vertentes culturais , a colaborarem para acabar com os conflitos militares que geram constrangimentos para todas as regiões, levando a milhões de mortos, destruições na infraestrutura das nações, afastando familiares e criando rancores e ressentimentos.

A globalização da economia criou novos instrumentos de integração entre as nações, o desenvolvimento da tecnologia fortaleceu os processos de interligação entre as comunidades, criando espaços de solidariedade, fortalecendo a harmonia entre as nações mas, percebemos que o crescimento desta competição desenfreada está degradando muitas nações, criando uma concorrência constante, estimulando o individualismo e as incertezas sociais, adoramos o mercado de consumo globalizado marcado por altas tecnologias disruptivas mas, ao mesmo tempo, rechaçamos as mudanças no mundo do trabalho, que fortalecem empregos temporários, com ausência de benefícios sociais e ocupações precarizadas.

A cooperação pode abrir novos horizontes para a comunidade internacional, levando as nações mais desenvolvidas a adotarem políticas de inclusão e de desenvolvimento, respeitando a sustentabilidade e o respeito ao meio ambiente, além de rejeitar os conflitos militares cujas destruições degradam as relações entre as nações, levando os países a respeitar a soberania entre os povos e apagando das memórias recentes de exploração constantes, que contribuíram na construção de um hiato crescente entre países desenvolvidos e nações paupérrimas, onde a concorrência e a competição desigual foi o instrumento para angariar seus enriquecimentos em detrimento da degradação, das desigualdades e das desesperanças entre os países que convivem perpetuamente com condições indignas.

Cooperar deve ser o verbo utilizado para a melhoria da sociedade internacional contemporânea, desta forma, poderemos construir novas bases para a sociedade mundial, onde os valores imediatistas e individualistas devem ser reescritos para os desafios do mundo contemporâneo. Os desafios são elevados e os valores prescindem, urgentemente, de cooperação, respeito e solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Criptomoedas (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Privatização não é solução para governos ruins, diz pesquisador

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Autor do recém-lançado ‘A Privatização Certa’ elenca vantagens e desvantagens, acertos e erros de venda de estatais

SÃO PAULO Ao contrário do que muita gente costuma pensar, as privatizações não são uma solução para governos ruins, afirma Sérgio Lazzarini.

Folha de São Paulo, 19/08/2023

“Se você tem um Estado corrupto e ineficiente, quando ele privatizar, vai ter corrupção na privatização, vai ter um processo não transparente, a modelagem vai ser malfeita. Não resolve”, diz ele.

Autor do recém-lançado “A Privatização Certa”, Lazzarini pesquisou teoria e prática sobre o assunto e percebeu que o debate no Brasil é contaminado por visões dogmáticas e ideológicas dos dois lados da discussão.
Em seu livro, o quadro pintado é cheio de nuances, com vantagens e desvantagens, acertos e erros, mas um denominador comum: para a privatização funcionar, é preciso haver um bom governo.

“É até engraçado, porque um livro sobre privatização fala que, nesse debate, o mais importante é um governo competente”, afirma à Folha.

Seu livro apresenta um cenário matizado a respeito de privatizações e estatais. Por que o debate público costuma ser reduzido a uma oposição simplista entre as duas posições?

Acaba tendo muita ideologia. Pessoas com uma ideologia mais libertária partem da ideia de que todo governo é ruim, então não tem muita conversa. E quem parte de uma ideia mais na linha de ativismo estatal vai na outra direção: diz que tem que preservar estatais sem nenhum questionamento; qualquer proposta de reformar estatais é carimbada como neoliberal –e fim da conversa.

O sr. afirma no livro que a pergunta certa não é se privatizar é melhor do que manter a gestão pública, mas sim quando e em que condições fazer isso. Qual é a resposta?

É até engraçado, porque um livro sobre privatização fala que, nesse debate, o mais importante é um governo competente… (risos) Mas a resposta é essa: precisa ter um governo competente.

Se pegarmos a educação, por exemplo, vai ter gente defendendo que seja tudo privatizado, que seja dado voucher para os alunos; e vai ter gente falando em aumentar o salário dos professores, enfatizar a rede pública. Só que nenhum dos dois lados considera os custos e benefícios de cada opção, nem os problemas e nem mesmo as evidências empíricas.

Então o caminho é mesmo ter um bom governo, que vai analisar a situação, vai se perguntar qual é o problema que se quer resolver, vai olhar as evidências empíricas.

E se o governo não for competente?

A má notícia é que, se o governo for ruim, privatizar ou manter a presença do Estado… As duas opções são péssimas com governo ruim. A saída é desenvolver as competências governamentais ao longo do tempo. A notícia boa é que não precisa mudar o país inteiro para isso acontecer. Podemos ter unidades governamentais muito boas em determinadas localidades.

Nos últimos anos, houve no Brasil um discurso muito comum de que a privatização é a solução para um Estado inchado, corrupto e ineficiente. Essa ideia está correta?

Se você tem um Estado corrupto e ineficiente, quando ele privatizar, vai ter corrupção na privatização, vai ter um processo não transparente, a modelagem vai ser malfeita. Não resolve. Se o governo não está fazendo um serviço bom, não é só privatizar. Se tem estatal que não está operando bem, podemos tentar fazer ela melhorar, e aí podemos comparar as alternativas.

Agora, vendo o grau de interferência nas estatais, muitas vezes eu fico deprimido com essa linha. Mas a gente tem evidências de que é possível reformar, obter avanços.

Que reformas ou leis o Brasil já aprovou que são importantes no sentido de tornar o governo mais competente e quais ainda precisam ser feitas?

Tivemos avanços institucionais interessantes, e alguns deles o pessoal está tentando destruir. A própria Lei das Estatais. Apesar de não prever privatização, ela traz melhora de governança das estatais. E, muito paradoxalmente, à medida que a estatal melhora, ela começa a fazer um contrato privado aqui e ali, sai de determinadas áreas, focaliza.

Do lado negativo, até tivemos uma lei das agências reguladoras aprovada recentemente, mas ainda estamos esperando que elas sejam reforçadas. O governo atual não dá sinais [de que vai fazer isso], porque, de novo, ideologia: as agências são vistas como instrumento neoliberal.

E não são. Na verdade, as agências reguladoras são instrumentos de governo. Elas precisam ser fortes para monitorar a qualidade de serviço.

Tem também a reforma do Estado de forma mais ampla. Muita gente coloca na linha de permitir demissão de servidores, enxugar a máquina. Eu gosto de colocar mais na linha de cobrar resultados. Está previsto que a permanência de um funcionário público é condicionada à avaliação de desempenho. Só que não regulamentamos isso.

E acho que podemos pensar num instrumento legal para a criação de unidades públicas capazes. Na linha das agências reguladoras, mas para estimular a criação de parcerias público-privadas, ou de colaboração dentro do Estado. A gente tem evidência empírica de que essas unidades ajudam na modelagem dos projetos.

É possível fazer uma comparação direta entre empresas privadas e estatais?

Isso é superdifícil. É um erro crasso, por exemplo, ver que as estatais estão perdendo dinheiro e as privadas estão ganhando dinheiro e concluir que as privadas são melhores. É um erro crasso porque elas podem ter objetivos distintos e atender públicos distintos. Dá para tentar comparar, mas precisa tomar muito cuidado.

O Brasil vive há décadas um pêndulo entre governos pró-privatização e pró-estatais. Esse vaivém atrapalha políticas de médio e longo prazo?

Acho que, para o país, é complicado. A população sofre com essas mudanças. Vem um governo atrás do outro e nenhum deixa o aprendizado fluir. Quando a gente está aprendendo alguma coisa, vem o novo governo e diz: “Não gosto porque não gosto”. E acaba.

A solução mais adequada seria ir testando. Vai ter muita heterogeneidade mesmo. Um setor tem lá uma estatal funcionando relativamente bem –vamos em frente com ela. Outro setor está muito mal e não se consegue reformar a estatal –vamos tentar uns contratos de concessão. E em outro setor podemos ter uma combinação de tudo acontecendo ao mesmo tempo.

Chamo isso de consenso plural, uma brincadeira com o Consenso de Washington. As pessoas têm que entrar nesse debate sem visões dogmáticas e pensar em resolver o problema.

Entre os modelos híbridos, as parcerias público-privadas [PPPs] e a política de campeões nacionais tiveram e têm bastante destaque no Brasil. Qual é a sua avaliação sobre ambos?

A política de PPPs está tudo bem. Ela teve um arcabouço legal bem desenhado. Inclusive o Fernando Haddad foi um dos idealizadores. Uma coisa que me preocupa, em particular, é como se está medindo o resultado desses contratos. E há inclusive a possibilidade de esses resultados, sendo medidos, modularem ou variarem o pagamento ao ator privado. Então dá para avançar.

Quanto aos campeões nacionais, teoria é que o governo pode dar um impulso em empresa privada para ela melhorar. A gente tem evidência [de que isso funciona]. Mas não o tipo de empresa que a gente apoiou [no Brasil], empresa grande.

Existem evidências mais consistentes sobre apoio para empresas menores, de tecnologia, empreendedoras, ou empresas que estão buscando projetos sociais e ambientais de maior impacto.

Muita gente fala que a Coreia do Sul apoiou empresa grande. Só que as condições lá são muito distintas. Primeiro, já tinha um sistema educacional bem desenvolvido, com muito capital humano presente. E a ação do governo com essas grandes corporações foi muito estrita, com acompanhamento. Se alguma delas não alcançasse determinados resultados, o apoio seria abortado. Isso não acontece no Brasil.

E quanto ao uso de estatais para fazer políticas além do escopo de atuação, como no caso do controle de preços via Petrobrás?

A gente precisa definir qual é o mandato da estatal, qual é o seu objetivo. Lendo a legislação da Petrobras, eu não consigo ver um mandato para controlar o preço da gasolina. Então, se o governo quer fazer isso, precisa mudar o arcabouço legal. Precisa passar pelo Congresso, precisa ter discussão pública.

Eu tenho sugerido, inclusive, que toda estatal precisa ter uma definição muito clara do seu mandato. E isso pode e deve ser feito de maneira muito democrática.

Sérgio G. Lazzarini, 52
Mestre (USP) e doutor (Universidade Washington) em administração, é professor da Ivey Business School, da Western University (Canadá) e pesquisador sênior do Insper. É autor de “A Privatização Certa”.

Com Novo PAC, voltamos ao Estado indutor do desenvolvimento, por R. Zeidan

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Não existe programa que abarque tudo; quem tudo quer fazer faz malfeito

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 19/08/2023

O primeiro PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) começou bem, mas acabou se assemelhando mais a um Programa de Aceleração da Corrupção. Dá a impressão de que vamos ter a volta de um plano que parece saído de uma cartilha intervencionista da década de 1970.

Voltamos ao Estado indutor do desenvolvimento com o Novo PAC. A ideia de loucura não é tentar a mesma coisa repetidas vezes, sabendo que não funciona?

Ainda assim, pode ser que dê certo. O que importa mesmo, e o que sempre faltou nesse tipo de programa, é algo simples: boa execução.

No Brasil, o debate sobre o Estado empreendedor é às vezes rasteiro, com gente que diz que o governo brasileiro só sabe transferir dinheiro dos pobres para os ricos e outros que afirmam que, sem o Estado, o Brasil seria só plantação de bananas. A realidade, claro, não é binária. O problema não é se o Estado é empreendedor ou não, nem muito seu tamanho, mas sim sua competência em executar seus planos de forma eficiente.

O mesmo Estado que induz uma corrida espacial que levou cachorros ao espaço e seres humanos à Lua pode criar ralos de dinheiro como refinarias inacabadas ou usinas no meio do mato para esconder gastos quase infinitos.

Que o Novo PAC em si só não é das melhores ideias, não é difícil de ver. O presidente, como bom político, parece mais preocupado com o anúncio de um pacote trilionário do que com os detalhes dos projetos em si.

Mas há esperança. Para cada excrescência do PAC Energia, existem centenas de projetos residenciais do Minha Casa, Minha Vida (que, mesmo que imperfeito, valeu a pena), que mudaram as vidas das pessoas.

Sabe aquele sujeito que diz que tem uma ideia genial mas não lhe pode contar pois você roubaria sua ideia? Ignore-o. A ideia dele não vale nada. De boas ideias o inferno está cheio.

O que importa mesmo é implementação. Basicamente, qualquer produto realmente inovador não é fruto de uma ideia genial, mas de uma capacidade única de transformar algo, muitas vezes rotineiro, em produto ou serviço fenomenal. E ideias medíocres podem ser melhores que ideias boas, se as primeiras forem bem executadas e as segundas não. Criar um Novo PAC é um plano medíocre, mas, depois de um governo com ideias estapafúrdias, vá lá.

Não dá para julgar de antemão se essas iniciativas vão prestar. O que já sabemos é que a ideia do Estado indutor do desenvolvimento no país nunca funcionou no conjunto, seja na época dos militares, seja na de Lula e de Dilma.

Alguns bons programas emergiram no meio de tantos projetos horrorosos. Se o governo Lula tomar cuidado com dinheiro público, aprovando gastos, mesmo que trilionários, baseados em projetos robustos, talvez consiga induzir
desenvolvimento. Capital humano não falta. Há muita gente no setor público com habilidades gerenciais para tocar esses projetos. Não falta gente séria que queira contribuir para um país melhor.

Claro que, se o objetivo for só eleitoreiro, de colocar dinheiro na economia rapidamente, vai dar errado. De novo. É muito melhor um PAC (uma sigla que deveria ser abandonada, por sinal) mais enxuto, com boa seleção de programas, que algo grandioso, só para colocar números grandes nas mídias sociais.

E não existe programa que abarque tudo. O Novo PAC tem nove eixos, que englobam quase tudo, de saúde e educação até inclusão digital e defesa. Quem tudo quer fazer faz malfeito. Mais uma vez?