Quem quer ser professor? por Priscilla Bacalhau

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Os que persistem na profissão apesar de todos os desincentivos enfrentam um achatamento da carreira

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

Folha de São Paulo, 04/08/2023

A carreira docente na educação básica apresenta uma contradição intrigante. Não é difícil encontrar professoras que têm verdadeira paixão pela docência e uma resiliente dedicação às escolas e aos alunos. O magistério é visto como uma missão, que é seguida heroicamente. Ao mesmo tempo, diante das inúmeras dificuldades enfrentadas, demandas crescentes e baixa valorização, um sentimento de frustração com a profissão as acompanha.

Essa contradição é um reflexo da percepção geral sobre a profissão: por mais que haja motivação intrínseca, a profissão de professor não é atrativa. Diversas pesquisas mostram que menos de 5% dos jovens estudantes do ensino médio afirmam querer ser professor. Esses estudantes que demonstram interesse em ser professor não estão entre aqueles com melhor desempenho acadêmico.

Para os demais, a baixa remuneração, pouca valorização social e planos de carreira desestruturados são fatores determinantes para essa falta de interesse na profissão.

Os poucos que decidem seguir a carreira enfrentam dificuldades na formação. Há grande evasão, em especial na área de exatas, em que 70% dos alunos desistem do curso, segundo o Inep. A grande incidência de cursos a distância é outro desafio da formação inicial dos professores. Estes cursos, de forma geral, precisam ter seus mecanismos de garantia de qualidade da formação revistos, e os estudantes acabam concluindo a licenciatura sem uma formação sólida.

Os que persistem na profissão apesar de todos os desincentivos enfrentam um achatamento da carreira, ou seja, avançam muito pouco e muito lentamente. O piso salarial, que vem aumentando desde a criação da lei do piso nacional em 2008, não é suficiente para garantir uma valorização digna das demandas da profissão, nem condições mínimas de trabalho. Além disso, nem o crescente piso salarial pode ser considerado alto quando se compara com outros profissionais de ensino superior.

Professores são o principal fator dentro dos muros da escola que afetam o aprendizado dos alunos. Portanto, diante da baixa valorização docente, não surpreende que os alunos não estejam aprendendo o suficiente, como apontam todas as avaliações de alcance nacional.

Políticas de valorização e incentivo aos professores são urgentes para tornar a carreira atrativa. Investir no corpo docente já formado é imprescindível para atrair novos jovens, pois é vendo professores motivados e valorizados que novos jovens serão engajados em seguir a carreira de professor. A profissão docente não pode ser apenas para as heroínas que insistem em seguir sua missão mesmo frente a todas as adversidades.

A era de insegurança

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade internacional, neste momento de alterações crescentes que eram vistos como sólidos e consistentes estão sendo modificados, sentimentos estão se esvaindo, modelos de negócios foram devastados, setores econômicos estão em franca decadência, relacionamentos sólidos perdem espaço e amores estão sendo cada vez mais vistos como líquidos, como diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, gerando incertezas, instabilidades e depressões constantes.

Neste ambiente, percebemos que vivemos numa sociedade marcada por grandes inseguranças, as transformações do mundo do trabalho estão gerando medos crescentes, desesperanças e conflitos internos, culminando em depressões, ansiedades e fortes instabilidades emocionais.

Estamos vislumbrando uma sociedade marcada por poucas certezas e grandes incertezas, dominadas por sensações de medo e de desesperança, que crescem em todas as regiões do mundo, anteriormente as inseguranças eram normais nos países pobres e miseráveis, na contemporaneidade, essa sensação se espalhou também para todas as nações desenvolvidas. Neste cenário centrado em desajustes elevados, carecemos de proteção e de segurança, com isso, os medos contemporâneos nos levam a abraçar ideias salvadoras, filosofias religiosas pouco confiáveis, abraçando informações falsas, equivocadas e espalhando fake news, desta forma, nossos medos se tornam cada vez mais patológicos, mais degradantes e com potencial de criar conflitos maiores, com polarizações políticas e graves constrangimentos para a vivência e a convivência em sociedade.

As grandes transformações na economia internacional, que culminaram na globalização da economia, responsável pelo aumento da competição e pelo incremento da concorrência, estas rápidas alterações estão fragilizando os valores humanistas, degradando a ética, reduzindo a solidariedade, o respeito, a cooperação entre os cidadãos e a responsabilidade social e ambiental. Dessa forma, o incremento da insegurança está dominando a sociedade contemporânea, transformando os indivíduos em pessoas cada vez mais individualistas, que se preocupam única e exclusivamente por defender seus interesses imediatos, olhando seus ganhos monetários e financeiros e, desta forma, contribuindo ativamente para a degradação dos laços sociais, criando uma verdadeira guerra de todos contra todos.

Vivemos amedrontados com os conflitos militares que espalharam na sociedade internacional, tememos os fenômenos naturais, as catástrofes geradas pela pandemia, os receios do desemprego, do terrorismo e das exclusões do cotidiano. Como consequência, intensificamos nossa qualificação profissional, buscando atualizações e capacitações cotidianas, nos fechando em casas e residências fortemente equipadas, com sistemas de segurança, câmeras sofisticadas e filmagens em todos os locais, mesmo assim, a sensação de insegurança é crescente e nos levam a grandes constrangimentos.

Nessa sociedade marcada pela insegurança, os laços sociais se reduzem, os vínculos humanos estão em constantes fragilizações, os relacionamentos amorosos estão em franca degradação, os amores são líquidos e não criam vínculos mais consistentes, os indivíduos querem apenas relacionamentos rápidos e prazeres imediatos, com isso, percebemos na sociedade contemporânea uma fuga crescente de relacionamentos mais sólidos e consistentes, para alguns especialistas ao criarmos vínculos com outras pessoas, corremos o risco de se decepcionar, podendo gerar constrangimentos íntimos, ansiedades e depressões.

As razões destas degradações da sociedade são variadas e seus impactos são elevados e geram fortes constrangimentos para todos os indivíduos, as alterações geradas pela tecnologia da informação estão motivando muitas destas transformações, que estão reconfigurando o mercado de trabalho e trazendo graves mudanças no mundo do trabalho e, ao mesmo tempo, as redes sociais ou antissociais criam a sensação de que estamos cercados de amigos e seguidores, ledo engano, somos cada vez mais monitorados, sem privacidade, atolados em dívidas, trabalhando cada vez mais, estamos na era da insegurança e da degradação da saúde física, mental e espiritual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Livro premiado conta como China comunista fez transição à economia de mercado

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Isabella Weber evita velho erro de pensar o Estado chinês como monolito e explicita a luta política da burocracia

Isabela Nogueira, Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 29/07/2023

Os contrastes são gritantes. De um lado, a transição da União Soviética para a Rússia foi guiada pelo receituário da chamada terapia de choque —rápida desregulamentação de preços, liberalização de capitais e privatização em massa—, levando a uma hecatombe econômica de curto prazo e a uma desindustrialização continuada no longo prazo.

De outro, a China comunista fez sua transição para uma economia de mercado de maneira controlada e gradual, com o Estado se mantendo firme nos setores estratégicos da economia. Os resultados, enfim, ninguém precisa dizer o que a China representa hoje para a economia mundial.

Esse é o pano de fundo da pergunta que a economista alemã Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, faz em “Como a China Escapou da Terapia de Choque”, uma obra premiada que acaba de ser lançada em português pela Boitempo.

Engana-se quem pensa que este é um livro apenas sobre os anos 1980. Trata-se de uma obra sobre as bases intelectuais em torno da formulação de políticas econômicas na China. E com desdobramentos que tornaram Weber uma das economistas mais importantes no debate atual sobre inflação no mundo.

Ao contrário do mito de que a China seria um Estado monolítico, um ente racional e guiado pelo Partido Comunista de maneira unitária, Weber destrincha os debates ferozes entre formuladores de políticas públicas sobre como conduzir a transição chinesa rumo a uma economia de mercado. É uma rigorosa pesquisa empírica, baseada em 51 entrevistas com fontes chinesas (e algumas internacionais) e fontes primárias não publicadas.

Weber mostra como o pensamento neoliberal penetrou na China ao longo dos anos 1980 e, em dois momentos, quase venceu a luta política dentro do Partido Comunista por reformas tipo “big bang”.

Essa visão defendia que a liberalização de preços deveria ser rápida, causando uma dor de curto prazo e evitando uma dor de longo prazo, e teria que ser acompanhada de forte ajuste fiscal e aperto monetário para evitar uma espiral inflacionária. Compunham esse grupo os economistas de inspiração neoclássica, muitos baseados nas teorias de “rent-seeking”, que argumentavam que o sistema de controle de preços em vigor seria uma distorção que deveria ser abolida rapidamente.

Eles se baseavam no sucesso internacional de Milton Friedman e nos modelos matemáticos em busca de preços de equilíbrio.

O próprio Deng Xiaoping, principal líder no período, teria se transformado em um defensor da terapia de choque durante uma curta fase em 1988. Isso levou a uma disparada inflacionária e as políticas de liberalização foram rapidamente revertidas, mas o embrião para a revolta social que eclodiu em 1989 estava implantado.

Do outro lado da disputa política estava um grupo de burocratas que defendia o que a autora chama de “gradualismo experimental”. Em vez de um modelo teoricamente derivado, o novo sistema deveria ser induzido por meio da experimentação e da pesquisa empírica.

Essa é a essência do pragmatismo chinês: no caso da reforma, só poderiam ser liberalizadas as partes da economia que não fossem essenciais para o controle de preços. O objetivo seria ampliar os mercados gradualmente, pelas margens, sem abrir mão do controle pelo Estado de tudo que fosse considerado essencial.

Em resumo, o que esse grupo defendia era que o excesso de demanda agregada não deveria ser resolvido por meio da sua supressão (austeridade fiscal e aperto monetário), mas por meio de um aumento expressivo da oferta. A escassez deveria ser gerida em nível setorial, mantendo a gestão estatal em energia e commodities essenciais. E o foco seria industrializar rapidamente o país.

Qual a base intelectual desse grupo? A resposta, segundo Weber, está na história e no método.
A autora mostra como os debates sobre temas básicos da economia política são parte da civilização chinesa há 2.000 anos. Ela revê textos antigos como o “Guanzi” e argumenta que a responsabilidade do Estado por disciplinar mercados e estabilizar os preços dos grãos para evitar convulsão social é uma preocupação constante dos tempos imperais.

Do ponto de vista do método, em todos esses textos ela encontra a necessidade de estudar relações econômicas de maneira concreta e adaptar as políticas públicas de maneira experimental.

O pragmatismo seria, enfim, congruente com uma longa linha de pensamento tradicional.

A autora ressalta que não está buscando uma explicação sinocêntrica baseada exclusivamente na experiência civilizacional. Burocratas dos anos 1980 também se debruçaram sobre vários outros casos, inclusive Brasil e América Latina.

Lições essenciais teriam vindo dos Estados Unidos e das experiências de estabilização de preços em países ocidentais no imediato pós-Segunda Guerra. E da própria experiência de sucesso do Partido Comunista no controle de preços assim que tomaram o poder, em 1949.

Weber entrega uma narrativa institucionalista sobre o sucesso do modelo econômico chinês que não incorre no velho erro de pensar o Estado enquanto um monolito.

Ela explicita a luta política da burocracia, reconstruindo o papel central de figuras como Zhao Ziyang, ex-secretário geral do Partido que morreu em prisão domiciliar após tentativa de evitar o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Por conta da censura à história de Zhao, o livro está, ironicamente, tendo dificuldades para ser publicado na China continental.

Daí deriva o principal limite da obra de Weber. O Estado chinês não chega a ser propriamente caracterizado e é retratado como insulado das forças sociais, como no velho institucionalismo.

As relações sociais imbricadas com o poder político surgem como sombras difusas na narrativa.
Weber remete a um Estado sem forma social, com uma burocracia que aparece de maneira independente das forças produtivas. Tudo em uma sociedade que está transformando suas relações de produção e de propriedade e criando novos capitalistas na velocidade da luz.

COMO A CHINA ESCAPOU DA TERAPIA DE CHOQUE
Preço R$ 97 (472 págs.) Autoria Isabella M. Weber Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes

Big Techs e Educação: o fim do professor? por vários autores.

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Corporações prometem customizar ensino e fazer da educação um game. Por trás do marketing, a cartilha neoliberal: privatizar sistemas públicos via plataformas, forjar o aluno-consumidor e reduzir o docente a um mero operador da tecnologia

Por Antonio Lovato Sagrado, Amanda Aliende e Enric Prats Gil – Outras Palavras – 26/07/2023

A erosão da profissão docente é um fenômeno que vem se desenvolvendo há décadas, principalmente com a aceleração do capitalismo, e é um tema que já vem sendo discutido na Academia e na mídia.

Diversas transformações nas últimas décadas vêm determinando diretamente mudanças nos papéis dos professores, algumas diretamente educacionais (como a universalização da educação básica e a ampliação da influência de organismos internacionais nas políticas educacionais nacionais) e outras socioeconômicas (como a globalização ou a rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e a expansão de seu uso no dia-a-dia).

Atualmente, neste contexto, as fundações filantrópicas com alcance global estão adquirindo um papel especial na formação de docentes e na formação dos papéis dos professores. Tendem a promover um discurso sobre a (in)eficiência da escola e dos professores, o que favorece a sua entrada nas escolas públicas, incorporando no dia-a-dia escolar tecnologias educativas que eles próprios desenvolvem e financiam, como as plataformas digitais na educação.

Este artigo argumenta que as corporações de tecnologia estão moldando um novo docente. Para isso, fazemos uma leitura sobre pedagogia seduzida pelo mercado, apresentamos brevemente duas das grandes plataformas digitais que estão entrando na sala de aula (Byju’s e Khan Academy) e analisamos como esse processo afeta a reconfiguração dos professores.

A pedagogia seduzida pelo mercado

Compreender as incursões no mundo educacional do mercado e da ideologia neoliberal é fundamental para refletir sobre os impactos e as mudanças que são promovidas no campo da pedagogia. Um dos argumentos que sustenta a entrada das plataformas digitais na educação é a suposta necessidade de personalizar as trajetórias de aprendizagem de cada estudante.

A personalização visa oferecer serviços educacionais sob medida para que cada aluno-consumidor possa alcançar uma experiência de aprendizagem adaptativa (adaptative learning). Isso requer o uso de algoritmos, mineração de dados, análise de aprendizado e inteligência artificial (IA).

Algumas das ferramentas que foram criadas nesse sentido são: a customização dos módulos de aprendizagem, o alinhamento dos conteúdos que cada aluno deve trabalhar com base em suas necessidades específicas e o uso de chatbots, que incentivam, interagem e fornecem feedbacks imediatos aos estudantes sobre seu desempenho e seu nível de avanços, através de uma comunicação em linguagem natural, mantendo os alunos envolvidos em diferentes níveis.

A personalização pode ser expandida com novas contribuições da IA. Isso permite a extração e processamento de uma quantidade muito elevada de dados, o que possibilita, entre outros aspectos, a tomada de decisões com base em um maior número de elementos. Por meio dos últimos avanços em IA, as plataformas aprenderão, por exemplo, o que cada aluno mais ou menos desenvolveu em seu processo de aprendizagem e, com base nas informações de milhares de outros alunos, saberão prontamente qual conteúdo oferecer. Ainda assim, até o momento, a tecnologia desenvolvida é incipiente. No entanto, todas as decisões baseadas em dados respondem a uma lógica de eficiência escolar que não é necessariamente uma lógica pedagógica.

Junto a isso, a política de marketing das plataformas digitais na educação é bastante agressiva, embora aparentemente amigável. Seu interesse em seduzir a clientela é detectado no uso de imagens de jovens sorridentes de diferentes origens étnicas e culturais, bem como famílias heterossexuais felizes, com textos sempre muito positivos e depoimentos de usuários e especialistas, destacando valores supostamente universalizáveis do mainstream neoliberal, como equidade, inclusão e diversidade. Essas plataformas são populares entre quem estuda em casa e têm grande potencial de mercado na América Latina, refletido em seu uso generalizado em diferentes países do continente, bem como nas estratégias de marketing que oferecem para sua adaptabilidade aos diferentes idiomas.

As plataformas digitais na educação tendem a ampliar lógicas narrativas que se sustentam na possibilidade de romper com o ensino tradicional e o modelo classes de aulas, incorporando novos valores e ensinando as habilidades necessárias no século XXI. Argumenta-se que isso permitiria, finalmente, aproximar ensino e entretenimento, garantindo melhores resultados educacionais. Há uma década, Gingrich (2014) já encorajava que projetos pioneiros como Khan Academy e Coursera, hoje amplamente difundidos, seriam mais parecidos com a Netflix do que com as antigas lousas.

As empresas digitais globais que atuam nessa área tiveram um crescimento espetacular na última década, oferecendo produtos e serviços de alta qualidade gráfica por meio de plataformas digitais, incluindo conteúdo educativos para educandos, suas famílias, professores, escolas e outras empresas. Seus negócios incluem um longo repertório de fórmulas voltadas para um público amplo e diversificado. Os efeitos pedagógicos desses produtos já estão sendo estudados, e parte do setor educacional parece defender uma incorporação acrítica devido à suposta eficiência das plataformas para oferecer conteúdo.

O que é certo é que esse número crescente de ferramentas está sendo desenvolvido em um contexto de mercado com alto potencial de lucro. O modelo típico é o das EdTechs: empresas de base tecnológica em rápido crescimento (startups) que se desenvolvem no campo das tecnologias educacionais. O capitalismo digital entrou fortemente pela mão das empresas EdTech, que começam a ser difíceis de mapear (Saura, 2021; Williamson & Hogan, 2020).

Big Tech ou gigantes tecnológicos é uma categoria analítica que se refere às corporações mais importantes do mundo, que operam por meio da monopolização de serviços e, portanto, têm avançado na configuração dos futuros digitais dos sistemas educacionais. É importante diferenciar entre os gigantes da tecnologia dos EUA (Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) e os baseados na China (Alibaba, Baidu, Huawei ou Tencent). É comum que esses atores políticos privados atuem pela lógica da expansão global para moldar visões cada vez mais simplistas e populistas da IA, e o fazem apresentando a IA como um avanço democrático orientado para a justiça social, como exemplificado pela aliança entre Microsoft e Abra AI 1 . (Saura, 2023: 3)

Segundo o Holon IQ, os fundos de investimento investiram US$ 10,6 bilhões em empresas em 2022, 49% a menos que em 2021. Apesar disso, o investimento aumentou 14 vezes em 12 anos e essas empresas têm alta incidência em todas as facetas do processo educacional, desde o desenvolvimento de materiais didáticos para formação de professores e substituição do ensino universitário em formatos digitais.

Empresas como a estadunidense Age of Learning ou a chinesa 17zuoye disputam esse mercado e têm captado investimentos de grande escala. Além da disputa com o mercado editorial tradicional, o campo da personalização na educação faz fronteira com aplicações de mineração de dados e de análise de dados de aprendizagem (learning analytics application), que possuem alto potencial lucrativo:

(…) a adoção contínua de inteligência artificial na educação regular ao longo da década de 2020 lançará a datificação em uma escala sem precedentes. É inegável que todas essas formas díspares de inteligência artificial (do aprendizado profundo à IA generativa) estão famintas por dados.

Na vanguarda da extração de dados de ambientes educacionais estarão os provedores de plataformas digitais, para quem os dados do usuário são seu ativo mais valioso (Selwyn et al., 2020: 2, tradução nossa).

Ao lado das grandes empresas, existem também unicórnios tecnológicos educacionais que usam imaginários baseados em uma visão tecnosolucionista que oferece soluções tecnocráticas para problemas sociais e dissemina imagens de progresso e modernidade para justificar suas operações (Saura, 2023). Esses imaginários do futuro estão ligados à abertura de novos mercados financeiros.

Como exemplo, podemos destacar que a EdTech indiana Byju’s foi a patrocinadora oficial da Copa do Mundo FIFA no Catar 2022 2. Empresas como essa não são mais apenas unicórnios, mas “decacornios” (Williamson, 2022), já que estão avaliadas nos mercados financeiros acima de 10 trilhões de dólares. A plataforma Crunchbase (s.f.), especializada em monitorar e fornecer informações sobre o ecossistema de investimentos em empresas globalmente, informa que a Byju’s arrecadou mais de 5,5 bilhões de dólares desde sua fundação em 2015. A empresa desenvolve tecnologia educacional para aprendizagem personalizada para crianças e tem mais de 150 milhões de alunos em mais de 100 países (Byju’s, s.f.). Em seu site 4 eles são apresentados da seguinte forma:

A Byju’s torna o aprendizado envolvente e eficaz, aproveitando a pedagogia e a tecnologia de ponta. Com ofertas que vão desde cursos adaptativos de autoestudo em aplicativos e na web até aulas personalizadas individuais com professores especializados para idades de 4 a 18 anos ou mais, temos programas para todos os alunos.

Outra empresa que movimenta quantidades significativas de recursos é a Khan Academy. A lista de doadores e aliados da empresa é poderosa: alguns deles aparecem na lista da Forbes, como Carlos Slim, Bill Gates, Scott Cook, Jorge Lemann e Susan McCaw. Além disso, conta com conselheiros e assessores, gurus e policymakers ligados ao campo educacional e promotores de visões e estratégias de larga escala.

A Khan Academy se apresenta como uma empresa sem fins lucrativos 5 e opera na modalidade B2C (sigla em inglês para Business to Consumer ou de empresa a cliente). O que em seus primórdios, em 2006, eram videotutoriais de algumas disciplinas, elaborados e realizados por seu próprio fundador, Salman Khan 6/, hoje é uma complexa plataforma de aprendizagem personalizada que opera com poderosas ferramentas de IA. É focada nas disciplinas básicas obrigatórias e não obrigatórias, e também se concentra no ensino superior: matemática, ciências, programação de computadores, línguas e leitura, artes e humanidades, economia e até habilidades para a vida, como segurança na internet, financiamento ou apoio ao ingresso em universidades e, mais recentemente, a saúde e medicina. Propõe realizar um desafio de grande escala: oferecer uma educação gratuita e global.

Com o discurso sedutor e eficiente de for every student, every classroom. Real results, a plataforma propõe acompanhar o aluno na resolução dos seus problemas acadêmicos com uma metodologia própria que se apresenta como muito eficaz e efetiva. A Khan Academy argumenta que funciona porque incentiva o domínio do conteúdo: os alunos aprendem em seu próprio ritmo, primeiro identificando seus déficits e depois acelerando o processo.

A plataforma também oferece treinamento de professores na metodologia “aprendizado para o domínio”, que escalona o processo em quatro níveis (tentativa, familiar, competente e dominado): o papel do professor é selecionar o assunto e verificar o alcance dos marcos de aprendizagem . Além disso, a conexão com o Google Classroom permite a comunicação direta com alunos e famílias, e a plataforma alerta sobre riscos jurídicos para menores. A Khan Academy defende consistentemente o ensino à distância, e isso a sintoniza com as famílias que ensinam em casa, tornando essas famílias alguns de seus principais usuários.

Os últimos avanços da Khan Academy incluem a incorporação do ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com os alunos em linguagem natural, recriando a experiência de um professor humano. A tecnologia também trabalha com os professores, gerenciando e preparando cronogramas de ensino e corrigindo as respostas dos alunos.

A plataforma oferece a cada aluno a experiência de um tutor humano, concentra conteúdos educacionais supostamente de alta qualidade, media o processo de aprendizagem e personaliza a trajetória de cada aluno de forma gamificada e viciante. Não há como competir com a capacidade de processamento de dados da plataforma, então entende-se que a Khan Academy conhecerá o processo de desenvolvimento de conteúdo de cada aluno muito melhor do que um professor.

A reconfiguração docente

No contexto da incorporação de plataformas como a Khan Academy às instituições de ensino, a função docente é fortemente afetada. Um professor que atue mais como auxiliar das plataformas do que como personagem central no acompanhamento do desenvolvimento do aluno parece ser o objetivo final dessas plataformas. Nesse contexto, o que se busca é que o estável e o imutável seja o serviço oferecido pelas plataformas; o professor seria cada vez mais secundário e facilmente substituível.

Os imaginários históricos sobre a função docente deixam de fazer sentido neste novo cenário. O professor não é mais a fonte de informação, conteúdo e conhecimento; não é quem desenvolve ou seleciona os materiais didáticos; nem é quem expõe o conteúdo, oferece exemplos e tira dúvidas do dia a dia. O currículo passou a ser desenhado por plataformas com alcance global, e não é mais uma pessoa que conhece os alunos e seu contexto o suficiente para tomar decisões sobre como avançar em sala de aula para reduzir as desigualdades.

No entanto, a introdução das tecnologias digitais na educação intensificou a carga de trabalho docente e fortaleceu os mecanismos de controle externo e de autocontrole interno. “(…) Por meio de todas essas mudanças, está sendo gerada a expressão máxima da subjetividade neoliberal digitalizada. O professor, que se acredita livre, se autoexplora e se autocontrola sem as limitações do plano analógico.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28). A gestão de todos esses dados gera um novo controle da função docente. “O papel tinha um limite. Os dígitos, no entanto, são infinitos.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28).

A privatização educacional digital por meio de plataformas hegemônicas como Google e Microsoft cria um solucionismo tecnológico que os professores devem atender. Essas corporações também oferecem formação, certificados e prêmios para os docentes inovadores, o que faz com que os professores que se adaptam ao seu discurso criem “inovações” e valorizem sua nova personalidade digital certificada. Desta forma, contribuem para a tecnocratização da educação e a desprofissionalização dos docentes (Saura, Cancela e Parcerisa 2023: 28).

As consequências das tecnologias digitais são imprevisíveis e dificultam o mapeamento dos atores da educação global. Isso causa uma pressão adicional sobre a função docente, que se desgasta devido à deterioração das três funções básicas (qualificação, socialização e subjetivação) propostas por Gert Biesta (2015). A abordagem de Biesta destaca que a nota não é apenas atribuir um número, mas que os alunos entendam o significado do conhecimento que é transmitido. A socialização implica a capacidade de encontrar um significado local e particular na aprendizagem, que pode ser afetado pelas barreiras impostas pelo campo digital. Por fim, a subjetivação implica que os jovens se considerem como indivíduos particulares, algo que a abordagem globalista e digital não atende. Esta deterioração tem um acentuado sotaque cultural e anula o filtro necessário do professor nas três áreas referidas, tendo efeitos perversos nos educandos.

A erosão digital na educação implica que o professor perca ou desvalorize alguns dos seus papéis e tarefas. A sua participação no planeamento, implementação e avaliação da aprendizagem é diminuída, a sua decisão sobre o currículo é anulada e a realidade das condições em que o ensino decorre é omitida. Além disso, sua figura de pesquisador desaparece e a essência da escola é subsumida pelo aprender por aprender, sem a necessidade de recorrer ao significado dessa aprendizagem.

Considerações finais

Esse processo de incorporação das EdTechs nas instituições de ensino e a configuração de uma nova função docente vem ocorrendo há anos. Na América Latina, por exemplo, existe um conglomerado de empresas que está atuando para se inserir nas escolas públicas e assumindo todos os riscos: a Samsung financia salas de aula tecnológicas 6 que poderão receber produtos educacionais da Khan Academy e de outras empresas. Mas em decorrência da pandemia de covid-19, a presença de agentes comerciais privados na educação ampliou-se ainda mais e eles defenderam a necessidade da manutenção de um mínimo de cotidiano escolar (sem que se considere, neste discurso, o gap tecnológico).

Este movimento tem causado tensões que afetam os objetivos, conteúdos e habilidades da educação.

Isso corrói o controle democrático delegado ao docente, deteriora sua figura e reduz seu papel como ator social, o que acarreta uma perda da “comunidade simbólica idealizada” (Sennett, 2000).

Nesse sentido, é importante destacar que a figura do docente é fundamental para garantir o acesso a uma educação de qualidade e equitativa para todos os alunos. Por isso é fundamental proteger o trabalho do professor como agente público e como mediador entre os alunos e o conhecimento. Num contexto em que a educação é cada vez mais influenciada por agentes comerciais privados, o papel do professor torna-se ainda mais importante enquanto defensor dos valores democráticos e da justiça social. Portanto, é fundamental que mais atenção seja dada à proteção do controle democrático da educação e do trabalho do docente nela, para garantir uma educação de qualidade e equitativa para todos os estudantes.

Os senhores da morte, por Vera Iaconelli.

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O filme ‘Oppenheimer’ faz o espectador experimentar uma profunda tristeza reflexiva

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 25/07/2023

Freud não tinha razões para se iludir com a natureza humana. Três de seus filhos participaram da Primeira Guerra Mundial, na qual perdeu um sobrinho. Ele só escapou da perseguição nazista que antecedeu o segundo conflito mundial por obra e graça de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e psicanalista.

Ele sentiu na pele a derrocada da pretensão civilizatória iluminista, que projetava os horrores da humanidade nos outros: basicamente nos povos originários a serem colonizados com a justificativa de que seriam selvagens. Mas quando as guerras se deram entre irmãos europeus ficou mais difícil sustentar a retórica eurocêntrica. Como se sabe, nos olhos dos outros, pimenta é colírio. A lavagem cerebral colonial é tão persistente que ainda existe quem se espante com a guerra na Ucrânia como se conflitos bélicos fossem coisa do sul global.

Freud foi mais longe, para desconsolo dos otimistas de plantão, e disse que o mal-estar na cultura é resultado do próprio processo civilizatório. A exigência de que renunciemos a parte de nossas satisfações pulsionais sempre cobra a fatura. Sua falta, por outro lado, é a barbárie. Ruim com, pior sem. Nos resta identificar como se apresenta o mal-estar de cada época para buscarmos as melhores formas de enfrentá-lo.

Mas a humanidade também é capaz de prodígios de criação que embalam nossa imaginação e engrandecem nosso espírito. Goethe, Shakespeare e Cervantes eram faróis a inspirar Freud em busca de valor na combalida humanidade.

Os grandes criadores da humanidade têm gana por aprender, resolver problemas, criar e receber o reconhecimento devido, o que os leva a um ciclo de angústia e satisfação. O prazer da descoberta, o reconhecimento social e o poder — financeiro e político — seduzem a ponto de ofuscar o interesse pelas consequências. Se algo espetacular pode ser criado, por que deveríamos nos importar com os efeitos da criação, a glória não justificaria tudo?

Atendi descendentes das vítimas da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em mais de uma ocasião. Ouvi os relatos de sofrimento e adoecimento psíquico de familiares de sobreviventes, pais e avôs que, quando crianças, assistiram a vizinhos falecerem na sua porta sem que pudessem socorrê-los. Herdaram também riscos consideráveis de produzirem câncer em decorrência da radiação.

É uma geração que viu o esplendor de nossas capacidades intelectuais e imaginativas serem usadas para construir a maior expressão da violência humana até então. Como Primo Levi. que tentou em vão comunicar a máquina de desumanização criada pelos nazistas, também essas vítimas tentam nomear o inominável da experiência de aniquilação anônima e programática de um ser humano por outro.

O que mais se pode falar sobre tamanha tragédia, que fará 78 anos no próximo dia 6 de agosto?

O filme “Oppenheimer”, sobre o pai da bomba atômica, tenta uma abordagem. O ator Cillian Murphy sustenta magistralmente um personagem no qual convivem genialidade, lealdade para com os seus e incapacidade de se colocar no lugar das vítimas de sua criação até que seja tarde demais — e talvez nem assim, pelo potencial psicotizante. O autor da bomba não está só, logicamente. Uma empreitada dessas é sempre uma ação coletiva e gigantesca, como foi a escravidão e o holocausto.

Christopher Nolan, diretor dessa obra-prima, não dá ao espectador direito à catarse, fazendo-o experimentar uma profunda tristeza que o acompanha durante e depois da sessão. Como nas melhores obras, essa tristeza não vai sem angústia e reflexão.

Filme obrigatório para aqueles que insistem em encarar a ciência como um brinquedo lucrativo e cujas consequências negligenciam acintosamente.

Por que o capital está deixando os EUA? por Richard D. Wolff

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Richard D. Wolff – A Terra é Redonda – 24/07/2023

O capitalismo avançou, abandonando seus antigos centros e, assim, empurrando os seus problemas e as suas divisões para crises cada vez maiores.

No início, o capitalismo norte-americano estava centrado na Nova Inglaterra. Depois de algum tempo, a busca pelo lucro levou muitos capitalistas a deixar aquela área e se transferirem para Nova York e para os estados do meio do Atlântico. Grande parte da Nova Inglaterra ficou com fábricas abandonadas e cidades deprimidas – o que é evidente até hoje. Eventualmente, os empregadores se mudaram novamente, abandonando Nova York e o meio do Atlântico para o Meio-Oeste.

A mesma história foi se repetindo à medida que o centro do capitalismo se deslocava para o Extremo Oeste, o Sul e o Sudoeste. Termos descritivos como “cinturão da ferrugem”, “desindustrialização” e “deserto manufatureiro” se aplicavam cada vez mais a espaços antes habitados pelo capitalismo norte-americano.

Enquanto os movimentos do capitalismo permaneceram principalmente dentro dos EUA, os alarmes levantados por suas vítimas abandonadas permaneceram regionais, não se tornando ainda uma questão nacional. Nas últimas décadas, no entanto, muitos capitalistas transferiram as instalações de produção e os novos investimentos para fora dos EUA, para outros países, especialmente para a China. Controvérsias e alarmes contínuos cercam agora esse êxodo capitalista. Mesmo os célebres setores de alta tecnologia, sem dúvida o único centro robusto remanescente do capitalismo dos EUA, investiram pesadamente em outros lugares.

Desde a década de 1970, os salários eram muito mais baixos no exterior e os mercados também cresciam mais rápido por lá. Cada vez mais capitalistas americanos tiveram que sair ou correr o risco de perder sua vantagem competitiva sobre aqueles capitalistas (europeus e japoneses, bem como os EUA) que haviam partido mais cedo para a China e estavam obtendo taxas de lucro incrivelmente melhores. Além da China, outros países asiáticos, sul-americanos e africanos também forneceram incentivos de baixos salários e mercados em crescimento, o que acabou atraindo capitalistas americanos, assim como outros, para transferirem os seus investimentos para lá.

Os lucros obtidos por esses movimentos do capital estimularam mais movimentos. O aumento dos lucros fez a subir os mercados de ações dos EUA e produziu grandes ganhos em renda e riqueza para alguns. Isso beneficiou principalmente os já ricos acionistas corporativos e altos executivos corporativos. Eles, por sua vez, promoveram e financiaram a formulação de ideologias, segundo as quais o abandono do capitalismo dos EUA foi, na verdade, um grande ganho para a sociedade americana como um todo.

Essas afirmações, categorizadas sob os títulos de “neoliberalismo” e “globalização”, serviam perfeitamente para esconder ou obscurecer um fato-chave: lucros mais altos principalmente para os poucos mais ricos era o principal objetivo e o resultado do abandono dos EUA pelo capital sempre ganancioso.

O neoliberalismo era uma nova versão de uma velha teoria econômica que justificava as “escolhas livres” dos capitalistas como o meio necessário para alcançar a eficiência ótima para economias inteiras. De acordo com a visão neoliberal, os governos devem minimizar qualquer regulação ou outra interferência nas decisões orientadas pelo lucro dos capitalistas.

O neoliberalismo celebrava a “globalização”, seu nome preferido para a escolha dos capitalistas de transferir especificamente a produção para o exterior. Dizia-se que a “livre escolha” permitia uma produção “mais eficiente” de bens e serviços, porque os capitalistas poderiam explorar recursos de origem global. As linhas de força que fluíam das exaltações do neoliberalismo, das escolhas livres dos capitalistas e da globalização, era que todos os cidadãos se beneficiam quando o capitalismo avançava. Com exceção de alguns dissidentes (incluindo alguns sindicatos), políticos oportunistas, meios de comunicação de massa e acadêmicos auto-interessados em grande parte se juntaram à intensa torcida pela globalização neoliberal do capitalismo.

As consequências econômicas do movimento do capital impulsionado pelo lucro para fora de seus antigos centros (Europa Ocidental, América do Norte e Japão) trouxeram o capitalismo para sua crise atual. Primeiro, os salários reais estagnaram nos antigos centros. Os empregadores que podiam exportar empregos (especialmente na manufatura) o fizeram. Empregadores que não podiam (especialmente nos setores de serviços) procuraram automatizá-los.

À medida que as oportunidades de emprego nos EUA pararam de aumentar, os salários também pararam de crescer. Desde que a globalização e a automação impulsionaram os lucros das empresas e os mercados de ações, enquanto os salários estagnaram, os velhos centros do capitalismo exibiram um aumento extremo das diferenças de renda e riqueza. O aprofundamento das divisões sociais se seguiu e culminou na crise do capitalismo agora.

Em segundo lugar, ao contrário de muitos outros países pobres, a China possuía a ideologia e a organização para garantir que os investimentos feitos pelos capitalistas servissem ao seu próprio plano de desenvolvimento; ora, essa foi a estratégia econômica da China. A China exigia o compartilhamento das tecnologias avançadas dos capitalistas entrantes (em troca do acesso desses capitalistas à mão de obra chinesa de baixos salários e à rápida expansão dos mercados chineses).

Os capitalistas que entravam nos mercados de Pequim também eram obrigados a facilitar parcerias entre produtores chineses e canais de distribuição em seus países de origem. A estratégia da China de priorizar as exportações significava que precisava garantir o acesso aos sistemas de distribuição (e, portanto, às redes de distribuição controladas por capitalistas) em seus mercados-alvo. Parcerias mutuamente lucrativas foram desenvolvidas entre a China e alguns distribuidores globais, tal como o Walmart.

O “socialismo com características chinesas” de Pequim incluía um poderoso partido político e um Estado focado no desenvolvimento. Juntos, supervisionavam e controlavam uma economia que misturava o capitalismo privado com o capitalismo de Estado. Nesse modelo, empregadores privados e empregadores estatais dirigem massas de empregados em suas respectivas empresas.

Ambos os conjuntos de funções patronais, entretanto, estão sujeitos às intervenções estratégicas de um partido e de um governo determinados a atingir seus objetivos econômicos. Como resultado dessa definição e operação do “socialismo” com características chinesas, a economia desse país ganhou mais (especialmente no crescimento do PIB) com a globalização neoliberal do que a Europa Ocidental, a América do Norte e o Japão. A China cresceu rápido o suficiente para competir agora com os velhos centros do capitalismo.

O declínio dos EUA dentro de uma economia mundial em mudança contribuiu para a crise do capitalismo norte-americano. Para o império norte-americano que surgiu da Segunda Guerra Mundial, a China e seus aliados do BRICS representam agora o seu primeiro desafio econômico sério e sustentado. A reação oficial dos EUA a essas mudanças até agora tem sido uma mistura de ressentimento, provocação e negação. Não se apresentam soluções para a crise nem ajustamentos bem-sucedidos a uma realidade alterada.

Em terceiro lugar, a guerra da Ucrânia expôs os principais efeitos dos movimentos geográficos do capitalismo e do declínio econômico acelerado dos EUA em relação à ascensão econômica da China.

Assim, a guerra de sanções liderada pelos EUA contra a Rússia não conseguiu esmagar o rublo ou colapsar a economia russa. Esse fracasso se seguiu em boa parte porque a Rússia obteve apoio crucial das alianças (Brics) já construídas em torno da China. Essas alianças, enriquecidas por investimentos de capitalistas estrangeiros e domésticos, especialmente na China e na Índia, forneceram mercados alternativos quando as sanções fecharam os mercados ocidentais às exportações russas.

As disparidades de renda e riqueza anteriores nos EUA, agravadas pela exportação e automação de empregos de alta remuneração, minaram a base econômica dessa “vasta classe média” da qual tantos funcionários acreditavam fazer parte. Nas últimas décadas, os trabalhadores que esperavam desfrutar do “sonho americano” descobriram que o aumento dos custos de bens e serviços levou a que o sonho estivesse fora de seu alcance. Seus filhos, especialmente aqueles forçados a pedir empréstimos para a faculdade, se viram em uma situação semelhante ou pior.

Resistências de todos os tipos surgiram (movimentos de sindicalização, greves, “populismos” de esquerda e direita) à medida que as condições de vida da classe trabalhadora continuavam se deteriorando. Para piorar a situação, os meios de comunicação de massa celebraram a riqueza estupefaciente daqueles poucos que mais lucraram com a globalização neoliberal.

Nos EUA, fenômenos como o ex-presidente Donald Trump, o senador independente de Vermont Bernie Sanders, supremacia branca, sindicalização, greves, anticapitalismo explícito, guerras “culturais” e extremismos políticos frequentemente bizarros refletem o aprofundamento das divisões sociais.

Muitos nos EUA se sentem traídos depois de serem abandonados pelo capitalismo. As suas diferentes explicações para a traição exacerbam o sentimento amplamente difundido de crise na nação.

A deslocalização global do capitalismo ajudou a elevar o PIB total dos países BRICS (China + aliados) bem acima do G7 (EUA + aliados). Para todos os países do Sul Global, seus apelos por ajuda ao desenvolvimento agora podem ser direcionados a dois possíveis entrevistados (China e EUA), e não apenas ao Ocidente. Quando as empresas e entidades chinesas investem na África, é claro que os seus investimentos são estruturados para ajudar tanto os doadores como os receptores.

Se a relação entre eles é imperialista ou não, depende das especificidades da relação e do saldo dos ganhos líquidos. Esses ganhos para os BRICS provavelmente serão substanciais. O ajuste da Rússia às sanções relacionadas à Ucrânia contra ela não apenas a levou a se apoiar mais nos BRICS, mas também intensificou as interações econômicas entre os membros dos BRICS. Os laços econômicos existentes e os projetos conjuntos entre eles cresceram. Novos estão surgindo rapidamente. Sem surpresa, outros países do Sul Global solicitaram recentemente a adesão ao BRICS.

O capitalismo avançou, abandonando seus antigos centros e, assim, empurrando os seus problemas e as suas divisões para crises cada vez maiores. Como os lucros ainda fluem de volta para os velhos centros, aqueles que lá recolhem os lucros iludem os cidadãos e a si mesmos pensando que tudo está bem no capitalismo global.

Como esses lucros agravam drasticamente as desigualdades econômicas, as crises sociais se aprofundam. Por exemplo, a onda de militância trabalhista que varre quase todas as indústrias dos EUA reflete uma raiva e um ressentimento crescente contra essas desigualdades. O bode expiatório histérico de várias minorias feitas por demagogos e pelos movimentos de direita é outro reflexo do agravamento das dificuldades. Outra é a crescente percepção de que o problema, em sua raiz, é o sistema capitalista. Tudo isso são componentes da crise atual.

Mesmo nos novos centros dinâmicos do capitalismo, a crítica socialista, mascarada ou não, volta a agitar as mentes das pessoas. A organização dos novos centros de trabalho – mantendo o velho modelo capitalista de empregadores versus empregados em empresas privadas e estatais – é desejável ou sustentável? É aceitável que um pequeno grupo, os empregadores, permita que a maioria das empresas decida em seu próprio favor, de forma exclusiva e irresponsável?

Richard D. Wolff é economista. Fundou o portal Democracy at Work. Autor, entre outros livros, de Capitalism”s Crisis Deepens (Haymarket books).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Alívio econômico

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A economia brasileira vem padecendo de baixo crescimento econômico desde meados dos anos 1980, depois de forte crescimento da estrutura produtiva nas décadas anteriores, o país perdeu o dinamismo, perdeu espaços na economia internacional, fragilizando sua estrutura industrial, mergulhando em taxas elevadas de inflação e que culminaram em políticas de estabilização, austeridade fiscal, baixo crescimento econômico e incremento da desigualdade social, com aumento da exclusão social, com crescimento das drogas e a explosão da violência em todas as regiões, vide a Cracolândia que cresce de forma acelerada, gerando desafios e prescindem de políticas públicas planejadas e organizadas.

Vivemos numa sociedade altamente integrada, onde as estruturas econômicas e produtivas estão interligadas, o crescimento tecnológico está moldando uma nova sociedade, com novos modelos de negócios, centrados nas novas plataformas de comunicação, novos instrumentos de marketing, com o incremento da inteligência artificial, das biotecnologias, demandando profissionais altamente capacitados, flexíveis, dinâmicos, dotados de inteligência emocional e fortemente engajados nos desafios que crescem cotidianamente, vide os desafios criados com o surgimento do ChatGPT, que estão transformando setores e exigindo uma constante atualização.

Neste ambiente, percebemos que a economia brasileira vem demonstrando melhoras constantes, embora acreditemos que os avanços sejam tímidos, uma sensível redução dos combustíveis, com taxas de inflação demostrando sinais claros de redução sistemática, a moeda nacional apresentou forte valorização, atraindo moedas externas, impactando sobre os preços internos e um incremento da renda dos trabalhadores.

Destacamos ainda, os avanços da reforma tributária, que surgem para simplificar os impostos, além dos avanços do arcabouço fiscal, uma medida tão aguardado pelo chamado mercado e foram bem vistos pelos donos do dinheiro, com isso, percebemos que os índices de confiança da economia nacional apresentaram números positivos, com aumento dos investimentos externos e as tratativas de novos investimentos, que estão em alta crescente e as perspectivas se apresentam positivas, vide as investidas de empresas chinesas que estão buscando o mercado brasileiro, inicialmente no setor automobilístico e eletroeletrônico e, posteriormente, outros setores econômicos, demonstrando que o país está voltando para os círculos de investimentos internacionais, depois de anos de escassez de recursos externos e pouco investimento produtivo, aonde recebíamos apenas grandes levas de investimentos financeiros que vinham para angariar ganhos com nossa taxa de juros escorchantes.

Neste momento, percebemos que existe uma reconfiguração do poder global, estamos percebendo o nascimento de um mundo multipolar, onde os eixos econômicos estão saindo das nações desenvolvidas ocidentais para os países asiáticos, que ganharam novas estruturas econômicas e produtivas, passaram a competir com as nações ocidentais e passaram a ganhar espaço na nova configuração da economia internacional, marcada por forte concorrência externa, grandes investimentos em ciência e tecnologia, maciços dispêndios nos setores educacionais e melhora na estrutura produtiva, saindo de nações exportadoras de produtos primários de baixo valor agregado para uma estrutura mais tecnológica, centradas em produtos industrializados e dotadas de mercadorias de alto valor agregado.

Numa economia altamente concorrencial, marcada pelos fortes investimentos em tecnologia, educação e inovação, onde os Estados Nacionais usam todos os instrumentos para fomentar seus setores econômicos e produtivos, como estamos vendo nos países desenvolvidos que despejam trilhões de dólares para fortalecer seus setores produtivos, faz-se necessário que as economias estejam estabilizadas, estimulando a confiança e a credibilidade, para atrair novos investimentos internos e externos, desta forma, percebemos que a melhora econômica da economia brasileira pode abrir novos horizontes para investimentos e melhorar o ambiente de negócio, deixando de ser vistos como um pária internacional e retomando um lugar de destaque no cenário internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/07/2023.

Violência nas escolas é também reflexo de quem nós somos, por Belinda Mandelbaum

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Instituições de ensino e famílias reproduzem lógicas de mercado e trabalho, causando adoecimento, intolerância e vergonha

Belinda Mandelbaum, Psicanalista e professora titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP. Autora de “Psicanálise da família” (Artesã, 2020) e “Trabalhos com famílias em Psicologia Social” (Blucher, 2023)

Folha de São Paulo, 23/07/2023

Ficamos horrorizados ao tomar conhecimento de episódios de violência em escolas, que resultaram no brutal assassinato de crianças, adolescentes e adultos, e em traumas psíquicos que perduram naqueles que testemunharam esses acontecimentos de perto ou de longe.

Diante desse horror, nós, pais e educadores, nos perguntamos atordoados o que fazer para auxiliar nossas crianças a lidar com essa brutalidade, de forma a elaborarem pessoal e coletivamente o possível, e não perderem o gosto e a confiança na escola, sentimentos que ficaram abalados em tantos de nós.

Parte do modo de darmos sentido a esses acontecimentos é buscar explicações que, no geral, tendem a se deter nas patologias mentais dos perpetradores. E isto, de fato, é parte da explicação: os assassinos via de regra têm histórias pessoais traumáticas, resultantes de violências sofridas na infância e juventude, como maus tratos e humilhações em casa, na escola, na rua.

Mas, alguma reflexão que conseguirmos fazer sobre essas histórias pessoais já nos obriga também a ampliar o nosso foco de compreensão das causas e sentidos da violência, que partem da psicologia dos perpetradores e vão em direção à constatação de como atos de violência física, psicológica e moral fazem parte do cotidiano das instituições de ensino. Se manifestam em diversificadas práticas de agressão, desrespeito e humilhação, e ocorrem com maior frequência quando as vítimas são ou mostram-se mais vulneráveis por quaisquer diferenças que se apresentem.

Raça, gênero, orientação sexual, classe social, incapacidades físicas ou psicológicas são algumas delas.

Crianças e adultos no espaço escolar podem ser estigmatizados e discriminados por mínimas diferenças em relação aos padrões socialmente valorizados. Todos temos ou já tivemos essas experiências: há violência dentro e fora da sala de aula, nas atividades esportivas e recreativas –por exemplo, quando os jogos perdem as suas potencialidades de prazer, cooperação e socialização para se tornarem competições frenéticas e desesperadas pela superação e alcance dos melhores desempenhos.

A escola hoje, tal como uma empresa, foi tomada por uma lógica competitiva e avaliativa, reproduzindo em seu interior os modos hegemônicos das relações de mercado e trabalho. A escola “prepara” os alunos para o mundo da competição, da (auto)avaliação contínua, da exigência de incessante superação das metas, até o limite da exaustão. E não dar conta ou adoecer pode ser alvo de intolerância e vergonha.

Tudo ocorre tal como nos games, em que aos vencedores há a promessa de riqueza e sucesso, e aos perdedores resta a humilhação, a exclusão, até o extermínio. Isto está em toda parte hoje, como uma ideologia que tende a ser totalitária em nossas vidas. Está também dentro das nossas casas, nas expectativas e ansiedades que vivemos em relação a nós mesmos e aos filhos desde o nascimento.

Enfraquecer ou adoecer se tornou sinônimo de intolerância e vergonha. É preciso repensar esse modo de vida, pelo mal que nos tem causado no corpo, na mente e nas nossas relações em todos os espaços sociais, ainda que a tendência seja estarmos convencidos de que não há alternativa, não há outra forma de viver.

Mas, a conversa em casa e na escola a partir das violências ocorridas e seu impacto em todos nós, crianças e adultos, pode já ser parte de outra forma de viver. Assim, abrimos uma brecha, um espaço e um tempo para que o outro se sinta à vontade para falar do seu jeito, do que sente e pensa, de suas fantasias, temores e ansiedades. Sem julgarmos, apenas ouvindo, acolhendo e pensando juntos, podemos ser transformadores de modos profundos, surpreendentes e inusitados.

Quem sabe assim também possamos nos dar conta de nossas próprias violências.

Lula quer taxar os muito ricos, por Celso Rocha de Barros.

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Regime atual da taxação dos fundos exclusivos é aberração evidente

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 23/07/2023

O governo Lula vai tentar cobrar mais impostos dos muito ricos. O Ministério da Fazenda planeja propor novas regras para tributar os fundos exclusivos, um tipo de aplicação financeira para quem tem muitos milhões para investir.

Dá até vergonha explicar isso, mas, pelas regras atuais, os ricos que aplicam no fundo exclusivo “Guedes Totoso” pagam menos impostos que a classe média que, por exemplo, investe no fundo de renda fixa “Merreca DI”. Para um resumo das vantagens que isso proporciona aos investidores, sugiro a reportagem de Lucas Bombana publicada na Folha da última quinta-feira.

O governo defende que os fundos dos milionários e os fundos da classe média sejam sujeitos às mesmas regras. Não chega a ser nada muito bolchevique.

Nesse ponto, você pode estar pensando: rapaz, o Brasil está com problema nas contas públicas faz muitos anos. Já tinham cortado dinheiro de tudo que era lado, e só agora notaram que milionário pagava imposto de menos?

Todo mundo sempre soube. Mesmo governos de direita, como Temer e Bolsonaro, cogitaram mudar a regra dos fundos exclusivos, mas não conseguiram fazer a proposta andar. Uma vez perguntei ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso porque não tornar os impostos brasileiros mais progressivos (isto é, fazer os ricos pagarem proporcionalmente mais).

Ele me respondeu que todo mundo sabia que tinha que ser feito, mas que os interesses contrários eram fortes no Congresso. Foi a mesma resposta que obtive quando entrevistei petistas graduados para meu livro sobre o PT: ninguém propunha porque todo mundo sabia que ia perder.

E se você leu isso e pensou, “bom, então o problema é o Congresso, é a democracia”, errou. No estatuto da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que apoiava a ditadura militar constava: “por um sistema tributário justo, instrumento do desenvolvimento econômico e de redistribuição social, através de crescente utilização dos impostos pessoais e diretos, de caráter progressivo” (artigo 2, alínea “i”). Apesar dessa declaração de intenções, a desigualdade de renda aumentou enormemente durante a ditadura.

Não é fácil cobrar imposto de rico.

Entretanto, há um bom motivo para que mesmo governos de direita recentes tenham pensado em mexer nos fundos exclusivos. O Brasil enfrenta uma crise fiscal terrível há muitos anos. Qualquer um que assuma a Presidência do Brasil vai ter que sair procurando de onde tirar dinheiro sem gerar uma crise social. Os pouco mais que 2.500 investidores que aplicam um total de mais de R$ 700 bilhões em fundos exclusivos provavelmente sobreviverão bem se tiverem que pagar um pouco mais de imposto. Isso não é verdade sobre a maioria dos brasileiros.

A proposta sobre os fundos exclusivos não deve ser confundida com outro projeto do governo, a reforma do Imposto de Renda, que deve ficar para o ano que vem e é um assunto mais complexo, que exigirá mais negociação.

O regime atual da taxação dos fundos exclusivos é uma aberração evidente, algo que faria o Von Mises cantar a “Internacional” tomado de indignação.

Torço para que isso torne a proposta do governo Lula mais fácil de aprovar. O exemplo dos outros governos mostra que talvez não seja o caso.
Mas é para pelo menos tentar essas coisas que os brasileiros votam na esquerda.

Levantar-nos da sociedade do cansaço, eis o desafio, por Luiz Marques

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Vivemos a era das doenças neuronais, sugere Byung-Chul Han. Terror é ameaça permanente. A hiper-atenção esgota corpos e mentes, produz o sujeito depressivo. Mas há uma brecha: decodificar o poder totalitário de hoje – o neoliberalismo

Luiz Marques – Outras Mídias – 17/07/2023

O filósofo radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço, considera que o fim da época bacteriológica coincide com a descoberta dos antibióticos, em 1928. A pandemia do vírus HIV, que a partir de 1977-78 vitimou 32 milhões de pessoas e o da Covid-19, que no biênio 2020-21 cravou 15 milhões de óbitos, para não citar os diversos tipos de gripe Influenza (A, B, C e D) e o vírus ebola, não o fizeram mudar de ideia. Sua ênfase recai nos imunizantes das moléstias virais, ignorando as tragédias mundiais. A publicação em português do ensaio, sem o posfácio autocrítico, demonstra que o autor segue com as antigas convicções ao propor um salto acrobático e arriscado, da biologia e da medicina, para a filosofia, a sociologia e a política.

O século XXI seria a época das doenças neuronais: depressão e transtornos, seja do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade, seja da personalidade limítrofe. Já não morreríamos de infecção atacados por uma alteridade, mas de enfartos pelo excesso de positividade (o mesmo). A globalização suspendeu a negatividade (a diferença) ao trespassar as barreiras nacionais e impor um cosmopolitismo. Aqui, vale recordar: “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, as relações produtivas e as relações sociais… A burguesia obriga as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama de civilização”, como previra Karl Marx no Manifesto de 1848.

Na verdade (que liberta), o capital é que foi globalizado. Se no decênio de 1960 a “sociedade de consumo” foi alvo de críticas acadêmicas nos países desenvolvidos, mais de sessenta anos depois o problema nos países em desenvolvimento não é o consumismo, senão a dificuldade da população em acessar uma cesta básica. O autor abstrai do raciocínio a realidade. Apaga das estatísticas o aumento das desigualdades sociais, consequência das políticas neoliberais: a desindustrialização, a precarização do trabalho, o desemprego e a inempregabilidade por falta de absorção da mão de obra não qualificada perante os extraordinários avanços da tecnologia.

Para o professor da Universidade de Berlim, “o igual não leva à formação de anticorpos”, logo, “não é possível falar de força de defesa, exceto em sentido figurado”. O imigrante seria apenas um peso, ao invés de uma ameaça. Ora, no capitalismo, admitir que os indivíduos se constituem em peças da engrenagem sistêmica ou que a concorrência interindividual corrompe a solidariedade – é razoável, mas não nivela os desiguais. Nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos e na Europa, o assunto preponderante entre os eleitores foi disparado a imigração. As tribos que esgrimem uma igualitarização tóxica não são parâmetro para universalizar as teses pós-modernas (ou pior) sobre a sociabilidade, in totum. Antes, reenviam à equação cognitiva dentro-fora.
Sociedade de desempenho

Diferentemente de Michel Foucault, Byung-Chul Han avalia que os estudos sobre as instituições totais da “sociedade disciplinar” – hospitais, presídios, quartéis, fábricas, seminários – cederam a instituições como os bancos, laboratórios de genética, aeroportos, escritórios, shopping centers. Correspondem melhor à “sociedade de desempenho”, em que “os habitantes não se proclamam mais sujeitos de obediência, mas sujeitos de desempenho e produção; são empresários de si mesmos”. Note-se que a matriz do empreendedorismo, a desindustrialização, é sequestrada da tela.

A sociedade disciplinar era caracterizada pela negatividade (proibição, coerção). A sociedade do desempenho, com a “desregulamentação crescente, vai abolindo-a”. A passagem a seguir é muito ilustrativa: “O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.

A sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho produz depressivos e fracassados”. Na imagem descritiva, a luta de classes e o malogro da meritocracia passam ao largo. A condenação ecoa uma lamentação resignada, sem bússola. Um campo fértil para a literatura de autoajuda e as palestras motivacionais de neurolinguística a empresários.

O impacto do neoliberalismo no continente europeu resultou na guinada da social-democracia para la pensée unique, que fez tábua rasa da direita e da esquerda. De repente, todos estavam a favor da austeridade, do equilíbrio fiscal e da contenção dos gastos sociais. Quase batendo à porta de Murray Rothbar, fundador do anarcocapitalismo, para o qual a organização social deve pautar o axioma “o Estado é um mal desnecessário”. Isso, apesar das lições catastróficas da crise de 2008 evidenciarem a imprescindibilidade da regulamentação estatal. Vide a negligência fatal da segurança privada na tragédia do submersível, que levou bilionários ao cemitério do Titanic.
“Liberalização nem sempre cria mais produtividade. É preciso estimular gastos de governos em áreas que tragam retorno (saúde, educação, etc.)”, reconhece agora o comentarista do Financial Times, Martin Sandbu, na contramão dos dogmas monetaristas dos anos 1990 que criminalizavam investimentos essenciais. Não obstante, o produtivismo extrativista a expensas do meio ambiente prossegue colado como um kárman ao inconsciente social da sociedade de desempenho, em perseguição do lucro imediatista. Conforme o velho Marx, o processo econômico em curso marcha independentemente da vontade do sujeito: “assemelha-se ao feiticeiro que não pode controlar as potências internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas” (op.cit.).
Uma lacuna da narrativa

Byung-Chul Han realiza uma espécie de fenomenologia dos sentimentos que afloraram na dita pós-modernidade, a começar pelo tédio. Explicaria então as pessoas, de um lado, rejeitarem o ato da contemplação e, de outro, correrem a maratona da hiper-atenção, com o radar em múltiplos sinais e uma certeza somente – a derrota ao final. Feito um animal na selva que ao comer cuida para não ser comido, os humanos seriam entes irrequietos. Sem a paciência dos zen-budistas, absolutizam a vita activa e afundam na histeria e no nervosismo do redemoinho da ação.

“A sociedade do cansaço, enquanto sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. A incessante elevação de desempenho leva a um enfarto da alma”. A pressão por resultados, a ausência de regramentos e os esgotamentos causados pela super positividade induzem ao uso de ansiolíticos e antidepressivos. Um fenômeno que Christian Dunker com senso de humor denomina “síndrome de domingo à noite”, momento entre o ócio e o ativismo.

“O cansaço profundo afrouxa as presilhas da identidade. As coisas cintilam e tremulam em suas margens. Tornam-se mais indeterminadas, permeáveis, e perdem certo teor de sua decisibilidade”.

Quem somos, de onde viemos e para onde vamos. As célebres perguntas não calam. O autor sul-coreano metaboliza a subjetividade aflita do tempo marcado pela irracionalidade da hecatombe climática, do terror da guerra nuclear, da erosão da democracia e do espectro de novas pandemias. Motivos para combater a distopia da extrema direita, a necropolítica, na acepção foucaultiana do soberano que controla a mortalidade e define a vida como uma manifestação do poder. É hora de mobilizar a opinião pública e superar os maus agouros coletivos.

O neoliberalismo, isto é, a nova razão do mundo, serve de pano de fundo ao ensaio de Byung-Chul e ao filme O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, estrelado por Leonardo DiCaprio. Contudo, na obra de arte cabia evitar o conceito para valorizar as emoções. Em uma reflexão teórica, o silêncio sobre a sociedade que não ousa dizer o seu nome é uma grande lacuna da narrativa. Não contribui para o trabalho de decodificação do totalitarismo do livre mercado. Esse é o ponto central. No teatro da política, não existe um diagnóstico sem responsabilização do diretor do espetáculo e sem um prognóstico com vistas à reordenação do papel dos atores, e da plateia.