Ignorância e crueldade, por Ana Cristina Rosa.

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Estado deve ser responsabilizado nos casos de trabalho análogo à escravidão

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

Folha de São Paulo, 20/03/2023

O número de resgates de trabalhadores em situação degradante e análoga à escravidão —eufemismo para a “escravização contemporânea”— bateu recorde no primeiro bimestre de 2023.

Num país de miseráveis, ultimamente não há semana em que o noticiário deixe de trazer a descoberta de pessoas aliciadas com falsas promessas de trabalho decente para acabarem submetidas a jornadas de trabalho exaustivas, em condições precárias, algumas vezes mediante ameaças e castigos físicos.

Não bastasse isso tudo, em muitos dos casos os libertos —não me ocorre termo mais apropriado— são mantidos em cativeiro por conta de dívidas contraídas com os empregadores.

Mas o que é que está acontecendo no Brasil?

Como não houve ampliação na fiscalização, talvez a consciência das pessoas tenha aumentado e, com ela, o número de denúncias tenha se elevado também. Espero que seja isso.

Mas temo que o crescimento seja mesmo da iniquidade dos que, sem dó ou piedade, não perdem oportunidade de explorar e tirar vantagem da penúria alheia. Tanto que, apesar do cenário pavoroso, há interessados em acabar com o Ministério Público do Trabalho.

Entre os “escravizados contemporâneos” tem gente de várias idades, de todas as cores. Contudo, a maioria é formada por homens negros e jovens.

E, diante do que se tem observado, a crueldade parece estar valendo a pena. O que são R$ 7 milhões em indenizações comparados ao faturamento anual bilionário das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, por exemplo?

Além da legislação nacional, o Brasil —última nação das Américas a abolir a escravidão, é bom lembrar— ratificou uma porção de pactos, declarações, convenções e tratados internacionais assumindo o compromisso de combater essa abominação que é o trabalho escravo. Talvez tenha passado da hora de responsabilizar o Estado por essa violação de direitos humanos.

A intimidade artificial virou o mal do século, por Ronaldo Lemos

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Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 20/03/2023

Esther Perel é psicoterapeuta. Nasceu na Bélgica, filha de sobreviventes do holocausto. Hoje é professora da universidade de Nova York e especialista em temas como solidão e relacionamentos contemporâneos, incluindo relações amorosas. No festival SXSW, realizado em Austin, no Texas, que se encerrou ontem, ela roubou a cena. No meio de uma pletora de palestras sobre tecnologia, sua fala sobre comportamento humano foi a mais importante na minha opinião.

Ela desenvolveu o fascinante tema da “intimidade artificial”. Seu argumento é que estamos vivendo nossas vidas em permanente estado de atenção parcial. Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso celular, mídias sociais, alertas de mensagem e assim por diante. Nesse contexto não é possível intimidade real.

As mídias sociais e nosso celular funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a se materializar, partimos para o mundo confortável e controlado do celular, que nos distrai do que é verdadeiramente humano.

Essa é a intimidade artificial. Estamos todos vivendo coletivamente o experimento do rosto parado que o psicólogo Edward Tronick realizou nos anos 1970. Nele, uma mãe primeiro é gravada se relacionando normalmente com seu bebê de 6 meses. Ela sorri, o bebê sorri de volta. Ela fala algo e o bebê dá uma gargalhada. No segundo momento a mãe paralisa seu rosto. Ela olha fixamente para o bebê, sem expressar qualquer reação. O bebê então gargalha. A mãe permanece impassível. O bebê então começa a gritar. Nenhuma reação da mãe. O bebê então chora e grita desesperadamente, até que a mãe retoma suas reações normais e acolhe a criança.

No mundo que estamos vivendo hoje somos todos simultaneamente a mãe e a criança. Como somos incapazes de dar atenção integral ao outro, estamos sempre em dívida emocional com as pessoas que nos cercam. Ao mesmo tempo, somos também o bebê, sedentos por atenção. Nunca houve uma carência tão grande por escuta e acolhimento como a que vivenciamos coletivamente no mundo de hoje.

Esther nos conclama a nos rebelarmos contra a intimidade artificial. A exigir e a dar atenção total para aqueles com quem nos relacionamos. A darmos o difícil passo de aceitarmos o conflito e o atrito como parte das relações humanas, parando assim de nos anestesiarmos parcialmente o tempo todo. Sem isso seremos obrigados a conviver com relações que julgamos “defeituosas” o tempo todo.

Uma pesquisa realizada nos EUA em 2019 apontou que 22% dos “millenials” têm hoje zero amigo. 25% dizem não ter nenhum conhecido. Muitos têm um número de seguidores gigantesco em redes sociais, mas amigos mesmo, nenhum. Em gerações anteriores o número dos sem-amigos girava em torno de 9%. Não é por acaso que ansiedade e depressão são um dos assuntos que mais circulam em mídias sociais hoje entre adolescentes e também crianças. Na era da intimidade artificial, não são só as amizades que estão em risco, mas também as relações amorosas e familiares. Apertem os cintos para a sociedade da solidão, com consequências nefastas para todos os campos da vida humana.

Fogo no sistema bancário, por Antônio Martins

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Quebra de três bancos dos EUA gera pânico e leva Casa Branca a salvá-los com recursos públicos.

Há riscos de contágio. Por que uma estrutura financeira voltada para capturar a riqueza da sociedade, sem nada produzir, torna-se vulnerável

Antônio Martins, editor de Outras Palavras.

Outras Palavras, 13/03/2023.

Nenhum mito é para sempre. A crença na solidez das finanças que floresceram sob o neoliberalismo tornou-se mais frágil neste domingo (12/3), quando as três principais autoridades monetárias dos EUA reuniram-se às pressas, entre si e com o preside nte Biden, para tentar debelar um incêndio que crepitava no sistema bancário. Três bancos haviam quebrado nos dias anteriores – um deles, o Silicon Valley Bank (CVB), especializado em financiar startups e considerado por alguns o “sangue do setor tecnológico”. Havia sinais de que os depositantes corriam para sacar seus depósitos em outras instituições, temendo perdê-los. Surgiu o risco de uma “crise sistêmica”, catastrófica para a economia.

A mobilização de emergência envolveu o poderoso presidente do Fed (o banco central), Jerome Powell, a secretária do Tesouro (espécie de ministra da Fazenda), Janet Yellen, e o presidente do instituto garantidor de depósitos bancários (FDIC), Martin Guenberg. As medidas anunciadas são pouco ortodoxas. O Fed honrará, com recursos públicos, todos os depósitos nos bancos quebrados, favorecendo em especial os clientes mais ricos, cujos saldos acima de 250 mil dólares não estão protegidos pela lei. Não se sabe quanto custará este resgate, mas p otencialmente ele pode chegar a centenas de bilhões de dólares. Além disso, abriu-se um crédito inédito (Programa de Financiamento a Prazo dos Bancos, ou BTFP, em inglês) para salvaguardar, também com dinheiro do Estado e em condições favorecidas, outras instituições bancárias sob risco. É muito cedo para saber se as ações, defendidas por Biden num pronunciamento na manhã de segunda, terão êxito. No início da tarde, os sinais eram preocupantes, com novos bancos sob risco. Como em todas as crises, os fatos ajudam a jogar luz sobre realidades por muito tempo ocultadas.

Por trás da quebra, os juros

As taxas básicas de juros, determinadas pelos bancos centrais, estão em alta em todo o Ocidente desde o início de 2022. O movimento afeta de diferentes maneiras as economias e sociedades. No Brasil, periférico e regredido, um índice absurdo (13,75%, ou 8,5% ao ano acima da inflação) paralisa os investimentos e sangra o Estado. É o maior do mundo e duas vezes superior ao dos países que vêm em segundo lugar.

Nos EUA, as taxas reais mantém-se negativas (4% ao ano, contra uma inflação de 6,4%). Mas a alta
prossegue e o presidente do Fed prometeu acelerá-la, em depoimento ao Senado em 7/3. Foi este movimento altista, num cenário marcado por financeirização generalizada da economia, que levou o SBV ao colapso e ameaça outros bancos.

Um texto da revista Economist ajuda a entender. Sediado em Santa Clara, na Califórnia, o SBV especializou-se em ter como clientes startups tecnológicas e de serviços de Saúde. Os depósitos afluentes que recebeu deste setor fizeram seu valor “de mercado” mais que triplicar entre o início de 2020 e o fim de 2021. Seus depósitos quadriplicaram, chegando a US$ 189 bilhões nesse mesmo momento. Parecia saudável a ponto de ser incluído pela revista Forbes, há algumas semanas, na lista de “melhores bancos” norte-americanos.

Os juros derrubaram-no por dois caminhos. O SBV comprou títulos do Tesouro dos EUA em massa,
quando as taxas estavam quase zeradas. As primeiras perdas significativas vieram quando a alta abrupta dos juros desvalorizou estes papéis mais antigos, que “micaram” (já que é possível investir em títulos novos, com muito maior rendimento). A situação piorou com a crise do setor de tecnologia dos EUA, que provoca há meses quebras de empresas e demissões em massa.

Mas o fato mais chocante – e indicador de possível contágio – foi a rapidez do colapso final do
SVB. Em 8/3, o banco anunciou que buscava US$ 2,5 bilhões (pouco mais de 1% de seus ativos) para cobrir um déficit em seu balanço. A notícia bastou para uma corrida devastadora a seus depósitos, feita em especial por clientes graúdos. Depositantes com mais de US$ 250 mil, desprotegidos de garantias legais, transferiram suas contas quase instantaneamente para instituições maiores. Em dois dias, as ações do SVB perderam 88% de seu valor. Na sexta-feira, 10/3, as autoridades monetárias fecharam o banco.

Em pleno domingo, fizeram o mesmo com o Signature Bank, de Nova York, também exposto a depositantes endinheirados que fugiam do risco. Já na manhã desta segunda (13/3), apesar das
medidas das autoridades bancárias e do discurso de Biden, um movimento semelhante parecia ameaçar o First Republic, de San Francisco e outros bancos regionais. Em sua fala pela manhã, Biden prometeu “fazer tudo o que for necessário” para proteger o sistema bancário. Mas a que custo?

Amplia-se a busca de alternativas ao rentismo

A crise financeira aberta em 2008-2010 é o marco inicial da fase política que vivemos. Foi então que a classe do 0,1% exigiu e obteve dos governos do Ocidente a salvação de seu patrimônio e interesses; que se abriu o fosso global da desigualdade; que se ampliaram os ataques ao Estado de Bem-Estar Social; que se tornou nítido o esvaziamento da democracia.

Quinze anos depois, as sociedades estariam dispostas a viver um episódio semelhante?

As respostas começaram a surgir no próprio domingo (12/8). Nos EUA, viralizaram nas redes sociais as postagens que exigiam: “Nenhum resgate dos contribuintes para os ricos” [“No taxpayer bailout for rich clients”]. O senador Bernie Sanders, ex-candidato à Presidência, manifestou-se: “Não é hora de salvar o SVB. Não podemos continuar ladeira abaixo, com socialismo para os ricos e individualismo cru para todos os demais”. Já a senadora Elisabeth Warren, conhecida por sua luta pela reforma do sistema financeiro, lembrou num artigo para o New York Times que sobram socorros para os bancos e os especuladores – enquanto não há à vista uma saída para milhões de estudantes afundados em dívidas bancárias.

Talvez duas vozes devam ser ouvidas com ainda maior atenção. Uma é a do veterano economista
Michael Hudson. Em um texto de denúncia sobre o papel do sistema financeiro sob o capitalismo neoliberal, publicado hoje, ele lembra que (ao contrário do que prometeu Biden) as maiorias sempre pagam pelo salvamento dos bancos. O dinheiro despendido com eles nem sequer entra nos Orçamento do Estado – nem nos EUA, nem no Brasil. Simplesmente é emitido a partir do nada e passa a compor a dívida pública. Nem Legislativo nem Executivo decidem ou são ouvidos. A aristocracia financeira tem cordéis mais eficientes para colocar o Estado a seus pés.

Hudson também lembra que esta dinâmica de desregulação dos mercados financeiros e socorro pelo
Estado, sempre que uma crise sobrevém, está criando modalidades cada vez mais tóxicas de especulação. Uma delas é a explosão de “instrumentos derivativos”, puras apostas, por meio das quais grandes “players” financeiros tentam multiplicar seu capital, ganhando sobre os valores futuros dos alimentos, dos minérios, da inflação, das moedas, dos índices da bolsa, do número de falências… Este cassino cresceu tanto, alerta Hudson (teria ultrapassado um quatrilhão de dólares, ou quarenta vezes o PIB dos EUA) que imprevistos mínimos pod em gerar perdas colossais e acender a centelha de uma crise bancária sistêmica.

A outra voz é de Ellen Brown, a grande defensora de um sistema de bancos públicos. O aumento dos juros que todo o Ocidente agora persegue, sustenta ela, é uma ferramenta tola contra a inflação. Inflige sofrimento enorme às sociedades e não ataca a raiz dos problemas. Há alternativas – adotadas não apenas na China, mas também em outros países asiáticos, como Coreia do Sul e Nova Zelândia. Consiste em empregar a capacidade do Estado, de criar moeda a partir do nada não para alimentar a especulação, mas para grandes projetos de reforço dos serviços públicos e renovação da infraestrutura.

Dá certo, mostra Ellen Brown no artigo. Falta saber se haverá vontade política – nos EUA e, em breve, no Brasil.

Resgate a bancos quebrados cria o chamado risco moral, por Schwartsman

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É fundamental que operações de salvamento não recompensem gestores incompetentes

Hélio Schwartzman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 18/03/2023

Um mundo justo é aquele em que cada um responde por suas ações e omissões. A definição não é despropositada, mas receio que a maioria de nós não gostaria de viver num lugar assim. Nele, pessoas que não tivessem poupado para aposentadoria seriam condenadas à miséria na velhice; quem não tivesse plano de saúde morreria na porta do hospital. Vivemos em sociedades que redistribuem riscos, por variados mecanismos.

No Brasil, temos o SUS, um sistema de saúde universal bancado com dinheiro dos impostos. Temos também o INSS e programas de governo voltados para populações específicas. Mais longe do âmbito do Estado, temos seguros, hedges etc.

Também entram aí os aportes bilionários que governos estão fazendo no sistema bancário. A ideia aqui é que, se houver crise sistêmica, todos perdem. O problema com a redistribuição de riscos é que ela altera o comportamento de agentes de um modo que nunca é moralmente neutro. Os primeiros economistas já se deram conta do fenômeno e o chamaram de “moral hazard” (risco moral).

Um exemplo clássico é o do sujeito que, por ter contratado um seguro para seu carro, se torna menos cuidadoso e passa a estacioná-lo em ruas perigosas sem trancar a porta. Tais mudanças de comportamento podem afetar as taxas de sinistro, impondo custos extras a segurados que não ficaram mais desleixados.

É por isso que os desenhos institucionais e contratuais importam. Um modo de desincentivar o descaso do segurado é a franquia, que faz com que ele arque com parte do prejuízo se o carro sofrer dano. No caso do resgate de bancos, é fundamental que as operações de salvamento não recompensem gestores incompetentes e que se minimize o estímulo à complacência de correntistas (se meus depósitos estão garantidos, nem me preocupo em procurar um banco sólido). Uma boa contrapartida aos resgates é a regulação mais rígida, mas ela nunca vem ou é rapidamente deixada de lado.

Carta Mensal – Fevereiro 2023

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O mês de fevereiro de 2023 foi marcado por grandes atribuições na sociedade brasileira, onde destacamos os desastres ocorrido no litoral norte paulista, na região de São Sebastião, marcado por grandes devastações geradas pelas chuvas, que destruíram a cidade e seu entorno, provocando a morte de mais de sessenta pessoas, desabrigando milhares de cidadãos e trouxeram um caos para as cidades, mobilizando os governos federal, estadual e município, exigindo investimentos vultosos para recuperar a região.

O fenômeno mostra uma mistura bárbara na sociedade brasileira, de um lado, percebemos o descaso para a população em situação de fragilidade, residências construídas em situação calamitosas, ausência do setor público, fiscalização precária e descaso para a sociedade local, levando destruições materiais e imateriais que se acumulam na sociedade brasileira, lembramos que, todo começo de ano, somos vitimados por estes episódios, com mortes e devastações crescentes. De outro lado, percebemos a fúria da natureza, chuvas assustadoras, enxurradas devastadoras e clima sem controle, com isso, as alterações climáticas em curso na sociedade mundial mostram mais um capítulo da destruição geradas pelo aquecimento global, levando discussões estéreis entre grupos variados com seus interesses imediatos.

O mês de fevereiro se destaca pelo retorno do carnaval brasileiro, depois de três anos de pandemia, o carnaval 2023 retornou com grande efetividade, onde os investimentos foram variados, aumento dos eventos, festas regadas por muito barulho, agitação e variados formas de brincar com a festa nacional, que sempre foi vista como uma característica do povo brasileiro, onde alguns teóricos importantes destacaram que o carnaval é visto como a “cara” do povo brasileiro, alegre, flexível, criativo e carismático. Com isso, percebemos que a festa deve ser vista como um verdadeiro negócio, que movimenta bilhões de reais, injetando bilhões de reais, com organização e responsável pelo emprego de milhares de cidadãos, movimento a roda da economia.

O Brasil é sempre marcado por grandes contradições, de um lado, o mês de fevereiro foi marcado por grandes
desastres naturais no litoral paulista, com inúmeros mortos e devastações do entorno, com perdas materiais e imateriais que mobilizaram a solidariedade do povo brasileiro, com campanhas, doações e colaborações de todas as
regiões do país. De outro lado, o mês se caracterizou pelo retorno das festas do carnaval, com alegria, danças regionais e diversidades culturais e festas típicas e tradicionais, uma verdadeira festa e confraternização nacional.

Neste período é importante destacar ainda, que o assunto econômico do momento é as taxas de juros que estão na casa dos 13,75% na Selic, com impactos generalizados para toda a economia nacional, impactando sobre o sistema econômico, inviabilizando os investimentos produtivos, postergando a geração de empregos e afetando a renda agregada da sociedade, levando-a a uma condição de recessão técnica que inviabilizam o governo, suas políticas públicas, postergando as promessas eleitorais e retardando a recuperação econômica.

Neste momento, percebemos o embate entre dois pensamentos econômicos, um mais intervencionista e um outro mais ortodoxo. Neste embate, a sociedade sente na pele uma forte desaceleração econômica, lembro-os que em janeiro último, a economia recebeu com forte preocupação as dificuldades das Lojas Americanas, uma empresa de grande porte, nome conhecido pelo mercado nacional e internacional que tem, como seus acionistas, empresários conhecidos no cenário global, com movimentações intensas que podem reduzir o crédito da economia, gerando constrangimentos para toda a estrutura produtiva, levando grupos que passam por apertos financeiros a perderem recursos monetários e creditícios, gerando quebradeiras nas empresas, com fortes impactos sociais para a comunidade, aumentando o desemprego, fragilizando a renda agregada e impactando fortemente sobre o setor bancário em decorrência do aumento da inadimplência das famílias, das empresas e de todo o sistema econômico.

Vivemos num momento de grandes inquietações econômicas, governo novo com novos ideários e novos projetos econômicos, equipe econômica com visão mais progressista, muito diferente do anterior, mais ortodoxo e liberal. Estamos num período de grandes dificuldades, além de salientar as polarizações políticos que geraram confrontos constantes na sociedade nos últimos quatro anos, exigindo do governo atual uma forte capacidade de liderança: a grande pergunta que estamos fazendo, será que temos liderança suficiente para resolver os grandes desafios criados na sociedade brasileira?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular (Uniyleya), Mestre, Doutor em Sociologia (Unesp) e professor universitário.

Recessão à vista

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A economia brasileira vem convivendo com baixo crescimento econômico desde meados dos anos 1980, com impactos generalizados para toda a estrutura produtiva, impulsionando a desindustrialização, piorando os indicadores sociais, fragilizando os trabalhadores e contribuindo para a construção de um ambiente centrado na baixa confiança, nas perdas econômicas e nas desigualdades crescentes.

Neste ambiente, a economia brasileira perdeu espaço precioso na economia internacional, chegamos a ser a sexta maior economia global e, atualmente, perdemos grande potencial econômico e produtivo, nos colocando como a décima quarta na economia mundial. Perdemos espaços na indústria global, estamos distantes das grandes discussões da Indústria 4.0, fragilizamos nossa indústria da saúde e nos tornamos um importador de máquinas e equipamentos médicos e hospitalares, demonstrando nossa fragilidade produtiva, nos tornamos dependentes de produtos importados, como vimos no período da pandemia, quando para suprir as demandas internas tivemos que recorrer ao mercado mundial.

Desde o Plano Real, a economia brasileira se acostumou com juros elevados, que limitam os investimentos produtivos, impedindo a geração de emprego, aumentando o endividamento das famílias, incrementando a inadimplência e aumentando os ganhos dos rentistas, que ganham recursos com a intermediação financeira, gerando poucos empregos e contribuindo para que sejamos vistos como um verdadeiro paraíso fiscal, até mesmo recentes autoridades governamentais mantém recursos substanciais em paraísos fiscais, driblando a legislação nacional, uma verdadeira excrescência, garantindo ganhos elevadíssimos, fugindo da tributação e inviabilizando os investimentos produtivos.

Neste momento, a economia brasileira caminha para uma recessão técnica, com taxas de juros elevadas, incertezas no ambiente internacional, quebradeira de empresas nacionais, como vimos no caso das Lojas Americanas, que acendeu um alerta para toda a economia, impactando sobre o crédito e afetando todo o sistema econômico, inviabilizando a sobrevivência de muitas empresas e novos modelos de negócios, como fintechs, cooperativas de créditos e novos empreendimentos, criando um cenário sombrio para o decorrer do ano, com um aumento do desemprego e degradação da renda.

A recente discussão econômica brasileira se concentrou nas elevadas taxas de juros, com este patamar a economia tende a caminhar a passos largos a uma recessão, asfixiando as empresas, levando-as à bancarrota e inviabilizando-as, aumentando os degradantes números de desemprego e, principalmente, numa economia com um cenário de incertezas e lentidão econômica. A fragilização econômica das empresas e dos consumidores terão impactos para todo o sistema financeiro, gerando fortes prejuízos para o setor bancário que, como não é bobo, está começando a pressionar para uma redução da taxa de juros, evitando que a recessão não se aprofunde, degradando os setores produtivos e aumentando o desemprego.

Neste cenário a recuperação econômica será muito mais dispendiosa e seus custos políticos e monetários serão mais elevados, inviabilizando o governo e elevando as instabilidades, as incertezas e aumentando as polarizações políticas. As crises recentes, como a das Lojas Americanas tendem a degradar o mercado de crédito, levando outras empresas e conglomerados a situações de insolvência, aumentando os custos financeiros e inviabilizando novos investimentos produtivos.

Antes os riscos da economia brasileira, segundo os analistas da mídia corporativa e dos economistas liberais, eram os riscos fiscais do Estado, agora, com as fraudes financeiras das Lojas Americanas, que prejudicou parte da confiança dos bancos, aumentando a inadimplência, reduzindo o poder de compra dos consumidores, levando muitos conglomerados a mostrarem suas fragilidades econômicas. A recessão da economia brasileira trará grandes prejuízos para a estrutura produtiva, mas quando essa recessão gera fortes constrangimentos financeiros para o sistema bancário, com certeza, a redução dos juros deve começar imediatamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/03/2023.

Vinho sujo, por Angela Alonso.

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Desmonte da CLT em nome da modernização econômica açulou o escravismo

Angela Alonso, Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 13/03/2023

As joias árabes ofuscaram o vidro sujo das garrafas gaúchas. A última presepada do finado governo merece, sem dúvida, a escarafunchada. Mas o espetáculo nababesco da corrupção empanou a miséria do mundo do trabalho, com colares e relógios roubando a atenção do vinho avinagrado. Vinho lá do Sul, que, como as salsichas, ninguém perguntava como é feito.

Nos barris de carvalho, envelheceram bem ingredientes centenários, os do escravismo. A escravidão acabou na lei, mas se prolongou nas relações de trabalho. Isto souberam imigrantes que atravessaram o Atlântico enlatados na terceira classe de navios fétidos. Na chegada eram “contratados” para as lavouras. Aspas porque as condições de trabalho pouco distavam das escravistas, dadas as longas jornadas e a alimentação precária. A diferença seria o salário.

Seria, porque em muitos casos se estabeleceu, desde o fim legal do trabalho compulsório, a prática flagrada agora entre os gaúchos. Funcionava singelamente: o contratante monopolizava o comércio de víveres e o que ali se ganhava ali mesmo ficava. A venda de João Romão, em “O Cortiço”, detalhou em 1890, o processo que as notícias da semana passada recontaram.

A modalidade contemporânea não é exclusividade gaúcha. O estado está lá para o fim da fila no levantamento da Comissão Pastoral da Terra, com 327 ocorrências entre 2003 e 2020. Os paraenses é que são os campeões nacionais, com cerca de um quinto (10.427) do total de 49.076 pessoas libertadas de servidão involuntária no período. Mas o resto do país não se faz de rogado: em Minas, Goiás e Mato Grosso se encontraram em torno dos 4.000 trabalhadores em situação análoga à escravidão, Tocantins e Bahia ficaram na casa dos 3.000, e Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio e Maranhão, na dos 2.000. Mácula sobretudo no campo (incluído o garimpo), mas 32,7% às vistas, em áreas urbanas.

Isso é o que a fiscalização alcança. Debelar trabalho forçado depende de ação estatal, como de legislação que o impeça. A CLT evitou cenas como a sulista de permanecerem como a regra, ao regular horas, idade e remuneração mínima, além de férias, assistência na doença e na velhice.
Esse regime de proteção social garantiu a dignidade de milhões de brasileiros.

O desmonte recente deste sistema em nome da modernização econômica açulou o escravismo a tirar as manguinhas de fora. Ante reclamações patronais com os gastos com a mão de obra, embutidas no eufemismo “custo Brasil”, desmontou-se muito da política trabalhista. Andou junto a terceirização de partes da produção e dos serviços. Empresas top, globalizadas e modernas, emagreceram em empregados. A parte menos nobre do pacote foi expelida delas, via delegação de tarefas a “empreendedores” autônomos, como os motoboys, desassistidos de direitos. São as que, como a Salton, a Aurora e a Garibaldi, têm face pública limpinha, sem se interessar em saber se a matéria-prima de suas fornecedores é suja de lágrimas e sangue.

A extinção efetiva do trabalho escravo depende de leis e vigilância, como de uma política de empresários e acionistas. Cabe também a este nicho, no qual se fala tanto em liberalismo, zelar pela liberdade dos trabalhadores que produzem seus insumos. As vinícolas gaúchas se desculparam, alegando desconhecimento da cozinha alheia. Mas apenas desconhece quem não quer olhar. E se a vista se desviar, capaz da parceira, que se chama Fênix, renascer das cinzas.

A Selic já pode cair, por André Roncaglia.

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Faria Lima já aceitou a queda antecipada dos juros; o jogo virou

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 10/03/2023.

A taxa Selic iniciou sua ascensão no início de 2021, saindo de 2% e chegando aos atuais 13,75%. A variação de 11,75 pontos percentuais e a manutenção da taxa nesse patamar deveriam resfriar a atividade preventivamente, impedindo que a reabertura da economia descambasse numa espiral inflacionária. Não funcionou a contento. O teto da meta foi violado em 2021 e 2022, e o discurso do Copom previa manter a taxa nesse patamar até o fim de 2023.

Lula questionou a viabilidade de uma meta de inflação menor para 2023 e 2024, a qual reforça a postura extremamente restritiva da política monetária. A Selic muito alta asfixia as empresas, inibindo a geração de empregos. Foi acusado de ser populista.

Até há pouco tempo, o maior risco à estabilidade, na visão farialimer de mundo, era exclusivamente fiscal. Isso permitia entrincheirar a postura de cobrar do governo indicações de responsabilidade fiscal. A reoneração dos tributos sobre os combustíveis deu algum alívio, e a pressão já se deslocava para a definição do novo marco fiscal.

Foi aí que um novo risco tomou conta da cena. Gestores de ativos e consultorias começaram a expressar preocupação com a meta irrealista de inflação em 2023 e 2024 e com o nível da taxa de juros definida pelo BC (Banco Central). O motivo da mudança: a possibilidade de ocorrência de um credit crunch (dito em inglês, para não reconhecer que Lula tinha razão).

A restrição de crédito já aparece no mercado de dívida privada, segundo dados da Anbima. A fraude contábil no caso Americanas dissemina desconfiança no mercado de crédito, encarecendo ainda mais o financiamento empresarial.

A realidade que antes ameaçava apenas os trabalhadores bateu às portas das empresas. Em recente artigo publicado pelo BIS, Claudio Borio e coautores sugerem que a elevação da taxa de juros em contexto de elevado endividamento pode gerar “dominância financeira”. O encarecimento agudo do crédito agrava a fragilidade financeira da economia. As empresas precisam gastar cada vez mais recursos para honrar suas despesas financeiras.

Nessa situação, o estopim que converte a fragilidade em crise pode ser um choque adverso —por exemplo, uma desvalorização abrupta da taxa de câmbio causada por eventos externos.

Como uma crise financeira assusta muito mais do que inflação acima da meta, o BC se vê obrigado a reduzir a taxa de juros e acionar outros instrumentos para conter pressões inflacionárias. Traduzindo: a Selic vai ter de cair na marra. Vejamos.

A política monetária é um jogo estratégico de expectativas e de poder. Os dados indicam que as expectativas da Faria Lima afetam a reação do BC e vice-versa. Além disso, a Selic tem forte correlação com o custo médio da emissão de dívida pública pelo Tesouro Nacional.

A partir do fim de 2020, quando a Selic estava em 2% ao ano, o mercado elevou o custo da dívida pública no mercado aberto, indicando que o BC estava “atrás da curva”. Para resgatar sua credibilidade perante o mercado, o Copom correu atrás, subiu a Selic e a manteve lá até convencer o mercado de sua aversão à inflação. O mercado chamou o BC para o seu “devido lugar”.

Agora o BC deve retribuir o favor. O custo da preservação de sua credibilidade nos levou endogenamente às portas dessa dominância financeira. A Faria Lima já aceitou a queda antecipada da Selic e aceita qualquer narrativa crível de sustentabilidade fiscal.

O governo tem na mão a capacidade de arbitrar o tamanho da queda da taxa de juros, ganhando espaço fiscal sem gerar temores nos desconfiados, pelo menos até a discussão do Orçamento de 2024, em agosto.

O jogo virou. É hora de aproveitar a oportunidade.

Livro destrincha a história econômica do século 20, por Schwartzman

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Segundo o autor, os bons tempos não vão voltar

Hélio Schwartzman, jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 12/03/2023.

Numa coisa Karl Marx e John Maynard Keynes concordavam. Ambos viam o progresso tecnológico como uma solução do problema econômico da humanidade. Um dia as máquinas produziriam sozinhas tudo o que as pessoas precisam, o que nos libertaria para viver a utopia, a verdadeira emancipação do homem. “Slouching Towards Utopia” (“Arrastando-se rumo a Utopia” em tradução não oficial), de Brad DeLong conta essa e várias outras histórias.

Na verdade, “Slouching…” pode ser descrito como uma história econômica do século 20 ampliado. Começa em 1870, com a segunda Revolução Industrial, e vai até 2010, após a crise dos subprimes. DeLong começou a escrever a obra nos anos 1990, mas o livro só foi publicado em 2022, entre outras razões porque o autor não conseguia terminar. As coisas não
paravam de acontecer.

A tese central de DeLong é que o progresso tecnológico pós-1870 permitiu que a humanidade escapasse à armadilha malthusiana que a assombrou até então. Os ganhos de produtividade foram tamanhos que possibilitaram o enriquecimento das sociedades e não só o aumento das populações, como era a regra. E, de fato, um indivíduo de classe média de país desenvolvido tem hoje acesso a mais riqueza que os milionários do século 19. Mesmo a pobreza extrema do Terceiro Mundo foi substancialmente reduzida. Mas nem o mais rematado otimista diria que chegamos à utopia.

Para DeLong, foi só em duas janelas, entre 1870 e 1914 e nos 30 anos após a Segunda Guerra, nos quais as sociais-democracias prosperaram, que os países do Norte Global experimentaram um gostinho de milagre. O avanço técnico se somou a outras particularidades históricas, como a globalização, para produzir ciclos de grande otimismo. Nos demais períodos tivemos eventos como duas guerras mundiais e duas grandes recessões que falam por si.

Mazzucato: no Comum, uma nova Economia

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Não se trata de “corrigir as falhas” do mercado, sustenta a economista – mas de superar sua lógicas de captura da riqueza coletiva e concentração de poder. As sementes da mudança já existem. Falta articulá-las em teoria e ação política

Mariana Mazzucato – OUTRAS PALAVRAS – 02/03/2023

Após a reunião de governantes, líderes empresariais e sociedade civil no Fórum Econômico Mundial deste ano em Davos, espalhou-se a observação de que vivemos numa era de “policrise”. A ocorrência simultânea de vários eventos catastróficos define o atual ambiente sócio-económico e geopolítico.

Face a desafios tão imensos como o aquecimento global, a crise dos cuidados de saúde, o crescente abismo digital e uma economia financeirizada que amplia as desigualdade de renda e riqueza, não é surpreendente que a desilusão com a política se amplie, criando condições ideais para populistas que prometem soluções fáceis. Mas as soluções reais são complexas e exigirão investimento, regulamentação e inovações sociais, organizacionais e tecnológicas, não só dos governos e empresas, mas também de indivíduos e organizações de toda a sociedade civil.

Os governos, convencidos de que as políticas públicas só podem ter como objetivo corrigir as falhas do mercado, muitas vezes dão respostas insuficientes e tardias. Mesmo bens públicos como o financiamento da investigação e desenvolvimento a nível básico são vistos como formas de corrigir um problema de externalidades positivas, tal como os impostos sobre o carbono corrigem um problema de externalidades negativas. Mas conseguir uma mudança transformadora que produza um crescimento inclusivo e sustentável depende menos da correção dos mercados do que da sua formação e criação. Isto exige complementar a ideia de bens públicos com a do “bem comum”, o que não é apenas uma questão de “o quê” mas também de “como”.

O bem comum é um objetivo a ser alcançado em conjunto através da inteligência coletiva e da partilha de benefícios. Transcende a ideia (na qual se baseia) dos recursos comunitários. Enfatiza a forma de conceber investimentos, inovações e mecanismos de colaboração na prossecução de um objectivo comum. Os bens comuns são o produto de interações e investimentos coletivos que exigem modelos de propriedade partilhada e de governação. Os benefícios resultantes destas atividades devem, portanto, ser partilhados colectivamente. A ideia dos bens comuns também aborda a necessidade de uma governação internacional eficaz, sublinhada na noção de bens públicos globais desenvolvida pela minha colega, a falecida Inge Kaul, que ajudou a inspirar o trabalho da Comissão Mundial sobre a Economia da Água.

Na sua encíclica “Laudato si: Sobre Cuidados com o Lar Comum”, de maio de 2015, o Papa Francisco defende eloquentemente uma forma de pensar baseada no bem comum para um mundo em constante mudança. Não é um idealismo abstrato. A ideia do bem comum fornece um quadro útil para estabelecer objetivos partilhados e determinar como alcançá-los. Francisco fala da necessidade de subsidiariedade (o princípio da resolução de questões particulares ao nível mais local possível) e de ver o mundo através dos olhos das pessoas mais vulneráveis.

Segundo Francisco, a prioridade em todas as mudanças sociais, econômicas e políticas deve ser a proteção das condições essenciais de que depende a vida humana. A tomada de decisões para o bem comum envolve a defesa da dignidade daqueles que são marginalizados em termos sociais, políticos e econômicos, não apenas com palavras, mas com políticas e novas formas de colaboração. Envolve a criação de uma rede de solidariedade através da qual vozes inauditas podem participar em processos decisórios cruciais.

Para atingir estes objetivos, é necessário um novo modelo de crescimento, no qual os atualmente excluídos devem participar, e não um que seja simplesmente implementado em seu nome. Um exemplo são as organizações cooperativas, que têm se mostrado eficazes em reunir pessoas com meios limitados e em dar-lhes oportunidades de ação autônoma que de outra forma não teriam.

Francisco também compreende que em tempos em que alguns setores econômicos têm mais poder do que os governos em certas áreas, é dever do Estado defender o bem comum em nome de todos. Para inverter a tendência e enfrentar os grandes desafios que se avizinham, é necessária uma mudança fundamental na política econômica. Hoje em dia, o princípio do bem comum é visto como uma correção dos excessos do sistema atual. Mas ele deve ser, em vez disso, o objetivo central do sistema.

O dinheiro não é tudo: também é importante encorajar certas formas de colaboração. No caso da covid 19, o mundo fez um investimento coletivo muito bem sucedido na investigação de vacinas Mas não conseguiu assegurar que o resultado final se traduzisse num “bem comum”: o de imunizar toda a população mundial.

Temos frequentemente uma ideia preguiçosa de “parcerias” entre várias partes. A mera parceria entre as partes não significa que estejam trabalhando em conjunto para o bem comum; para isso é também preciso estabelecer objetivos e harmonizar riscos e benefícios em conjunto. Todos os participantes devem concordar sobre o “o quê”, bem como sobre o “como”. Por exemplo, não se trata apenas de desenvolver vacinas, mas também de torná-las acessíveis a todos.

Com uma abordagem baseada no bem comum, cada passo do processo é quase tão importante como o resultado final. Nos Estados Unidos, o governo gasta centenas de bilhões de dólares por ano em investimento público em Pesquisa e Desenvolvimento no domínio da saúde (em 2022, só os Institutos Nacionais de Saúde forneceram 45 bilhões de dólares), mas depois deixa todos os lucros em mãos privadas. Ao se materializar, a “recompensa” por um esforço coletivo (muitas vezes sob a forma de lucros empresariais, ou como conhecimento valioso), deve ser partilhados tanto quanto foram os riscos.

Como mostro em meu livro Missão Economia, há muitas maneiras de fazê-lo. Uma é condicionar o apoio público a certos requisitos de propriedade intelectual ou de preços; ou exigir a partilha de lucros, por exemplo através de um modelo de participação acionária. Outra forma de encorajar uma distribuição mais equitativa do valor entre todos os membros da sociedade é através de estruturas coletivas de propriedade. Todos estes mecanismos limitam a concentração indevida do poder nas mãos de alguns indivíduos e empresas privilegiadas.

E estes problemas não são exclusivos da saúde. A economia digital tem crescido há anos às custas de um investimento público em grande escala. Como algumas empresas poderosas controlam a maior parte dos dados, tecnologias-chave como a inteligência artificial reproduzem os preconceitos e desigualdades pré-existentes. Para enfrentar esta tendência, precisamos conceber um quadro mais inclusivo e transparente que, por exemplo, imponha certos critérios éticos sobre os termos e condições dos serviços digitais.

Finalmente, é preciso estimular uma maior valorização do poder da inteligência coletiva. Tal como os indicadores ambientais, sociais e de governação empresarial ajudam as empresas a fornecer informação sobre o seu comportamento organizacional e cultura, uma abordagem de bem comum requer um melhor fornecimento de informação sobre as dinâmicas inter-organizacionais e público-privadas, expressando todo o ecossistema de colaboração (ou parasitismo, como também pode acontecer)

A base do bem comum é uma ideia de colaboração intensa, inteligência coletiva, criação conjunta de fins e meios, e uma partilha adequada dos riscos e benefícios. A inovação orientada pela missão e as políticas industriais mostram como estes princípios podem ser postos em prática.

Governos ou organizações internacionais podem estabelecer um objetivo claro (muitas vezes através de um processo de consulta com outros interessados) e depois criar as condições para uma colaboração intensa entre os setores público e privado para alcançar esse objetivo. E neste processo, a tentativa e o erro são um elemento crucial. A direção deve ser clara, mas também deve haver amplo espaço para a experimentação descentralizada.

O bem comum é um objectivo comum. Ao concentrar-se tanto na forma como no quê, promove a solidariedade humana, a partilha de conhecimentos e a distribuição coletiva de benefícios. É a melhor (e de fato a única) forma de assegurar uma qualidade de vida decente para todas as pessoas num planeta interligado.