Taxação de bilionários não é mais de direita ou esquerda, diz Nobel de Economia

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Esther Duflo vê amplo apoio popular à criação de imposto sobre super-ricos para enfrentar crise climática e pobreza

André Fontenelle, Jornalista baseado em Paris

Folha de São Paulo – 13/04/2024

[RESUMO] Em entrevista à Folha, economista francesa afirma que a cobrança de imposto sobre a fortuna de super-ricos e o aumento da tributação de multinacionais foram incorporados ao espírito do tempo e podem gerar, em todo o mundo, US$ 500 bilhões ao ano para financiar medidas de mitigação de impactos da crise climática sobre populações e países pobres.

Na próxima quarta-feira (17), os ministros da Fazenda dos países do G20 reunidos em Washington ouvirão uma proposta que alguns anos atrás seria inimaginável em um fórum do gênero: usar um imposto sobre os bilionários para lutar contra a pobreza e as consequências da crise climática.

A autora da proposta, Esther Duflo, 51, vencedora doNobel de Economia de 2019, falará como convidada do governo brasileiro, atualmente na presidência rotativa do G 20. Segundo a economista francesa, chegou a hora para articular as duas questões, pobreza e aquecimento global.

Propostas de taxação dos super-ricos vêm ganhando aliados nos últimos anos. Em fevereiro, Fernando Haddad encampou uma dessas propostas, de outro economista francês, Gabriel Zucman, colega de Duflo na Escola de Economia de Paris e especialista em paraísos fiscais.

Segundo Duflo, cobrar 2% sobre a fortuna dos super-ricos e aumentar a tributação das multinacionais arrecadaria US$ 500 bilhões de dólares por ano, que poderiam ser aplicados em favor dos mais pobres do planeta, maiores vítimas da emergência climática. Parte do dinheiro seria diretamente injetado em contas digitais dessas pessoas, parte seria usada como resseguro para os governos obrigados a arcar com os custos das catástrofes e o restante seria investido na adaptação ao calor extremo nas regiões mais afetadas.

A pesquisadora afirma buscar “influenciar o mundo real”: é uma das fundadoras do J-PAL(Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) —rede mundial de pesquisa que tem uma representação no Brasil, no Insper, em São Paulo— e lançou na França no ano passado uma série de livros infantis com histórias para conscientizar as crianças dos problemas da miséria.

Em entrevista por videochamada, Duflo antecipou à Folha a proposta que vai apresentar em Washington.

Na última reunião preparatória do G20, em São Paulo em fevereiro, Fernando Haddad mencionou uma proposta de imposto sobre super-ricos. Essa proposta é igual à sua? Não é a mesma, mas eu a conheço muito bem e a apoio. Gabriel Zucman, que está muito envolvido com ela, é meu vizinho de sala em Paris. A minha é, digamos, complementar, porque trata da necessidade de financiamento para adaptação e compensação pelos danos climáticos para as pessoas mais pobres do planeta. O imposto recomendado pelo ministro Haddad em fevereiro é uma dessas fontes.

A sra. dá muita ênfase à viabilidade dessas propostas. Por quê? Não basta mais apresentar argumentos teóricos e morais, do tipo “é só fazer isso”. Temos que ser mais pragmáticos, porque a mudança climática já chegou. As temperaturas já aumentaram. Os últimos 12 meses foram os mais quentes já registrados. Os danos já estão acontecendo, principalmente nos países mais pobres, que não têm condições de se proteger.

Precisamos agir hoje. Até agora, temos demonstrado uma total incapacidade de lidar com esse problema. Não basta fazer declarações ou criar um fundo sem investir dinheiro algum nele.

Nunca se falou tanto em um imposto sobre os super-ricos. Ele está no espírito do tempo? Sim, e o Brasil fez muito para colocá-lo no espírito do tempo. Antes de fevereiro, estava menos que agora. O fato de ter sido encampado pela presidência brasileira do G20 faz uma grande diferença, mas há outros fatores que tornam esse imposto possível.

Por um lado, o aumento da desigualdade e, em especial, das enormes fortunas. Por outro, a constatação de que essas grandes fortunas não pagam Imposto de Renda. Não se trata de tirar a fortuna deles, mas obrigá-los a pagar impostos como os que nós pagamos sobre nossos salários.

O retorno mínimo na Bolsa, para quem é muito rico, é de 5%. Hoje, essa renda não é tributada. Tributar o patrimônio em 2% equivale a tributar cerca de 40% da renda, o que equivale à alíquota superior do Imposto de Renda na maioria dos países. Isso mostra que é possível chegar a um entendimento internacional. Chegou o momento de introduzir o imposto sobre bilionários.

O imposto sobre empresas já está sendo implantado. Ao aumentar um pouco esse imposto ou usar o todo ou parte do imposto sobre os super-ricos, poderíamos financiar até US$ 500 bilhões por ano para os mais pobres do mundo.

A sra. foi convidada a Washington pelo governo brasileiro. Não teme que sua proposta fique associada a um grupo político? Não creio. Foi o G20 que me convidou, como parte da presidência rotativa brasileira, que tem foco na pobreza e na mudança climática. É normal que esse foco reflita a política de Lula, enquanto o G20 geralmente lida mais com os problemas dos países industrializados. A França apoiou imediatamente a proposta, com um governo que não é de esquerda.

Além disso, quando analisamos as pesquisas, o apoio é muito forte. Taxar grandes empresas ou bilionários para ajudar os países pobres a lidar com as mudanças climáticas tem mais de 80% de popularidade. Vai além de direita ou esquerda. É senso comum.

Elon Musk e o STF entraram em conflito sobre a liberdade de expressão. Isso não mostra que haverá resistência dos bilionários a propostas como a sua? É possível. Por outro lado, estamos falando em 2% de suas fortunas. Mesmo que eles não façam nada com essas fortunas —e geralmente fazem—, elas rendem mais de 5% ao ano. Concordar em serem tributados nesse nível totalmente razoável não seria um investimento no tecido social por parte dos bilionários?

Eles podem alegar que já fazem filantropia. Deixaria de ser filantropia, porque seria um imposto: logo, eles não teriam controle. Porém, ainda que seja puramente estratégico, pode ser do interesse deles: “Estamos pagando nossa contribuição razoável para as sociedades em que vivemos”.

Não sei se Elon Musk entenderia isso, mas outros talvez se deem conta de que é um preço pequeno, comparado ao que poderia aguardá-los se houvesse uma revolta popular e populista que saísse do controle. Um bilionário razoável deveria ser a favor.

Como o dinheiro seria aplicado? Podemos dividir as propostas em três “cestos”: primeiro, as individuais. Quando as pessoas recebem dinheiro, podem se mudar temporariamente se houver uma enchente ou muito calor, podem se proteger e seus animais ou não trabalhar por algum tempo se estiver muito quente. Durante a pandemia, vimos que muitos países sabem fazer isso. Qualquer pessoa pode ter uma conta no celular, diretamente conectada a um grande “pipeline” de dinheiro.

Há quem diga: “Mas tem corrupção, o dinheiro não vai chegar”. Não. Hoje, há pesquisas demonstrando que as pessoas que recebem dinheiro o utilizam muito bem. Por isso, é a parte mais importante da proposta.

Depois, as propostas nacionais: quando ocorre um grande desastre climático, os governos são sempre os seguradores de última instância. Portanto, um resseguro para os governos.
Por fim, a adaptação, que pode ser em nível comunitário ou regional, às consequências das mudanças climáticas. No Brasil, há uma tradição muito forte de descentralização, que pode servir de exemplo.

O que a sra. responde a quem diz que as estimativas não estão corretas e que isso não vai acontecer? Não dá para dizer que não vai acontecer porque já está acontecendo. Nos países pobres, já é uma realidade. Basta ver as enchentes do ano passado no Paquistão, a seca intensa no norte da Índia. Tenho certeza de que você pode pensar em exemplos no Brasil. O Níger e todo o Sahel se tornaram áreas onde nada mais pode ser cultivado. Não se trata mais de uma questão do futuro: é uma questão do presente.

Não seria melhor enfrentar a própria existência de bilionários em vez de tributá-los? Estaríamos saindo do meu campo pragmático, para entrar, por exemplo, na proposta de Thomas Piketty de tributar a riqueza em um nível muito mais alto para garantir que não haja bilionários —ou

[tributar] as heranças. São propostas interessantes, mas não estão na mesa no momento. Minha pergunta é concreta: o que podemos fazer hoje?

A partir do momento em que sua proposta for apresentada, quantos anos acha que seriam necessários para colocá-la em prática? Não faço ideia. Não sou muito familiarizada com negociações internacionais. No entanto, se pegarmos o exemplo da tributação de multinacionais, ela demorou uns dez anos até ser feita. Que seja em dez, mas acho que acontecerá e espero que aconteça.

O que a sra. pensa sobre o papel do intelectual na sociedade? Escolhi a economia quando me dei conta de que o economista pode ter uma influência no mundo real. Na maior parte do meu trabalho com o J-PAL, há uma relação clara da intelectual a serviço da política. Os políticos têm ideias, e nós estamos aqui para ajudá-los a encontrar maneiras eficazes de atingir seus objetivos.

Essa proposta é uma postura um pouco diferente da que tive durante toda a minha carreira acadêmica, porque se trata de uma proposta política, não apenas técnica. Pode ser criticada ou melhorada. Ao apresentá-la, me torno uma espécie de porta-voz da ciência atual.

Por que a sra. escreveu uma série de livros infantis sobre a pobreza? As leituras da infância são marcantes. O que vemos nos impressiona, nos choca e nos desafia. Foi essa a minha experiência.

Outro motivo é a literatura atual sobre pobreza e questões ambientais não ser das melhores. Tende a ser extremamente didática ou caricatural. Queria mostrar a riqueza da vida das pessoas pobres. Conscientizar as crianças dos problemas da pobreza e das soluções —porque todos os meus livros oferecem soluções—, só que sutilmente.

Em conferência recente, a sra. falou de um “efeito Bolsonaro” e um “efeito Lula” em relação ao desmatamento. A esquerda se preocupa com o meio ambiente mais que a direita? A política conta. Isso está demonstrado. Uma decisão política afeta outras decisões.

Quanto a Bolsonaro vs. Lula, são duas personalidades específicas. Não acho que Bolsonaro seja representativo da direita, assim como Lula não é necessariamente representativo da esquerda. É verdade que, se observarmos as propostas, os governos de direita tendem em geral a não defender tanto a ecologia quanto os de esquerda. Mas isso não basta para dizer que a direita é menos ecológica que a esquerda.

A sra. parece cética em relação a abordagens baseadas em compromissos voluntários para cumprir as metas de emissões por país. Está pessimista em relação à COP em Belém? Discutem-se muito os termos dos comunicados finais, e, na diplomacia, muitas vezes, o comunicado é a ação. Não sei o que teria acontecido sem as COPs, mas o esforço tem sido muito lento em comparação com a dimensão da necessidade.

Em relação à compensação para os países pobres, está nítido para mim que não é suficiente e que deveríamos fazer melhor e imediatamente. Mas não há só o imposto sobre o carbono. Há também, em tese, a possibilidade de um sistema de cotas por país. Esse era o princípio [do Protocolo] de Kyoto, que não deu certo.

A solução mais justa parecem ser cotas com base na população de cada país. Se conseguíssemos isso, minha proposta não seria mais necessária, porque haveria uma transferência absolutamente maciça para os países mais pobres. Só que não parece estar em pauta.

A sra. lamenta isso? Lamento, mas é preciso encarar o mundo como ele é. Não sou ingênua. Todo o meu trabalho sempre foi fazer o melhor dentro das restrições políticas. O que não quer dizer que não se deva sonhar com sistemas melhores. Tem gente que pode e deve fazer isso, mas meu trabalho sempre foi mais reformista: como fazer o melhor dentro do sistema muito imperfeito existente.

Recentemente, uma reforma tributária foi aprovada no Brasil para simplificar um sistema considerado muito complexo. Esse tipo de reforma pode desempenhar um papel na redução da pobreza? Não estudei [a reforma brasileira], mas ter um sistema mais legível, que unifique diferentes impostos e possibilite calcular a verdadeira extensão da redistribuição, possibilita um debate sobre as questões reais. Na França, temos um Imposto de Renda progressivo, mas também temos um monte de impostos “flat”, o que pode tornar seu caráter redistributivo obscuro.

Qual mensagem a sra. deseja transmitir em Washington? Para mim, é fundamental apresentar essa proposta diante dos ministros das Finanças para obter uma reação e forçá-los a dizer sim ou não e por quê. Isso coloca a proposta oficialmente no debate público. Espero que desemboque em uma declaração do G20 neste ano, que seria um passo importante para a concretização da proposta.

Minha mensagem mais importante será: “Vocês representam os países responsáveis pelas mudanças climáticas, que já estão ocorrendo e causando a perda de vidas nos países pobres. Até que encontrem uma maneira mais eficaz de combater as mudanças climáticas, vocês precisam encontrar

uma forma de compensar as pessoas mais pobres por meio de mecanismos sustentáveis, porque os voluntários não deram certo. Estou ciente da pressão fiscal sobre seus orçamentos, mas existem duas fontes de financiamento justas, realistas, populares, que nos permitiriam arrecadar US$ 500 bilhões de dólares por ano para proteger vidas”.

ESTHER DUFLO, 51
Presidente da Escola de Economia de Paris e professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), é cofundadora do J-PAL (Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) e vencedora do Prêmio Nobel de Economia de 2019, com Abhijit Banerjee e Michael Kremer. Autora, com Banerjee, de “Good Economics for Hard Times” e “Poor Economics: a Radical Rethinking of the Way to Fight Global Poverty”, entre outros livros.

O mundo sem esperança, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 05/05/2024

Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (EUA e Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional, indiscriminada e genocida reação do Estado de Israel contra a população da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7 de outubro do ano passado.

O establishment político, dominante no mundo, a partir do Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal de apoio à causa palestina e contra genocídio que lá está ocorrendo. Nos EUA a repressão policial ganha expressões violentas contra estudantes e professores universitários, até contra uma candidata à presidência do país.

Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua inteira família, dentro de suas próprias casas.

Precisamos tentar entender o porquê essa inércia. Aduzo alguns pontos que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação, seja concernente à Ucrânia sendo arrasada pela brutalidade russa e seja ao massacre e ao genocído na Faixa de Gaza.

2.
Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global, mas não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de Viena/Chicago se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já em 1944 chamou de A grande transformação: passar de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847 por Marx em A miséria da filosofia.

Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA (There is no Alternative): “Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos demais.

Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o menos possível.

Um segundo ponto é a estratégia perversa elaborada pelo sistema dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e confirmada por Freud é a de ser ilimitada.

Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo: Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores viciados no consumo.

Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade. É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo de vida geral da humanidade que daí emergiu.

A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa monocultura gera nos estudantes a convicção de que este mundo é bom e desejável, consciências ingênuas que não se dão conta de que são cooptados pelo sistema imperante e feitos seus reprodutores.

3.
Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a Pedagogia do oprimido, Educação como prática da liberdade e concluindo com a Educação com amor e esperança. Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as coisas por si mudem), mas criar as condições para que a esperança alcance seus objetivos transformadores.

Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece, não quer dizer mudar o que acontece.

Temos que passar a uma prática alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade diferente, igualitária, não consumista, mas solidária com um modo de produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra, criando o Todo, a humanidade e a natureza incluídas na grande Casa Comum, a Mãe Terra.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra (Vozes Nobilis).

Sociologia do Brasil, por Erik Chiconelli Gomes

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 05/05/2024

Comentário sobre o livro recém-lançado de Alysson Leandro Mascaro

Em Sociologia do Brasil, Alysson Leandro Mascaro nos apresenta uma análise crítica e renovadora das linhas de pensamento sociológico no país, enfatizando a importância e aplicabilidade do marxismo na compreensão de suas dinâmicas sociais, jurídicas e econômicas.

Este comentário visa explorar as principais contribuições da obra, destacando a maneira como Alysson Leandro Mascaro desafia interpretações tradicionais e propondo uma reavaliação das metodologias utilizadas no estudo da sociologia brasileira.

Alysson Leandro Mascaro inicia sua discussão delineando três principais caminhos de pensamento social que têm guiado a interpretação das questões sociais e jurídicas no Brasil: o juspositivista, o não juspositivista e o marxismo. Cada caminho é explorado não apenas em termos de suas contribuições, mas também de suas limitações, oferecendo um panorama crítico de como a sociologia brasileira tem moldado, e por vezes limitado, a compreensão da realidade social.

O primeiro caminho, o juspositivista, é criticado por sua abordagem de abordagem legal e formalista. Alysson Leandro Mascaro argumenta que essa perspectiva falha em capturar as nuances sociais e econômicas que influenciam a legislação e sua aplicação, conduzindo muitas vezes a interpretações que perpetuam desigualdades. A crítica não se limita a apontar falhas, mas também sublinha o perigo de uma visão descontextualizada do direito, que se desconecta das condições vivenciais da população.

Contrapondo-se, o segundo caminho, o não juspositivista, tenta incluir aspectos sociais e culturais na análise do direito, porém, como aponta Mascaro, frequentemente falha em integrar uma crítica econômica robusta, essencial para compreender as estruturas de poder que permeiam a sociedade. Esta abordagem, embora mais abrangente que a juspositivista, ainda é vista como insuficiente para uma análise profunda das complexidades sociais.

O marxismo é apresentado como uma alternativa crítica e enriquecedora. Alysson Leandro Mascaro defende que esta abordagem oferece as ferramentas possíveis para uma análise mais completa e integrada, abrangendo a interação entre economia, sociedade e direito. O autor destaca trabalhos de teóricos marxistas brasileiros como Caio Prado Jr., Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes, que obtiveram contribuições importantes sobre a realidade brasileira, demonstrando como as lutas de classe e as estruturas econômicas moldam o panorama social e jurídico.

Ao contrastar as limitações dos caminhos juspositivistas e não juspositivistas, Alysson Leandro Mascaro enfatiza como essas abordagens frequentemente não conseguem abordar integralmente as forças econômicas e as estruturas de poder subjacentes. O marxismo, em contrapartida, é apresentado como uma abordagem robusta que integra dimensões econômicas, sociais e jurídicas, permitindo uma compreensão mais abrangente e crítica da realidade brasileira.

A estruturação de Sociologia do Brasil é meticulosa e reflete um esforço do autor para abarcar a complexidade das interpretações sociológicas sobre o Brasil, passando-se de uma revisão histórica até análises contemporâneas.

Alysson Leandro Mascaro organiza o livro em grandes blocos temáticos que permitem ao leitor entender não apenas as diversas correntes de pensamento, mas também como essas correntes interpretam a formação social, econômica e política do Brasil ao longo do tempo, oferecendo, assim, ao leitor, uma contribuição pedagógica de seu pensamento.

Três caminhos do pensamento social brasileiro

Este capítulo estabelece uma base teórica para o livro, dividindo o pensamento social brasileiro em três grandes caminhos: a historicidade do pensamento social, o pensamento social contemporâneo e a sociologia do Brasil.

Essa divisão sugere uma análise crítica da evolução intelectual no país, destacando como diferentes períodos históricos e contextos sociais influenciaram as teorias sociológicas. Mascaro, aqui, discute as limitações e contribuições de cada corrente, enfatizando como o marxismo oferece uma lente crítica essencial para compreender as dinâmicas subjacentes que outros modelos podem ignorar.

As interpretações do Brasil pioneiras

Neste segmento, passa em revista das primeiras interpretações sociológicas do Brasil, que incluem tanto o trabalho de teóricos de destaque na ocupação política direta quanto o de alguns intelectuais que começaram a pensar o Brasil sob uma ótica mais acadêmica e sistemática. Ao detalhar “Os liberalismos pioneiros” e “Os não liberalismos pioneiros”, Alysson Leandro Mascaro aponta para uma análise crítica da formação do pensamento liberal no Brasil e suas alternativas, sublinhando como essas teorias moldaram ou falharam em moldar a compreensão das estruturas sociais e políticas brasileiros.

As interpretações do Brasil liberais

Focando em figuras como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, este capítulo examina como o liberalismo influenciou a interpretação da sociedade brasileira. A crítica gira em torno dessas abordagens, que embora inovadoras, possivelmente não capturaram completamente as complexidades das relações de poder e de classe, especialmente em um país marcado por profundas desigualdades sociais e raciais.

As interpretações do Brasil não liberais

Analisando autores como Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos e Darcy Ribeiro, Alysson Leandro Mascaro discute como essas interpretações desafiaram as visões liberais, introduzindo novas dimensões na compreensão da sociedade brasileira, como a racial e a cultural. A crítica se concentra em como, apesar de seus avanços, essas teorias também possuem limitações, particularmente em termos de uma análise de classe profunda e de como as estruturas econômicas moldam as relações sociais.

As interpretações do Brasil críticas

Neste tópico, Alysson Mascaro mergulha nas contribuições de pensadores marxistas fundamentais, como Caio Prado Jr., Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes, para revelar uma crítica incisiva às interpretações sociológicas tradicionais do Brasil. Com um foco especial em Ruy Mauro Marini, muitas vezes negligenciado tanto pela sociologia convencional quanto por certas vertentes do marxismo, Alysson Leandro Mascaro reavivou o reconhecimento de suas teorias, crucialmente importantes para compreender as dinâmicas de dependência econômica que caracterizam a história brasileira.

Ao mesmo tempo, Alysson Leandro Mascaro oferece uma reinterpretação revigorante da obra de Florestan Fernandes, especialmente de sua fase mais tardia, que se notabilizou por uma virada radical e profundamente marxista. Ele destaca como Florestan Fernandes, nesta fase, intensificou sua análise das estruturas de classe e dos mecanismos de opressão, posicionando-o como um crítico feroz tanto das políticas liberais quanto das práticas não liberais que moldaram o Brasil.

Alysson Leandro Mascaro empregou essas análises para ilustrar como o marxismo, mais do que apenas uma ferramenta para interpretação econômica, constitui um arcabouço teórico sólido capaz de articular as dimensões econômicas, sociais e políticas. Essa metodologia não só questiona as narrativas liberais e não liberais, como também avança uma maneira crítica de compreensão que visa superar as restrições das perspectivas tradicionais, redirecionando o debate sociológico para uma crítica mais profunda e comprometida com a transformação social. Nesse processo, Mascaro não apenas revisita as contribuições de figuras renomadas marxistas, mas também reformula e amplia a cânone marxista, orientando novos caminhos para interpretação e ação.
A sociedade brasileira – formação
Neste capítulo, Alysson Mascaro examina meticulosamente as raízes da sociedade brasileira, iniciando com a escravidão, que constitui um pilar fundamental na formação socioeconômica do país. Discutindo o “modo de produção escravista colonial”, o autor revela como as práticas econômicas e sociais durante o período colonial cumpriram padrões de desigualdade que persistem até os dias atuais.
Alysson Leandro Mascaro explora a dinâmica entre escravizados e livres, elucidando como a interação desses grupos moldou os contornos sociais que prevalecem. Numa perspectiva crítica, ele destaca as consequências do longo prazo dessa configuração socioeconômica, particularmente através da análise da “sociabilidade assalariada” que surgiu após a abolição da escravatura. O autor argumenta que, embora a escravidão tenha sido formalmente abolida, a transição para um sistema de trabalho livre não conseguiu desmantelar as estruturas de desigualdades hereditárias, perpetuando muitos dos desequilíbrios sociais e econômicos estabelecidos durante o período colonial.
A sociedade brasileira – atualidade
Este segmento aprofunda a discussão iniciada no capítulo sobre a “Formação”, examinando como as estruturas e práticas históricas continuam a influenciar o presente. Mascaro detém-se no “Desenvolvimento da dinâmica capitalista brasileira”, ressaltando como o capitalismo no Brasil é singularmente configurado pelas heranças coloniais e escravocratas. Ele expõe como essas origens moldaram especificidades econômicas que perpetuam desigualdades.
A seção sobre a “Consolidação da reprodução social brasileira” oferece uma análise crítica de como as classes sociais se perpetuam em contextos contemporâneos, mantendo e renovando padrões de desigualdade ao longo das gerações. Por fim, o “Sentido da reprodução social brasileira contemporânea” aborda os desafios atuais enfrentados pela sociedade, destacando a persistente desigualdade social e formas emergentes de exclusão.
Alysson Leandro Mascaro, assim, vincula a história à modernidade, ilustrando como as dinâmicas antigas se adaptam e se manifestam em novos contextos, reforçando a necessidade de uma análise sociológica que seja tanto reflexiva quanto propositiva na busca por justiça social e econômica.
A contribuição dos teóricos marxistas brasileiros, como destacado por Alysson Leandro Mascaro, exemplifica como o marxismo pode ser aplicado para analisar e entender não apenas as questões econômicas, mas também como estas se intersectam com as dinâmicas raciais e de gênero. Teóricos como Clovis Moura, Ciro Flamarion Cardoso, Jacob Gorender, Lélia Gonzales e Décio Saes têm enriquecido o pensamento marxista brasileiro, trazendo para o debate as especificidades do contexto social e histórico do Brasil.
Essas abordagens ressaltam a necessidade de considerar como a opressão e a exploração são moldadas não só por fatores econômicos, mas também por questões raciais e de gênero, oferecendo uma análise mais completa das estruturas de poder.
Por exemplo, Lélia Gonzales e Clovis Moura têm sido fundamentais ao demonstrar como o racismo e o sexismo se entrelaçam com as lutas de classe, ampliando a compreensão de como a exploração e a opressão são vivenciadas de maneira diferenciada por diferentes grupos na sociedade brasileira. Esta abordagem ampliada é crucial, pois permite uma análise mais rica e matizada, que não apenas aborda as desigualdades econômicas, mas também permite outras formas de injustiça social.
Alysson Leandro Mascaro, ao integrar essas contribuições no seu estudo, reafirma o marxismo como uma ferramenta analítica indispensável para a sociologia contemporânea no Brasil. A obra desafia os acadêmicos e pensadores sociais a repensarem suas abordagens metodológicas e teóricas, evoluindo uma compreensão mais holística e engajada nas dinâmicas sociais, econômicas e jurídicas que moldam o país. O autor argumenta que, sem uma compreensão crítica que inclui todas essas dimensões, a análise sociológica corre o risco de ser superficial e inconveniente para enfrentar os desafios sociais contemporâneos.
Ao percorrer os capítulos, percebe-se que Alysson Leandro Mascaro faz uma articulação coerente entre a teoria e a prática, entre a história e a contemporaneidade, evidenciando como as interpretações do Brasil evoluíram e como elas são aplicadas para entender e desafiar a realidade brasileira atual.
O uso do marxismo como ferramenta crítica é central para essa abordagem, permitindo uma análise mais profunda das raízes das desigualdades e oferecendo caminhos para pensar em soluções concretas para os problemas sociais persistentes. Esta obra, portanto, não contribui apenas para o campo da sociologia, mas também para o engajamento político e social mais amplo no Brasil.
Sociologia do Brasil é, portanto, uma obra crucial para quem busca entender as raízes sociológicas das questões que o Brasil enfrenta hoje. Ao revalorizar o marxismo, o autor não apenas resgata uma tradição teórica muitas vezes marginalizada, mas também propõe uma forma de análise que considere todas as camadas da vida social, oferecendo uma visão mais holística e transformadora.
Esta obra é um convite à reflexão crítica e a uma revisão metodológica na sociologia brasileira, tornando-se essencial para estudantes, acadêmicos e todos aqueles interessados em uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais do Brasil.
*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Quem quer desligar a TV Cultura? por Eugênio Bucci

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Governador de SP avança seu projeto de desmonte. Agora, sua base na Assembleia abre uma CPI para investigar “irregularidades” na fundação que administra a TV. Denúncias são vagas e infundadas. Seria tentativa de intimidar sua liberdade criativa e informativa?

Eugênio Bucci – OUTRAS MÍDIAS – 03/05/2024

A base do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo abriu fogo contra a TV Cultura. No dia 17 de abril, às 19h, protocolou o Projeto de Resolução n° 9/2024 (Processo Número: 9652/2024), com o qual pretende criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar “irregularidades” na Fundação Padre Anchieta, titular da TV e da Rádio Cultura de São Paulo. O tempo começa a fechar. Se a CPI for mesmo instalada, as relações entre o Palácio dos Bandeirantes e a melhor TV pública do Brasil vão azedar de vez.

A coisa começou mal – e começou muito mal explicada. São pelo menos três os indícios de inépcia
no Projeto de Resolução. O primeiro é a ausência de um evento objetivo a ser apurado. Não se aponta um único fato determinado, só o que se diz é que houve “denúncias de irregularidades na gestão”. Mas quais são as denúncias? Ninguém conta. Só o que existe é uma acusação vaga, indefinida, meio randômica e um tanto aleatória.

Além disso, mesmo que as denúncias fossem reais, não se entende por que uma CPI seria necessária de imediato. Por acaso a Fundação Padre Anchieta se recusou a fornecer à Assembleia ou a quem quer que seja algum dado sobre sua administração? A Fundação está escondendo informações? A resposta é não. Portanto, não há motivo para uma um expediente investigatório tão extremado, que só se justifica quando suspeitas clamorosas de desmandos ou de malversação de fundos não podem ser esclarecidas de outra forma.

O segundo descuido vem na afirmação de que “a Fundação Padre Anchieta é mantida com recursos públicos”. De novo, não é bem assim. Em parte, apenas em parte, o seu sustento vem do Erário, mas, em outra parte – cerca de 50%, na média – o dinheiro tem origem em receitas próprias, que não têm nada a ver com o poder público.

O terceiro atropelo conceitual decorre de uma desinformação primária. Logo na abertura, o documento assevera que a Fundação seria um ente “de direito público”. Errado. A Fundação, na verdade, é regulada pelo direito privado. O próprio Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 2019, a descreveu como “fundação pública de direito privado” (item 7 da ementa da decisão sobre o Recurso Extraordinário 716.378).

Será que os parlamentares ignoram a natureza jurídica da instituição que pretendem submeter a inquérito? Ou será que apenas semeiam confusão para insinuar que, por ser de “direito público”, a TV Cultura deveria se curvar às autoridades?

Difícil descobrir. O que se sabe, ao menos até o momento, é que o ataque parlamentar apresenta inconsistências de fundamentação, de precisão e de conhecimento de causa. Parece que alguém ali tem o propósito não de buscar a verdade, mas de pressionar, amedrontar e ameaçar. Afinal, se não há um fato determinado que inspire suspeitas graves e se não há um episódio sombrio que não poderia ser elucidado por meios administrativos ordinários, por que insistir num processo investigativo tão pirotécnico?

É sabido que, no Brasil, a instauração de uma CPI costuma vir acompanhada de um clima de comício policialesco. Será nessa base que o Poder Legislativo paulista vai tratar uma emissora pública que recebe aplausos e prêmios em toda parte? O que devemos esperar daqui em diante? O barraco pelo barraco? A estratégia é asfixiar as atividades da TV Cultura? Estará em curso uma tocaia institucional? Um surto obscurantista? Será que os representantes do povo não sabem conviver com a autonomia de uma boa emissora pública?

Pois deveriam saber. Deveriam saber e ensinar. A autonomia da TV Cultura já faz parte da tradição paulista assim como faz parte do direito positivo. A lei estadual (9.849, de 26 de setembro de 1967) que criou a Fundação Padre Anchieta cuidou de dotá-la, já no artigo primeiro, de “autonomia administrativa e financeira”. A independência jornalística veio como consequência natural, o que só trouxe benefícios para São Paulo e para o Brasil. Não é com vassalagem que se faz uma boa programação noticiosa, analítica, educativa e cultural.

Por fim, como se já não tivéssemos dúvidas suficientes, vai aqui mais uma: o governador concorda com essa investida arbitrária? Será que parte dele a ordem para que se cortem os repasses da Fundação, como vêm acontecendo? O Poder Executivo vai fechar os olhos para essa humilhação reiterada?

Se houver algum juízo no Palácio dos Bandeirantes, a escalada anticultura terá de ser revertida. Ainda temos tempo para dissipar as nuvens inquisitoriais. Um gesto, apenas um gesto, ainda que discreto, poderá mudar o curso dos acontecimentos. A TV Cultura vem apanhando não por supostas “irregularidades” de gestão, que inexistem, mas por dispor de liberdade criativa e informativa. Ela não sofre por seus erros, mas por seus acertos.

Ou mudamos esse quadro, ou só nos restará a vergonha – não para a televisão que sobrevive com brilho, altivez e verba curta, mas para um parlamento e um governo que se terão se deixado instrumentalizar pela intriga a serviço da intimidação.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Investimento estrangeiro – prós e contras, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 03/05/2024

Novos investimentos estrangeiros são apresentados como um selo de confiança ou bom-comportamento, sem levar em conta que o tema é vasto e polêmico

O investimento estrangeiro é positivo ou negativo para um país? Como para muitas questões econômicas, a resposta é: depende. Há vantagens e desvantagens. Convém, portanto, examinar o tema um pouco mais de perto.

Não é o que geralmente se faz. Predominam slogans e simplificações. No governo, por exemplo, tem havido muito oba-oba por ocasião da divulgação de alguns novos investimentos do exterior. Novos investimentos estrangeiros são apresentados como um selo de confiança ou bom-comportamento. “O Brasil está de volta”, proclama-se. (Esse slogan, diga-se de passagem, é um dos mais surrados internacionalmente.) Além disso, foi instituído, com certo estardalhaço, um programa que oferece proteção cambial a determinados investidores estrangeiros.

O tema dos prós e contras do investimento estrangeiro é vasto e polêmico. Não quero me alongar demais e seleciono assim pontos que parecem mais relevantes.

Permita-me, leitor ou leitora, ser de novo um pouco mais técnico neste artigo. Farei o possível para não complicar demais, mas há aspectos inevitavelmente intrincados. Repito a sugestão que fiz em outra ocasião. Se você não for economista, não desanime se uma passagem ou outra lhe parecer incompreensível. Siga em frente e se puder entender, digamos, 70 ou 80% do texto, já terá valido a pena.

Aspectos positivos do investimento estrangeiro: fatos e meias-verdades

Começo pelos aspectos potencialmente positivos do investimento estrangeiro. São basicamente dois: (i) o investimento do exterior traz receitas cambiais e constituiu um tipo de aporte de capital que, além de não aumentar a dívida externa do país, cobre de forma relativamente estável um eventual déficit de balanço de pagamentos em conta corrente; e (ii) o investimento externo pode contribuir para o aumento da formação bruta de capital fixo, traduzindo-se em elevação do crescimento potencial da economia no longo prazo.

Esses argumentos são válidos e têm ampla divulgação. São meias-verdades, porém. E a meia verdade, como dizia Tennyson, é mais perigosa do que a mentira pura e simples. Nada pior do que as “mentiras verdadeiras”, aquelas têm alguma base factual ou lógica, e as mentiras “sinceras”, aquelas que são propagadas com convicção.

É fato, sim, que o investimento externo traz receitas em moeda estrangeira e pode, portanto, ajudar a financiar um desequilíbrio em conta corrente (a parte do balanço de pagamentos que corresponde à balança comercial, serviços e rendas). E, de fato, como receber investimento não constitui uma obrigação financeira, não aumenta a dívida externa líquida do país. A variação desta última corresponde ao déficit em conta corrente deduzida a entrada liquida de investimentos (diretos e de portfólio).

Também é verdade que o investimento pode ser uma forma relativamente estável de compensar um eventual desequilíbrio nas contas externas correntes. Os investimentos em capacidade produtiva podem até sair do país em algum momento futuro, mas não de forma rápida, pois há defasagens temporais significativas entre a decisão de desinvestir e a sua concretização.

Mais importante: os investimentos em capacidade produtiva, designados nas estatísticas como “investimentos diretos”, podem, sim, reforçar o estoque de capital da economia e o seu crescimento de longo prazo.

Parecem então convincentes esses argumentos? Acredito que sim, tanto mais que os termos técnicos podem impressionar os leigos. E tanto mais que brasileiro desconfia do que entende e aceita melhor o que não entende, como dizia Nelson Rodrigues, apontando uma das muitas facetas do nosso complexo de vira-lata: se eu entendo, pensa o brasileiro na sua humildade de cachorro velho, então não deve ser grande coisa. Apesar disso, tento esclarecer, mostrando onde estão as lacunas e falácias nos dois argumentos. Veremos que esses argumentos são apenas parcialmente verdadeiros.

Investimentos estrangeiros e contas externas – corrigindo omissões
Em primeiro lugar, não se deve perder de vista que de pouco vale, do ângulo do comprometimento futuro das contas externas, absorver investimentos em vez de empréstimos. Os investimentos estão, sim, por definição, fora da classificação de dívida externa. Integram, entretanto, o conceito mais amplo de passivo externo líquido de um país.

Este é a soma da dívida e do estoque de investimentos estrangeiros deduzidos os ativos externos do país no exterior na forma de créditos e investimentos. As dívidas geram pagamentos de juros; os investimentos, pagamentos de lucros e dividendos. As dívidas têm calendário de amortização; os investimentos podem ser repatriados, ainda que sem calendário fixo.

O conceito mais abrangente e mais relevante, portanto, é o de passivo externo líquido. O aumento do passivo externo líquido corresponde ao déficit em conta corrente. Havendo déficit, o passivo para com o exterior cresce de qualquer maneira, seja como dívida, seja como investimento. Ao contrário do que talvez pareça, as diferenças entre as duas formas de capital nem sempre são significativas.

Além disso, não é necessariamente verdade que o investimento estrangeiro constitua uma forma mais estável de capital. Há duas formas de investimento nas estatísticas de balanço de pagamentos: o investimento direto e o de portfólio. O investimento direto é aquele potencialmente mais ligado à formação de capital (ou à compra de capacidade produtiva existente). O de portfólio inclui, por exemplo, compra por estrangeiros (não-residentes) de ações na bolsa de valores do país ou aquisição de títulos de dívida (pública e privada).

O capital de portfólio, que pode predominar em determinadas situações, é tipicamente especulativo ou de curto prazo. Não pode ser considerado estável ou confiável. Desse ponto de vista, o endividamento externo de médio e longo prazo é melhor.

Um possível agravante é que os investimentos diretos registrados no balanço de pagamentos incluem uma parcela desconhecida de investimentos de portfólio. Esse problema de classificação, levantado em artigo recente¹, só pode ser esclarecido com acesso detalhado a dados que apenas o Banco Central possui.

Seja como for, é importante considerar que não convém, em geral, incorrer em déficits substanciais nas contas externas correntes, mesmo que cobertos por investimentos diretos strictu sensu. Isso é especialmente verdadeiro nas situações em que ao déficit corrente se adicionam vencimentos importantes de dívida ou riscos de saída abrupta de capitais de portfólio.

Para um país que queira preservar a sua autonomia, é estrategicamente melhor zerar a conta corrente ou, no máximo, incorrer em déficits pequenos. No caso do Brasil, os déficits externos correntes têm sido modestos nos anos recentes. O Banco Central acaba de divulgar um déficit em conta corrente de 1,5% do PIB nos doze meses até março. Os investimentos registrados como “diretos” chegaram ao dobro, alcançando 3% do PIB.

Investimentos estrangeiros e capacidade produtiva

Apesar de tudo, não há dúvida de que a forma mais defensável de capital externo é aquela que toma a forma de investimentos diretos propriamente ditos. Feitas as ressalvas acima, o investimento direto stricto sensu pode, sim, gerar capacidade produtiva nova e, quando o faz, constitui, sim, uma modalidade mais estável e duradoura de capital externo.

Atenção, porém. Há pré-requisitos. E algumas perguntas precisam ser respondidas.

O investimento direto, nas estatísticas habituais, não só pode aparecer misturado com alguns investimentos de portfólio, como já indicado, mas inclui também dois tipos diferentes de investimentos diretos: aqueles que criam capacidade nova (novas empresas ou ampliação de empresas existentes) e aqueles que simplesmente compram capacidade pré-existente. Nesse último caso, o que ocorre é desnacionalização da economia (exceto em casos de aquisição por outros estrangeiros de filiais ou subsidiárias já existentes de empresa externas).

A confusão conceitual costuma ser grande. Se o investimento que ingressa corresponde tão somente à aquisição de empresas existentes, não há nenhum efeito imediato em termos de expansão da demanda e da taxa global de investimento. De início, há mera transferência de propriedade da capacidade produtiva instalada. Só haverá reforço real do investimento, se os novos proprietários tiverem condições e interesse em ampliar as empresas que adquiriram.

A propósito, fala-se em “privatização”, às vezes impropriamente, quando o capital estrangeiro adquire o controle de empresas estatais. Ora, não raro o que acontece é a compra de estatais brasileiras por estatais estrangeiras. Nesse caso, não há privatização alguma, mas desnacionalização pura e simples. Não se cria, pelo menos de imediato, capacidade produtiva nova e os centros de decisão empresarial são transferidos para fora do país.

Outra questão relevante: ao abrir a economia para determinados investimentos diretos estrangeiros, o governo se preocupa em estabelecer contrapartidas estratégicas? Condiciona, por exemplo, a autorização para investir a compromissos de transferência de tecnologia? Negocia compromissos de realizar compras com fornecedores nacionais, estimulando produção e geração de empregos no país?

A China costuma estabelecer esse tipo de condição. O Brasil, pelo seu tamanho, é um dos maiores receptores de investimentos estrangeiros no mundo. Tem, em princípio, poder de barganha para estabelecer requisitos de transferência de tecnologia e compras em território nacional.
Garantias contra risco cambial

O governo parece caminhar em direção diferente. Em vez de negociar contrapartidas, oferece garantias. Anunciou-se há pouco a oferta de hedge cambial para o financiamento de investimentos estrangeiros considerados ambientalmente sustentáveis. Decisão duvidosa, que ainda precisa ser detalhada e merece mais discussão. Se entendi bem, para estimular determinados investimentos do exterior o governo estatiza o risco cambial. Em caso de depreciação acentuada da moeda brasileira, quem paga a conta é o Tesouro.

Trata-se de um programa que gera risco fiscal e risco cambial. O risco de despesas inesperadas é transferido para os cofres públicos. Se a desvalorização da moeda nacional ficar acima do esperado, o governo incorre em perdas cambiais e fiscais, isto é, diminuem as reservas internacionais e aumenta o déficit público. Curiosamente, o mercado financeiro e a mídia, sempre tão alarmados com o risco fiscal, parecem apoiar sem reservas a nova proposta.
Outra questão, esta geralmente ignorada: a suposição é que o investimento garantido contra risco cambial venha a ser de fato adicional, isto é, que ele não aconteceria na ausência da garantia estatal. Pode-se descartar, entretanto, que investimentos beneficiados não ocorreriam de qualquer maneira? Seria o pior dos mundos: na esperança de aumentar o investimento externo, o governo acabaria assumindo o risco cambial de investimentos que ingressariam no país de qualquer
forma. Como os beneficiários dessa decisão são os grandes capitais, ninguém protesta, ninguém reclama.

Rejeição liberal à interferência estatal

Para terminar, um breve comentário sobre as viúvas brasileiras do neoliberalismo. Os representantes dessa velha guarda poderiam argumentar que tentar fixar condições para a entrada de investimentos viola as regras de livre mercado. Se forem coerentes (o que nem sempre acontece) objetariam, pela mesma razão geral, a que o governo ofereça proteção cambial para certos investidores externos.

Mas é frágil essa visão liberal, defunta no mundo, mas ainda presente no Brasil, especialmente no discurso do mercado financeiro e da mídia tradicional. A livre concorrência em mercados pulverizados existe mais em livros-texto do que na realidade das economias. Na prática, o que prevalece é a concorrência oligopólica, limitada, entre grandes corporações e blocos de capital.

O Estado participa e interfere nas economias bem-sucedidas. E assiste, passivo, inerte, nas economias fracassadas.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém

Escolas do futuro são escolas ‘low tech’, por José Ruy Lozano

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Materiais físicos impulsionam habilidades motoras, criatividade e imaginação

José Ruy Lozano, Sociólogo e educador, é autor de livros didáticos e membro da Comunidade Reinventando a Educação (Core)

Folha de São Paulo, 03/05/2024

Chamou a atenção da imprensa, no ano passado, o fato de que o sistema público de educação da Suécia decidiu voltar a usar livros e cadernos físicos como material didático obrigatório no lugar de tablets e lap tops. As razões apresentadas pelos suecos são várias, mas passam pela aprendizagem da leitura e pela manutenção da capacidade de concentração dos estudantes. Em ambos os casos, os materiais físicos apresentam resultados muito melhores.

Os escandinavos não estão sozinhos. Já forma uma longa fileira a lista de países desenvolvidos que vêm progressivamente abandonando equipamentos digitais e retornando ao papel e à caneta. As autoridades educacionais desses países baseiam-se em pesquisas científicas recorrentes, que apontam não só a melhoria do rendimento acadêmico como também o desenvolvimento mais adequado de habilidades motoras e o impulso à criatividade e à imaginação, sempre melhor estimuladas pelo uso de materiais físicos nas escolas.

Não há que se imaginar a escola contemporânea totalmente desconectada do mundo digital. Evidentemente, salas de aulas com computador e conexão à internet, que permitam a exibição de materiais visuais diversos, além de espaços com equipamentos digitais para pesquisa online mostram-se indispensáveis no mundo de hoje. A tecnologia digital, no entanto, não é fetiche ou panaceia. Ela não só não é capaz de solucioná-los, como por vezes termina por ampliá-los.

Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova York, publicou dados alarmantes em seu novo livro, “The Anxious Generation” (“A Geração Ansiosa”), que aborda a deterioração da saúde mental de crianças e adolescentes a partir de 2010. Quadros de depressão, ansiedade, automutilação e suicídio têm aumentado dramaticamente desde então. Não à toa, é justamente a partir de 2010 que se dá a generalização do uso das redes sociais, notadamente o Instagram, difundindo-se entre os mais jovens.

Ao largo das pressões negativas do mundo virtual, que captura a atenção dos mais jovens, corrói sua capacidade de concentração e os transforma em objetos manipulados por algoritmos, educadores têm reiterado a necessidade da redescoberta das relações de proximidade e do mundo físico. Nas mais renomadas escolas do Vale do Silício, na Califórnia, onde estudam os filhos dos executivos das grandes corporações mundiais de tecnologia, há poucas telas de LED e muitas ferramentas. No lugar do computador, lápis e canetas, mas também martelos, chave de fenda, pincéis. A educação “mão na massa”, com objetos e materiais físicos predomina em relação a dispositivos eletrônicos.

Diante da revolução representada pelo Big Data e pelas inteligências artificiais, devemos nos manter firmes como educadores que visam produzir conhecimento, não apenas reproduzir o que está armazenado nas bases de dados de governos e empresas. Afinal, a educação não é apenas dar acesso a informações, mas principalmente fazer refletir e questionar a partir das informações que acessamos.

Limitando o crescimento econômico

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Vivemos momentos interessantes, acumulamos desigualdades históricas, nos acostumamos com uma degradação social que qualquer sociedade normal sentiria vergonha e ojeriza, destacamos as variadas riquezas nacionais, exaltamos o homem cordial que nunca existiu na sociedade brasileira, destacamos a fragilização da educação nacional e, ao mesmo tempo, degradamos a figura do professor, piorando as condições de trabalho e arrochando seu salário, reduzindo investimentos em capital humano e continuamos rezando pela cartilha da ortodoxia, ideias rechaçadas pelos seus criadores e, mais uma vez, ainda continua sendo um mantra dos donos do poder nacional.

No começo dos anos 1990, a economia brasileira apresentava uma inflação galopante, seus níveis degradantes levaram o governo a criar um instrumento engenhoso para controlar os preços
relativos e estabilizar a moeda. Nascia o Plano Real, que trouxe benefícios palpáveis para a sociedade brasileira, melhorando a renda agregada, facilitando a chegada de investimentos externos, aumentando a competição e melhorando o ambiente econômico. É importante destacar ainda, que para estabilizar a economia o governo abusou da política cambial, valorizando-a em excesso, aumentando sensivelmente as taxas de juros, aumentando as importações e contribuindo para fragilizar os setores exportadores e criando, infelizmente, uma elite financeira viciada em juros altos.

Com esse choque dos juros elevados, criamos uma nova capacidade de analistas econômicos, os financistas ou rentistas, especialistas nos movimentos das bolsas de valores e que pouco sabem sobre a economia real, se especializando em defender os interesses dos donos do poder econômico, grupos dotados de grande recurso monetário e forte poder político, defensores contumazes desta política de juros estratosféricos que perduram desde então, criando uma sociedade mais desigual e empobrecida, sem perspectivas, sem esperanças e sem dignidade, acreditando que o problema está sempre nos outros, defendendo interesses imediatistas, fortalecendo uma visão de mundo centrada no individualismo e dos ganhos imediatos, estimulando a polarização política, fomentando conflito entre poderes, fortalecendo demandas ultrapassadas e desnecessárias, fugindo sorrateiramente das discussões de fundo que contribuem para sermos uma sociedade mais desigual, mais violenta e marcada pela exclusão social.

A sociedade brasileira se acostumou com taxas de juros elevadas, desta forma, os investimentos foram reduzidos, o desemprego aumentou, o trabalho se precarizou e, ao mesmo tempo, elevou substancialmente a quantidade de milionários e bilionários, como atesta as publicações especializadas, pessoas que pouco produzem e sobrevivem da renda, os chamados rentistas ou financistas, que engordam rapidamente em detrimento da espoliação da sociedade nacional.

Precisamos rever os nossos conceitos enquanto nação, analisarmos nossas trajetórias históricas, repensar nosso futuro, planejar nosso presente, garantindo recursos monetários e financeiros para investimentos produtivos, juros decentes, aumentando a geração de renda agregada, tributando todos os donos do poder econômico, reduzindo subsídios que degradam as contas públicos e pouco trazem para a comunidade, reduzindo os privilégios para todos os grupos público e privado que se escondem numa sociedade em franca degradação social, política e moral para manter seus ganhos imediatos e clamar por uma suposta meritocracia que não existe em uma sociedade tão marcada pela desigualdade e pela exclusão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

No Dia Internacional do Trabalhador, rentismo mostra suas garras, por André Roncaglia

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Novas tecnologias elevam produtividade mas geram questões sobre desemprego estrutural

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 02/05/2024

O Dia Internacional do Trabalhador é um emblema das lutas históricas por melhores condições de trabalho, dignidade e justiça social: a jornada de trabalho de oito horas, o direito à organização sindical e a valorização do trabalho humano.

Inspirada pela greve iniciada em 1º de maio de 1886 em Chicago, a celebração continua atual e necessária. Nos últimos 30 anos, o poder de barganha dos trabalhadores foi debelado pela globalização, pela precarização e pela automação.

As novas tecnologias (uberização, automação e robotização) aumentam a eficiência produtiva, mas levantam questões sociais e éticas relativas ao desemprego estrutural, à neutralidade racial e de gênero dos algoritmos e à desigualdade de renda. A popularidade da proposta de renda básica universal no Vale do Silício é sintoma deste temor.

Com efeito, a queda da participação dos salários na renda da economia é fenômeno global e de longo prazo, como mostram estudos da OIT e do FMI. Nos países desenvolvidos, a OCDE registrou recente supressão de salários em várias indústrias, ocupações e níveis de qualificação. No Brasil, os salários somam menos de 40% da renda total, refletindo a desindustrialização precoce, a baixa sindicalização, a desregulamentação e a alta taxa de informalidade no mercado de trabalho: 39% da nossa força de trabalho se encontra em empregos precários e de baixa qualificação.

Insensível a esses fatos, o “banqueiro central dos pobres”, Roberto Campos Neto (RCN), anunciou, em entrevista à CNN em 1º de maio de 2024, que a economia brasileira vive um surpreendente “pleno emprego”, mesmo com 7,9% da força de trabalho desempregada e com taxa de subutilização da mão de obra em 18%.

Traduzindo: para ele, uma renda média mensal de R$ 3.100 é uma exuberância incompatível com a estabilidade macroeconômica. Se a renda do trabalho continuar subindo, o Banco Central (BC) será forçado a elevar a Selic para moderar as demandas salariais —por meio de maior desemprego— e, claro, defender o retorno do capital financeiro improdutivo, com a desculpa do controle da inflação, a qual está caindo sistematicamente.

Na mesma data, os porta-vozes do rentismo defenderam a desvinculação irrestrita dos benefícios sociais com relação ao salário mínimo (SM), alegando que cada R$ 1 a mais aumenta o gasto público em R$ 388 milhões.

Em números: a elevação nominal de 6,4% do salário mínimo entre 2024 e 2025 implica elevação do gasto primário em R$ 35 bilhões. O BC pode compensar esse aumento reduzindo em mero 1 ponto percentual a Selic, poupando R$ 44 bilhões em serviços de juros da dívida pública; mas este é um debate interditado.

A desvinculação focalizada de privilégios com relação ao SM é uma discussão bem-vinda; porém, o silêncio sobre os juros da dívida e a obscena injustiça tributária contrastam com a estridência das críticas aos direitos sociais e ao esforço de reindustrialização.

O ataque coordenado ao BNDES é outro sintoma deste mal-estar do rentismo. Seu modelo de estimação de empregos mostra que, em 2024, os projetos apoiados pelo banco podem adicionar 1,5 milhão de empregos.

A combinação de queda da Selic com a atuação do BNDES e os estímulos ao investimento industrial pelo MDIC ajudam a explicar a criação de 720 mil novas de emprego apenas no primeiro trimestre de 2024. O crescimento da economia previsto para este ano já passa de 2%. Esta “agenda errada” do governo provocou, no mesmo 1º de maio, a melhoria da perspectiva da nota de crédito do Brasil pela agência Moody’s. A agência não comprou o pânico fiscal e gerou muito mau-humor na Faria Lima.

A promoção de emprego e salário dignos e o acesso à seguridade social apenas ameaçam quem teme a tributação progressiva da renda e do patrimônio como pilar central do equilíbrio fiscal. A eutanásia do rentismo é, portanto, condição para o desenvolvimento.

A luta continua!

Dia do Trabalhador para quem? por Thiago Amparo

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Motoboys passam fome e sede, e possuem o dobro do índice geral de pressão alta

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Folha de São Paulo, 02/05/2024

“Liberdade de contrato no trabalho inclui ambas as partes envolvidas; uma tem tanto o direito de comprar quanto a outra de vender trabalho. Não há base razoável, no que diz respeito à saúde, para interferir na liberdade contratual, delimitando as horas de trabalho.” Este é o trecho de uma das mais desastrosas decisões da Suprema Corte dos EUA. Em 1905, no caso Lochner, a Corte decidiu contra uma lei de NY que proibia que padeiros trabalhassem mais que 60 horas por semana ou 10 horas por dia.

Cento e dezenove anos depois, para setores uberizados, pouco mudou: 40% dos entregadores de aplicativos trabalham mais de 60 horas por semana. Os dados são da pesquisa da Unicamp, feita com 200 entregadores em Campinas, publicada pelo The Intercept Brasil.

Nela, ficou claro que o bico na verdade é a principal fonte de renda, que motoboys passam fome e sede, e possuem o dobro do índice geral de pressão alta. Se a esquerda não conseguir reorganizar alianças num mundo pós-emprego, esta estará fadada ao fracasso diante da ilusão, à direita, de trabalhadores precarizados como empreendedores.

Outra faceta é a pejotização, com o Supremo e tudo. Em 85% das mais de 300 ações analisadas pela USP, ministros do STF afastaram sozinhos competência da Justiça do Trabalho. Problemática também é a forma pela qual o STF decide: os togados resolvem com mais rapidez casos trabalhistas do que outros litígios (15,7% deles no máximo em um dia), indica pesquisa da FGV Direito SP.

Liberais preocupados com o déficit fiscal deveriam estar, igualmente, preocupados com o desmantelamento da base tributária e com a pejotização de quem se enquadraria como trabalhador. Acidentes de trabalho têm custo, piora na saúde mental também, desigualdade de gênero e raça empacam o desenvolvimento da economia. Quem ainda não entendeu que os padeiros de 1905 somos todos nós, inclusive a dita classe intelectual precarizada pela inteligência artificial, entendeu nada sobre o sentido do 1º de Maio.

O neoliberalismo e a hegemonia dos valentões, por George Monbiot

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O sistema entende a vida como uma luta na qual só alguns devem vencer, promovendo líderes capazes, desde a infância, de coagir, submeter e ser brutais. Não precisa ser assim. Na competição, todos somos, de algum modo, derrotados

George Monbiot – Outras Palavras – 29/04/2024

Um grande e impressionante estudo sobre o progresso das crianças na idade adulta descobriu que aqueles que promovem bullying e apresentam comportamento agressivo na escola têm maior probabilidade de prosperar no trabalho. Eles conseguem empregos melhores e ganham mais. Os pesquisadores afirmam estar surpresos com suas descobertas, mas será que elas são realmente tão notáveis? A associação de cargos de chefia com comportamentos de intimidação e domínio será, sem dúvida, um choque para muitos.

Isto não significa que todas as pessoas com bons empregos ou que dirigem organizações sejam agressoras. Longe disso. Não é difícil pensar em pessoas boas em posições de poder. O que isto nos diz é que não precisamos de pessoas agressivas para organizar as nossas vidas. Nem a boa liderança, nem o sucesso organizacional, nem a inovação, a visão ou a previsão exigem uma mentalidade de domínio. Na verdade, tudo pode ser inibido por alguém que exerce seu peso.

Seja na teoria dos jogos ou no estudo de outras espécies, você descobre rapidamente como o comportamento dominante de alguns pode prejudicar a sociedade como um todo. Por exemplo, um estudo sobre peixes ciclídeos descobriu que os machos dominantes têm “relações sinal-ruído mais baixas” (som e fúria, sem significar nada) e impactos contraproducentes no desempenho do grupo. Alguma coisa parece familiar?

Uma vitória para os agressores é uma perda para todos os outros: o seu sucesso é um jogo de soma zero. Ou soma negativa: o primeiro estudo que mencionei também descobriu que os agressores escolares são mais propensos a abusar do álcool, fumar, infringir a lei e sofrer problemas de saúde mental mais tarde na vida. Mas o triunfo dos agressores é também um resultado da narrativa dominante dos nossos tempos: durante os últimos 45 anos, o neoliberalismo caracterizou a vida humana como uma luta que alguns devem vencer e outros devem perder. Somente por meio da competição, nesta religião quase calvinista, podemos discernir quem pode ser o digno e o indigno. A competição, claro, é sempre fraudada. O objetivo do neoliberalismo é fornecer justificativas para uma sociedade desigual e coercitiva, uma sociedade onde os valentões governam.

É um círculo perfeito: o neoliberalismo gera desigualdade; e a desigualdade, como mostra outro artigo, está fortemente associada ao bullying na escola. Com maiores disparidades de rendimento e de estatuto, o estresse aumenta, a concorrência aumenta e o desejo de dominar intensifica-se.

A patologia se autoalimenta.

Os pesquisadores que conduziram o primeiro estudo sugerem, tendo descoberto que os agressores prosperam, que deveríamos “ajudar a canalizar esta característica nas crianças de uma forma mais positiva”. Na minha opinião, esta é uma conclusão errada. Em vez disso, deveríamos procurar construir sociedades nas quais a agressão e o domínio não sejam recompensados. Seria melhor que as escolas se concentrassem na dissuasão e no aconselhamento.

Mas em todas as fases de nossa vida somos forçados a uma competição destrutiva. Não somente as crianças são pressionadas repetidamente a participar de concursos de seleção, mas também as escolas. Na Inglaterra, por exemplo, com seus testes Sats e o brutal regime Ofsted, essas competições prejudicam o bem-estar das crianças e dos professores. Como sempre, a competição é organizada para permitir que os ricos e poderosos vençam. Mas, como Charles Spencer explica em seu livro de memórias sobre a vida em um internato, ganhar também é perder: os pais que mandam seus filhos para escolas particulares pagam para criar uma personalidade externa dominante, mas a criança dentro da concha pode estar distorcida em nós de medo, fuga e raiva.

Esta contra-educação é reforçada mais tarde na vida por milhares de livros, websites e vídeos de autoajuda. Por exemplo, um site e programa popular chamado The Power Moves, dirigido pelo cientista social Lucio Buffalmano, ensina “10 maneiras de ser mais dominante”. Estas incluem exercer pressão social, reivindicar território, “agredir, afirmar e punir” e dar tapas na cara. Você também pode aprender oito maneiras de dominar as mulheres, uma lição essencial porque, aparentemente, “as mulheres dormem com homens que as obrigam a se submeter”. As técnicas que Buffalmano promove incluem “segurar o rosto dela se ela se recusar a beijar você”, “empurrá-la de brincadeira para a posição horizontal”, “arrastá-la de brincadeira para a cama” e “penetrar sua mente com ‘Daddy Dominance’”.

Buffalmano afirma que quer “promover a humanidade capacitando homens bons a avançar, liderar e vencer”. O resultado mais provável é aumentar o número de idiotas. Em vez disso, deveríamos aprender a ser atenciosos, pró-sociais e gentis: resistir à dominação, independentemente de quem a exerça.

O bullying óbvio no local de trabalho não é mais tolerado de modo geral. Mas suspeito que, em muitos casos, a aparente melhora é resultado do fato de os agressores aprenderem a mascarar seus impulsos, enquanto continuam a controlar e manipular sem ultrapassar a linha do RH.

Mas o bullying ostensivo está ressurgindo na política. Trump, Putin, Netanyahu, Orbán, Milei e outros fazem pouco para disfarçar seus comportamentos de dominação grosseira. Quando Trump ficou atrás de Hillary Clinton durante o debate presidencial e quando zombou vergonhosamente da deficiência de um jornalista, pudemos ver a criança que ele era e a criança que continua sendo.

Nossos sistemas políticos – centralizados e hierárquicos – estão prontos para serem explorados por valentões. Como nos pátios das escolas de antigamente, as piores pessoas acabam no topo.

A mesma dinâmica opera em nível global. Os governos garantem a seus cidadãos que estão envolvidos em uma “corrida global”: se ficarmos para trás, outra nação nos ultrapassará. Essa história de competição de soma zero justifica todo e qualquer abuso. Ela foi usada pelas nações europeias para racionalizar a construção de seus impérios e guerras eletivas. Logo foi acompanhada por um mito egoísta: o de que a corrida pelo domínio será vencida pela “raça dominante”. Como disse Charles Darwin: “As raças civilizadas do homem quase certamente exterminarão e substituirão as raças selvagens em todo o mundo”. Por meios mais sutis, com justificativas mais sutis, as nações ricas ainda jogam o mesmo jogo: sua riqueza depende, em grande parte, da extração de outros países.

Mas enquanto a corrida unilateral entre as nações continua, corremos coletivamente em direção ao precipício do colapso ambiental. Se alguma vez houve a necessidade de cooperação e colaboração, é agora. Mas a competição reina, uma competição que todos nós estamos destinados a perder.

Em resumo, devemos parar de celebrar o comportamento coercitivo e controlador. Em todas as etapas da educação e da progressão na carreira, bem como na política, na economia e nas relações internacionais, devemos procurar substituir um ethos competitivo por um ethos cooperativo.

Esse é o aspecto surpreendente dos seres humanos, ao contrário dos peixes ciclídeos: não precisa ser assim. Podemos controlar nosso próprio comportamento, além de imaginar e criar formas melhores de organização. Por meio da democracia deliberativa e participativa, tanto na política quanto no local de trabalho, podemos criar sistemas que funcionem para todos. Não há nenhuma lei natural que determine que os agressores de playgrounds devam continuar cobrando tributos pelo resto de suas vidas.

Pochmann: As três ondas de ultradireita no Brasil.

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Do Integralismo e da “Defesa da Tradição”, nos anos 30 e 60, país chegou ao bolsonarismo – em asfixia, mas com inegável força. Governo Lula pode ser crucial para superá-lo de vez. Mas precisará evitar os erros que alimentam o extremismo

Marcio Pochmann, OUTRAS PALAVRAS – 05/06/2023

Na esfera da disputa de poder em torno de interesses e necessidades de classes e frações de classes sociais, a política resulta de uma totalidade social complexa, cuja separação ideológica entre esquerda e direita tem origem na Revolução Francesa que em 1789 marcou a formação do Ocidente Moderno. Originariamente, os delegados defensores das mudanças sociais no velho agrarismo em torno da igualdade na França durante o último quarto do século 18 se posicionaram à esquerda do rei, enquanto os representantes dos interesses de aristocratas e conservadores da época se localizaram à direita.

Assim, em geral, o espectro ideológico de direita se afirmou como reação às mudanças que possam alterar o status quo de segmentos ricos, poderosos e privilegiados no interior de cada sociedade. No Brasil, a direita extremada se constituiu mais e melhor organizada em três diferentes momentos de inflexão da história republicana nacional.

O primeiro momento se estabeleceu na crise do liberalismo que a partir dos anos de 1920 terminou por colapsar o longevo projeto agrarista, produzindo, em consequência, distintas mobilizações em torno de novos rumos possíveis para o Brasil. Com Plínio Salgado à frente da Ação Integralista Brasileira (AIB) criada em 1932, o ideário fascista de base italiana ganhou expressão nacional e encadeou o movimento cívico cultural nos meios políticos e intelectuais em resposta aos efeitos internos da Grande Depressão capitalista de 1929.

Entre 1935 e 1937, por exemplo, o Partido Ação Integralista em inédito ritmo de expansão foi considerado a maior organização fascista em operação fora da Europa. Assim como o integralismo se alastrou na década de 1930, o Partido Nazista no Brasil também ganhou dimensão expressiva, assumindo a posição de maior seção do nazismo fora da Alemanha. Ambos os movimentos populares de extrema direita buscavam chegar ao poder pela via democrática, somente interrompida pela instalação do Estado Novo (1937-1945).

O segundo momento de inflexão histórica republicana pela extrema direita no Brasil transcorreu durante a consolidação da sociedade urbana e industrial no final dos anos de 1950. Em pleno auge das tensões em torno da Guerra Fria (1947-1991) na América Latina surgiu, em 1960, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) liderada por Plínio Correa de Oliveira no combate ideológico do comunismo identificado no movimento em defesa da Reformas de Base impulsionada pelo governo João Goulart entre 1961 e 1964.

Ao mobilizar valores morais do passado agrarista tradicional, assumiu o radicalismo conservador e antimodernista na época. Com apoio político e base social organizada, a extrema direita, patrocinou e justificou, compartilhada com interesses externos, o golpe de Estado em 1964. Por 21 anos o Brasil esteve submisso ao regime do autoritarismo, somente absolvido pelo movimento de redemocratização nacional na primeira metade da década de 1980.

O terceiro momento de inflexão histórica republicana se encontra em curso assentada na ruína da sociedade industrial e mediada pela crise do neoliberalismo que passou a ameaçar também os interesses do “andar de cima” da sociedade. Nesta perspectiva, consideram-se as jornadas de mobilizações nacionais do ano de 2013 como a marca do reaparecimento público de agrupamentos de extrema direita portadores de valores morais conservadores catapultados pelas inovações comunicações e organizativas trazidas pela transição para a Era Digital.

Por seu enraizamento no interior do poder Judiciário, embalado pela força tarefa denominada por Operação Lava Jato, a extrema direita ganhou e contaminou os meios de comunicação com a pauta anticorrupção. Na mesma toada, a sua expressão nacional se materializou na alçada partidária, contaminando os poderes legislativo e executivo.

O golpe parlamentar em 2016 que inviabilizou o mandato da presidente Dilma Rousseff, aprisionou o ex-presidente Lula e asfixiou as bandeiras de luta da esquerda asfaltou a via da extrema direita que pelo voto bolsonarista nas eleições de 2018 passou a dominar tanto a presidência da República como a maioria do parlamento. Em contraponto, o movimento popular na defesa de Lula Livre foi encontrando respaldo na cúpula do poder Judiciário até assumir a reversão da extrema direita incrustada na Operação Lava Jato.

A partir daí, o pêndulo da extrema direita chegou ao seu limite, iniciando a gradual asfixia. A vitória eleitoral presidencial em 2022 permitiu a montagem do governo Lula que apequenou, sem plenamente superar, a força da direita extremada que segue ainda com inegável força no parlamento, meios de comunicação e em segmentos específicos da sociedade brasileira.

O sucesso do governo do presidente Lula constitui a essência pela qual o país poderá – de fato – se livrar do terceiro momento de inflexão histórica republicano ocupado pela extrema direita. Mas isso dificilmente significará o fim dos representantes e das organizações em defesa dos interesses de poderosos, ricos e privilegiados no Brasil.

 

 

Ambiente conturbado

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Conflitos militares, agressões verbais, confrontos políticos, ofensas crescentes, informações equivocadas, invasões de embaixadas, guerras entre Estados, degradação do ambiente, fraudes financeiras, corrupção descontrolada, incremento das desigualdades, matanças generalizadas, confrontos religiosos, violências urbanas, crescimento da fome e da exclusão social, são características evidentes do caos que impera na sociedade contemporânea, gerando incertezas, instabilidades emocionais e desequilíbrios cotidianos.

Neste cenário, percebemos que a economia internacional vem sentindo cotidianamente pressões constantes, com o aumento dos desajustes produtivos, variações nos preços de produtos fundamentais para a sobrevivência dos seres humanos, levando à medidas macroeconômicas agressivas como forma de conter os desequilíbrios que se espalham para a comunidade mundial.

Percebemos, cotidianamente, os impactos dos desequilíbrios externos da economia global que estão forçando a novos ajustes internos, aumentando o desemprego e forçando os governos nacionais ao incremento das taxas de juros, como forma de reduzir os desequilíbrios internos e impedir que a economia nacional perda dinamismo e mergulhe numa espiral recessiva, gerando aumento do desemprego e instabilidades políticas internas. Vivemos numa economia fortemente integrada, marcada por forte interdependência, centrada no crescimento tecnológico, fortemente individualista e pela busca frenética pelos ganhos monetários e financeiros.

Nesta sociedade globalizada, marcada por grande desenvolvimento tecnológico, as nações precisam construir novas formas de inserção na economia internacional, fortalecendo sua autonomia política, investindo fortemente em pesquisa científica e angariar os conhecimentos necessários para desenvolver uma complexidade econômica e produtiva, única forma de fortalecer suas estruturas nacionais, defendendo interesses nacionais e consolidar nossa autonomia.

Numa economia internacional centrada nas incertezas e nas instabilidades, estamos sujeitos a movimentos cambiais que desequilibram nossa estrutura econômica, fragilizando os setores produtivos, degradando a renda interna, exigindo taxas de juros maiores como forma de combater a inflação, desta forma, nosso comportamento econômico medíocre se torna mais caótico, postergando a recuperação econômica e incrementando uma maior insatisfação popular e de ressentimentos políticos.

Vivemos numa sociedade altamente instável, com incertezas econômicas, inseguranças crescentes, violências urbanas e polarizações políticas, neste cenário, precisamos reconstruir nossos pactos sociais e políticos, como forma de se defender deste ambiente de medos, ressentimentos e caos generalizados.

Neste momento, precisamos evitar que os conflitos externos não se espalhem internamente, para isso é imprescindível reconstruir as instituições, garantindo passos seguros para fortalecer nossa democracia, consolidando-a e garantindo para todos os cidadãos oportunidades de ascensão social, dignidade e autonomia econômica, além de efetivarmos a tão chamada meritocracia. Numa sociedade mundial conflagrada por degradações constantes, marcada por grandes transformações tecnológicas, com imensas alterações no mundo do trabalho, incremento de grandes conflitos militares, precisamos rechaçar as brigas cotidianas que crescem e se avolumam entre os poderes institucionais.

Precisamos construir maturidade para que a sociedade compreenda, que os desafios em curso na sociedade mundial devem ser vistos como um divisor de águas entre a civilização e a barbárie, esta última que, cotidianamente está visitando a sociedade brasileira e vislumbrando atrasos, violências e degradações.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dependência eterna

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Vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, caracterizada pelo processo de globalização construído pelo incremento do capital financeiro, onde as nações comercializam produtos, bens e mercadorias em todas as regiões, as distâncias vêm se reduzindo de forma acelerada, as culturas se transformam com uma rapidez pouco vista na história da comunidade internacional e as noções de tempo estão em constante movimento.

Com o crescimento da concorrência internacional, a abertura econômica e o incremento da tecnologia estão moldando a sociedade global gerando verdadeiras revoluções na estrutura econômica e produtiva, fortalecendo grupos transnacionais e multinacionais que passam a dominar setores estratégicos da economia mundial, criando formas de dependência externa, reduzindo a soberania das nações e fragilizando os Estados Nacionais.

As novas tecnologias estão arregimentando modelos de negócios revolucionários, empresas vistas como gigantes e consolidadas em determinados setores, dotadas de grande conhecimento e vistas como detentores de alta experiência, estão sendo superadas por novos grupos econômicos, com novas formas de organização, estruturas mais enxutas, comportamentos flexíveis, ágeis e eficientes, além de grande flexibilidade e dotadas de grande desenvolvimento tecnológico, impactando o mercado de trabalho, exigindo mão de obra altamente complexo e atualização constante.

Nesta nova sociedade internacional, os Estados Nacionais estão se utilizando de instrumentos geopolíticos, protecionismos e grandes recursos financeiros e monetários como forma de defender suas estruturas produtivas, como forma de estimular investimentos internos, fortalecendo a transferência de tecnologias externas, garantindo a geração de empregos e o fortalecimento de seus parques produtivos, desta forma, conseguem manter e aumentar seus poderes políticos e seu espaço numa sociedade globalizada e fortemente interdependente.

Anteriormente, as nações subdesenvolvidas eram os exportadores de produtos primários de baixo valor agregado, vendiam no mercado internacional produtos agrícolas e minérios, angariando recursos conversíveis na economia global para comprar produtos industrializados como forma de sobrevivência. Os preços eram definidos pelas nações desenvolvidas, estes países eram os grandes ganhadores do comércio internacional, acumulavam recursos, melhoravam as condições de vida de sua população e se destacavam como detentores de tecnologias inovadoras.

Os investimentos em capital humano, a construção de um projeto nacional, além de fortes investimentos em ciência, pesquisa e tecnologia eram fundamentais para o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento da nação, além de políticas industriais efetivas e uma atuação ousada dos governos nacionais, subsidiando projetos, protegendo setores estratégicos, cobrando eficiência, definindo metas e angariando mercados internacionais.

Na nova economia internacional, marcada pelo desenvolvimento da tecnologia e a interdependência produtiva, as nações precisam construir novos instrumentos de inserção no cenário mundial, reduzindo a dependência da exportação de produtos primários de baixo valor agregado.
A estrutura da economia internacional está fortemente concentrada no conhecimento científico, nos ativos intangíveis e as nações que negligenciarem os investimentos em capital humano e que postergarem recursos em pesquisa científica tendem a perder espaço na economia internacional, consolidando uma dependência externa e eterna, perpetuando desigualdades sociais, incrementando exclusões e violências crescentes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

As políticas públicas para quem mora na rua, por Maria Hermínia Tavares

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Faltam eficiência e respeito à dignidade das pessoas nas ações do Estado

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 11/04/2024

Dignidade foi uma das palavras mais ouvidas no recente seminário “População em situação de rua”, no auditório da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

Entre diagnósticos, denúncias e propostas de políticas, o que uniu os participantes foi a constatação de que eficiência e respeito à dignidade das pessoas têm sido o bem mais escasso nas sucessivas tentativas de lidar com um problema tão descurado pelos governos municipais e estaduais. Uns e outros, com frequência, os reduzem a uma questão de polícia —o controle do tráfico e do consumo de substâncias ilícitas— ou de zeladoria urbana —a limpeza matinal de praças e ruas que servem de desabrigo aos sem-teto.

Este o primeiro erro: simplificar o que é complexo por qualquer lado que se o focalize. Para a rua convergem pessoas levadas por amplo rol de tragédias, agravadas pela proximidade da pobreza extrema: perda de emprego ou trabalho ultraprecário, ruptura de laços familiares, uso de drogas, doenças, problemas psicológicos graves ou distúrbios mentais. Para a simplificação contribui a inexistência de um censo dessa população que a descreva em detalhe. A lacuna permite que se substitua conhecimento por estereótipos assentados em preconceitos.

O segundo erro decorre do primeiro. Não existe bala de prata para lidar com problemas complexos. Há muitas dimensões a considerar —e a assistência social, embora insubstituível, está longe de ser a única. São igualmente importantes programas de moradia, saúde, educação, trabalho e renda, destinados a segmentos específicos desse contingente. A multiplicidade de instrumentos requer dos governos municipais e estaduais capacidade de coordenação, atributo raramente encontrado no setor público.

O terceiro equívoco são as mudanças abruptas de orientação a cada troca de governo: produzem instabilidade institucional, descontinuidades de todo tipo, dificuldade de acumular experiências e aprender com elas, ruptura de vínculos de confiança particularmente importantes quando os beneficiários são pessoas que perderam ou estão por perder suas raízes.

Difícil acreditar que iniciativas para população de rua possam se firmar se não virarem políticas de Estado, capazes de sobreviver a mudanças das coalizões governantes, a exemplo de Bolsa Familia, SUS ou Fundef.

Essa transformação sempre requer programas bem concebidos e comunidades de especialistas que os defendam e logrem dar-lhes legitimidade social. Em suma, que sejam capazes de mostrar que a indignidade a que está condenada nossa população de rua torna menos dignos os que com ela convivemos.

Macroeconomia da estagnação

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Depois de um forte crescimento econômico nas décadas posteriores a segunda guerra mundial até os anos 1980, com rápido crescimento econômico, com incremento da urbanização, industrialização e melhora nos termos de troca, a partir dos anos 1990, a economia brasileira perdeu seu dinamismo econômico, convivendo com estagnação produtiva, com forte desindustrialização, com precarização do trabalho, com achatamento salarial, com aumento substancial da violência urbana e incremento da desigualdade social, culminando em uma sociedade paradoxal e fortemente polarizada, de um lado somos um dos maiores produtores agrícolas, vegetação diversificada, solo fértil, climas propício e agradável, convivendo, lado a lado, com grandes contingentes de indivíduos empobrecidos, esfomeados, sem perspectivas e sem dignidade.

Desde os anos 1990, percebemos uma estagnação econômica e produtiva, taxas de juros escorchantes, câmbio valorizado, inflação em ascensão, diminuição dos investimentos produtivos, abertura econômica atabalhoada, privatização sem planejamento e marcado por crescimento da corrupção, fragilização dos órgãos de controles institucionais, culminando num processo amplo de desindustrialização e empobrecimento nacional, marcados por uma macroeconomia da estagnação. Qual nação conseguiu se desenvolver num cenário como este?

Depois de décadas de crescimento econômico e produtivo vigorosos, a sociedade brasileira caiu no canto da sereia, aceitando uma agenda vinda de fora, se rendendo aos interesses do grande capital financeiro internacional, abraçando o Consenso de Washington, abrindo mão da soberania nacional em prol de grandes grupos econômicos internacionais, desta forma, perdemos autonomia política e aumentamos a dependência da economia mundial, somos atualmente exportadores de produtos primários de baixo valor agregado e somos importadores de produtos industrializados, dependentes de tecnologias externas e abdicamos da construção da tecnologia nacional, exportamos cérebros e importamos todos os tipos de produtos industrializados.

Se construímos empresas de telecomunicação precisamos vender esse ativo para conglomerados internacionais e desta forma, passamos a absorver tecnologias de grandes grupos internacionais, aumentando a dependência externa. Se construímos aviões comerciais com grande complexidade e eficiência, somos obrigados a vender esse ativo estratégico para grupos globais maiores para aliviar os rombos fiscais e monetários. Se construímos chips e tecnologias complexas, setor responsável por grandes conflitos comerciais entre as nações internacionais, somos tentados a vender ou a fechar este ativo estratégico e nos tornando importadores dos grandes atores da tecnologia global, aumentando nossa dependência externa.

Embora as nações desenvolvidas estejam reconstruindo os consensos econômicos, relendo os manuais de teoria econômica, retomando privatizações equivocadas, aumentando a intervenção do Estado na economia e reconstruindo subsídios para fortalecer empresas nacionais, além de defender os produtores locais, com pomposas isenções fiscais e financeiras, países como o Brasil, insistem na macroeconomia da estagnação, limitando o potencial da sociedade, aumentando a dependência externa, como vimos no período da pandemia com a criação de um rastro de destruição e desagregação social.

Numa sociedade marcada pelo desenvolvimento tecnológico, pelo aumento da concorrência e pela instabilidade crescente, as nações que se sobressaem no cenário internacional são aquelas que investem fortemente em capital humano, com recursos garantidos em pesquisa científica, preservando sua autonomia econômica e sua soberania política, além de fortalecer seu projeto de nação e, principalmente, se afastando do complexo de vira lata, tão bem retratado por Nelson Rodrigues para analisar a elite nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Assim o neoliberalismo capturou a família, entrevista com Melinda Cooper

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Nos anos 60, o sistema saiu em defesa desta instituição: desmontar o Estado, exigia que ela assumisse o ônus do bem-estar social e de dívidas individuais, transmitidas entre gerações. Movimentos, hoje, a contestam: seria frente de luta anticapitalista?

Melinda Cooper – OUTRAS PALAVRAS – 05/04/2024

Os valores da família: entre o neoliberalismo e o novo social-conservadorismo de Melinda Cooper, (Sydney, 52 anos), é uma obra fundamental para entender por que o neoliberalismo defende a instituição familiar. Cooper é professora de sociologia na Universidade Nacional Australiana em Camberra e, atualmente, pesquisa políticas neoliberais e finanças públicas. Esta entrevista é um resumo da recente apresentação de seu livro em Madrid.

Você poderia explicar as teses do livro e por que é importante levá-las em consideração hoje para compreender o funcionamento tanto do neoliberalismo quanto do conservadorismo que ressurge em todo o mundo?

Na esquerda tornou-se comum dizer que o feminismo e outros movimentos da New Left colaboraram com o neoliberalismo. A filósofa feminista Nancy Fraser disse, por exemplo, que havia uma afinidade subterrânea entre o feminismo de segunda onda e o neoliberalismo, uma vez que ambos minaram as formas de segurança social – íntimas e econômicas – que tinham sido construídas na ordem social keynesiana: o salário familiar [o homem ganhava o suficiente para sustentar toda a família e as mulheres da classe média não trabalhavam]. Mas se esta premissa for aceita, a conclusão lógica é extremamente perigosa: que para resistir ao capitalismo neoliberal é necessário restaurar as fronteiras sociais ou de gênero – ou mesmo raciais ou nacionais. Então pensei que era importante ver o que aconteceu naquele momento decisivo entre as décadas de 1960 e 1970.

Concentrei-me em investigar um movimento que talvez não seja tão espetacular quanto outros mais conhecidos: o que defendia os direitos do Estado social e também questionava os efeitos do Estado social keynesiano; atacava a ordem de gênero que o keynesianismo deu origem e as suas hierarquias internas como, por exemplo, o salário familiar. E, ao mesmo tempo, não abandonava a ambição de uma redistribuição mais justa da riqueza social. A proposta era radicalizar a distribuição da riqueza para além dos limites toleráveis pelo Estado capitalista. Este movimento pela expansão dos direitos do Estado de bem-estar social fez parte da ascensão dos movimentos radicais de esquerda, o que incluiu a esquerda do movimento sindical. Eles pressionaram abertamente por aumentos salariais para além da sua associação com o crescimento. Tentavam recuperar para os trabalhadores uma parcela maior dos benefícios da renda nacional. Foi radical no nível salarial, mas também para quem se incluia nesta luta: trabalhadores migrantes, negros, jovens, mulheres e trabalhadores do setor público.

Este foi um momento perigoso do ponto de vista dos capitalistas, que até então eram a favor do consenso keynesiano. Economistas como Milton Friedman, que tinha feito parte do consenso do New Deal face a esta militância da década de 1960, decidiram que este pacto tinha que acabar. Acho que é muito importante não perder o que realmente eram o feminismo e os movimentos antirracistas e trabalhistas daquele momento. Então, entram em cena os economistas neoliberais que queriam desmantelar todo o aparelho de bem-estar social: “Se o Estado de bem-estar social faz as pessoas se sentirem tão empoderadas ou legitimadas para lutar e, além disso, está aumentando os seus desejos revolucionários, então é hora de pôr fim a isto.”

Por outro lado, havia os neoconservadores que veem a ruptura da família não apenas como o sintoma, mas como o catalisador da crise capitalista de 1970. O interessante é que os neoliberais da época disseram algo muito semelhante: o ataque na estrutura econômica da família keynesiana representava uma ameaça real ao capitalismo estadunidense. Por que eles se preocupavam com a família? Eles compreenderam que a família tinha uma função econômica e pensaram que poderiam restaurar a ordem capitalista se desmantelassem o estado de bem-estar social, por isso pressionaram para que as pessoas regressassem a algumas formas de parentesco – voluntário, forçado, normativo, não normativo… – porque isso funcionaria como um substituto do bem-estar social. Portanto, neste momento, os neoliberais e os novos conservadores encontram este estranho ponto de convergência onde veem a crise econômica em relação à desagregação da família e da ordem de gênero, e concordam que esta deveria ser restaurada. Não vamos voltar ao chefe de família masculino de meados do século XX, mas vamos voltar a uma ideia de responsabilidade familiar privada pelos seus membros.

Entendo que as críticas de Nancy Fraser querem influenciar a forma como se criou uma hegemonia dentro do Partido Democrata em que se assume o reconhecimento das minorias e certas reivindicações, mas não estão associadas à redistribuição da riqueza como os movimentos pela expansão do bem-estar social do que você diz.

Há uma parte do argumento de Fraser contra o neoliberalismo progressista com a qual concordo, mas não como ela o define. Significa que parte da esquerda foi absorvida pelas exigências neoliberais de reconhecimento de identidade e de inclusão legal ou de expansão de certos direitos, desvinculando-os de uma questão mais ampla de redistribuição econômica.

É evidente que há um progresso real no reconhecimento de relações não normativas, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas poderíamos ver isso como um exemplo de neoliberalismo progressista. O que está acontecendo é que o impulso radical dos movimentos da década de 1970 foi canalizado de volta para o parentesco, na forma de casamento e família. Existe uma razão econômica que é totalmente compatível com as ideias neoliberais sobre o papel da família no bem-estar.

Quando examinamos a jurisprudência em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
vemos que o argumento era permitir que os gays se casassem porque a unidade conjugal serviria como um substituto para a assistência social e não seria um fardo para o Estado. Este argumento foi forjado em plena crise da aids, quando as autoridades públicas não quiseram arcar com os custos hospitalares decorrentes desta enfermidade. O economista neoliberal Richard Posner foi o primeiro a recomendar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Ele não tinha nenhum tipo de oposição moral à sexualidade não normativa, mas ao mesmo tempo pensava que os direitos à sexualidade não normativa deveriam ser reconhecidos desde que as pessoas estabelecessem algum tipo de relação familiar com reconhecimento legal.

Algo semelhante aconteceu com a reforma da assistência social que ocorreu sob a administração Clinton, uma espécie de apogeu do neoliberalismo progressista. Esta reforma reviveu a forma mais atávica e punitiva do welfare, porque implicava que uma mulher tinha que depender do cônjuge no casamento em vez do Estado. O que esta reforma fez foi investir o dinheiro da assistência social na localização dos pais genéticos dos filhos de mães solteiras para que pudessem cuidar da família.

Nancy Fraser não aproveita esta reforma política histórica do neoliberalismo progressista para perguntar: o que isto nos diz sobre o neoliberalismo? Está claro que quando se trata de cuidados e dependência, o neoliberalismo não se contenta apenas com o reconhecimento da família, mas inventa ativamente relações familiares que não são emocionalmente reais ou consensuais e força as pessoas nestas relações a subsidiarem-se mutuamente para substituir o Estado. Assim, a responsabilidade familiar é um pilar absoluto da ideia neoliberal progressista.

Resumindo: concordo que grande parte da esquerda está próxima do pensamento neoliberal, mas não acredito que o pensamento neoliberal seja de forma alguma anti-família ou anti-hierarquia de género. Este é o paradoxo do nosso tempo: assistimos a uma expansão das formas de expressão sexual e de parentesco permitidas, mas isso não significa que o próprio parentesco tenha deixado de ser central para o estado de bem-estar social neoliberal, de modo que mesmo ele seja ativamente imposto por o Estado como uma obrigação.

Em geral, a esquerda também reivindica a instituição familiar, diz-se mesmo que é um baluarte da resistência ao neoliberalismo ou ao capitalismo. Porque isto ocorreu e porque é necessário questionar ou desafiar esta instituição?

Penso que é uma mitologia tanto da esquerda como dos liberais econômicos. Se olharmos para a história do liberalismo econômico, os liberais sempre tiveram problemas em encaixar o papel da família na sua visão da dinâmica econômica porque são a favor da responsabilidade individual e pessoal e a contradição mais óbvia aqui é a questão da herança. O liberalismo econômico lutou contra isso desde a Revolução Francesa porque a herança ou certas formas de herança – como a primogenitura – aparecem como o último baluarte da ordem aristocrática feudal. Contudo, os economistas liberais não pedem o fim da herança, eles precisam dela, mas veem a contradição porque falam de meritocracia e presumem igualitarismo formal no contrato econômico. Mas enquanto existe herança, é preciso admitir que os indivíduos não celebram o contrato como iguais.

Então a família apresenta sempre este inconveniente, mas é absolutamente fundamental, porque para proteger a riqueza privada é necessário proteger a transmissão da riqueza dentro da família. Portanto, a família nunca foi uma forma de resistência ao capitalismo. É a forma como a riqueza privada é reproduzida ao longo do tempo. Isto não significa que a forma da família permaneça estática, ela muda radicalmente em diferentes épocas e não tem a mesma função para diferentes classes, mas ela é absolutamente essencial. Portanto, a resistência à família é fundamental para o anticapitalismo. Não se pode criticar ou confrontar o capitalismo sem abordar a instituição da herança.

Você costuma dizer que não existe uma “família tradicional”, mas que esta figura é uma produção histórica. A que se refere?

Algo que me incomodou nas resenhas de Os valores familiares é que mesmo pessoas que simpatizaram com sua tese disseram que o livro era uma crítica à família nuclear patriarcal normativa. É isso, claro, mas é também uma crítica à família não normativa ou à família alargada. As pessoas acreditam que se as famílias fossem ampliadas seriam muito melhores. Se olharmos para a formação familiar no século XX, a família nuclear foi um produto da família fordista e do salário familiar: a capacidade de uma unidade familiar viver junta numa casa sem família alargada e sem ajuda doméstica – a classe média Para substituir o serviço doméstico, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres foi parcialmente subsidiado pelo Estado. Todos estes tipos de ajuda social criaram e apoiaram a individualização da família.

Hoje, penso que em muitos países estamos voltando a uma forma de família alargada. O exemplo da Austrália é muito claro porque não existe um sistema em que o trabalho migrante substitua o trabalho doméstico. O que acontece é que as mulheres casadas ou com filhos continuam trabalhando, mas é a família alargada que cuida dos filhos. O aumento dos preços da habitação faz com que as pessoas vivam cada vez mais juntas em lares multigeracionais. As crianças vivem na casa da família até aos vinte ou trinta anos, e mesmo mais, e os avós muitas vezes vivem com elas. No melhor dos casos, isto implica uma distribuição da riqueza familiar; no pior, uma distribuição da dívida. Quando eu era jovem, as pessoas saíam de casa aos dezesseis anos e viviam de forma independente. Isto mudou e acredito que a tendência neoliberal é no sentido da família alargada. É aqui que não guardo romantismo para as famílias tradicionais. E acho que temos que ser muito céticos quando as pessoas evocam essas ideias ou as romantizam.

Em The asset economy – juntamente com Lisa Adkins e Martijn Konings – vocês explicam como desde a década de 1980 temos entrado numa fase de “bem-estar baseado em ativos”. A financeirização (especialmente a da habitação) substituiu o Estado de bem- estar. Que consequências isso tem para a configuração das classes sociais?

Isto é algo que os neoliberais progressistas da terceira via apostaram. Eles pensaram: “Se conseguirmos empurrar o maior número possível de pessoas para a aquisição de casa própria e apoiarmos o aumento dos valores das casas, atrairemos esses eleitores para a economia da transmissão da riqueza familiar”. Por vezes, o argumento era “vamos criar uma geração de pequenos conservadores: pessoas que querem proteger a sua propriedade e a riqueza familiar”.

Penso que, em muitos aspectos, foi uma proposta muito exitosa. As casas tornaram-se os ativos financeiros da classe média. O problema aqui é que chega um momento em que já não é possível incorporar as pessoas nesta economia porque os preços da habitação e os níveis de dívida disparam.

Há muito tempo ultrapassamos aquele momento em que existia uma espécie de neoliberalismo aspiracional e estamos começando a ver novamente as linhas divisórias. Há uma fratura entre as pessoas que possuem propriedades ou cujos pais têm propriedades que irão herdar – mesmo mais tarde na vida – e aquelas que nunca herdarão e que estão presas no aluguel e em trabalhos precários. Isso transforma a forma como as classes são organizadas. Podem ser duas pessoas, ambas com empregos profissionais relativamente bem remunerados, mas numa cidade com preços imobiliários muito elevados, elas estão, na verdade, em posições de classe completamente diferentes. Não é necessário preocupar-se com os custos da habitação ou com o crédito ao consumo porque a habitação pode respaldar esses créditos. Assim, no livro tentamos estabelecer uma tipologia alternativa de classe que levasse em conta as posições das pessoas em relação aos ativos financeiros, incluindo a habitação. No topo estão as pessoas que possuem e comercializam ativos financeiros não residenciais – capital de investimento, propriedade intelectual… –, e depois uma classe média alta cujo principal ativo é a habitação. Aqueles que têm propriedades de investimento e aqueles que possuem apenas uma residência já estão numa posição de classe diferente, mas depois há todo um grupo de pessoas que têm hipotecas e que são, na verdade, proprietários de uma forma diferida, aspiracional, estão simplesmente endividados, o que é uma situação perigosa, tendo em conta a precariedade geral do trabalho. Portanto, também matizamos nossa análise de turma em termos de trabalho inseguro. Mas ter um emprego inseguro e uma casa como garantia por trás de você é muito diferente de estar na mesma situação, mas sem ativos.

O que isto significa em termos de família é que regressamos a uma espécie de economia dinástica.

As oportunidades sociais são determinadas pelos seus pais e pelo bem-estar dos pais. E o outro lado disto são as economias do trabalho forçado por dívida, que envolvem gerações inteiras. Um exemplo muito claro disso é a economia dos empréstimos estudantis nos Estados Unidos. Muitas vezes, são os avós e os pais que se endividam para permitir que um filho faça faculdade, na esperança de que esse filho consiga um emprego bem remunerado o suficiente para saldar uma dívida que envolve várias gerações da família. Esta é uma forma de trabalho forçado por dívida.

Não se trata de dívida pessoal, mas de formas de dívida familiar intergeracional.
Assistimos também ao ressurgimento de formas familiares de empresas capitalistas em todo o mundo. É óbvio quando você olha para pessoas como Donald Trump, Coke Industries… Essas empresas familiares privadas sempre existiram, mas assumiram uma nova proeminência e centralidade no capitalismo estadunidense que não tinham na década de 1970. Então eu acredito que este regresso da família como vetor de transmissão de riqueza está ocorrendo em vários níveis diferentes simultaneamente.

Novos ditadores evitam violência para fingir que são democráticos, aponta livro

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‘Democracia Fake’ discute como governantes abandonam tática do medo por manipulação mais sutil

Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários.

Folha de São Paulo, 07/04/2024

[RESUMO] Livro “Democracia Fake”, publicado recentemente no Brasil, alerta para nova estratégia de ditadores contemporâneos, Buscando forjar um verniz democrático que possibilite o estabelecimento de relações com países liberais, esses líderes abandonam a repressão violenta e se voltam para táticas de manipulação menos escancaradas.
Uma multidão se aglomerava na praça principal da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que aconteceria ali.

Sob um sol escaldante, desceram de um jipe militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram enforcados.

Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu, que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar um golpe.

Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro “Democracia fake” (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman.

A obra opõe dois tipos de ditadores. O primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o culto à personalidade.

O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado pelos autores de “ditadores do spin” — não existe uma tradução literal para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas de mídia privada e mantém uma fachada democrática.

Os dois representam um tipo distinto de perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. “Os ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões”, afirma. “Por outro lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores.”

O modus operandi de líderes como Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar popularidade.

“Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião”, escrevem os autores.

O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán.

O primeiro-ministro também disfarçou o autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da universidade na Hungria.

Orbán minou o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica.

“A globalização hoje oferece muitos incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir isso, eles têm que fingir ser democratas”, diz Guriev. “Para viajar para Davos [onde acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem torturado milhares.”

A globalização é um dos componentes do que os autores chamam de “coquetel da modernização”, uma junção de forças que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário.

“Se você quer transformar uma economia de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com ensino superior”, afirma Guriev. “Essas pessoas não querem trabalhar em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um democrata.”

Guriev e Treisman criaram uma base de dados utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para 53%. Os demais são de um tipo híbrido.

Guriev fala em duas maneiras comuns para a ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo tipo.

A outra, explica ele, ocorre quando um governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o ex-presidente Donald Trump tentou fazer isso nos Estados Unidos.

Treisman diz que, se Trump foi eleito novamente neste ano, o cenário se repetirá. “Ele vai tentar minar o sistema de freios e contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a burocracia [do Estado]”, afirma. “A equipe dele já anunciou que tem planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e introduzir novas pessoas leais a ele.”

Isso não significa que, caso eleito, Trump será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência contra líderes como ele está no grupo que chamam de “bem-informados”, subconjunto da população com “educação superior, habilidades de comunicação e conexões internacionais”, que documentam e denunciam os abusos do governante.

“Não apostaria contra a sociedade americana, que é muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes, funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da democracia”, diz Treisman. “Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de Bolsonaro.”

Em alguns casos, um ditador do spin pode recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu na Venezuela. Hugo Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolas Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou a repressão. O russo Vladimir Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia, diz Guriev.

Putin teve grandes ganhos de popularidade com a anexação da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de uma causa em comum, fortalecendo seu governo.

“Ele viu que não estava funcionando, que as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando influência”, afirma Guriev. “Na primeira semana, ele fechou a mídia e bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura declarada, algo que nunca tinha sido usado.”

Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris.

Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da Califórnia e especialista em Rússia.

Os dois começaram a observar que as táticas de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos.

Depois de publicar uma série de trabalhos acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a um público mais amplo.

Expor as táticas dos ditadores recentes é justamente uma das soluções para lidar com eles.

Outra, segundo os autores, é limitar as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas.

Os autores lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em democracias.

Os dois também advogam pela reparação das instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica.

Apesar dos alertas, o livro tem uma nota otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em direção à democracia. “A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica”, diz Guriev.

Os autores afirmam que não existe nenhum antídoto conhecido para o “coquetel de modernização” que empurra as nações em direção à democracia.

Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo.

Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os prejudicaria.

Em um momento de descontentamento, os ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a abandonar o medo e a escolher a manipulação.

Resta saber se esse dilema não resolvido de fato levará o mundo a um cenário mais democrático.

Heranças acumuladas

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Numa sociedade que passa por grandes transformações cotidianas, marcadas pelo desenvolvimento da tecnologia, do aumento da concorrência e de movimentações estruturais no mundo do trabalho, as nações precisam refletir sobre todos os desafios que limitam seu desenvolvimento, analisando as heranças acumuladas, as desigualdades crescentes para superarmos esta condição de subdesenvolvimento, sem essa superação as nações nunca conseguirão alcançar o sonhado desenvolvimento econômico e a melhora do bem estar social da comunidade.

Ao analisarmos o caso brasileiro, percebemos que estamos acumulando problemas estruturais que se perpetuam à séculos sem perspectivas de melhoras palpáveis, cultivando subdesenvolvimentos, incrementando pobrezas e indignidades, alimentando espaços de corrupção, fortalecendo corporativismos degradantes, precarizando trabalho e educação, negligenciando a ciência, cultivando negacionismos, fazendo subinvestimentos em capital humano, pagando juros elevados que degradam as contas públicas, preservando privilégios escorchantes para poucos e, diante disso, estamos perpetuando em escalas crescentes de degradação, garantindo condições dignas para uma parte da população em detrimento de uma grande massa de excluídos e degradados.

Aquela nação vista como o país do futuro vem perdendo espaço na economia internacional, somos um grande produtor de produtos de baixo valor agregado, estimulamos uma desindustrialização crescente, estamos nos entregando para uma especulação financeira, degradando as condições de vida dos trabalhadores como forma de aumentar as condições de competição internacional, fragilizando os sindicatos para garantir uma ilusória concorrência mundial mas, o que estamos vendo é o contrário, uma degradação das condições de vida dos trabalhadores, famílias dilaceradas, salários arrochados e grandes conglomerados enriquecidos, investindo seus recursos em Bolsas internacionais ou em paraísos fiscais e se alegrando com as isenções tributárias que garantem ganhos pomposos em detrimento de uma classe média degradada, mal remunerada, dando vazão a visões de vida reacionária e fascista, um verdadeiro caos.

Numa sociedade internacional marcada pelo desenvolvimento tecnológico e pela forte competição econômica, as nações devem encarar de frente suas fragilidades. O Brasil precisa rever suas estruturas políticas e econômicas ultrapassadas e excludentes, para evitar uma perpetuação das desigualdades que crescem rapidamente, lembremos que, desde os anos 1980, nossa economia estagnou, nossas condições sociais se precarizaram, no campo político estamos cultivando uma polarização degradante e as perspectivas de uma economia global fortemente dominada pela tecnologia e pela competição econômica, diminuindo os horizontes nacionais, ficando cada vez mais empobrecidos e relegados ao esquecimento da comunidade internacional.

Dentre os grandes teóricos da realidade brasileira, destacamos o economista Celso Furtado, responsável por escritos fundamentais para a compreensão dos desafios da sociedade brasileira, que ao analisar os horizontes nacionais destacou os grandes problemas do Brasil, destacando que estes não estavam no campo da economia, os verdadeiros problemas nacionais estão ligados ao campo político, uma elite imediatista e altamente dependente dos favores dos governos nacionais, que falam do empreendedorismo e da inovação como forma de superar nosso subdesenvolvimento mas, na realidade, encontramos vários grupos de parasitas que crescem e enriquecem degradando a nação e se alegrando com degradações e indignidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Maior parte da imprensa brasileira apoiou golpe de 1964, por Oscar Pilagallo

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Jornais defenderam deposição de João Goulart, presidente democraticamente eleito

Oscar Pilagallo, Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista” (Três Estrelas) e “O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” (Fósforo)

Folha de São Paulo, 02/04/2024

A imprensa brasileira, esta Folha inclusive, desempenhou papel relevante na conspiração contra o presidente João Goulart e, em 31 de março de 1964, apoiou com entusiasmo a deflagração do golpe militar, antes mesmo que ele fosse consumado.

Com exceção do “Última Hora” –que nascera em 1951 para apoiar o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e, depois, de seus herdeiros políticos–, os jornais fustigaram com intensidade crescente um governo democraticamente eleito, preparando a opinião pública, durante meses, para a intervenção que rasgava a Constituição do país.

No Rio de Janeiro, os principais concorrentes locais deixaram de lado as disputas comerciais para se unir num projeto comum.

Em fins de outubro de 1963, cinco meses antes do golpe, entrou no ar a Rede da Democracia, um programa em que as rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi, dos Diários Associados, juntaram esforços para combater o que identificavam como ameaça comunista. O acordo foi costurado pelos próprios donos dos veículos: Nascimento Brito, Roberto Marinho e um representante de Assis Chateaubriand respectivamente.

A repercussão ultrapassava largamente o alcance das frequências das três rádios fluminenses. O programa era retransmitido em centenas de emissoras espalhadas pelo país e, mais tarde, transcrito nos grandes jornais.

Embora tivessem o mesmo objetivo –derrubar Jango–, os veículos do Rio se diferenciavam pelo alvo da artilharia. Marinho, tendo em vista uma demanda por um canal de TV, evitava a crítica direta ao presidente, com quem mantinha aberto um canal de comunicação. O Globo focava o governo, não o governante, ao contrário dos outros, que personalizavam os ataques na figura de Goulart.

Não por acaso, fuzileiros navais obedientes a um militar fiel a Leonel Brizola –cunhado e apoiador de Jango– invadiram as sedes do JB, Globo e um jornal dos Diários Associados, além da Tribuna da Imprensa, nas primeiras horas do golpe.

Os editoriais resumem a participação dos jornais no golpe. O tradicional Correio da Manhã entrou para a história com os títulos “Basta!” e “Fora!”, publicados em 31 de março e 1º de abril. O prestigioso JB celebrou “a vitória da democracia” contra “a implantação de um regime comunista”.

E o Globo, um vespertino com penetração limitada, festejou na capa no dia 2: “Vive a nação dias gloriosos”, escreveu, atribuindo o desfecho da ação militar à “Providência Divina”.

O início do golpe, no entanto, foi uma surpresa para a imprensa, assim como para os principais articuladores da ruptura na caserna, como o general Castello Branco. A ação foi precipitada por Olympio Mourão Filho, general que comandava as tropas de Juiz de Fora e não estava entre os protagonistas dos planos para derrubar Jango. Ele deu início às mobilizações na madrugada de 31 de março.

Em São Paulo, o sinal mais nítido de que a imprensa passou a agir conjuntamente para afastar Jango foi a aproximação, às vésperas do golpe, dos arqui-inimigos Assis Chateaubriand e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo.

A diferença na atitude dos principais veículos limitou-se ao nível de engajamento de seus proprietários. Se quase todos franquearam as páginas dos jornais aos propósitos golpistas, houve quem fosse além, abrindo as portas de seus gabinetes aos conspiradores.

Mesquita foi além do apoio editorial do Estadão, então o principal jornal de São Paulo. Em janeiro de 1962, mais de dois anos antes do golpe, recebeu na sede do matutino um general –Orlando Geisel, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel – que o sondou sobre a ideia de instaurar uma ditadura. A resposta é uma carta intitulada “Roteiro da revolução”, que exorta os militares a intervir.

Mais tarde, sairia da sala de Mesquita um documento em tudo semelhante a um ato institucional, prevendo até a suspensão temporária de garantias constitucionais.
Quanto à Folha, teve influência relativamente menor –do tamanho de sua importância na época. A empresa que edita o jornal havia sido comprada em 1962 por Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, e os empresários trabalhavam para saná-la financeiramente antes de investir no setor editorial.

No discurso, porém a Folha não se distinguia da concorrência. Contribuía para a difusão de teses antipopulistas e conclamava as elites à ação coordenada, com um tom cada vez mais alto. O jornal trabalhava com a hipótese de que Jango pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta.

A deposição do presidente contou até com a criação de um jornal popular para fazer contraponto ao Última Hora. Foi o Notícias Populares, que nasceu em outubro de 1963 financiado por Herbert Levy, um político da UDN (União Democrática Nacional), o principal partido de oposição a Goulart. Anos depois, já sem essa função, o NP seria incorporado ao Grupo Folha.

Ao longo das duas décadas de ditadura militar, os veículos sofreram censura, passaram a criticar o governo e, sobretudo após a redemocratização, se penitenciaram por terem apoiado o golpe.

Laval: Uma nova guerra civil mundial?

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Casamento entre mercado e democracia fracassou. O que chamamos de neofascismo pode ser apenas o velho neoliberalismo, que mostra enfim seus dentes e seu projeto: impor, contra a ética do coletivo, a dominação ilimitada das oligarquias
Christian Laval – OUTRAS MÍDIAS – 25/03/2022

“O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial”, escreve Christian Laval, professor emérito de Sociologia na Université Paris Nanterre.

“Em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal”, avalia.

Laval expõe alguns dos argumentos desenvolvidos no livro coletivo (escrito junto com Pierre Dardot, Haud Guéguen e Pierre Sauvêtre) Le choix de la guerre civile: Une autre histoire du néolibéralisme, Lux Editions, Montreal, 2021, apresentado no curso Direitas radicais e neoliberalismo autoritário, organizado pela Universidade do País Basco, com as Fundações Betiko e Viento Sur e o Centro de Pesquisa em Multilinguismo, discurso e comunicação (MIRCo).

Eis o artigo.

A situação mundial se caracteriza por uma grande crise das formas da democracia liberal clássica. Esta crise se manifestou, primeiro, por poderosos movimentos que reivindicaram uma verdadeira democracia entre 2010 e 2016. Depois, manifestou-se em um sentido completamente diferente, com a ascensão reativa de forças da extrema direita e o surgimento de governos com aspectos abertamente ditatoriais, nacionalistas, violentos, racistas, sexistas e, em alguns casos, fascistizantes. Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán e Erdogan são algumas das figuras emblemáticas que se somam na longa lista de déspotas e tiranos que fazem estragos em todos os continentes.

Ao desestimular as reivindicações democráticas, sociais e ecológicas que entram em contradição com o projeto neoliberal, estes dirigentes só conseguiram encontrar base eleitoral enaltecendo os valores morais e religiosos tradicionais e o nacionalismo dos grupos sociais mais conservadores. Estes governos não estão aí para administrar uma situação, acomodar interesses diferentes, representar a população. Realizam uma guerra contra inimigos. Esta postura guerreira parece nova, ao menos para aqueles que tinham fé nas democracias de tipo clássica.

Os liberais norte-americanos ainda permanecem sob o choque da invasão do Capitólio pelos fanatizados partidários de Trump, no dia 6 de janeiro de 2021. Como foi possível semelhante violação da democracia?, perguntam-se. Para compreender o fato é preciso adotar um ponto de vista estratégico, o de governos que estão comprometidos em uma guerra total: social, é claro, porque se busca enfraquecer os direitos sociais da população; étnica, porque pretende excluir os estrangeiros de qualquer possibilidade de acolhida e de coexistência; política e jurídica, utilizando novos meios de repressão e de criminalização da esquerda e dos movimentos sociais; cultural e moral, ao atacar os direitos individuais e as evoluções culturais das sociedades.

Esta sequência histórica, cujo apogeu foi, de momento, o dia 6 de janeiro, não cai do céu. Há várias décadas, diversos sinais permitiam pressentir tal momento político, efeito de uma combinação de diferentes fatores, embora todos ligados ao colapso da crença na representação e legitimidade das elites e da classe política. Para prevê-lo, bastava estar atento ao sentimento de exclusão e de marginalização de uma grande parte da população, a ascensão de uma cólera antissistema, e o ódio crescente às minorias, estrangeiros e inimigos internos.

Os comentaristas se contentam em estigmatizar esta reação complexa e contraditória, classificando-a como populista. Com isso, não explicam nada, embora considerem necessário preconizar a continuidade da abertura, da modernidade, do multilateralismo e, na Europa, a continuação da construção da União Europeia.

Este momento de crise não tem uma causa única. No entanto, parece que é preciso levar a sério uma delas: a implementação, há várias décadas, de um determinado tipo de governo que consegue se afastar do controle dos cidadãos para impor pela força transformações profundas das sociedades, das instituições e das subjetividades. Como não ver uma relação entre esta chamada reação populista e o neoliberalismo, que fez nascer uma nova sociedade organizada como um mercado?

Na verdade, esta reação, longe de colocar fim ao período neoliberal, constitui uma nova fase e uma nova forma do mesmo. O que estamos vendo hoje é um neoliberalismo cada vez mais violento, que se apoia nas cóleras e frustrações populares para reforçar ainda mais o império do poder sobre a população e fazê-la aceitar retrocessos sociais impossíveis de contemplar sem que ao menos uma parte consinta.

É um novo neoliberalismo? Não exatamente. Trata-se muito mais, como acaba de ser dito, de uma fase histórica em que, diante de múltiplas contestações e temíveis prazos impostos pela crise climática, para garantir a continuidade de seu projeto neoliberal, os governos só se fortalecem com as paixões populares dirigidas contra minorias, estrangeiros, intelectuais.

Com isso, obtêm certo apoio popular, deslocando os desafios políticos do campo da injustiça social para o campo dos valores da nação e a religião, desviando os medos sociais e as indignações morais para um conjunto de objetivos considerados como tantos outros desvios e ameaças: imigrantes, negros, mulheres, homossexuais, sindicalistas, militantes, intelectuais, e contra todas as forças sociais, corpos profissionais e instituições democráticas que se opõem a esta domesticação da sociedade.

O caso do Brasil é muito instrutivo deste ponto de vista. Naquele país, não existe nenhuma esfera da vida cotidiana e nenhuma instituição que não tenham sido afetadas por um retrocesso dos direitos humanos, liberdade de pensamento e igualdade. É o que demonstram os repetidos ataques contra o meio ambiente, o mercado de trabalho, o sistema de aposentadorias, a universalidade da escola pública, os direitos dos povos autóctones.

E não se deve esquecer que para esses neoliberais abertamente autoritários, como o bolsonarismo, o inimigo é acima de tudo a esquerda e o socialismo. Inclusive, é possível dizer que se trata de uma guerra civil contínua contra a igualdade em nome da liberdade. É uma das principais faces do neoliberalismo atual, visto pelo ângulo da estratégia.
Um novo fascismo?

Costuma-se falar de um novo fascismo. Embora seja verdade que o ódio e a pulsão criminosa estão no centro da expansão das formas ditatoriais de poder, como demonstra mais uma vez o caso atual do Brasil, e também a prática e a retórica de Trump, existem importantes diferenças em relação ao fascismo clássico. Ignorá-las levaria ao erro de diagnóstico. Diferente dos anos 1930, que viram a emergência dos fascismos europeus como reação diante do deixar fazer do liberalismo econômico e suas consequências, os neoliberalismos nacionalistas, autoritários e xenófobos de hoje em dia não pretendem reenquadrar o mercado no Estado total, nem mesmo, mais simplesmente, enquadrar os mercados, mas pretendem, ao contrário, acelerar a extensão da racionalidade capitalista à custa de aumentar ainda mais as desigualdades econômicas, consequência inevitável do livre jogo da concorrência e das privatizações.

Nesse sentido, estes governos não viram as costas para o neoliberalismo, como alguns afirmam de forma imprudente, mas desnudam a lógica intrinsecamente autoritária e violenta do próprio neoliberalismo. Embora o Brasil seja o espelho crescente de uma guerra total contra as instituições da sociedade que não se dobram ao modelo neoliberal, seria errôneo pensar que esta violência estatal se circunscreve aos chamados países periféricos.

Também no próprio centro dos países capitalistas mais desenvolvidos se exerce esta violência, ainda que sob formas diferentes. As violências policiais com as quais o governo liberal de Macron queria impor medidas impopulares, em 2018, ou o envio de tropas federais por Trump contra os manifestantes de Portland e de Chicago e a forma posterior de acender o fogo questionando o resultado das eleições presidenciais que eram desfavoráveis a ele, são exemplos recentes.

Evidentemente, essas formas de violência saem do marco político liberal clássico, baseado desde o Iluminismo nas liberdades individuais e coletivas, no respeito ao sufrágio universal, na pluralidade de opiniões, na defesa do conhecimento racional e no respeito à verdade. Contudo, não nos deixemos confundir pela idealização do modelo político clássico nas democracias ocidentais.

Se o neoliberalismo pôde se impor nos Estados Unidos e na Europa por governos legalmente eleitos (Giscard, Mitterrand, Thatcher, Blair, Reagan, Clinton, Schmidt, Kohl), não se privou, e há muito tempo, do uso da força legal, sobretudo policial e judicial, e de todos os tipos de medidas de coação regulatórias, administrativas e disciplinares à disposição dos Estados. Se estes vêm reforçando há muito tempo a vigilância dos indivíduos em nome da luta antiterrorista, as potências capitalistas privadas não ficam para trás, impondo, sobretudo aos assalariados, uma gestão baseada no controle individual que em parte destruiu a capacidade de defesa coletiva na esfera do trabalho. Mas, então, por que é possível falar em uma nova fase do neoliberalismo?

A confissão da violência

O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial. A expressão guerra civil mundial foi utilizada, desde a sua invenção por Carl Schmitt, em vários sentidos diferentes. Para ele, desde meados dos anos 1940, a Weltbürgerkrieg se refere ao final das guerras interestatais próprias do mundo westfaliano e ao nascimento de guerras assimétricas, realizadas em nome de um ideal de justiça que permite às superpotências exercer um poder de polícia no marco de um direito internacional renovado e exercido com uma vontade missionária.

Para Arendt, a expressão se refere muito mais à guerra travada pelos regimes totalitários – nazismo e stalinismo – que, apesar de importantes semelhanças, não puderam evitar o enfrentamento direto por causa de sua vontade expansionista. Essa forma de análise foi retomada por Ernst Nolte, em sua obra La guerra civil europea, 1917-1945. Outros autores assumiram esta expressão para falar do confronto internacional entre as forças do progresso, surgidas do Iluminismo, e o fascismo. Foi o caso de Eric Hobsbawm, em A era dos extremos: o breve século XX.

Evidentemente, utilizamos a expressão em um sentido muito diferente, por isso a importância do adjetivo nova. A nova guerra civil mundial não opõe diretamente uma ordem global de tipo imperial, mesmo que seja dirigida por uma potência hegemônica, à população, como também não opõe dois regimes políticos ou dois sistemas hegemônicos entre si. Opõe Estados, cujos meios de comunicação estão monopolizados por oligarquias agrupadas, a amplos setores de suas próprias populações.

Mas qual é o objeto desta guerra? Oficialmente, trata-se de se opor a qualquer forma de intrusão de um inimigo exterior e de combater todos os seus aliados que, no interior, minam a unidade nacional, a homogeneidade do povo, a grandeza e a identidade da nação. Pode-se dizer que, para os defensores de um capitalismo sem fronteiras, é paradoxal inflamar as paixões com um nacionalismo exacerbado e com um racismo pouco velado, mas, na última década, já se provou que a divisão do povo e a inflexão de setores inteiros da população contra seus próprios interesses significaram enormes êxitos políticos.

Nesse sentido, o Brexit é uma obra-prima do gênero. A França oferece um exemplo muito interessante de uma manobra política bastante surpreendente. Desde o outono de 2020, enquanto se esforça para conter a epidemia e multiplica seus erros de gestão, o governo se lançou em uma ampla campanha de caluniosos ataques contra as universidades, em especial contra as ciências sociais, acusadas de estar “pervertida pelo islamo-esquerdismo”. A palavra se refere a um puro fantasma, construído seguindo o modelo do judaico-bolchevismo dos fascistas e os nazistas de antes da guerra.

O ministro da Educação nacional, assim como o do Ensino Superior e o do Interior (que dirige a polícia), durante meses, foram se revezando para fazer a opinião pública acreditar que o terrorismo encontrava apoio no meio universitário, que estaria contaminado pelos estudos pós-coloniais, decoloniais e outras teorias do gênero. É assombroso que tal quantidade de ignorâncias e de calúnias tenham sido emitidas pelos representantes de um governo que se diz liberal. Em algum momento, Macron não se apresentou como o anti-Orbán na Europa?

Deve-se concluir: esse discurso de ódio de tipo fascistoide nada mais é do que uma versão local de uma lógica guerreira mais geral que consiste em designar, neste caso, no corpo de universitários e pesquisadores, o inimigo a ser esmagado, e que pode encontrar outros alvos em outros lugares ou mais tarde.

A palavra guerra não pode ser tomada, aqui, como uma simples metáfora. A luta estratégica pela dominação à qual se dedicam os agentes políticos, econômicos e intelectuais do neoliberalismo, às vezes com o pretexto de lutar contra o terrorismo ou o islamismo radical, pretende consolidar o poder das oligarquias dominantes por outros meios distintos ao da confrontação pacífica de opiniões.

Para dizer de outra maneira, em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal. Ellen M. Wood chama isso de guerra sem fim (infinite war): a guerra neoliberal não tem objetivos limitados, como seria a destruição de um exército inimigo ou a conquista de um território, mas é marcada pelo objetivo ilimitado da dominação do Estado sobre a população.

A guerra em questão requer todos os meios pelos quais o Estado afirma seu domínio sobre a população, começando, para além do Exército, pela Polícia e a Justiça e, claro, pelos meios de comunicação de massas e as tecnologias de vigilância, o que supõe a estreita subordinação, ou ao menos a neutralização dos agentes do Estado para que cumpram da melhor forma possível sua função de dominação. A situação presente nos confirma o que dizia Foucault quando, ao contrário de Clausewitz, afirmava em seu curso, A sociedade punitiva, que “a política é a continuação da guerra por outros meios” (Foucault, 2013: 29).

Maximizar a divisão das forças populares por meio da inflamação nacionalista e racista, mobilizar uma parte da população contra os intelectuais irresponsáveis e perigosos e, por fim, encontrar um inimigo a combater não é um fim em si. Não há nada de gratuito em designar um inimigo, se a política tem alguma racionalidade. Mas qual é o inimigo último? Tem como nome genérico a igualdade e aqueles que a almejam.

O neoliberalismo como estratégia política contra a igualdade
É claro, não existe uma única forma de neoliberalismo que seria idêntico em todas as partes. A ordem econômica mundial é construída se apoiando em estratégias nacionais diferenciadas e singulares em cada ocasião. Esta plasticidade e este caráter proteiforme do neoliberalismo devem nos prevenir contra qualquer tentação essencialista, embora não por causa disso devemos deixar de destacar a lógica antidemocrática inerente ao neoliberalismo desde a sua formação.

O neoliberalismo autoritário não se opõe a um neoliberalismo que antes não fosse. O neoliberalismo assume uma lógica de enfrentamento violento com todas as forças e as formas de vida que não cabem no marco de um mundo hierárquico e desigual baseado na concorrência. E, para se realizar, este projeto neoliberal que pretende a construção de uma sociedade de mercado pura requer a violência do Estado.

Falar em nova guerra civil mundial é, portanto, reinterpretar o neoliberalismo pelo ângulo de sua violência intrínseca e, sobretudo, questionar a maneira acadêmica de compreendê-lo como conjunto de doutrinas ou como posições puramente ideológicas. É aceitar o campo em que se desenvolve, o da luta política pela dominação, e entendê-la como uma estratégia política de transformação das sociedades em ordens concorrenciais que supõem o enfraquecimento ou a eliminação das forças de oposição.

O termo neoliberalismo é objeto de um uso inflacionista que, hoje em dia, provoca certa confusão. O viés universitário, que Bourdieu chamaria de escolástico, consiste em não ver no neoliberalismo mais do que uma corrente intelectual com fronteiras também problemáticas, em que o estudioso se dedica a discutir sua unidade e a destacar sua diversidade, às vezes até negando sua existência em nome do número e diferença dessas variantes.

É muito fácil constatar, e isso não deixou de ser feito doutamente, que desde os anos 1920 e 1930 existem divergências epistemológicas e ontológicas entre as diferentes correntes que hoje são chamadas, retroativamente, de neoliberais. Embora o conhecimento direto dos autores seja indispensável, limitar-se à história das ideias é ignorar que o neoliberalismo, na história política efetiva, não é apenas um conjunto de teorias, uma coletânea de obras, uma série de autores, mas um projeto político anticoletivista efetivado por teóricos e ensaístas que também são empreendedores políticos.

Durante décadas, não pararam de buscar apoios e aliados entre as elites políticas e econômicas, construíram redes, criaram associações e think tanks para ganhar influência, desenvolveram uma verdadeira visão do mundo e até mesmo uma utopia radical, que permitiram o triunfo da governamentabilidade neoliberal, em quarenta anos de incansáveis esforços. O neoliberalismo, portanto, não é só Hayek, ou Röpke, ou Lippmann, é uma vontade política comum de instaurar uma sociedade livre, baseada principalmente na concorrência, em um marco determinado de leis e princípios explícitos, protegido pelos Estados soberanos, encontrando na moral, na tradição e na religião ancoragens para uma estratégia de mudança radical da sociedade.

Em outras palavras, o neoliberalismo, como o socialismo, como o fascismo, deve ser compreendido como uma luta estratégica dirigida contra outros projetos políticos qualificados pelos neoliberais, globalmente e sem muitas nuances, como coletivistas, como o objetivo de impor às sociedades certas normas de funcionamento de conjunto, sendo a concorrência a principal delas para todos os neoliberais, já que é a única que assegura a soberania do indivíduo-consumidor.

Somente esta dimensão estratégica e conflituosa permite compreender tanto as condições de surgimento como a sua continuidade no tempo e as consequências para o conjunto da sociedade. Sem esta definição política do neoliberalismo, nos perdemos no imbróglio das posições doutrinais e na busca de pequenas diferenças individuais, esquecendo o principal: o projeto unificador de uma empresa política, ao mesmo tempo militante e governamental.

Quando nos deslocamos do campo puramente teórico ao dos preceitos práticos e as razões para atuar, descobrimos uma grande confluência de todas estas diferentes correntes no objetivo político perseguido, o que permite falar justamente de uma racionalidade política do neoliberalismo perfeitamente identificável. Este foi o enfoque de Foucault, às vezes mal compreendido por aqueles que o censuram por ter ignorado a heterogeneidade das escolas teóricas do neoliberalismo. O que o unifica relativamente é o objetivo político de instauração ou de restabelecimento de uma ordem de mercado ou de uma ordem de concorrência, considerada não só como a fonte de toda prosperidade, mas como o fundamento da liberdade individual.

Essa ordem pode ser concebida de forma diferente, seja como uma ordem espontânea que reivindica ser confirmada e apoiada pelo marco jurídico (o neoliberalismo austro-americano de Hayek), bem como uma ordem social construída por uma vontade normativa do legislador (o ordoliberalismo alemão). Mas todo o cosmos neoliberal está convencido, antes de tudo, que é necessária uma ação política para realizar e defender tal ordem social.

Esta também foi a base do acordo formulado, pela primeira vez, durante o Colóquio Lippmann, de 1938, e em uma segunda com a fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em 1947. Todos os grandes combates posteriores do neoliberalismo político confirmam este acordo, e nenhum neoliberal deixará de denunciar o Estado de bem-estar e de lutar contra o comunismo [1].

Mas não é preciso muita exegese para compreender como todos esses empreendedores políticos interpretam o sentido de sua própria ação. O dizem e o escrevem com todas as letras. Assim, Röpke: “A humanidade se deixará levar pelo coletivismo, enquanto não tiver em vista outro objetivo palpável, dito de outra maneira, enquanto não tiver frente ao coletivismo um contraprograma que possa entusiasmá-la” [2]. E se equivoca quem pense que existam ordoliberais mais sociais, mais moderados e mais razoáveis, que esperam do Estado serviços indispensáveis, e neoliberais mais radicais, os austro-americanos, que querem eliminar completamente o Estado [3].

Exceto alguns anarco-libertários que mantêm a chama do foco utópico na versão radical de um Von Mises, a imensa maioria dos teóricos do neoliberalismo que querem desempenhar um papel político eficaz tem uma concepção positiva do Estado, ainda que muito diferente dos promotores do Estado social. Quer se chamem Rougier, Lippmann, Eucken, Hayek ou Röpke, todos concordam em fazer do Estado o guardião supremo das leis fundamentais do mercado, papel eminente que deve obrigá-lo a se aliviar das responsabilidades sociais que os coletivistas o fizeram suportar indevidamente desde o final do século XIX.

O mercado acima de tudo

Os neoliberais têm a convicção de que o que está em jogo com a ordem de mercado é muito mais do que uma decisão de política econômica, é uma civilização inteira, baseada na liberdade e na responsabilidade individual do cidadão-consumidor. E como a sociedade livre se baseia em seu fundamento, o Estado, com todas as suas prerrogativas soberanas, conserva um eminente papel a desempenhar, e faz disso o dever de utilizar os meios mais violentos e mais contrários aos direitos humanos, caso a situação o exigir.

O mercado competitivo é uma espécie de imperativo categórico que permite legitimar as medidas mais extremas, inclusive o recurso à ditadura militar se necessário, como ocorreu com o golpe de Estado no Chile, aplaudido pelas cúpulas intelectuais do neoliberalismo mundial. Para dizer em uma linguagem um pouco envelhecida, mas que expressa claramente as coisas: o mercado é a nova grande razão do Estado neoliberal. Este ponto fixo explica a plasticidade política do neoliberalismo.

Em algumas ocasiões históricas, o neoliberalismo parece se confundir com o advento ou o restabelecimento da democracia liberal, em outras circunstâncias, quando a ordem de mercado parece ameaçada, conjuga-se com as formas políticas mais autoritárias, chegando até a violação dos direitos mais elementares dos indivíduos. E em muitos outros casos, a democracia parlamentar se vê pouco a pouco esvaziada de sua substância por um Estado policial que exerce vigilância e malevolência, diante de tudo o que possa ameaçar a sacralizada ordem da concorrência. Assim é possível considerar as circunstâncias tão distintas que atravessou o neoliberalismo, dos anos 1930 até hoje.

A refundação teórica do liberalismo nos anos 1930 pretendia ser uma reação às formas ditatoriais do comunismo russo, do fascismo italiano e do nazismo alemão, todas entendidas como a consequência lógica do dirigismo e do nacionalismo econômico. O ordoliberalismo alemão, de finais dos anos 1940, foi a principal fonte da refundação de uma Alemanha ocidental desnazificada e democratizada e, mais tarde, nos anos 1950 e 1960, o principal fundamento doutrinal de um mercado comum europeu, contemplado como a base das instituições democráticas e da paz.

Mais adiante ainda, entre os anos 1970 e inícios dos anos 1990, a lógica neoliberal avançou à medida que ocorreu o enfraquecimento e a posterior queda dos regimes comunistas, e acompanhou o progressivo desaparecimento das ditaduras militares anticomunistas, tanto na Europa como na América Latina. Graças ao mercado universal que estava sendo construído, podia parecer que o Estado jamais poderia esmagar a sociedade, oprimir os indivíduos, bloquear a informação. A abertura do mundo exigia um Estado apaziguado, respeitoso com os cidadãos, não desejar mais controlar e reprimir a população.

Inclusive, a globalização foi entendida por certo número de ensaístas e jornalistas como o meio mais radical e mais eficaz de estender as liberdades políticas à China! As próprias guerras mudavam de sentido: não derivavam mais de nações inimigas, não pretendiam conquistar, opunham a civilização do Bem às forças obscuras do Mal. A grande ilusão, que favoreceu justamente o desenvolvimento do neoliberalismo, foi ter acreditado no casamento feliz entre o mercado e a democracia.

Essa época acabou. É o momento do enfrentamento brutal contra os revoltosos e descontentes, da instrumentalização da justiça e o exercício da força desencadeada pelos policiais. Mas o mais novo e desconcertante, na atualidade mais recente, é sem dúvida a nova conjugação entre o neoliberalismo e o populismo nacionalista mais autoritário, como se, na gama de técnicas para impor a liberdade dos mercados contra todas as reivindicações de igualdade, novos poderes tivessem conseguido a façanha de desviar a cólera das massas e de a fazer servir, por incrível que possa parecer, para promover o neoliberalismo mais radical.

Um erro constante na ciência política consiste em simplesmente opor progressistas da globalização a populistas nacionalistas. A situação contemporânea exige mais sutileza na análise. O neoliberalismo de hoje não é mais o de ontem, está dividido entre versões aparentemente muito diferentes, o que pode ser a melhor garantia para a sua sobrevivência e reforço.

Assim como a crise econômica e financeira de 2008 foi uma bela oportunidade para se ir mais longe ainda na via neoliberal, a atual crise da representação, no centro da democracia liberal, oferece às forças conservadoras a oportunidade para mobilizar as massas mais desfavorecidas e mais desesperadas para colocá-las a serviço de uma forma de neoliberalismo tão turvador que é difícil identificá-lo como tal, já que é ao mesmo tempo nacionalista, reacionário e racista. E enquanto outrora o neoliberalismo se baseava no medo fóbico das massas, fonte de todas as derivas coletivistas, agora parece se transformar em uma espécie de fundamentalismo da nação e do povo.

O aspecto já habitual de usar a violência neoliberal contra as instituições e as pessoas força a interrogar de uma forma nova a história do neoliberalismo em suas relações com a violência e o Estado. A questão política e teórica em questão é se as aparências liberais, pluralistas, abertas, modernistas do neoliberalismo, que serviram para seduzir a novas gerações urbanas, culturalmente avançadas e em sua época tecnologicamente de ponta, não foram iscas que dissimularam, durante um período que já ficou para atrás, o caráter profundamente agressivo e regressivo de uma estratégia que hoje se avalia melhor, pelos obstáculos e contestações que encontra e que precisa superar por todos os meios.

Referência

Foucault, Michel (1992). Genealogía del racismo. Madrid: Ed. de La Piqueta.
Notas

[01] Quando em 1948 os ordoliberais alemães passaram à ação para convencer os dirigentes alemães da dupla zona anglo-americana de liberar os preços e reformar a moeda, o primeiro número de seu órgão de combate, o Ordojahrbuch, que se apresentava como o manifesto do ordoliberalismo, colocou como introdução um grande texto de filosofia social de Hayek. “O verdadeiro e o falso individualismo”, F. Hayek, “Der Wahre und falsche Individualismus”, Ordojahrbuch, nº 1, 1948. Cf. Patricia Commun, Les ordolibéraux, Histoire d’un libéralisme à l’allemande, Les Belles Lettres, 2016.

[02] Citado por Jean Solchany, Wilhelm Röpke, l’autre Hayek, Aux origines du néolibéralisme, París, Publications de la Sorbonne, 2015, p. 85.

[03] A biografia de Röpke, de Jean Solchany, oferece uma negação definitiva das interpretações que veem no sociólogo liberal um contrapeso moderado ao ultraliberalismo de Hayek. Demonstra que Röpke é muito mais radical na crítica da modernidade democrática do que Hayek, até o ponto de condenar a descolonização e aprovar o apartheid sul-africano.