Para compreender o paradoxo chinês, por Ladislau Dowbor

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Uma política centralizada para definir grandes rumos e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada. A interação entre o público e o privado. Entender o modelo econômico adotado pela China exige compreender seu povo, sua cultura e sua história

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 16/02/2024

“Nessa nova era conectada em rede, o paradigma tradicional da competição precisa deixar o lugar para a complementariedade, a conectividade e a cooperação.”
Keyu Jin (282)

Era tempo que tivéssemos um livro de primeira linha sobre a China, país sobre o qual todos têm opiniões, ou melhor dizendo, julgamentos, mas poucos compreendem. Keyu Jin é economista, é chinesa, estudou nos Estados Unidos. É professora de economia em Londres e em Beijing. Isso é tão importante não apenas porque a qualifica cientificamente, mas porque a levou a enfrentar os diversos tipos de simplificações que existem sobre o país, bem como as polarizações que resultam. A China não se simplifica, precisa ser compreendida. E Keyu é suficientemente segura nas suas análises para poder apontar tanto os sucessos, como as dificuldades e ameaças no que é hoje a economia mais dinâmica do planeta. Não é cosmética nem ataque, é explicitação dos mecanismos.

A autora tem hoje 42 anos, o que significa que pertence à nova geração chinesa, que viveu os tempos da dificuldade da tigela do arroz dos seus pais, até a prosperidade atual. Ou seja, viveu as transformações que descreve, além de estudá-las dentro e fora da China. Na escrita, sente-se o orgulho de uma nova geração que não precisa pedir desculpa, e Keyu traz com força o fato que uma nova geração está mudando o próprio clima social, político e econômico do país. Não se trata apenas de descrever a China, e sim de captar a complexa dinâmica de transformações que hoje continua. Mais do que presa a simplificações ideológicas, a China busca permanentemente novas formas de organização e gestão. A imagem que utilizam é que, ao atravessar um rio, é preciso ir sentindo com os pés onde estão as pedras.

Isso não significa pragmatismo de “crescimento” a qualquer custo. A China não é apenas uma economia, é um universo cultural. “A tradição de colocar os interesses da comunidade acima dos interesses pessoais representa um contraste forte com a ênfase ocidental no indivíduo.” (291)

Isso tem muito peso. Nas várias vezes que estive na China, me impactou muito esta atitude espontânea das pessoas de naturalmente pensar o interesse individual no contexto do bem-estar da sociedade. Não se sentem “oprimidos” por haver rumos gerais definidos pelo governo e pelo partido: se sentem co-construtores do seu país, e compreendem com naturalidade que o sucesso individual deve se dar dentro de uma visão mais ampla. E vendo o ritmo das transformações, se sentem orgulhosos de participar do processo.

Um segundo eixo importante, em termos de herança cultural, é que a China sempre teve, e o ‘sempre’ envolve muitos séculos, uma tradição de formação e promoção ligada ao mérito, nos diversos sistemas de gestão pública. “Devemos também ter em mente que a China já foi a nação mais rica do mundo, com a tecnologia e infraestruturas mais avançadas, apoiada por uma burocracia que encorajava a seleção dos mais competentes. A herança meritocrática da China tornou a transição para um governo moderno mais fácil, e liberou essa capacidade latente para dinamizar a ciência e a tecnologia modernas na nova era.”(291) A exigência de muita formação e experiência para avançar na hierarquia administrativa não é de hoje.

Os avanços da China espantam: Como ordem de grandeza, em poucas décadas a riqueza da nação foi multiplicada dezenas de vezes. A China emerge como país efetivamente soberano em 1949, destruído por tantas guerras e a exploração colonial. Ou seja, o ponto de partida é trágico. Mas depois de algumas décadas de busca de formas de organização interna, inclusive com políticas desastradas, a partir de 1978, com Deng Xiaoping, a China opta por um sistema que combina de maneira criativa os mecanismos de mercado, o planejamento como eixo organizador, uma política centralizada de fixação de grandes rumos, e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada na aplicação prática dos rumos fixados. O resultado é que permite assegurar a coerência do conjunto ao mesmo tempo que libera a iniciativa local e a criatividade. “Esse modelo de concentração de poder político com descentralização econômica é característica única do Estado chinês.” (121)

A autora chama este sistema de mayor economy, economia de prefeitos, porque a ampla autonomia local permite que as iniciativas sejam radicalmente desburocratizadas. “São funcionários locais nas províncias, nos municípios, nos ‘counties’ e cidades que batalham o desenvolvimento local, atingem objetivos de crescimento, implementam as reformas, e atraem investimentos internacionais. Esses são os quadros locais que transformaram aldeias de pescadores e zonas rurais atrasadas em núcleos modernos de exportação, de manufatura, e em zonas econômicas hightech. Por trás de história de sucesso está um governo local que o apoiou em cada passo na caminhada.”(120) O organograma da hierarquia administrativa, nesta mesma página, ajuda muito na compreensão do funcionamento do conjunto.

Lembrando que se trata de administrar um país de 1,4 bilhão de habitantes, com toda a complexidade da transição, em poucas décadas, de uma era de miséria rural para uma era de urbanização e alta tecnologia. Não há como promover este ritmo e coerência de desenvolvimento de um imenso país, nos mais diversos setores, com uma ditadura centralizada, como até hoje tantos desinformados “opinam”. Lembro que Arthur Kroeber, no seu China’s Economy, (2016) insiste muito nesta dimensão da descentralização, afirmando inclusive que a China é mais descentralizada do que a Suécia, onde cerca de 70% dos recursos públicos são repassados diretamente para as administrações regionais e locais. (1) Nos diversos trabalhos que tenho publicado, insisto muito que no caso brasileiro, com 5.570 municípios, esperar que tantas coisas se resolvam a partir de Brasília é simplesmente um contrassenso de gestão, de elementar lógica de processo decisório. (2)

É uma questão de bom senso, não de ‘ideologias’: “Conforme resultou, dividir o poder no nível local fez sentido de várias maneiras. São os funcionários locais, afinal, que conheciam melhor as condições locais, tinham as mais amplas redes locais, e sabiam como juntar a informação local, e tomavam decisões informadas sobre a alocação de recursos. Isso os colocou numa posição muito melhor do que um governo central distante, para desenvolver a sua economia local. Na realidade, o eterno dilema sobre a centralização política é que enquanto este é bom para estabelecer os objetivos de longo prazo para melhores resultados, isso é frequentemente associado com burocracias distantes pouco sensíveis às necessidades locais. Os funcionários locais na China gozam de autonomia substantiva para desviar das normas, e a aproveitaram bem.”(128)

Grandes rumos do governo central, autonomia de decisão local, mas também os meios financeiros correspondentes, com o LGFV (Local Government Financial Vehicle), sistema descentralizado de financiamento.(p. 179 e ss) As taxas de juros estão na faixa de 4,6% ao ano, para uma inflação da ordem de 2%, o que significa um juro anual real de 2,6%. Um organismo central do governo controla as tentativas de agiotagem. Os poderes locais se endividaram, mas Keyu traz o óbvio: “Quando as taxas de juros são mais baixas do que as taxas de crescimento, o juro sobre a dívida é baixo, e a relação entre a dívida e o PIB irá cair com o tempo.”(187) O problema não está no endividamento, e sim em como se usa os recursos: se promovem o desenvolvimento, o processo se equilibra, gerando mais recursos que o custo da dívida. No Brasil ainda nos debatemos com a “austeridade”, e os prefeitos viajam para Brasília para tentar uma fatia de emenda parlamentar junto a um deputado aliado. É disfuncional tanto para as prefeituras como para os legisladores, atolados em micro negociações.

A China não teria como se reinventar em tão pouco tempo sem aproveitar um conjunto de tecnologias desenvolvidas no resto do mundo. A partir de 1978, com a abertura, soube atrair corporações internacionais, interessadas na mão de obra barata, e também no amplo mercado, mas exigindo que as corporações assegurem participação chinesa na gestão das empresas, e compartilhamento de tecnologia. São negociações caso a caso, cujo mecanismo acompanhei em Shanghai, que permitem equilibrar os interesses, em vez do país simplesmente se submeter às condições das transnacionais. “Quando empresas estrangeiras queriam operar na China e aproveitar os seus custos mais baixos e amplo mercado, era lhes exigido que formassem joint ventures com empresas chinesas, o que frequentemente envolvia compartilhar a própria tecnologia.”198)

Em outros termos, para assegurar o ganha-ganha do processo, foi preciso ter soberania, e uma sólida visão dos interesses nacionais. Lembro que a Coreia do Sul também recorreu a uma forte participação estatal na gestão da economia, e negociando de forma dura os interesses do país frente às multinacionais: aqui também os avanços externos foram utilizados como trampolim para dinâmicas internas. Hoje a China é um gigante tecnológico, “o pêndulo começou a se deslocar para o outro lado”, como comenta Keyu, relativamente ao tempo em que a China tinha mão de obra barata e as corporações tinham a tecnologia. E o próprio peso da economia muda as relações. Em 2023, em dólares PPP (Purchasing Power Parity, tirando deformações por taxas de câmbio, ou seja, em volume efetivo de produção) a China tem um PIB de 33 trilhões, os Estados Unidos de 27 trilhões. (3)

Uma melhor compreensão da economia da China está ligada ao conceito de juguo, ou seja, de missão, visão que lembra o Mission Economics de Mariana Mazzucato. No mais recente plano de desenvolvimento (2021-2025), dado o deslocamento das prioridades da base industrial para a esfera tecnológica, a visão é de dinamizar a nação através da ciência, da tecnologia e da educação: “Quando um objetivo estratégico recebe a designação de juguo, as considerações de custos são deixadas de lado. Desperdícios serão tolerados. A essência do sistema juguo é que toda a nação se mobiliza para atingir um objetivo estratégico.”(218) “A China está construindo uma cadeia completa de incubação ligando os laboratórios nacionais chave, universidades e parques industriais hightech ao redor do país. Já atraiu milhares de pesquisadores e cientistas do exterior, para residirem na China.”(219) Enquanto interessa sim aos cientistas chineses trabalhar em outros países, hoje a tendência se inverteu.

Ao chamar este livro de New China Playbook, Keyu Jin traz com força essa visão de um país que não apenas se transforma, mas transforma as regras de jogo à medida em que o mundo e a China mudam os paradigmas tecnológicos, sociais e políticos. O subtítulo, “além do socialismo e do capitalismo”, ajuda na compreensão dessa dinâmica. A China não está presa às simplificações ideológicas, que por exemplo, no chamado Ocidente global, proíbem de regular os bancos, as plataformas de comunicação, os desmandos da indústria farmacêutica, ou seja, qualquer interferência sobre “os mercados”. Busca o que funciona. Nessas poucas linhas, trouxe um pouco das ideias do livro, mas vale a pena adquirir o texto, alguma editora traduzi-lo, pois não se trata, no caso da China, de um “modelo”, mas de um sistema que aprende. Uma “learning economy” poderia ser uma qualificação adequada.

E recomendo ver no meu site http://dowbor.org alguns documentários de primeira linha sobre a China, em particular em como organizaram o enfrentamento da pobreza, através de políticas radicalmente descentralizadas. Basta colocar “China” na busca no site, há bastante material de apoio.

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.

Aumento da concentração de renda agrava quadro sociopolítico, por André Roncaglia

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Após duas décadas de crescimento real, salários se estagnaram sob Temer e Bolsonaro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/02/2024

Os dados recentes das Contas Nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média). Esta tendência reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários (1994-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro: 0,2% de ganho real entre 2017 e 2022. A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Além disso, a queda da fatia dos salários na renda também se deve à lógica antiestatal de Temer e Bolsonaro, que implicou arrocho dos salários do funcionalismo público civil e a não reposição de 7,3 mil servidores aposentados, segundo dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).

A crítica genérica aos “privilégios” do funcionalismo ignora desigualdades internas ao setor público. Por exemplo, segundo dados do Tesouro Nacional, entre 2017 e 2022, os ganhos reais da renda de militares ativos (2%) e inativos (7%) contrastam com as perdas reais de servidores civis ativos (11%) e inativos (8%).

Ademais, um setor público com menos empregos e menor remuneração enfraquece as demandas salariais da economia (FMI, 1991) e normaliza a anemia sistêmica do mercado de trabalho, onde o prêmio salarial pela escolaridade vem caindo pela escassez de oferta de bons empregos, fruto da perda de sofisticação tecnológica da economia e das nossas exportações.

No lado dos lucros, concentração de poder de mercado, isenções tributárias, digitalização e automação se unem ao avanço da “pejotização”, pela qual trabalhadores são contratados como pessoa jurídica, transformando o rendimento do trabalho em lucro de empresa.

Essa metamorfose quantitativa implica mudanças qualitativas. Excluído da desidratada rede de proteção do emprego formal, o trabalhador convertido em “empresário de si mesmo” muda de lado na luta distributiva e amplia o racha na unidade já precária dos interesses do trabalho.

Seja por meio de salários, seja por meio de lucros, as melhores remunerações correm para os mais ricos, impulsionadas pela desigualdade de acesso às oportunidades, ligada à estrutura e ao patrimônio familiares, às conexões sociais e à propriedade concentrada do capital empresarial e o acesso a crédito e benefícios tributários. Vejamos o caso do agronegócio.

No período 2017-2022, o rendimento da atividade rural —isento de tributação na sua maior parte— teve ganho real de 140% e beneficiou principalmente os estratos mais ricos. Nota técnica de Sérgio Gobetti (Ibre-FGV) mostrou que, em estados dominados pelo agronegócio, o crescimento real da renda do 0,1% mais rico chegou a 117% em Mato Grosso, a 99% em Mato Grosso do Sul e a 78% no Tocantins —ante 42% na média nacional para o mesmo estrato de renda.

No mesmo período, o agronegócio adicionou apenas 4% do total de vagas criadas no Brasil e o ganho salarial real de empregados no agronegócio foi de 0,5%, na média (Cepea,Esalq/USP). Ou seja, a recente bonança das commodities não beneficiou a base da distribuição de renda.

A tática de dividir para conquistar os trabalhadores protege os privilégios das elites, pouco interessadas em gerar empregos de alta qualidade. Reindustrialização e maior justiça tributária ajudam a reequilibrar esse jogo.

Capitalismo é incompatível com democracia, diz italiana que pesquisa austeridade

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Clara Mattei afirma que políticas de redução do Estado são espinha dorsal das economias modernas contra trabalhadores

Uira Machado – Folha de São Paulo, 16/02/2024

Celebrado por figurões como Thomas Piketty e Martin Wolf, o livro “A Ordem do Capital” propõe uma nova maneira de enxergar as políticas de austeridade adotadas por diferentes países.

Não como uma exceção impopular e dolorosa usada só para reduzir o déficit orçamentário em momentos de maior desequilíbrio nas contas públicas, mas como “o sustentáculo do capitalismo moderno”, segundo a italiana Clara Mattei.

No livro, a pesquisadora volta à década de 1920 para mostrar como a austeridade surgiu depois da Primeira Guerra Mundial em países como Inglaterra e Itália, quando trabalhadores organizados cobravam mais direitos sociais.

Para Mattei, a austeridade foi naquela época —e continua sendo hoje— “uma reação antidemocrática às ameaças de mudança social vindas de baixo para cima”. Daí o subtítulo da obra: “Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”.

Em entrevista à Folha, ela diz que “as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas”, mas que o “capitalismo é incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas”.

Em seu livro, a sra. afirma que os programas de austeridade devem ser vistos não como exceção, mas como o sustentáculo do capitalismo moderno. Qual o ganho analítico dessa perspectiva?

Minha definição tem a vantagem de ser uma definição política, na qual fica claro quem ganha e quem perde com as políticas de austeridade. Essa definição tenta ir além da ideia de que a austeridade seja apenas a redução do tamanho do Estado.

Falar em “menos Estado” é uma maneira muito ideológica de entender a história do capitalismo e nossa situação econômica atual. O ponto não é ver se o Estado gasta menos, mas onde o Estado gasta. Porque austeridade não significa menos Estado, mas Estado gastando a favor das elites em detrimento da maioria da população.

A trindade de políticas de austeridade —fiscal, monetária e industrial— tem o objetivo de enfraquecer os sindicatos e manter os trabalhadores sob controle. E isso enquanto o Estado gasta muito dinheiro no complexo industrial militar, por exemplo, ou subsidiando e desonerando investimentos privados em energia verde, ou resgatando bancos.

Sua pesquisa volta aos anos 1920 para detectar as origens da austeridade na Inglaterra e na Itália. O que explica o surgimento desse receituário?

A austeridade não é um produto da exceção do sistema neoliberal. O que tento mostrar é como, na verdade, a austeridade é funcional e estrutural para o capitalismo. Ela é particularmente útil quando as pessoas querem um sistema econômico alternativo, querem mais direitos sociais. Aí a austeridade é muito importante para a elite, a fim de preservar o status quo.

Após a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], isso ficou muito claro, porque foi um momento em que, no coração do capitalismo, os cidadãos estavam exigindo sociedades pós-capitalistas, rompendo com as relações salariais, rompendo com a propriedade privada dos meios de produção em favor da democracia econômica. Ou seja, as pessoas queriam a participação dos trabalhadores no processo de produção e distribuição. Foi aí que a austeridade nasceu.

O subtítulo do livro faz uma ligação forte entre austeridade e fascismo, mas a Inglaterra não teve um governo fascista. É possível generalizar a conexão?

A questão é mostrar que Mussolini se tornou tão poderoso porque ele era muito bom em implementar a austeridade, exatamente as mesmas políticas que os liberais na Itália, nos Estados Unidos e no Reino Unido estavam patrocinando.

A capacidade de subjugar os trabalhadores, de fazê-los aceitar salários mais baixos e parar com as greves; a capacidade de privatizar, de cortar gastos sociais e revalorizar a lira: tudo isso fez de Mussolini quem ele se tornou, um ditador fascista que permaneceu no governo por mais de 20 anos.

O capitalismo é bastante incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas e na distribuição de recursos.

Claro que o capitalismo é compatível com a democracia eleitoral, mas isso é superficial. No capitalismo contemporâneo, você pode se tornar fascista para apoiar as prioridades da economia.

Foi o que aconteceu na Itália sob Mussolini, no Chile sob Pinochet e é o que está acontecendo agora na Argentina com Milei.

Em outros países não é tão diferente, se você olhar para a necessidade de proteger as decisões econômicas da interferência das pessoas. E isso é feito com a independência do Banco Central, com a ideia de colocar orçamentos equilibrados na Constituição, com mecanismos técnicos que têm o mesmo efeito de desdemocratizar a economia.

Há uma tensão entre capitalismo e democracia. Os governos fascistas, obviamente, são antidemocráticos. Mas o que é generalizável é que as supostas democracias liberais também têm tendências antidemocráticas que se associam muito mais ao fascismo do que se costumava pensar.

Que lições podem ser tiradas em relação à extrema direita hoje?

Os governos de extrema direita são muito bons em implementar a austeridade e, por esse motivo, ganham a confiança do mercado e são vistos com bons olhos pelos tecnocratas internacionalmente.

Mas o contexto agora é muito diferente. Quando Mussolini chegou ao poder, ele estava lá explicitamente para esmagar quem estava se mobilizando. Hoje, as pessoas votam em governos de extrema direita porque foram desempoderadas por um século de políticas de austeridade.

O sucesso da austeridade está em nos individualizar, nos tornar muito precários, nos tornar muito inseguros, para que não sintamos que estamos unidos como trabalhadores. A razão pela qual esses governos de extrema direita chegam ao poder é porque, em última instância, representam a expressão da insatisfação com o atual sistema econômico, que as pessoas entendem como um sistema a favor dos ricos e poderosos.

O problema é que as pessoas votam na direita, mas a direita é melhor em implementar a austeridade.

No Brasil, políticas de austeridade não são exclusivas de governos de direita. Por que isso acontece?

Essa é outra lição muito importante que podemos tirar do estudo histórico: infelizmente, a austeridade atravessa as linhas partidárias. É a expressão do falso pluralismo na economia que nossas democracias eleitorais apresentam. Elas nos dão a impressão de que, se votarmos em Lula em vez de Bolsonaro, teremos uma completa mudança nas políticas econômicas, mas é mais complicado doque isso.

Sob o capitalismo, a prioridade de qualquer governo, de direita ou de esquerda, é garantir os fundamentos para a acumulação de capital, o que significa não perturbar os investidores privados.

Então não podemos pensar que votamos uma vez a cada quatro anos e nosso trabalho está feito, porque existem pressões muito fortes vindas do mercado. Se o povo brasileiro, como qualquer outro povo, quiser uma mudança social séria, precisa lutar por isso.

Se você olhar historicamente, perceberá que há muito mais potencial para sistemas econômicos alternativos do que estamos acostumados a pensar, porque o objetivo principal dos economistas no poder é nos dizer que não há alternativa possível.

As alternativas existem, mas, para obtê-las, não basta eleger alguém que diga que fará algo diferente. Precisamos de uma participação maior do povo na economia.

Mas como escapar da lógica que comanda a economia em escala global hoje em dia?

A mensagem principal que emerge do livro é que as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas, no sentido de que não há nada que seja uma necessidade técnica. São decisões políticas que acontecem dentro de um sistema que funciona sob pressões específicas.

Você pode ir contra essas pressões, mas terá de arcar com as consequências. Essa mudança não acontecerá suavemente. Se você quiser realmente subverter o Estado capitalista de dentro, você precisa entender que não vai ser fácil.

Clara E. Mattei, 35
Formada em filosofia, mestre na mesma disciplina e doutora em economia, é professora associada do Departamento de Economia da New School for Social Research (Nova York)

Missões

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O governo federal apresentou no mês passado uma política industrial objetivando a construção de novas bases para a indústria nacional, num mundo marcado pelo crescimento da concorrência global e o desenvolvimento tecnológico, onde os atores econômicos são, cada vez mais dotados de grande poder financeiro, com estruturas organizacionais complexas, com grande capacidade produtiva e geopolítica, onde as nações que ficarem para trás terão suas autonomias e soberanias diminuídas.

Vivemos momentos de grandes transformações geopolíticas e geoeconômicas, nações que eram vistas como hegemônicas perderam espaço na geopolítica global, desta forma, estes países estão tendo de dividir os poderes globais com outras nações. Discursos vistos como liberais, defensores da abertura econômica e da concorrência generalizada, que defenestravam constantemente a atuação dos Estados Nacionais vem perdendo espaço no debate internacional e desta forma, as políticas industriais vêm ganhando espaço na agenda das economias desenvolvidas e em desenvolvimento.

A política industrial sempre foi vista com desdém pelos economistas liberais, que acreditavam que o mercado deveria ser o grande estruturador e indutor das escolhas econômicas e produtivas, visto que este era o grande formulador da sociedade, dotado de grandes flexibilidades, agilidades e eficiências. Ao Estado, na visão liberal ou neoliberal deveria se restringir a uma atuação secundária, garantindo um ambiente de negócio salutar, estimulando a concorrência e a competição, atuando nas defesas interna e externa e com fortes investimentos em capital humano.

Neste cenário, nações que pregavam a concorrência generalizada como forma de crescimento econômico e produtivo estão se rendendo ao charme das políticas industriais, como os Estados Unidos e a Europa, que foram árduos defensores do pensamento liberal. Estas nações estão despejando trilhões de dólares e euros para protegerem suas estruturas econômicas e como forma de evitar sucumbir na concorrência com as nações asiáticas, que se utilizam fartamente de políticas industriais, protecionismos, subsídios etc.

O Brasil, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi a nação que mais se desindustrializou nos últimos trinta anos, diante disso, faz-se necessário que a sociedade estruture uma estratégia para a reconstrução do setor industrial. Neste cenário, nasce o programa Nova Indústria Brasil (NIB) que está centrada nas chamadas Missões, que nos parece inovador e com uma concepção moderna ao dialogar com experiências internacionais, um conceito criado pela economista italiana Mariana Mazzucato, que defende uma estrutura integrada e interdependente para reconstruirmos a indústria nacional. Neste novo programa, percebemos uma preocupação central no aumento da produtividade e da competividade, enfatizando uma melhor inserção internacional da indústria, se distanciando da velha lógica de substituição das importações.

Dentre as Missões elencadas, destacamos as cadeias agroindustriais, saúde, bem-estar nas cidades, transformação digital, bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energéticas e defesa que, se bem-sucedidas, transformarão a estrutura econômica e produtiva nacional. Os programas existem e podem ser positivos, mas antes de mais nada precisamos compreender o que queremos para o futuro, se continuaremos como um grande fazendão ou vamos alçar novos voos num mundo marcado por grandes transformações e incertezas.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Dezembro 2023

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O mês dezembro de 2023 foi caracterizado por grandes movimentações da sociedade brasileira, de um lado, ao olharmos as questões econômicas encontramos um grande discussão sobre as questões fiscais do Estado Nacional, uns defendendo a possibilidade de buscarmos o déficit zero, mesmo sabendo que está meta seja improvável e fortemente desafiador, onde teríamos que impor um arrocho fiscal violento, incrementando graves desequilíbrios sociais com impactos imediatos sobre a popularidade do governo Lula.

Depois destas discussões o governo destacou a necessidade de, em 2024, encontramos o déficit zero, alegrando os setores ligados ao mercado financeiro, recebendo aplausos dos setores bancários e gestores de fortunas em detrimento de setores mais ligados aos trabalhadores, que são os grandes prejudicados pelo arrocho do Estado Nacional.

Desta forma, percebemos que o governo federal está acenando para os donos dos recursos financeiros e as lideranças dos setores financeiros, adotando políticas que alegram esses setores, desta forma, acreditam que vão conseguir o apoio deste setor, sabendo que não conseguem governar sem o apoio destes setores da economia. Sabendo que estes são os grupos que foram os agentes que estiveram na linha de frente do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, desta forma, o governo Lula três está buscando agradar os donos do poder como forma de evitar de desagradar esse setor e evitando as represálias dos donos do poder, uma estratégia arriscada que podem levar o governo a perder o apoio dos grupos mais fragilizados economicamente.

No mês de dezembro, o governo se utilizou de instrumentos para mostrar todas as políticas que foram implementadas no decorrer do ano, um período marcado pela adoção de uma estratégia de reconstrução de muitos setores da sociedade que foram esquecidos no governo anterior e retomando políticas sociais, tais como projetos que foram reduzidos e renomeados pelo governo de Jair Bolsonaro. Neste ano de 2023, o governo retomou o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), visto como um projeto fortemente gerador de empregos, responsável pela movimentação de variados setores da economia, com injeção de investimentos, movimentação do mercado de trabalho, financiamentos subsidiados, estimulando os setores bancários, além de seguro, logística, construção civil, dentre outros.

Destacamos ainda a retomada de recursos financeiros para os setores de educação, segurança pública, saúde e cultura, setores que seus recursos foram arrochados, gerando forte degradação para variados setores da economia, além de destacarmos programas de reindustrialização, todos setores que foram muito degradados e o presidente se comprometeu com a retomada dos investimentos para a recuperação.

No mês de dezembro foi marcado por uma grande discussão sobre a segurança pública, uma área que os governos progressistas não apresentaram índices positivos, desta forma surge novamente uma discussão se era prudente separar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, criando o Ministério de Segurança Pública para atacar uma das maiores feridas da sociedade contemporânea brasileira, os índices elevados de violência que crassa as cidades nacionais.

Essa discussão aparece com maior força com a indicação do Ministro da Justiça Flávio Dino para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de Paulo Gonet para Procurador Geral da República (PGR). Ambos foram sabatinados no Senado Federal e foram conduzidos aos cargos indicados pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Um dos grandes feitos do governo federal em 2023 foi a reforma tributária, medida que estava parada desde décadas anteriores, que geravam grandes constrangimentos para todos os setores econômicos e produtivos, essa medida foi aprovada e promulgada em dezembro pelo presidente da República, movimentando o Congresso Nacional.

Embora percebamos que essa reforma tributária está distante de uma reforma mais abrangente e com impactos generalizados para a economia nacional, a adoção desta nos traz algum alento de melhoras tributárias, com medidas mais progressivas para os setores sociais, reduzindo as medidas esdrúxulas que permanecem em todo o arcabouço tributário nacional. Um dos grandes avanços trazidos pela Reforma foi taxação de fundos exclusivos, além do IVA nacional, desta forma o Brasil entra no rol das nações que atuem essa forma de tributação.

Percebemos ainda, internamente, uma economia que já nos dá sinais claros de desaceleração econômica, onde os estímulos do primeiro semestre estão se enfraquecendo e deixando mostras de incertezas fiscais para o final do ano. Muitos defendem um maior gasto público como forma de estimular o crescimento dos investimentos, fomentando os setores produtivos, aumentando o emprego, incrementando a renda agregada e retomando o crescimento da economia. De outro lado, percebemos que os indicadores fiscais estão preocupantes e precisamos criar uma nova estratégia para melhorarmos os indicadores fiscais, sem isso, o fiscal pode se espalhar para a economia e gerar graves constrangimentos para todo o sistema econômico, gerando incertezas crescente e redução dos investimentos, levando a Autoridade Monetária a elevar as taxas de juros e reduzindo as atividades econômicas e com impactos para a economia nacional.

No campo internacional, os conflitos militares entre Ucrânia e Rússia, percebemos poucas movimentações, onde os ucranianos estão cotidianamente passando a sacolinha para arrecadar recursos para financiar a guerra, onde os governos europeus e os Estados Unidos estão menos afeitos aos investimentos do conflito. No campo da guerra, percebemos que os russos estão mais na frente, ganhando novos territórios e avançando mais efetivamente, mesmo sabendo que o presidente Putin sente que a vitória deste conflito está cada dia mais próximo.

Neste cenário, percebemos as movimentações da Otan, Organização do Tratado do Atlântico Norte, que geram preocupações para os rumos do conflito, isto porque a organização está dando sinais claros de estar se preparando para entrar nesta guerra, com custos altíssimos financeiros e graves constrangimentos para todas as nações, será que estamos visualizando a proximidade de uma terceira guerra mundial? Só o tempo pode nos responder.

Outro grave conflito em curso na sociedade internacional, a guerra entre Israel e Hamas, cujo conflito já deixou mais de 25 mil pessoas mortas, com devastação em todas as regiões da Palestina, com destruição da infraestrutura, matanças generalizadas e críticas internacionais de todas as regiões do mundo.

Esse conflito pode gerar graves constrangimentos para a sociedade mundial, a guerra pode se espalhar por todo Oriente Médio, levando muitas nações a adentrar ao conflito e podendo gerar uma verdadeira guerra mundial, arrastando os países mais desenvolvidos, como os europeus e os Estados Unidos e toda a comunidade árabe e chegando a Rússia, a China e outras nações, desta forma arrastando o mundo a uma terceira guerra mundial, com destruição generalizada.

O mês de dezembro nos mostra as grandes dificuldades para encontrarmos o comportamento correto econômico e necessário para retomarmos o crescimento da economia, no campo político percebemos grandes incertezas e instabilidades, fortalecimento de grupos de extrema direita com posições fortemente fascistas, crescimento de ideias e pensamentos que defendem retrocessos da democracia, estimulando intervenções militares e disseminando fake news como forma de gerar graves constrangimentos, cancelamentos e violências crescentes, gerando uma nação dividida e fortemente degradada.

Neste cenário, percebemos que depois de mais de 12 meses de um governo dito progressista ainda patinamos para reduzir as polarizações que alimentam a degradação e um ambiente de hostilidade e agressividade, sem reduzirmos essas polarizações dificilmente encontraremos o caminha para a reconstrução e o caminho correto para retomarmos o crescimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Mudanças climáticas e a economia, por Cecília Machado

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Eventos climáticos extremos impõem custos substanciais para o crescimento e desenvolvimento dos países

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 13/02/2024

O clima é uma variável fundamental para promover diversas atividades. Considerando sua relevância para o funcionamento das economias, espera-se que mudanças climáticas —como o aumento de temperatura, o aumento do nível do mar e a maior frequência na ocorrência de eventos climáticos extremos— possam impor custos substanciais para o crescimento e desenvolvimento dos países mais adversamente impactados por elas. O que se sabe até o momento sobre os impactos das mudanças climáticas sobre a economia?

São muitas as formas pelas quais as alterações climáticas operam na atividade econômica. De maneira direta, elas podem afetar componentes básicos de produção, como danos à infraestrutura construída ou prejuízos à produção física de bens, com efeitos que também se estendem a recursos humanos, já que as mudanças climáticas também trazem deterioração da saúde —física e mental— das pessoas.

Os efeitos indiretos, por sua vez, são decorrentes das ações de mercados, governos e outras instituições, que se ajustam para absorver os impactos do clima na economia e para direcionar mudanças. Por exemplo, variações nos padrões de precipitação e a subida do nível do mar colocam as edificações existentes em risco de inundações, provocando queda de preço ou mesmo aumento no custo de seguros contra inundação.

Pensando nisto, o Congresso americano promulgou, em 1990, uma lei que institui um programa para coordenar pesquisa e investimento relacionados a mudanças no ambiente global, que tem, entre seus objetivos, a produção de uma avaliação sobre os efeitos das mudanças climáticas em diversos assuntos, incluindo a economia. Elaborado em um intervalo máximo de quatro anos por uma comissão de especialistas, ele é o alicerce científico para que decisões políticas sejam tomadas de maneira informada.

O último relatório, de 2023, traz vários números alarmantes. No caso do aumento da temperatura, alguns estudos já são capazes de mostrar que ele reduz o aprendizado dos alunos, amplia a chance de acidentes no trabalho, reduz salários e aumenta a mortalidade.

Em termos de impactos para o futuro, há estimativas que apontam para prejuízos na produção agrícola, para a queda do crescimento e para a redução da renda per capita.

Ainda que as estimativas dos impactos econômicos futuros estejam sujeitas a algum grau de incerteza —já que o resultado depende de uma complexa interação entre forças naturais e humanas—, as projeções têm alto grau de confiança.

O relatório também estabelece que seus impactos serão distribuídos de forma desigual, afetando justamente regiões e grupos socioeconomicamente mais vulneráveis. Por exemplo, pessoas mais velhas ou com problemas de saúde são mais sensíveis a mudanças de temperatura e de qualidade do ar.

No Brasil, a sensibilidade à temperatura, à disponibilidade de água e aos eventos climáticos extremos coloca em risco os rendimentos e os ganhos históricos de produtividade do setor agropecuário. Já seria muito se fosse apenas isso. Mas nosso ponto de partida traz preocupações adicionais: ainda temos 12,7 milhões de pessoas em extrema pobreza, 4 milhões vivendo em áreas de risco, e um contingente de trabalhadores pouco capacitados para se adaptar a mudanças que também acontecem no mercado de trabalho, na direção de setores da economia verde.

São justamente estas pessoas que mais sofrem com perdas materiais decorrentes das mudanças climáticas, que têm menos recursos para se adaptar ou de se recuperar das perdas causadas por elas, e menor capacidade para se realocar em setores que passarão ser mais demandados pela sociedade na transição para uma economia de baixo carbono.

Os efeitos das mudanças climáticas sobre a economia não se restringem apenas ao crescimento.

Eles também são amplificadores de desigualdades, constituindo um motivo adicional —se não o mais importante— para que também no Brasil se pratique uma avaliação criteriosa de políticas que fortaleçam a preparação do país para as alterações climáticas.

Priorizar a educação exige mais investimentos, por Alves e Cardoso do Amaral

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País possui riqueza para aplicar 10% do PIB em ensino público de qualidade

Miriam Fábia Alves, Presidenta da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação)

Nelson Cardoso do Amaral, Presidente da Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação)

Folha de São Paulo, 13/02/2024

No editorial “Educação a sério” (1º/2), esta Folha avaliou que a Conferência Nacional de Educação (Conae) “desperdiça tempo” e é pautada por “bandeiras demagógicas”.

O texto aponta o pedido de revogação do ensino médio como “revanchismo”. Em 2023, a ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) demonstrou em cinco seminários regionais e documento para o MEC resultados de pesquisas que indicam que o novo ensino médio amplia desigualdades, prejudica a formação humana pela redução de carga horária e retirada de disciplinas e se ampara em itinerários pouco claros e inexequíveis. Portanto, uma política frágil, com graves prejuízos aos estudantes, que não dá para ser remendada.

O editorial também cita o aumento doinvestimento em educação para 10% do PIB (Produto Interno Bruto) como “meta farsesca” e afirma que o dispêndio atual é compatível com o padrão global.

Vejamos: o Education at a Glance de 2023, da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mostra que o Brasil investe bem menos que a média dos países-membros, segundo o Dólar por Poder de Paridade de Compra (US$-PPC), que permite a comparação. Em 2020, a média da OCDE foi de US$-PPC 11 mil contra US$-PPC 3.300 no Brasil —ou seja, 30% do montante aplicado nos “países desenvolvidos”.

A leitura atenta do documento-base da Conae 2024 evidencia de onde “sairiam tais recursos”. Além de novos impostos, o Brasil possui riqueza para aplicar 10% do PIB em educação pública, como já expôs a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) em nota técnica.

Além disso, medidas adotadas em “países desenvolvidos” mostram, por exemplo, que a Noruega mantém um fundo soberano com sua riqueza natural. E a Coreia do Sul saltou o investimento por aluno de US$ 151 para US$ 8.230 (1970 a 2018).

Já o argumento falacioso de que “a educação brasileira precisa antes de gestão do que de mais verbas” ignora a falta de recursos estruturais em milhares de escolas e condições mínimas de carreira a docentes e profissionais.

O editorial também cita metas não alcançadas do atual Plano Nacional de Educação (PNE), como matrículas em creches e oferta de escola em tempo integral, para justificar que o novo plano necessita de “metas mais palpáveis”.Com isso, ignora que o último decênio foi marcado pela lei do teto de gastos (que ceifou a viabilização de metas), pela pandemia e por um governo que de 2019 a 2022 trabalhou pelo desmonte da educação.

O que está em jogo na Conae é a construção de um projeto de país com propostas robustas e ambiciosas que coloquem a educação como protagonista no desenvolvimento social e político brasileiro, com justiça social, ambiental e equidade. Assim, o texto-base ao PNE 2024-2034 avança em aspectos como a transição ecológica e o desenvolvimento sustentável.

Contando que este texto subsidiará o projeto de lei do governo a ser apreciado por um Congresso Nacional conservador, é essencial que expresse tudo o que a sociedade brasileira de fato almeja e precisa para o desenvolvimento educacional e democrático do país.

A complexa luta dos agricultores europeus, por Sergio Ferrari

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Protestos espalham-se pelo continente e ultradireita tenta capturá-los. Mas eles rejeitam a concentração de riquezas, financeirização do campo e o endividamento – e querem mercados regulados e transição energética com apoio dos Estados

Sergio Ferrari – OUTRAS PALAVRAS – 05/02/2024

O protesto foi, particularmente, pronunciado na Alemanha e na França, embora também tenha havido grandes manifestações na Bélgica, na Romênia e na Polônia, bem como na Itália, começando pela Sicília, e se espalharam para o norte. Na terça-feira (30), manifestações ocorreram nos arredores de Milão. Quarta e quinta-feira em outras cidades. Para a segunda semana do mês, eles antecipam o “cerco de Roma”, ou seja, uma mobilização maciça de agricultores em direção à capital italiana. O conflito também pode se alastrar, no curtíssimo prazo, para a Espanha e para outros países do continente, nesta primeira quinzena do mês em que o campo volta a estar em pé de guerra em boa parte do continente.

Na segunda-feira (29), organizações do setor rural francês pediram o “cerco de Paris” e bloquearam oito pontos estratégicos de algumas das rodovias que dão acesso à capital. Segundo o jornal Le Monde, a rodovia A4 foi interditada ao início da tarde e em ambos os sentidos a cerca de 30 quilômetros a leste da capital. Os agricultores anunciaram que vão manter a greve até que o governo responda às suas reivindicações. O diário francês citou um dos promotores do protesto: “O cerco a Paris, uma ação simbólica… Tudo está organizado milimetricamente e não aceitaremos nenhum transbordamento. Sabemos quando começa, mas não sabemos quando vai acabar”. Com o passar da semana, a medida continuou e, inclusive, se ampliou.

Ao mesmo tempo em que várias das principais estradas da França estavam paralisadas, os protestos agrícolas voltavam com força para várias regiões da Alemanha, onde agricultores bloquearam estradas que levam a vários portos. Entre eles, o de Hamburgo, o mais importante do país, e o da Baixa Saxônia, o acesso a Jade-Weser-Port, perto da cidade de Wilhelmshaven.

Na quinta-feira, 1º de fevereiro, centenas de agricultores de diferentes países com seus tratores e meios de transporte se reuniram em frente à sede das instituições europeias em Bruxelas, em um dia de grande tensão, violência e total descontrole do trânsito da capital. Os manifestantes conseguiram ser atendidos pelas mais altas autoridades do continente preocupadas com a mobilização continental do campo, particularmente em ano eleitoral, já que, em junho próximo, haverá eleições para o Parlamento Europeu.

Guerra na Europa: os agricultores são os que perdem

Embora as causas da agitação camponesa europeia sejam múltiplas – algumas delas resultado de políticas especificamente nacionais –, um denominador comum que impacta a produção, a distribuição e a venda de produtos agrícolas é uma consequência direta da guerra na Ucrânia.

Como acaba de assinalar a BBC britânica: “O efeito dominó da guerra na Ucrânia provocou protestos em quase todos os cantos da Europa”.

Em resposta ao bloqueio das rotas comerciais através da região do Mar Negro, um resultado inevitável dessa guerra, a União Europeia (UE) levantou temporariamente as restrições às importações da Ucrânia. Mas, a medida significou que certos produtos agrícolas ucranianos inundaram os mercados da UE a preços muito mais baixos, principalmente para os vizinhos Hungria, Polônia e Romênia.

As regras do jogo dificilmente podem ser iguais: uma fazenda orgânica ucraniana média tem cerca de 1.000 hectares. Seus equivalentes europeus, apenas 41. Uma diferença significativa, que praticamente impede os agricultores da UE de poderem competir com a produção em grande escala e com os preços mais baixos dos produtos da Ucrânia. Após a abertura inicial ao mercado ucraniano, a UE não podia ignorar o descontentamento dos seus próprios Estados-membros nem evitar uma política inconsistente. Assim, e de forma mutável, houve aberturas comunitárias, fechamentos temporários e até, em alguns casos, decisões protecionistas nacionais por parte dos países mais afetados.

Por sua vez, os países do Leste Europeu exigem que a UE reveja definitivamente suas medidas de liberalização comercial com a Ucrânia. Na Romênia, por exemplo, agricultores e transportadores têm protestado contra o elevado preço do diesel, o aumento das taxas de seguro e as medidas de “mente aberta” da UE, bem como contra a concorrência desleal da Ucrânia. Em 24 de janeiro, seus colegas poloneses lançaram um protesto nacional contra as importações agrícolas do país devastado pela guerra. Um líder polonês do setor denunciou em poucas palavras o que constitui o principal problema: “O grão ucraniano deve ir para onde corresponde: para os mercados asiáticos ou africanos; não para a Europa”. Como resume a BBC, sentimentos semelhantes também existem na Eslováquia e na Hungria.

Em outros países da UE, como a Alemanha, a guerra russo-ucraniana teve impacto direto no aumento dos preços dos combustíveis. No caso específico do setor agropecuário, a crise foi agravada pela proposta do governo federal de suspender os subsídios ao diesel para o campo.

Os governos devem dar respostas

Para a Coordenação Europeia Via Campesina (CEVC), principal rede de pequenos e médios produtores agropecuários a nível internacional, a rejeição de acordos de livre comércio, bem como a exigência de rendimentos dignos, são as principais causas das recentes mobilizações dos agricultores na Europa.

Na Alemanha, na França, na Polônia, na Romênia e na Bélgica, entre outros países, “estamos vendo um número crescente de agricultores indo às ruas”, disse o CEVC, em um comunicado, em 25 de janeiro. E defendeu que “os baixos rendimentos e a falta de perspectivas de futuro para a grande maioria dos agricultores estão na origem deste descontentamento, que, em grande parte, está ligado às políticas neoliberais que a União Europeia tem seguido há décadas”. O CEVC também exige aos governos do continente que levem a sério os protestos atuais e mudem o rumo das políticas agrícolas e alimentares europeias: “É hora de pôr fim aos acordos de livre comércio e embarcar resolutamente no caminho para a soberania alimentar”.

A Comissão Europeia respondeu que, entre 2014 e 2023, face à crise no setor agropecuário, tomou 63 medidas excecionais a favor dos agricultores e dos criadores de gado, mas as organizações de pequenos e médios produtores consideram-nas insuficientes.

Os manifestantes exigem preços justos. O endividamento e o excesso de trabalho estão disparando, enquanto os rendimentos agrícolas só despencam. “Os nossos rendimentos dependem dos preços agrícolas e é inaceitável que estes estejam sujeitos à especulação financeira”, diz a Via Campesina Europa, que reclama políticas agrícolas “baseadas na regulação do mercado, com preços que cubram os custos de produção”.

E exige que seja definido um orçamento justo “que permita a redistribuição dos subsídios da Política Agrícola Comum (PAC) para apoiar a transição para um modelo agrícola capaz de enfrentar os desafios da crise climática e da biodiversidade”. Segundo a Via Campesina, é inaceitável que, na atual PAC, uma minoria de grandes empresas agrícolas receba centenas de milhares de euros em ajuda pública, enquanto a maioria dos agricultores europeus recebe pouco ou nenhuma ajuda.

A tendência dos últimos 15 anos é particularmente preocupante: entre 2005 e 2020, registou-se uma redução maciça de 37% do número de explorações agrícolas na União Europeia, especialmente entre as fazendas menores.

Já em 2022, o estudo O Futuro do Modelo Econômico Europeu, elaborado por iniciativa do Parlamento Europeu, antecipava que em 2040 haveria quase três vezes menos fazendas agrícolas na União Europeia. Ou seja, um prejuízo de US$ 6,4 milhões – de US$ 10,3 milhões em 2016 para US$ 3,9 milhões. As principais vítimas dessa extinção em massa são e serão as pequenas unidades de produção com menos de 4 hectares, especialmente nos novos Estados-Membros da Europa Oriental e Meridional. A produção está cada vez mais concentrada em grandes estruturas de produção intensiva.

Contra o Tratado Europa-Mercosul

Em sua reflexão no final de janeiro, a Via Campesina Europa incorpora dois elementos analíticos para compreender, a partir de sua perspectiva, a tensão particular vivida pelos pequenos e médios produtores rurais do continente, bem como suas demandas atuais.

Por um lado, a VCE exige o cancelamento imediato das negociações do Acordo de Livre Comércio (TLC) com os países do Mercosul, bem como uma moratória sobre todos os outros TLCs em andamento por considerar que eles ameaçam pequenos e médios produtores, tanto europeus quanto dos países do Sul. “Os agricultores europeus precisam de respostas reais para os seus problemas, não de fumaça e de espelhos”, enfatiza a Via Campesina.

Por outro lado, pede a desarticulação das tentativas da “extrema direita de explorar e usar essa raiva [dos movimentos rurais] e as mobilizações atuais para impulsionar sua própria agenda, que inclui a negação das mudanças climáticas, propondo padrões ambientais mais baixos e a culpabilização dos trabalhadores imigrantes nas zonas rurais”. Nenhuma dessas posições coincide com os interesses dos agricultores ou contribui para melhorar suas perspectivas futuras, acrescenta a Via Campesina.

A Coordenação dessa organização aprofunda a sua leitura da realidade agrária continental: “Negar a realidade da crise climática poderia aprisionar os agricultores numa sucessão de desastres cada vez mais intensos, desde ondas de calor e secas até inundações e tempestades”. A CVCE defende que é preciso tomar medidas – e os agricultores estão dispostos a fazer as mudanças necessárias – para abordar as questões ambientais, climáticas e alimentares. No entanto, essa mudança de direção “não será possível enquanto formos forçados a produzir a preços baixos em um mercado globalizado e desregulado”.

Ao mesmo tempo, defende que, hoje, os trabalhadores migrantes desempenham um papel fundamental tanto na produção agrícola como na indústria agroalimentar: “Sem estes trabalhadores, nós, na Europa, teríamos falta de mão de obra para produzir e processar alimentos. Seus direitos devem ser plenamente respeitados”.

E conclui exigindo “aos responsáveis políticos do continente que ajam rapidamente para responder à raiva e às preocupações dos agricultores. Precisamos de uma mudança real na política agrícola que coloque os agricultores no centro da formulação de políticas e nos dê perspectivas para o futuro”.

O sector agrícola está ameaçado pela dinâmica estrutural vigente, como demonstrou o estudo encomendado pelo Parlamento Europeu; daí a urgência de que as reformulações a ser feitas sejam de fundo e decisivas; essencialmente, para evitar a todo o custo que a hemorragia agrícola se torne um bumerangue contra o esforço a favor da autossuficiência e da soberania alimentar europeia.

Política industrial de volta à cena, por Ana Paula Avellar

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Plena execução exigirá amadurecimento institucional, diálogo e liderança

Ana Paula Avellar, Professora titular do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Folha de São Paulo, 12/12/2024

Em 22 de janeiro último, o governo federal anunciou a política industrial “Nova Indústria Brasil “ (NIB), constituída por seis missões, que englobam os seguintes temas: cadeias agroindustriais, saúde, bem-estar nas cidades, transformação digital, bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energéticas e defesa. A iniciativa prevê R$ 300 bilhões para a custear até 2026, entre financiamento com recursos orçamentários do BNDES e desembolsos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Finep (Financiadora de Estudos e projetos).

Ao relembrar as últimas políticas industriais do Brasil – a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (2003-2007), a Política de Desenvolvimento Produtivo (2008-2010), o Plano Brasil Maior (2011-2014) e o Programa Inova Empresa (2011)—, observa-se que há praticamente dez anos não se executa política industrial. Essa opção pela “não política industrial” aprofundou o processo de desindustrialização, de queda da produtividade e da inovação industrial.

Ponto positivo para o governo, que colocou a política industrial de volta ao debate e em sintonia com a prática de países como EUA, membros da União Europeia e China.

Ainda que algumas críticas considerem que a proposta seja um conjunto “requentado” de experiências passadas, é possível observar pontos de pioneirismo.

O conjunto de princípios da NIB é inédito e ultrapassa os aspectos relacionados ao desenvolvimento produtivo e tecnológico ao preocupar-se com o aumento da produtividade e competividade e ter orientação voltada à melhor inserção internacional da indústria —distante, portanto, da velha lógica de substituição de importações.

O conjunto de princípios ainda se orienta por elementos relacionados ao desenvolvimento econômico, como a busca pela equidade de gênero, cor e etnia, a redução das desigualdades e a inclusão socioeconômica, a distribuição regional, a promoção do trabalho com qualidade e a sustentabilidade.

O recorte por missões é inovador e se apresenta com uma concepção moderna ao dialogar com experiências internacionais. O formato orientado por missões, proposto por Mariana Mazzucato, da University College London, estrutura-se por objetivos a serem alcançados, que definem a forma como as ações da política se efetivarão. Muda-se, assim, o eixo lógico do plano dos antigos recortes por setores industriais ou mesmo de empresas “campeãs nacionais”.

Ademais, alguns temas que compõem as missões merecem destaque pela atualidade e pela relevância no debate mundial, como os relacionados às cadeias agroindustriais sustentáveis, ao bem-estar nas cidades inteligentes, à transformação digital e à transição energética.

Ainda que críticos afirmem que os instrumentos são os mesmos “de sempre”, como incentivos fiscais e créditos subsidiados, o menu disponível é mais abrangente e conta com instrumentos que são comumente (e historicamente) utilizados no mundo, como empréstimos, créditos tributários, compras públicas, conteúdo local, margem de preferência, infraestrutura de qualidade e regulação.

Dado seu complexo desenho institucional, será essencial que haja uma boa coordenação das ações com escolha das prioridades e sua distribuição ao longo do tempo. Dada a forma democrática como foi construída e institucionalizada pelo CNDI (Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial), a plena execução da NIB exigirá amadurecimento institucional, manutenção do diálogo entre as esferas envolvidas e liderança para o enfrentamento das adversidades. Conforme afirma Dani Rodrik, da Universidade Harvard (EUA), o sucesso da política industrial depende de um ambiente institucional forte e de decisões tomadas com transparência.

É eminente a necessidade de um constante monitoramento dessa nova experiência para que sejam possíveis correções em curso. Desse modo, será fortalecida a capacidade de execução bem como de atuação das instituições participantes.

Com novos desafios e pioneirismo, a NIB traz novamente luz ao debate sobre o papel da indústria e a construção de uma estratégia de desenvolvimento econômico sustentável para o país.

Ensino sem celular, por Editorial FSP.

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Aumenta a restrição aos aparelhos em escolas, mas deve-se evitar radicalismo

Editorial Folha de São Paulo – 11/02/2024

Cresce o número de países, cidades e escolas que estão restringindo, ou até proibindo, a utilização de telefones celulares por alunos.

Relatório da Unesco, publicado em julho do ano passado, mostra que esses aparelhos podem prejudicar o aprendizado. O impacto negativo mais óbvio é a distração —jogos e redes sociais são mais atraentes do que aulas expositivas.

Segundo o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), 65% dos alunos de 15 anos nos países pesquisados em 2023 disseram que se distraem nas aulas de matemática com o celular; no Brasil, a média atinge 80%.

Mas não só. Mesmo quando o apetrecho fica na mochila, o toque da mensagem que o aluno não poderá conferir tende a deixá-lo ansioso, numa reação similar à síndrome de abstinência de drogas.

Até tecnologias supostamente mais benignas, como e-readers, que servem quase exclusivamente para ler livros e textos, apresentam problemas. Estudos mostram que a leitura em tela gera menos retenção do que em papel.

Com base nessas evidências, um em cada quatro países monitorados pela Unesco —como Espanha, Portugal, Finlândia, Holanda, Suíça e México— já baniu ou restringiu o uso de celulares e tablets.

No Brasil não há norma federal sobre o tema, mas, no Rio de Janeiro, a prefeitura proibiu celulares nas escolas da rede até durante o recreio. E não são poucos os colégios particulares em todo o país que caminham na mesma direção.

Contudo, se há razoável consenso de que a utilização de celulares e tablets em instituições de ensino deve ser restringida, a forma de fazê-lo permanece em aberto.

É apenas por tentativa e erro que se chegará a protocolos adequados, que não serão os mesmos em contextos diversos. O nível de restrição depende muito da faixa etária, por exemplo, e é preciso cuidado para não pecar por radicalismo.

A chamada educação midiática é fundamental, principalmente em tempos de desinformação e bullying virtual. O celular pode ser usado de forma guiada para que os alunos aprendam como obter aquilo que a internet tem de melhor e se protejam daquilo que nela há de pior.

Anatomia golpista remete à Comissão da Verdade, por Marcos Augusto Gonçalves

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Insatisfação militar com apurações e voto de Bolsonaro no impeachment prenunciavam golpismo

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha.

Folha de São Paulo, 09/02/2024

Os primeiros sinais mais enfáticos de politização e insatisfação de setores das Forças Armadas, em especial do Exército, começaram a ser notados após a instalarão da Comissão da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff.

No dia 16 de maio de 2012, com a presença dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, uma cerimônia no Palácio do Planalto, presidida pela então presidente, que tinha um passado de militância em organização de esquerda da luta armada, deu início aos trabalhos, embasados em lei aprovada no ano anterior.

Tratava-se, nas palavras de Dilma, de reconhecer que “o Brasil merece a verdade, as novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo”. O principal objetivo seria apurar episódios de desaparecimento de mais de uma centena de opositores da ditadura, sem registro de prisão, que teriam sido sequestrados por agentes da repressão.

Em que pesem as ressalvas de que não haveria ódio ou revanchismo, a comissão, que apresentou relatório em 2014, foi muito mal recebida por militares, que viam na iniciativa a quebra de um pacto estabelecido em torno da anistia.

A contrariedade com as apurações e com as pressões que se avolumavam para levar militares a julgamento espalhou-se e chegou à cólera, notadamente entre os mais radicais, ligados aos chamados porões da ditadura, os subterrâneos da tortura e da eliminação de oponentes.
Na votação do impeachment, ao se formalizar a conspiração que derrotou e depôs a petista, as manifestações de exasperação eram gritantes.

A mais escabrosa veio no voto contra Dilma proferido pelo então deputado Jair Bolsonaro, ex-militar afastado da caserna: “Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”.

A saudação ao notório torturador e demais considerações eram uma síntese do projeto de governo do futuro presidente. Antes de chegar ao poder, porém, o maior beneficiário da deposição da mandatária, Michel Temer, deu vazão à movimentação militar ao nomear um general para o Ministério da Defesa pela primeira vez desde que a pasta fora criada por Fernando Henrique Cardoso, em 1999 –além de banalizar as requisições das Forças Armadas para operações de segurança.

Na esteira dos abusos cometidos pela Lava Jato, que culminaram na prisão sem solidez jurídica de Lula, veio um novo anúncio do ânimo intervencionista. Por ocasião do julgamento de um pedido de habeas corpus da defesa do ex-presidente ao STF, no início de abril de 2018, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, foi ao Twitter proferir uma ameaça – que de velada de fato nada tinha – às instituições, caso os ministros do tribunal concedessem o pedido.

Ao vencer o pleito, Bolsonaro, como se sabe, entulhou o governo de militares, com direito a general da ativa até na Saúde, cooptou instituições policiais, manipulou a Abin, confrontou o sistema eleitoral, ameaçou o Supremo e tentou articular um golpe de Estado, como agora novas evidências vão reiterando.

Muitos anos (quase oito completos) e muitos panos se passaram desde que o populista celerado da ultradireita anunciou suas intenções na votação do impeachment. Só não viu quem não quis. Felizmente, a democracia venceu.

As Forças Armadas e a preservação das corporações, por Manuel Domingos

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Elas podem aceitar a queda de alguns generais, para conservar a capacidade de interferir na vida política do país, e uma concepção de Defesa voltada contra o “inimigo interno”. Mas Augusto Heleno, Braga Netto e Bolsonaro aceitarão o sacrifício?

Manuel Domingos – OUTRAS PALAVRAS – 09/02/2024

As operações de busca e apreensão na residência de generais próximos de Bolsonaro e a prisão de dois oficiais superiores deixou confiantes os que prezam a democracia. Quem grita, “sem anistia”, sentiu-se contemplado. Muitos salientaram tratar-se de momento histórico sem precedentes e aplaudem a coragem do ministro Alexandre de Moraes. A maioria aceita a ideia de que a democracia venceu. Nestes tempos obscuros, é bom demais ter algo de relevante a comemorar.

Mas, caberia pensar… ao acatar decisões judiciais desta monta, as corporações, profundamente envolvidas em manobras antidemocráticas nos últimos anos, não passam a falsa noção de que, repentinamente, em lance histórico inédito, assumem seriamente a institucionalidade do jogo democrático?

Uma ação da Justiça, por contundente que seja, teria o condão de alterar a velha tendência castrense de interferir no jogo político?

Mais sensato seria imaginar que a postura dos comandantes revela a satisfação diante da prevalência dos desígnios das fileiras.

O atual governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade.

O militar continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume com todas as letras sua condição de “representante” das Forças, abdicando da condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.

Como se sabe, a condução da política de Defesa guarda implicações diretas com os mais variados domínios da atuação do Estado, em particular com as relações externas, a Segurança Pública, o desenvolvimento técnico- científico e industrial. A política de Defesa é uma peça-chave da
integração sul-americana. Ao ditar a política de Defesa o militar se imiscui como quer nas entranhas do Estado e da sociedade. Em outras palavras, persiste exercendo a tutela configurada ao longo do regime republicano.

O atual governo assegura a continuidade de práticas corporativas ancestrais que garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro. O Brasil continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa. As Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono.

Vitoriosos no embate político principal, os comandos militares acatam o sacrifício de alguns dos seus em troca da preservação da capacidade de ingerir nos negócios públicos e na vida social.

Hoje, em essência, ao tempo em que a institucionalidade democrática mostra vigor, foi dado um passo importante para conter a corrosão da imagem das Forças Armadas. Talvez seja esse o significado mais relevante da operação comandada pelo Polícia Federal: o acatamento da decisão judicial ocorre como ato de proteção corporativa.

Os comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em que se meteram ao apadrinhar Bolsonaro e respaldar seus desmandos. Afinal, atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das corporações.

O preço a pagar pela preservação das instituições militares seria o sacrifício de alguns camaradas, os mais notoriamente associados ao ex-presidente.

Mas nada garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa. Os oficiais hoje investigados se comportarão altivamente na defesa de suas corporações? Aceitarão ser punidos solitariamente preservando a imagem das fileiras?

Eis uma hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu elementos preciosos aos investigadores. Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere. Mais fácil é imaginá-los atirando, inclusive em seus desafetos fardados. A caserna cultiva camaradagem e desafeições.

Quanto ao ex-presidente, pior ainda. Quem aposta no padrão moral de Bolsonaro? Na cadeia, esse homem, com arrobas de crimes nas costas, poderá bater com a língua nos dentes e desmontar o imaginário coletivo tão cultivado pelas fileiras. Não seria surpresa caso seja silenciado.

Qualquer que seja o rumo dos acontecimentos, o fato é que estamos longe do final de um triste e trágico capítulo da história brasileira.

Que mundo estamos criando? por José Domingos Godoi Filho

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José Domingos de Godói Filho – A Terra é Redonda, 08/02/2024

O mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio

“Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa \ Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado. \ Compreensivo observo \ As veias dilatadas da fronte, indicando \ Como é cansativo ser mau”

(Bertolt Brecht, A máscara do mal).

Guerra contra a vida é a herança que 2023 deixou para 2024. Pode-se avaliar que o mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio. Guerra contra a natureza, apesar das alterações climáticas, das COP, da transição energética global, das dimensões da exploração dos recursos naturais e da mercantilização da natureza em nome da “economia verde” e demais propostas de “greenwashing”.

A herança mais aterrorizadora é o genocídio, mostrado em tempo real, em Gaza, repetindo o que foi denunciado por Edgar Morin,1 em 2002, como “Israél-Palestine: le Câncer”: “Os judeus de Israel, descendentes das vítimas de um apartheid denominado ghetto, guetificam os palestinos. Os judeus que foram humilhados, desprezados, perseguidos, humilham, desprezam e perseguem os palestinos. Os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa, impõem sua ordem impiedosa aos palestinos. Os judeus, vítimas da desumanidade, mostram uma terrível desumanidade.”

Na Faixa de Gaza está ocorrendo um dos piores crimes deste século, um genocídio generalizado (sem com isso isentar crimes cometidos pelo Hamas) que já atingiu, até o final de janeiro 2024, cerca de 25 mil mortes na Palestina, das quais mais de 8600 crianças,310 profissionais de saúde, 35 funcionários da defesa civil ,97 jornalistas e, aproximadamente 2 milhões de pessoas deslocadas, segundo dados levantados pela BBC Verify(2) e considerados confiáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Somam-se, escondidos ou pouco informados pela “grande mídia”, dentre outros, os massacres que ocorrem na África (Sudão e Sudão do Sul, Nigéria, Ruanda, Mali, Burundi, República Democrática do Congo e Angola); o apoio dado pelos Estados Unidos e seus aliados ao genocídio em Gaza; o financiamento do governo neonazista da Ucrânia para provocar a Rússia; as escaramuças com o Hezbollah na fronteira com o Líbano; os ataques dos Houthis do Iêmen contra navios militares americanos no Mar Vermelho; os bombardeios no enclave separatista Nagorno-Karabakh , que significou o rompimento do cessar-fogo entre a Armênia e Azerbaijão complicando o complexo jogo de interesses geopolíticos no Cáucaso, além de colocar sob risco humanitário a população civil de Karabakh, controlada pelo Azerbaijão.

No final de 2023, ficou registrado o maior número de conflitos armados desde o final da Segunda Guerra Mundial. E, inquestionavelmente, como herança, também ficou evidenciada a farsa das potências ocidentais, especialmente dos Estados Unidos e seus aliados para atender os seus interesses e não o de construir a paz.

A hipocrisia e a fraudulência desses países, frente ao cenário de beligerância mundial, atingiram níveis sem precedentes de perda de credibilidade; comprometendo gravemente os princípios do direito internacional, o respeito aos direitos humanos e à ordem mundial.

No texto 1984, George Orwell, que merece ser reproduzido, retrata bem a conjuntura dos conflitos atuais e permite refletir sobre a necessidade de resistir e alterar a herança deixada pelo ano de 2023: “O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto degradação. Destruiremos tudo mais – tudo… Não haverá amor, exceto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, exceto riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo de vida……Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano – para sempre”.3

A parcialidade da “grande mídia”, inclusive no Brasil, extrapola a veiculação da notícia, se comportando de modo parcial e tendencioso aos interesses dos Estados Unidos e de seus aliados e asseclas. Assim, temos, entre nós, “um Grande Irmão que nos vigia, que vela por nós. Dia a dia, ao ligarmos a televisão (precursora das teletelas?), ao lermos os jornais, ao nos conectarmos com a internet, percebemos a ação de um invisível Ministério da Verdade que acaba por nos convencer de que guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força.4

Samuel Huntington5, no seu instigante Choque das civilizações, apresentou uma premonitória “interpretação da evolução da política mundial depois da Guerra fria” que auxilia na compreensão da política mundial no século atual. Questionou, “se as melhorias no nível material de civilização em todo mundo, foi acompanhada da melhora das dimensões moral e cultural de civilização?”

Analisando os anos 90, do século passado, indicou existirem muitos indícios “da relevância do paradigma do ‘puro caos’ dos assuntos mundiais: uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família, um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revolver predominam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra – Moscou, Rio de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johannesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington –, a criminalidade parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da Civilização estão se esvanecendo”.

E concluiu: “A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo – na África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional, no Oriente Médio – elas parecem estar evaporando, estando sob séria ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma idade das trevas mundial, que se abate sobre a humanidade”.

Os organizadores do Fórum Econômico de Davos-2024, implicitamente se alinharam às análises de Huntington, ao avaliarem que a herança de 2023 mostra a “fragilidade do estado de paz, segurança e cooperação globais”. Apontaram que “o aumento da divisão, o aumento da hostilidade e o aumento dos conflitos estão criando um cenário global desafiador. Que a humanidade está lidando com várias questões simultaneamente, incluindo como revigorar as economias, responder à ameaça das mudanças climáticas e garantir que a Inteligência Artificial seja usada como uma força para o bem. Os conflitos e a sua superação estão esgotando a energia humana, que, de outra forma, poderia ser canalizada para moldar um futuro mais otimista”.

O Fórum Econômico concordou que “a atual onda de pessimismo é sem precedentes”. E faz um alerta para a mídia global: – “o poder e a presença da mídia global e da tecnologia de comunicação hoje significam que cada desafio e retrocesso é amplificado, ampliando ainda a sensação de desgraça e melancolia.”

E conclui os organizadores do Fórum Econômico: – “é primordial reconstruir a confiança no nosso futuro. A questão é por onde começar, dadas as circunstâncias complexas de hoje…. Devemos primeiro identificar e abordar as causas profundas do nosso mal-estar. Estamos em um momento crucial da história, mas ainda apegamos a soluções ultrapassadas. Para complicar, estamos lidando com muitas questões simultaneamente, todas profundamente interconectadas e que se reforçam mutuamente. Não há solução rápida ou solução única. Trata-se de abordar todos os sintomas de forma holística.”

Resistir é preciso, para vencer a herança pessimista deixada ao final de 2023. E, Ortega y Gasset6 pode auxiliar com suas reflexões: “É natural: a vida se fez ela mesma equívoca e são tempos de inautenticidade. Recorde-se que a origem da crise é precisamente haver-se o homem perdido porque perdeu contato consigo mesmo. Daí que pulule em tais épocas uma fauna humana sumamente equívoca e abundem os farsantes, os histriões; e, o que é mais doloroso, que não se possa estar certo de se um homem é ou não sincero. São tempos turvos”.

Ao mesmo tempo assinala que: “Todo o extremismo fracassa inevitavelmente, porque consiste em excluir, em negar – menos um ponto – todo o resto da realidade vital. Mas esse resto, volta, volta sempre e impõe-se nos, queiramos ou não. A história de todo o extremismo é de uma monotonia verdadeiramente triste: consiste em ter de ir pactuando com tudo o que havia pretendido eliminar… Qual é a perspectiva em que o homem sói viver? Faz um momento, como em todos os momentos de todos os dias, inexoravelmente, encontraram-se os senhores com que tinham de fazer algo de fazer algo, porque isso é viver. Ante os senhores se abriam diversas possibilidades de fazer, portanto, de ser no futuro”.

Retomando 1984, de George Orwell, “é impossível fundar uma civilização sobre medo, ódio e crueldade. Nunca poderia durar… Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia”.

Para não deixar que o cenário pessimista saia vencedor, que a resistência sobreviva e fortaleça a generosidade humana, uma provocação, a partir de uma das mais belas fábulas de Giono,7 para queo difícil caminho de “por onde começar” seja encontrado o mais breve possível: “Quando considero que um único homem, reduzido a seus meros recursos físicos e morais, foi capaz de transformar um deserto em uma terra de Canaã, penso que, apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas quando faço a conta de quanta constância na grandeza de alma e de persistência na generosidade foram necessárias para obter esse resultado…”.

Resistir é imprescindível.

*José Domingues de Godoi Filho é professor da Faculdade de Geociências da UFMT.

(1) Morin, E. Israel-Palestina:câncer.

(2) Thomas, M. 20 mil mortos em Gaza: o que número de vítimas revela sobre o conflito.

(3) Orwel, G. 1984. São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

(4) More, T. Utopia, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

(5) Huntington, S. P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1997.

(¨6) Ortega y Gasset, J. Em torno a Galileu. Petrópolis: Ed. Vozes,1989.

(7) Giono, J. O homem que plantava árvores. São Paulo: Ed. 34, 2018.

Milagre asiático

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A economia internacional passou por grandes processos de integração, de interdependência e de uma forte competição entre os atores econômicos e produtivos, gerando oportunidades crescentes, novos mercados, novos hábitos, novas culturas e novos comportamentos, todos motivados pelo incremento da globalização da economia.

Neste período de fortes transformações econômicas e produtivas em curso na sociedade mundial, com países perdendo espaço na estrutura global, onde nações que dominavam o cenário internacional estão se fragilizando e o surgimento de novas potências hegemônicas, motivando novos modelos de negócios e novas estratégias de desenvolvimento. Neste cenário, faz-se necessário, destacar o milagre asiático, cujo modelo de crescimento econômico e desenvolvimento tirou mais de 1 bilhão de pessoas da miséria em 20 anos, um verdadeiro milagre.

A Revolução Industrial impulsionou a renda per capital global, aumentou a riqueza das nações e reduziu a pobreza e a miséria, mesmo assim, uma parcela significativa da população mundial continuava a viver na miséria e na indignidade. Nos últimos 30 anos, embora muitos não perceberam, a pobreza extrema passou por uma redução extraordinária no mundo, sendo que grande parte deste resultado positivo se deve ao desempenho asiático, região que concentra 60% dos habitantes e cerca de 40% do PIB global.

Ao destacarmos a experiência asiática na redução da pobreza, as pessoas pensam rapidamente na ascensão da China, do Japão e da Índia, essas nações apresentaram grandes avanços nos últimos 30 anos, mas devemos destacar ainda os exemplos de Bangladesh, a Indonésia e Vietnã, países que reduziram fortemente a pobreza e a indigência, criando novas formas de crescimento econômico, melhorando os ambientes de negócios, aumentando os investimentos em capital humano, despejando recursos em pesquisa, ciência e tecnologia e, com isso, reduzindo a miséria que assolava grande parte destas nações.

Dados de agências especializadas nos mostram indicadores excepcionais, no período entre 1982 e 2011, a Ásia Meridional teve um crescimento econômico médio de 5,6%, ultrapassando todas as regiões do mundo, desta forma, o crescimento impulsionou a geração de riquezas, aumentando investimentos produtivos e maiores oportunidades econômicas.

A ascensão asiática pode servir como exemplo para todas as regiões, a redução da pobreza está ligada aos novos contornos econômicos e produtivos da economia chinesa, cuja expansão impulsionou outras nações, com incremento do comércio, novos modelos de negócios e novos investimentos que contribuíram para a construção de uma classe média, dotada de recursos monetários para alavancar os setores econômicos internos, reduzindo a dependência externo e angariando novos espaços no comércio internacional.

O crescimento econômico contribuiu ativamente para a melhora das condições de vida da população asiática e contribuiu para a criação de uma economia pujante e diversificada, além de gerar emprego e crescimento da renda, alavancando o desenvolvimento humano, permitindo que as pessoas cuidem melhor de sua saúde, comam melhor e possam viver mais, melhorando o bem-estar de toda a comunidade. Passou da hora de buscarmos novos modelos, novos exemplos e novos significados para o desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário,

Clara Mattei: Brasil precisa de outro rumo

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Economista que estudou a fundo a relação entre ajustes fiscais e fascismo adverte, na edição brasileira de seu livro: “arcabouço” de Haddad é “vergonhosamente austero” e compromete o futuro, ao fazer concessões tolas ao mercado

Clara Mattei e Mariella Pittari – Outras Palavras, 30/01/2024

É uma verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil atual. Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as reivindicações de democracia econômica, transporta essa dinâmica à compreensão de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas, como se estas atingissem a todos de maneira equânime.

Os eventos ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos neoliberais que testemunhamos hoje.

Outra chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras necessidades a serem satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço público. Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.

Também as privatizações para atrair investidores nas famigeradas parcerias público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo. Após a promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia. Dado o presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina. Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.

Enquanto a Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%. Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem 120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativa senão implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país padece.

O ano 2022 encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo Lula, a Emenda constitucional n. 126, que ampliou o orçamento público para permitir que despesas correntes na ordem de R$ 145 bilhões não fossem limitadas ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de gastos estabelecido pela Emenda constitucional n. 95/2016, impedindo o país de austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.

Ademais, por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em 2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir do governante no poder.

Antes de assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação a Temer e Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da Fazenda do
“milagre econômico”, Delfim Netto, seria necessário “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os desfavorecidos do sistema.

A austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia às distinções de classe.

Como bem evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos. A austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais como barganha em detrimento da sociedade.

No caso brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.

A austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação, comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.

Existe uma relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas e, mais amplamente, dos direitos sociais.

O presente contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”, indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da “PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria Constituição.

Não bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho, refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade do exercente de poder. Nos capítulos a seguir, Clara Mattei nos atenta a outro pilar da austeridade: a importância dos bancos centrais como meio de usurpar a democracia da esfera econômica. Tal qual em outros países, no Brasil a deflação monetária possui efeitos devassantes nas taxas de ocupação, eliminando empregos ao oferecer qualquer contrapartida afora o discurso apolítico que tais medidas draconianas impõem.

A autonomia sem análogos, conferindo um mandato de quatro anos ao presidente do Banco Central por meio da Lei complementar n. 179/2019, mostrou-se das mais nocivas à discussão política sobre os rumos do país. Sempre sob a tônica da neutralidade econômica, vincularam-se os governos vindouros a uma política monetária-fiscal não conforme com o programa eleito para a Presidência da República. O debate político, agora permeado por um confronto nítido entre o presidente do Banco Central indicado por Bolsonaro e o presidente Lula, faz emergir a insustentável coexistência de uma elevadíssima política de juros comprometedora do crescimento do país e um orçamento carente de consecução de prestações sociais, criando um diálogo áspero.

Tal cenário desencadeou a aprovação do “novo arcabouço fiscal”, insuficiente e vergonhosamente austero, sobretudo se consideramos os mandatos anteriores do presidente Lula. O desacordo, por fim, resvala na inevitável erosão do consenso econômico e na retumbante vitória de os “politicamente” mortos governarem os vivos, dado que o ex-presidente se tornou inelegível. A partir das categorias apresentadas neste livro, em retrospecto, não se sabe dizer ao certo em qual ponto da história brasileira a austeridade teve início; o que se sabe é que o país é vítima de esquemas ensaiados ultramares e experimentados de maneira inédita em território nacional.

O Brasil foi e continua a ser cobaia de ensaios perigosos: entre golpes e ditaduras, períodos inflacionários que ultrapassaram os 2.000% (entre as décadas de 1980 e 1990), confisco da poupança dos cidadãos e um plano econômico que reiniciou a economia do zero, não há quem se ressinta em submeter o povo às estimativas que a poucos beneficiam. Tantas oscilações não surgem sem contrapartida, pois, há muito, o país é refém do mercado, de instituições financeiras internacionais ou de agências de classificação de risco, prontas a projetar o país ao abismo quando ele não atende às almejadas metas que propugna o mercado. Na retaguarda do discurso econômico asséptico, operam os mais autoritários instrumentos de exercício do poder, evidenciando, na linha de Franz Neumann1 e David Abraham2, que a ascensão do nazifascismo foi, sobretudo, um projeto político-econômico.

A austeridade é um movimento carente de realização democrática, pois asfixia as promessas constitucionais de efetivação de direitos fundamentais de segunda dimensão, esvazia o Estado social e reverte a tributação aos detentores do poder. Da contenção inflacionária dos períodos de arrocho salarial à gestão de balanços orçamentários via superávit primário, até a dramática deposição presidencial, ancorada em tecnicismos fiscais, a narrativa econômica brasileira é um Leitmotiv em que austeridade e política tecem seu sinuoso dueto. Nesse contexto, A ordem do capital não apenas critica a mentalité que degrada os países à condição de vassalos da pauta econômica, como pretende contribuir para des- montar narrativas prontas acerca do êxito do capitalismo financeiro que sequestra o futuro e mantém as classes oprimidas imobilizadas e incapazes de oferecer resistência à austeridade por design do sistema.

Se um país como o Brasil obtém reputação internacional por sua economia “sólida” e “virtuosa”, capaz de transmitir confiança aos mercados, tal êxito, longe de beneficiar as classes trabalhadoras, frequentemente opera contra as classes que se pretendeu em primeiro lugar proteger. O verdadeiro fato político, demonstrado pela história, é que a confiança dos mercados é inversamente proporcional ao bem-estar dos cidadãos e ase reflete, sobretudo, na lógica da coerção econômica.

Notas
1 Franz Leopold Neumann, Behemoth (Nova York, Oxford University Press, 1944).
2 David Abraham, Me Collapse of the Weimar Republic: Political Economy and Crisis (Nova Jersey, Princeton University Press, 1981).

O xadrez cambial, por Ana Paula Vescovi

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Melhora nas contas externas não garante que real continuará a se valorizar neste ano, mas sugere menor volatilidade da moeda no longo prazo

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/02/2024

Falar sobre taxa de câmbio e fazer projeções sobre sua trajetória é algo arriscado para os economistas. São muitos os fatores intervenientes, alguns deles imprevisíveis, e o risco de errar é alto. No ano passado, defendemos que haveria alguma depreciação do real em relação ao dólar e o que ocorreu foi uma leve apreciação. Ou seja, erramos.

Nossa estimativa de depreciação vinha de modelos econômicos que expressam os fundamentos técnicos da taxa de câmbio. Assim, como tínhamos um cenário de leve redução dos preços das commodities, de queda de juros no país, com manutenção de juros tanto nos Estados Unidos quanto nas principais economias globais e de aumento de incertezas locais em função de mudanças na política fiscal no Brasil, antevíamos a depreciação do real. O que aconteceu, contudo, foi um enfraquecimento relativo do dólar, especialmente no final do ano, e isso predominou sobre as nossas hipóteses para a economia local.

Diante do desvio, fizemos um “mergulho profundo” no universo das contas externas do país, num esforço de entender o que o saldo do comércio de bens e serviços com outros países, além dos saldos na contratação de serviços e das movimentações de rendas com o exterior, poderiam nos esclarecer sobre a relação desses fluxos e a direção para a taxa de câmbio.

Da mesma forma, procuramos entender como as necessidades de financiamento externo (déficit pouco abaixo de 2% do PIB) poderiam ser providas pelos canais financeiros, seja pela via de investimentos diretos de outros países, seja pelos fluxos de investidores de fora no mercado financeiro local.

Se a soma dos saldos destas duas principais contas (transações correntes de bens, serviços e rendas e a conta financeira) é negativa, ou seja, faltam dólares para pagar credores, o país é obrigado a utilizar parte de suas reservas internacionais para “zerar” o desequilíbrio. Caso contrário, a “sobra” de divisas faz crescer o estoque de reservas internacionais —como parece ter acontecido no ano passado, segundo os dados disponíveis até novembro de 2023.

Para 2024, a dinâmica das contas externas parece indicar nova acumulação de reservas e, recentemente, têm surgido narrativas de que o real poderá se valorizar consideravelmente por conta desta situação. Como as contas externas brasileiras passam por uma mudança estrutural positiva, esses catalisadores favoreceriam o fortalecimento da moeda local frente ao dólar.

De fato, dados recentes indicam tal mudança estrutural especialmente na dinâmica da balança comercial, o que é boa notícia para o real no longo prazo. Ultimamente, o Brasil tem conseguido gerar superávits comerciais vultosos, por conta da firme tendência de crescimento da produção de petróleo e das safras de grãos.

Além disso, os termos de troca (razão entre os níveis de preços de exportações e importações) também parecem seguir trajetória ascendente de longo prazo, tornando o saldo comercial de bens —e de transações correntes— mais estável e menos suscetível a choques nos preços de commodities.

Isso ajuda a reduzir a amplitude dos movimentos realizados pela taxa de câmbio (menor volatilidade, no jargão financeiro).

Vale notar que outras características deverão ajudar a reduzir a volatidade do real à frente, tais como o financiamento contracíclico (e estável) advindo dos investimentos diretos no país (IDP) e a dinâmica anticíclica da decisão de exportadores em internalizar recursos mantidos no exterior.

Assim sendo, pode-se dizer que existem fatores relevantes para que a moeda brasileira se torne mais estável do que no passado e mais blindada contra desvalorizações causadas por outros elementos domésticos ou externos (ou, até mesmo, mais inclinada a se valorizar no longo prazo).

Porém, apesar destas favoráveis mudanças estruturais, movimentos de valorização (ou desvalorização) cambial de curto prazo costumam depender do comportamento das contas na margem.

Nesse sentido, existem fatores que sugerem haver pouco espaço no curto prazo para que a balança comercial registre resultados mais robustos neste ano. Por exemplo, condições climáticas adversas deverão causar impacto negativo na safra de soja, ao mesmo tempo em que a desaceleração econômica mundial derivada de condições financeiras mais restritivas deverá provocar acomodação nos preços de commodities.

Além disso, considerando as demais contas do setor externo, seu resultado final não deverá levar a uma acumulação de reservas significativa na margem. Finalmente, cálculos mostram que o real não parece estar consideravelmente desvalorizado no momento, quando comparado a seus principais pares (pesos chileno, colombiano e mexicano, e rand sul-africano).

Em momentos assim, nos quais os riscos idiossincráticos do país, o nível de diferencial de juros e a posição relativa frente às moedas dos pares parecem estar em patamar “normal”, o catalisador mais importante para a taxa de câmbio é a tendência da moeda norte-americana frente às moedas das economias avançadas. Dada a perspectiva de que o Fed não deverá chancelar o início precose do ciclo de redução de juros implícito na curva de juros dos EUA, parece haver espaço para valorização do dólar frente às demais.

A principal conclusão desse “mergulho”, contudo, foi que a melhora estrutural que vem ocorrendo nas contas externas do país —e tende a continuar ocorrendo nos próximos anos— será uma importante defesa contra volatilidade e contra excessiva desvalorização cambial no futuro.

Entretanto, parece haver pouco espaço para melhora pontual no seu resultado em 2024. Assim, a dinâmica de curto prazo não deverá abrir espaço para valorização do real muito além do que já ocorreu em 2023.

Sendo assim, mantivemos nossa aposta para uma leve depreciação do real até o final de 2024.

Anotem aí para verificarmos os resultados no próximo ano!

Nosso capitalismo de compadres é o oposto do capitalismo comunista chinês, por Rodrigo Zeidan

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Que pelo menos os subsídios aqui sejam dados com mais cuidado

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 03/02/2024

Capitalismo de compadres é a norma em países de renda média. No Brasil, quase sempre que uma grande empresa vai à bancarrota pode contar com a mãozinha do Estado, que é especialista em transferir renda dos mais pobres para os mais ricos.

Mas não precisa ser assim. Um exemplo vem da China, onde as autoridades ficam olhando sem fazer nada enquanto a Evergrande, empresa com US$ 300 bilhões em dívidas, está sendo liquidada na Justiça. Por incrível que pareça, a China teve seu choque de capitalismo, e sua política industrial revela isso.

Enquanto o Brasil continua a insistir na furada política de substituição de importações, a política industrial chinesa é orientada para exportações. E, mais ainda, não interessa quem vai sobreviver. O processo chinês é feito para que empresas sigam competindo até sobrarem só as mais eficientes.

A ideia é simples: se um setor é considerado estratégico, subsídios são jogados ao mar, e os tubarões avançam. Depois que a indústria começa a exportar, os subsídios são retirados. Quem sobrar sobrou. Foi assim, por exemplo, que a China se tornou o país que mais exporta painéis solares. Em 2021, qualquer subsídio ao setor foi retirado do orçamento federal.

É por isso que os investidores que foram com sede ao pote comprar títulos da empresa Evergrande, que tinha acabado de dar um calote, apostando que o governo a salvaria, deram com os burros n’água. Esses investidores compraram grande parte da dívida da empresa, que totaliza mais de US$ 300 bilhões, com grande desconto, achando que iam receber o valor completo. Agora que a empresa está para ser liquidada, podem perder tudo. Apostar que o governo chinês vai salvar grandes empresas se revelou, nesse caso, uma furada.

A diferença entre o modelo de industrialização chinês e o brasileiro é simples: a China acredita na disciplina do mercado capitalista. Se o setor não ficar eficiente, que morram todas as empresas. Os poucos setores estratégicos de verdade, separados para empresas estatais, acabam tendo o mesmo problema do Brasil: empresas ineficientes que muitas vezes perdem mercado para empresas privadas.

Por exemplo, os bancos estatais são incompetentes e, por isso, surgiu todo um setor financeiro não bancário que roubou os clientes dos bancos estatais. Alipay e Wechat processam mais de US$ 30 trilhões em pagamentos por ano, e pessoas fazem empréstimos e investem através dos apps. Os bancos estatais continuam perdendo mercado, e o governo não faz quase nada.

Essa ideia de que competição é o que importa foi o que levou ao crescimento chinês dos últimos 40 anos. Essa é a grande lição que deveríamos aprender. Mas não parece que o faremos. O governo Lula vai insistir em subsídios que fazem o contrário: limitam competição, com a ideia de que as empresas locais cresçam. Mas, sem a disciplina da competição internacional, o que as empresas fazem é tornar os produtos caros, sem incentivos para inovar.

E, quando a competição vem, as empresas vão para Brasília pedir mais proteção; capitalismo de compadres em escala nacional. O oposto dos comunistas chineses, muito mais capitalistas do que a gente imagina.

Vamos continuar insistindo em políticas que nos jogaram em crise econômica? Lula podia fazer muito melhor que insistir nos erros do passado. Que pelo menos os subsídios sejam dados com mais cuidado.

Será que um dia vamos aprender? Pelo visto não vai ser desta vez.

Política Industrial

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Vivemos momentos de grandes alterações na estrutura econômica internacional, nações que dominavam todos os espaços do crescimento econômico e produtivo, vem perdendo espaço no cenário global, outros países estão se projetando na nova economia mundial. Estamos visualizando a ascensão de novos atores, novas empresas, novas lideranças e novas corporações, com a fragilização de algumas nações, gerando novos desafios, novas oportunidades e grandes inquietações.

Neste cenário, as nações estão em franca movimentação econômica e geopolítica, buscando reposicionamento na estrutura produtiva global, como forma de alavancar seus setores produtivos, buscando a redução da dependência externa, aumento da soberania nacional, vislumbrando investimentos produtivos, desenvolvimento de tecnologias e a busca crescente de novos espaços no comércio internacional.

Neste momento, as nações estão repensando suas estratégias de inserção no cenário internacional, retomando projetos esquecidos e reestruturando os canais de planejamento econômico e produtivo, reativando as chamadas políticas industriais, utilizadas por todas as nações que conseguiram alavancar suas estruturas econômicas, com fortes investimentos governamentais para fortalecer setores e atividades produtivas, levando muitas nações ao desenvolvimento econômico.

Muitas nações adotaram políticas industriais, mas a adoção destas políticas industriais não garante o tão sonhado desenvolvimento econômico, muitos países tentaram, mas poucas nações conseguiram se desenvolver, transformando suas estruturas produtivas, angariando ganhos econômicos e políticos. O desenvolvimento industrial prescinde de uma visão global de todas as potencialidades da economia, integrando setores, fortalecendo o conhecimento científico e tecnológico, aproximando as universidades e os centros de pesquisas, construindo uma visão sistêmica que abarque todos os setores da sociedade, melhorando os indicadores econômicos e sociais em benefício da comunidade nacional.

No começo do século XX, as estratégias de desenvolvimento industrial eram vistas como um caminho natural para que as nações conseguissem se desenvolver economicamente, desta forma, a indústria era uma forma de melhorar a produtividade do trabalho, incrementando a renda dos trabalhadores, movimentando o mercado de consumo e, desta forma, alavancando fortes investimentos produtivos para impulsionar a economia, diversificando os setores produtivos e melhorando os indicadores econômicos e sociais.

Nos últimos anos as políticas industriais foram criticadas pelos economistas liberais, pelas instituições multilaterais, como o FMI e Banco Mundial, e pelos representantes do setor financeiro, defendendo uma maior liberdade dos mercados e o crescente estímulo da concorrência como forma de alocar investimentos no sistema econômico e produtivo. Com estas transformações econômicas internacionais muitas nações desenvolvidas, que rechaçavam as políticas indústriais, passaram a alterar seu entendimento e estão fomentando estas políticas como forma de defender suas estruturas produtivas e receio de perder espaço das nações asiáticas, países que recorreram fortemente as políticas industriais, com fortes incentivos internos e medidas intervencionistas.

Neste cenário, as nações ocidentais estão retomando as políticas públicas e o Brasil começa esboçar uma nova política de reindustrialização, como forma de alavancar a indústria nacional e melhorar as condições de competitividade, diminuindo as importações de produtos industrializados. A nova política de reindustrialização brasileira está canalizando 300 bilhões de reais para o setor industrial e está escolhendo setores vistos como estratégicos para a economia brasileira, tais como a digitalização da indústria e das médias e pequenas empresas, fomento da cadeia agroindústrial e da bioeconomia, a mobilidade urbana, a internalização da produção de insumos da saúde e das tecnologias críticas de defesa nacional.

O retorno de discussões econômicas mais heterodoxas no cenário internacional, como as políticas industriais é salutar e quando percebemos que instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), revistas como The Economist e a prestigiada Harvard Business Review estão defendendo fortemente estas políticas, percebemos que estamos voltando para o lado certa da história.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Novembro 2023

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O mês de novembro de 2023 foi marcado por grandes discussões referentes ao crescimento do poder do Congresso Nacional, o crescimento do conflito entre o Hamas e o Estado Israelense, além de questões econômicas internas, as brigas entre o governo federal e a oposição, onde percebemos que o embate é mais ideológico entre grupos com visões de vida diferente.

No front econômico, percebemos que a economia nacional vem passando por grandes modificações, pela primeira vez percebemos que o governo federal se esforça pra efetivar uma reforma tributária, com o objetivo de rever medidas que impactam sobre o consumo das famílias, com o intuito de simplificar o sistema tributário, visto como um dos mais detalhista do mundo, responsável por grandes imbróglios jurídicos e graves constrangimentos para todos os grupos que tentam empreender na economia brasileira. Depois de grandes embates, os grupos econômicos e políticos conseguiram chegar a um acordo prévio, quase consensual e marcar a votação para o mês seguinte. Se isso acontecer e a reforma for aprovada, a sociedade será beneficiada, com pontos positivos para a economia nacional.

Neste embate entre o governo e a oposição, percebemos grandes confrontos no centro do poder, com ameaças de todos os lados, onde cada um deste grupo tentam mostrar seu poder e aumentar a sua capacidade de controlar o outro. Neste embate constante, percebemos que o maior prejudicado é a população, postergando medidas imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico e produtivo, atrasando investimentos estratégicos para a economia brasileira e para a melhora dos indicadores econômicos gerais.

Mostra ainda, que o governo não possui condições de governabilidade total, sua força política no Legislativo é limitada, não conseguindo passar políticas públicas e mudanças constitucionais que acreditam ser importantes para seu governo e seu projeto político. Contrariamente, percebemos que os grupos oposicionistas são mais fortes do que acreditavam, com força política para fragilizar o governo federal e gerar graves constrangimentos na gestão política.

Atualmente, o governo federal vem perdendo espaço em detrimento do fortalecimento do Legislativo, este último está numa posição cômoda, não tem o ônus da gestão pública e fica com todos os bônus das propostas. Destacamos ainda, que o crescimento do Legislativo federal está diretamente ligado o surgimento de governos fracos, tais como os governos Temer e Bolsonaro, este último delegou ao legislativo papeis importantes que deveriam ser feitos pelo Executivo.

No front externo, percebemos variados problemas que podem levar a economia a uma retração produtiva. De um lado, o conflito entre Ucrânia e a Rússia, que muitos especialistas acreditavam que levaria os russos a graves constrangimentos internos e seria atropelado pela junção da Ucrânia e os exércitos da Otan (Organização do Tratado do Atlântica Norte), mas a realidade está se mostrando diferente, onde os ucranianos estão destruídos economicamente, com sua infraestrutura massacrada e com a morte de milhares de combatentes, gerando uma verdadeira degradação da nação.

No campo russo, os embargos que foram feitos para destruir a Rússia, mas na realidade, aconteceu o inverso. Muitas empresas ocidentais foram absorvidas por empresas russas, muitas empresas foram vendidas a preços módicos e fortaleceu o setor produtivo russo.

A guerra levou os países europeus a apoiar a Ucrânia e levou os russos a aumentarem o preço da energia, impactando fortemente os preços dos combustíveis, gerando aumento de preços internos e o incremento da inflação, obrigando os governos, como o alemão, a subsidiar a energia interna e, para isso, reduziu os repasses para as políticas públicas governamentais, gerando graves constrangimentos internos, queda da renda da população, redução dos investimentos produtivos e um maior desemprego, um verdadeiro constrangimento político que está contribuindo para p fortalecimento dos grupos políticos de extrema direita.

No outro front externo, é fundamental destacar que o conflito entre Hamas e Israel vem gerando constrangimentos para a sociedade internacional, motivando variados grupos políticos a confrontos generalizados, uns defendendo as políticas de Israel, destacando que como o país judeu foi atacado por Hamas com mais de 1,2 mil mortes sangrentas, tem o direito de se defender e partir para cima do Hamas como forma de retaliar os ataques recebidos. De outro lado, destacamos que a retaliação de Israel foi muito agressiva e desproporcional, atacando toda a região, matando milhares de civis, principalmente mulheres e crianças, destruindo a região da Faixa de Gaza e levando a morte de mais de 20 mil palestinos, uma desproporção pouco vista na história militar da humanidade.

Esse conflito vem gerando graves constrangimentos para toda a comunidade, motivando todos os setores, todas as nações a se posicionarem de um lado ou outro, levando a África do Sul representar contra o governo de Israel, onde o país africano defende que o Tratado Penal Internacional puna Israel pelo genocídio dos palestinos. O Brasil adotou uma posição a favor da representação da África do Sul, motivando críticas imensas entre os judeus e a posição do governo brasileiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

‘Quem não sabe controlar dinheiro precisa de terapeuta, não de consultor financeiro’, diz autor

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Morgan Housel, autor especializado em economia comportamental, foca o que nunca muda em nova obra

JÚLIA MOURA, FOLHA DE SÃO PAULO, 27/01/2024

SÃO PAULO Se alguém pudesse prever o futuro, essa pessoa certamente seria rica. Apesar de ser impossível, tentar antecipar o que está por vir está por trás de muitas decisões cotidianas, especialmente as relacionadas a investimentos.

Mas, e se, em vez de tentar prever as mudanças do futuro, identificássemos o que nunca muda? Essa é a premissa do novo livro de Morgan Housel, 37.

Por meio de diversas anedotas, o autor americano introduz conceitos-chave da economia comportamental em “O Mesmo de Sempre – Um Guia para o que Não Muda Nunca”, lançado pela editora Objetiva no Brasil, no fim de 2023.

Com essas lições, que envolvem histórias sobre Martin Luther King e Bill Gates e evocam reflexões pessoais, Housel espera melhorar a capacidade de tomar decisões dos leitores.

“O Mesmo de Sempre” funciona como uma continuidade do seu best-seller, “A Psicologia Financeira: Lições Atemporais sobre Fortuna, Ganância e Felicidade”, que vendeu mais de 3 milhões de cópias e foi traduzido para 53 idiomas.

Segundo Housel, o propósito do seu novo livro é instilar um pouco de humildade em todos. “Reconhecer que não sabemos o que vai mudar no futuro e focar o que sabemos que não vai mudar”, disse em entrevista à Folha.

Como obter independência financeira? Como controlar melhor as finanças?

Não há regras que sirvam para todos. Há pessoas que vão viver sua melhor e mais feliz vida se estiverem gastando a maior parte do seu dinheiro e também há as pessoas que só vão viver felizes se estiverem economizando muito dinheiro.

Eu acho que nasci com a mentalidade de ser poupador. [Guardar dinheiro] nunca foi um desafio para mim, mesmo quando eu ganhava pouco, sempre foi algo muito natural para mim. Nunca exigiu muito esforço. Mas acho que isso acontece porque é assim que meu cérebro é programado. Há pessoas que, se tentassem fazer isso, ficariam infelizes.

Então, acho que uma das primeiras regras [para ter independência financeira] é se descobrir. Se você sempre teve dificuldade para economizar, talvez isso faça parte de sua personalidade.

Também há as pessoas que genuinamente querem economizar e têm dificuldade para fazer isso. A partir daí, eu olharia internamente e perguntaria: “Qual é a causa de todos os gastos que você está fazendo?”. É porque está apenas tentando acompanhar as necessidades básicas de aluguel e comida? Ou porque está tentando mostrar às pessoas que tem roupas muito boas, um carro legal, um bom apartamento?

Isso pode ser o reflexo de algo mais profundo, que é o fato de você estar tentando ganhar respeito e admiração das outras pessoas por meio dos seus gastos, não por meio da sua amizade ou capacidade de amar, ser empático ou seu senso de humor.

Que dica você daria para alguém que não tem controle sobre o dinheiro?

Nessa situação, você não precisa de um consultor financeiro. Você precisa de um terapeuta que vá
um pouco mais fundo.

Se você é o tipo de pessoa controlada pelo dinheiro, isso é um indicativo de uma ferida mais profunda que você está tentando preencher. Em nove de cada dez vezes essa ferida o leva a tentar fazer com que outras pessoas o admirem e o respeitem, e você pensa que ter mais dinheiro é a única maneira de fazer isso. Reconhecer isso é algo muito importante.

O dinheiro é apenas uma ferramenta para, esperançosamente, dar a si mesmo uma vida melhor. Mas, para muitas pessoas, é mais como uma droga, que você pensa ser a solução para seus problemas, a chave para sua felicidade. Mas, se você é viciado nisso, não é. Na verdade, pode ser a fonte de seus problemas, a fonte de sua dor. E você precisa cavar um pouco mais fundo para descobrir de onde vem essa dor.

No que você investe?

Invisto quase exclusivamente em ETFs (fundos de índice) muito amplos, que contam com ações do mercado dos EUA e internacionais.

Em vez de tentar escolher uma determinada ação ou setor, eu quero possuir toda a economia. Essa é a aposta que estou fazendo porque, se eu mantiver as coisas simples assim, aumenta a probabilidade de eu poder seguir nessa estratégia pelos próximos 50 anos, e deixar que se acumule.

Historicamente, é aí que a maior riqueza foi encontrada.

Na sua visão, o debate em torno do dinheiro e educação financeira melhorou ao longo dos anos?

Melhorou por causa da internet. Antes, na década de 1990, a menos que você fosse rico, não poderia falar com um consultor financeiro. Eles eram restritos a pessoas ricas. Ninguém mais tinha informações, educação, visão do que estava acontecendo.

Hoje, qualquer pessoa com um telefone, não importa quanto dinheiro você ganhe, quanto dinheiro você tenha, tem acesso à informação. Essa democratização da informação tem sido enorme.

Agora, isso também abriu a porta para ver como pessoas ricas vivem, o que pode causar um sentimento de inveja e angústia social que alimenta preocupações com dinheiro. Antes disso, as pessoas de baixa renda socializavam principalmente com outras pessoas de baixa renda e não se sentiam tão pobres.

Qual o seu conselho para que as pessoas não caiam em golpes ou façam investimentos inadequados?

Qualquer pessoa que esteja prometendo a capacidade de ficar rico rapidamente, é certo que estão te enganando. A única maneira de ficar rico é empreender a sua própria ideia, ou acumular capital lentamente ao longo do tempo. Essas são as únicas maneiras de fazer isso.

Qualquer coisa intermediária, como “posso ficar rico com bitcoin rapidamente”, simplesmente não funciona. O mundo não é tão generoso com as pessoas a ponto de permitir que você fique rico da noite para o dia sem esforço.

Todo mundo tem que abrir mão de algo por sua riqueza, seja paciência, sejam os riscos que você assume como empreendedor. Não há caminhos fáceis para fazer isso.

Você se considera rico?

Eu me considero satisfeito, o que significa que tenho o suficiente para cuidar da minha família e dar a eles tudo o que precisam e muito do que querem.

Não usaria a palavra riqueza. Não acho que algo bom venha dessa palavra. Estar satisfeito com o que você tem é o melhor que você pode fazer.