Com Novo PAC, voltamos ao Estado indutor do desenvolvimento, por R. Zeidan

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Não existe programa que abarque tudo; quem tudo quer fazer faz malfeito

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 19/08/2023

O primeiro PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) começou bem, mas acabou se assemelhando mais a um Programa de Aceleração da Corrupção. Dá a impressão de que vamos ter a volta de um plano que parece saído de uma cartilha intervencionista da década de 1970.

Voltamos ao Estado indutor do desenvolvimento com o Novo PAC. A ideia de loucura não é tentar a mesma coisa repetidas vezes, sabendo que não funciona?

Ainda assim, pode ser que dê certo. O que importa mesmo, e o que sempre faltou nesse tipo de programa, é algo simples: boa execução.

No Brasil, o debate sobre o Estado empreendedor é às vezes rasteiro, com gente que diz que o governo brasileiro só sabe transferir dinheiro dos pobres para os ricos e outros que afirmam que, sem o Estado, o Brasil seria só plantação de bananas. A realidade, claro, não é binária. O problema não é se o Estado é empreendedor ou não, nem muito seu tamanho, mas sim sua competência em executar seus planos de forma eficiente.

O mesmo Estado que induz uma corrida espacial que levou cachorros ao espaço e seres humanos à Lua pode criar ralos de dinheiro como refinarias inacabadas ou usinas no meio do mato para esconder gastos quase infinitos.

Que o Novo PAC em si só não é das melhores ideias, não é difícil de ver. O presidente, como bom político, parece mais preocupado com o anúncio de um pacote trilionário do que com os detalhes dos projetos em si.

Mas há esperança. Para cada excrescência do PAC Energia, existem centenas de projetos residenciais do Minha Casa, Minha Vida (que, mesmo que imperfeito, valeu a pena), que mudaram as vidas das pessoas.

Sabe aquele sujeito que diz que tem uma ideia genial mas não lhe pode contar pois você roubaria sua ideia? Ignore-o. A ideia dele não vale nada. De boas ideias o inferno está cheio.

O que importa mesmo é implementação. Basicamente, qualquer produto realmente inovador não é fruto de uma ideia genial, mas de uma capacidade única de transformar algo, muitas vezes rotineiro, em produto ou serviço fenomenal. E ideias medíocres podem ser melhores que ideias boas, se as primeiras forem bem executadas e as segundas não. Criar um Novo PAC é um plano medíocre, mas, depois de um governo com ideias estapafúrdias, vá lá.

Não dá para julgar de antemão se essas iniciativas vão prestar. O que já sabemos é que a ideia do Estado indutor do desenvolvimento no país nunca funcionou no conjunto, seja na época dos militares, seja na de Lula e de Dilma.

Alguns bons programas emergiram no meio de tantos projetos horrorosos. Se o governo Lula tomar cuidado com dinheiro público, aprovando gastos, mesmo que trilionários, baseados em projetos robustos, talvez consiga induzir
desenvolvimento. Capital humano não falta. Há muita gente no setor público com habilidades gerenciais para tocar esses projetos. Não falta gente séria que queira contribuir para um país melhor.

Claro que, se o objetivo for só eleitoreiro, de colocar dinheiro na economia rapidamente, vai dar errado. De novo. É muito melhor um PAC (uma sigla que deveria ser abandonada, por sinal) mais enxuto, com boa seleção de programas, que algo grandioso, só para colocar números grandes nas mídias sociais.

E não existe programa que abarque tudo. O Novo PAC tem nove eixos, que englobam quase tudo, de saúde e educação até inclusão digital e defesa. Quem tudo quer fazer faz malfeito. Mais uma vez?

Carta Mensal – Julho 2023

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Julho deve ser visto como um mês de comemorações no front econômico, com melhoras no ambiente da economia nacional, redução da inflação, alivio do câmbio, melhora no emprego, retomada de políticas públicas, mas com grandes desafios no front político, com dificuldades de fortalecer a base política de sustentação do governo federal.

O mês de julho de 2023 foi marcado por grandes expectativas sobre a taxa de juros definida pela Banco Central, neste cenário, os agentes econômicos se debruçavam constantemente para conversar sobre os rumos que a Autoridade Monetário definiria, se manteria as taxas de 13,75% ou faria algum tipo de movimento para baixo ou para cima, para cima me parece algo absurdo…

Juros altos pode ser visto como um instrumento adotado pelo Banco Central para debelar as pressões de preços, o objetivo de uma política monetária restritiva é diminuir o ímpeto da inflação. Mas essa taxa de juros neste patamar impacta fortemente sobre as decisões econômicas e produtivas, levando os empresários, investidores e consumidores a repensar sobre as decisões estratégicas de seus negócios.

Neste momento, encontramos variadas críticas do governo federal para que a Autoridade Monetária reduza as taxas de juros, mostrando que o governo adotou políticas concretas para que os riscos fiscais fossem debelados, tais como o arcabouço fiscal e a Reforma Tributária, que devem ser vistas como uma vitória do governo mas, é importante destacar, que esses projetos ainda carecem de um aprovação completa posterior, já que os projetos foram aprovados na Câmara dos Deputados mas precisam passar pelo Senado Federal e, se for necessário, passar novamente para a Câmara dos Deputados.

Devemos destacar o começo do desenrola, política adotado pelo governo federal para melhorar os altos índices de endividamento da população, essa política foi adotada com consonância dos setores produtivos, bancos e varejistas, para que a população em condição de endividamento pudesse aliviar suas finanças e voltar as compras, contribuindo para movimentar o sistema econômico. Um balanço inicial feito pelos analistas econômicos e políticos foram muito positivos para a economia nacional, com milhões negócios efetivados, limpando os respectivos nomes e trazendo novos consumidores para o mercado de consumo.

Neste mês encontramos uma das grandes fragilidades do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, percebemos efetivamente a pouca força política no Congresso, notadamente na Câmara dos Deputados, que abarca apenas 130/140 votos num universo de mais de 513 deputados, desta forma, a maior fragilidade é conseguir apoio para passar seus projetos, levando o governo a negociar voto a voto para angariar a aprovação de medidas defendidas pela coalizão governista.

Neste cenário, o governo com uma presidência da Câmara dos Deputados com grande força política, uma oposição marcada por grande ressentimento, com forte capacidade de gerar constrangimentos para fragilizar a gestão governista, com grande capacidade de criar constrangimentos para impedir a adoção de políticas públicas e aprovar gastos públicos, vistos como desperdícios e prejuízos para a economia nacional, tudo isso, limita a capacidade e agilidade do governo federal.

Neste momento, percebemos o avanço de várias investigações referentes ao governo anterior, políticas públicas degradadas anteriormente, desvios de recursos na Caixa Econômica Federal (CEF) referentes ao consignado visto como uma política que trouxe grandes prejuízos para os cofres públicos. Destacamos ainda, os avanços nas investigações da Polícia Federal (PF) referentes as joias recebidas pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, onde foram descobertos inúmeros produtos oriundos da Arábia Saudita para presentear o mandatário anterior, com grandes indícios de corrupção e outras ilegalidades. O mês de julho foi farto em denúncias e descobertas de malfeitos no governo anterior.

Outro ponto bastante discutido no mês de julho foi as descobertas referentes aos vínculos das Forças Armadas em questões constrangedoras, que colocam o Exército em condição indigna, com um posicionamento equivocado e com desvios crescentes de desvios de condutas, que fragilizam a instituição, com isso, percebemos que em momentos anteriores, de regimes militares, deveriam ter sido feito uma verdadeira justiça de transição para punir equívocos, corrupções e crimes cometidos pelas Forças Armadas, a ausência de uma investigação mais elaborada, feita por instituições civis, para que todos os responsáveis por crimes fossem punidos como forma de evitar os erros e equívocos contemporâneos.

Um assunto que pipocou na sociedade brasileira, foi a indicação do economista Márcio Pochmann para a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa indicação foi muito criticada pela mídia corporativa, que levantou questionamento do economista da Unicamp, visto como um negacionista e quando presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Economia Aplicada) foi acusado de constranger pesquisadores renomados na instituição com visões diferentes do presidente do órgão. Essas críticas foram rebatidas pelos representantes do governo federal e antigos presidentes do IBGE que destacamos a solidez da instituição e a impossibilidade de alterar dados e informações, destacando que o IBGE é uma instituição séria, respeitada, transparente e dotado de credibilidade e confiabilidade.

O mês de julho trouxe grandes discussões referentes aos desafios sobre a sociedade internacional, onde o Brasil se colocou em grandes conversações internacionais, dialogando com várias nações, entrando em confrontos verbais, falas equivocadas sobre a assuntos globais, reclamações mundiais referentes a comportamento de nações desenvolvidas, reprimendas internas da mídia corporativa, além de discussões desnecessárias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

José Murilo de Carvalho e o peso das ilusões, por Maria H. Tavares.

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Uma de suas análises sobre o golpe de 64 ajuda a entender o 8 de Janeiro

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo – 17/08/2023

No meio de tudo o que publicou de bom e robusto, José Murilo de Carvalho, que se foi no fim de semana, deixou muitos artigos curtos, despretensiosos. Entre eles, uma joia de 11 páginas, “Fortuna e Virtù no Golpe de 1964”, incluído no livro “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005).

Ali, o cientista político e historiador fala das duas surpresas dos que viveram a deposição de João Goulart e a chegada dos militares ao poder. A primeira foi a facilidade com que os conspiradores da direita levaram a melhor. A segunda, a permanência dos fardados no comando
político, quando o retrospecto, desde o fim do Estado Novo, em 1945, fazia crer que a quartelada seria “cirúrgica”: removido o presidente, o poder logo seria devolvido aos civis.

Para explicar o inesperado, José Mucio refuta as teses que o davam como inevitável, vistas as características do nosso desenvolvimento econômico, a formação das classes dominantes, sem falar nos interesses do “imperialismo ianque”. Segundo ele, tais teorias eximem de responsabilidade os atores políticos —o golpe de 64 não fora produto de forças sociais imbatíveis, mas dos enganos de protagonistas influentes de carne e osso.

A interpretação, a rigor, não é original. Com argumentos sofisticados e rica documentação, havia sido exposta no clássico de Argelina Cheibub Figueiredo, “Democracia ou Reformas?” (1993). A contribuição de Murilo consiste em ter dado o devido peso às ilusões que induzem as forças políticas a escolhas desastrosas: as apostas de Jango no poderio dos sindicatos e da massa organizada e na lealdade do chamado “dispositivo militar”; a crença dos nacionalistas radicais de que uma estratégia de polarização os beneficiaria. Se a responsabilidade do golpe foi dos que o deram, reitera Murilo, as ideias fora de lugar dos que o sofreram foram cruciais para o desenlace.

O argumento de Murilo ajuda a ver melhor o fracassado golpe de Bolsonaro no 8 de Janeiro.

A oposição democrática e a resistência das instituições republicanas foram fundamentais para brecar a intentona. Porém, quanto mais passam os meses, mais claro fica que o ex-capitão, capturado por vastas emoções e pensamentos para lá de imperfeitos, acreditava que seguiria no poder, dissessem o que dissessem as urnas.

Foi-lhe fatal a miragem de que a simpatia da caserna —cultivada com benefícios e adulação sistemática e ainda estimulada pelo berreiro dos acampamentos— empurraria para o seu lado, incondicionalmente, o alto comando militar.

O despudor de seus comandados na desastrada operação para vender as joias da Presidência não se explica de outra forma.

Desaceleração chinesa

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Vivemos momentos interessantes e altamente complexos. As movimentações econômicas e políticas podem gerar crescimento econômico, melhorando as condições de vida da população, aumentando a renda agregada e, ao mesmo tempo, podendo fragilizar os indicadores econômicos e postergar a recuperação produtiva, gerando desafios e oportunidades novas.

Depois da pandemia, que vitimou mais de 6 milhões de cidadãos globais, com grande desaceleração econômica e fragilização produtiva, com conflitos constantes e instabilidades políticas, a economia retomou seu crescimento econômico, com melhoras significativas, mas percebemos que a recuperação está perdendo força, regiões inteiras estão com dificuldades de aumentar seus investimentos, com altas dívidas internas, endividamento crescentes de empresas, aumento de custos energéticos e, ao mesmo tempo, muitas nações estão aumentando seus gastos militares em detrimento de recursos públicos em setores sociais, com isso, a sociedade percebe o aumento das reclamações, as inseguranças, o a incremento da violência urbana, xenofobias, ódios e ressentimentos.

Depois de forte crescimento econômico desde o final dos anos 1990, a economia chinesa vem perdendo dinamismo, a geração de emprego diminuiu, as massas salariais perderam a pujança, as exportações que sempre foram vistas como um diferencial chinês vem perdendo espaço, gerando instabilidades no mercado interno, preocupações nos anos futuros e incertezas políticas, afinal, estamos numa sociedade onde o Estado Nacional tem um papel central como agente planejador e responsável pelas estratégias desenvolvidas na nação. Neste cenário, as incertezas internas da economia chinesa geram graves constrangimentos para a economia internacional, afinal, estamos falando do maior exportador mundial e a segunda maior economia do mundo, sua desaceleração tem impacto sobre todas as regiões globais, com menores investimentos, com redução de empregos e fragilizando a renda mundial.

A desaceleração da economia chinesa está ligada aos desequilíbrios gerados pela pandemia, que gerou graves desajustes na estrutura produtiva internacional, levando as economias a aumentarem suas taxas de juros para combater a inflação, que vitimou variadas nações e obrigaram os governos a adotarem políticas monetárias restritivas. Acrescentamos ainda, os custos gerados pela guerra entre Rússia e Ucrânia, que impactaram fortemente sobre os preços dos alimentos, das energias e dos combustíveis, levando a Europa a mergulharem a crises constantes em seu setor industrial, baixo crescimento, instabilidades econômicas e gerando insatisfações políticas.

Nos Estados Unidos, percebemos no período pós pandemia fortes incentivos fiscais e financeiros para estimular a retomada econômica, com forte incremento dos preços relativos e aumento inflacionário, gerando juros mais elevados e instabilidades dos setores produtivos, desta forma percebemos uma economia muito instável e com baixa capacidade de movimentar o sistema econômico e produtivo. Neste cenário, percebemos que a desaceleração econômica se espalha para as economias ocidentais, diminuindo a demanda interna, aumentando as instabilidades da renda agregada e impactos generalizados sobre a economia chinesa, reduzindo suas exportações e perdendo a capacidade de movimentar a economia internacional, papel desempenhado pela nação oriental desde o final do século anterior.

Vivemos numa economia altamente interligada e interdependente, encontramos eixos constantes de integração, as dificuldades internas diminuem as demandas externas, dificultando as exportações, reduzindo o dinamismo econômico e limitando o crescimento da nação, reduzindo a capacidade da estrutura econômica, postergando investimentos, inviabilizando novos empregos e retardando a recuperação produtiva.

Neste momento de incertezas crescentes, a economia mundial se olha para o dinamismo chinês, buscando soluções globais e crescimento econômico, pressionando seus governos a estimularem novos investimentos, como forma de evitar o marasmo econômico e evitando que o ambiente externo, tão preocupante, possa reverter essa situação de estagnação que aprofunda as desigualdades que crescem na contemporaneidade e geram medos e instabilidades cotidianas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O tempo da economia engole a Educação, por Raphael Fagundes

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A busca acelerada por resultados dita o ritmo da desintegração social no neoliberalismo. Cresce o desinteresse pelo ensino reflexivo. Saídas mágicas, como cursinhos e youtubers, vêm para dar conta do sujeito apto a responder ao relógio do mercado

Raphael Fagundes – Outras Mídias – 14/08/2023

O sociólogo Christian Laval levanta uma questão interessante: “O mercado exige ‘reações’ fortes, enquanto a solução para muitos dos problemas da educação demanda decisões que funcionam no longo prazo” [1]. Sem dúvida este é um dos motivos da crise da educação.

O neoliberalismo tem como objetivo mercantilizar todas as manifestações humanas. Isso porque F. A. Hayek criou uma espécie de “formação discursiva neoliberal” que pode ser aplicada como episteme capaz de dar conta de diversas áreas. Para Hayek não pode haver um planejamento econômico. O governo deve apenas “fixar normas determinando as condições em que podem ser usados os recursos disponíveis, deixando aos indivíduos a decisão relativa aos fins para os quais eles serão aplicados” [2]. Ou seja, o governo não deve promover um plano econômico com o objetivo de acabar com a fome, desenvolver a tecnologia etc.

Na visão neoliberal, a economia é um “local” em que cada indivíduo irá extrair recursos para saciar suas necessidades pessoais. Um lugar livre em que se compra ações, faz-se investimentos para se recolher os lucros. Se o indivíduo quiser criar uma instituição de caridade, escolas etc., ele tem o direito de fazer isto com as quantias provenientes do seu investimento. Por outro lado, “o Estado deve limitar-se a estabelecer normas aplicáveis a situações gerais deixando os indivíduos livres em tudo que depende das circunstâncias de tempo e lugar, porque só os indivíduos poderão conhecer plenamente as circunstâncias relativas a cada caso e a elas adaptar suas ações” [3].

Este mesmo discurso pode vir a ser aplicado a outras áreas, como na educação. A educação acaba se tornando um bem privado. Não deve haver uma política educacional. O Estado não deve investir na educação para formar cidadãos, pessoas críticas etc. A educação deve ser encarada como um recurso usado por cada indivíduo visando atender suas necessidades privadas, como a de arranjar uma boa posição no mercado de trabalho.

A educação deixa de ser um bem coletivo para se tornar um bem individual. Essa lógica importada da economia provoca uma crise insolúvel na educação. Insolúvel no sentido de ser impossível resolvê-la dentro das próprias premissas neoliberais.

A aceleração do tempo

A grande revolução capitalista foi a Revolução Industrial, mas antes dela já estava sendo trabalhada uma alteração temporal no trabalho. A invenção do relógio foi fundamental. O tempo de produção não estaria mais submetido às intempéries naturais. “O pequeno instrumento que regulava os novos ritmos da vida industrial era ao mesmo tempo uma das mais urgentes dentre as novas necessidades que o capitalismo industrial exigia para impulsionar o seu avanço” [4], explica E. P. Thompson.

Sendo assim, o valor da mercadoria passou a ser determinado pelo tempo que leva para ser produzida, “impõe-se o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, que é a lei natural reguladora, que não leva em conta pessoas […] A determinação da quantidade do valor pelo tempo do trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos visíveis dos valores relativos das mercadorias” [5].

As máquinas vieram exatamente para produzir uma maior quantidade de mercadorias num menor período de tempo. Diversos inventos foram criados com este objetivo. A tecnologia pragmática está voltada para essa visão econômica.

A partir de então, como destaca Harmut Rosa, “as transações monetárias modernas facilitam, multiplicam e aceleram transações sociais e econômicas, e com isso praticamente todas as relações sociais” [6]. Antes, um problema que surgia no trabalho na sexta-feira, só seria resolvido na segunda-feira da semana seguinte. Hoje, com a tecnologia criada para acelerar o mundo, o trabalhador recebe uma mensagem no ônibus que pega para voltar para casa ou no happy hour exigindo dele soluções para tratar da situação indesejada para os lucros finais da empresa.

A educação entra nessa lógica. O indivíduo quer o resultado mais imediato possível, já que o mundo ao seu redor está cada vez mais acelerado. Mas como algo que exige tempo pode auxiliar um indivíduo que vive em um mundo imediatista?

O desinteresse pela educação formal

Assim surgem os cursinhos. Os youtubers, com suas soluções mágicas, explicações “simples” etc, faturam nessa economia totalizadora do curto prazo. Se tudo deve ser mercantilizado, tudo deverá ser acelerado.

É possível adquirir cada vez mais conhecimento num espaço de tempo cada vez menor? A indústria do conhecimento diz que é.

O desinteresse pela educação formal vem diminuindo por conta dessa lógica. O aluno quer o resultado imediato, e isso é justamente o que a escola não pode fornecer. Na busca de adequar a escola às exigências do mercado e de seus consumidores, as reformas educacionais vêm tentando encontrar mecanismos que aceleram a produção de pessoas aptas ao mercado de trabalho. Cursos de como fazer brigadeiros a como ser um influenciador digital já estão tomando o espaço de disciplinas como História e Sociologia. Exatamente porque o resultado é muito mais imediato.

Esse é um movimento antigo. Thompson mostra que em 1772, já se “via a educação como um treinamento para adquirir o “hábito do trabalho’”. O historiador inglês destaca que, ainda no século XVIII, já se observava que “uma vez dentro dos portões da escola, a criança entrava no novo universo do tempo disciplinado” [7]. Com o advento de uma tecnologia voltada para a eficiência (que no capitalismo é produzir mais em um período mais curto de tempo), essa função da escola tornou-se mais necessária para o capital.

Alguns poderiam dizer que os Tigres Asiáticos seriam um exemplo positivo de relacionamento entre educação e economia. Só esquecem que lá houve muito planejamento econômico. Mariana Mazzucato mostra que foi “através do planejamento e políticas industriais ativas [que os países do Leste Asiático] conseguiram se ‘equiparar’ tecnológica e economicamente ao Ocidente” [8]. Ou seja, o casamento entre educação e economia só funciona longe da lógica neoliberal.

Rosa entende o tempo como uma dimensão central e constitutiva dos fenômenos da modernidade. A aceleração social é um fenômeno crucial para entender o mundo moderno: “a desintegração social seria, assim, uma consequência da crescente dessincronização social; a destruição ambiental, uma consequência da sobrecarga do ciclo cronológico de regeneração da natureza; a perda da individualidade ‘qualitativa’, um subproduto do aumento do ritmo da vida; e o abandono da autonomia racional, resultado da ‘temporalização do tempo’” [9].

Conclusão

Onde isto vai parar? As fake news ganham espaço porque muitos preferem as explicações curtas e objetivas sem uma reflexão mais pormenorizada dos fatos. Informações são produzidas numa velocidade cada vez maior pelos próprios veículos confiáveis, porque é necessário vender informação em um intervalo de tempo cada vez mais reduzido.

A lógica neoliberal está destruindo a educação, não porque se trata de uma conspiração dos donos do capital por tornar as pessoas mais burras, mas porque a sua dinâmica é a aceleração. A velocidade é um dos principais obstáculos para o conhecimento. Não será possível salvar a educação, a menos que alteremos a lógica econômica que se impõe sobre todo o mundo.

[1] LAVAL, C. A escola não é uma empresa. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 187

[2] HAYEK, F. A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 90.

[3] Id., p. 91.

[4] THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia das letras, 1998, p. 279.

[5] MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 97.

[6] ROSA, H. Aceleração. São Paulo: EdUnesp, 2019, p. 108.

[7] THOMPSON, p. 293.

[8] MAZZUCATO, M. O Estado empreendedor. São Paulo: Portifolio-Penguin, 2014, p. 71.

[9] ROSA, p. 123.

Icebergs à deriva, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes

A Terra é Redonda – 14/08/2023

Trechos de artigo do livro recém-publicado

As plataformas digitais e suas origens

Há algumas décadas, o capitalismo, sob condução financeira, vem se desenvolvendo de forma que a produtividade do capital se valorize sempre em seu ponto de ápice. Ao proceder desse modo, as corporações globais ampliam seus lucros e exasperam a competitividade entre elas, introduzindo cada vez mais um maquinário informacional-digital altamente avançado, capaz de potencializar exponencialmente a utilização da força de trabalho.

Para as grandes corporações, a ampliação e intensificação dos tempos de trabalho geradores de lucro e de mais-valor tornaram-se ainda mais vitais frente à intensa competição que travam entre si para ampliar seu domínio no mercado, tanto na indústria, agricultura e serviços, como em suas interconexões conhecidas (agroindústria, serviços industriais e indústria de serviços) e presentes nas novas cadeias produtivas de valor.

Foi central para esta reorganização dos capitais a expressiva expansão do setor de serviços, cada vez mais subordinado à forma-mercadoria. Essa configuração, além de desmoronar o mito de que a “sociedade de serviços, pós-industrial” eliminaria a classe trabalhadora, fez deslanchar uma significativa expansão do novo proletariado de serviços na era digital. Tal processualidade, contrariamente ao que foi propugnado nas últimas décadas, não levou à perda de relevância da teoria do valor, mas à ampliação de novas formas geradoras do mais-valor, ainda que frequentemente assumindo a aparência do não-valor.

E o capitalismo vem demonstrando uma enorme capacidade de articular as atividades materiais, que têm grande prevalência na indústria de transformação e na agroindústria, àquelas nas quais se ampliam também as atividades imateriais, como as desenvolvidas na indústria de serviços e nas grandes plataformas digitais. Esses arranjos contribuem para que possamos melhor compreender o papel vital que a informação, convertida em nova mercadoria, passa a assumir no processo de valorização e geração de mais valor que, é imperioso acrescentar, se encontra sob comando do capital financeiro, a quem cabe impulsionar e dirigir econômica, política e ideologicamente a totalidade da produção e reprodução do valor. [I]

Com a ampliação do universo digital, através das tecnologias de informação e comunicação presentes cada vez mais na produção (em sentido amplo), encontramos novos componentes que merecem uma análise cuidadosa, de modo a melhor captar qual o papel que essas tecnologias vêm desempenhando nas formas de acumulação presentes no capitalismo financeiro atual. [II] Isso porque estes novos espaços produtivos, cada vez mais conectados com as plataformas digitais e com o mundo dos algoritmos, vêm tendo enorme destaque na geração de lucros e de mais valor, obrigando-nos a melhor compreender como as grandes plataformas digitais – que de fato são verdadeiras corporações globais – vêm participando do que Srnicek denominou como “capitalismo de plataforma”. [III] São empresas que, além de detentoras de informação, são cada vez mais proprietárias da infraestrutura da sociedade, com forte potencial monopolista e concentracionista no conjunto da economia global.

Mesmo sabendo que a conceitualização capitalismo de plataforma pode e deve ser problematizada, aqui a utilizamos mais no sentido descritivo, qual seja, em referência a uma fase informacional-digital-financeira do capitalismo na qual o sistema depende cada vez mais do uso intensificado das plataformas digitais. Sempre reiterando que as plataformas, enquanto instrumental tecno-digital, são cada vez mais utilizadas por uma gama imensa de empresas e corporações que tem finalidades as mais distintas, tendo em comum, entretanto, a recorrência a este artefato informacional.

Foi nesta contextualidade que o capitalismo de plataforma pôde se expandir a tal ponto que hoje as corporações do ramo de tecnologia se encontram entre as empresas mais valorizadas do mundo, desbancando aquelas que ocupavam o topo do capital no período anterior a explosão informacional-digital.

Mas é importante indicar também que a digitalização do trabalho não foi uma “revolução surpreendente. De fato, a digitalização do trabalho introduziu (ou favoreceu) múltiplas, profundas e rápidas mudanças nas estruturas e nos processos produtivos; na organização do trabalho e no mercado de trabalho”. Essas alterações resultaram “em uma forte fragmentação do processo produtivo; uma aceleração igualmente forte do ciclo de valorização das mercadorias (na produção, na gestão das cadeias de abastecimento, nas vendas); uma significativa decomposição da força de trabalho (reduzindo sua concentração física); uma intensa individualização das relações e dos contratos de trabalho”. E esta grande transformação da economia “foi baseada em um alto grau de informatização, automação e robotização, sob a égide das tecnologias digitais”. [IV]

Se nos anos 1980/90 tivemos a informatização e automação do setor industrial, através da externalização de atividades nos países do Sul do mundo, nas primeiras duas décadas do século XXI assistimos ao “advento da conectividade total, do cloud work, da digitalização da Indústria 4.0, dos serviços e de setores específicos como o dos cuidados”. E foi assim que o trabalho digital, que hoje se amplia em grande parte do mundo, encontrou grande impulso no contexto da pandemia.

Como consequência do que anteriormente indicamos, vamos apresentar as três teses críticas que talvez possam nos ajudar na compreensão do tamanho, significado, riscos e profundidade das metamorfoses em curso no mundo do trabalho.

Os novos laboratórios de experimentação do trabalho

A primeira tese – os novos laboratórios de experimentação do trabalho – pode ser assim sintetizada: durante a pandemia, foram desenvolvidos novos laboratórios de experimentação do trabalho, dos quais o trabalho vinculado e subordinado às plataformas de serviços, o home office e o teletrabalho (com suas similitudes e diferenciações) são exemplares. Se estas práticas já eram utilizadas antes da crise pandêmica, durante sua vigência elas se ampliaram ainda mais significativamente.

Resultado de um complexo movimento, cujas origens remontam à crise estrutural do capital, as grandes corporações vêm se utilizando simultaneamente de uma enorme massa de desempregados que passam a trabalhar sob o comando das tecnologias digitais e seus algoritmos. Essa simbiose também vem permitindo o incentivo à individualização do trabalho (o “empreendedorismo” a “autonomia” e mistificações assemelhadas) e assim procedendo, conseguem burlar a legislação protetora do trabalho, tendência que tem enorme potencial de expansão para um conjunto de atividades que se desenvolvem na indústria de serviços, isto é, nos serviços comoditizados ou mercadorizados.

Os resultados são visíveis: jornadas de trabalho extenuantes, frequentemente sem folga semanal; os salários reduzidos; demissões sumárias e sem qualquer explicação; custeamento da compra ou locação de veículos, motocicletas, bicicletas, celulares, internet, dentre tantas outras aberrações, que compreendem o trabalho uberizado, no qual exploração/espoliação/expropriação se mesclam e se intensificam. Não é por outro motivo que, além da pandemia do COVID-19, estamos vivenciando também a pandemia da uberização. [V]

Assim, o receituário empresarial da fase pós-pandemia já se encontra desenhado e delineado: mais flexibilização, mais informalidade, ampliação das formas de terceirização, com a consequente explosão do trabalho intermitente e uberizado, tudo sob o comando dos algoritmos com sua só aparente neutralidade.

Desse modo, em meio à pandemia do coronavírus, as plataformas corporativas globais criaram, com engenhosidade que parece ilimitada, novos laboratórios de experimentação do capital, ampliando e intensificando o mundo laborativo, envolvendo-o em uma nova realidade caracterizada pela pandemia da uberização. É por isso que, em todos os espaços, particularmente dos serviços privatizados, impulsiona-se cada vez mais a uma “nova” modalidade de trabalho na qual o assalariamento se transfigura e assume a aparência de “empreendimento” e “autonomia”.

Esse processo, que tem suas raízes fincadas em uma processualidade estrutural de crise, acentuou-se particularmente depois de 2008/2009. É nesse contexto que, por suas repercussões socioeconômicas singulares, a pandemia converte-se em momento que impulsionou novos laboratórios de experimentação do capital, aparentemente contingenciais, mas que incidiram nas mais distintas atividades, sejam elas produtivas ou reprodutivas, abrindo caminho para a acentuação significativa da precarização do trabalho no período pós-pandemia. A única forma de travá-lo dependerá da capacidade de resistência da classe trabalhadora, impondo limites à exploração do trabalho e exigindo novos direitos.

Assim, os “novos” traços que caracterizam o trabalho uberizado são por demais evidentes: não há mais limites nem de tempo, nem de jornada de trabalho; a separação entre tempo de labor e tempo de vida está em desaparição; as práticas laborativas são cada vez mais desregulamentadas; os direitos do trabalho sofrem um processo de corrosão cotidiano e a justiça do trabalho, quando acerta, se vê tolhida pelas decisões supremas. A intensidade e os ritmos de trabalho são exercitados ao limite, sendo que as mistificações subjacentes ao trabalho que deixou de ser trabalho, ao assalariamento que milagrosamente se converteu em “empreendedorismo”, em “autonomia”, são por demais evidentes.

Como a expansão do trabalho uberizado encontra o solo fértil em uma gama quase ilimitada de atividades nos serviços, seria um verdadeiro milagre que tal ordem destrutiva não produzisse mais acidentes, adoecimentos e padecimentos no trabalho, com ênfase nos adoecimentos psíquicos, mais subjetivos, mais interiorizados.

Burnout, depressão, suplício e suicídio, tudo isso passa a ser mais a regra do que a exceção. Turbinado pelo nefasto “sistema de metas” que se tornou o novo cronômetro na era da acumulação flexível, sistemática que se converteu em uma poderosa criação do capital, em sua empreitada voltada para a desconstrução do trabalho. Intensificou-se, então, nos laboratórios de experimentação do trabalho, a era de devastação do trabalho. Cenário que, provocativamente, nos leva à segunda tese: o capitalismo de plataforma parece ter algo em comum com a protoforma do capitalismo.

O capitalismo de plataforma e a protoforma do capitalismo

Indicamos que o capitalismo de plataforma, plasmado por relações sociais do capital, acaba por subsumir o arsenal informacional-digital prioritariamente às necessidades de sua autoexpansão e valorização. E, ao assim proceder, recorre cada vez mais às formas pretéritas de exploração, expropriação e espoliação do trabalho que o século XX já se encarregara, em alguma medida, de eliminar, ou pelo menos restringir, ao menos em partes do mundo.

Sabemos que a protoforma do capitalismo foi marcada pela enorme exploração do trabalho, nos primórdios do universo fabril em Manchester, berço da Revolução Industrial no século XVIII, cujas jornadas de homens, mulheres e crianças ultrapassavam 12, 14, 16 horas por dia, além de recorrer ao putting–out system e outsourcing, formas de externalização do trabalho frequentemente baseadas no pagamento por peça. Assim, nossa tese indica uma esdrúxula (mas não paradoxal) aproximação entre estas distintas fases históricas do capitalismo, a pretérita e a presente.

Isso ocorre porque, em plena era digital, intensificam-se as modalidades de sucção do excedente de trabalho (intelectual e manual) em todos os espaços onde o capital se reproduz, exatamente no período em que, dado o enorme avanço tecnológico, a jornada de trabalho poderia ser significativamente reduzida. A ininterrupta competição entre as corporações globais, converte a devastação e a corrosão do trabalho em um imperativo indiscutível para o capital.

É por isso que estamos presenciando uma variante de acumulação ao mesmo tempo muito digital e abusivamente primitiva. Um capitalismo de plataforma que parece ter algo em comum com a protoforma do capitalismo. Isto porque, uma vez mais o sistema de metabolismo antissocial do capital [VI] impõe seu curso, articulando o moderno, que se encontra, por exemplo, na inteligência artificial, com o arcaico, intensificando o binômio exploração e espoliação.

E, além das formas de exploração do trabalho, ampliam-se também as formas de expropriação e espoliação, uma vez que, além de fornecer sua força de trabalho, os trabalhadores e as trabalhadoras são responsáveis pelos custos de compra ou alocação dos veículos, celulares, equipamentos (como as mochilas dos entregadores), ampliando a sua dependência financeira para pagar pelos instrumentos de trabalho de deveriam ser fornecidos pelas empresas. Assim, para que esse processo se efetivasse, foi preciso também expropriar a classe trabalhadora que, uma vez desprovida de instrumentos de trabalho e endividada, não possa ter outra escolha senão aceitar “qualquer” labor.

É por isso que o trabalho que se expande na “base produtiva” da Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), 99, Cabify, Lyft, Ifood, Rappi, Glovo, Deliveroo, Airbnb, Workana, GetNinjas, dentre tantos outros exemplos, vem cada vez mais se assemelhando a uma modalidade de trabalho que, apesar de suas tantas diferenças, pode ser denominado como trabalho uberizado.

Em uma quadra histórica na qual a uberização do trabalho e a Indústria 4.0 são dotadas de enorme dimensão destrutiva em relação à força de trabalho, nossa terceira tese finaliza com um desenho crítico de grande intensidade e profundidade.

Uma nova era de desantropomorfização do trabalho

É dentro dessa processualidade capitalista que, simultaneamente ao crescimento do trabalho uberizado, vemos a expansão global da Indústria 4.0, propositura que nasceu na Alemanha e foi concebida para propiciar um novo salto tecnológico no mundo produtivo (em sentido amplo) a partir da ampliação da robótica e das novas tecnologias de informação e comunicação.

Sua implantação vem acarretando a intensificação ainda maior dos processos produtivos automatizados em toda a cadeia produtiva de valor, de modo que toda a produção e logística empresarial se torna cada vez mais controlada e comandada digitalmente. [VII]

É neste contexto que aflora nossa terceira tese: além da precarização intensificada que vem conformando o trabalho uberizado, na outra ponta desta mesma processualidade, onde se expande a Indústria 4.0, estamos presenciado uma expressiva ampliação do trabalho morto, tendo o maquinário digital como dominante e condutor de todo processo produtivo, com a consequente redução do trabalho vivo, através da substituição das atividades que se tornam supérfluas, por conta do ingresso de novas máquinas automatizadas e robotizadas, sob o comando dos algoritmos.

Mais robôs e máquinas digitais invadem a produção, o que nos leva a indicar que estamos adentrando em uma nova fase qualitativamente superior de subsunção real do trabalho ao capital.

Agora com a presença da internet das coisas-IoT, inteligência artificial, nuvem, big data, impressão 3D, internet 5G, celulares, tablets, smartphones e assemelhados, o mundo informacional-digital passou a controlar, supervisionar e comandar esta nova fase da cyber indústria do século XXI.

É por conta desses elementos socialmente destrutivos que estamos às vésperas de um novo processo de desantropomorfização do trabalho (para recordar Lukács [VIII]), uma vez que se acentua expressivamente a tendência de eliminação (e/ou sujeição) de nossos contingentes de trabalho vivo e sua substituição (e/ou subordinação) pelo trabalho morto, resultante deste novo empreendimento empresarial que visa a consolidar a nova fábrica digital, nos mais distintos ramos e setores econômicos.

Estamos adentrando, então, em um novo patamar de subsunção real do trabalho, que aprofunda sua condição de apêndice da máquina informacional, digital e algorítmica, ampliando a desantropomorfização de amplos contingentes de trabalho vivo, numa dimensão ainda mais profunda do que aquela que ocorreu com a introdução da maquinaria durante a Primeira Revolução Industrial.

Isso porque, se durante o ciclo artesanal e manufatureiro o trabalho tinha o comando e o controle do instrumental de trabalho (das ferramentas) e de seus movimentos (sendo, por isso parte ativa e condutora de um mecanismo vivo), na grande indústria deu-se uma completa inversão: o comando transferiu-se para um mecanismo morto, independente do trabalho vivo que, desse modo, tornou-se apêndice da máquina. Transformou-se, como assinalou Marx, em um autômato, dada a subsunção real do trabalho vivo ao capital, ao trabalho morto. [IX]

Assim, ao definir a desantropomorfização do trabalho, estamos aludindo não somente a uma dimensão quantitativa, mas também à perda qualitativa do trabalho vivo e sua subsunção ao trabalho morto. No capitalismo atual, comandado pelo capital financeiro, sob a névoa dos algoritmos, inteligência artificial e da internet das coisas, com sua aparência de neutralidade, nossa tese é de que a subsunção real que se forja na cyber indústria, que se encontra em reestruturação produtiva permanente, torna-se ainda mais complexa e profunda, tanto no universo da objetividade, quanto da subjetividade da classe trabalhadora.

Ainda mais coisificado e fetichizado, sem deter sequer minimamente o controle dos movimentos do novo maquinário informacional-digital, o trabalho vivo, quando não desaparecesse pela via do desemprego, se subsume ainda mais intensamente ao capital, uma vez que sequer conhece as engrenagens que estão em movimento na nova fábrica digital sob o comando dos algoritmos, da internet das coisas, inteligência artificial etc.

Uma nova era de revoltas

Foi este cenário de precarização estrutural do trabalho presente no trabalho uberizado que em 1º e em 25 de julho de 2020, em plena pandemia, o Brasil se encontrou frente a duas greves importantes – denominadas #brequedosapps – que sinalizavam um novo cenário de lutas e resistências dos trabalhadores-entregadores de plataformas digitais, movimento que se expandiu para vários países da América Latina e em várias partes do mundo, como demonstram a experiência britânica e de outros países europeus.

Junto com inúmeras paralisações que se seguiram no Brasil, na América Latina e em várias partes do mundo, somadas a outras tantas greves de trabalhadores e trabalhadoras, vêm expressando um mosaico e uma multiplicidade de formas de ação e resistência deflagradas pelo novo proletariado de serviços, segmento que não para de se expandir, indicando claros sinais de descontentamentos que devem se ampliar nessa era de derrelição e corrosão dos direitos da classe trabalhadora na era informacional-digital. [X]

Fica, então, o convite para a leitura dos 28 capítulos presentes no livro “Iceberg à deriva”.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Referência
Ricardo Antunes (org.). Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo, Boitempo, 2023, 552 págs.

[1] François Chesnais, A mundialização do capital (São Paulo, Xamã, 1996).

[2] Para um panorama amplo e crítico destas tendências, contemplando vários países, ver Ricardo Antunes, Fabio Perocco e Pietro Basso, (orgs.), Il lavoro digitale: Maggiore autonomia o nuovoasservimentodel lavoro, em Socioscapes International Journal of Societies, Politics and Cultures II, (Special issue, Itália, 2021.

[III] Nick Srnicek, Platform capitalism (Cambridge, Polity, 2017). p. 86.

[IV] Ricardo Antunes, Fabio Perocco e Pietro Basso (org.), Il lavoro digitale, cit., p. 10-11.

[V] Ver Ricardo Antunes, Capitalismo Pandêmico (São Paulo, Boitempo, 2022)

[VI] István Mészáros, Para Além do Capital (São Paulo, Boitempo, 2020).

[VII] Ver, em relação ao avanço da Indústria 4.0 no Brasil: Geraldo Augusto Pinto, A indústria 4.0 na cadeia automotiva. Em: Ricardo Antunes (Org.). Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0 (São Paulo, Boitempo, 2020).

[VIII] György Lukács, Para Uma Ontologia do Ser Social, Livro II, (São Paulo, Boitempo, 2013).

[IX] Karl Marx, O capital, livro I (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 494-95.

[X] Este artigo resume algumas ideias centrais presentes no capítulo 1 do livro que organizamos, com o título Icebergs à deriva: O Trabalho nas Plataformas digitais, que traz a pesquisa realizada pelo Grupo Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, do IFCH/UNICAMP, e tem a participação de autores/as do país e também do exterior (Itália, Inglaterra e Portugal).

Os inimigos do livro, por Edilson Adão Cândido da Silva

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Se há algo que não existe nas obras didáticas brasileiras é superficialidade

Folha de São Paulo, 14/08/2023

Edilson Adão Cândido da Silva

Autor de livros educativos, é mestre em ciências (USP) e doutorando em geografia (Unicamp)

O mundo da educação assiste consternado a algo que até então parecia improvável: um secretário da Educação combater livros didáticos. Para justificar o injustificável, Renato Feder, de São Paulo, declarou nesta Folha sobre os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD): “(…)

Perderam qualidade, profundidade e conteúdo. Estão superficiais” (“Secretário de Educação de SP diz que livros didáticos escolhidos pelo MEC são superficiais”, 2/8).

Ora, só nos resta uma constatação: o secretário Feder fala com propriedade sobre aquilo que desconhece. Ele não é do mundo da educação; seu negócio é outro. Senão, vejamos.

O PNLD é um programa educativo criado em 1985 e sucessor do Conselho Nacional de Livro Didático, instituído em 1938 durante o governo Getúlio Vargas. Atualmente, antes de chegarem às salas de aula, os livros didáticos do PNLD passam por um rigorosíssimo processo de avaliação, permanecendo em produção, em média, por três anos: cumprem um edital estabelecido pelo Ministério da Educação, este por sua vez ancorado em regras normativas baseadas na Lei de Diretrizes e Base, Diretrizes Curriculares Nacionais e no mais novo documento normativo da educação brasileira, a Base Nacional Curricular Comum, de 2017.

Após a produção, as obras são submetidas a uma competente banca avaliadora formada por acadêmicos das principais universidades brasileiras e professores da educação básica. Em seguida a esse trâmite, são aprovadas ou reprovadas. Professores de escolas públicas de todo o país recebem, então, um guia com os livros aprovados. Somente após esse filtro é que são escolhidos e, enfim, encaminhados aos alunos.

Toda essa trajetória hercúlea faz o livro didático brasileiro situar-se entre os melhores do mundo. A sociedade precisa ser esclarecida sobre esse fato para refutar mentiras —os livros didáticos são de altíssima qualidade. Não são escritos à revelia, ao léu. Há um longo percurso pautado por solidez conceitual, respeito à relação ensino-aprendizagem e rigor editorial.

O secretário afirma: “Estão superficiais”. Ora, se há algo que não existe nos livros didáticos brasileiros é superficialidade. Está claro: o senhor Feder não leu os livros. Para além do ritual avaliativo ao qual são submetidas, as obras didáticas são construídas a partir de embasamento científico e em fina sintonia com pesquisas científicas. Suas fontes são primárias, balizadas em relatórios dos principais organismos nacionais e internacionais. E são atualizadas. Não percebeu isso, senhor secretário? Talvez, por descuido, tenha aberto uma das apostilas produzidas pelo governo de São Paulo, cujas fontes precárias poderiam até ser cômicas se não fossem trágicas.

O indisfarçado desejo de desqualificar os livros didáticos é o mote para o secretário apresentar sua solução mágica para a salvação da educação paulista: colocá-los em seu lugar um conteúdo digital. A secretaria da Educação paulista age assim exatamente no momento em que a Unesco acaba de desaconselhar o uso maciço de tecnologias digitais na educação. Tecnologia, sim, mas na dosagem adequada. Países com avançados índices educacionais estão procedendo dessa forma, pisando no freio da educação digital, que não se mostrou tão eficiente quanto se pensava.

Para a combinação correta entre educação e cultura digital, o ideal é exatamente como propõe o PNLD, que em seus editais equaciona o uso do livro impresso como protagonista e a tecnologia digital subsidiando as coleções didáticas. Combinação correta. A proposta irresponsável apresentada em São Paulo conduz ao uso excessivo de tela entre crianças e adolescentes. Estudiosos das áreas de oftalmologia e oftalmopediatria devem ter ficado estarrecidos com tal despropósito.

Sabe-se do infeliz estágio de desigualdade em que se encontra o Brasil e São Paulo. Fazemos nos valer aqui de um alerta dado no relatório “Monitoramento Global da Educação”, divulgado pela Unesco recentemente: “Tecnologia a serviço de quem?”. Na atual conjuntura e da forma estapafúrdia como se propõe em São Paulo, não temos dúvidas: do acirramento da injustiça. Haja atenção!

Revolução Financeira

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Neste espaço, constantemente discutimos as grandes transformações em curso na sociedade contemporânea. Vivemos momentos de destruições criadoras, como destacou o economista austríaco, Joseph Schumpeter, responsável por conceitos fundamentais para compreendermos as grandes alterações econômicas, seus impactos sobre o mundo do negócio, as formas de sociabilização, as reflexões referentes a democracia e as questões políticas, todas estas transformações estão criando um mundo novo, mais integrado, mais competitivo, com mais riquezas e, ao mesmo tempo, mais inseguro, mais desigual, mais violento, e com maior potencial de destruição.

Uma das grandes características da sociedade contemporânea é a revolução financeira em curso na sociedade internacional, surgindo novos produtos no mundo das finanças, onde destacamos conceitos novos com fortes repercussões em todas as regiões do mundo, tais como criptomoedas, blockchain, Open Banking, moedas digitais, bitcoin, token, fintechs, plataformas digitais, dentre outros. Estes conceitos ganharam relevâncias e estão no centro das grandes transformações da revolução financeira, que ganharam importância no período da pandemia de Covid – 19, que alterou as bases da sociedade, gerando novos modelos de negócios, compras virtuais, criptoativos, ou seja, estamos vivendo uma verdadeira revolução financeira.

As fintechs, instituições que disponibilizam serviços na área financeira, tendem a crescer fortemente na economia internacional, mas sabemos que esse modelo de negócio não deve engolir os bancos tradicionais, mas deve estimular o incremento da competição, forçando uma maior concorrência entre as organizações, trazendo benefícios para toda a comunidade, com o aumento do crédito e a taxa de juros mais atrativas, gerando espaços para o aumento dos investimentos produtivos e melhora dos ambiente de negócios.

A revolução financeira em curso na sociedade global está transformando comportamentos arraigados na comunidade, criando novas formas de relacionamento entre o dinheiro e o ser humano, levando-os a buscarem novos conhecimentos do mundo das finanças, buscando a compreensão dos desafios nos investimentos, fazendo com que as informações bancárias e financeiros estejam disponíveis em seus smartphones, fazendo trabalhos e liberações que anteriormente eram feitas pelos funcionários das instituições bancárias, com isso, essa revolução financeira nos traz a possibilidade de termos mais autonomia e maior planejamento, que com a introdução do Open Bankimg, exigirá uma maior profissionalização da gestão de suas respectivas finanças individuais.

Essa revolução financeira está trazendo novos elementos importantes para compreendermos o mundo contemporâneo, o mundo das finanças está sempre envolto em fortes competições, imediatismo e a busca crescente dos ganhos materiais e financeiros, levando as pessoas e as organizações a buscarem ganhos extraordinários e lucros imediatistas, levando muitos grupos a adotarem medidas degradantes, estimulando fraudes financeiras e levando-nos a crises, que em uma economia marcada pela crescente globalização, seus impactos se espalham para toda a economia internacional, vide as consequências da crise imobiliária dos Estados Unidos.

Vivemos momentos de grandes inovações, o mundo financeiro vem ganhando relevância em toda a sociedade global, o poder das finanças está moldando o mundo contemporâneo, alterando o comportamento humano, aumentando a competição e transformando os indivíduos, levando-nos a uma busca crescente de ganhos materiais, transformando a educação, a saúde e a segurança como espaços crescentes de rentismo, onde as escolas buscam maiores ganhos monetários e perdem seu sentido verdadeiro na formação profissional e na construção de valores sociais, onde a saúde se transformou num espaço de acumulação desenfreada de lucros dos grupos privados, onde os acionistas controlam a gestão, angariando ganhos substanciais, muitas vezes as custas de péssimos serviços, diminuindo investimentos, se apropriando dos órgãos reguladores e se perpetuando via porta giratória, perpetuando desigualdades, violências variadas, estimulando pobreza e indignidade humanas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Não, o ‘socialismo’ não está tornando os americanos preguiçosos, por Paul Krugman

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Tudo o que precisávamos era de uma política que desse uma chance ao trabalho

Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Folha de São Paulo, 15/07/2023.

Bernie Marcus, cofundador da Home Depot (grande loja de construção e decoração), teve algumas coisas negativas a dizer sobre seus compatriotas americanos em uma entrevista em dezembro passado.

“O socialismo” destruiu a ética do trabalho, ele declarou. “Ninguém trabalha. Ninguém dá a mínima. ‘Apenas dê para mim. Envie-me dinheiro. Não quero trabalhar — sou muito preguiçoso, sou muito gordo, sou muito burro'”.

Você é ingênuo se acha que a opinião dele é excepcional. Sem dúvida, homens ricos estão constantemente dizendo coisas semelhantes em clubes de campo em todos os Estados Unidos. Mais importante, os políticos conservadores são obcecados pela ideia de que a ajuda do governo está deixando os americanos preguiçosos, e é por isso que eles continuam tentando impor a exigência de trabalho para programas como Medicaid e vale-refeição, apesar da evidência esmagadora de que tais requisitos não promovem o trabalho, e sim criam barreiras burocráticas que negam ajuda aos que realmente precisam.

Não tenho a ilusão de que os fatos mudarão a opinião dessas pessoas. Mas todos os outros devem saber que, no ano passado, realizamos um grande teste da proposição de que os americanos se tornaram preguiçosos. E acontece que não.

Diante das oportunidades criadas por uma economia de pleno emprego — sem dúvida, a primeira economia de pleno emprego que tivemos em quase um quarto de século —, os americanos estão, de fato, dispostos a trabalhar. Na verdade, eles estão mais dispostos a trabalhar do que quase todo mundo imaginava, até mesmo os otimistas. E a robustez da ética de trabalho americana tem enormes implicações para as políticas.

Antes de entrar nos números, um lembrete sobre números. Os EUA têm uma população que envelhece, o que significa que, tudo o mais sendo igual, deveríamos estar vendo uma tendência de queda na parcela de adultos que ainda trabalham. De fato, a taxa geral de participação na força de trabalho — a porcentagem de adultos trabalhando ou procurando ativamente trabalho — é um pouco menor agora do que na véspera da pandemia de Covid-19.

Mas esse declínio era previsível e previsto, por exemplo, em projeções pré-pandêmicas do Escritório de Orçamento do Congresso. E a participação atual da força de trabalho é na verdade maior do que o órgão esperava — o que é realmente notável, visto que a Covid levou alguns trabalhadores à aposentadoria precoce, enquanto a Covid prolongada pode ter deixado um número significativo de trabalhadores com deficiências persistentes.

Uma maneira de olhar para além das mudanças demográficas é focar na participação na força de trabalho dos americanos em seus primeiros anos de trabalho, que é maior hoje do que 20 anos atrás. Bobby Kogan, do Centro para o Progresso Americano, relata que, se você ajustar pela idade e o sexo, o emprego geral nos EUA está agora em seu nível mais alto da história — novamente, apesar dos efeitos prolongados da pandemia.

Portanto, chega de alegações de que o grande governo tornou os americanos preguiçosos, ou mesmo falar de uma “grande autodemissão”. Os americanos estão trabalhando mais que nunca.

De onde vêm esses trabalhadores adicionais? Uma resposta é que, em um mercado de trabalho restrito, os empregadores estão mais dispostos a aceitar grupos marginalizados, muitos dos quais se revelam perfeitamente capazes de empregos produtivos. Vimos, por exemplo, um aumento impressionante no emprego entre os americanos com deficiência.

Também vimos um aumento no número de trabalhadores nascidos no exterior. O que quer que pessoas como Ron DeSantis possam pensar, os imigrantes são uma grande vantagem para a economia dos EUA: eles tendem a estar em idade ativa e altamente motivados. De fato, as políticas anti-imigração de DeSantis já estão tendo um efeito adverso visível na economia da Flórida.

Então, o que nos diz o extraordinário sucesso dos Estados Unidos em trazer a população de volta ao trabalho, além do fato de que não nos tornamos preguiçosos? Uma coisa que ele nos diz é que a lenta recuperação que se seguiu à crise financeira de 2008 — lenta em grande parte porque as Pessoas Muito Sérias estavam obcecadas por dívidas em vez de empregos — negou emprego a milhões de americanos que poderiam e deveriam estar trabalhando.

E os recentes ganhos no emprego também fazem a “bidenomia” parecer muito melhor do que um ano atrás.

O presidente Joe Biden começou seu mandato com um grande pacote de gastos que, segundo muitos, causou o superaquecimento da economia, alimentando a inflação. Provavelmente há uma verdade considerável nessa afirmação. Mas também houve alegações de que para se livrar do excesso de inflação seriam necessários anos de alto desemprego. Acontece que, afinal, a inflação — incluindo medidas que tentam eliminar fatores temporários — tem diminuído, apesar do alto nível de emprego. Portanto, tais afirmações parecem cada vez menos convincentes.

Embora a economia aquecida possa ter aumentado temporariamente a inflação, também colocou os americanos para trabalhar — não apenas aqueles que perderam empregos durante a pandemia e suas repercussões, mas também alguns que antes não conseguiam colocação. Também produziu ganhos especialmente altos para os trabalhadores de baixa remuneração. Se conseguirmos evitar uma recessão severa, muitos desses ganhos de emprego provavelmente persistirão.

O ponto mais importante é que, não importa o que os homens ricos mal-humorados possam dizer, os americanos não se tornaram preguiçosos. Pelo contrário, estão dispostos, e até ansiosos, a aceitar empregos, se estiverem disponíveis. E embora a política econômica dos últimos anos esteja longe de perfeita, uma coisa que ela fez — para grande benefício da nação — foi dar uma chance ao trabalho.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Bolsa Família está deixando os ricos preguiçosos? por Michael França

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Muitos gostam de colher onde nunca semearam

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 08/08/2023

Em um recente artigo, Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia e colunista do jornal The New York Times, trouxe interessantes perspectivas sobre a atual conjuntura do mercado de trabalho dos Estados Unidos.

Krugman começa sua coluna com uma citação de Bernie Marcus, cofundador de uma grande loja americana, na qual ele afirma que o socialismo destruiu a ética do trabalho. Segundo a visão de Marcus, ninguém quer trabalhar atualmente. Os americanos teriam virado preguiçosos e dependentes do Estado.

Tal afirmação contrasta com a realidade vivida por aquele país. A economia mostrou o quanto os americanos querem trabalhar. Dado o envelhecimento da população, deveria ter ocorrido uma queda no percentual de trabalhadores no mercado de trabalho. Porém o que se observa é justamente o contrário.

Quando se consideram características como gênero e idade, o emprego nos Estados Unidos está no nível mais alto da história. Com o atual mercado de trabalho aquecido, até grupos historicamente marginalizados, como os que têm algum tipo de deficiência e os imigrantes, estão conseguindo considerável espaço.

Os fatos não costumam mudar as opiniões das pessoas. Talvez isso seja ainda mais saliente entre conservadores. No Brasil, por exemplo, o Bolsa Família, famoso programa de transferência de renda para os pobres, é visto por um amplo conjunto de especialistas no meio acadêmico como uma política bem-sucedida, dado que diversas pesquisas mostraram que ela teve vários impactos sociais positivos a um baixo custo.

Apesar de o respaldo empírico sugerir o contrário, não é raro encontrar alguém no país dizendo que o programa produz preguiçosos. Em especial, entre os mais ricos, corriqueiramente, tal afirmação se faz presente. Entretanto é preciso subverter esse debate.

Quando se olha demais para a parte inferior da distribuição de rendimentos e riqueza, se esquece de questionar a parte superior. Nesse contexto, a “bolsa família” recebida pelos filhos dos mais ricos tem o potencial de deixar muitos deles relativamente preguiçosos.

Isso porque, visto que parte das ações humanas é movida pelas aspirações individuais, vários daqueles que nascem em ambientes ricos e com baixa competitividade podem não ter incentivos suficientes para se esforçarem em ir além daquilo que já foi construído nas gerações anteriores.

Afinal, quase tudo lhes é dado.

Sabe-se que vários membros das elites não construíram seus patrimônios sozinhos. Desse modo, o legado familiar afeta o conjunto de escolhas e a potencial oferta de trabalho. Alguns usam seus privilégios para se desenvolver. Trabalham duro e avançam os limites daquilo que foi construído pelos antepassados.

Outros apenas herdam as riquezas criadas por terceiros e vivem da renda gerada por ela. Não acrescentam muito valor à sociedade. São o que se convencionou chamar de rentistas. Algo que não é novo na história da humanidade.

Adam Smith, considerado como o pai da economia, já tinha destacado padrão análogo ao analisar a renda derivada dos aluguéis, séculos atrás. De acordo com Smith, os proprietários de terra, como todos os outros homens, gostam de colher onde nunca semearam.

União Europeia disfarça o protecionismo de sempre com preocupação verde, por Sylvia Colombo

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Exigências ambientais para acordo com o Mercosul inclui metas quase incumpríveis e cascas de banana

Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Buenos Aires. É autora de ‘O Ano da Cólera’

Folha de São Paulo, 06/08/2023

Em passagem pelo Brasil há duas semanas, o presidente eleito do Paraguai o, Santiago Peña,
afirmou que compartilhava a irritação demonstrada por Luiz Inácio Lula da Silva em sua visita mais recente à Roma. O assunto esteve na pauta do encontro de ambos em Brasília.

Na ocasião, o brasileiro disse serem “inaceitáveis” alguns pontos da chamada “side letter”, ou “anexo ambiental”, enviado pela União Europeia como requisito para seguir adiante com o que seria a etapa final do acordo com o Mercosul —ainda que já houvesse um texto pré-aprovado em 2019.

“Também fiquei irritado com isso, tenho simpatia pela posição de Lula, e porque muitas vezes no exterior se fala de nossos problemas sem conhecerem bem a situação”, afirmou Peña. E acrescentou: “Acontece o mesmo quando sempre se associa o Paraguai com o contrabando e o narcotráfico na Tríplice Fronteira. Só que a região não é só do Paraguai, são três países. E há muito o que dizer sobre os intercâmbios comerciais legais e positivos que passam por ali.”

A coluna teve acesso, em colaboração com o jornal paraguaio ABC Color, à “side letter” que até agora não havia sido divulgada e circulava apenas entre os negociadores.

O texto, de tom duro, exige que o Acordo de Paris seja cumprido, sob risco de punição em caso contrário — algo que não constava do texto original e meta que nem sequer foi alcançada por vários países europeus.

Outro requisito é “interromper e reverter a perda florestal e a degradação da terra até 2030, ao mesmo tempo que se promova o desenvolvimento sustentável e se impulsione uma transformação rural inclusiva”. Para isso, diz o texto, haverá uma “meta intermediária de redução do desmatamento de pelo menos 50% em relação aos níveis atuais até 2025”. Ou seja, um prazo curtíssimo para solucionar questões históricas dos países.

Também em um tom de exigência, a União Europeia diz que o acordo implicará que os países não possam “reduzir seus padrões ambientais ou trabalhistas com a intenção de atrair comércio ou investimento estrangeiro”. O documento também fala de compartilhamento de informações sobre metas nacionais e monitoramento sobre o cumprimento delas.

Uma fonte do governo paraguaio afirmou que se trata de um documento de cumprimento quase impossível, com muitas cascas de banana; que é preciso ainda trabalhar muito, porque contempla convenções ou disposições que não competem ou não contemplam o Mercosul, nem mesmo a muitos Estados-membros da União Europeia.

Outra fonte, do lado brasileiro, afirmou que a avaliação é de que o novo documento não dá espaço para que o Mercosul discuta o que a União Europeia quer e coloca o bloco sul-americano como mero acompanhante dessas exigências. O Brasil pedirá que o acordo se dê mais na base da colaboração mútua do que na de exigências.

As negociações para tentar fechar o acordo UE-Mercosul se arrastam há mais de 20 anos. Mesmo com um texto aprovado em 2019, não entrou ainda em vigor porque precisa ser ratificado pelos Parlamentos de todos os 31 países. Há uma resistência crescente com relação a produtores agrícolas em alguns países, como a França.

O adendo contém finalidades nobres e temas de fato urgentes ante a mudança climática e com relação à preservação do meio ambiente. Por outro lado, tem um tom quase hostil que sugere que, na verdade, o que a União Europeia deseja mesmo é adiar uma decisão.

Seria o protecionismo de sempre, só que agora disfarçado de preocupação verde.

Quem quer ser professor? por Priscilla Bacalhau

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Os que persistem na profissão apesar de todos os desincentivos enfrentam um achatamento da carreira

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

Folha de São Paulo, 04/08/2023

A carreira docente na educação básica apresenta uma contradição intrigante. Não é difícil encontrar professoras que têm verdadeira paixão pela docência e uma resiliente dedicação às escolas e aos alunos. O magistério é visto como uma missão, que é seguida heroicamente. Ao mesmo tempo, diante das inúmeras dificuldades enfrentadas, demandas crescentes e baixa valorização, um sentimento de frustração com a profissão as acompanha.

Essa contradição é um reflexo da percepção geral sobre a profissão: por mais que haja motivação intrínseca, a profissão de professor não é atrativa. Diversas pesquisas mostram que menos de 5% dos jovens estudantes do ensino médio afirmam querer ser professor. Esses estudantes que demonstram interesse em ser professor não estão entre aqueles com melhor desempenho acadêmico.

Para os demais, a baixa remuneração, pouca valorização social e planos de carreira desestruturados são fatores determinantes para essa falta de interesse na profissão.

Os poucos que decidem seguir a carreira enfrentam dificuldades na formação. Há grande evasão, em especial na área de exatas, em que 70% dos alunos desistem do curso, segundo o Inep. A grande incidência de cursos a distância é outro desafio da formação inicial dos professores. Estes cursos, de forma geral, precisam ter seus mecanismos de garantia de qualidade da formação revistos, e os estudantes acabam concluindo a licenciatura sem uma formação sólida.

Os que persistem na profissão apesar de todos os desincentivos enfrentam um achatamento da carreira, ou seja, avançam muito pouco e muito lentamente. O piso salarial, que vem aumentando desde a criação da lei do piso nacional em 2008, não é suficiente para garantir uma valorização digna das demandas da profissão, nem condições mínimas de trabalho. Além disso, nem o crescente piso salarial pode ser considerado alto quando se compara com outros profissionais de ensino superior.

Professores são o principal fator dentro dos muros da escola que afetam o aprendizado dos alunos. Portanto, diante da baixa valorização docente, não surpreende que os alunos não estejam aprendendo o suficiente, como apontam todas as avaliações de alcance nacional.

Políticas de valorização e incentivo aos professores são urgentes para tornar a carreira atrativa. Investir no corpo docente já formado é imprescindível para atrair novos jovens, pois é vendo professores motivados e valorizados que novos jovens serão engajados em seguir a carreira de professor. A profissão docente não pode ser apenas para as heroínas que insistem em seguir sua missão mesmo frente a todas as adversidades.

A era de insegurança

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade internacional, neste momento de alterações crescentes que eram vistos como sólidos e consistentes estão sendo modificados, sentimentos estão se esvaindo, modelos de negócios foram devastados, setores econômicos estão em franca decadência, relacionamentos sólidos perdem espaço e amores estão sendo cada vez mais vistos como líquidos, como diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, gerando incertezas, instabilidades e depressões constantes.

Neste ambiente, percebemos que vivemos numa sociedade marcada por grandes inseguranças, as transformações do mundo do trabalho estão gerando medos crescentes, desesperanças e conflitos internos, culminando em depressões, ansiedades e fortes instabilidades emocionais.

Estamos vislumbrando uma sociedade marcada por poucas certezas e grandes incertezas, dominadas por sensações de medo e de desesperança, que crescem em todas as regiões do mundo, anteriormente as inseguranças eram normais nos países pobres e miseráveis, na contemporaneidade, essa sensação se espalhou também para todas as nações desenvolvidas. Neste cenário centrado em desajustes elevados, carecemos de proteção e de segurança, com isso, os medos contemporâneos nos levam a abraçar ideias salvadoras, filosofias religiosas pouco confiáveis, abraçando informações falsas, equivocadas e espalhando fake news, desta forma, nossos medos se tornam cada vez mais patológicos, mais degradantes e com potencial de criar conflitos maiores, com polarizações políticas e graves constrangimentos para a vivência e a convivência em sociedade.

As grandes transformações na economia internacional, que culminaram na globalização da economia, responsável pelo aumento da competição e pelo incremento da concorrência, estas rápidas alterações estão fragilizando os valores humanistas, degradando a ética, reduzindo a solidariedade, o respeito, a cooperação entre os cidadãos e a responsabilidade social e ambiental. Dessa forma, o incremento da insegurança está dominando a sociedade contemporânea, transformando os indivíduos em pessoas cada vez mais individualistas, que se preocupam única e exclusivamente por defender seus interesses imediatos, olhando seus ganhos monetários e financeiros e, desta forma, contribuindo ativamente para a degradação dos laços sociais, criando uma verdadeira guerra de todos contra todos.

Vivemos amedrontados com os conflitos militares que espalharam na sociedade internacional, tememos os fenômenos naturais, as catástrofes geradas pela pandemia, os receios do desemprego, do terrorismo e das exclusões do cotidiano. Como consequência, intensificamos nossa qualificação profissional, buscando atualizações e capacitações cotidianas, nos fechando em casas e residências fortemente equipadas, com sistemas de segurança, câmeras sofisticadas e filmagens em todos os locais, mesmo assim, a sensação de insegurança é crescente e nos levam a grandes constrangimentos.

Nessa sociedade marcada pela insegurança, os laços sociais se reduzem, os vínculos humanos estão em constantes fragilizações, os relacionamentos amorosos estão em franca degradação, os amores são líquidos e não criam vínculos mais consistentes, os indivíduos querem apenas relacionamentos rápidos e prazeres imediatos, com isso, percebemos na sociedade contemporânea uma fuga crescente de relacionamentos mais sólidos e consistentes, para alguns especialistas ao criarmos vínculos com outras pessoas, corremos o risco de se decepcionar, podendo gerar constrangimentos íntimos, ansiedades e depressões.

As razões destas degradações da sociedade são variadas e seus impactos são elevados e geram fortes constrangimentos para todos os indivíduos, as alterações geradas pela tecnologia da informação estão motivando muitas destas transformações, que estão reconfigurando o mercado de trabalho e trazendo graves mudanças no mundo do trabalho e, ao mesmo tempo, as redes sociais ou antissociais criam a sensação de que estamos cercados de amigos e seguidores, ledo engano, somos cada vez mais monitorados, sem privacidade, atolados em dívidas, trabalhando cada vez mais, estamos na era da insegurança e da degradação da saúde física, mental e espiritual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Livro premiado conta como China comunista fez transição à economia de mercado

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Isabella Weber evita velho erro de pensar o Estado chinês como monolito e explicita a luta política da burocracia

Isabela Nogueira, Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 29/07/2023

Os contrastes são gritantes. De um lado, a transição da União Soviética para a Rússia foi guiada pelo receituário da chamada terapia de choque —rápida desregulamentação de preços, liberalização de capitais e privatização em massa—, levando a uma hecatombe econômica de curto prazo e a uma desindustrialização continuada no longo prazo.

De outro, a China comunista fez sua transição para uma economia de mercado de maneira controlada e gradual, com o Estado se mantendo firme nos setores estratégicos da economia. Os resultados, enfim, ninguém precisa dizer o que a China representa hoje para a economia mundial.

Esse é o pano de fundo da pergunta que a economista alemã Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, faz em “Como a China Escapou da Terapia de Choque”, uma obra premiada que acaba de ser lançada em português pela Boitempo.

Engana-se quem pensa que este é um livro apenas sobre os anos 1980. Trata-se de uma obra sobre as bases intelectuais em torno da formulação de políticas econômicas na China. E com desdobramentos que tornaram Weber uma das economistas mais importantes no debate atual sobre inflação no mundo.

Ao contrário do mito de que a China seria um Estado monolítico, um ente racional e guiado pelo Partido Comunista de maneira unitária, Weber destrincha os debates ferozes entre formuladores de políticas públicas sobre como conduzir a transição chinesa rumo a uma economia de mercado. É uma rigorosa pesquisa empírica, baseada em 51 entrevistas com fontes chinesas (e algumas internacionais) e fontes primárias não publicadas.

Weber mostra como o pensamento neoliberal penetrou na China ao longo dos anos 1980 e, em dois momentos, quase venceu a luta política dentro do Partido Comunista por reformas tipo “big bang”.

Essa visão defendia que a liberalização de preços deveria ser rápida, causando uma dor de curto prazo e evitando uma dor de longo prazo, e teria que ser acompanhada de forte ajuste fiscal e aperto monetário para evitar uma espiral inflacionária. Compunham esse grupo os economistas de inspiração neoclássica, muitos baseados nas teorias de “rent-seeking”, que argumentavam que o sistema de controle de preços em vigor seria uma distorção que deveria ser abolida rapidamente.

Eles se baseavam no sucesso internacional de Milton Friedman e nos modelos matemáticos em busca de preços de equilíbrio.

O próprio Deng Xiaoping, principal líder no período, teria se transformado em um defensor da terapia de choque durante uma curta fase em 1988. Isso levou a uma disparada inflacionária e as políticas de liberalização foram rapidamente revertidas, mas o embrião para a revolta social que eclodiu em 1989 estava implantado.

Do outro lado da disputa política estava um grupo de burocratas que defendia o que a autora chama de “gradualismo experimental”. Em vez de um modelo teoricamente derivado, o novo sistema deveria ser induzido por meio da experimentação e da pesquisa empírica.

Essa é a essência do pragmatismo chinês: no caso da reforma, só poderiam ser liberalizadas as partes da economia que não fossem essenciais para o controle de preços. O objetivo seria ampliar os mercados gradualmente, pelas margens, sem abrir mão do controle pelo Estado de tudo que fosse considerado essencial.

Em resumo, o que esse grupo defendia era que o excesso de demanda agregada não deveria ser resolvido por meio da sua supressão (austeridade fiscal e aperto monetário), mas por meio de um aumento expressivo da oferta. A escassez deveria ser gerida em nível setorial, mantendo a gestão estatal em energia e commodities essenciais. E o foco seria industrializar rapidamente o país.

Qual a base intelectual desse grupo? A resposta, segundo Weber, está na história e no método.
A autora mostra como os debates sobre temas básicos da economia política são parte da civilização chinesa há 2.000 anos. Ela revê textos antigos como o “Guanzi” e argumenta que a responsabilidade do Estado por disciplinar mercados e estabilizar os preços dos grãos para evitar convulsão social é uma preocupação constante dos tempos imperais.

Do ponto de vista do método, em todos esses textos ela encontra a necessidade de estudar relações econômicas de maneira concreta e adaptar as políticas públicas de maneira experimental.

O pragmatismo seria, enfim, congruente com uma longa linha de pensamento tradicional.

A autora ressalta que não está buscando uma explicação sinocêntrica baseada exclusivamente na experiência civilizacional. Burocratas dos anos 1980 também se debruçaram sobre vários outros casos, inclusive Brasil e América Latina.

Lições essenciais teriam vindo dos Estados Unidos e das experiências de estabilização de preços em países ocidentais no imediato pós-Segunda Guerra. E da própria experiência de sucesso do Partido Comunista no controle de preços assim que tomaram o poder, em 1949.

Weber entrega uma narrativa institucionalista sobre o sucesso do modelo econômico chinês que não incorre no velho erro de pensar o Estado enquanto um monolito.

Ela explicita a luta política da burocracia, reconstruindo o papel central de figuras como Zhao Ziyang, ex-secretário geral do Partido que morreu em prisão domiciliar após tentativa de evitar o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Por conta da censura à história de Zhao, o livro está, ironicamente, tendo dificuldades para ser publicado na China continental.

Daí deriva o principal limite da obra de Weber. O Estado chinês não chega a ser propriamente caracterizado e é retratado como insulado das forças sociais, como no velho institucionalismo.

As relações sociais imbricadas com o poder político surgem como sombras difusas na narrativa.
Weber remete a um Estado sem forma social, com uma burocracia que aparece de maneira independente das forças produtivas. Tudo em uma sociedade que está transformando suas relações de produção e de propriedade e criando novos capitalistas na velocidade da luz.

COMO A CHINA ESCAPOU DA TERAPIA DE CHOQUE
Preço R$ 97 (472 págs.) Autoria Isabella M. Weber Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes

Big Techs e Educação: o fim do professor? por vários autores.

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Corporações prometem customizar ensino e fazer da educação um game. Por trás do marketing, a cartilha neoliberal: privatizar sistemas públicos via plataformas, forjar o aluno-consumidor e reduzir o docente a um mero operador da tecnologia

Por Antonio Lovato Sagrado, Amanda Aliende e Enric Prats Gil – Outras Palavras – 26/07/2023

A erosão da profissão docente é um fenômeno que vem se desenvolvendo há décadas, principalmente com a aceleração do capitalismo, e é um tema que já vem sendo discutido na Academia e na mídia.

Diversas transformações nas últimas décadas vêm determinando diretamente mudanças nos papéis dos professores, algumas diretamente educacionais (como a universalização da educação básica e a ampliação da influência de organismos internacionais nas políticas educacionais nacionais) e outras socioeconômicas (como a globalização ou a rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e a expansão de seu uso no dia-a-dia).

Atualmente, neste contexto, as fundações filantrópicas com alcance global estão adquirindo um papel especial na formação de docentes e na formação dos papéis dos professores. Tendem a promover um discurso sobre a (in)eficiência da escola e dos professores, o que favorece a sua entrada nas escolas públicas, incorporando no dia-a-dia escolar tecnologias educativas que eles próprios desenvolvem e financiam, como as plataformas digitais na educação.

Este artigo argumenta que as corporações de tecnologia estão moldando um novo docente. Para isso, fazemos uma leitura sobre pedagogia seduzida pelo mercado, apresentamos brevemente duas das grandes plataformas digitais que estão entrando na sala de aula (Byju’s e Khan Academy) e analisamos como esse processo afeta a reconfiguração dos professores.

A pedagogia seduzida pelo mercado

Compreender as incursões no mundo educacional do mercado e da ideologia neoliberal é fundamental para refletir sobre os impactos e as mudanças que são promovidas no campo da pedagogia. Um dos argumentos que sustenta a entrada das plataformas digitais na educação é a suposta necessidade de personalizar as trajetórias de aprendizagem de cada estudante.

A personalização visa oferecer serviços educacionais sob medida para que cada aluno-consumidor possa alcançar uma experiência de aprendizagem adaptativa (adaptative learning). Isso requer o uso de algoritmos, mineração de dados, análise de aprendizado e inteligência artificial (IA).

Algumas das ferramentas que foram criadas nesse sentido são: a customização dos módulos de aprendizagem, o alinhamento dos conteúdos que cada aluno deve trabalhar com base em suas necessidades específicas e o uso de chatbots, que incentivam, interagem e fornecem feedbacks imediatos aos estudantes sobre seu desempenho e seu nível de avanços, através de uma comunicação em linguagem natural, mantendo os alunos envolvidos em diferentes níveis.

A personalização pode ser expandida com novas contribuições da IA. Isso permite a extração e processamento de uma quantidade muito elevada de dados, o que possibilita, entre outros aspectos, a tomada de decisões com base em um maior número de elementos. Por meio dos últimos avanços em IA, as plataformas aprenderão, por exemplo, o que cada aluno mais ou menos desenvolveu em seu processo de aprendizagem e, com base nas informações de milhares de outros alunos, saberão prontamente qual conteúdo oferecer. Ainda assim, até o momento, a tecnologia desenvolvida é incipiente. No entanto, todas as decisões baseadas em dados respondem a uma lógica de eficiência escolar que não é necessariamente uma lógica pedagógica.

Junto a isso, a política de marketing das plataformas digitais na educação é bastante agressiva, embora aparentemente amigável. Seu interesse em seduzir a clientela é detectado no uso de imagens de jovens sorridentes de diferentes origens étnicas e culturais, bem como famílias heterossexuais felizes, com textos sempre muito positivos e depoimentos de usuários e especialistas, destacando valores supostamente universalizáveis do mainstream neoliberal, como equidade, inclusão e diversidade. Essas plataformas são populares entre quem estuda em casa e têm grande potencial de mercado na América Latina, refletido em seu uso generalizado em diferentes países do continente, bem como nas estratégias de marketing que oferecem para sua adaptabilidade aos diferentes idiomas.

As plataformas digitais na educação tendem a ampliar lógicas narrativas que se sustentam na possibilidade de romper com o ensino tradicional e o modelo classes de aulas, incorporando novos valores e ensinando as habilidades necessárias no século XXI. Argumenta-se que isso permitiria, finalmente, aproximar ensino e entretenimento, garantindo melhores resultados educacionais. Há uma década, Gingrich (2014) já encorajava que projetos pioneiros como Khan Academy e Coursera, hoje amplamente difundidos, seriam mais parecidos com a Netflix do que com as antigas lousas.

As empresas digitais globais que atuam nessa área tiveram um crescimento espetacular na última década, oferecendo produtos e serviços de alta qualidade gráfica por meio de plataformas digitais, incluindo conteúdo educativos para educandos, suas famílias, professores, escolas e outras empresas. Seus negócios incluem um longo repertório de fórmulas voltadas para um público amplo e diversificado. Os efeitos pedagógicos desses produtos já estão sendo estudados, e parte do setor educacional parece defender uma incorporação acrítica devido à suposta eficiência das plataformas para oferecer conteúdo.

O que é certo é que esse número crescente de ferramentas está sendo desenvolvido em um contexto de mercado com alto potencial de lucro. O modelo típico é o das EdTechs: empresas de base tecnológica em rápido crescimento (startups) que se desenvolvem no campo das tecnologias educacionais. O capitalismo digital entrou fortemente pela mão das empresas EdTech, que começam a ser difíceis de mapear (Saura, 2021; Williamson & Hogan, 2020).

Big Tech ou gigantes tecnológicos é uma categoria analítica que se refere às corporações mais importantes do mundo, que operam por meio da monopolização de serviços e, portanto, têm avançado na configuração dos futuros digitais dos sistemas educacionais. É importante diferenciar entre os gigantes da tecnologia dos EUA (Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) e os baseados na China (Alibaba, Baidu, Huawei ou Tencent). É comum que esses atores políticos privados atuem pela lógica da expansão global para moldar visões cada vez mais simplistas e populistas da IA, e o fazem apresentando a IA como um avanço democrático orientado para a justiça social, como exemplificado pela aliança entre Microsoft e Abra AI 1 . (Saura, 2023: 3)

Segundo o Holon IQ, os fundos de investimento investiram US$ 10,6 bilhões em empresas em 2022, 49% a menos que em 2021. Apesar disso, o investimento aumentou 14 vezes em 12 anos e essas empresas têm alta incidência em todas as facetas do processo educacional, desde o desenvolvimento de materiais didáticos para formação de professores e substituição do ensino universitário em formatos digitais.

Empresas como a estadunidense Age of Learning ou a chinesa 17zuoye disputam esse mercado e têm captado investimentos de grande escala. Além da disputa com o mercado editorial tradicional, o campo da personalização na educação faz fronteira com aplicações de mineração de dados e de análise de dados de aprendizagem (learning analytics application), que possuem alto potencial lucrativo:

(…) a adoção contínua de inteligência artificial na educação regular ao longo da década de 2020 lançará a datificação em uma escala sem precedentes. É inegável que todas essas formas díspares de inteligência artificial (do aprendizado profundo à IA generativa) estão famintas por dados.

Na vanguarda da extração de dados de ambientes educacionais estarão os provedores de plataformas digitais, para quem os dados do usuário são seu ativo mais valioso (Selwyn et al., 2020: 2, tradução nossa).

Ao lado das grandes empresas, existem também unicórnios tecnológicos educacionais que usam imaginários baseados em uma visão tecnosolucionista que oferece soluções tecnocráticas para problemas sociais e dissemina imagens de progresso e modernidade para justificar suas operações (Saura, 2023). Esses imaginários do futuro estão ligados à abertura de novos mercados financeiros.

Como exemplo, podemos destacar que a EdTech indiana Byju’s foi a patrocinadora oficial da Copa do Mundo FIFA no Catar 2022 2. Empresas como essa não são mais apenas unicórnios, mas “decacornios” (Williamson, 2022), já que estão avaliadas nos mercados financeiros acima de 10 trilhões de dólares. A plataforma Crunchbase (s.f.), especializada em monitorar e fornecer informações sobre o ecossistema de investimentos em empresas globalmente, informa que a Byju’s arrecadou mais de 5,5 bilhões de dólares desde sua fundação em 2015. A empresa desenvolve tecnologia educacional para aprendizagem personalizada para crianças e tem mais de 150 milhões de alunos em mais de 100 países (Byju’s, s.f.). Em seu site 4 eles são apresentados da seguinte forma:

A Byju’s torna o aprendizado envolvente e eficaz, aproveitando a pedagogia e a tecnologia de ponta. Com ofertas que vão desde cursos adaptativos de autoestudo em aplicativos e na web até aulas personalizadas individuais com professores especializados para idades de 4 a 18 anos ou mais, temos programas para todos os alunos.

Outra empresa que movimenta quantidades significativas de recursos é a Khan Academy. A lista de doadores e aliados da empresa é poderosa: alguns deles aparecem na lista da Forbes, como Carlos Slim, Bill Gates, Scott Cook, Jorge Lemann e Susan McCaw. Além disso, conta com conselheiros e assessores, gurus e policymakers ligados ao campo educacional e promotores de visões e estratégias de larga escala.

A Khan Academy se apresenta como uma empresa sem fins lucrativos 5 e opera na modalidade B2C (sigla em inglês para Business to Consumer ou de empresa a cliente). O que em seus primórdios, em 2006, eram videotutoriais de algumas disciplinas, elaborados e realizados por seu próprio fundador, Salman Khan 6/, hoje é uma complexa plataforma de aprendizagem personalizada que opera com poderosas ferramentas de IA. É focada nas disciplinas básicas obrigatórias e não obrigatórias, e também se concentra no ensino superior: matemática, ciências, programação de computadores, línguas e leitura, artes e humanidades, economia e até habilidades para a vida, como segurança na internet, financiamento ou apoio ao ingresso em universidades e, mais recentemente, a saúde e medicina. Propõe realizar um desafio de grande escala: oferecer uma educação gratuita e global.

Com o discurso sedutor e eficiente de for every student, every classroom. Real results, a plataforma propõe acompanhar o aluno na resolução dos seus problemas acadêmicos com uma metodologia própria que se apresenta como muito eficaz e efetiva. A Khan Academy argumenta que funciona porque incentiva o domínio do conteúdo: os alunos aprendem em seu próprio ritmo, primeiro identificando seus déficits e depois acelerando o processo.

A plataforma também oferece treinamento de professores na metodologia “aprendizado para o domínio”, que escalona o processo em quatro níveis (tentativa, familiar, competente e dominado): o papel do professor é selecionar o assunto e verificar o alcance dos marcos de aprendizagem . Além disso, a conexão com o Google Classroom permite a comunicação direta com alunos e famílias, e a plataforma alerta sobre riscos jurídicos para menores. A Khan Academy defende consistentemente o ensino à distância, e isso a sintoniza com as famílias que ensinam em casa, tornando essas famílias alguns de seus principais usuários.

Os últimos avanços da Khan Academy incluem a incorporação do ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com os alunos em linguagem natural, recriando a experiência de um professor humano. A tecnologia também trabalha com os professores, gerenciando e preparando cronogramas de ensino e corrigindo as respostas dos alunos.

A plataforma oferece a cada aluno a experiência de um tutor humano, concentra conteúdos educacionais supostamente de alta qualidade, media o processo de aprendizagem e personaliza a trajetória de cada aluno de forma gamificada e viciante. Não há como competir com a capacidade de processamento de dados da plataforma, então entende-se que a Khan Academy conhecerá o processo de desenvolvimento de conteúdo de cada aluno muito melhor do que um professor.

A reconfiguração docente

No contexto da incorporação de plataformas como a Khan Academy às instituições de ensino, a função docente é fortemente afetada. Um professor que atue mais como auxiliar das plataformas do que como personagem central no acompanhamento do desenvolvimento do aluno parece ser o objetivo final dessas plataformas. Nesse contexto, o que se busca é que o estável e o imutável seja o serviço oferecido pelas plataformas; o professor seria cada vez mais secundário e facilmente substituível.

Os imaginários históricos sobre a função docente deixam de fazer sentido neste novo cenário. O professor não é mais a fonte de informação, conteúdo e conhecimento; não é quem desenvolve ou seleciona os materiais didáticos; nem é quem expõe o conteúdo, oferece exemplos e tira dúvidas do dia a dia. O currículo passou a ser desenhado por plataformas com alcance global, e não é mais uma pessoa que conhece os alunos e seu contexto o suficiente para tomar decisões sobre como avançar em sala de aula para reduzir as desigualdades.

No entanto, a introdução das tecnologias digitais na educação intensificou a carga de trabalho docente e fortaleceu os mecanismos de controle externo e de autocontrole interno. “(…) Por meio de todas essas mudanças, está sendo gerada a expressão máxima da subjetividade neoliberal digitalizada. O professor, que se acredita livre, se autoexplora e se autocontrola sem as limitações do plano analógico.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28). A gestão de todos esses dados gera um novo controle da função docente. “O papel tinha um limite. Os dígitos, no entanto, são infinitos.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28).

A privatização educacional digital por meio de plataformas hegemônicas como Google e Microsoft cria um solucionismo tecnológico que os professores devem atender. Essas corporações também oferecem formação, certificados e prêmios para os docentes inovadores, o que faz com que os professores que se adaptam ao seu discurso criem “inovações” e valorizem sua nova personalidade digital certificada. Desta forma, contribuem para a tecnocratização da educação e a desprofissionalização dos docentes (Saura, Cancela e Parcerisa 2023: 28).

As consequências das tecnologias digitais são imprevisíveis e dificultam o mapeamento dos atores da educação global. Isso causa uma pressão adicional sobre a função docente, que se desgasta devido à deterioração das três funções básicas (qualificação, socialização e subjetivação) propostas por Gert Biesta (2015). A abordagem de Biesta destaca que a nota não é apenas atribuir um número, mas que os alunos entendam o significado do conhecimento que é transmitido. A socialização implica a capacidade de encontrar um significado local e particular na aprendizagem, que pode ser afetado pelas barreiras impostas pelo campo digital. Por fim, a subjetivação implica que os jovens se considerem como indivíduos particulares, algo que a abordagem globalista e digital não atende. Esta deterioração tem um acentuado sotaque cultural e anula o filtro necessário do professor nas três áreas referidas, tendo efeitos perversos nos educandos.

A erosão digital na educação implica que o professor perca ou desvalorize alguns dos seus papéis e tarefas. A sua participação no planeamento, implementação e avaliação da aprendizagem é diminuída, a sua decisão sobre o currículo é anulada e a realidade das condições em que o ensino decorre é omitida. Além disso, sua figura de pesquisador desaparece e a essência da escola é subsumida pelo aprender por aprender, sem a necessidade de recorrer ao significado dessa aprendizagem.

Considerações finais

Esse processo de incorporação das EdTechs nas instituições de ensino e a configuração de uma nova função docente vem ocorrendo há anos. Na América Latina, por exemplo, existe um conglomerado de empresas que está atuando para se inserir nas escolas públicas e assumindo todos os riscos: a Samsung financia salas de aula tecnológicas 6 que poderão receber produtos educacionais da Khan Academy e de outras empresas. Mas em decorrência da pandemia de covid-19, a presença de agentes comerciais privados na educação ampliou-se ainda mais e eles defenderam a necessidade da manutenção de um mínimo de cotidiano escolar (sem que se considere, neste discurso, o gap tecnológico).

Este movimento tem causado tensões que afetam os objetivos, conteúdos e habilidades da educação.

Isso corrói o controle democrático delegado ao docente, deteriora sua figura e reduz seu papel como ator social, o que acarreta uma perda da “comunidade simbólica idealizada” (Sennett, 2000).

Nesse sentido, é importante destacar que a figura do docente é fundamental para garantir o acesso a uma educação de qualidade e equitativa para todos os alunos. Por isso é fundamental proteger o trabalho do professor como agente público e como mediador entre os alunos e o conhecimento. Num contexto em que a educação é cada vez mais influenciada por agentes comerciais privados, o papel do professor torna-se ainda mais importante enquanto defensor dos valores democráticos e da justiça social. Portanto, é fundamental que mais atenção seja dada à proteção do controle democrático da educação e do trabalho do docente nela, para garantir uma educação de qualidade e equitativa para todos os estudantes.

Os senhores da morte, por Vera Iaconelli.

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O filme ‘Oppenheimer’ faz o espectador experimentar uma profunda tristeza reflexiva

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 25/07/2023

Freud não tinha razões para se iludir com a natureza humana. Três de seus filhos participaram da Primeira Guerra Mundial, na qual perdeu um sobrinho. Ele só escapou da perseguição nazista que antecedeu o segundo conflito mundial por obra e graça de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e psicanalista.

Ele sentiu na pele a derrocada da pretensão civilizatória iluminista, que projetava os horrores da humanidade nos outros: basicamente nos povos originários a serem colonizados com a justificativa de que seriam selvagens. Mas quando as guerras se deram entre irmãos europeus ficou mais difícil sustentar a retórica eurocêntrica. Como se sabe, nos olhos dos outros, pimenta é colírio. A lavagem cerebral colonial é tão persistente que ainda existe quem se espante com a guerra na Ucrânia como se conflitos bélicos fossem coisa do sul global.

Freud foi mais longe, para desconsolo dos otimistas de plantão, e disse que o mal-estar na cultura é resultado do próprio processo civilizatório. A exigência de que renunciemos a parte de nossas satisfações pulsionais sempre cobra a fatura. Sua falta, por outro lado, é a barbárie. Ruim com, pior sem. Nos resta identificar como se apresenta o mal-estar de cada época para buscarmos as melhores formas de enfrentá-lo.

Mas a humanidade também é capaz de prodígios de criação que embalam nossa imaginação e engrandecem nosso espírito. Goethe, Shakespeare e Cervantes eram faróis a inspirar Freud em busca de valor na combalida humanidade.

Os grandes criadores da humanidade têm gana por aprender, resolver problemas, criar e receber o reconhecimento devido, o que os leva a um ciclo de angústia e satisfação. O prazer da descoberta, o reconhecimento social e o poder — financeiro e político — seduzem a ponto de ofuscar o interesse pelas consequências. Se algo espetacular pode ser criado, por que deveríamos nos importar com os efeitos da criação, a glória não justificaria tudo?

Atendi descendentes das vítimas da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em mais de uma ocasião. Ouvi os relatos de sofrimento e adoecimento psíquico de familiares de sobreviventes, pais e avôs que, quando crianças, assistiram a vizinhos falecerem na sua porta sem que pudessem socorrê-los. Herdaram também riscos consideráveis de produzirem câncer em decorrência da radiação.

É uma geração que viu o esplendor de nossas capacidades intelectuais e imaginativas serem usadas para construir a maior expressão da violência humana até então. Como Primo Levi. que tentou em vão comunicar a máquina de desumanização criada pelos nazistas, também essas vítimas tentam nomear o inominável da experiência de aniquilação anônima e programática de um ser humano por outro.

O que mais se pode falar sobre tamanha tragédia, que fará 78 anos no próximo dia 6 de agosto?

O filme “Oppenheimer”, sobre o pai da bomba atômica, tenta uma abordagem. O ator Cillian Murphy sustenta magistralmente um personagem no qual convivem genialidade, lealdade para com os seus e incapacidade de se colocar no lugar das vítimas de sua criação até que seja tarde demais — e talvez nem assim, pelo potencial psicotizante. O autor da bomba não está só, logicamente. Uma empreitada dessas é sempre uma ação coletiva e gigantesca, como foi a escravidão e o holocausto.

Christopher Nolan, diretor dessa obra-prima, não dá ao espectador direito à catarse, fazendo-o experimentar uma profunda tristeza que o acompanha durante e depois da sessão. Como nas melhores obras, essa tristeza não vai sem angústia e reflexão.

Filme obrigatório para aqueles que insistem em encarar a ciência como um brinquedo lucrativo e cujas consequências negligenciam acintosamente.

Por que o capital está deixando os EUA? por Richard D. Wolff

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Richard D. Wolff – A Terra é Redonda – 24/07/2023

O capitalismo avançou, abandonando seus antigos centros e, assim, empurrando os seus problemas e as suas divisões para crises cada vez maiores.

No início, o capitalismo norte-americano estava centrado na Nova Inglaterra. Depois de algum tempo, a busca pelo lucro levou muitos capitalistas a deixar aquela área e se transferirem para Nova York e para os estados do meio do Atlântico. Grande parte da Nova Inglaterra ficou com fábricas abandonadas e cidades deprimidas – o que é evidente até hoje. Eventualmente, os empregadores se mudaram novamente, abandonando Nova York e o meio do Atlântico para o Meio-Oeste.

A mesma história foi se repetindo à medida que o centro do capitalismo se deslocava para o Extremo Oeste, o Sul e o Sudoeste. Termos descritivos como “cinturão da ferrugem”, “desindustrialização” e “deserto manufatureiro” se aplicavam cada vez mais a espaços antes habitados pelo capitalismo norte-americano.

Enquanto os movimentos do capitalismo permaneceram principalmente dentro dos EUA, os alarmes levantados por suas vítimas abandonadas permaneceram regionais, não se tornando ainda uma questão nacional. Nas últimas décadas, no entanto, muitos capitalistas transferiram as instalações de produção e os novos investimentos para fora dos EUA, para outros países, especialmente para a China. Controvérsias e alarmes contínuos cercam agora esse êxodo capitalista. Mesmo os célebres setores de alta tecnologia, sem dúvida o único centro robusto remanescente do capitalismo dos EUA, investiram pesadamente em outros lugares.

Desde a década de 1970, os salários eram muito mais baixos no exterior e os mercados também cresciam mais rápido por lá. Cada vez mais capitalistas americanos tiveram que sair ou correr o risco de perder sua vantagem competitiva sobre aqueles capitalistas (europeus e japoneses, bem como os EUA) que haviam partido mais cedo para a China e estavam obtendo taxas de lucro incrivelmente melhores. Além da China, outros países asiáticos, sul-americanos e africanos também forneceram incentivos de baixos salários e mercados em crescimento, o que acabou atraindo capitalistas americanos, assim como outros, para transferirem os seus investimentos para lá.

Os lucros obtidos por esses movimentos do capital estimularam mais movimentos. O aumento dos lucros fez a subir os mercados de ações dos EUA e produziu grandes ganhos em renda e riqueza para alguns. Isso beneficiou principalmente os já ricos acionistas corporativos e altos executivos corporativos. Eles, por sua vez, promoveram e financiaram a formulação de ideologias, segundo as quais o abandono do capitalismo dos EUA foi, na verdade, um grande ganho para a sociedade americana como um todo.

Essas afirmações, categorizadas sob os títulos de “neoliberalismo” e “globalização”, serviam perfeitamente para esconder ou obscurecer um fato-chave: lucros mais altos principalmente para os poucos mais ricos era o principal objetivo e o resultado do abandono dos EUA pelo capital sempre ganancioso.

O neoliberalismo era uma nova versão de uma velha teoria econômica que justificava as “escolhas livres” dos capitalistas como o meio necessário para alcançar a eficiência ótima para economias inteiras. De acordo com a visão neoliberal, os governos devem minimizar qualquer regulação ou outra interferência nas decisões orientadas pelo lucro dos capitalistas.

O neoliberalismo celebrava a “globalização”, seu nome preferido para a escolha dos capitalistas de transferir especificamente a produção para o exterior. Dizia-se que a “livre escolha” permitia uma produção “mais eficiente” de bens e serviços, porque os capitalistas poderiam explorar recursos de origem global. As linhas de força que fluíam das exaltações do neoliberalismo, das escolhas livres dos capitalistas e da globalização, era que todos os cidadãos se beneficiam quando o capitalismo avançava. Com exceção de alguns dissidentes (incluindo alguns sindicatos), políticos oportunistas, meios de comunicação de massa e acadêmicos auto-interessados em grande parte se juntaram à intensa torcida pela globalização neoliberal do capitalismo.

As consequências econômicas do movimento do capital impulsionado pelo lucro para fora de seus antigos centros (Europa Ocidental, América do Norte e Japão) trouxeram o capitalismo para sua crise atual. Primeiro, os salários reais estagnaram nos antigos centros. Os empregadores que podiam exportar empregos (especialmente na manufatura) o fizeram. Empregadores que não podiam (especialmente nos setores de serviços) procuraram automatizá-los.

À medida que as oportunidades de emprego nos EUA pararam de aumentar, os salários também pararam de crescer. Desde que a globalização e a automação impulsionaram os lucros das empresas e os mercados de ações, enquanto os salários estagnaram, os velhos centros do capitalismo exibiram um aumento extremo das diferenças de renda e riqueza. O aprofundamento das divisões sociais se seguiu e culminou na crise do capitalismo agora.

Em segundo lugar, ao contrário de muitos outros países pobres, a China possuía a ideologia e a organização para garantir que os investimentos feitos pelos capitalistas servissem ao seu próprio plano de desenvolvimento; ora, essa foi a estratégia econômica da China. A China exigia o compartilhamento das tecnologias avançadas dos capitalistas entrantes (em troca do acesso desses capitalistas à mão de obra chinesa de baixos salários e à rápida expansão dos mercados chineses).

Os capitalistas que entravam nos mercados de Pequim também eram obrigados a facilitar parcerias entre produtores chineses e canais de distribuição em seus países de origem. A estratégia da China de priorizar as exportações significava que precisava garantir o acesso aos sistemas de distribuição (e, portanto, às redes de distribuição controladas por capitalistas) em seus mercados-alvo. Parcerias mutuamente lucrativas foram desenvolvidas entre a China e alguns distribuidores globais, tal como o Walmart.

O “socialismo com características chinesas” de Pequim incluía um poderoso partido político e um Estado focado no desenvolvimento. Juntos, supervisionavam e controlavam uma economia que misturava o capitalismo privado com o capitalismo de Estado. Nesse modelo, empregadores privados e empregadores estatais dirigem massas de empregados em suas respectivas empresas.

Ambos os conjuntos de funções patronais, entretanto, estão sujeitos às intervenções estratégicas de um partido e de um governo determinados a atingir seus objetivos econômicos. Como resultado dessa definição e operação do “socialismo” com características chinesas, a economia desse país ganhou mais (especialmente no crescimento do PIB) com a globalização neoliberal do que a Europa Ocidental, a América do Norte e o Japão. A China cresceu rápido o suficiente para competir agora com os velhos centros do capitalismo.

O declínio dos EUA dentro de uma economia mundial em mudança contribuiu para a crise do capitalismo norte-americano. Para o império norte-americano que surgiu da Segunda Guerra Mundial, a China e seus aliados do BRICS representam agora o seu primeiro desafio econômico sério e sustentado. A reação oficial dos EUA a essas mudanças até agora tem sido uma mistura de ressentimento, provocação e negação. Não se apresentam soluções para a crise nem ajustamentos bem-sucedidos a uma realidade alterada.

Em terceiro lugar, a guerra da Ucrânia expôs os principais efeitos dos movimentos geográficos do capitalismo e do declínio econômico acelerado dos EUA em relação à ascensão econômica da China.

Assim, a guerra de sanções liderada pelos EUA contra a Rússia não conseguiu esmagar o rublo ou colapsar a economia russa. Esse fracasso se seguiu em boa parte porque a Rússia obteve apoio crucial das alianças (Brics) já construídas em torno da China. Essas alianças, enriquecidas por investimentos de capitalistas estrangeiros e domésticos, especialmente na China e na Índia, forneceram mercados alternativos quando as sanções fecharam os mercados ocidentais às exportações russas.

As disparidades de renda e riqueza anteriores nos EUA, agravadas pela exportação e automação de empregos de alta remuneração, minaram a base econômica dessa “vasta classe média” da qual tantos funcionários acreditavam fazer parte. Nas últimas décadas, os trabalhadores que esperavam desfrutar do “sonho americano” descobriram que o aumento dos custos de bens e serviços levou a que o sonho estivesse fora de seu alcance. Seus filhos, especialmente aqueles forçados a pedir empréstimos para a faculdade, se viram em uma situação semelhante ou pior.

Resistências de todos os tipos surgiram (movimentos de sindicalização, greves, “populismos” de esquerda e direita) à medida que as condições de vida da classe trabalhadora continuavam se deteriorando. Para piorar a situação, os meios de comunicação de massa celebraram a riqueza estupefaciente daqueles poucos que mais lucraram com a globalização neoliberal.

Nos EUA, fenômenos como o ex-presidente Donald Trump, o senador independente de Vermont Bernie Sanders, supremacia branca, sindicalização, greves, anticapitalismo explícito, guerras “culturais” e extremismos políticos frequentemente bizarros refletem o aprofundamento das divisões sociais.

Muitos nos EUA se sentem traídos depois de serem abandonados pelo capitalismo. As suas diferentes explicações para a traição exacerbam o sentimento amplamente difundido de crise na nação.

A deslocalização global do capitalismo ajudou a elevar o PIB total dos países BRICS (China + aliados) bem acima do G7 (EUA + aliados). Para todos os países do Sul Global, seus apelos por ajuda ao desenvolvimento agora podem ser direcionados a dois possíveis entrevistados (China e EUA), e não apenas ao Ocidente. Quando as empresas e entidades chinesas investem na África, é claro que os seus investimentos são estruturados para ajudar tanto os doadores como os receptores.

Se a relação entre eles é imperialista ou não, depende das especificidades da relação e do saldo dos ganhos líquidos. Esses ganhos para os BRICS provavelmente serão substanciais. O ajuste da Rússia às sanções relacionadas à Ucrânia contra ela não apenas a levou a se apoiar mais nos BRICS, mas também intensificou as interações econômicas entre os membros dos BRICS. Os laços econômicos existentes e os projetos conjuntos entre eles cresceram. Novos estão surgindo rapidamente. Sem surpresa, outros países do Sul Global solicitaram recentemente a adesão ao BRICS.

O capitalismo avançou, abandonando seus antigos centros e, assim, empurrando os seus problemas e as suas divisões para crises cada vez maiores. Como os lucros ainda fluem de volta para os velhos centros, aqueles que lá recolhem os lucros iludem os cidadãos e a si mesmos pensando que tudo está bem no capitalismo global.

Como esses lucros agravam drasticamente as desigualdades econômicas, as crises sociais se aprofundam. Por exemplo, a onda de militância trabalhista que varre quase todas as indústrias dos EUA reflete uma raiva e um ressentimento crescente contra essas desigualdades. O bode expiatório histérico de várias minorias feitas por demagogos e pelos movimentos de direita é outro reflexo do agravamento das dificuldades. Outra é a crescente percepção de que o problema, em sua raiz, é o sistema capitalista. Tudo isso são componentes da crise atual.

Mesmo nos novos centros dinâmicos do capitalismo, a crítica socialista, mascarada ou não, volta a agitar as mentes das pessoas. A organização dos novos centros de trabalho – mantendo o velho modelo capitalista de empregadores versus empregados em empresas privadas e estatais – é desejável ou sustentável? É aceitável que um pequeno grupo, os empregadores, permita que a maioria das empresas decida em seu próprio favor, de forma exclusiva e irresponsável?

Richard D. Wolff é economista. Fundou o portal Democracy at Work. Autor, entre outros livros, de Capitalism”s Crisis Deepens (Haymarket books).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Alívio econômico

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A economia brasileira vem padecendo de baixo crescimento econômico desde meados dos anos 1980, depois de forte crescimento da estrutura produtiva nas décadas anteriores, o país perdeu o dinamismo, perdeu espaços na economia internacional, fragilizando sua estrutura industrial, mergulhando em taxas elevadas de inflação e que culminaram em políticas de estabilização, austeridade fiscal, baixo crescimento econômico e incremento da desigualdade social, com aumento da exclusão social, com crescimento das drogas e a explosão da violência em todas as regiões, vide a Cracolândia que cresce de forma acelerada, gerando desafios e prescindem de políticas públicas planejadas e organizadas.

Vivemos numa sociedade altamente integrada, onde as estruturas econômicas e produtivas estão interligadas, o crescimento tecnológico está moldando uma nova sociedade, com novos modelos de negócios, centrados nas novas plataformas de comunicação, novos instrumentos de marketing, com o incremento da inteligência artificial, das biotecnologias, demandando profissionais altamente capacitados, flexíveis, dinâmicos, dotados de inteligência emocional e fortemente engajados nos desafios que crescem cotidianamente, vide os desafios criados com o surgimento do ChatGPT, que estão transformando setores e exigindo uma constante atualização.

Neste ambiente, percebemos que a economia brasileira vem demonstrando melhoras constantes, embora acreditemos que os avanços sejam tímidos, uma sensível redução dos combustíveis, com taxas de inflação demostrando sinais claros de redução sistemática, a moeda nacional apresentou forte valorização, atraindo moedas externas, impactando sobre os preços internos e um incremento da renda dos trabalhadores.

Destacamos ainda, os avanços da reforma tributária, que surgem para simplificar os impostos, além dos avanços do arcabouço fiscal, uma medida tão aguardado pelo chamado mercado e foram bem vistos pelos donos do dinheiro, com isso, percebemos que os índices de confiança da economia nacional apresentaram números positivos, com aumento dos investimentos externos e as tratativas de novos investimentos, que estão em alta crescente e as perspectivas se apresentam positivas, vide as investidas de empresas chinesas que estão buscando o mercado brasileiro, inicialmente no setor automobilístico e eletroeletrônico e, posteriormente, outros setores econômicos, demonstrando que o país está voltando para os círculos de investimentos internacionais, depois de anos de escassez de recursos externos e pouco investimento produtivo, aonde recebíamos apenas grandes levas de investimentos financeiros que vinham para angariar ganhos com nossa taxa de juros escorchantes.

Neste momento, percebemos que existe uma reconfiguração do poder global, estamos percebendo o nascimento de um mundo multipolar, onde os eixos econômicos estão saindo das nações desenvolvidas ocidentais para os países asiáticos, que ganharam novas estruturas econômicas e produtivas, passaram a competir com as nações ocidentais e passaram a ganhar espaço na nova configuração da economia internacional, marcada por forte concorrência externa, grandes investimentos em ciência e tecnologia, maciços dispêndios nos setores educacionais e melhora na estrutura produtiva, saindo de nações exportadoras de produtos primários de baixo valor agregado para uma estrutura mais tecnológica, centradas em produtos industrializados e dotadas de mercadorias de alto valor agregado.

Numa economia altamente concorrencial, marcada pelos fortes investimentos em tecnologia, educação e inovação, onde os Estados Nacionais usam todos os instrumentos para fomentar seus setores econômicos e produtivos, como estamos vendo nos países desenvolvidos que despejam trilhões de dólares para fortalecer seus setores produtivos, faz-se necessário que as economias estejam estabilizadas, estimulando a confiança e a credibilidade, para atrair novos investimentos internos e externos, desta forma, percebemos que a melhora econômica da economia brasileira pode abrir novos horizontes para investimentos e melhorar o ambiente de negócio, deixando de ser vistos como um pária internacional e retomando um lugar de destaque no cenário internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/07/2023.

Violência nas escolas é também reflexo de quem nós somos, por Belinda Mandelbaum

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Instituições de ensino e famílias reproduzem lógicas de mercado e trabalho, causando adoecimento, intolerância e vergonha

Belinda Mandelbaum, Psicanalista e professora titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP. Autora de “Psicanálise da família” (Artesã, 2020) e “Trabalhos com famílias em Psicologia Social” (Blucher, 2023)

Folha de São Paulo, 23/07/2023

Ficamos horrorizados ao tomar conhecimento de episódios de violência em escolas, que resultaram no brutal assassinato de crianças, adolescentes e adultos, e em traumas psíquicos que perduram naqueles que testemunharam esses acontecimentos de perto ou de longe.

Diante desse horror, nós, pais e educadores, nos perguntamos atordoados o que fazer para auxiliar nossas crianças a lidar com essa brutalidade, de forma a elaborarem pessoal e coletivamente o possível, e não perderem o gosto e a confiança na escola, sentimentos que ficaram abalados em tantos de nós.

Parte do modo de darmos sentido a esses acontecimentos é buscar explicações que, no geral, tendem a se deter nas patologias mentais dos perpetradores. E isto, de fato, é parte da explicação: os assassinos via de regra têm histórias pessoais traumáticas, resultantes de violências sofridas na infância e juventude, como maus tratos e humilhações em casa, na escola, na rua.

Mas, alguma reflexão que conseguirmos fazer sobre essas histórias pessoais já nos obriga também a ampliar o nosso foco de compreensão das causas e sentidos da violência, que partem da psicologia dos perpetradores e vão em direção à constatação de como atos de violência física, psicológica e moral fazem parte do cotidiano das instituições de ensino. Se manifestam em diversificadas práticas de agressão, desrespeito e humilhação, e ocorrem com maior frequência quando as vítimas são ou mostram-se mais vulneráveis por quaisquer diferenças que se apresentem.

Raça, gênero, orientação sexual, classe social, incapacidades físicas ou psicológicas são algumas delas.

Crianças e adultos no espaço escolar podem ser estigmatizados e discriminados por mínimas diferenças em relação aos padrões socialmente valorizados. Todos temos ou já tivemos essas experiências: há violência dentro e fora da sala de aula, nas atividades esportivas e recreativas –por exemplo, quando os jogos perdem as suas potencialidades de prazer, cooperação e socialização para se tornarem competições frenéticas e desesperadas pela superação e alcance dos melhores desempenhos.

A escola hoje, tal como uma empresa, foi tomada por uma lógica competitiva e avaliativa, reproduzindo em seu interior os modos hegemônicos das relações de mercado e trabalho. A escola “prepara” os alunos para o mundo da competição, da (auto)avaliação contínua, da exigência de incessante superação das metas, até o limite da exaustão. E não dar conta ou adoecer pode ser alvo de intolerância e vergonha.

Tudo ocorre tal como nos games, em que aos vencedores há a promessa de riqueza e sucesso, e aos perdedores resta a humilhação, a exclusão, até o extermínio. Isto está em toda parte hoje, como uma ideologia que tende a ser totalitária em nossas vidas. Está também dentro das nossas casas, nas expectativas e ansiedades que vivemos em relação a nós mesmos e aos filhos desde o nascimento.

Enfraquecer ou adoecer se tornou sinônimo de intolerância e vergonha. É preciso repensar esse modo de vida, pelo mal que nos tem causado no corpo, na mente e nas nossas relações em todos os espaços sociais, ainda que a tendência seja estarmos convencidos de que não há alternativa, não há outra forma de viver.

Mas, a conversa em casa e na escola a partir das violências ocorridas e seu impacto em todos nós, crianças e adultos, pode já ser parte de outra forma de viver. Assim, abrimos uma brecha, um espaço e um tempo para que o outro se sinta à vontade para falar do seu jeito, do que sente e pensa, de suas fantasias, temores e ansiedades. Sem julgarmos, apenas ouvindo, acolhendo e pensando juntos, podemos ser transformadores de modos profundos, surpreendentes e inusitados.

Quem sabe assim também possamos nos dar conta de nossas próprias violências.

Lula quer taxar os muito ricos, por Celso Rocha de Barros.

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Regime atual da taxação dos fundos exclusivos é aberração evidente

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 23/07/2023

O governo Lula vai tentar cobrar mais impostos dos muito ricos. O Ministério da Fazenda planeja propor novas regras para tributar os fundos exclusivos, um tipo de aplicação financeira para quem tem muitos milhões para investir.

Dá até vergonha explicar isso, mas, pelas regras atuais, os ricos que aplicam no fundo exclusivo “Guedes Totoso” pagam menos impostos que a classe média que, por exemplo, investe no fundo de renda fixa “Merreca DI”. Para um resumo das vantagens que isso proporciona aos investidores, sugiro a reportagem de Lucas Bombana publicada na Folha da última quinta-feira.

O governo defende que os fundos dos milionários e os fundos da classe média sejam sujeitos às mesmas regras. Não chega a ser nada muito bolchevique.

Nesse ponto, você pode estar pensando: rapaz, o Brasil está com problema nas contas públicas faz muitos anos. Já tinham cortado dinheiro de tudo que era lado, e só agora notaram que milionário pagava imposto de menos?

Todo mundo sempre soube. Mesmo governos de direita, como Temer e Bolsonaro, cogitaram mudar a regra dos fundos exclusivos, mas não conseguiram fazer a proposta andar. Uma vez perguntei ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso porque não tornar os impostos brasileiros mais progressivos (isto é, fazer os ricos pagarem proporcionalmente mais).

Ele me respondeu que todo mundo sabia que tinha que ser feito, mas que os interesses contrários eram fortes no Congresso. Foi a mesma resposta que obtive quando entrevistei petistas graduados para meu livro sobre o PT: ninguém propunha porque todo mundo sabia que ia perder.

E se você leu isso e pensou, “bom, então o problema é o Congresso, é a democracia”, errou. No estatuto da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que apoiava a ditadura militar constava: “por um sistema tributário justo, instrumento do desenvolvimento econômico e de redistribuição social, através de crescente utilização dos impostos pessoais e diretos, de caráter progressivo” (artigo 2, alínea “i”). Apesar dessa declaração de intenções, a desigualdade de renda aumentou enormemente durante a ditadura.

Não é fácil cobrar imposto de rico.

Entretanto, há um bom motivo para que mesmo governos de direita recentes tenham pensado em mexer nos fundos exclusivos. O Brasil enfrenta uma crise fiscal terrível há muitos anos. Qualquer um que assuma a Presidência do Brasil vai ter que sair procurando de onde tirar dinheiro sem gerar uma crise social. Os pouco mais que 2.500 investidores que aplicam um total de mais de R$ 700 bilhões em fundos exclusivos provavelmente sobreviverão bem se tiverem que pagar um pouco mais de imposto. Isso não é verdade sobre a maioria dos brasileiros.

A proposta sobre os fundos exclusivos não deve ser confundida com outro projeto do governo, a reforma do Imposto de Renda, que deve ficar para o ano que vem e é um assunto mais complexo, que exigirá mais negociação.

O regime atual da taxação dos fundos exclusivos é uma aberração evidente, algo que faria o Von Mises cantar a “Internacional” tomado de indignação.

Torço para que isso torne a proposta do governo Lula mais fácil de aprovar. O exemplo dos outros governos mostra que talvez não seja o caso.
Mas é para pelo menos tentar essas coisas que os brasileiros votam na esquerda.