‘Sociedades polarizadas não têm mais espaço para presidente popular’, diz professor

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Timothy Power, cientista político da Universidade Oxford, diz que manter coalizão deve ser mais difícil agora para Lula

ANGELA PINHO

FOLHA DE SÃO PAULO – 26/12/2022

Dificilmente um presidente terá a aprovação de mais de 50% da população em sociedades muito polarizadas com as do Brasil e Estados Unidos, avalia Timothy Power, chefe da divisão de Ciências Sociais da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

O desafio de furar a bolha, em sua opinião, vale mesmo para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), personagem que Power vê como caso único por liderar um mesmo partido em uma democracia por mais de 40 anos.
Professor de política com foco em América Latina, Power falou sobre as possíveis saídas para a polarização em evento da Fundação Lemann com a Blavatnik School of Government de Oxford no fim de novembro.

Com português fluente e detalhado conhecimento da política brasileira, ele avalia em entrevista à Folha que, apesar da capacidade de negociação de Lula, será mais difícil formar uma base ampla agora do que em 2003, entre outras razões devido à maior dificuldade de atrair parlamentares de estados bolsonaristas.

Em sua opinião, acenar ao centro na coalizão governista, o que ainda não aparece com força nos anúncios de ministros, será fundamental. Nesse sentido, a participação de Simone Tebet é importante, mas o tamanho da votação da senadora não lhe dá muito poder político no momento em que a Esplanada de Lula é definida.

Comentando a saída da Liz Truss [do cargo de primeira-ministra], Lula falou que ela não tinha tamanho para lidar com a crise do Reino Unido. Lula tem tamanho para lidar com a situação no Brasil, com crise social e gente protestando até agora em frente aos quartéis?

Tamanho ele tem. Ele começou em 2002 com condições bastante adversas e conseguiu formar uma coalizão e, ao longo do tempo, aumentá-la. Eu acho que vai ser mais difícil essa vez do que foi em 2002, por várias razões.
Em 2003 e 2004, a grande conquista foi trazer o PMDB para o governo.

Hoje, o MDB é um partido muito reduzido em tamanho e o PSDB tem mais ou menos tamanho do PSOL na Câmara. Vai ser mais difícil conquistar um centro que é mais superficial e reduzido. Em segundo lugar, muitos deputados eleitos em estados que votaram para Bolsonaro vão ter mais dificuldade em entrar na coalizão porque a situação hoje é muito mais polarizada. O custo de aderir ao governo petista em 2003 era menor do que é hoje se você vem de um estado como Santa Catarina, Paraná e Distrito Federal. E, em terceiro lugar, tem o quadro econômico externo, que não tem as mesmas condições favoráveis de 2003.

O senhor vê alguma chance do Lula terminar de novo o mandato com 83% de popularidade?

Eu acho que, em sociedades polarizadas, não existe mais espaço para presidentes populares. Por exemplo, nos Estados Unidos não vai ter mais presidente popular, porque o teto de aprovação é 50% e você não consegue ultrapassar. O Lula com muita sorte podia fazer isso, mas o teto será bem menor do que 83%.

Por que dificilmente um presidente hoje vai ter mais que 50% de popularidade?

Os índices de rejeição a Lula e Bolsonaro foram muito previsíveis ao longo do ano todo, 45% a 55% dos eleitores rejeitavam totalmente a outra proposta. Isso de certa forma permanece, então existe um teto de vidro de 50%, um pouco mais, de popularidade para o presidente no primeiro ano. Quando a ressaca eleitoral terminar, e se as condições externas melhorarem um pouco, o Lula pode levantar esse teto, mas ele começa de uma base muito afetada pela ressaca eleitoral. Nos Estados Unidos é a mesma coisa, Biden e Trump nunca vão ultrapassar 50%.

A polarização é um cenário que já está dado ou tem algo que o governo eleito pode fazer para furar esse muro entre as duas quase metades do eleitorado?

Não vai ser fácil. Na campanha, o Lula deu sinais de que queria quebrar esse muro. O grande contraste foi justamente a indicação dos respectivos candidatos a vice-presidente. Todo mundo sabe que candidato a vice não agrega muita coisa matemática, mas tem valor simbólico muito grande de sinalizar aos adversários para o centro.

Lula escolheu Alckmin. O Bolsonaro tinha a mesma chance de sinalizar e optou por substituir um general por outro general. Desperdiçou a possibilidade de sinalizar e você vê as consequências. Podia ter virado o jogo numa eleição tão apertada.

Agora, sinalização não é a mesma coisa que conquistar cadeiras na Câmara ou compor um governo de transição. O importante é repetir o exemplo de Alckmin em cargos ministeriais. Os primeiros nomes que a gente vê anunciados vêm do PT. Deveria haver mais nomes de natureza simbólica, como o Alckmin, mas em cargos importantes.

Como se chegou a esse grau de polarização?

Há uma distinção entre polarização macropolítica e micropolítica. Na macropolítica, você define quem são os inimigos e não se posiciona em termos de políticas públicas ou decisões, você simplesmente sabe que, se aquela ideia veio do outro lado, é uma ideia ruim e não precisa mais ter debate. Tem muito a ver com a disseminação de mídias sociais, a simplificação de mensagens, a rapidez, desinformação, a falta de checagem dos fatos.

A polarização micropolítica é outra coisa. É a polarização dentro das famílias, na mesa do jantar, no lugar de trabalho, na rua. É o estresse que a polarização política impõe nas relações interpessoais, para mim, uma coisa que que foge à tradição brasileira.

Quais são as possíveis saídas?

Para a polarização micropolítica, não há uma resposta fácil. Já a polarização macropolítica pode ser quebrada por ação inteligente por parte das elites.

No Brasil, sempre houve duas instituições que atenuam a polarização na máquina política. A primeira é o presidencialismo de coalizão. Nenhum presidente chega com maioria a pré-fabricada, então as pessoas têm que formar maioria com negociação e coalizões nacionais. A outra instituição que atenua a polarização no Brasil é a governança multinível, municipal, estadual e federal. Muitos países têm apenas dois níveis ou um. Com três, as coalizões e as famílias políticas às vezes são incongruentes entre os níveis, e é natural que o palanque de um político em um município seja um, e em um estado seja outro. Os políticos brasileiros já estão acostumados com as essas incongruências, e isso ajuda a quebrar a polarização que existe numa eleição presidencial. Os anos de 2002 e 2022 foram sobre decidir o nome do futuro presidente, mas a formação de governo e a prática de executar políticas públicas despolarizam. E o Lula é mestre e fazer coalizões imprevisíveis. Ele gosta de recrutar o inimigo para o lado dele.

Como disse, será mais difícil em 2023 do que era em 2003. Mas também não é impossível.

A raiz da polarização está só rede social ou dá para pensar em outros fatores?

As instituições políticas, as organizações e os movimentos sociais perderam espaço para os meios sociais. Quando Lula formou um partido, a grande arma do PT eram os sindicatos. Mas hoje uma conta de WhatsApp pode valer uma CUT [Central Única dos Trabalhadores], porque a agilidade e o custo de mobilização foram muito reduzidos. Isso gera muita imprevisibilidade e é muito diferente de uma campanha tradicional, com partidos, sindicatos, movimentos sociais com bandeiras e plataformas consistentes. Havia, quem sabe, menos mobilização intereleitoral, porque hoje mesmo nos anos não eleitorais os meios sociais continuam muito ativos. E esse é outro traço do populismo. O populista, quando ganha, não governa, continua em campanha. Foi uma característica do Bolsonaro e do Trump. O imediatismo político é muito acentuado neste momento.

Quais são os pontos de diálogo possível com os bolsonaristas?

Um pacto nacional para a incentivar o crescimento econômico seria o ponto número 1, o segundo a reconstrução dos serviços públicos, da saúde, da segurança pública, depois desses anos de bolsonarismo e pandemia. Temas culturais, de identidade e de direitos reprodutivos voltam à polarização eleitoral imediatamente.

Essa é uma preocupação frequente. O que que as minorias, a população LGBTQIA+, por exemplo, podem esperar de um governo como esse?

Se eu participasse de qualquer movimento social no Brasil, estaria muito otimista, mas otimista em relação aos últimos quatro anos, não em relação à agenda total dos grupos. O PT tem uma tradição de trazer os movimentos sociais para o cerne do governo, com a Secretaria-Geral da Presidência da República.

Agora a criação de secretarias especiais, por exemplo, é mais difícil, porque isso infla o tamanho do ministério com pouco retorno político para o governo. Durante o mandato, o Lula aumentou o número de ministérios, e muitos eram ou criados para abrigar quadros do partido, como Cidades, ou como no caso de desmembrar reforma agrária e agricultura. Isso me parece uma estratégia defasada e sem muita eficácia neste momento.
Lula já declarou que não quer tentar a reeleição em 2026. O que isso muda para pensar as forças internas do governo?

Em vários outros momentos no passado, o Lula já tinha levantado a hipótese de o PT apoiar outro nome fora do partido, como o Eduardo Campos. Sempre houve resistência interna. Mas acho que falar isso também é uma mensagem interna para o partido de que é o momento de começar a pensar em nomes pós Lula. Olhando para todo o planeta, é muito difícil pensar em outros exemplos de partidos políticos que têm tido o mesmo líder há 43 anos.
Simone Tebet, caso entre no governo, estará numa situação peculiar, porque o governo vai abrigar alguém que muito provavelmente vai concorrer contra algum candidato do PT em 2026. Como vê a situação dela?

O comportamento dela na eleição foi extremamente corajoso. Ela arriscou tudo para apoiar o Lula, sabendo que, se ela errasse nessa estratégia, a carreira política dela acabaria em um minuto. Se o Bolsonaro tivesse vencido, seria muito difícil ela continuar, mas ela acertou na aposta. Acho importante o Lula usar esse nome para sinalizar novamente aos setores econômicos ao redor dela, aos quais a esquerda tem pouco acesso.

Agora ela teve 4% dos votos para presidente. É preciso cumprimentar as pessoas que tiveram um papel coadjuvante importante, mas não é algo que dá muito poder político a essas pessoas.

Como tem visto o papel do Judiciário no processo político? É uma jabuticaba?

É uma certa jabuticaba. [O ministro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral] Alexandre de Moraes é uma pessoa que defende com total energia a autonomia da Justiça Eleitoral exatamente no momento em que a Justiça eleitoral precisava dessa energia. Obviamente, é uma personalização muito forte da imagem da Justiça Eleitoral. A gente pode imaginar um imaginar uma utopia democrática, em quem ninguém sabe o nome de nenhum ministro da Justiça Eleitoral ou do Supremo, como era há 30 anos no Brasil, mas não é mais assim. Mas eu acho que todo poder tem que defender a sua autonomia. E Moraes fez isso de maneira impecável.

Que outra diferença em relação ao cenário internacional o senhor assinalaria?

Uma coisa que eu admirei muito sobre o processo eleitoral foi a agilidade do sistema eletrônico de contagem de votos. A gente sabia que era assim, mas não sabia o valor dessa agilidade no contexto político. A votação terminou às 17h e, antes das 20h, já tinha os parabéns do presidente da Câmara, dos governadores etc. Isso tirou o espaço do Bolsonaro e aliados para contestar. O tempo é importante, e Brasil chegou a uma técnica eleitoral que encurta o tempo de reconhecimento do resultado final, dando legitimidade ao resultado em poucos minutos. Nos Estados Unidos, entre a eleição em 4 de novembro e a certificação no Senado, houve dois meses para o pessoal do Trump preparar ações desestabilizadoras e premeditadas. Ao longo do ano, Bolsonaro lançou uma série de dúvidas sobre o sistema eletrônico, mas, como que vocês dizem, o feitiço virou contra o feiticeiro.

Uma agenda para o governo Lula, por Oded Grajew

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Com participação da sociedade, combate à desigualdade pode ser maior legado

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis; fundador e ex-presidente da Fundação Abrinq e ex-assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003)

Folha de São Paulo, 26/12/2022

O Brasil tem uma das maiores economias do mundo. É vergonhoso, portanto, que seja um dos países mais desiguais. Aqui, 5% concentram 95% da renda, e 1% possui metade das riquezas nacionais.

A desigualdade não é apenas econômica e financeira. Ela se desdobra em todas as áreas da sociedade brasileira: social, racial, de gênero, etária, ambiental, alimentar, educacional, de saúde, cultural, habitacional,
territorial, de assistência social, política. São muitas desigualdades que se interconectam e se retroalimentam.

Sem reduzir as desigualdades, não há a mínima chance de o Brasil se tornar um país decente e desenvolvido —isso sem falar do imperativo moral e ético.

Apesar das várias tentativas ao longo do tempo de diminuir as desigualdades, elas nunca se reduziram de forma permanente e sustentável. Precisamos inovar, promover transformações estruturais que vão às causas, não apenas aos sintomas das desigualdades; de ações permanentes e multissetoriais, envolvendo governos e sociedade, duradouras, indo além dos mandatos dos governantes. O futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deveria:

1 – Eleger a redução das desigualdades como a grande prioridade do governo (não apenas reduzir, mas eliminar a fome de forma permanente seria uma consequência da redução da desigualdade alimentar);

2 – Criar o Observatório Brasileiro das Desigualdades, selecionando os principais indicadores das desigualdades que precisam ser atacados e acompanhados;

3 – Estabelecer metas nacionais e anuais para a melhoria de cada indicador;

4 – Envolver todos os ministérios, agências e estatais no combate às desigualdades, assumindo indicadores, metas e planejando ações;

5 – Aproveitar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, os conselhos temáticos nacionais e outros espaços para mobilizar e engajar a sociedade no combate às desigualdades (sindicatos de trabalhadores, empresas e associações empresariais, acadêmicos e instituições de ensino, ONGs, igrejas, agentes e entidades culturais, prefeitos, governadores, Legislativos federal, estaduais e municipais etc.). Cada cidadão e cidadã teriam como colaborar;

6 – Promover ações, seminários e publicações com propostas, exemplos e referências nacionais e internacionais;

7 – Apresentar um balanço anual da evolução dos indicadores;

8 – Visibilizar e premiar as ações exemplares;

9 – Criar uma instância intergovernamental para coordenar o programa.

A redução das desigualdades raramente esteve nas pautas dos governos como prioridade —embora deveria ser, assim como manda a nossa Constituição. Porque reduzir as desigualdades seria redistribuir recursos e poder. E a minoria da sociedade brasileira que tem o poder e a maioria dos recursos, com poucas e honrosas exceções, raramente se dispôs a redistribuir seu poder e seus recursos. Os países de melhor qualidade de vida são aqueles de menor desigualdade. Sem reduzir as desigualdades, o Brasil continuará a ser o país da pobreza, da fome e dos conflitos. O governo Lula, com a participação da sociedade, tem a oportunidade de assumir essa histórica missão. Seria seu maior legado.

Pobre no orçamento, rico no imposto de renda, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Por Paulo Nogueira Batista Júnior

A Terra é redonda – 19/12/2022

O Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários

Posso falar do Lula outra vez? Pergunto e eu mesmo respondo: posso! Afinal, este é o derradeiro artigo do ano de 2022. E quem foi a grande figura deste ano tão difícil que atravessamos? Existe salvador da pátria? Se existe, nós sabemos quem é.

Não pense, leitor, que este parágrafo inicial entusiasmado signifique admiração fervorosa e irrestrita pelo presidente eleito. Não! Tenho minhas reservas, minhas dúvidas. É natural. Ninguém é perfeito e ninguém merece ser poupado de críticas. E o papel de pessoas como eu será não apenas apoiar, mas também criticar, se necessário, o futuro governo brasileiro.

E, em especial, cobrar o cumprimento das promessas de campanha. Por exemplo, o candidato Lula disse diversas vezes que pretendia “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Perfeito. Nada mais justo, nada mais necessário.

O que significa essa fórmula feliz? Duas coisas, pelo menos. Primeiro, modificar a composição do gasto público. E, em segundo lugar, aumentar a tributação sobre os super-ricos.

Vamos por partes, à moda de Jack, o Estripador. Do lado do gasto, o importante é assegurar que os programas governamentais beneficiem em primeira instância os pobres, os miseráveis, os mais necessitados. No jargão eufemístico do economista: as pessoas de baixa renda. Fundamental, portanto, abrir espaço no orçamento para aumento expressivo das transferências sociais, inclusive o Bolsa Família, para o aumento do poder de compra do salário-mínimo e, também, para maiores despesas de educação e saúde focadas no mais pobres. Merenda escolar, por exemplo. Farmácia popular, outro exemplo. Também moradia. Transporte público.

Veja, leitor, que falei em “abrir espaço”. Isso significa cortar gastos supérfluos, que beneficiam os mais aquinhoados. Como declarou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckimin, será preciso passar um pente fino nas despesas de governo e identificar o que pode e deve ser cortado, os programas ineficientes, de baixa qualidade, e em especial as despesas que beneficiam os super-ricos, aqueles que já têm renda e riqueza em excesso. Isso inclui, diga-se de passagem, rever as isenções e os incentivos tributários, os chamados gastos tributários, que representam nada menos que R$ 371,1 bilhões em 2022, o equivalente a quase 4% do PIB, segundo estimativa da Receita Federal.

Bem sei que tudo isso é muito mais fácil de escrever do que de colocar em prática. Para cada programa ineficaz e de baixa prioridade, para cada incentivo fiscal inútil ou duvidoso, existem um ou mais grupos de interesse, não raro poderosos, que lutam para preservar os seus privilégios. E logo aparece, do lado do governo, a turma do deixa disso, sempre disposta a contemporizar. Se o presidente da República der ouvidos a esse pessoal, nada de importante será feito.

A linha de menor resistência, leitor, será sempre sobrepor os programas sociais aos programas ineficazes e concentradores de renda já existentes. Pequeno problema: o nível do gasto público é alto no Brasil. Novos aumentos serão difíceis de conciliar com a estabilidade e o desenvolvimento da economia.

E do lado da receita? Nesse ponto, o nível de embuste das discussões econômicas habituais alcança uma espécie de ponto máximo. O assunto é vasto. Tratarei de apenas alguns aspectos. Dedico, em todo caso, um pouco mais de espaço a esse lado da questão, que tende a ser negligenciado (et pour cause!).

De fato, é fundamental colocar os ricos no imposto de renda, como disse o candidato Lula. Melhor dizendo: colocar os super-ricos. Importante não deixar margem para exploração política ou politiqueira. Não se trata de aumentar a carga tributária sobre a classe média, que já é elevada. E muito menos sobre a população pobre, que suporta a pesada carga de tributos indiretos. Os super-ricos, que dominam a mídia tradicional, conseguem normalmente vender como aumento de impostos sobre “a sociedade” qualquer tentativa de fazê-los contribuir um pouco mais para o funcionamento do Estado.

Eis a verdade incômoda: o Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação.

Ora, o nosso país é um dos mais desiguais do planeta. Em 2021, de acordo com o IBGE, o 1% mais rico da população tinha uma renda média 38,4 vezes mais alta do que a renda média dos 50% mais pobres. Repare, bem, leitor: 38,4 vezes! Um dos fatores que contribuem para isso é a injustiça do sistema tributário. Em 2019, um único brasileiro declarou renda de R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1,3 bilhão em dividendos livres de tributação!

A quantidade de injustiças da tributação brasileira não cabe em um artigo. Remeto a meu livro mais recente, O Brasil não cabe no quintal de ninguém, que traz, na sua segunda edição, um texto um pouco mais alentado sobre a subtributação dos super-ricos. E pretendo voltar ao assunto, nesta coluna, em 2023.

Por ora, listo alguns exemplos escandalosas. O imposto de renda da pessoa física se torna regressivo após a faixa de 30 a 40 salários-mínimos (isto é, tributa proporcionalmente menos as rendas mais elevadas). A renda do capital é isenta na pessoa física ou sujeita a tributação proporcional ou de baixa progressividade. A alíquota marginal máxima é pequena (em tese e do ponto de vista da justiça, nada impede estabelecer alíquotas marginais mais elevadas sobre os super-ricos). Além disso, a não correção da tabela progressiva sobrecarrega a classe média, inclusive a classe média baixa.

A injustiça é maior do que se imagina. Em 2020, para os declarantes que ocupam o topo da pirâmide (os 0,01% mais ricos), 63% dos rendimentos ficaram isentos, em média, e 30% sofreram tributação exclusiva na fonte! Ou seja: apenas 7% dos rendimentos, em média, entraram na tabela progressiva. Em 2020, a alíquota efetiva média dos 0,01% mais ricos foi de apenas 5,4%, próxima à dos assalariados que recebem em torno de R$ 6.500 mensais! (Dados da Receita Federal, que me foram repassados pelo auditor fiscal Paulo Gil Hölck Introíni.)

O Brasil é ou não é um tremendo paraíso fiscal para os super-ricos?

A tributação da riqueza também é modesta. Heranças e doações estão sujeitas à alíquota máxima de 8%. Iates e aviões particulares estão isentos de IPVA. O imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição de 1988, nunca foi criado. O Imposto Territorial Rural corresponde a apenas 0,1% da arrecadação federal.

Para completar o quadro, as fragilidades da administração tributária, agravadas durante o governo de Jair Bolsonaro, permitem que os bilionários escapem dos impostos com relativa facilidade. Praticam o chamado planejamento tributário, com assessoria de advogados tributaristas regiamente remunerados.
Os beneficiários desse paraíso tributário são exatamente os mesmos que, por intermédio dos seus serviçais – uma legião de economistas e jornalistas econômicos –, entopem a mídia tradicional com clamores por “responsabilidade fiscal”.

Veremos o que o novo governo fará para colocar “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. A resistência à mudança será grande, como sempre, mas é uma luta que vale a pena.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

O que é comunismo? por Wagner Miquéias Damasceno

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Wagner Miquéias Damasceno

A Terra é redonda – 18/12/2022

O grande responsável pelo crescimento da curiosidade sobre o comunismo é o próprio capitalismo
Dentre as perguntas do tipo “o que é”, feitas no Google Brasil, aquela que mais cresceu neste ano foi “o que é comunismo”. É o que revelou levantamento do próprio Google, na semana passada
Sem dúvida, tamanha curiosidade no país se deve, em parte, à campanha de demonização feita por Jair Bolsonaro e pelo falecido Olavo de Carvalho, que elegeram o comunismo como “o” alvo de suas ofensivas ideológicas.

Mas o grande responsável pelo crescimento da curiosidade sobre o comunismo é o próprio capitalismo. Sim, o capitalismo. Vejamos: apenas nos três últimos anos (a) vimos o surgimento da pandemia da COVID-19, que ceifou mais de 6,6 milhões de vidas em todo o mundo; (b) assistimos o aumento da concentração de renda, onde 2 mil bilionários têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas; (c) sentimos na pele de forma cada vez mais drástica as consequências das mudanças climáticas, com prognósticos nada animadores; (d) e acompanhamos a guerra da Rússia contra a Ucrânia que reavivou o temor de uma nova guerra mundial.
Diante disso, é natural que as pessoas queiram conhecer uma alternativa ao capitalismo.

Um espectro ronda (novamente) o mundo

No Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels perguntavam provocativamente: “Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?”.

No Brasil, bolsonaristas acusam partidos como o PT e o PCdoB de serem comunistas; stalinistas, por seu turno, dizem que a URSS sob Stálin era comunista… Mas, afinal, o que realmente é comunismo?

Podemos dizer que a palavra comunismo tem dois sentidos que se conectam: (1) é um movimento político dos trabalhadores; (2) e é uma outra forma de organizar a produção e distribuição de riquezas que criaria, por consequência, uma outra forma de se viver em sociedade.

Os dois sentidos partem da constatação de que a sociedade capitalista é dividida entre duas poderosas classes sociais: burgueses e proletários. Ou, dito de outra forma, capitalistas e trabalhadores. Duas classes cujos interesses são completamente antagônicos já que a fonte da riqueza de uma destas classes advém da exploração da força de trabalho da outra.

Socialismo

Embora seja tratado como sinônimo de comunismo, socialismo e comunismo não são a mesma coisa. Quando falamos em socialismo nos referimos a uma sociedade com um modo de produção surgido de uma revolução dos trabalhadores, onde ainda haverá burguesia e ainda haverá Estado.

Porém, diferente do que acontece no capitalismo, o Estado no socialismo não será controlado pela burguesia, mas pelos trabalhadores que imporão uma “ditadura do proletariado” sobre a burguesia para impedir que ela tome de volta o poder e volte a explorá-los. O verso dessa moeda é que essa ditadura sobre um punhado de burgueses será uma formidável democracia para os milhões de trabalhadores do meio urbano e rural e para a população pobre.

No socialismo, os meios de produção (indústrias, plataformas, grandes extensões de terras, grandes supermercados etc.) deixam de ser propriedade privada dos capitalistas e se tornam propriedades coletivas sob o controle do Estado operário. Estabelecendo planos econômicos, os trabalhadores decidirão sobre o “que”, “como”, “quanto” e “quando” produzir, atendendo as necessidades sociais e, de quebra, acabando com o desperdício. É o fim da anarquia do mercado.

Mas, para tanto, o socialismo deve ir além das fronteiras nacionais, impulsionado por aquilo que Leon Trotsky chamou de revolução permanente.

Comunismo

O comunismo é a evolução do socialismo. Nele, o Estado terá se extinguido assim como as próprias classes sociais que lhe deram vida. A propriedade privada da terra, das indústrias e dos medicamentos serão vagas lembranças, difíceis até de serem explicadas para as futuras gerações.

A concorrência entre os trabalhadores será substituída pela mais genuína cooperação, extinguindo-se, assim, a base material de opressões como o racismo e a xenofobia. Como resultado lógico do desenvolvimento científico e tecnológico alcançado, a jornada de trabalho será reduzida a um mínimo necessário e será decidida e distribuída por produtores livremente associados.

Se hoje o desenvolvimento tecnológico se volta contra os trabalhadores produzindo mais desemprego e intensificando o trabalho, no comunismo isso será radicalmente diferente. A automação do trabalho, por exemplo, será utilizada racionalmente para aumentar a produtividade de riquezas sociais e oferecer tempo livre para os trabalhadores desenvolverem seus interesses e vocações livremente. Praticar esportes pela manhã, trabalhar por três horas depois, atuar em peças de teatro à tarde, desfrutar de um cinema a noite… livre das correntes do trabalho alienado, os seres humanos se reconciliarão com o trabalho e poderão experimentar uma jornada histórica verdadeiramente humana.

*Wagner Miquéias Damasceno é professor de sociologia na UNIRIO. Autor do livro Racismo, Escravidão e Capitalismo no Brasil: uma abordagem marxista (Mireveja) e dirigente da Secretaria Nacional de Negras e Negros do PSTU.

Carta Mensal – novembro 2022

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A Carta Mensal de novembro vem destacando dois fatos que achei relevante para compreender as mudanças em curso na sociedade. De um lado, no âmbito nacional, o assunto mais relevante foi a transição de governo, as pressões dos grupos econômicos, políticos e sociais, buscando angariar mais poder dentro da nova gestão, influenciando as agendas e colocando nos postos chaves seus asseclas, garantindo a manutenção do status-quo dos setores mais organizados e os grupos alijados do poder neste governo que está chegando ao final. Vivemos um momento de grandes conversas, escolhas, decisões e estratégias.

De outro lado, destacamos a COP-27, conferência liderada pela Organização das Nações Unidas (ONU), que pode ser vista como um espaço de conversa e de construção de novas agendas para as questões climáticas.

Desde a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ganho no final de outubro, o mês seguinte foi marcado por grandes expectativas para a sociedade brasileira.

De um lado percebemos as pressões constantes dos grandes grupos econômicos e financeiros para impor sua agenda e seus interesses imediatos, buscando nortear as políticas a ser adotadas pelo próximo governo.

De outro lado, percebemos variadas formas de pressão dos grupos que contribuíram para a eleição do então candidato Lula, na grande maioria grupos de esquerda e centro esquerda, além dos apoiadores da última hora, grupos fundamentais para desalojar o presidente Jair Bolsonaro do Palácio da Alvorada, inaugurando novos rumos para a sociedade brasileira.

Neste mês de novembro percebemos grandes espaços de construções democráticos para a montagem do novo governo, percebendo que os grupos de influência, os chamados lobbies estão vivos e sedentos de influenciar os novos governantes, não apenas o governo federal mas todos os governos estaduais, uns mais avançados na confecção de seus governos e outros, depois do segundo turno, ainda estão na construção de todas as equipes dirigentes, os integrantes, os projetos e as perspectivas para o ano vindouro.

Em novembro de 2022, a sociedade mundial organizou a chamada COP-27, a 27® Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que ocorreu de 6 de novembro a 18 de novembro em Sharm El Sheikh, no Egito. No evento inúmeros chefes de governo ou chefes de Estados se reuniram para conversar sobre as mudanças climáticos e seus impactos sobre a sociedade internacional, mostrando uma ampla capacidade de organização, planejamento e construção de novos modelos para que a comunidade global, tenham condição de sobreviver as degradações que estão em curso da sociedade mundial. Embora as discussões são imprescindíveis para a comunidade internacional, percebemos que os discursos crescem, mas as medidas efetivas e concretas estão muito longe de serem adotadas.

Neste evento das Nações Unidos, a sociedade brasileira foi representada pelos membros do atual governo e do presidente eleito, onde este último foi convidado pelo governo do Egito para participar e discursar no evento, destacando as heranças do governo atual, as políticas implementadas, elencando as medidas criadas por setores que usam seu poder material para garantir subsídios e a criar desmandos, as desregulações, a fragilização dos órgãos de controle que levariam a sociedade para momentos de inseguranças e instabilidades crescentes, além de desmandos institucionais, com grandes ganhos para os setores do submundo da institucionalidade.

Importante destacar, que no mês de novembro a sociedade brasileira percebeu o crescimento dos grupos de pessoas descontentes com o resultado da eleição do executivo federal, contrários da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, onde milhares de pessoas começaram a se mobilizar maciçamente para protestar, se alojando na frente dos tiros de guerras, clamando pela atuação dos chamados “patriotas” para lutar contra os ideais e os pensamentos dos chamados “comunistas”.

Segundo os grupos descontentes da eleição presidencial, a sociedade precisa se organizar para defender os caminhos da sociedade brasileira, impedindo a posse dos chamados governos de “esquerda”, que querem degradar a família tradicional e, neste momento, é fundamental contar com a atuação e espontânea dos homens e mulheres de “bem” ou de bens….

O mês de novembro foi marcado por grandes discussões dos candidatos eleitos, variadas conversas políticas para a construção das equipes dos novos governos, as conversações com os variados partidos políticos que participaram da formação do novo governo, buscando formas de aparar as arestas dos apoiadores, dirimindo os descontentes, buscando formas de construir a governabilidade política, que é fundamental para que o novo governo tenha força política, instrumentos de gestão e capacidade de influenciar os rumos da sociedade brasileira.

Neste momento de grandes expectativas, os agentes econômicos, políticos e sociais estão se organizando, os setores financistas usam seus poderes econômicos como forma de influenciar o governo sobre as decisões, mantendo tetos de gastos, políticas de austeridades e enfocando os interesses do grande capital.

De outro lado, percebemos o poder dos grupos das elites agrárias e agroexportadores, que não abrem mão dos ganhos fiscais e tributários, lutam contra a tributação progressiva e usam seus instrumentos de poder para influenciar e defender seus interesses locais, seus ganhos elevados, créditos fartos, taxas de câmbio desvalorizada e facilidades crescentes, com isso, garantem a perpetuação de seu poder na comunidade.

Destacamos os interesses dos trabalhadores organizados, setores que estão em amplo desgaste político e fragilizações econômicas, setores que congregam os sindicatos, associações e setores que lutam para destruição total, grupos que estão sendo devastados pelo crescimento da tecnologia, gerando uma parte substancial da classe média sem recursos, sem trabalhos, sem perspectivas e sem esperanças, vivendo ou sobrevivendo num verdadeiro caos generalizado.

Neste ambiente, destacamos as organizações dos grupos desorganizados, grupos informais, grupos sem unidade política, grupos sem identidades e todos os grupos invisíveis que vivem ou sobrevivem arduamente, passando fome, sem dignidade, sem condições dignas de sobrevivência, sem emprego, sem renda e sem esperança de dias melhores.

Novembro sentiu na pele os grandes desafios dos gestores da sociedade brasileira em 2023, desafios, oportunidades, estratégias e planejamentos são conceitos fundamentais para compreendermos que o futuro da nação deve ser construído fortalecendo a democracia, ampliando os direitos sociais, reconstruindo políticas públicas e atuando diretamente sobre o modelo econômico que rege a sociedade nacional, sem entrarmos nas discussões do modelo econômico todas as reflexões são despropositadas.

O mês de novembro nos traz um grande xadrez da sociedade contemporânea, o êxito do novo governo só será conseguido se as demandas forem atendidas, se o governo conseguir mostrar que o desenvolvimento é fundamental para toda a nação, a diversificação econômica é imprescindível, o ensino de qualidade é uma condição central para revertermos as dívidas acumuladas em duzentos de exploração social, pilhagem econômica, instabilidades políticas e degradação ambiental.

Ary amos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Por trás do debate sobre “equilíbrio fiscal” por José Luís Fiori

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O Brasil precisa de um governo capaz de afirmar sua opção incontornável pela conquista de uma sociedade mais justa e igualitária. Mesmo sob a resistência dos “operadores de mercado”, que não representam 1% da população brasileira

José Luís Fiori – OUTRAS PALAVRAS – 12/12/2022

Artigo publicado originalmente pelos Cadernos CRIS/Fiocruz 23/2022 – Título original: Uma ladainha sem fim e uma pequena história exemplar

Agentes econômicos têm manifestado preocupação com o risco de uma onda de gastos desenfreados na nova gestão – o que poderia minar os indicadores fiscais do país e aumentar a percepção de risco, grande depreciação cambial e maior pressão inflacionária. Com um Banco Central independente, isso poderia ser traduzido em juros altos por mais tempo e mais dificuldades para crescer.

Mortari, M.“A. Fraga, E. Bacha e P. Malan enviam carta a Lula e alertam para risco fiscal”. InfoMoney, 17 de novembro de 2022

O debate econômico sobre a questão do “equilíbrio fiscal” é tão antigo e tão repetitivo que às vezes lembra uma polifonia medieval, em que as vozes se alternam repetindo as mesmas frases e os mesmos acordes infinitas vezes, como se fosse um mantra, ou uma “ladainha sem fim”. O fraseado pode mudar através do tempo, mas a essência dos argumentos é sempre a mesma, há mais de 200 anos. Seja pelo lado dos liberais ou monetaristas, que defendem o imperativo absoluto do “equilíbrio fiscal”, seja pelo lado dos desenvolvimentistas ou keynesianos, que consideram que o crescimento econômico exige políticas fiscais menos rígidas e mais expansionistas.

Apesar de longevo, este debate nunca teve nem terá uma conclusão clara e definitiva, simplesmente porque não se trata de uma divergência acadêmica, ou puramente científica, e envolve sempre os interesses de “agentes econômicos” e classes sociais que são muitas vezes antagônicos e excludentes. Além disso, para confundir ainda mais a discussão, constata-se através da história que, em distintas circunstâncias, as mesmas políticas econômicas podem ter resultados completamente diferentes, dependendo do poder e do grau de soberania de cada governo.

Poucos são os economistas que conseguem reconhecer e aceitar que este nunca foi um debate
teórico, e que no campo da política econômica não existem verdades absolutas. Pelo contrário, qualquer decisão que seja tomada envolverá sempre uma arbitragem política, que deverá ser feita em função dos objetivos estratégicos e dos interesses particulares que cada governo se proponha defender ou priorizar. Basta olhar para o caso do governo brasileiro atual, paramilitar e ultraliberal, que foi apoiado incondicionalmente pelo mercado financeiro e por seus economistas “ortodoxos” que nunca se alarmaram ou protestaram quando o governo ultrapassou seu próprio “teto fiscal” em mais de 700 bilhões de reais. Bem diferente do comportamento alarmista que adotaram recentemente frente às primeiras medidas sociais anunciadas pelo governo progressista que acabou de ser eleito, e cujo custo não chega aos pés da “gastança eleitoral” apoiada pelos militares, pelos seus economistas e por todo o mercado financeiro.

No Brasil, essa “polifonia inconclusa” começou já na segunda metade do século XIX, com a
oposição entre os “metalistas” e os “papelistas”, e suas diferentes visões a respeito do gasto público e da “neutralidade da moeda”. Uma divergência que se prolongou durante todo o século XX, colocando de um lado os monetaristas, ortodoxos, ou liberais, como Eugenio Gudin, Roberto Campos e seus discípulos; e do outro, os estruturalistas, keynesianos, ou desenvolvimentistas, como Roberto Simonsen, Celso Furtado e todos os seus discípulos, até nossos dias. Foi na vã tentativa de incorporar e conciliar os dois lados que Getúlio Vargas inaugurou uma solução prática que depois se tornou quase uma norma dos “governos desenvolvimentistas”, mesmo conservadores, colocando um “monetarista” ou “fiscalista ortodoxo” no Ministério da Fazenda, e um “desenvolvimentista” ou “gastador”, na presidência do BB, e depois de sua criação, no Ministério de Planejamento.

Essa disputa, entretanto, começou muito antes das agruras brasileiras. Não por acaso, a obra fundacional da Economia Política publicada por William Petty chamou-se “Tratado sobre impostos e contribuições”, e foi publicada em 1662 para dar conta dos desequilíbrios entre as “receitas” e as “responsabilidades fiscais” da coroa inglesa, envolvida naquele momento em várias guerras sucessivas com a Holanda, e logo em seguida, numa prolongada disputa militar com a França. E o mesmo se pode dizer a respeito da obra mais famosa de Adam Smith, A riqueza das nações, publicada em 1776, no momento exato em que a Grã-Bretanha enfrentava o problema da grande “perda fiscal” de sua principal colônia norte-americana.

Se recuarmos ainda mais no tempo, descobriremos que esta mesma questão ou disjuntiva se colocou para todos os grandes impérios ou poderes territoriais que se propuseram a aumentar sua produção de excedente econômico para poder expandir seus territórios. Senão vejamos, relendo de forma muito rápida um episódio da história chinesa, paradigmático e exemplar, que pode ajudar-nos a clarificar nosso argumento central sobre essa velha polêmica que volta a assombrar o cenário político brasileiro.1

No século XIV, depois de um longo período de fragmentação territorial e guerras intestinas, a China viveu um grande processo de centralização do poder, sob a Dinastia Ming (1368-1644), que foi responsável pela reorganização do Estado chinês e por um verdadeiro renascimento de sua cultura e civilização milenar. Também foi responsável pelo início de um movimento expansivo da China em várias direções, para dentro e para fora de seu espaço geopolítico imediato, sobretudo durante o reinado do imperador Yung-Lo. Tudo isto até a morte do imperador em 1424, quando a China suspendeu suas expedições marítimas e todas as suas guerras de conquista continental. Uma mudança de rumo que permanece até hoje como uma das grandes incógnitas da história universal. É difícil de acreditar, mas essa mudança de rumo – verdadeiramente histórica – esteve associada, de uma forma ou de outra, a uma “disputa fiscal” parecida com as que se reproduzem até hoje em nosso ambiente econômico.

Para entender o que estamos dizendo, voltemos ao reinado de Yung-lo (1360-1423), que foi um dos imperadores chineses com maior visão estratégica e expansionista da China. Foi ele que concluiu as obras do Grande Canal, comunicando o Mar da China e a antiga capital, Nanquim, com a região mais pobre do norte do império, e decidiu construir uma nova capital, que veio a ser Pequim. Um gigantesco “projeto desenvolvimentista” que mobilizou e empregou, durante muitos anos, milhares de trabalhadores, artesãos, soldados e arquitetos chineses. Além disso, Yung-Lo estendeu a hegemonia chinesa – política, econômica e cultural – em todas as direções, através das fronteiras territoriais da China, e ainda na direção dos Mares do Sul, do Oceano Indico, do Golfo Pérsico e da Costa Africana. Foi durante seu reinado que o Almirante Cheng Ho liderou seis grandes expedições navais que chegaram até a costa da África, quando os portugueses estavam recém-chegando a Ceuta. Mas durante todo seu reinado, as políticas “desenvolvimentistas” do Imperador Yung-Lo enfrentaram a oposição acirrada da elite econômica chinesa liderada por seu próprio ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi, defensor implacável do “equilíbrio fiscal”. Sem lograr uma conciliação, o imperador Yung-Lo mandou prender o ministro em 1421. Mas logo depois o imperador morreu numa batalha, e seu sucessor, o imperador Chu Kao-Chih, tirou o velho ministro da cadeia e o recolocou no ministério das Finanças, com poder total para suspender todas as obras e expedições de Yung-Lo, tudo em nome da necessidade de cortar os gastos para conter a inflação e manter a credibilidade do império. E foi assim que o Império Ming perdeu seu fôlego expansivo e fechou-se sobre si mesmo, caindo no isolamento quase total durante quase quatro
séculos.

Não é possível afirmar que a vitória da posição “fiscalista” do ministro Hsia Yüan-Chi contra a posição “expansionista” do imperador Yung-Lo atrasou em 600 anos a expansão global da economia e da civilização chinesas. Mas pode-se dizer, com toda certeza, que a vitória política e imposição das ideias “contencionistas” do ministro das finanças da China durante o reinado do imperador Chu Kao-Chin mudaram radicalmente o rumo da história chinesa depois de 1424. Naquele momento, como disse um historiador inglês, “para levar à frente a estratégia ‘desenvolvimentista’ de Yung-Lo, teria sido necessária uma sucessão de líderes com sua mesma visão vigorosa e estratégica, a visão de um construtor de impérios que não teve seguidores”.2

Há duas principais lições, pelo menos, que podem ser extraídas dessa verdadeira “fábula chinesa”: a primeira é que toda e qualquer “escolha contencionista” de curto prazo envolve opções mais dramáticas e com consequências de longo prazo que podem afetar os caminhos futuros de um povo e até de uma civilização, como no caso chinês; e a segunda é que o sucesso de uma “escolha expansionista” depende quase inteiramente da existência de um governo e de um bloco de poder capazes de sustentar esta opção por um período prolongado de tempo, sempre orientados por uma “visão vigorosa e estratégica”, como diz o historiador inglês. Para avançar numa direção mais expansionista, o Brasil precisa de um governo com a disposição e o poder de transmitir à sociedade e aos seus “agentes econômicos” sua opção definitiva e incontornável pela conquista de uma sociedade mais justa e igualitária, mesmo enfrentando a resistência dos “operadores de mercado” (que, somados todos, não dão mais do que 1% da população brasileira, mesmo incluindo o pessoal do cafezinho e da limpeza de seus escritórios).

De uma vez por todas, há que se entender que essa pequena minoria afortunada da população não
sente nenhum tipo de responsabilidade material ou moral pela “qualidade de vida” dos 30 a 40% dos brasileiros que passam fome e vivem na miséria ou na mais completa indigência. Na verdade, a maior parte da burguesia empresarial brasileira não necessita nem nunca necessitou aliar-se a seu próprio povo para obter sucesso com seus negócios e aumentar seus lucros privados, que crescem de forma geométrica mesmo nos períodos de baixo crescimento do PIB nacional. É como se existissem no Brasil dois universos paralelos e absolutamente incomunicáveis: num, vivem os pobres, os desempregados, os indigentes e os “condenados da terra” em geral; e no outro, vive uma burguesia muito satisfeita, sertaneja ou cosmopolita, mas ambas igualmente de costas para seu próprio povo.

1 Por ser um episódio absolutamente paradigmático, reaparece muitas vezes em nossas aulas, palestras, artigos e entrevistas.

2 The Cambridge History of China, 1988, vol. 7, p. 275.

Encruzilhadas

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Vivemos momentos marcados por grandes escolhas, desafios e oportunidades, para isso, precisamos construir novos horizontes de sobrevivências, entendermos o que queremos para os próximos anos, desenvolver lideranças conscientes e capacitadas para compreendermos os horizontes futuros, investindo fortemente em educação, conhecimento e tecnologias, capacitando as organizações, retomando projetos exitosos, fortalecendo as instituições e repensando estratégias malsucedidas. Vivemos envoltos, na contemporaneidade, em inúmeras encruzilhadas, cujas escolhas devem nortear o comportamento das sociedades das próximas décadas.

O maior desafio para a sociedade internacional é reduzir, por completo, os desequilíbrios gerados pelas desigualdades crescentes nas sociedades contemporâneas. Países ricos e nações pobres perceberam o crescimento das desigualdades, desde social, econômica, política e cultural, que impactam negativamente para a sustentabilidade das estruturas produtivas e sistemas políticos, que degradam as relações sociais, incrementando conflitos cotidianos, aumentando as violências e gerando o esgarçamento dos tecidos sociais.

O crescimento das desigualdades gera constrangimentos crescentes para as estruturas sociais, limitando os mercados internos de consumo, reduzindo a capacidade de recuperação econômica, limitando a renda disponível e exigindo recursos públicos para socorrer grupos mais fragilizados, para evitar que as sociedades entrem em colapsos, aumentando o caos generalizado, com graves consequências para a convivência pacífica e a consolidação democrática.

Nas sociedades contemporâneas, os líderes devem ser dotados de grandes habilidades de conversação, ouvindo as demandas de todos os grupos sociais, arbitrando os conflitos econômicos e políticos, solicitando esforços de setores que ganham constantemente e canalizando recursos financeiros para reconstruir espaços de cidadania e garantindo que as estruturas democráticas tragam benefícios para todos os setores da comunidade, evitando que setores mais organizados, donos de lobbies mais eficientes, dotados de grande capacidade financeira imponham seus interesses imediatos, seus ganhos adicionais e limitem os repasses para setores mais fragilizados.

Numa sociedade como a brasileira, marcada por desigualdades generalizadas, é fundamental que os líderes e gestores modernos, tenham que construir uma grande capacidade de negociação, entendendo que, muitas vezes, políticas urgentes e necessárias, demandam tempo para trazer retornos consistentes. Estas políticas devem ser adotadas, visando o bem estar da comunidade, reduzindo privilégios de alguns setores, que sempre se beneficiaram de menor tributação, isenções fiscais e ganhos monetários e financeiros oriundo de taxas de juros elevadas praticadas pelas autoridades monetárias controladas pelos donos do capital, em detrimento da maioria da comunidade, que vivem ou sobrevivem com as migalhas do orçamento público, enquanto setores mais abonados e dotados de grande capacidade de organização política e econômica, garantem a concentração da renda nas mãos de poucos privilegiados e contribuem para a perpetuação de uma pobreza crônica que perpassam o momento da descoberta desta nação.

Governar é fazer escolhas, estas escolhas devem nortear os resultados imediatos e futuros de cada governo. Numa sociedade, como a nossa, centrado por grandes desequilíbrios e conflitos latentes, todas estas escolhas devem sem claras, urgentes e transparentes para a comunidade. Neste momento de transição de governo, percebemos que os grupos ganhadores desta política econômica se arvoram com seus tentáculos para impor seus ganhos financeiros e monetários, perpetuando uma estrutura econômica centrada no imediatismo e dos ganhos financeiros que pouco trazem para a comunidade nacional.

Neste momento, percebemos que as encruzilhadas aparecem mesmo antes do novo governo tomar posse, querendo controlar as políticas futuras como fizeram em quase todos os governos anteriores, controlando os repasses financeiros para os grupos mais fragilizados, estimulando o incremento de seus ganhos monetárias que garantem um parasitismo crescente que contribuem pouco para a comunidade, mas perpetua seus ganhos adicionais e sua indiferença com os setores marginalizados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O resgate do Planejamento no século XXI, por Marcio Pochmann

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Ele teve papel central no pós-guerra, mas neoliberais o destruíram. Emergiu o presentismo, sem diálogo com os desafios do futuro. Retomá-lo exige refletir qual país desejamos construir após três décadas de ruína da sociedade industrial

Marcio Pochmann – Outras Palavras – 12/12/2022

Foi somente com o fracasso do liberalismo exposto na Depressão de 1929 que a ideia de planejamento nacional ganhou força. Embora a presença do ato de planejar remonte às antigas civilizações pré-modernas (por exemplo, na construção de grandes obras como as pirâmides egípcias há 4,5 mil anos), o progresso, sob o modo de produção e consumo capitalista, era compreendido pelas elites dominantes como a ser exercido naturalmente pela espontaneidade das forças de mercado.

Diferentemente do sistema de planificação soviético (1921-1991), concebido pelo Comitê Estatal do Planejamento (Gosplan) como a base da economia socialista, o planejamento no capitalismo assumiu indicativo de parte do Estado em relação ao setor privado. Tratou, fundamentalmente, das implicações futuras para a economia e sociedade decorrentes das decisões presentes da administração pública, mais do que decisões propriamente do futuro.

A centralidade alcançada pelo planejamento na maioria dos países, sobretudo após a segunda Guerra Mundial, terminou por transformar a natureza da administração pública. O denominado O novo Estado Industrial por John Galbraith em 1967 alterou profundamente a atuação do Estado em relação aos mercados e à sociedade.

No Brasil não foi diferente. Como o atraso nacional era expressivo e decorrente do longevo e primitivo agrarismo vigente, o planejamento emergiu na década de 1930, incorporado à construção própria do Estado moderno.

Naquela oportunidade, por exemplo, o seu pressuposto fundamental era estruturar a passagem do país atrasado para uma nova sociedade urbana e industrial. Com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) em 1938, a ossatura estatal foi sendo constituída através do impulso da maioria política construída a partir da Revolução de 1930.

A ação programada pelo Estado alçou dinamismo com o enfrentamento do subdesenvolvimento proveniente do tradicional modelo econômico primário-exportador. A partir daquela época, o planejamento se tornou o meio pelo qual o distante futuro foi sendo antecipado pelas decisões do presente da nação no interior da administração pública.

Ao longo do tempo, no Brasil, o Estado de natureza industrial sofreu reformas preparadas para transformá-lo no Estado mais adequado aos desafios contemporâneos. No segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), por exemplo, o planejamento sustentou a montagem de empresas estatais estruturadoras do capitalismo organizado do segundo pós-guerra, assim como na presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a operação dos chamados grupos executivos setoriais se mostrou competente para a consolidação da industrialização sob o tripé dos capitais privado nacional, estrangeiro e estatal.

Também durante o regime militar (1964-1985), a reforma do Estado nos anos 1960 foi acompanhada pelo fortalecimento do fundo público e da tecnocracia dirigente. Em meio século de planejamento, a estrutura produtiva foi modernizada, colocando o Brasil entre as principais economias modernas do mundo.

A derrota da maioria política desenvolvimentista ao final da década de 1980 possibilitou a dominância neoliberal. O abandono do planejamento seguido pelo desmonte do Estado Industrial confinou a administração pública a uma espécie de pronto-socorro a gerir as emergências do país que passava a cancelar o seu próprio futuro.

O haraquiri neoliberal aprisionou o presentismo, sem diálogo com os desafios do futuro. Neste contexto nacional, o máximo que o receituário neoliberal permitiu foi o planejamento orçamentário na administração pública. O planejamento nacional seguiu esvaziado e sem sentido para a maioria política que validava a desindustrialização feita ao mesmo tempo em que ocorria a combinação da dominância da financeirização do estoque de riqueza com o modelo econômico primário-exportador.

Neste início da terceira década do século 21, o planejamento deveria ser recuperado, concomitantemente com a transformação do Estado brasileiro, fundamental para trazer para as decisões do presente as escolhas sobre o futuro que o conjunto da sociedade deseja. Para tanto, é necessária a definição de qual país se deseja alcançar após mais de três décadas de ruína da sociedade industrial.

A fome em meio à abundância, por Ricardo Abramovay

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A natureza econômica dos alimentos não pode escamotear o direito à alimentação

Ricardo Abramovay – A Terra é redonda – 11/12/2022

Amartya Sen[i] tinha 10 anos e se lembra até hoje dos gritos contínuos de gente pedindo ajuda, por falta de comida. Em sua recém-publicada autobiografia, Uma casa no mundo (Companhia das Letras), ele relata a cena chocante, 77 anos atrás, de um homem, no pátio de sua escola, em Santiniketan (um bairro da cidade de Bolpur em Bengala Ocidental, Índia), totalmente fora de si e que, pelo que os alunos descobriram, estava sem comer havia um mês.

A cidade fica a apenas 150 quilômetros de Calcutá, cidade portuária por onde as exportações agrícolas indianas transitavam, sob o incentivo do aumento dos preços, no auge da Segunda Guerra Mundial. O alimento existia, mas era inacessível aos que dele necessitavam. A famosa fome de Bengala de 1942/43 matou entre dois e três milhões de pessoas.

Este paradoxo da fome em plena abundância nunca lhe saiu da cabeça e quando, nos anos 1970, já economista, Amartya Sen, se debruçou sobre o tema, sua conclusão foi inequívoca: “era mais importante dar mais atenção ao direito aos alimentos e não à disponibilidade deles”. A frase singela resume o espírito do conjunto da obra deste prêmio Nobel de Economia, conquistado em 1988, por sua contribuição a um ramo da ciência econômica chamado economia do bem-estar. E nada resume melhor sua posição neste campo tão técnico e matematizado da microeconomia que sua definição de desenvolvimento.

Para Amartya Sen, desenvolvimento não se refere ao poder de aumentar a produção de bens e serviços, às tecnologias ou à organização social voltada a esta finalidade. Sua definição, que deu origem ao título do livro que publicou no ano em que foi contemplado com o Nobel, vai muito além: desenvolvimento é o processo permanente de expansão das liberdades substantivas dos seres humanos. O importante não são as coisas e sim o que as pessoas fazem com as coisas e como sua produção incide em suas vidas. Entre os benefícios potenciais que um bem econômico e, mais ainda, o crescimento econômico poderiam trazer e seus efeitos reais sobre a vida das pessoas, a distância pode ser quilométrica.

Em Bengala, as pessoas tinham a liberdade de produzir e de comprar alimentos. Mas essa liberdade era puramente formal, não era substantiva. A Índia era uma colônia britânica à época, e Amartya Sen mostra que nem o Parlamento britânico, nem a imprensa indiana, sob forte censura, veiculavam a tragédia que não escapava aos olhos de uma criança de 10 anos.

A natureza econômica dos alimentos, o fato de eles serem produzidos, distribuídos e consumidos no âmbito de uma economia de mercado, não pode escamotear o direito à alimentação. Em outras palavras, a eficiência na alocação dos recursos e os incentivos que os mercados oferecem aos agentes econômicos são importantes, mas não garantem uma alimentação suficiente e saudável para todos. O “direito aos alimentos” não pode ser puramente formal e abstrato. Se o preço dos alimentos está muito acima do que os pobres podem pagar, seu “direito à alimentação” está irremediavelmente comprometido, mesmo que os alimentos existam e, em tese, possam ser comprados.

Foi isso que Betinho[ii] percebeu nos anos 1990, e esta é a razão pela qual os governos democráticos brasileiros, sob pressão da sociedade civil organizada e de campanhas memoráveis, implantaram, ao longo de duas décadas, organizações estatais e iniciativas que permitiram ao
País sair do mapa da fome em 2014. Essas organizações e iniciativas foram discutidas no Congresso, mas, sobretudo, foram concebidas, implementadas e avaliadas por conselhos com forte participação cidadã. Parcela tão importante da vida econômica do País (a alimentação de sua população) era pautada por um conjunto de organizações que tinham voz ativa na organização das políticas alimentares.

O corpo das pessoas é um marcador social incontornável: 22% das crianças do Nordeste
de até cinco anos, em 1996, tinham uma estatura que revelava sua carência nutricional crônica.

Em 2006, este total caiu para 6%. É claro que o aumento na oferta alimentar resultou no barateamento da comida e contribuiu para esse resultado. Mas ele não teria sido alcançado sem um conjunto de medidas públicas voltadas a dotar as populações vulneráveis dos meios que lhes permitissem satisfazer suas necessidades.

A construção de cisternas, que possibilitaram a convivência com a seca, a decisão de melhorar a composição da merenda escolar com a aquisição de alimentos vindos da agricultura familiar, o aumento gradual do salário-mínimo e as transferências diretas de renda foram essenciais para que o aumento da produção agropecuária se traduzisse substantivamente em redução da fome. Este é um exemplo de ampliação das liberdades substantivas dos seres humanos (a liberdade de ter uma alimentação que permita um crescimento saudável) sem as quais é gigantesco o risco de que o crescimento econômico se afaste da satisfação das necessidades sociais.

Mas a influência da organização democrática sobre a vida social não pode limitar-se a suas dimensões distributivas. O crescimento econômico contemporâneo vem sacrificando os tecidos socioambientais nos quais ele até aqui se apoiou. A destruição dos serviços ecossistêmicos dos quais depende a oferta de bens e serviços é muito mais rápida que a capacidade da natureza de se recuperar da guerra que o sistema econômico trava sistematicamente contra ela. A oferta alimentar contemporânea depende de um pequeno número de produtos, cuja oferta concentra-se em algumas poucas regiões do mundo. Por um lado, a monotonia das paisagens agrícolas e a uniformidade das criações animais ampliam os riscos de colapso: segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) nos últimos 30 anos episódios de severa seca (como a que se abateu sobre as regiões produtoras de grãos no Brasil este ano) atingiram 75% da área plantada.

Por outro lado, a gigantesca biodiversidade que poderia estar na base dos sistemas alimentares é desperdiçada. Segundo o relatório da organização britânica Kew Royal Botanic Garden há mais de 7000 plantas comestíveis no mundo, das quais mais de 450 podem ser cultivadas. No entanto, 60% da humanidade depende de quatro culturas: soja, trigo, milho e arroz. As criações concentracionárias (e geneticamente homogêneas) de animais só não resultam em contaminação viral e bacteriana em larga escala em virtude do consumo de antibióticos em que estas tecnologias se apoiam. 70% dos antibióticos produzidos hoje destinam-se a animais e boa parte destes materiais escapam para o solo e os cursos d’água, resultando em preocupante avanço da resistência antibacteriana.

O paradoxo da fome em meio à abundância tomou uma nova feição no Brasil: nosso sistema agroalimentar é o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, no entanto, a fome e a desnutrição cresceram exatamente à medida que estas emissões aumentavam. A hospitalização infantil por desnutrição atingiu, em 2022, o pior índice dos últimos catorze anos, como mostra pesquisa da Fiocruz.

É indispensável que a democracia atinja o cerne das decisões e das iniciativas econômicas e não esteja presente apenas nos mecanismos voltados à distribuição da riqueza. É cada vez mais evidente, por exemplo, o contraste entre as reais necessidades alimentares das pessoas e aquilo que o sistema agroalimentar lhes oferece, mesmo nas sociedades mais ricas do planeta. Os guias alimentares, que vêm sendo publicados em todo o mundo (tema em que a pesquisa brasileira exerce forte liderança global), sinalizam a urgência de que se aumente o consumo de verduras, hortaliças e folhas, reduzindo-se a quase nada a entrada de ultraprocessados na dieta e diminuindo também de forma importante o consumo de carnes.

Se depender estritamente do punhado de grandes empresas que dominam o setor agroalimentar, esta mudança não ocorrerá. A transição para sistemas agroalimentares saudáveis e sustentáveis depende de forte participação social e de instituições públicas voltadas à difusão de padrões alimentares e culinários saudáveis, mas também da descentralização de iniciativas capazes de desconcentrar a oferta alimentar e de promover a diversidade nos cultivos, nas criações animais e nas práticas culinárias. As diferentes formas de aglicultura urbana e periurbana que, no mundo todo, ganham importância em terrenos vazios das cidades, por iniciativas de movimentos sociais, são um exemplo neste sentido.

A crise socioambiental contemporânea exige que se amplie o escopo daquilo que a ciência econômica considerou até aqui pertencer ao domínio dos bens públicos. Tão importantes quanto as praças, as estradas, o sistema de água e esgoto e a internet são os impactos das decisões econômicas sobre a natureza e a sociedade. Esses impactos não podem mais ser tratados como “externalidades”.

O recém-falecido sociólogo Bruno Latour escreveu uma década atrás um livro em que propõe a derrubada da Torre de Marfim da vida acadêmica e tem como subtítulo a proposta de “colocar as ciências em democracia”. Neste momento de recuperação das instituições brasileiras, da mesma forma, é fundamental “colocar a economia em democracia” e deixar de tratá-la como se fosse uma esfera autônoma da vida social.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Publicado originalmente na revista Ciência e cultura.

Notas
[i] Amartya Sen é professor de economia e filosofia da cátedra Thomas W. Lamont na Universidade Harvard. Anteriormente, foi professor de Economia na Universidade Jadavpur de Calcutá, na Escola de Economia de Delhi e na London School of Economics, e professor de Economia Política na Universidade de Oxford.

[ii] Herbert José de Sousa foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro. Concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Ailton Krenak: Não quero salvar os índios, mas evitar a extinção da espécie humana

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Escritor diz que crise do clima levará à metástase e que Lula foi saudado na COP27 pois mundo está pelado com a mão no bolso

WALTER PORTO – FOLHA DE SÃO PAULO – 12/12/2022

SÃO PAULO

“Olha que lindo é aqui”, diz Aílton Krenak enquanto filma pelo celular as árvores do lugar onde se sentou para dar esta entrevista. É uma parada prosaica de beira de estrada, onde ele estacionou em meio à viagem que fazia de Minas Gerais até o Rio de Janeiro. Dali partiria para a Holanda, em sua primeira viagem internacional após a pandemia, no começo do mês.

Krenak apresentaria aos europeus suas ideias para adiar o fim do mundo, expressão popularizada pelo título de seu primeiro livro na Companhia das Letras, lançado em 2019.

De lá para cá, a coletânea virou uma febre comercial, rendendo duas edições reimpressas 16 vezes, e continuou com “A Vida Não É Útil”. As obras ampliaram o alcance de uma liderança indígena já reconhecida por articulações nacionais desde os anos 1970.

Agora o tríptico se encerra com “Futuro Ancestral”, que reúne reflexões sobre a educação de crianças, o colonialismo e o planejamento urbano, sempre partindo de cosmogonias indígenas tornadas acessíveis aos leitores brancos.

Nesta entrevista, Krenak discute por que prefere pensar no presente que no futuro e pensa a efetividade da política institucional —ele foi um dos nomes lembrados para o prometido Ministério dos Povos Originários no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

‘Futuro Ancestral’ brinca com a questão temporal, falando que a ideia de futuro é uma ilusão branca, mas também expressando com frequência a ideia de ‘adiar o fim do mundo’. Pode explicar melhor como enxerga o conceito de futuro? A ideia de fazer uma comunicação aberta com outra cultura, outros sujeitos, obriga você a criar recursos narrativos que alcancem o outro. Se eu ficar ensimesmado em uma cosmovisão na qual o futuro é uma balela, não vou conversar com ninguém. Todo mundo ao meu redor acredita no futuro.

Se você não fizer sua autodescrição quando vai dar uma palestra, o cego não vê. Como eu vou falar com você sobre o futuro se eu suprimir a palavra futuro? Não quer dizer que eu acredito nele, mas que questiono a razão que instituiu uma narrativa global, ampla, em que há o mesmo futuro para mim, para você e para o chinês. Isso é uma besteira.

Se tem alguma coisa que pode corresponder a essa ideia de futuro instituída socialmente, temos que considerar que ele é ancestral, porque só pode ter concretude a partir do que já foi. A materialidade dele é o ontem, não é o agora —e quando o agora for ontem, fechamos a parábola de um futuro ancestral.

Pode parecer especulação filosófica, mas é também a afirmação de um lugar de pensar o mundo aqui e agora. Igual à canção de Gilberto Gil.

Isso embute uma proposta de salvar o meio ambiente e preservar os povos originários priorizando ações imediatas acima de planos para um futuro que talvez não se concretize? Do ponto de vista climático, muito mais que a ideia de salvar qualquer coisa é a ideia de evitar nossa extinção. O Homo sapiens, a espécie, está entrando em extinção. Não são os índios. Eu não estou salvando os índios. Estou dando um toque de que, se a gente não se cuidar, vamos todos para a metástase.

Com relação ao clima, ou a gente para tudo agora ou a gente torra. O secretário das Nações Unidas, Antônio Guterres, disse na COP27 que estava decepcionado porque, a considerar a posição dos governos que foram para Sharm el-Sheikh, no Egito, vamos marchar a passos largos para o inferno. Parece letra de rock ‘n’ roll brabo.

Não é brincadeira, não. Ele só não jogou a toalha, mas o que está dizendo é que não tem mais prazo para conversa mole. É aqui e agora.

Você diz no livro que não acredita mais na atuação em partidos ou sindicatos e afirma que, quando se começa a cobrar impostos, alguma coisa já deu errado. Instituições como essas não podem ajudar a organizar a mobilização por uma causa? Partido é um organismo com configurações implícitas. Nunca tive relação com partido, organizei o movimento indígena, anti-partido. Em 1995, renunciei à coordenação para que não virasse partido. Eu e o Batman temos um dispositivo que, quando tudo fica muito ruim, a gente aperta o botão.

Na COP27, Lula foi saudado como uma estrela, alguém com potencial de ter uma atuação positiva em termos ambientais diante de um mundo preocupado com a Amazônia. O próximo governo tem uma boa oportunidade de levar o Brasil a uma posição melhor nesse aspecto? 

Seria uma injustiça atribuir essa responsabilidade ao Brasil. Estamos saindo de uma tragédia política tão grande que cuidar das nossas feridas já seria heroico.

Lula foi saudado lá porque o mundo está pelado com a mão no bolso. É como se ele fosse a aspirina do momento, mas isso só mostra que o mundo está realmente uma merda.

Lula também aventa a ideia de um ministério específico voltado aos povos originários. Isso vai ser efetivo para organizar as políticas dessa área? Foi muito corajoso ele ter feito esse anúncio, inclusive num momento em que a vitória dele ainda não estava decidida. De lá para cá, ele radicalizou, está criando o ministério e isso é um sinal muito amplo para todo mundo.

Quando você diz que vai empoderar os povos originários, diz que vai limitar o genocídio e a ação deliberada de destruir florestas e ecossistemas que se implantou no Brasil nos últimos anos. Significa também um comprometimento pessoal do presidente de que ele não vai mais cometer Belo Monte.

Então você não desistiu completamente da política institucional. A política institucional é a única maneira de assegurar que a gente não vire uma barbárie total, com pirataria e invasões feito o que Donald Trump promoveu no Congresso dos Estados Unidos e o que os sujeitos que tomaram a política brasileira tentaram fazer levando tanques militares para dar rolezinho em volta do Congresso.

As instituições precisam ser responsáveis, o que não quer dizer que todo mundo tem que se meter na política. Não é por isso que você e o Ailton têm que se meter em política e criar um partido. Sair por aí com o apelido de centrinho.

Em outro trecho dos seus textos, você diz que ‘o colonialismo causou um dano quase irreparável ao afirmar que nós somos todos iguais’. O que quer dizer? Somos 8 bilhões de pessoas no planeta hoje. Se continuarmos todos fiéis ao propósito “somos todos iguais”, vamos ter que dar um carro para cada pessoa, um apartamento, uma casa no campo, férias em outro país. Não tem sentido dizer que somos iguais quando príncipes sauditas embarcam carros de luxo em aviões para passear na Europa.

Enquanto eles escravizavam povos no mundo inteiro, as declarações de igualdade só cresciam. No século 20, a propaganda de igualdade é descarada. É um plasma que cobre tudo, as injustiças, o sexismo, o racismo. Todo tipo de segregação e sacanagem acontece sob o manto tacanho da igualdade. Somos radicalmente diferentes. É uma tremenda embromação.

Lula vai governar para quem? por Rodrigo Zeidan

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O governo petista irá transferir dinheiro público para ricos ou pobres?

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo. 10/12/2022

Em um sinal de retomada da sanidade política, Lula anunciou que vai governar para todos os brasileiros, não somente os que votaram nele. Mas a pergunta que mais importa é: com pouca margem de manobra, quais vão ser suas prioridades de gastos públicos?

Sabemos que o PT acredita na tese de um Estado grande na economia. Se isso é certo ou errado, pouco importa, pois seu governo vai tentar colocar isso em prática. A questão é: o governo petista irá transferir dinheiro público para ricos ou pobres? Por mais que a plataforma do partido seja de justiça social, o histórico dos governos petistas é o de colocar montanhas de dinheiro da sociedade nos bolsos dos acionistas de empresas de médio e grande porte.

Nunca vou me esquecer do brilho dos olhos de um empresário de transportes do Amazonas que ia usar recursos próprios para atualizar a frota quando o governo Dilma renovou o PSI (Programa de Sustentação do Investimento), com juros de 2,5% para empresas da região.

O empresário pegou todo o dinheiro que pôde, fez a atualização da frota com dinheiro do BNDES e aplicou o caixa da empresa em títulos públicos, que pagavam juros de quase 10% ao ano. Ou seja, o dinheiro público não sustentou nenhum investimento, que ia ser feito de qualquer maneira, e foi direto para o bolso dos acionistas (cujo lucro ainda aumentou pelo benefício tributário de reduzir o lucro tributário pelo montante de juros pagos).

Quando o governo petista coloca o dinheiro direto nas mãos dos mais pobres, acerta. O Bolsa Família foi, e deve voltar a ser, o melhor programa social da história brasileira. O Prouni, criado em 2004, permitiu a muitos brasileiros cursar ensino superior, sem gerar gigantescos ônus ao erário e sem gerar distorções no mercado educacional.

Há muito espaço para gastar dinheiro realmente ajudando quem mais precisa e tirando o Brasil da crise.

Restrições fiscais são “profecias autorrealizáveis”: o governo anuncia relaxamento de regras fiscais para criar gastos públicos absurdos, o prêmio de risco do país sobe e torna ainda mais inúteis esses gastos, prejudicando programas futuros.

O que não dá para fazer é entrar na megalomania de programas pessimamente desenhados, como o Fies e o Ciência sem Fronteiras; ideias boas que, por serem mal executadas, custaram centenas de bilhões aos brasileiros; e, dessa vez, quem se deu melhor foram os acionistas de universidades brasileiras e estrangeiras, que recebiam mensalidade cheia, não importando se os alunos completariam seus estudos ou não. Também não me esqueço de um reitor de universidade privada que comprou um iate novo que queria batizar de Fies.

Há questões mal resolvidas na criação de gastos permanentes com as dezenas de universidades federais criadas pelos governos Lula e Dilma, mas mil vezes novas instituições de ensino superior que a redução de IPI de carros e outros subsídios que torraram dinheiro público sem nenhum efeito de longo prazo. Se o governo petista se comportar como se estivéssemos na década de 1970, quando se acreditava que bastava sair dando subsídios que a indústria magicamente se tornaria competitiva, estaremos perdidos.

Não precisamos de um governo Robin Hood às avessas: tirando dos pobres para dar aos ricos. Teremos algo próximo de Lula 1, que foi uma excelente gestão, ou algo perto dos outros governos, que nos levaram a uma das piores crises da nossa história? Saberemos no ano que vem.

“A grande crise é inevitável”, diz Nouriel Roubini.

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O economista que previu o colapso de 2008 aponto: dívidas privadas dispararam. Juros muito baixos e emissão de dinheiro em favor dos mais ricos impediam um colapso. Mas agora a inflação frustrou o remendo e tudo pode estar por um triz

Nouriel Roubini – Outras Palavras – 09/12/2022

A economia mundial está caminhando para uma confluência sem precedentes de crises econômicas,
financeiras e de dívida, após a explosão de déficits, empréstimos e alavancagem.

No setor privado, a montanha de dívidas inclui famílias (endividadas em hipotecas, cartões de crédito, empréstimos para automóveis, empréstimos estudantis, empréstimos pessoais), empresas e corporações (empréstimos bancários, títulos de dívida e dívida privada) e o setor financeiro (passivo de instituições bancárias e não bancárias). No setor público, estão os títulos dos governos centrais, subnacionais e locais, além de outros passivos formais e dívidas implícitas – como passivos não financiados dos sistemas de pensão por repartição e de atendimento à saúde. Tudo isso continuará a crescer à medida que as sociedades envelhecem.

Olhando apenas para as dívidas explícitas, os números são impressionantes. Globalmente, a dívida total dos setores públicos e privado como parcela do PIB aumentou de 200% em 1999 para 350% em 2021. A proporção é agora de 420% nas economias avançadas e de 330% na China. Nos Estados Unidos, é 420%, maior do que durante a Grande Depressão e após a Segunda Guerra Mundial.

Por certo, a dívida pode impulsionar a atividade econômica, se os tomadores de empréstimos investirem em novo capital (máquinas, residências, infraestrutura pública) que gere retornos superiores ao custo dos juros. Mas muitos empréstimos são simplesmente para financiar recorrentemente as famílias que consomem acima de sua renda das famílias – o que é uma receita para a falência. Além disso, os investimentos em “capital” também podem ser arriscados, em casos como o de uma família que compra uma casa a um preço artificialmente inflado, uma corporação que tenta crescer -se muito rápido, independentemente dos retornos ou um governo que desperdiça o dinheiro em “elefantes brancos”. (projetos de infraestrutura extravagantes, porém inúteis).

Esses empréstimos em excesso vêm ocorrendo há décadas, por vários motivos. A “democratização” das finanças permitiu que as famílias com poucos rendimentos financiassem o consumo com dívidas. Governos de centro-direita têm persistentemente cortado impostos sem também cortar gastos, enquanto governos de centro-esquerda gastam generosamente em programas sociais que não são totalmente financiados por impostos insuficientes. E as políticas fiscais que favorecem a dívida em detrimento do patrimônio, auxiliadas pelas políticas monetárias e de crédito ultra flexíveis dos bancos centrais, alimentaram um aumento das dívidas dos setores público e privado.

Anos de flexibilização quantitativa (QE), [em que os bancos centrais emitiram trilhões de dólares, em favor de um punhado de credores da dívida pública (Nota da Tradução)] e de crédito barato mantiveram os custos dos empréstimos próximos de zero e, em alguns casos, até negativos (como na Europa e no Japão até recentemente). Em 2020, a dívida pública com rendimento negativo era de US$ 17 trilhões e, em alguns países nórdicos, até as hipotecas tinham taxas de juros nominais negativas.

A explosão de índices insustentáveis de dívida significava que muitos tomadores de empréstimos – famílias, corporações, bancos, bancos paralelos, governos e até mesmo países inteiros – eram “zumbis” insolventes sustentados por baixas taxas de juros (que mantinham os custos do serviço da dívida administráveis). Durante a crise financeira global de 2008 e a crise da covid-19, muitos agentes insolventes que teriam ido à falência foram resgatados por políticas de taxa de juros zero ou negativa, flexibilização quantitativa e resgates fiscais definitivos.

Mas agora, a inflação – alimentada pelas mesmas políticas fiscais, monetárias e de crédito ultra flexíveis – pôs fim a este amanhecer financeiro dos mortos. Com os bancos centrais forçados a aumentar as taxas de juros, em um esforço para restaurar a estabilidade de preços, os zumbis estão experimentando aumentos acentuados nos custos do serviço da dívida. Para muitos, isso representa um golpe triplo, porque a inflação também está corroendo a renda familiar real e reduzindo o valor dos bens familiares, como casas e ações. O mesmo vale para corporações, instituições financeiras e governos frágeis e super endividados: eles enfrentam custos de empréstimos em alta acentuada, rendas e receitas em queda e valores de ativos em declínio, tudo ao mesmo tempo.

Pior, esses eventos estão coincidindo com o retorno da estagflação (inflação alta junto com crescimento fraco). A última vez que as economias avançadas experimentaram tais condições foi na década de 1970. Mas naquela época, pelo menos os índices de endividamento eram muito baixos.

Hoje, enfrentamos os piores aspectos da década de 1970 (choques estagflacionários) ao lado dos piores aspectos da crise financeira global. E, desta vez, não podemos simplesmente cortar as taxas de juros para estimular a demanda.

Afinal, a economia global está sendo atingida por persistentes choques negativos de oferta de curto e médio prazo que estão reduzindo o crescimento e aumentando os preços e custos de produção. Isso inclui as interrupções pela pandemia no fornecimento de mão de obra e bens, bem como o impacto da guerra da Rússia na Ucrânia sobre os preços das commodities; A política de covid zero da China; e uma dúzia de outros choques de médio prazo – de mudanças climáticas a desenvolvimentos geopolíticos – que criarão pressões estagflacionárias adicionais.

Diferente da crise financeira de 2008 e dos primeiros meses do covid-19, simplesmente socorrer agentes privados e públicos com macropolíticas frouxas jogaria mais gasolina no fogo inflacionário. Isso significa que haverá um pouso forçado – uma recessão profunda e prolongada – além de uma grave crise financeira. À medida que as bolhas de ativos estouram, os índices de serviço da dívida disparam e as rendas das famílias, corporações e governos caem, a crise econômica e o colapso financeiro se alimentam mutuamente.

Certamente, as economias avançadas que tomam empréstimos em sua própria moeda podem usar um surto inesperado de inflação para reduzir o valor real de algumas dívidas nominais de longo prazo com taxa fixa. Com os governos relutantes em aumentar impostos ou cortar gastos para reduzir seus déficits, a monetização dos déficits dos bancos centrais será mais uma vez vista como o caminho de menor resistência. Mas não se pode enganar todas as pessoas o tempo todo.

Assim que o gênio da inflação sair da garrafa – que é o que acontecerá quando os bancos centrais abandonarem a luta diante do iminente colapso econômico e financeiro – os custos nominais e reais dos empréstimos aumentarão. A mãe de todas as crises de dívida estagflacionária pode até ser adiada, não evitada.

A pressão do mercado financeiro, por Paulo Nogueira Batista Júnior.

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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é redonda – 05/12/2022

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis; o mais perigoso é formado pelo mercado financeiro e a mídia tradicional

Só o Lula mesmo! Imagine, leitor, a eleição de 2022 sem ele na disputa. Estaríamos neste momento diante de mais quatro anos de desastre e desagregação. Agora, leitor, imagine o dificílimo quadro pós-eleitoral sem Lula. Digo isso sem nenhuma satisfação ou idolatria. A nossa dependência em relação a um só homem é altamente problemática. Muito pior do que a dependência da seleção brasileira jamais foi em relação a Neymar.

Friedrich Nietzsche dizia que a capacidade de suportar sofrimento é o que determina a hierarquia. Lula tem essa capacidade em altíssimo grau. E é com ela que estamos contando (de novo!) para tentar superar os imensos desafios pós-eleição. Imensos porque a sociedade brasileira está profundamente degenerada. Não apenas os bolsonaristas estacionados em frentes aos quartéis ou bloqueando rodovias, mas grande parte das camadas dirigentes, do Congresso, do empresariado e da mídia. Há muitas exceções a isso, felizmente, mas o quadro geral é desolador.

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis a ele e ao que ele representa: a extrema direita (rebelada contra o resultado das eleições com apoio de parte das Forças Armadas), a direita fisiológica que domina o Congresso (o chamado Centrão) e, last but not least, o capital financeiro. Este último, referido impropriamente como “mercado”, tem estreita ligação com a finança internacional e domina amplamente a mídia tradicional, que em geral vocaliza de modo automático e monótono seus interesses e preconceitos. A direita fisiológica e o capital financeiro são mais hipócritas e disfarçam sua hostilidade, mas ela é real e não deve ser subestimada.

Evidentemente, os três blocos não são estanques. Colaboram com frequência, e não raro ativamente. Aliaram-se, por exemplo, para patrocinar a devastação bolsonarista. Agora tentam inviabilizar ou capturar o novo governo. Estou exagerando? Não creio.

O bloco mais perigoso talvez seja aquele formado pelo capital financeiro e a mídia tradicional. É dele que gostaria de falar um pouco hoje.

Para além do óbvio – o nexo dinheiro/poder/influência – o perigo reside no fato de que boa parte desse bloco embarcou na famosa Arca de Noé do Lula. Em outras palavras, aderiu à frente ampla formada para derrotar o bolsonarismo nas eleições. Agora querem cobrar caro pela sua participação. Era previsível.

Imediatamente depois das eleições, sem dar tempo para a poeira baixar, promoveu-se uma campanha midiática para intimidar e enquadrar o presidente eleito. E a campanha continua. Uma verdadeira inquisição financeira, como notou Luiz Gonzaga Belluzzo.

O mote é a “responsabilidade fiscal” e as supostas indicações que Lula teria dado, depois da vitória eleitoral, de não entender a importância desse princípio. Ora, ora, nada que Lula tenha declarado depois das eleições diverge do que ele disse, repetidamente, durante a campanha. Ou ele não avisou, várias vezes, que não conviveria com o teto constitucional de gastos? E que o enfrentamento da crise social seria a prioridade número 1 do seu governo?

O debate econômico quase desapareceu da mídia tradicional. Há muito tempo. O que se tem, na maior parte do tempo, é a repetição monocórdia de uma mesma mensagem, dos mesmos slogans, transmitidos por economistas e jornalistas a serviço da turma da bufunfa. Não são muito frequentes os lampejos de inteligência ou criatividade. Como dizia Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.

O que está por trás do barulho todo? Em uma frase: o capital financeiro quer povoar o futuro governo Lula de funcionários do status quo. Como Lula não entregou, ou ainda não entregou os pontos, o barulho continua. Temos de tudo: entrevistas, editoriais, noticiário editorializado, opiniões, artigos e, de quebra, cartas abertas ao presidente eleito. O Banco Central já está sob comando do capital financeiro, graças à lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro.

Não é o suficiente, porém, para eles. Querem também o comando do Ministério da Fazenda e tentam induzir o presidente Lula a colocar lá alguém palatável, que não desafie seus interesses e privilégios. Alguém que dance conforme a música.

No entorno de Lula, no campo da esquerda ou da centro-esquerda, há muita gente de alto nível e espírito público. Por outro lado, há também gente ansiosa para agradar e se mostrar “responsável”, buscando viabilizar projetos individuais de poder. Instala-se assim uma race to the bottom, um nivelamento por baixo, com algumas pessoas disputando para ver quem se mostra mais confiável aos olhos do capital financeiro e da mídia corporativa.

É a síndrome de Palocci. O que o capital financeiro busca, na verdade, é um novo Palocci. E seus representantes manifestam, abertamente, o desejo de que o Lula 3 seja parecido com o Lula 1, isto é, aquele Lula dos anos iniciais de governo, mais dócil, enquadrado, com Antônio Palocci na Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central. Meirelles era um típico executivo do mercado financeiro, mais ou menos equivalente a Roberto Campos Neto, o atual presidente do Banco Central. Palocci era um político do PT que se viabilizou dando todas as garantias de que nada faria contra os poderes estabelecidos. E copiou descaradamente a política que vinha sendo seguida por seu antecessor, Pedro Malan, o ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso – sem nunca pagar os devidos direitos autorais. Colheu todos os elogios da Faria Lima e da mídia. Deslumbrou-se. E terminou melancolicamente, na traição mais abjeta.

Lula prometeu que voltaria “para fazer mais e melhor”. Não conseguirá se perder o controle da área macroeconômica do governo.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

A democracia militante, por Paulo Sérgio Pinheiro

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PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

A Terra é redonda – 08/12/2022

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, a sociedade e o Estado terão de definir de que forma a militância poderá ser exercida na defesa da democracia

Uma das mais precisas análises do efetivo funcionamento do regime do Estado Novo no Brasil está em Brazil under Vargas (Russell and Russell, 1942), obra do filósofo e cientista político alemão Karl Loewenstein (1891-1973). É na conclusão desse livro – aliás, dedicado a Thomas Mann e lamentavelmente até hoje não traduzido para o português – que é proposto um conceito inovador, na época, para caracterizar aquela ditadura: “Reduzido aos mais simples termos de análise, o regime de [Getúlio] Vargas não é democrático, nem uma democracia “disciplinada”; não se trata de totalitário nem de fascista; é uma ditadura autoritária, para a qual a teoria constitucional francesa criou o termo régime personnel”. Mais tarde, em 1975, na Conferência Internacional sobre História e Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o cientista político Juan Linz, de Yale University, retoma o conceito de autoritarismo para caracterizar o regime da ditadura militar de 1964.

Mas Karl Loewenstein, além de produzir uma influente obra em direito constitucional, em 1937, quando o nazismo estava longe de estar consolidado, criou o termo de “democracia militante”. Em dois seminais artigos, “Militant Democracy and Fundamental Rights” (Democracia Militante e Direitos Fundamentais) I e II, examina de que modo a democracia constitucional é capaz de proteger as liberdades civis e políticas, por meio de limitações das instituições democráticas, para conter o fascismo de então. Para Karl Loewenstein, “a democracia e a tolerância democrática estariam sendo usadas para sua própria destruição. Sob a cobertura dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pode vir a ser construída e posta em marcha legalmente”.

Ele lamenta “o exagerado formalismo do estado de direito que, sob o encantamento da igualdade formal, não julga adequado excluir do jogo os partidos que renegam a existência de suas regras”. Alerta igualmente que a desobediência perante as autoridades constitucionais naturalmente tende a transbordar para a violência, a violência se tornando nova fonte de “emocionalismo disciplinado”, no qual se fundam os regimes fascistas. E cita um exemplo relevante de como uma democracia pereceu, justamente por não ter essa proteção militante: “Na República de Weimar [na Alemanha de 1919 a 1933], a falta de militância contra os movimentos subversivos, mesmo tendo sido claramente reconhecidos como tal, foi ressaltada tanto como um dilema da democracia no pós-guerra, quanto como ilustração e advertência”.

O momento presente no Brasil
Por que as reflexões de Karl Loewenstein são relevantes para o momento presente no Brasil? Ao contrário do que se alardeou, as instituições do Estado brasileiro não funcionaram diante da escalada de extrema direita com conteúdo neofascista, liderada pelo presidente da República. Essa desconstrução do Estado de direito contou com a cumplicidade das Forças Armadas e com a inércia, tanto da Procuradoria Geral da República, para processar os crimes de responsabilidade do presidente, quanto do Congresso Nacional, especialmente da Câmara de Deputados, que ignorou mais de uma centena de pedidos de impeachment.

A situação somente não está pior porque as eleições presidenciais derrotaram o líder da extrema direita, graças à anulação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos processos crimes contra o então ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e à sua soltura da iníqua prisão, reavendo seu direito de se candidatar – decisão que foi corroborada, em 2022, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, que reconheceu a violação de direitos do ex-presidente pelo Estado brasileiro, por negar-lhe acesso a um processo justo e à presunção de inocência.

Porém, o ex post da eleição nos deixa um inusitado cenário de veículos em chamas interditando estradas e milhares de cidadãos orando por intervenção militar nas portas dos quartéis. A autoridade que mais atuou na proteção do Estado de direito e em resistência a esse movimento golpista foi o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com firmeza, ele rebateu os ataques da extrema direita antes, durante e depois das eleições; defendeu as urnas eletrônicas, enfrentou corajosamente a litigância golpista, articulou a atuação das Polícias Militares e da Polícia Rodoviária Federal contra os bloqueios de vias, aplicando multas e congelando ativos de financiadores das badernas.

No dia 12 de dezembro, com a diplomação do presidente eleito, o presidente do TSE não tenderá a atuar de modo tão incisivo quanto atuou durante o último trimestre de 2022. Além dos bloqueios, como lembrou Camila Rocha (Folha de São Paulo, em 3.12.2022), há registros de vandalismo, saques, incêndios, sequestros, a maioria desses casos nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina, organizados e financiados por empresários ricos que atentaram contra a democracia, acobertados por generalizada impunidade por parte das autoridades estaduais.
Após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva como presidente da República, crimes contra a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (4.5.2021) se sucederam e continuam. Assim, a sociedade e o Estado terão de definir, portanto, de que forma a militância poderá ser exercida, na defesa da democracia, depois da nova era que começará em 1º de janeiro de 2023.

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, é urgente refletir: o que fazer para que, gradualmente, os brasileiros que caíram nessa esparrela da “intervenção militar” e acreditaram nas bravatas do bolsonarismo possam tornar-se cidadãos republicanos de novo?

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

Dívida pública, inimigo oculto, por José Álvaro de Lima Cardoso.

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Enquanto afirmam que “não há recursos” para reconstruir o país, neoliberais festejam a montanha de dinheiro que recebem do Estado, na forma de juros. Governo Lula precisará enfrentar este fantasma – e o primeiro passo é revelá-lo à sociedade

José Álvaro de Lima Cardoso, Economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina

Outras Palavras – 08/12/2022

O Brasil vem de cinco anos de estagnação do Produto Interno Bruto (PIB), possivelmente o pior desempenho do produto que se tem registro nas contas nacionais, fruto da crise mundial e das políticas recessivas adotadas a partir do golpe de 2016. Isso leva a um círculo vicioso: baixos níveis de crescimento do PIB conduzem a uma queda na arrecadação de impostos com aumento proporcional da dívida pública. Esse fenômeno foi verificado recentemente na Europa: os países que apostaram em maior austeridade e cortes de despesas públicas, como Grécia e Itália, acabaram aumentando seus níveis de dívida pública e pagam o preço disso.

Neste momento assistimos no Brasil a um debate sobre as dificuldades de continuar pagando o auxílio emergencial, mecanismo fundamental para evitar que milhões de compatriotas passem fome. Críticos da proposta alegam que o pagamento de R$ 600 para os pobres, compromete a “saúde fiscal” do país. Mas o país transfere todo ano 5% ou mais do PIB para os credores da dívida pública, comprometendo mais de 50% do orçamento federal executado, sem praticamente ouvirmos um pio desses críticos da proposta de um novo Bolsa Família.

Como item integrante desse método de exploração colonial, o Brasil pratica há anos o maior juro real (taxa de juros descontada da inflação prevista para os próximos 12 meses) do mundo. O fato da taxa básica de juros do Brasil estar muito acima da média mundial (neste momento bem acima do segundo lugar da lista, o México) seguindo uma receita que nunca funcionou – tentar controlar com juros altos uma inflação que não decorre de excesso de demanda – não tem nada de “opção técnica”. Antes de mais nada, é uma decisão política do Banco Central.

O orçamento federal destinou míseros R$ 139,9 bilhões para saúde neste ano e R$ 62,8 bilhões para a educação, que são uma fração dos quase dois trilhões destinados aos juros da dívida em 2021. Mas quase ninguém fala disso, é como se esses pagamentos fossem uma determinação vinda dos céus. Ao longo dos anos vários mecanismos foram montados para garantir aos banqueiros o recebimento fácil dos juros, o que praticamente ninguém questiona. As vozes que denunciam esse assalto sistemático ao país não têm espaço na grande imprensa, que está ao serviço desse sistema.

Os mecanismos de favorecimento dos credores vêm sendo construídos há anos. Ainda em 2000 foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI) para conceder empréstimos ao Brasil, que em 1988 tinha quebrado financeiramente mais uma vez, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LRF impõe limites ao poder público com os gastos com pessoal, de forma a garantir os polpudos juros aos banqueiros. O teto de gastos, vindo com a Emenda Constitucional 95, de 2016, uma das primeiras medidas do golpe, garante que o orçamento destinado a todas as despesas do governo com infraestrutura, salários, aposentadorias, saúde, educação, transportes, etc. não ultrapasse um valor determinado, garantindo que a parcela destinada ao pagamento de juros da dívida não seja afetada.

Para garantir o modesto auxílio de R$ 600 no ano que vem, a equipe de transição está propondo na PEC encaminhada ao Congresso, ultrapassar o limite (teto) de gastos previsto no Orçamento. Recentemente Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, que foram do governo FHC, todos ligados à fina flor dos especuladores mundiais, lançaram uma carta aberta (em 17.11.22) posicionando-se em relação ao comentário de Lula que disse que “Se eu falar que será preciso ultrapassar o teto de gastos para colocar os programas sociais prometidos vai cair a bolsa, vai aumentar o dólar. Paciência. Porque o dólar não aumenta e a bolsa não cai por conta das pessoas sérias, mas é por conta dos especuladores que vivem especulando todo santo dia” (fala na COP 27).

Na Carta Aberta criticam a fala acima e saem em defesa da “sagrada” responsabilidade fiscal e do teto de gastos. Ou seja, o teor da Carta revela que os banqueiros até aceitam que o futuro governo combata a fome e a pobreza, desde que isso não diminua em um centavo os ganhos que extraem sistematicamente do Brasil, através do sistema de pagamento da dívida pública.

A capacidade de apropriação de riqueza por parte desses banqueiros, de extrair todo ano 5% ou mais do PIB brasileiro, lhes fornece um poder que permite controlar sistematicamente os processos políticos e, assim, muitas vezes os próprios governos que se revezam no poder. Essa reação dos porta-vozes dos credores revela o grau de pressões que o novo governo já está enfrentando, que certamente se aprofundarão nos próximos meses.

A pancadaria da imprensa à decisão de Lula de furar o teto de gastos para atender aos famintos corre solta. Matérias nos jornais especializados, já afirmam que se furar o teto de gastos (estimativas apontam um valor de menos de 200 bilhões anuais) talvez Lula nem consiga terminar o seu governo. Ou seja, a chantagem já está de vento em popa, pela medida mais simples possível, que é atender aos miseráveis, proposta que compõe o núcleo central do programa do futuro governo.

No início do Plano Real, em julho de 1994 (28 anos atrás), a dívida pública (dívida externa e interna) era de cerca de R$ 60 bilhões. Fechou o ano de 2021 em R$ 5.613 trilhões. Somente no ano passado o estoque da dívida brasileira teve um aumento de R$ 604 bilhões. Ou seja, é um sistema infinito de exploração do povo brasileiro, que é quem sustenta essa festa toda. Não existe país no mundo que transfira tanto recurso para os banqueiros quanto o Brasil. O país sofre um processo de desindustrialização há décadas, mas não há recurso para reerguer a indústria porque não sobra dinheiro (dentre outras razões).

No Brasil os especuladores levam todo ano mais da metade do Orçamento Federal. Nos EUA, que têm um orçamento federal de 6 trilhões de dólares (cerca de 8,2 vezes superior ao brasileiro) a dívida pública custa 12% do Orçamento. Isso com uma dívida pública bruta, de 31,2 trilhões de dólares (outubro de 2022), que representou mais de 124,9% do PIB norte-americano no ano passado (23 trilhões de dólares). Claro, temos que considerar que os EUA dispõem de uma condição única no mundo, típica do maior império terreno, que a de contar com uma moeda com “aceitação” mundial (forçada), uma espécie de “padrão dólar” no qual essa moeda é utilizada no mundo inteiro para comércio entre as nações. Este é um privilégio equivalente, na área econômico-financeira, ao de ser a principal potência militar do planeta. A transição para outras moedas, como já está ocorrendo gradativamente, significa um duro golpe para os EUA, que há décadas imprime em casa a moeda que possui utilização mundial (em declínio).

A dívida pública é uma síntese de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. A dívida é um sistema extraordinário de transferência de riqueza para pessoas jurídicas e físicas muito ricas, residentes no país, ou não. Como é um sistema complexo, afeito aos especialistas, a população não entende. Como quem controla tudo é gente ligada aos próprios banqueiros, é um sistema fora do controle das estreitas instâncias democráticas da sociedade.

Os especialistas no tema denunciam sistematicamente que não há transparência nenhuma nos dados da dívida pública. Mas imaginem se um processo de desvio de 5% do PIB nacional, para um grupo de bilionários, em nome de uma dívida ilegítima poderia ter transparência? Se a população entendesse que o país que deixa 33 milhões de brasileiros passar fome, tem ruas esburacadas e gente morrendo na fila do SUS, transfere diariamente bilhões para super-ricos? Isso em nome de uma dívida, inclusive, que no fundo, já foi paga várias vezes? Por isso mesmo, esses processos não poderiam ser transparentes.

A Eletrobras, que o governo Bolsonaro entregou neste ano, foi “doada” por cerca de um sétimo dos juros pagos aos banqueiros no ano passado. A maior empresa de energia da América Latina foi entregue, praticamente em troca de bananas. O que revela que a história de privatizar empresas públicas para pagar a dívida, repetida tantas vezes por Paulo Guedes e outros, é uma conversa fiada que não tem limites.

A situação do Estado brasileiro é radicalmente complexa e, portanto, requer ações determinadas. Os capitalistas não investem em obras de infraestrutura, seja porque não têm dinheiro (no caso dos pequenos e médios), seja porque podem ter muito mais retorno especulando com papéis da dívida pública (no caso dos grandes capitalistas). Por outro lado, a sucção de recursos provocada pela dívida pública, faz com que o Estado fique trabalhando o tempo todo somente para engordar os especuladores. Não sobra dinheiro para mais nada. Quando acontece uma enchente, como há poucos dias no Sul do Brasil, o povo pobre fica debaixo de água, porque o Estado não tem dinheiro para fazer obras fundamentais para um mínimo de bem-estar da população. Isso em um país onde a estrutura de arrecadação é regressiva, ou seja, feita através de impostos indiretos, pagos pelo povo.

Do ponto de vista econômico algumas medidas não poderiam faltar em um processo de reconstrução econômica do Brasil, cuja economia foi quase destruída pelos golpistas: retomada do crescimento; programa vigoroso de combate à fome; programa de investimentos em infraestrutura urbana; recuperação do mercado consumidor interno; revogação do Teto de Gastos; nova política de preços dos derivados do petróleo; amplo programa de recuperação da indústria e inovação; política de exploração mineral do país; política pública e integrada de segurança hídrica para o país; reversão das privatizações na Petrobrás e na Pré–Sal Petróleo S.A. (PPSA); reversão de todas as privatizações ocorridas desde o golpe de 2016; estruturação de uma política de defesa da Amazônia.

A implementação dessas medidas – e tantas outras essenciais – depende de alteração na correlação de forças, e não apenas de competência técnica. Ademais, o encaminhamento das medidas elencadas implica na retomada do papel que foi retirado do Estado brasileiro, principalmente a partir do golpe, de indutor do crescimento e do desenvolvimento nacional. O país precisará ser reconstruído. Lula, em entrevista coletiva no dia 02 de dezembro último, repetiu o que já tinha dito em outras ocasiões: “ganhei as eleições para governar para o povo pobre mais humilde deste país. Esta é a minha missão”. Esta genuína convicção do futuro presidente, para se tornar ação concreta, terá que encarar o problema da dívida pública e os seus beneficiários, que são muito poderosos.

Educação sob Lula: os consensos e as polêmicas, entrevista com Daniel Cara

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Equipe de transição parece concordar sobre recomposição orçamentária, fim das escolas militarizadas e revisão do “Novo Ensino Médio”. Mas como tratar as escolas privadas – em especial por meio do Fies e Prouni? Aí despontam as próximas disputas

Daniel Cara em entrevista a Thalita Pires, no Brasil de Fato. Outras Mídias – 08/12/2022

O Grupo de Trabalho de Educação da transição é composto por atores diversos: gestores, fundações empresariais, membros de universidades, representantes de trabalhadores e parlamentares. Entre eles, está em disputa o tipo de projeto de educação que o Brasil terá nos próximos quatro anos: investimento em educação 100% pública ou parcerias com a iniciativa privada.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel Cara, integrante do GT, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e coordenador do curso de licenciaturas da Universidade de São Paulo, afirma que, apesar disso, o grupo está em acordo sobre a revogação de uma série de políticas destrutivas aplicadas pelos governos Bolsonaro e Temer.

Entre elas está o fim das escolas cívico-militares, da alfabetização focada em um aplicativo, da atual política de formação de professores e da Política de Educação Especial, considerada excludente.

Outro ponto, esse ainda em discussão, é a aplicação de mudanças no Novo Ensino Médio, aprovado no governo Temer. “É preciso, no mínimo, reformar a reforma do Ensino Médio. Ela é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais”, diz Cara. “Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.”

Cara afirma, ainda, que o próprio presidente Lula pautou suas prioridades. “Na educação básica, ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)”, afirma. “Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.”

Confira a entrevista na íntegra:

O que existe até agora de diagnóstico em relação à educação no GT? Qual é o resumo do governo Bolsonaro em relação a esse tema?

O governo Bolsonaro, na prática, desligou o Ministério da Educação da tomada. Foi uma das áreas mais atacadas pelo governo, junto com ciência e tecnologia, pelo fato de que, para o governo Bolsonaro, essas áreas têm que servir como uma caixa de ressonância à propaganda bolsonarista.

Com isso, o Ministério da Educação foi completamente debelado. O último fato que ocorreu [na semana passada] foi um bloqueio dos recursos das universidades federais. Ele bloqueou os recursos, em sequência, por conta da pressão dos reitores e da sociedade civil, desfez o bloqueio para seis horas depois refazer o bloqueio. Então é um governo que de fato não se preocupa com a educação, pelo contrário, ataca a educação, porque sabe que tanto a educação quanto as ciências servem como espaços de racionalidade, de construção democrática, construção republicana. É exatamente isso que o governo Bolsonaro não quer que aconteça.

Numa primeira análise, entregue no dia 30 de novembro, apresentamos um relatório com quatro tópicos: alertas a respeito da desconstrução que foi feita da política educacional, com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), do Parlamento, do Ministério Público Federal (MPF) e de órgãos de controle externo, pautados pela sociedade civil; sugestão de reorganização da estrutura do Ministério da Educação; recomposição orçamentária e revogaço de medidas tomadas pelo governo que precisam ser extirpadas.

São políticas totalmente equivocadas, como a educação cívico-militar, de uma lógica absurda, que faz uma oposição equivocada entre a disciplina autoritária, que não funciona em termos de ensino-aprendizado, e as ciências pedagógicas que de fato funcionam. Nesse sentido nós já tomamos algumas decisões. A escola cívico-militar é um caso do revogaço.

Desses pontos que vocês já analisaram e entregaram para Lula, quais são os piores diagnósticos?
São muitas coisas, então vou falar aquilo que interessa objetivamente às pessoas. Um ponto é a Política Nacional de Alfabetização. O governo Bolsonaro acreditou que era possível alfabetizar uma criança por um aplicativo em seis meses. Utilizavam um aplicativo que é um dos componentes do processo de alfabetização na Finlândia, o mais irrelevante, diga-se de passagem.

Trouxeram esse aplicativo da Finlândia e fizeram uma propaganda absurda de que o aplicativo pode substituir professoras e professores. Então a política de alfabetização é toda pautada em uma ciência antiquada, num método antiquado, que é o método fônico. Inclusive cientificamente já vem sendo comprovado como um método ineficaz especialmente para línguas complexas e irregulares como a língua portuguesa. Para dar um exemplo bem fácil: no método fônico é muito difícil a criança perceber a diferença entre ‘osso’ e ‘aço’. São palavras com grafias completamente distintas e a separação silábica não é simples.

Outra política que tem que ser revogada é a Política Nacional de Educação Especial, que Bolsonaro transforma em uma política discriminatória, não em uma política inclusiva. A gente também está revendo essa questão.

Há outro debate que não é simples no grupo. É preciso revogar a Política de Formação de Professores proposta pelo Conselho Nacional de Educação na forma da Resolução 02/2019 (Base Nacional Comum Formação). Por que é preciso revogar essa medida? Porque ela sequer foi implementada, de tão ruim que ela é. Quem propôs essa política nunca formou um professor sequer.
Nesse momento sou professor da Universidade de São Paulo, essa é a minha filiação principal em termos profissionais. Sou coordenador do curso de licenciaturas de toda a USP pela Faculdade de Educação. Nesse semestre nós formamos 2.761 professores que vão trabalhar nas redes públicas brasileiras. Já as fundações e associações empresariais e também as pessoas do Conselho Nacional de Educação não podem falar sobre algo que elas desconhecem, que é formação de professores.

Para além disso, há uma preocupação enorme na recomposição orçamentária das universidades e Institutos Federais [IFs] de educação superior. Os IFs são o nosso ponto estratégico para democratizar o acesso ao ensino, são as instituições que de fato vão fazer com que o acesso ao ensino seja nacionalizado, pois conseguem regionalizar.

É claro que Lula e Dilma criaram muitas universidades e as interiorizaram. Mas os IFs têm demonstrado uma capacidade mais eficaz de interiorização, porque é uma estrutura mais dedicada ao ensino. Eles têm também um trabalho efetivo e qualificado de pesquisa e extensão, mas em relação ao ensino são imbatíveis, conseguem chegar a lugares em que as universidades não chegam.

Então a gente precisa recompor esse orçamento. E aí tem uma grande facilidade, porque essa é a obsessão do presidente Lula. Se tem um presidente da República com a compreensão de que o Brasil precisa da educação, ciência e tecnologia para se desenvolver é o Lula. Nesse sentido a gente está tranquilo. O nosso trabalho é muito mais indicar caminhos porque a agenda está estabelecida por quem foi eleito.

Considerando o histórico dos governos Lula e Dilma, que você mencionou, existe a necessidade de alguma mudança de rota daquilo que já foi realizado nas administrações do PT?

Na educação básica, há algumas coisas, como a primazia das avaliações de larga escala na educação. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), índice que é fruto de um exame, o Sistema de avaliação da Educação Básica (Saeb), e outras avaliações de larga escala precisam ser redimensionadas em relação ao seu tamanho dentro da área de educação.

O Brasil, desde 2007, se acostumou a fazer política de educação orientada para a avaliação, sendo que deveria ser o contrário, a avaliação deveria mostrar como foi aplicada a política de educação. Ou seja, quando você transforma a avaliação, que é um instrumento, no fim da política,

o resultado é que você faz tudo, menos educar com qualidade as crianças, adolescentes, jovens adultos e idosos que cursam a educação básica. O Brasil tem uma grande quantidade de adultos e idosos que não completaram a educação básica, cerca de 30 milhões de brasileiros já têm mais de 15 anos e estão em uma situação de analfabetismo funcional.

Outro tema que tem que entrar na agenda é discutir Fies e Prouni. São programas que devem ser tratados como emergenciais, mas precisam ter forte regulação do Governo Federal em termos de qualidade. Especialmente nos governos Temer e Bolsonaro, serviram essencialmente para enriquecer as universidades [privadas]. Já tinha acontecido esse problema com o Lula, mas com Temer e Bolsonaro isso se tornou muito pior, até pela relação que o governo Bolsonaro tem com o setor privado.

A família do Paulo Guedes e o próprio Paulo Guedes investem ou já investiram na área. Hoje outros membros da família dele investem na área, são lideranças da área da educação superior privada. Isso precisa ser revisto. Não porque eu estou aqui querendo dizer que a educação privada não tem que existir, não é disso que eu estou falando. Eu estou dizendo que a educação superior privada precisa ter qualidade. E se ela recebe apoio do poder público, ela precisa ter duas vezes mais qualidade, porque é o dinheiro do contribuinte que financia o Fies e o Prouni. O Prouni é de forma indireta, porque é uma renúncia fiscal, é um dinheiro que deixa de ser arrecadado, e o Fies é um sistema de empréstimo que tem um impacto muito grande no Tesouro Nacional.

O Tesouro Nacional pertence a todas e todos nós. Nós construímos o Tesouro Nacional. Em termos de contribuição, as pessoas mais pobres do Brasil contribuem mais do que as mais ricas, porque mais do bolso delas é retirado para o financiamento das políticas públicas. Então as políticas públicas têm que priorizar as pessoas que mais contribuem para o orçamento público, que são os mais pobres. Por isso é preciso rever a forma como se dá a regulação do Fies e também do Prouni.

A gente tem uma perspectiva de atualização das políticas do governo Lula e Dilma, mas não adianta pensar só no passado, olhar só para o retrovisor, a gente precisa começar a construir o futuro, e é nisso que estou dedicado dentro da área da educação na transição governamental.

Hoje na educação existe disputa pelo recurso público. Muitas vezes se defende que ele vá de fato para as empresas privadas. Isso vem acontecendo em alguns estados, há projetos de lei para que a gestão seja privatizada. Existe essa disputa dentro do grupo de transição?

Tem pessoas que pensam isso, mas não têm coragem de dizer. Só que é importante frisar uma realidade: Lula teve 58 milhões de votos no primeiro turno. Bolsonaro teve isso no segundo turno. Com 900 mil votos a mais, Lula já venceria o Bolsonaro, mas ele teve três milhões a mais.

Aliados que chegaram no segundo turno não podem querer determinar toda a agenda do que vai ser o futuro governo, não em relação só à educação, mas a toda a transição.

Espero que o Lula nomeie Fernando Haddad como ministro da Fazenda, porque é um sinal claro de quem vai comandar o governo, de quem tem a responsabilidade de fazer um processo de gestão com aquilo que foi votado pelo eleitor. O eleitor indicou o Lula no primeiro turno. É importante frisar que o anti-Bolsonaro é o eleitor do segundo turno, não o do primeiro. Então nesse sentido, quem defende a educação privada tem que saber lidar com o tamanho que eles têm, um tamanho muito menor do que quem defende a educação pública de qualidade. É claro que nesse momento não estou querendo criar uma cisão, só estou dizendo que as forças têm que ser dimensionadas, porque esse é nosso compromisso com o eleitor, quem votou no Lula não quer educação privatizada, mas educação pública de qualidade.

Quais são os principais pontos que a equipe de transição já entrou em acordo para as sugestões para o futuro governo Lula?

Nesse momento nós acordamos a revogação da política de escola cívico-militar, revogação da Política Nacional de Alfabetização, revogação da Política de Educação Especial. Nós acordamos que é preciso debater a revogação da formação de professores conforme o Bolsonaro propôs, que é uma desconstrução dos de licenciaturas e de pedagogia. Nós também acordamos que é preciso, no mínimo, reformar a Reforma do Ensino Médio. Essa reforma é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais. Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.

Há ainda duas políticas que o presidente Lula agendou em relação à educação básica e uma terceira em relação à educação superior. Ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.

O custo do ‘não à educação’ para o desenvolvimento do Brasil, por Guggenberger .

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Teremos apagão de mão de obra qualificada sem os investimentos necessários para formar bons profissionais

Luís Fernando Guggenberger, Executivo de marketing, inovação e sustentabilidade da Vedacit, participa do Conselho de Governança do Gife – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, do Conselho Consultivo da GRI Brasil e do Conselho Fiscal do ICE

Folha de São Paulo, 08/12/2022

Você já parou para pensar na receita de sucesso de grandes indústrias e startups? Um dos fatores é a junção de conhecimentos técnicos, seja em linguagem de programação e outros ligados ao universo da tecnologia, ou nas diferentes disciplinas das engenharias, assim como é estratégico o estudo em negócios, finanças, recursos humanos, vendas e marketing.

Proponho então uma reflexão necessária sobre o futuro do ambiente de negócios no Brasil com a falta de investimento público na educação.

Cada vez que esse investimento é negligenciado, das universidades públicas às escolas técnicas, empresas são impactadas com a falta de mão de obra qualificado e com a necessidade de desenvolver mais pessoas dentro das organizações.

A criação de startups e novas tecnologias, que demandam estudos especializados, também diminui, em contraponto ao trabalho informal que cresce vertiginosamente.

Com o anúncio recente do governo do bloqueio de R$ 2,4 bilhões do orçamento do MEC (Ministério da Educação) deste ano, os institutos da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica terão uma perda de R$ 300 milhões, somando os cortes anteriores.

Nas universidades federais, a soma anual até o momento é de uma perda de R$ 763 milhões, com relação ao orçamento aprovado para 2022. Esses desinvestimentos terão impacto direto nas futuras gerações, que sofrerão com a falta de qualificação profissional.

Anunciar cortes nas universidades não é uma questão ideológica de “tirar dinheiro dos pesquisadores das áreas humanas”. Florianópolis é um exemplo concreto de como esse investimento faz a diferença.

Conhecida como uma das cidades do “Vale do Silício Brasileiro”, Santa Catarina reúne cerca de 19 mil startups, resultado da visão de futuro de antigos governantes.

Há cerca de 40 anos, professores universitários, especialmente nas áreas de engenharias e afins, fizeram cursos no exterior. O objetivo era fortalecer a vocação industrial do estado, mas os frutos colhidos foram além, com o desenvolvimento tecnológico de toda a região.

Afinal, as competências básicas para criação de uma startup incluem empreendedorismo, visão de negócios e a parte de programação, habilidade técnica que envolverá a solução.

Desta forma, ao diminuir os investimentos nas universidades agora, estamos enfraquecendo a capacidade empreendedora do país nos próximos anos. Desenvolveremos menos competências técnicas nos futuros profissionais e, consequentemente, teremos um apagão de mão de obra qualificada e de habilidades técnicas.

Atualmente, o mercado de trabalho já demonstra esse impacto especialmente na área de digitalização, na qual sobram vagas e faltam profissionais.

Pesquisa realizada pela Agência Alemã de Cooperação Internacional (Giz), em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), mostra especialmente as novas necessidades no setor agrícola, com vagas para operador de drones, engenheiro agrônomo digital, cientista de dados e engenheiro de automação.

Outra pesquisa do Senai indica que nos próximos dois anos o setor de tecnologia contratará mais de 400 mil profissionais, mas atualmente há apenas 106 mil trabalhadores capacitados.

Nas empresas, os investimentos em treinamentos técnicos são, em sua maioria, para colaboradores de nível não gerencial, segundo o estudo “O Panorama do Treinamento no Brasil”, da Associação Brasileira de T&D (ABTD) em parceria com a Integração Escola de Negócios.

A distribuição do investimento em treinamento e desenvolvimento de competências técnicas é de 47% para operação e indústria, 46% para áreas administrativas e 43% para equipe comercial.

As porcentagens só são invertidas, com o aumento no incentivo das competências comportamentais, para a alta liderança, com 52%, e para gerentes e supervisores, com 48%.

Já estamos pagando um preço alto pelo descaso histórico de governos anteriores, que não priorizaram como deveriam a educação, e o buraco fica cada vez mais profundo, com impacto direto na mão de obra qualificada em diversas carreiras não operacionais. Empresas podem até absorver parte desse custo, mas não é o suficiente.

É urgente olharmos e cobrarmos comprometimento de nossos governantes com a educação, especialmente se os projetos e planos de governo propostos durante as campanhas —seja de deputados, senadores, governadores ou do presidente— , serão realmente colocados em prática a partir do próximo ano.

Com profissionais preparados, aliados à inteligência e criatividade do brasileiro, as possibilidades de crescimento do país serão infinitas.

Transição

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Estamos vivendo momentos de grandes alterações na sociedade, neste cenário, a palavra transição tem grande relevância para a sociedade, um momento de grandes modificações, novos movimentos e novos horizontes, criando espaços de melhoras de um lado e perdas de outro, vivemos momentos de grandes transições sociais, econômicas, culturais, tecnológicas e políticas.

Vivemos momentos de medos e desesperanças convivendo lado a lado com espaços de confianças, solidariedade e esperanças, onde os seres humanos vislumbram melhoras na qualidade da vida, crescimento econômico e incrementos culturais convivendo com desequilíbrios sociais e degradação democrática. Vivemos num mundo marcada por grandes transições, que nos leva a refletir sobre conceitos fundamentais para a convivência social.

Dentre as grandes transições em curso na sociedade, encontramos transições de governos, mudanças políticas, novas construções sociais, novas agendas econômicas, novos modelos produtivos, novos modelos energéticos e o surgimento de pautas que geram perspectivas para uns e pesadelos para outros, com reivindicações legítimas e confrontos abertos, que geram guerras declaradas e desequilíbrios que levam a comunidade a momentos de caos generalizados.

Nestas transições, os agentes econômicos buscam garantir seus ganhos imediatos, a manutenção de seus patrimônios monetários, buscando blindar suas influências políticas e incrementar seus repasses materiais que garantem a perpetuação de seu poder visível e invisível, que perpassa anos, décadas… e, em muitos casos, milênios. Vivemos um momento de grandes transições produtivas, neste momento os grandes bilionários internacionais possuem grandes impérios de tecnologia, controlam dados e conhecimentos e garantem, com isso, o comando das estruturas sociais, dominam setores financeiros, controlam as mídias e influenciam as estruturas do poder político.

As novas formas de poder da sociedade contemporânea diferem enormemente das estruturas de poder convencional, cinquentas anos atrás os grandes detentores do poder econômicos eram os conglomerados siderúrgicos, automobilísticos e varejistas. Na contemporaneidade os donos do poder são os grupos de tecnologia, as chamadas big techs, grandes conglomerados que controlam todos os espaços no mundo digital e definem os pensamentos, criam valores, padrões de comportamento e novas formas de socialização dos seres humanos, vivemos num momento de grandes transições, que geram incertezas, medos e violências crescentes.

Os ventos da transição estão gerando novas formas de convivência social, aproximando os indivíduos no espaço virtual e afastando pessoas dos espaços físicos, gerando novas formas de relações sociais. A tecnologia nos aproxima no mundo virtual, mas ao mesmo tempo, gera distanciamento real, estamos cada vez mais sozinhos, solitários, individualistas, imediatistas, frios e, neste cenário, nos assustamos com os comportamentos do indivíduo na sociedade contemporâneo, que dissemina inverdades, degradação e ressentimentos.

Neste momento, estamos naturalizando a violência, cultuando a ignorância, defendendo a segregação, fomentando a degradação do mercado de trabalho, cultuando o deus mercado mas, neste momento de grandes transições, utilizamos seus lobbies para garantir suas benesses tributárias e suas isenções, falamos da ineficiência dos governos mas não refletem sobre suas ineficiências, sua incompetências e só prosperam degradando os direitos alheios, pouco investem na qualificação de sua mão de obra e criam novas obrigações e sem contrapartidas.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes transições e de contradições, o Brasil vive sempre em transições inacabadas, transitando do trabalho escravo para o modelo de assalariamento e, na contemporaneidade, estamos nos organizando para retornar um novo modelo de trabalho escravo. Estamos transitando de uma educação feudal para uma educação fordista e, não percebemos que vivemos no mundo do conhecimento. Sem projeto nacional, sem visão de nação, continuaremos transitando sem norte, sem rumo e perpetuando as misérias morais e a insensibilidade social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/12/2022.

Safatle: Anistia nunca mais

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Democracia foi dilapidada. Reconstruí-la exige punir os crimes de Bolsonaro, as chantagens dos militares e a politização das políticas. Primeiros meses do novo governo serão essenciais para isso. Senão estaremos fadados a repetir o passado…

Vladimir Safatle – Comissão Arns – OUTRA MÍDIAS – 01/12/2022

Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos. No final da ditadura militar, setores da sociedade e do governo impuseram o silêncio duradouro sobre crimes contra a humanidade perpetrados durante os vinte anos de governo autoritário. Vendia-se a ilusão de que se tratava de astúcia política. Um país “que tem pressa”, diziam, não poderia desperdiçar tempo acertando contas com o passado, elaborando a memória de seus crimes, procurando responsáveis pelo uso do aparato do Estado para prática de tortura, assassinato, estupro e sequestro. Impôs-se a narrativa de que o dever de memória seria mero exercício de “revanchismo” – mesmo que o continente latino-americano inteiro acabasse por compreender que quem deixasse impunes os crimes do passado iria vê-los se repetirem.

Para tentar silenciar de vez as demandas de justiça e de verdade, vários setores da sociedade brasileira, desde os militares até a imprensa hegemônica, não temeram utilizar a chamada “teoria dos dois demônios”. Segundo ela, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados. Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania. Já no século 18, o filósofo John Locke, fundador do liberalismo, defendia o direito de todo cidadão e de toda cidadã matar o tirano.

Pois toda ação contra um estado ilegal é uma ação legal. Note-se: estamos a falar da tradição liberal.

Os liberais latino-americanos, porém, têm essa capacidade de estar sempre abaixo dos seus próprios princípios. Por isso, não é surpresa alguma ouvir um ministro do Supremo Tribunal Federal, como Dias Toffoli, declarar, em pleno 2022, pós-Bolsonaro: “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar (…) o Brasil é muito mais forte do que isso”.

Afora o desrespeito a um dos países mais importantes para a diplomacia brasileira, um magistrado que confunde exigência de justiça com clamor de ódio, que vê na punição a torturadores e a perpetradores de golpes de estado apenas vingança, é a expressão mais bem acabada de um país, esse sim, que nunca deixou de olhar para o retrovisor. Um país submetido a um governo que, durante quatro anos, fez de torturadores heróis nacionais, fez de seu aparato policial uma máquina de extermínio de pobres.

Alguns deveriam pensar melhor sobre a experiência social de “elaborar o passado” como condição para preservação do presente. Não existe “superação” onde acordos são extorquidos e silenciamentos são impostos. A prova é que, até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional. Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos. Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição, capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se auto-anistiassem. Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que “ficou preso no passado”. Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura. Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia, escondendo números, negando informações, impondo a indiferença às mortes como afeto social, impedindo o luto coletivo.

É importante que tudo isso seja lembrado neste momento. Porque conhecemos a tendência brasileira ao esquecimento. Este foi um país feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento. Essa é sua tendência natural, seja qual for o governante e seu discurso. As forças seculares do apagamento são como espectros que rondam os vivos. Moldam não apenas o corpo social, mas a vida psíquica dos sujeitos.

Cometer novamente o erro do esquecimento, repetir a covardia política que instaurou a Nova República e selou seu fim, seria a maneira mais segura de fragilizar o novo governo. Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um “pesadelo” que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele. O que vimos, com toda sua violência, foi o resultado direto das políticas de esquecimento no Brasil. Foi resultado direto de nossa anistia.

A sociedade civil precisa exigir do governo que se inicia a responsabilização pelos crimes cometidos por Bolsonaro e seus gerentes. Isso só poderá ser feito nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto. Quando falamos em crimes, falamos tanto da responsabilidade direta pela gestão da pandemia, quanto pelos crimes cometidos no processo eleitoral.

O Tribunal Penal Internacional aceitou analisar a abertura de processo contra Bolsonaro por genocídio indígena na gestão da pandemia. Há farto material levantado pela CPI da Covid, demonstrando os crimes de responsabilidade do governo que redundaram em um país com 3% da população mundial contaminada e 15% das mortes na pandemia. Punir os responsáveis não tem nada a ver com vingança, mas com respeito à população. Essa é a única maneira de fornecer ao estado nacional balizas para ações futuras relacionadas a crises sanitárias similares, que certamente ocorrerão.

Por outro lado, o Brasil conheceu duas formas de crimes eleitorais. Primeiro, o crime mais explícito, como o uso do aparato policial para impedir eleitores de votar, para dar suporte a manifestações golpistas pós-eleições. A polícia brasileira é hoje um partido político. Segundo, o pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população. Forças que hoje atuam como um estado dentro do estado, um poder à parte.

Espera-se do governo duas atitudes enérgicas: que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República; e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial. Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido.

Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político. A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou como uma força exterior, como uma força militar a submeter a sociedade. Se errarmos mais uma vez e não compreendermos o caráter urgente e decisivo de tais ações, continuaremos a história terrível de um país fundado no esquecimento e que preserva de forma compulsiva os núcleos autoritários de quem comanda a violência do Estado. Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país.

A “austeridade” acampa nas portas dos quartéis, por Gilberto Maringoni

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O fascismo e a “disciplina fiscal” dos mercados caminham de mãos dadas. Ambos clamam por soluções não-racionais, não institucionais e não-democráticas. É impossível estabelecer políticas neoliberais sem romper com a democracia

Gilberto Maringoni – Outras Palavras – 28/11/2022

Austeridade fiscal não é uma iniciativa episódica ou um freio de arrumação nas contas públicas. Austeridade fiscal é a forma perene de se administrar o capitalismo do século XXI através da ameaça infindável de mais cortes e mais constrangimentos aos orçamentos públicos. As políticas de austeridade fiscal são sempre brandidas pelo “mercado” e por seus representantes no aparelho de Estado como uma espécie de castigo bíblico contra o pecado capital (!) da gastança, que pode ser tanto o investimento em obras de infraestrutura, quanto o de levar comida ao prato dos miseráveis. A austeridade fiscal age como ameaça punitiva preventiva contra tentações de expansão de tarefas do Estado, como espada desembainhada sempre pronta a ser manuseada contra os inimigos da boa governança. Austeridade fiscal é a doutrina do choque aplicada à economia.

ESTAMOS EM CRISE, estamos em crise, estamos em crise e é preciso pagar por isso!

A AUSTERIDADE FISCAL é o complemento teoricamente racional ao bolsonarismo de porta de quartel, à chantagem de que se meu candidato não ganhou é porque fraude houve. O apelo positivista-jagunço à ordem equivale à criminalização de políticas fiscais expansivas. O golpismo dos ressentidos não nasceu junto das políticas de austeridade, mas na quadra histórica de esgarçamento do tecido social e fragmentação do mundo do trabalhoo austericismo retroalimenta a busca por soluções mágicas na esfera política.

A AUSTERIDADE COMO MODO DE GESTÃO embute um componente profundamente fatalista e mítico à gestão pública. Depois do infindável sacrifício da contenção de dinheiro, eis que os céus se abrirão e a redenção do crescimento, do emprego e do dinheiro no bolso surgirá por encanto. O austericismo nos levará a uma solução mágica equivalente à do sebastianismo fardado resultante de vigílias coletivas por 7 dias e 7 noites em frente às tropas enfileiradas ou do socorro que virá dos ETs conectados aos celulares em nossas cabeças. A partir daí, o fogo purificador do golpe nos conduzirá à vida eterna.

AUSTERICÍDIO E FASCISMO caminham, pois, de mãos dadas. Ambos clamam por soluções não-racionais, não institucionais e não-democráticas. Pinochet (e Milton Friedman) cantaram a pedra há quase meio século: é impossível estabelecer políticas alucinadamente liberais na economia sem romper com a democracia. É preciso queimar pneus, é preciso bloquear estradas, é preciso vaiar Gil, é preciso metralhar alunos e professores em sala de aula, é preciso matar petralhas, é preciso escrever editoriais ameaçadores, é preciso manter o teto, é preciso privatizar, é preciso escrever cartas com conselhos arrogantes a Lula, é preciso lembra-lo que assim ele não vai governar, é preciso lembrar de fazer todos esquecerem as 700 mil mortes, é preciso, é urgente fazer alguma coisa!

AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE – com seu entulho modernizante de teto de gastos, responsabilidade fiscal, superávit primário, entre outras pérolas – são formuladas a partir da teoria econômica do celular na cabeça. E ai dos que não se enquadrarem em suas tábuas da lei: serão condenados ao déficit eterno e à eliminação do mercado, o nirvana dos bobos. Vigiar e punir é pouco. Austeridade e fascismo significa punir e punir em busca da redenção nas quatro linhas de qualquer coisa que surja a cada momento.

Tudo o mais é populismo, e será condenado aos infernos!