Pochmann: o exemplo chinês

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Em 20 anos, economia do país saltou da 23ª posição para a 2ª. Assume cada vez mais protagonismo na era digital: produz 80% dos painéis solares, 50% dos computadores e 45% dos veículos elétricos. Uma inspiração ao Brasil: é possível superar a pasmaceira

Marcio Pochmann – OUTRAS PALAVRAS – 17/10/2022

A China deslocou o centro dinâmico econômico mundial. Até o século 18, a Ásia, que abrigava as maiores economias da Era Agrária, perdeu posição para o Ocidente, que promovia a nova Era Industrial. Com a primeira Revolução Industrial (1750), a Inglaterra assumiu a centralidade no sistema capitalista de gravidade global e só foi substituída pelos Estados Unidos com o salto gerado pela segunda Revolução Industrial a partir do século 20.

De forma inédita desde os anos 1870, quando superaram o Produto Interno Bruto (PIB) do Reino Unido, os EUA se encontram atualmente diante de um adversário que assumiu a principal responsabilidade pelo dinamismo econômico

global. Depois da crise financeira de 2009, a China passou a responder por mais de 1/3 do crescimento da produção do mundo, assumindo cada vez mais o protagonismo na Era Digital.

Pela medida de riqueza da paridade do poder de compra adotada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia chinesa já ultrapassou o PIB dos EUA em 15%. Os reflexos dessa escalada interferem em diversas dimensões no relacionamento entre a China e os EUA, bem como na reconfiguração do restante do mundo.

Por conta disso, a transformação na geopolítica global é significativa. Ao final da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, somente os EUA representavam quase a metade do PIB global, o que permitiu construir a Ordem Mundial estruturada nos sistemas: monetário de Bretton Woods, comercial de livre comércio (GATT), da gestão econômica (FMI e Banco Mundial) e militar (OTAN).

Ao final da Guerra Fria em 1991, contudo, a presença dos EUA no PIB global havia decaído para 1/5 e, atualmente, para somente 1/6. Com isso, o projeto de modernidade Ocidental parece dar lugar à modernidade Oriental conduzida pela China, cujo marco tem sido o projeto de integração assentado pela nova Rota da Seda. Por ser a base de poder global, o PIB de uma nação termina por refletir, em maior ou menor medida, a expressão das forças tecnológica, monetária, econômica e militar. Neste sentido, a influência da China tem sido proporcionalmente maior na formação e decisão dos assuntos internacionais desde o início do século 21.

Por ter assumido a condição de oficina do mundo, a ascensão da China no setor manufatureiro alterou profundamente a competitividade econômica dos países. Enquanto a economia chinesa entre 2000 e 2020 saltou da 23ª posição para a 2ª (só superada pela Alemanha), os EUA decaíram da primeira para a quarta posição.

A China, que possuía apenas 10 empresas entre as 500 maiores do mundo em 2000, passou a ter 124 destas empresas em 2020, ultrapassando os EUA, que registraram 121 na lista da Revista Fortune. O sucesso chinês se traduz no fato de ser o elo-chave das cadeias de suprimentos globais de valor.

A dependência das economias da China se acelerou ainda mais com a pandemia da Covid-19, chegando a controlar cerca de 45% dos veículos elétricos, 50% dos computadores, 80% dos painéis solares e 90% dos minerais da terra. Em 2021, por exemplo, o superávit comercial da China com o mundo foi de 675 bilhões de dólares, um recorde, considerando que foi 60% superior ao do ano de 2019.

Embora o Brasil tenha perdido posição relativa, diante da retomada do neoliberalismo nos últimos anos, sua participação no PIB global de 2,3% medido pelo poder de compra, levemente abaixo do seu peso na população mundial (2,8%), ainda permite a ele estar na parada da disputa de futuro e avançar na Era Digital. Por mais que o governo atual possa apostar contra o Brasil, a esperança se afirma em relação ao ano que vem, quando o Brasil poderá retomar a via do desenvolvimento sustentável com inclusão social e aprofundamento democrático, superando o que hoje parece ser insuperável.

Terapia de choque na economia mundial, por Michael Roberts.

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A alta dos juros, imposta agora por quase todos os bancos centrais, não pretende reduzir a inflação. Visa criar mais desemprego, esvaziar o poder de luta dos trabalhadores e ampliar os lucros. Não dará certo, e o sofrimento será imenso

Michael Roberts – OUTRAS PALAVRAS – 13/10/2022

O termo “terapia de choque” foi usado para descrever a mudança drástica de uma economia planejada, baseada na propriedade estatal, existente na antiga União Soviética, para um modo de produção capitalista integral, em 1990. Eis que produziu uma grande queda nos padrões de vida, por uma década.

O termo “doutrina do choque” foi usado por Naomi Klein para descrever a destruição dos serviços públicos e do Estado de bem-estar pelos governos a partir da década de 1980. Agora, os principais bancos centrais estão aplicando uma “terapia de choque” na economia mundial: estão aumentando as taxas de juros com a intenção de controlar a inflação, mesmo havendo crescente evidência de que isso levará a uma recessão global no próximo ano.

Veja-se o que dizem alguns de seus porta-vozes. Chris Waller, membro do conselho do Federal Reserve [Fed, o banco central dos EUA] deixou bem clara essa intenção ao afirmar que “não estou pensando em desacelerar ou interromper os aumentos das taxas devido a preocupações com a estabilidade financeira”. Ou seja: mesmo que o aumento das taxas de juros comece a abrir fissuras nas instituições financeiras e em seus ativos especulativos, isso não importa.

Da mesma forma, Joachim Nagel, presidente do Deutsche Bundesbank, está resoluto em manter esse objetivo, apesar de a zona do euro e da Alemanha em particular já entrarem em recessão: “As taxas de juros devem continuar a subir – e de forma significativa”. Veja-se Nagel não quer apenas taxas de juros mais altas; ele quer que o BCE reduza seu balanço, ou seja, que não apenas pare de comprar títulos do governo, para manter os rendimentos dos títulos baixos; mas que, na verdade, passe a vender títulos, aumentando os seus rendimentos e contraindo a liquidez.

Eis o que Nagel afirma: “há um choque no preço da energia, cujos efeitos o banco central não pode mudar muito no curto prazo. No entanto, a política monetária pode impedir que ele salte e se amplie. Dessa forma, estamos quebrando a dinâmica da inflação e trazendo a evolução dos preços para nossa meta de médio prazo. Temos os instrumentos para isso, principalmente a alta das taxas de juros.”

Toda essa conversa machista dos banqueiros centrais esconde a realidade. O aumento das taxas de juros não reduzirá diretamente as taxas de inflação para os níveis pretendidos sem uma grande queda recessiva. Isso ocorre porque as atuais taxas de inflação, as maiores dos últimos de 40 anos, não foram causadas principalmente por “demanda excessiva” – ou seja, por gastos de famílias e governos –, mas devido à “oferta insuficiente”, particularmente na produção de alimentos e energia, mas também em produtos manufatureiros e tecnológicos mais amplamente.

Como se sabe, o crescimento da oferta foi restringido pelo baixo crescimento da produtividade nas principais economias, pelos bloqueios da cadeia de suprimentos na produção e no transporte, os quais surgiram durante e após a queda da covid e, mais recentemente, pela invasão russa da Ucrânia e pelas sanções econômicas impostas à Rússia pelos Estados ocidentais.

Estudos empíricos confirmaram que a espiral da inflação foi liderada pela oferta. Em um novo relatório, o Banco Central Europeu (BCE) constatou que mesmo o aumento do núcleo de inflação, que exclui os fatores de oferta de alimentos e energia, foi impulsionado principalmente por restrições de oferta. Eis o que está dito nesse relatório:

Os gargalos persistentes no fornecimento de bens industriais e a escassez de insumos, incluindo escassez de mão de obra devido em parte aos efeitos da pandemia de coronavírus (covid-19), levaram a um aumento acentuado da inflação… interrupções e gargalos de fornecimento e componentes fortemente afetados pelos efeitos da reabertura após a pandemia contribuíram juntos com cerca de metade (2,4 pontos percentuais) da inflação na área do euro em agosto de 2022.

Em seu último relatório sobre a situação do comércio e do desenvolvimento, a UNCTAD chegou a conclusão semelhante. Os seus técnicos calcularam que cada aumento de um ponto percentual na taxa básica de juros do Fed reduziria a produção econômica nos países ricos em 0,5% e em 0,8% nos países pobres, nos próximos três anos. Anotou, também, que aumentos mais drásticos, de 2 e 3 pontos percentuais, deprimiriam ainda mais a “recuperação econômica já estagnada” nas economias emergentes.

Ao apresentar o relatório, Richard Kozul-Wright, chefe da equipe da UNCTAD que preparou esse relatório, perguntou: “É certo tentar resolver um problema do lado da oferta com uma solução do lado da demanda?”. E respondeu: “Achamos que é uma abordagem muito perigosa.” Exatamente.

Parece claro que os bancos centrais não conhecem as causas do aumento da inflação. Como confessou o presidente do Fed, Jay Powell: “entendemos melhor agora o quão pouco entendemos sobre inflação”. Ora, trata-se na verdade de uma abordagem ideológica por parte dos banqueiros centrais. Toda a conversa deles tem por trás o medo de uma espiral de preços e salários. É isso o que, no fundo, sustentam: à medida que os trabalhadores tentam compensar os aumentos de preços negociando salários mais altos, isso provocará mais aumento de preços, elevando as expectativas de inflação.

Martin Wolf, o guru keynesiano do Financial Times, resumiu essa teoria: “o que [banqueiros centrais] devem fazer é evitar uma espiral de preços e salários, que desestabilizaria as expectativas de inflação. A política monetária deve ser rígida o suficiente para conseguir isso. Em outras palavras, deve criar/preservar alguma folga no mercado de trabalho.” Portanto, dada essa “teoria”, trata-se de evitar que os salários subam, mesmo que isso possa aumentar o desemprego.

O chefe do Fed, Jay Powell, considera, no entanto, que esse resultado pode ser evitado. Segundo ele, a tarefa do Fed consiste “em princípio, (…) em moderar a demanda (…) obtendo uma redução dos salários, assim como da inflação, sem ter que desacelerar a economia e sem uma recessão que aumente o desemprego. Eis que há, pois, um caminho para obter esse resultado”.

Como disse o governador do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey: “não estou dizendo que ninguém vai receber aumento salarial – não me entendam mal. O que estou dizendo é que precisamos de moderação na negociação salarial, pois, em caso contrário, ela ficará fora de controle”.

Considere-se, agora, esta afirmação do principal macroeconomista do chamado mainstream, Jason Fulman: “Quando os salários sobem, isso leva os preços a subir. Se o combustível das companhias aéreas ou os ingredientes alimentares subirem de preço, as companhias aéreas ou os restaurantes aumentarão seus preços. Da mesma forma, se os salários dos comissários de bordo ou servidores subirem, eles também aumentarão os preços. Isso decorre do micro e do senso comum básico”.

Ora, tanto essa “microeconomia básica” quando esse “senso comum” postulados são bem falsos. A teoria e o suporte empírico para a inflação dos custos salariais e a teoria das expectativas de inflação são falaciosos.
Marx contestou a afirmação de que os aumentos salariais levam automaticamente a aumentos de preços há cerca de 160 anos, em um debate com o sindicalista Thomas Weston. Este afirmara que os aumentos salariais eram autodestrutivos, pois os empregadores apenas aumentariam os preços e os trabalhadores voltariam à estaca zero. Marx argumentou – como consta em Valor, Preço e Lucro – que “uma luta por aumento de salários segue apenas o rastro de mudanças anteriores nos preços”. Há muitas outras coisas que afetam as mudanças de preços: “a quantidade de produção, as forças produtivas do trabalho, o valor do dinheiro, as flutuações dos preços de mercado, as diferentes fases do ciclo industrial”.

Como se vê, agora, baixar os salários é a resposta dos bancos centrais ao aumento persistente dos preços. Mas os salários não estão aumentando como parcela da renda nacional ou do valor da produção; pelo contrário, é a participação nos lucros que vem aumentando desde e durante a pandemia.

De acordo com o relatório da UNCTAD, entre 2020 e 2022 “estima-se que 54% do aumento médio de preços no setor não financeiro dos Estados Unidos foi atribuído a margens de lucro mais altas, em comparação com apenas 11% nos 40 anos anteriores”. O que tem impulsionado o aumento da inflação tem sido o custo das matérias-primas (alimentos e energia em particular) e o aumento dos lucros, não dos salários. Não se encontra, porém, uma fala sobre uma possível espiral de lucro-preço, tal como se encontra nas manifestações dos bancos centrais.

Ora, esse foi outro ponto levantado por Marx no debate com Weston: “Um aumento geral na taxa de salários resultará em uma queda da taxa geral de lucro, mas não afetará os preços das mercadorias”. Logo, o que realmente preocupa os banqueiros centrais vem a ser uma queda na lucratividade.

Assim, os bancos centrais continuam aumentando as taxas de juros, passando da flexibilização quantitativa (QE) para o aperto quantitativo (QT). E eles estão fazendo isso simultaneamente em todos os continentes. Essa “terapia de choque”, empregada pela primeira vez no final da década de 1970 pelo então presidente do Fed dos EUA, Paul Volcker, acabou levando a uma grande queda da produção global, entre 1980-2.

A maneira como os bancos centrais estão combatendo a inflação por meio da elevação simultânea das taxas de juros está colocando também uma pressão enorme no sistema financeiro global: à medida que atuam nas economias avançadas, eles afetam também os países de baixa renda.

O que está espalhando o impacto do aumento das taxas de juros na economia mundial é o fortalecimento do dólar norte-americano. Houve uma alta de cerca de 11% desde o início do ano e ela produziu – pela primeira vez em duas décadas – a paridade do dólar com o euro. O dólar está forte porque se apresenta como um porto seguro para o dinheiro diante da inflação e das sanções e da guerra na Europa.

Ora, o dólar se fortalece porque a taxa de juros nos EUA está em alta. Em consequência, moedas importantes de outros países se desvalorizaram em relação ao dólar. Isso é desastroso para muitos países pobres ao redor do mundo. Muitos países – especialmente os mais pobres – não podem tomar empréstimos em sua própria moeda no valor ou nos vencimentos que desejam.

Diante desse quadro, os credores não estão dispostos a assumir o risco de serem pagos de volta nas moedas voláteis desses devedores. Em vez disso, esses países costumam tomar empréstimos em dólares, prometendo pagar suas dívidas em dólares – independentemente da taxa de câmbio. Assim, à medida que o dólar se torna mais forte em relação a outras moedas, esses pagamentos se tornam muito mais caros em termos de moeda nacional.

O Instituto de Finanças Internacionais informou recentemente que “os investidores estrangeiros retiraram fundos dos mercados emergentes por cinco meses consecutivos na maior sequência de saques já registrada”. Este é o capital de investimento crucial que está saindo dos países emergentes em direção à “segurança” das moedas fortes, principalmente o dólar.

Além disso, à medida que o dólar se fortalece, as importações se tornam caras (em termos de moeda doméstica), forçando as empresas a reduzir seus investimentos ou gastar mais em importações cruciais. A ameaça do a inadimplência está crescendo assustadoramente.

Tudo isso está acontecendo por causa da tentativa dos bancos centrais de aplicar uma “terapia de choque” para enfrentar o aumento da inflação global. A realidade é que os bancos centrais não podem controlar as taxas de inflação com a política monetária, especialmente quando ela é orientada para a oferta.

O aumento dos preços não foi impulsionado pela “demanda excessiva” dos consumidores por bens e serviços ou por empresas investindo pesadamente, ou mesmo por gastos governamentais descontrolados. Não é a demanda que é “excessiva”, mas o outro lado da equação de preços, ou seja, é a oferta que está muito fraca. E essa última, os bancos centrais não podem controlar!

Eles podem aumentar as taxas de juros o quanto quiserem, mas isso terá pouco efeito para reduzir o aperto do lado da oferta, exceto talvez para enfraquecê-la ainda mais. Esse aperto de oferta não se deve apenas a bloqueios de produção e transporte ou à guerra na Ucrânia; deve-se também, ainda mais, a um declínio subjacente de longo prazo no crescimento da produtividade das principais economias – ademais, por trás desse decaimento, há o declínio persistente do investimento devido à falta de lucratividade.

Ironicamente, o aumento das taxas de juros reduzirá os lucros. Os analistas já reduziram suas expectativas de ganhos no terceiro trimestre das grandes empresas dos EUA em US$ 34 bilhões, nos últimos três meses. Os analistas agora estão antecipando o menor aumento nos lucros desde o pico da crise do Covid. Eles esperam que as empresas listadas no índice de ações norte-americano S&P 500 registrem um crescimento de lucro por ação de apenas 2,6% no trimestre de julho a setembro, em comparação com o mesmo período do ano anterior.

É uma terapia de choque que afeta a economia global, mas não a inflação diretamente. Quando as principais economias entrarem em queda sincronizada, a inflação deverá cair, mas como resultado da recessão.

Estado e Mercado têm o desafio de superar a semiestagnação juntos, por Lacerda.

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Antônio Corrêa de Lacerda – 16/10/2022

O Estado de São Paulo

A semiestagnação do crescimento econômico e o baixo nível de investimentos no Brasil geraram um passivo social imenso: 24,3 milhões de brasileiros estão fora do mercado de trabalho (subutilizados), o que corresponde a cerca de um quarto da população economicamente ativa; enquanto 125,2 milhões de pessoas convivem com algum grau de insegurança alimentar e outros 33 milhões passam fome diariamente.

A elevação do custo de vida e a deterioração fiscal também são aspectos importantes. Sob o ponto de vista da política econômica, superar nossas mazelas implicará uma profunda mudança de rumos. Os desafios da pandemia de covid-19, os reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia, com nova configuração geopolítica e implicações para as cadeias internacionais de suprimentos, representam também oportunidades.

A semiestagnação do crescimento econômico e o baixo nível de investimentos no Brasil geraram um passivo social imenso: 24,3 milhões de brasileiros estão fora do mercado de trabalho (subutilizados), o que corresponde a cerca de um quarto da população economicamente ativa; enquanto 125,2 milhões de pessoas convivem com algum grau de insegurança alimentar e outros 33 milhões passam fome diariamente.

A elevação do custo de vida e a deterioração fiscal também são aspectos importantes. Sob o ponto de vista da política econômica, superar nossas mazelas implicará uma profunda mudança de rumos. Os desafios da pandemia de covid-19, os reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia, com nova configuração geopolítica e implicações para as cadeias internacionais de suprimentos, representam também oportunidades.

A par das questões de ordem conjuntural, há também questões estruturais. Os investimentos exercem papel muito relevante para a superação da semiestagnação. A média da formação bruta de capital fixo em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que é o total dos investimentos realizados na economia envolvendo, além de infraestrutura, máquinas e equipamentos, é de apenas 17% do PIB, nível bem abaixo da média global, de 26% do PIB, e dos países em desenvolvimento, de 33% do PIB.

É preciso superar a falsa dicotomia entre Estado e mercado. Na verdade, as boas práticas e a literatura internacionais mostram que o papel do Estado é fundamental, mas também o setor privado é muito relevante para o desenvolvimento. O erro estaria em atribuir somente a um deles essa tarefa. Claramente o que se denota é que o Estado tem papéis que são imprescindíveis.

Outra falsa contradição é entre poupança e investimento. A economia tradicional, a teoria ortodoxa, sempre colocou a poupança como um pré-requisito para o investimento. Mas a experiência empírica e a boa literatura têm demonstrado que a poupança é o resultado do processo. O investimento pode ser financiado via crédito e financiamento e, a partir da sua realização e seus efeitos sobre a demanda efetiva, gerar, como resultado, formação de poupança.

As decisões de investimentos respondem à expectativa futura de demanda e à rentabilidade marginal do capital esperada. Um ambiente econômico favorável e uma perspectiva positiva de crescimento da demanda e de retorno do capital estimulam as decisões de investimentos, para os quais a poupança não é pré-requisito, mas resultado do processo.

PROFESSOR-DOUTOR, COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA POLÍTICA DA PUC-SP, É PRESIDENTE DO COFECON

Carta Mensal – setembro 2022

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Neste momento de grandes inquietações e preocupações com relação aos rumos da sociedade brasileira, percebemos que vivemos momentos de escolhas fundamentais, ideias de nação diferentes que opõem princípios e valores que geram receios e fortes indagações para o futuro da nação.

Vivemos momentos de escolhas difíceis que geram medos e preocupações, de um lado percebemos discursos de um grupo político que busca uma redução do Estado na economia, visto como uma forma de impulsionar as atividades produtivas, acreditando que o mercado é o grande gerador de crescimento econômico e a busca pelo desenvolvimento, gerando bem-estar social e melhorias das condições da população, garantindo empregos, salários e novas perspectivas para um ambiente marcado por grandes transformações. Defendendo mais privatização, mais concorrência, menor regulação e menor burocracia, acreditando que o mercado é o setor mais consistente para a construção do tão chamado desenvolvimento econômico.

Do outro lado, encontramos uma forma de enxergar a sociedade, embora acredite que estas visões não sejam antagônicas, acredito que são visões diferentes, onde esta corrente acredita que o processo de desenvolvimento prescinde do Estado Nacional, agente fundamental para construir o planejamento, formular as estratégias para garantir a melhoria e o bem-estar social da população. Nesta visão, o Estado deve incentivar o aumento da renda da comunidade, garantindo mais oportunidade para a população, garantindo empregos e melhora da renda, instrumentos fundamentais para angariarmos melhoras sociais e a empregabilidade.

Esta discussão vem ganhando espaço na sociedade brasileira desde a redemocratização, colocando em campos opostos grupos políticos que se enfrentam na contemporaneidade, representados pelo presidente atual e um ex-presidente, onde devemos destacar os indicadores econômicos, as performances e suas heranças como instrumento de tomada de decisão.

Para piorar as escolhas eleitorais precisamos acrescentar uma pitada de discussões desnecessárias e agressões constantes, discursos de ódios e de ressentimentos, além de políticas centradas em mentiras, as chamadas Fake News, e ataques verbais, onde percebemos o baixo nível das conversações, onde cada grupo usa sua retórica para devastar os opositores, com isso, percebemos o crescimento de discursos oportunistas, agressivos e carregados de ressentimentos.

Destacamos ainda, as agressões e ataques relacionadas as questões religiosas, gerando destruição de imagens, discursos agressivos estimulados por representantes religiosos que fomentam as agressividades, gerando um ambiente de confrontos e conflitos que podem criar constrangimentos e violências no decorrer do pleito e, principalmente, nos momentos finais das eleições, onde os grupos perdedores podem incorrer em convulsões, agressividades e ressentimentos.

O mês de setembro de 2022 foi marcado por grandes inquietações políticas, as eleições poderiam culminar num momento de exaltação na democracia brasileira, momento fundamental da consolidação das instituições nacionais, mostrando para a comunidade internacional que a sociedade brasileira estava madura e consciente da necessidade e importância dos avanços democráticos.

Setembro de 2002 nos trouxe a comemoração dos 200 anos da independência, um momento central da história nacional, mas infelizmente, as comemorações foram abortadas em prol de discursos eleitorais, carregados de ressentimentos, agressões e violências verbais, com isso, percebemos que caminhamos para uma eleição sem propostas, sem discussões relevantes e sem rumo para enfrentarmos os anos vindouros e perpetuando um futuro preocupante.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O ‘apagão’ de professores, por Estadão.

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Ante projeção de que faltarão 235 mil professores na educação básica em 2040, é urgente melhorar atratividade da carreira, hoje opção só de poucos jovens que se sentem vocacionados

O Estado de São Paulo – 15/10/ 2022

O Brasil corre o risco de não ter professores em número suficiente para lecionar na educação básica. O alerta, muito oportuno neste Dia do Professor, foi dado pelo Instituto Semesp (ligado ao sindicato das mantenedoras de ensino superior), que prevê um déficit de 235 mil educadores no País em 2040, se for mantido o atual ritmo de formação docente. A projeção, grave e preocupante, joga luz sobre uma questão central para o presente e o futuro da educação brasileira: a pouca atratividade da carreira do magistério, reflexo dos salários mais baixos do que em outras áreas e das precárias condições de trabalho em muitas escolas.

O estudo foi apresentado na última semana de setembro e analisou uma série de variáveis ao longo da década passada. Primeiro, a evolução do número de ingressantes nas faculdades de licenciatura, como são chamados os cursos de formação de professores, assim como o total de concluintes. O cruzamento dos dados chamou a atenção para outro problema: as elevadas taxas de evasão, já que muitos universitários abandonam o curso antes da formatura.

A desproporção é impressionante. De 2010 a 2020, o número de ingressantes nas licenciaturas cresceu 61%, puxado pelas matrículas em cursos de educação a distância (EAD), enquanto o total de concluintes aumentou apenas 4%. Isso, no entanto, é só a ponta do iceberg: o estudo informa que mais da metade dos concluintes nesse período já era de professores com atuação na sala de aula. Esse dado remete à alarmante constatação de que a quantidade de novos docentes, na verdade, é provavelmente muito mais baixa.

Prova disso é a mudança no perfil etário dos professores em atividade no Brasil. De acordo com o estudo, o contingente de docentes com menos de 29 anos diminuiu 27%, ao passo que o de profissionais acima dos 55 anos aumentou 44% entre 2016 e 2021.

O professor, como se sabe, é o principal fator de aprendizagem dos alunos. Por isso, melhorar a formação docente é um passo indispensável para elevar a qualidade do ensino. O Brasil está longe de superar esse desafio − e um dos obstáculos é justamente a pouca atratividade da carreira do magistério, o que acaba afugentando os melhores candidatos. Tirando quem escolhe lecionar por genuína vocação, e felizmente ainda há gente assim, a verdade é que um vasto contingente de universitários só procura os cursos de licenciatura por suposta incapacidade de ingressar em carreiras em geral mais concorridas e, portanto, com melhor remuneração.

Até aqui, o debate mais amplo em torno da carreira do magistério tinha como foco a qualidade da educação. É consenso que maiores salários, melhores condições de trabalho e a perspectiva de progressão funcional ao longo dos anos são passos necessários para atrair profissionais mais qualificados − estudantes com nota alta o suficiente para ingressar em qualquer outra faculdade, mas que optam por uma licenciatura para serem professores. Pois bem, isso continua válido. A novidade duplamente lamentável agora é que a baixa atratividade da carreira do magistério desponta como empecilho até mesmo para suprir o número mínimo de profissionais nas salas de aula do País.

Sinais disso já aparecem aqui e ali. Neste ano, por exemplo, a rede estadual de São Paulo não conseguiu preencher todas as vagas de professores temporários para o Novo Ensino Médio. Em sua nova organização, o ensino médio passou a ter maior carga horária, o que demanda mais docentes. O mesmo ocorre nas escolas de tempo integral, outro avanço fundamental em andamento em São Paulo e nas redes de ensino de vários Estados. Desse modo, há demanda por mais profissionais, mesmo diante da projetada redução do número de alunos em decorrência da constante queda nas taxas de natalidade.

O alerta, portanto, está dado: ninguém poderá alegar que foi pego de surpresa. Desde já, evitar o anunciado “apagão” de docentes deve ser uma das prioridades dos governantes que tomarão posse em janeiro.

Valorização das startups deve cair, diz autor de livro sobre tecnologia e capital de risco

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Sebastian Mallaby pesquisou como investidores ajudaram a criar empresas como Apple, Google e Facebook

Rafael Balago – Folha de São Paulo – 14/10/2022

Para Sebastian Mallaby, a alta de juros em países como os EUA deve deixar os investidores em startups mais seletivos, o que deve levar a uma queda no valor de mercado de novas empresas que buscam financiamento.
“Esse novo clima financeiro trará ajustes. Em um ambiente no qual as taxas de juro estão a 6%, 7%, é muito caro travar seu dinheiro, pelo custo de oportunidade. Para compensar, investidores de risco devem esperar retornos mais altos, o que significa que eles só apoiariam as melhores empresas, e por um valor de mercado menor”, avalia Mallaby.

“Os preços vão se ajustar. O valor de avaliação das startups terá de ser mais baixo. Mas haverá muitas pessoas querendo investir em capital de risco. Não será como em 2000”, prossegue, citando a grande crise que atingiu o setor de tecnologia.

Mallaby, 58, é jornalista britânico e autor de “A Lei da Potência – Capital de Risco e a Criação de um Novo Futuro” (ed. Intrínseca). O livro conta detalhes da relação entre investidores de risco e a criação de empresas americanas que mudaram a história da tecnologia desde os anos 1950.

A obra, indicada como uma das melhores do ano pelo Financial Times, traz bastidores do surgimento de empresas como Intel, Atari, Apple, Cisco, Yahoo, Google e Facebook, e de como investidores ajudaram a transformar boas ideias em negócios capazes de gerar milhões de dólares em alguns anos.

O escritor conversou com a Folha por videochamada e falou também sobre outras mudanças no cenário atual para startups.

Como vê o cenário atual para o capital de risco, em um momento de alta nas taxas de juros e perspectiva de recessão, especialmente nos EUA? A Nasdaq tem caído bastante. Companhias de tecnologia tendem a crescer rápido, mas são mais voláteis e arriscadas, especialmente em seu estágio inicial. Em um mundo no qual as pessoas estão com medo do risco, o valor de avaliação delas deve cair.

No capital de risco, você está olhando para o dinheiro daqui a sete anos quando investe. Em um cenário onde as taxas de juro estão a 6%, 7%, é muito caro travar seu dinheiro, pelo custo de oportunidade.

Para compensar isso, investidores de risco devem esperar retornos mais altos, o que significa que eles só apoiariam as melhores empresas, e por um valor de mercado menor. Então, com certeza esse novo clima financeiro trará ajustes.
Mas, ao mesmo tempo, desde que o Google abriu o capital, em 2004, as empresas de tecnologia estão em uma sequência extraordinária. Por isso, se espalharam pelo mundo. Minha opinião é que os preços vão se ajustar. O valor de avaliação das startups terá de ser mais baixo, mas haverá muitas pessoas querendo investir em capital de risco. Não será como em 2000, quando a Nasdaq quebrou e o Vale do Silício meio que foi dormir por três anos.

O modelo de “vencedor leva tudo” deve seguir presente? No futuro, esse modelo pode ser menos dominante. Nos negócios que têm efeito de rede, quanto mais pessoas se atende, maior a margem de retorno. É diferente do modelo clássico, em que o custo de produção sobe conforme você produz mais.

Em marketplaces e negócios de rede, como Facebook e Google, quanto mais gente os utilizam, mais inteligentes eles ficam e maior a utilidade para o cliente. Na Amazon, você pode escolher milhões de produtos, e o custo de colocar uma coisa a mais para vender é quase zero. Então, essas redes têm uma propensão ao modelo de vencedor leva tudo.

Mas, se você voltar a um mundo onde o capital de risco apoia companhias que estão produzindo hardware, como baterias elétricas para carros, pode haver efeitos de rede menos fortes. Ainda haverá algum efeito de “vencedor leva tudo” porque quem tiver a melhor tecnologia provavelmente dominará o mercado. E, se uma companhia dominar, outras tentarão ir atrás porque as margens serão gordas para o líder.

O senhor já disse que unicórnios [empresas iniciantes avaliadas acima de US$ 1 bilhão] são o problema, e que a melhor forma de lidar com isso é prevenir a criação de bolhas no mercado. Teria sugestões de como evitar a formação de bolhas? Bolhas têm existido por toda a história das finanças. Não vamos nos livrar delas por completo, mas há falhas do governo com os unicórnios.

As qualidades que um fundador precisa ter para começar um negócio não são as mesmas para tocar uma empresa madura. Frequentemente você tem uma mudança de liderança em algum ponto. Só que os fundadores de unicórnios tem recebido muito poder, por meio de ações com superpoder de voto. E há investidores que não querem exercer a governança nem um assento no conselho. Assim, os fundadores de unicórnios ficam sem amarras e gastam capital como se fosse água. E as pessoas não dizem que o rei está nu.

Na WeWork, isso só ocorreu quando eles abriram o capital. Quando você se torna uma companhia pública, haverá especialistas e jornalistas que olharão tudo com cuidado. Aí todo mundo diz “isso era ridículo”. Mas ninguém diz isso antes porque os donos das ações não estão exercitando a governança e supervisionando o fundador de forma adequada. Essa é uma parte do mecanismo que poderia reduzir a formação de bolhas.

Ainda sobre unicórnios, qual sua análise sobre o modelo de blitzscaling (escalada rápida) hoje? Poderemos ter mais casos como o do Uber, que gastou muito dinheiro para dominar mercados oferecendo descontos aos clientes? Para startups iniciantes, especialmente de software, ter velocidade é apropriado. Quanto mais rápido você escala, mais você terá retornos de margem.Investidores de risco colocam dinheiro e dão seis ou nove meses para as startups decolarem, e você precisa ser rápido para ter resultados a mostrar. Então, é uma boa coisa, que empurra as companhias a serem ambiciosas e conquistar coisas rápido.

Mas há muitos exemplos de companhias que foram muito longe. A blitzscaling pode ser um problema algumas vezes. Na América, hoje, quando as pessoas repetem a frase de Mark Zuckerberg, “mova-se rápido e quebre coisas”, elas fazem isso para rir dele e do Facebook. Mas não acho certo.

Sobre quebrar coisas, depende do que você quebra. Se você lança a versão 1.8 do seu programa e ela não é boa, você só mexe no código e conserta rapidamente. Se você está fazendo hardware e tem que construir uma fábrica, então consertar o erro será mais difícil. E quando o Facebook se torna grande como é, isso tem consequências globais.
Quebrar coisas pode significar quebrar a sociedade. E você não quer isso.

Como governos, como o do Brasil, podem agir para atrair mais investidores de risco? A primeira coisa é ter o governo investindo em treinamento, tecnologia e pessoas. Apoiar os estudantes que querem aprender ciência, tecnologia, engenharia e matemática, e apoiar as pessoas que vão fundar empresas de tecnologia.

A segunda coisa é pensar sobre regras de propriedade intelectual. É importante que, quando algo é inventado em uma universidade, seja possível licenciar a tecnologia e criar uma empresa com ela, de modo que a universidade receba alguns royalties. Mas isso não pode ser muito restritivo, porque queremos que as companhias sejam lucrativas.

Se elas forem muito, muito lucrativas, isso vai, é claro, aumentar a desigualdade. Mas, ao mesmo tempo, há um padrão claro: toda vez que surge um novo unicórnio, as pessoas que trabalham ali desde o começo veem a experiência de crescer, que é realmente excitante, e depois querem fazer de novo. Aí você começa outra empresa, ajuda alguém a fazer isso. Ou se torna investidor. Então, cada unicórnio criado no Brasil será um acelerador para o mundo dos negócios de tecnologia.

E mais uma coisa: se você tornar os detalhes das coisas mais parecidos com os dos EUA, isso tornaria mais fácil a ida de empresas de capital de risco ao Brasil. Essas pessoas têm muita experiência no Vale do Silício e sabem o que estão fazendo. Elas podem ajudar as companhias do Brasil a crescerem e a vender dentro dos EUA. Então, padronizar as coisas no modo americano seria uma boa ideia.

E o que os governos não deveriam fazer? Governos com frequência querem colocar dinheiro direto em investimentos de risco. Isso foi feito em muitos países, e o exemplo de maior sucesso é Israel, onde o governo deu dinheiro para criar fundos de capital de risco, em termos muito generosos. Foi um grande subsídio.

A coisa interessante é que eles pararam de fazer isso muito rápido: uma vez que as empresas de capital de risco tiveram sucesso, eles disseram, “ok, vocês aprenderam. Agora podem fazer sozinhas”. E isso é muito importante. Na Europa, o governo coloca muito dinheiro em capital de risco, de um jeito que bagunça as coisas para o capital privado, porque há todo esse dinheiro do governo, que não precisa necessariamente ter um alto retorno. Não é um dinheiro muito saudável, porque o governo não tem a mesma experiência em aconselhar o empreendedor. Então você tem muitos investimentos ruins e empresas ruins.

É uma boa ideia que os investidores tomem todo o risco no começo. Se perderem, perderão 100% do próprio dinheiro, e os contribuintes não pagam nada. Assim, os investidores têm um forte incentivo para alocar capital com bons empreendedores, pensar bem sobre quais startups apoiar e trabalhar duro para ajudá-las a crescer. Se eles falharem, ficam sem nada. Tudo bem. Isso é capitalismo. Mas se eles tiverem sucesso, têm de pagar impostos, mas não muito, porque eles tomaram todo o risco no começo.

Nos EUA, as sociedades de investimento de risco pagam zero em impostos. Os impostos são pagos só pelos sócios que colocam dinheiro na sociedade. Não há taxação dupla. E há impostos sobre os ganhos de capital. Algo entre 25% e 30% me parece bom.

Teria algum conselho para o leitor que nunca investiu em capital de risco, mas se interessou em fazer isso? É um investimento caro. Você coloca o dinheiro em um fundo, que será tocado por profissionais que entendem tecnologia.

Eles encontram todas essas pessoas que querem abrir empresas e dizem não para a maioria delas. Esse fundo irá cobrar taxas caras, como 2% do capital por ano e talvez 20% dos lucros.

Se você tem uma poupança limitada, provavelmente há coisas melhores a fazer. A primeira regra para investidores individuais é tentar pagar menos tarifas e impostos. Outra é espalhar suas apostas, e o capital de risco pode ser uma delas. Se você tem muitas reservas e é rico, faria sentido colocar algum dinheiro em capital de risco. De outro modo, eu não faria isso.

AIO-X
Sebastian Mallaby, 58
Estudou história moderna em Oxford e fez carreira como jornalista econômico e autor de livros. Foi colunista do Washington Post, editor no Financial Times e chefe da sucursal da revista The Economist em Washington. É membro sênior do Council on Foreign Relations.

O paradoxo da educação, por Rodrigo Zeidan.

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Na China, ser professor dá privilégios; no Brasil, ninguém briga por um sistema educacional melhor

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 15/10/2022

“Professor?”, perguntou o policial quando viu o cartão da universidade depois de ter me parado por estar andando de bicicleta na calçada, algo passível de multa. “Sim”, respondi no meu chinês macarrônico. “Humm…Por favor, não faça mais isso, mas pode ir embora”. Na China, ser professor dá privilégios, pois nenhuma outra profissão é tão respeitada; afinal, é uma honra seguir a carreira de Confúcio.

O respeito se traduz em desenvolvimento econômico. Não é à toa que Coreia do Sul, Japão e China, todos países mais pobres que o Brasil na década de 1950, hoje são mais ricos, seguros e desenvolvidos. Os sistemas educacionais desses países são muito melhores que a média mundial, professores são relativamente bem remunerados, e as famílias se dedicam fervorosamente para garantir que seus filhos entrem nas melhores escolas.

No Brasil, vivemos um paradoxo. No país onde estudar dá mais dinheiro, nenhuma camada da sociedade briga por um sistema educacional de primeiro mundo. E sim, no Brasil, o retorno da educação é altíssimo, resultado de décadas de estrangulamento do acesso ao sistema.

A renda de um brasileiro que termina o ensino médio é 148% (ou seja, 48% maior) que a média daqueles que não o completam. Pior, esse percentual para quem se forma no ensino superior chega a 394%. Para efeito de comparação, na Europa, esses percentuais são de 126% e 192%, respectivamente. Mesmo no México, educação não paga tanto. Lá, terminar o ensino médio resulta, em média, em 133% da renda de quem não termina e, para quem completa a universidade, os valores chegam a 217%. No relatório da OCDE sobre o sistema educacional dos principais países do mundo, em nenhum dos outros 36 países estudados há tal expectativa de ganho.

É comum reclamarmos do sistema educacional brasileiro. Falta tudo: de respeito aos profissionais até estrutura básica para o ensino; e isso mesmo quando os políticos não roubam a merenda. Mas nossos problemas começam em casa.

Valorizamos pouco a educação, seja nas camadas mais ricas ou mais pobres. Na verdade, uma família pobre não valorizar o ensino é racional, embora não a melhor escolha: como investimentos em educação demoram décadas para gerar retorno, a pressão do dia a dia é uma barreira para que os mais pobres se concentrem nos estudos.

O mesmo não pode ser dito das famílias mais ricas. Para muitas, educação em si não tem valor e só importa o diploma. Instrumentalmente, a razão é clara: a histórica dificuldade de acesso aumenta o ganho relativo dos poucos que conseguem se formar. No Brasil, também temos uma situação sui generis: faculdades que querem vender diplomas, alunos que querem comprá-los, e professores que se esforçam para atrapalhar a negociação. No Brasil, também é ilegal a venda de diplomas; à vista. Já a prazo?

Nesse dia dos professores, precisamos nos perguntar: qual dos dois candidatos pode nos tirar desse péssimo equilíbrio, no qual as condições dos professores são ruins e as famílias não valorizam o ensino? Sistemas educacionais não mudam da noite pro dia, mas a resposta é clara. Entre um governo que tentou expandir sobremaneira o sistema, mesmo com várias medidas que desperdiçaram recursos, e outro que considera professores doutrinadores e cujo MEC está sendo desmontado, a resposta é clara: Lula, por mais que tenha defeitos, levou a sério a educação brasileira. E sem educação, não teremos futuro.

Como as democracias morrem, por Levitsky e Ziblatt.

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LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
Clayton Mendonça Cunha Filho*

Lançado em 2018 nos Estados Unidos e traduzido para o português, no Brasil, ainda no mesmo ano, pela editora Zahar, o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é certamente um caso de best-seller imediato. Embora bastante recente, o livro já recebeu mais de cem citações da sua versão brasileira e quase oitocentas da sua versão original e segue suscitando debates e recebendo elogios ao redor do mundo, impulsionado por um Zeitgeist mundial em que a democracia enfrenta visíveis processos de erosão e ruptura.

O livro busca mostrar como a democracia pode e é frequentemente subvertida por dentro, pelas mãos de líderes e atores de tendência autoritária que, navegando através de suas mesmas instituições e poderes, terminam por transformá-la em um regime distinto e autocrático, sem necessariamente precisar utilizar das forças armadas ou de um golpe de Estado clássico. Segundo os autores, a morte da democracia atualmente viria principalmente através de medidas anunciadas com nobres intenções, tais como combate à corrupção ou segurança nacional, e coberta de vernizes democráticos, frequentemente avalizadas por instituições como parlamentos ou cortes de justiça.

A subversão democrática na maioria das vezes se daria através de medidas graduais e se iniciaria, na verdade, já através de medidas simbólicas e discursos polarizadores que buscam construir a ideia de ilegitimidade dos opositores. E prossegue através da captura ou neutralização de instituições de controle, tais como Procuradorias, Cortes de Justiça ou Tribunais de Contas, removendo seus membros mais independentes e/ou preenchendo-as com lealistas fanáticos, tanto para diminuir os riscos e limitações que tais instituições representariam aos objetivos do autocrata, quanto pelo potencial que representam na coerção dos adversários, que passam a enfrentar um campo de atuação cada vez mais desnivelado. E, apesar de as tendências autoritárias de líderes autocráticos serem frequentemente reconhecíveis e por vezes mesmo explicitamente anunciadas, desde muito antes de suas chegadas ao poder, tais líderes acabam sendo “normalizados” por parte de elites políticas que neles enxergam a possibilidade de se livrar de adversários incômodos. Minimizando os riscos ao próprio regime democrático, aproveitam-se de maneira interessada dos abusos contra seus adversários e terminam na maioria das vezes engolidos pelo avançar do processo.

O livro consta de nove capítulos e uma introdução bem encadeados entre si, nos quais os autores alternam entre a apresentação de suas teses ilustradas com casos ao redor do mundo, em distintos tempos, e capítulos onde as aplicam a episódios da história estadunidense. Assim é que, após resumir as teses do livro na Introdução, Levitsky e Ziblatt descrevem no Capítulo 1 os processos de chegada ao poder de outsiders autoritários em alianças com atores da elite política que pensavam instrumentalizá-los e se veem por eles engolidos. Já no Capítulo 2, focam em episódios semelhantes da história política dos EUA em que, no entanto, tais outsiders se viram barrados antes da presidência pelo papel de guardiões democráticos que atribuem aos partidos políticos e suas elites; e, no Capítulo 3, prosseguem com a análise das mudanças introduzidas no sistema de primárias dos partidos do país e que as teriam tornado potencialmente mais porosas à passagem de líderes dessa natureza, sendo Trump uma espécie de culminação do processo.

Nos Capítulos 4 e 5, por sua vez, retornam às ideias mais gerais acerca da morte democrática, descrevendo em detalhes, no quarto capítulo, os processos internos de tomada gradual de poder pelos autocratas eleitos através da cooptação das instituições de controle e da perseguição e afastamento dos principais adversários; e, no quinto, desenvolvem sua tese principal. Para os autores, além de boas constituições e instituições eficientes, a democracia para funcionar necessitaria do que eles chamam de regras não escritas que a protejam. Uma cultura política de tolerância mútua entre os adversários e o que eles chamam de reserva institucional (forbearance), ou seja, o “ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito” (p. 107) constituiriam as grades de proteção necessárias à sobrevivência da democracia. Sua ausência implica polarizações excessivas, transformando adversários em inimigos essenciais e a competição democrática em um confronto sem meios-termos possíveis em que predominaria o oposto da reserva, chamada por eles de jogo duro constitucional (constitutional hardball), cujo resultado último não pode ser outro que a aniquilação da própria democracia.

Nos três capítulos seguintes, Levitsky e Ziblatt voltam novamente suas atenções ao caso estadunidense, descrevendo no Capítulo 6 as origens e o desenvolvimento das grades de proteção nos EUA, bem como momentos em que as mesmas foram ameaçadas ou mesmo ruíram, como durante a Guerra Civil, e seu processo de reconstrução após o fim da ocupação dos estados derrotados do Sul e que teriam então resistido firmemente pelo menos até os anos 1980. Os autores, no entanto, admitem, ao fim do capítulo, que devem “concluir com uma advertência perturbadora. As normas que sustentam nosso sistema político repousavam, num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a desdemocratização do Sul e a consolidação das leis de Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no século XX” (p. 140). Após as políticas de inclusão dos anos 1960 que desmantelaram a segregação racial sulista, o país teria finalmente se democratizado plenamente, mas a polarização política e as ameaças às grades de proteção voltaram a crescer cada vez mais. No Capítulo 7, então, passam a descrever com exemplos concretos o abandono cada vez maior das regras não escritas sobretudo por parte do Partido Republicano, que passa a se enraizar cada vez mais nos conservadores estados do Sul, incrementando significativamente a polarização. Anteriormente, a heterogeneidade constitutiva dos partidos políticos estadunidenses, com democratas conservadores no Sul racista, mas progressistas no Norte liberal, e republicanos conservadores no Norte, mas progressistas no Sul, conferia certo equilíbrio e proteção ao sistema, segundo sua interpretação. Por fim, no Capítulo 8, os autores se concentram em descrever as sucessivas violações de Donald Trump às grades de proteção do país e as possíveis consequências nefastas que daí adviriam para o futuro democrático estadunidense.
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evitsky e Ziblatt concluem o livro no Capítulo 9, “Salvando a Democracia”, o qual iniciam admitindo mais uma vez que a excepcionalidade democrática dos EUA estivera ancorada na exclusão racial e que as tentativas de superá-la no século XX teriam trazido de volta a polarização e os ataques às grades de proteção que estariam ameaçando a democracia no país atualmente. Tentando, talvez, passar um tom algo mais otimista, voltam-se em seguida a listar alguns países ao redor do mundo em que a democracia estaria sendo aumentada ou pelo menos ainda plenamente preservada, e que seriam, segundo eles, ainda a “vasta maioria”, embora a lista apresentada pareça duvidosa ao incluir o Brasil entre os países em que a democracia ainda “permanece intacta” (p. 195). Mesmo que o livro tenha sido publicado em 2018 e, portanto, os autores não tenham podido considerar os efeitos trazidos pela presidência do claramente autocrático (pelos critérios do livro) Jair Bolsonaro, é imperdoável para pesquisadores do quilate dos dois autores considerar que o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o qual se utilizou eminentemente das táticas de jogo duro constitucional por eles apontada no Capítulo 5, não tenha sequer arranhado nossa democracia.

Levitsky e Ziblatt, então, passam a conjecturar três possíveis cenários para os EUA pós-Trump: um cenário otimista e considerado improvável, em que os esforços autoritários do presidente são plenamente derrotados e restaura-se a democracia com todas as suas grades de proteção e respeito às regras não escritas; um outro cenário pessimista, considerado por eles como possível, mas ainda não tão provável em que Trump triunfa plenamente e mata de vez o que resta de democracia no país; e uma terceira possibilidade, que consideram a mais provável no futuro imediato, em que a democracia dos EUA passa a viver sem as regras de contenção e com efeitos perigosos e imprevisíveis no longo prazo. Os autores terminam o capítulo e o livro tentando apontar caminhos para a restauração democrática e insistem na reconstrução da tolerância mútua e na reserva institucional como parte fundamental dos mesmos, apresentando como casos de sucesso a reconstrução da direita alemã no pós-Guerra e a ampla coalizão chilena da Concertação que teria permitido o regresso do país à democracia após a ditadura pinochetista.

Como visto, embora traga de fato exemplos concretos de atores e processos que minaram a democracia por dentro em várias épocas e lugares distintos – da Alemanha nazista ao Peru de Fujimori, passando pela Venezuela chavista, as Filipinas de Marcos, e a contemporânea Hungria de Orbán, entre alguns outros casos – e tenha um título “genérico” sobre a morte democrática, levando a crer tratar-se de uma obra de foco teórico geral, o livro é, na verdade, fundamentalmente uma análise do caso estadunidense sob a presidência de Donald Trump (2017-). Embora isso possa vir a frustrar em alguma medida alguns leitores que eventualmente cheguem ao livro buscando uma abordagem mais “universal”, não constitui exatamente um problema na medida em que um foco mais restrito, de fato, frequentemente permite uma análise mais aprofundada de qualquer fenômeno concreto. Além disso, se é correta a tese dos autores de que a democracia estadunidense se encontra atualmente em perigo devido a processos iniciados nas últimas décadas e exacerbados pela presidência Trump, tampouco se trataria de qualquer caso, visto que os EUA representam para muitos, com ou sem razão e dentro ou fora dos próprios EUA, uma representação simbólica da própria ideia de democracia e exercem influência desproporcional ao redor do mundo.

O problema é que os autores parecem não levar às últimas conclusões o alcance do argumento desenvolvido e uma análise aprofundada do mesmo pareceria indicar um veredicto ainda mais pessimista acerca da preservação da democracia no atual contexto mundial do que eles parecem considerar. Se toda a grande pax democrática estadunidense esteve baseada, como eles mesmos admitem, na exclusão racial e as grandes rupturas dessa estabilidade vieram da adoção de políticas de inclusão, não seria um grande wishful thinking a proposta de preservação democrática por meio de amplas coalizões interpartidárias em que os atores voluntariamente freiam suas iniciativas para não derrotar completamente a oposição? O livro é repleto de metáforas esportivas, o que certamente facilita sua leitura pelo público leigo e isso é extremamente positivo, mas será mesmo possível salvar a democracia apenas pela adesão voluntária dos vencedores à reserva institucional como numa partida de basquete de rua, como sugerem Levitsky e Ziblatt?

Extrapolando os achados dos autores para outros países, recorde-se que quando do início da redemocratização da América Latina, nos anos 1980, as perspectivas de sua consolidação aos olhos da Ciência Política eram invariavelmente pessimistas devido a sua extrema desigualdade socioeconômica. Quando a persistência democrática nos anos 1990-2000 colocou em questão tal diagnóstico pessimista, autores como Kurt Weyland (2004) consideraram que a ampla adesão ao neoliberalismo na região havia contribuído para essa estabilidade por retirar da agenda política questões redistributivas que historicamente tinham melindrado as elites da região e ensejado rupturas democráticas, embora reconhecendo que isso, ao mesmo tempo, diminuíra a qualidade de nossas democracias. As décadas seguintes do novo milênio trouxeram a vários países da região questionamentos a essa hegemonia neoliberal, com experimentos redistributivos e intervencionistas em geral bastante moderados, mas que, mesmo assim, propiciaram o retorno da polarização, e mesmo golpes de Estado manu militari, como na Venezuela (2002) e Honduras (2009), ou interdições parlamentares, como no Paraguai (2012) e Brasil (2016). Seria então realmente possível imaginar a preservação democrática apenas pela autorrestrição dos atores políticos em contextos em que há realmente grandes questões em jogo, em que, se talvez não sejam plenamente de soma zero, é preciso que alguém perca algo para que outros grupos possam superar sua situação de exclusão?

Voltando ao caso dos EUA, nas últimas páginas do livro, os autores analisam – e rejeitam – sugestões de superação da polarização política no país por meio do abandono, pelo Partido Democrata, dos interesses de minorias e das políticas de identidade em geral em prol de “recapturar a assim chamada classe trabalhadora branca” (p. 213), propondo em vez disso a adoção de políticas sociais universalistas de combate às desigualdades estruturais do país para fortalecer a democracia e gerar bases para coalizões interpartidárias que restaurassem as grades de proteção.

Mas o quão factível seria realmente a proposta se ele dependesse, para sua execução, da anuência do mesmo Partido Republicano cada vez mais sólido na defesa de interesses econômicos das megaelites econômicas? De fato, infelizmente, a proposta acaba soando mais como utopia do que como concretude, sobretudo se lida à luz de relatos como os de Wolfgang Streeck (2018) sobre o abandono progressivo pelo Grande Capital dos compromissos democráticos que sustentaram a Era de Ouro do Estado do Bem-Estar na Europa e que tanto contribuíram aos desgastes e desencantos cidadãos para com a democracia, a partir de meados dos anos 1980.

Em suma, o livro de Levitsky e Ziblatt oferece uma narrativa sucinta e em linguagem acessível acerca dos processos contemporâneos de erosão democrática e constitui-se em leitura importante, no momento, tanto para pesquisadores do tema quanto para o público em geral. Contudo as soluções sugeridas parecem fundamentadas muito mais em um normativismo voluntarista do que na análise plena dos desdobramentos das teorias e fatos relatados ao longo do livro. É um bom ponto de partida para a discussão de como as democracias morrem, mas, longe da palavra final, sobretudo se de salvá-las se trata.

REFERÊNCIAS
STREECK, W. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.
WEYLAND, K. Neoliberalism and Democracy in Latin America: a mixed record. Latin American Politics and Society, v. 46, n. 1, p. 135-157, Spring 2004.

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* Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Mestrado em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

O Supremo não pode ter dono, por Oscar Vilhena Vieira.

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Estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas

Oscar Vilhena Vieira – Folha de São Paulo – 12/10/2022

A proposta de ampliação do número de ministros do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de “esquadrar o judiciário”, nas palavras do líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, constitui uma gravíssima ameaça à sobrevivência de nossa democracia constitucional.

A captura dos tribunais constitucionais e outras esferas de aplicação da lei é uma medida reiteradamente adotada no processo de consolidação de regimes autocráticos. Quem explica a lógica dessa estratégia é Adolf Hitler.

Ao prestar juramento em 1930 perante o tribunal de Leipzig, discorreu de maneira cristalina sobre a estratégia de seu partido: “A Constituição apenas estabelece o mapa da batalha… Nós ingressaremos nas instituições jurídicas e desta forma transformaremos nosso partido numa força decisiva… quando nos assenhorarmos do poder constitucional, iremos moldar o Estado de acordo com aquilo que entendermos conveniente”.

Embora não se queira estabelecer qualquer paralelo com o nazismo, a estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas.

Após a derrubada da Primeira República, uma das primeiras medidas do governo provisório de Vargas foi ampliar de 11 para 15 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, cassando ministros insubordinados a partir de 1937. Da mesma forma, o regime militar, instaurado em 1964, decidiu ampliar de 11 para 16 o número de membros do Supremo, por meio do AI nº 2, de 1965, que também suspendeu as garantias dos magistrados. Posteriormente promoveu a aposentadoria compulsória de seus mais proeminentes membros, como Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.
Para que não pareça que apenas os autoritários brasileiros se deixaram inspirar por essa ideia torpe, cabe lembrar os casos da Venezuela, Turquia e Hungria, três autocracias contemporâneas, em que a captura dos tribunais constitucionais foi parte central do processo de erosão democrática.

Após ascender ao poder por via eleitoral, em 1999, Hugo Chávez convocou uma assembleia constituinte que, em menos de dez meses, produziu uma nova Constituição. Descontente com a atuação independente do Supremo Tribunal de Justiça, que ousava contrariar seus interesses, em 2004, ampliou de 20 para 32 o número de membros do tribunal. O general Mourão, que serviu como adito militar brasileiro na Venezuela, certamente conhece o desfecho dessa história.

Na Hungria, após conquistar a maioria absoluta do parlamento, em 2010, o primeiro-ministro Viktor Orbán, promoveu uma ampla reforma constitucional, complementada por duas emendas à Constituição que ampliaram o número de membros do então independente Tribunal Constitucional, assim como restringiram o acesso dos cidadãos à corte, que deixou então de importunar o primeiro-ministro.

No mesmo ano, Recep Erdogan, então primeiro-ministro da Turquia, aprovou uma emenda constitucional ampliando o número de juízes da proeminente Corte Suprema do país. Em 2015, já presidente da República, determinou a prisão de nada menos que 2.745 juízes e promotores, consolidando seu regime autocrático.

Para se proteger de um processo de erosão democrática, como os acima mencionados, a Corte Constitucional colombiana declarou, em 2010, a inconstitucionalidade de uma proposta de emenda que permitiria ao presidente Uribe, embalado pela ampla popularidade, concorrer a um terceiro mandato.

Para a maioria do tribunal o “poder de emendar a Constituição não inclui a possibilidade de derrogar, subverter ou substituir a Constituição na sua integridade”. E a possibilidade de um terceiro mandato permitiria, entre outras coisas, que o presidente nomeasse a maioria dos membros de tribunais, ameaçando a independência do judiciário, elemento central do edifício democrático. Com isso, salvou a democracia colombiana de uma maioria eventual que buscava sequestrá-la.

Como foi taxativamente colocado pelo ex-ministro Celso de Mello, a proposta de ampliar o número de membros do Supremo Tribunal Federal, oriunda de um governo que tem feito emprego sistemático de medidas infralegais voltadas a subverter o Estado de Direito e desacreditar nossa Corte Suprema, afronta a independência do Poder Judiciário, colocando em risco a integridade de nossa democracia. E numa democracia o Supremo não tem dono.

A Constituição de 1988, seguindo o exemplo da Lei Fundamental de Bon, de 1949, estabeleceu que determinados pilares do Estado democrático de Direito, como o sistema de separação de Poderes, o voto direto, secreto e universal, a federação, além dos direitos e garantias fundamentais, não podem ser objeto de supressão, mesmo que por meio de emendas constitucionais.

Ao impedir que o poder constituinte reformador possa deliberar sobre emendas tendentes a abolir as premissas básicas da nossa democracia constitucional, as cláusulas pétreas nos protegem de maiorias autoritárias contingentes.

São, paradoxalmente, limitações habilitadoras da democracia, pois proíbem que uma geração, eventualmente seduzida pelo canto mortal do populismo autoritário, furte da próxima geração o direito de conduzir de forma autônoma e democrática o seu próprio destino.

Risco financeiro permanece um desafio de política pública, por Armínio Fraga.

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As contribuições dos vencedores do Nobel de Economia a um problema ainda não completamente resolvido

Armínio Fraga, Sócio-fundador da Gávea Investimentos, presidente dos conselhos do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), ex-presidente do Banco Central e colunista da Folha

Folha de São Paulo, 11/10/2022

Recebi com alegria a notícia de que Bernanke, Diamond e Dybvig ganharam o Nobel de economia deste ano. Tive a boa fortuna de ler, como aluno de doutorado em Princeton no inicio dos anos 80, as contribuições seminais agora merecidamente agraciadas com o prêmio. O tema foi nada mais nada menos do que uma faceta desconcertante e recorrente das economias de mercado: as crises bancárias e financeiras. Desde então, uma parte importante de minha vida profissional lidou com o assunto, como bem demonstra a minha careca.
Ben Bernanke, ex-presidente do Federal Reserve Board, o BC americano, publicou em 1983 um artigo que caracterizou o decisivo papel causal que a crise bancária que ocorreu nos Estados Unidos no início do anos 30 teve no que viria a ser a Grande Depressão. O que se viu foi um exemplo das externalidades negativas e de rede inerentes ao funcionamento de um sistema financeiro.

Trata-se de um fenômeno de fácil compreensão: bancos (e, hoje em dia, o sistema não bancário também) captam depósitos a curto prazo e resgatáveis ao valor de face e emprestam a prazos mais longos, tipicamente financiando o setor produtivo. Se, por qualquer razão, houver um aumento da demanda por liquidez no sistema e os intermediários financeiros não conseguirem financiar os seus balanços, pode se instalar uma espiral de venda de ativos e mais demanda por liquidez, que trava a circulação do dinheiro e deprime a economia.

A não identificação tempestiva desse processo contribuiu para transformar uma recessão em uma duradoura depressão. Em 2008, Bernanke, na cabine de comando do Fed, rapidamente diagnosticou o caso e expandiu agressivamente a política monetária, evitando assim o que poderia ter sido uma outra depressão. Foi um caso raro de um trabalho acadêmico influenciar na prática o seu próprio autor.
Praticamente ao mesmo tempo em que Bernanke escrevia o seu artigo premiado por abordar aspectos macroeconômicos do tema, a dupla Douglas Diamond e Philipp Dybvig desenvolveu o arcabouço analítico microeconômico que revolucionou o entendimento das corridas bancárias e fenômenos similares.

Partindo de premissas bastante intuitivas, os autores construíram um modelo que mostra que corridas bancárias podem ocorrer mesmo em circunstâncias tidas como seguras. Diamond em particular, sozinho e em parceria com Raghuram Rajan, estendeu esse modelo em várias e importantes direções, que enriqueceram ainda mais o entendimento do funcionamento de sistemas financeiros.

Crises financeiras têm uma longa história, que a partir do século 19 inspiraram inúmeras respostas de política pública. A primeira foi a pioneira transformação do Banco da Inglaterra em emprestador de última instância, com a missão de reduzir a instabilidade do sistema, até então mais regra do que exceção. No século 20, sobretudo a partir da Grande Depressão, surgiram outros mecanismos de defesa contra corridas bancárias, com destaque para o seguro de depósitos bancários, que reduziu o incentivo de sacar recursos dos bancos ao menor sinal de perigo.

Mas nem tudo se resolveu. Ao mesmo tempo em que foram introduzidas defesas contra corridas bancárias e pânicos, as instituições financeiras, se sentindo mais seguras, foram aumentando o nível de risco de suas operações. Uma primeira resposta a esse aumento foram as exigências de níveis mínimos de capital, conhecidas como as regras da Basileia. Mesmo assim, em função de brechas nas regras e no crescimento do segmento não regulado do mercado, os níveis de risco dos intermediários (e portanto do sistema como um todo) seguiram em sua trajetória de alta.

Essa tendência fica clara quando se observa que os empréstimos dos bancos subiram de cerca de 3 a 5 vezes seu capital no século 19 e chegaram aos inimagináveis 50 a 100 vezes às vésperas da grande crise de 2008. Claramente esse assunto permanece um grande desafio de política pública que, quem sabe, talvez os três ganhadores do prêmio possam nos ajudar a encarar.

Inovação

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As transformações geradas pela globalização da economia impulsionaram as estruturas produtivas, alterando as relações entre trabalhadores e empresários, reduzindo os instrumentos de intervenção dos Estados Nacionais, alterando os interesses nacionais e novas formas de autonomia, criando oportunidades promissoras, desafios inéditos, repensando as estratégias das organizações e criando novas formas de planejamento.

Neste momento de grandes inquietações, incertezas e instabilidades no sistema econômico global, reencontrei-me com os escritos e as reflexões do economista austríaco Joseph Schumpeter, autor de clássicos da ciência econômica “Capitalismo, Socialismo e Democracia” e “Teoria do Desenvolvimento Econômico”, obras fundamentais para refletirmos e compreendermos conceitos que ganharam espaço na sociedade, tais como destruição criativa e empreendedorismo.

Para o economista austríaco, o empreendedor deveria ser visto como o agente do desenvolvimento econômico, responsável por grandes inovações que impulsionava a sociedade, garantindo novos espaços de acumulação, criando novos modelos de negócios, gerando riquezas maiores, possibilitando novas formas de acumulação, promovendo o crescimento econômico, transformando o ambiente econômico e produtivo.

No pensamento de Schumpeter, o sistema capitalista tem como característica inerente, uma força que ele denomina de processo de destruição criativa, fundamentando-se no princípio que reside no desenvolvimento de novos produtos, novos bens e novas mercadorias, além de novos métodos de produção e novos mercados; em síntese, trata-se de destruir o velho para se criar o novo, gerando conflitos entre ganhadores e perdedores, instabilidades sociais e preocupações constantes, neste momento, faz-se fundamental a intermediação e a construção de novos consensos políticos, estimulando o surgimento de líderes com capacidade de administrar e evitar desequilíbrios generalizados.

Nos últimos anos percebemos o crescimento, na sociedade internacional, das discussões sobre o empreendedorismo, visto como um processo de criação de algo novo ou diferente, que agrega valor, que exige dedicação e esforço, e que incorre em riscos financeiros, psicológicos, emocionais e sociais, cujo retorno, na maioria das vezes, é a satisfação econômica e pessoal. Embora entendamos a importância do empreendedorismo para a sociedade contemporânea, percebemos que empreender depende de inúmeros fatores que devem atuar conjuntamente, exigindo políticas públicas concatenadas como forma de identificar as oportunidades, investimentos maciços em educação, além da construção de instrumentos de viabilização econômica, viabilizando instrumentos de financiamento, transformando ideias e pensamentos difusos em espaços de inovação e a geração de valor.

Pela definição de Schumpeter, o agente básico desse processo de destruição criativa está na figura do empreendedor, indivíduo que vislumbra novos horizontes, novas oportunidades, dotado de grande criatividade, sensibilidade, visionarismo e imaginação. Nesta visão, o empreendedor é dotado de grande capacidade de criação, estimulando a geração de empregos, aumentando a riqueza material e impulsionando o sistema econômico e produtivo, desenvolvendo novos modelos de negócios e contribuindo para o desenvolvimento econômico. Seguindo os conceitos descritos pelo economista austríaco, estamos distantes de construirmos um ambiente propício para a inovação e para o empreendedorismo. O estímulo do empreendedorismo e da inovação são fundamentais para a competitividade da economia
e da melhoria das condições de vida da população, mas não devemos nos esquecer que vivemos em uma sociedade marcada por uma educação precária e fragilizada, com taxas de juros escorchantes, investimentos produtivos limitados, diminuições crescentes de investimentos em ciência e tecnologia, centros de pesquisa e de inovação sendo fechados, infraestrutura degradada, desemprego elevado, informalidade dominante e desempregos camuflados, fome em ascensão e renda declinante.

Sem resolvermos estes desequilíbrios, criaremos uma sociedade centrada no individualismo, no imediatismo, no hedonismo e num verdadeiro darwinismo social, sem solidariedade, sem dignidade, com salários degradantes, jornadas de trabalho escorchantes e alguns acreditando que isso é meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/10/2022.

Qual economia para o futuro? por Dom Odílio Scherer

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Na terra de São Francisco, o papa conclamou jovens economistas à reflexão diante de uma realidade que lhes diz respeito.

Dom Odilo P. Scherer, Cardeal-Arcebispo de São Paulo – O Estado de S. Paulo – 08/10/2022

O papa Francisco reuniu-se no dia 24 de setembro passado com jovens na cidade de Assisi, terra de São Francisco, para refletir com eles sobre a economia e as alternativas para os modelos econômicos adotados atualmente pela maioria dos países. Cerca de 1.500 jovens de mais de cem países, geralmente economistas, compareceram ao encontro, depois de uma preparação de três anos em suas comunidades de origem.

Talvez o evento não tenha despertado muita atenção dos especialistas em teorias econômicas e na gestão da economia dos países e organismos nacionais e internacionais. Não foi a esses que o papa se dirigiu, chamando apenas alguns poucos deles para ajudarem na reflexão. Francisco quis tratar a questão com os jovens, por dois motivos principais: por serem eles os maiores interessados no futuro da economia e nos desdobramentos da sua atual gestão; e porque eles ainda não estão demasiadamente comprometidos com os sistemas vigentes, sendo capazes de ousar e de sonhar com alternativas possíveis.

No seu discurso, o papa referiu-se a algumas situações que questionam os atuais rumos da economia: as persistentes crises sociais, a pobreza e a miséria endêmicas em muitos países e regiões do mundo; a crise sanitária desencadeada pela pandemia de covid-19, que pôs de joelhos a economia; as migrações e as crises humanitárias decorrentes de guerras, como acontece na Ucrânia e em várias regiões da África, da Ásia e da América Central. Francisco referiu-se, também, ao sério desafio ambiental e climático que o mundo enfrenta, em boa parte como consequência de modelos econômicos que avançam de maneira predatória sobre a natureza.

É preciso reconhecer, refletiu o papa, que com o modelo de economia e a ideia de desenvolvimento econômico atualmente em voga, o ambiente, nossa casa comum, está sendo descuidado. A enorme riqueza produzida não chega a beneficiar a grande família humana, não resolve o problema da miséria e da fome nem assegura a justiça e a paz. Francisco questionou os modelos de desenvolvimento econômico que levam à destruição do ambiente e produzem e consolidam desigualdades e injustiças sociais e internacionais. Os rumos da economia não estão bem e algo precisa ser feito, antes que seja tarde demais! Como passar de uma economia que mata a uma economia que gera vida e a ampara? De uma economia que gera tensões e sofrimentos a uma economia que esteja a serviço da paz?

O papa já havia tratado do conceito da “economia que mata” na exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG, 2013), o primeiro grande documento magisterial do seu pontificado. A economia mata quando produz exclusão e desigualdade social; quando descarta alimentos para manter certa política de preços, em vez de os colocar à disposição dos pobres; ou quando a competitividade no mercado é buscada mediante a supressão de postos de trabalho, deixando na insegurança os trabalhadores. A economia mata quando considera o próprio ser humano um bem de consumo usável e descartável; ou quando tem no seu centro o lucro e o acúmulo de bens, mesmo ao preço dos valores da justiça e da dignidade humana.

A economia gera vida quando o ser humano é o centro e o objetivo final de toda atividade econômica, quando está a serviço do homem, e não o contrário; onde as leis da economia e da finança deixam de ser tiranos impessoais, aos quais todos precisam se submeter e obedecer, querendo ou não (cf EG 53-56).

A própria noção de crescimento econômico, sempre presente nos discursos e nas preocupações dos governantes e gestores da economia, foi questionada pelo papa em sua fala aos jovens. Qual crescimento econômico, com quais critérios e a quem interessa? É possível pensar num crescimento econômico indefinido e infinito? Existe outra forma de pensar o crescimento econômico, sem que ele aconteça à custa da depredação ambiental e da exclusão social? E quem será responsável pela reparação dos danos já causados pela atual orientação da economia mundial? Quem justificará, diante das futuras gerações, o mundo depauperado e insalubre que lhes será deixado em herança?

Esses questionamentos do pontífice aos jovens na terra de São Francisco podem parecer nada ortodoxos e pouco realistas. Não era intenção do papa confirmar alguma teoria econômica, nem propor receitas para resolver as questões abordadas. Ele conclamou os jovens à reflexão diante de uma realidade que lhes diz respeito, convidando-os a serem protagonistas na busca de alternativas de esperança para uma economia que está produzindo morte e comprometendo o seu futuro. E convidou-os a olharem para São Francisco, que viveu um estilo de vida simples, sóbrio e solidário, em harmonia com a natureza e em fraternidade com as demais pessoas, considerando todos como irmãos e irmãs.

Seria demais sonhar que a economia das nações tivesse na sua base esses critérios? As sementes foram lançadas no coração de jovens economistas. O futuro da economia e da nossa casa comum é deles. Que sonhem alto!

Saúde: uma questão vital, por Fábio Giambiagi.

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Por mais ser austeros os governos, a democracia fará com que gastar mais com o setor se torne imposição

Fábio Giambiagi, Economista pela FEA/UFRJ, com mestrado no Instituto de Economia Industrial

Estado de São Paulo – 07/10/2022

Recentemente, com Rudi Rocha e Miguel Lago, organizei A Saúde do Brasil, publicado há poucas semanas pela Editora Lux, com 15 capítulos e participação de 28 autores da mais alta qualidade. O livro abre com uma epígrafe do dr. Adib Jatene, que é uma espécie de adaptação para a área médica da fábula da “Belíndia”, do economista Edmar Bacha, acerca do velho dualismo brasileiro: “Temos de ser contra a distorção a que estamos assistindo, da coexistência do mais alto nível de assistência médica e do mais baixo nível de assistência à saúde, na mesma cidade e no mesmo local”. Com os condicionantes impostos pela limitação de espaço, sintetizo o que poderia ser um roteiro dos principais ensinamentos que deixa a leitura do livro.

i) O Serviço Único de Saúde (SUS) é uma conquista civilizatória que deve ser preservada e aperfeiçoada por qualquer governo que tiver a saúde da população como prioridade.

ii) O sistema de saúde representa uma política pública que, inequivocamente, reduz o grau de desigualdade da sociedade brasileira.

iii) A chave para o aperfeiçoamento do sistema passa pelo aprimoramento da cooperação federativa, que falhou terrivelmente na pandemia de covid-19.

iv) A descontinuidade administrativa, em qualquer dos níveis de governo, é um dos maiores traços de nosso subdesenvolvimento como nação.

v) O êxito do combate às doenças e a mudança no perfil epidemiológico da população trazem como resultado uma mudança dos desafios a enfrentar. Por exemplo, quando se consegue evitar que adultos morram cedo por doenças infecciosas, teremos, no futuro, mais pessoas sofrendo de câncer, de problemas cardíacos e, mais tarde, de outras doenças, como o Alzheimer.

vi) A demografia conspirará contra os esforços de contenção fiscal: por mais austeros que sejam os governos, a mudança do perfil etário da população fará com que gastar mais com saúde se torne uma imposição da realidade.

vii) Saúde não tem ideologia: na gestão do sistema, o pragmatismo é fundamental para que os setores público e privado possam conviver da forma mais harmônica possível e com o melhor desempenho.

viii) O País precisa que a política pública de saúde tenha um braço voltado para a ampliação da autonomia tecnológica.

ix) E a maior digitalização do sistema de saúde, especialmente da atenção primária, com o uso adequado da ciência de dados, bem como da telemedicina, será chave para o aumento da eficiência – e é um elemento central de uma estratégia de superação dos problemas do setor.

Carta Mensal – Apresentação

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Carta Mensal

www.aryramos.pro.br

A Carta Mensal foi criada como um instrumento de refletirmos sobre as atividades no mês anterior, este serviço será enviado a todas as pessoas que se inscreveram no site, onde será enviado um artigo sintético e condensado sobre os principais assuntos relativos aos eixos de publicação do site.

Vivemos numa sociedade que se transforma rapidamente, gerando medos e grandes preocupações, alterando as estruturas econômicas e produtivas impactando todos os indivíduos, as organizações e as nações, espalhando instabilidades e incertezas que exigem reflexões sobre o comportamento dos seres humanos, exigindo novas habilidades, mais flexibilidade, mais assertividade, mais sensibilidade e mais agilidade para compreendermos os grandes desafios de um mundo novo, altamente conectado, centrado no conhecimento, na imaterialidade e no imediatismo.

Neste assunto constará no máximo 600 palavras refletindo sobre assuntos prementes e variados sobre economia, gestão, sociologia, educação, gestão pública, política, cultura e saúde contemporaneidade, visando refletirmos sobre a sociedade brasileira e internacional, trazendo elementos para pensarmos os grandes desafios da sociedade do século XXI, marcados por grandes oportunidades criadas pelo incremento da tecnologia, alterações nas comunicações, mudanças nos modelos de negócios, no conhecimento e nos instrumentos de geração de riquezas.

A Carta Mensal será publicada sempre até o dia 10 dos respectivos meses, analisando os assuntos mais comentados na sociedade, além dos temas mais analisados e que mais chamaram mais atenção, com isso, teremos um período maior para destacar os assuntos mais relevantes que foram destaque no mês anterior, comentando, analisando e criando espaços de discussões.

A Carta Mensal foi criada e idealizada pelo site www.aryramos.pro.br e é mantida pelo professor doutor Ary Ramos da Silva Júnior, professor universitário desde 1997, formado em Ciências Econômicas (Unesp) e Administração (Unirp), Especialista em Economia Criativa (Unyleya), Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

O futuro do agronegócio é a ciência, por Ronaldo Lemos.

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Vamos competir também em propriedade intelectual, patentes, cultivares, insumos?

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo – 10/10/2022

Quais os elementos essenciais para um agronegócio competitivo e sustentável? Abundância de água, terra fértil, sol, ciência e tecnologia. De todos esses, o peso começa a crescer para os dois últimos.

O futuro do agronegócio não será de quem tem os melhores recursos naturais, mas sim de quem aplica melhor ciência e tecnologia. Competição por sementes, cultivares, know-how e implementos.

O Brasil sabe disso. Tanto é que a agricultura brasileira é das mais competitivas globalmente, especialmente em razão da Embrapa. No entanto, liderança é, por definição, um lugar instável.

Outros países estão constatando que, com ciência e tecnologia, é possível ganhar mais competitividade no agro, avançando sobre espaços que hoje são detidos pelo Brasil.

O país mais recente a transformar ciência e tecnologia no agro em prioridade nacional é um velho conhecido dos produtores brasileiros: a China. Nos últimos anos, o país decidiu que não quer mais depender de importações para garantir sua segurança alimentar.

O país abriga hoje 20% da população mundial, mas possui apenas 8% das terras aráveis do planeta. Por isso foi dada a largada para um esforço de aumento da produtividade por hectare. E também por reorganizar a forma como a produção agrícola acontece na China.

No entanto, o passo mais ambicioso do país relaciona-se diretamente à cadeia de suprimentos agrícolas global. Trata-se da aquisição da gigante global de tecnologia agrícola Syngenta. De origem Suíça, e até hoje com sua sede em Basileia, a empresa foi adquirida em 2017 por US$ 43 bilhões pela empresa ChemChina (atualmente Sinochem Holdings). Essa foi a maior aquisição internacional feita por uma empresa chinesa.

A Syngenta tem presença forte globalmente, inclusive no Brasil, no ramo de sementes, pesticidas, herbicidas e outros produtos e cultivares relacionados a lavouras de soja, milho e biocombustíveis.

Na China, a aquisição da empresa tem provocado uma verdadeira revolução agrícola. A empresa está desenvolvendo no país os chamados MAPs (sigla de Plataforma de Agricultura Moderna).

Mais de 500 MAPs foram implantados nas áreas rurais do país. Em cada um deles há sempre centros de pesquisa e aprendizado, onde se destaca a frase “In Science We Trust” (Na ciência nós confiamos).

Cada um deles tem uma estética parecida com a do Vale do Silício e ajuda produtores locais a desenvolver práticas mais “produtivas, eficientes e sustentáveis”. Vale lembrar também que a produção rural é apenas um dos segmentos do agronegócio.

Outro segmento fundamental, do qual o Brasil participa pouco, é o da propriedade intelectual, das patentes e dos cultivares. Nesse campo, a Syngenta é gigantesca. Antes da aquisição, a empresa já havia assimilado a Novartis e o braço agrícola da AstraZeneca.

Com isso, detém inúmeras patentes e cultivares, relacionados a milho, soja e alface, além de inúmeros produtos químicos. Até uma variedade de tomate típica da América do Sul a empresa chegou a patentear antes da aquisição, mas depois de muitos protestos a patente foi revogada.

Os produtores brasileiros são clientes da Syngenta com relação a vários produtos, muitos deles essenciais para as lavouras no país. E o Brasil? Apesar de sermos potência agrícola, dominamos só uma parte do setor.
Vamos competir também em propriedade intelectual, em patentes, cultivares, insumos e implementos? O futuro do setor depende da resposta a essa pergunta.

Já era – Pensar em agricultura apenas como exploração direta da natureza

Já é – Agricultura como atividade científica e tecnológica

Já vem – Competidores do Brasil com menos recursos naturais, mas mais tecnologia

Livre concorrência e livre-comércio – o fim de uma era? por Alessandro Octaviani.

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 09/10/2022

Nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás

“You vitriolic, patriotic, slam fight, bright light\ Feeling pretty psyched\ … It’s the end of the world as we know it” (R.E.M).

A explicitação de conteúdos jurídicos protecionistas e de “segurança econômica nacional” exarados pelas principais economias do mundo, visando a remodelar seu ordenamento básico referente à livre-concorrência e ao livre-comércio, é um fato rotineiro da última década.

A Alemanha fornece um desses exemplos, principalmente porque se notabilizou, ao longo de todo reinado de Ângela Merkel, como uma das cidadelas do aglomerado retórico de “austeridade + livre-comércio + livre-concorrência” (as mais de 15.000 empresas estatais alemãs não figuram nesse amálgama porque são reais demais para a manutenção da ideologia…).

A recente reformatação de sua disciplina jurídica do setor energético é marcante. Após a consistente escalada da OTAN e da União Europeia rumo aos escombros da antiga URSS, absorvendo espaços geoeconômicos e geopolíticos sob a égide ocidental, a Rússia deflagrou a reação que teóricos do “realismo ofensivo”, como John Mearsheimer, em seu influente The tragedy of great power politics, previam: uma guerra que busca limitar tal avanço, podendo migrar para pressões crescentes no fornecimento de energia e ataques contra infraestruturas críticas.

A atual infraestrutura de energia alemã foi estrategicamente modelada pelo período Merkel, tendo como símbolo máximo a construção dos gasodutos do sistema Nord Stream. A configuração do setor de energia tinha (i) como premissa uma relação amistosa com a Rússia e (ii) como utopia a suposição de que o livre-comércio e a livre-concorrência criariam (paulatina, mas inexoravelmente) uma convergência institucional entre estratégias nacionais de desenvolvimento e ordenamentos jurídicos. Superando esse momento retórico, a nova doutrina da Alemanha e da União Europeia (ameaçadas pela posição de compradora exercida pela China, pela detenção das Big Techs pelos EUA e pela dependência energética em relação à Rússia) remete ao termo “autonomia estratégica”, durante décadas ridicularizado e escanteado pelo pensamento liberal que a OCDE e os centros bem-pensantes empurraram para os desavisados consumidores de jurisdições periféricas, dentre as quais o Brasil.

Demonstrando que, para os alemães, livre-concorrência e livre-comércio são conceitos mutáveis e imersos no pragmatismo que sempre deve manter seu país no cume, o governo de Olaf Scholz nacionalizou as subsidiárias alemãs da estatal petrolífera russa Rosneft, tomando o controle das refinarias e submetendo-as juridicamente ao Bundesnetzagentur, autoridade reguladora do mercado energético alemão, fato qualificado pelo ministro da Economia como “fundamental para garantir a segurança de sua cadeia nacional de abastecimento energético”, afastando o livre-comércio em área sensível à segurança econômica nacional: “The trust management will counter the threat to the security of energy supply”.

Esse não é um ato isolado. Há método na sanidade germânica. A conjunção da Außenwirtschaftsgesetz, lei de comércio exterior e pagamentos, com o Außenwirtschaftsverordnung, seu regulamento concretizador, organiza estruturas e condutas em conformidade com os ditames da segurança nacional e dos interesses externos do país, abrindo imenso leque retórico para imposição de restrições e obrigações a fim de “garantir os interesses essenciais à segurança alemã e membros da União Europeia”, visando a “prevenir distúrbios na coexistência pacífica das nações” ou “nas relações internacionais do país”, e para “implementar decisões do Conselho Europeu” ou “impor sanções econômicas no escopo da política comum de defesa europeia”.

São sujeitos a tais restrições e obrigações, em particular, os não-residentes da União Europeia que tentarem adquirir empresas ou meramente participações acionárias de companhias alemãs que possam ameaçar, por qualquer flanco, os interesses essenciais de sua segurança econômica nacional. Da mesma maneira, os atuais diplomas reguladores dos comportamentos em mercados “de relevante interesse coletivo”, como as normativas administrativas para definição de infraestruturas críticas, dispõem diversas hipóteses de controle administrativo e judicial de investimentos estrangeiros que “representem possível risco à segurança nacional”, destinando-se a proteger setores inteiros da economia alemã de concorrência estrangeira.

Como se vê, um dos atuais impulsos econômicos alemães é o velho e conhecido nacionalismo econômico. A erosão da retórica liberal no centro da disciplina jurídica da economia mais relevante da Europa revela o que ainda no Brasil temos dificuldade de assumir: nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás. Chegaram a “concorrência estratégica”, “autonomia estratégica”, “políticas contra a vulnerabilidade externa”, “políticas contra a dependência”, “cadeias locais de produção”, “segurança econômica nacional” e outras expressões do gênero. It’s the end of the world as we know it, como anunciou o clássico do R.E.M. Só “a bailarina que não tem”, responderiam Chico e Edu Lobo.

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP e ex-membro do Tribunal do Cade. Autor, entre outros livros, de Estudos, pareceres e votos de direito econômico (Ed. Singular).

Batalha dos chips entre EUA e China expõe estratégia de sufocamento, por Tatiana Prazeres.

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Diante dos esforços de Pequim no grupo de elite dos semicondutores, nada serviu de incentivo tão poderoso

Tatiana Prazeres, Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

Folha de São Paulo – 08/10/2022

Muitos se surpreendem com o fato de que semicondutores são, de longe, o principal item de importação da China. A vulnerabilidade do país nessa área foi percebida em Washington como oportunidade.

EUA e China hoje protagonizam uma batalha dos chips, emblemática da competição tecnológica, econômica e geopolítica do mundo contemporâneo. Limitar o acesso chinês a semicondutores avançados e a insumos e máquinas para produzi-los foi a linha endossada pelos EUA.

A estratégia do sufocamento caiu no gosto dos “hawks” americanos, e abrir mão dela seria visto como sinal de fraqueza. Nesta sexta (7), Washington adotou mais uma leva de restrições às exportações para a China com esse objetivo.

Semicondutores estão na base de todas as tecnologias do presente e do futuro, desde seu próximo aparelho celular até inteligência artificial e computação quântica. Esses produtos envolvem cadeias produtivas complexas, cujos elos críticos, no entanto, estão concentrados em poucas empresas e mercados.

Centro das atenções geopolíticas, Taiwan concentra 90% da produção de semicondutores avançados —e numa única empresa. A taiwanesa TSMC, entretanto, depende do design desses semicondutores, um segmento de alta tecnologia dominado por empresas americanas como Qualcomm, Nvidia e Apple. Também necessita de equipamentos sofisticados para produzir chips de última geração, e eles vêm basicamente de uma única empresa, a holandesa ASML.

A Lei dos Chips dos EUA, promulgada em agosto, busca estimular a produção de semicondutores avançados em território americano. Dessa etapa da produção também participam a coreana Samsung e a americana Intel.

Biden busca coordenar posições tanto para aumentar a eficácia das medidas contra a China quanto para socializar o prejuízo que suas empresas têm ao serem privadas do mercado chinês. Quer que esse custo seja compartilhado. Fala-se na criação de uma espécie de Opep dos chips.

A China busca há anos se juntar à primeira liga do campeonato dos semicondutores. Já investiu centenas de bilhões de dólares no setor e tenciona produzir 70% dos chips de que precisa. Várias de suas empresas têm feito avanços em elos diferentes da cadeia —mas elas ainda estão distantes dos chips mais avançados de Taiwan. Produzem o chip commodity.

Quando Pequim desenhou mais um pacote de incentivos para o setor em 2020, o anúncio foi acompanhado de um conjunto de três “nãos”: empresas sem experiência, sem tecnologia e sem talentos na área não deveriam se aventurar com recursos públicos. Ainda assim, naquele ano, estima-se que mais de 50 mil empresas tenham sido criadas no setor,
várias delas evidentemente apenas pelas benesses.

Muitos apontam o setor de semicondutores como o grande fracasso da política industrial chinesa. É precipitada a conclusão. A maior produtora do país, a SMIC, anunciou há pouco um salto tecnológico importante e o fez em menos tempo que as concorrentes. Durante o lockdown rigoroso em Xangai neste ano, a empresa não parou. Obteve uma autorização especial para que dois terços dos seus empregados pudessem dormir na fábrica, que operou em circuito fechado em relação ao restante da cidade.

É uma questão de tempo —de recursos, talentos, investimentos em pesquisa e desenvolvimento— para a China participar da briga dos grandes. A estratégia do sufocamento coordenado faz o país convencido da necessidade de dobrar a aposta na autossuficiência. Aos poucos, junto com sinais de fracasso, surgem os de progresso.

Em décadas de esforços da China para entrar no grupo de elite dos semicondutores, nada serviu de incentivo tão poderoso como as medidas dos que querem contê-la.

Não há lugar para muro, por Gobetti e Orair.

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A escolha agora é simples: civilização ou barbárie

Folha de São Paulo – 08/10/2022

Sérgio Wulff Gobetti, Pesquisador e doutor em economia pela UnB

Rodrigo Octávio Orair, Economista, é pesquisador do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades) e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal

Em artigo nesta Folha (“Em louvor do voto inútil”, 29/9), o economista Alexandre Schwartsman criticou o “voto útil” em Luiz Inácio Lula da Silva (PT), declarando que não o pretendia fazer nem no primeiro nem no segundo turno por não acreditar nas credenciais democráticas do Partido dos Trabalhadores. Partido dos Trabalhadores.

Sim, leitor, apesar de Lula e o PT terem governado o Brasil por 14 anos sem jamais ameaçar nossa democracia, Schwartsman pinça declarações sobre o chamado “controle social da mídia” e sobre a “mídia golpista” para tentar forjar uma falsa —e repugnante— equivalência entre o ex-presidente e Jair Bolsonaro (PL).

Repugnante porque nada se compara à crise institucional e ao clima de golpe criado pelo atual presidente da República. Nada se compara à sua falta de humanidade ao debochar das vítimas da Covid-19 e ao declarar admiração por um torturador da ditadura militar que tinha como um dos seus métodos abusar de mulheres em frente aos filhos.

Nada se compara ao desrespeito cotidiano com jornalistas, especialmente mulheres, e ao estímulo à violência física contra adversários.

Talvez Bolsonaro não tenha forças para transformar o Brasil numa ditadura ao velho estilo da década de 1960, mas poderá transformar nosso país num regime autoritário aos moldes da atual Hungria de Viktor Orbán. Lá, como aqui, a ultradireita cria um inimigo imaginário (o comunismo), monta uma estrutura de propaganda paralela (baseada em fake news), promove uma fusão entre religião e Estado e busca minar a credibilidade das demais instituições para justificar o aparelhamento do Judiciário e das forças policiais.

Isso já está ocorrendo no Brasil e poderá se agravar caso o campo democrático, da esquerda à direita, não se una para derrotar Bolsonaro. Corremos o risco inclusive de retrocesso civilizatório, com a destruição de valores iluministas que balizaram a construção da sociedade moderna, como vemos com a tentativa de intervir no ensino e oprimir minorias.

Lula já deu declarações infelizes? Sim. Já cometeu erros? Sim. Mas o petista jamais falaria que a Covid é uma “gripezinha”, incentivaria tratamento não comprovados cientificamente, debocharia de quem está sofrendo falta de ar ou diria que não vai vacinar os filhos, tendo o dever de dar o exemplo como presidente da República. Ademais, Lula é um conciliador nato, respeitado pelos maiores líderes da democracia ocidental. Tão conciliador que até mesmo Schwartsman, um liberal de direita, ocupou cargo de diretor do Banco Central durante seu governo.

Na economia, a tendência conciliadora se evidenciou numa preocupação (até excessiva) em não desagradar o mercado e na adoção de uma política bem pragmática, ao mesmo tempo em que buscava reduzir a pobreza por políticas de transferência de renda e aumento de salário mínimo —com efeito limitado sobre a redução da desigualdade, como mostraram estudos posteriores. Se for eleito, Lula precisará negociar para avançar na agenda de reformas (tributária e fiscal) e, por isso, já sinalizou que escolherá um ministro da Economia com capacidade de articulação política.

Em resumo, Lula e o PT têm feito ao longo da história movimentos de moderação, se deslocando da esquerda para o centro, enquanto parte da brasileira, ao contrário, se desloca para o extremo. Se isso não é razão suficiente para liberais como Schwartsman saírem do muro, talvez a explicação esteja na vergonha. Vergonha de reconhecer o erro de ter votado em 2018 num candidato que nunca escondeu seu caráter autoritário, embora fosse inimaginável que demonstrasse tanta crueldade e irresponsabilidade como vimos na pandemia.

Felizmente, muitas personalidades de centro ou de direita, críticos do PT, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). compreenderam a delicadeza do momento histórico que estamos vivendo. A escolha é simples: civilização ou barbárie.

Observação: a economia cresceu 4% em média ao ano sob comando de Lula, declinou para 2,3% no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT) e estagnou em 0,07% ao ano de 2015 a 2022 —e Schwartsman insiste em atribuir a década perdida exclusivamente aos erros do PT.

Mas esse é um debate secundário diante da necessidade de união da luz contra as trevas. Vamos juntos, Alex, derrotar Bolsonaro.

Capitalismo não vai resolver crise do clima, diz pai do conceito de sustentabilidade.

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Segundo John Elkington, o atual sistema é incapaz de entregar até mesmo uma fração dos objetivos sustentáveis

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo – 09/10/2022

Considerado o pai do conceito de sustentabilidade, John Elkington ganhou destaque no meio corporativo ao trazer os princípios ambiental e social para a discussão sobre desenvolvimento, sem abandonar a perspectiva financeira. Mas, se alguém viu isso como uma defesa de que o atual modelo econômico é capaz de resolver os problemas climáticos, o sociólogo britânico é categórico: “Não acho que podemos confiar no capitalismo de forma alguma.”

Em entrevista durante evento realizado pela Klabin, em setembro deste ano, Elkington defendeu que o atual sistema é incapaz de entregar até mesmo uma fração dos objetivos sustentáveis já definidos.

“A questão é: ou vamos para a revolução ou fazemos algo diferente. Estou otimista de que podemos fazer algo diferente, mas a menos que façamos isso rapidamente, essa revolução à moda antiga vai se impor em nosso mundo”, afirma.

Considerado uma das maiores autoridades no debate sustentável, o britânico tem discurso firme contra empresas poluidoras e defende que negócios que conscientemente poluam a atmosfera sejam levados ao tribunal. “Os danos que estão causando destruirão milhões de vidas, trilhões de dólares. Por que eles deveriam se safar disso?”, questiona.
Sobre a situação brasileira, Elkington critica a política do presidente Jair Bolsonaro (PL), argumenta que ele não seria capaz de melhorar a posição do país no mundo e diz que o Brasil está em um caminho muito perigoso. No entanto, ele também questiona se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seria capaz de mover o país numa direção diferente.

Como está a imagem do Brasil na comunidade internacional hoje considerando os retrocessos ambientais? Você terá de me perdoar porque vou ser indelicado. Muitas vezes, as pessoas não acompanham diariamente as notícias de um país, empresa ou marca. Eles se lembram do que ouviram falar. Por isso, no Norte Global, o Brasil é conhecido há muito tempo pelo desmatamento.

Quando estive no projeto da linha 6 [do metrô de São Paulo], vi grandes pedaços de madeira tropical por lá e minha pergunta óbvia era “de onde vem essa madeira?”. Porque, sendo de fora do Brasil, eu suspeito.

O desmatamento parece ser um problema relevante. [Também] Há uma preocupação crescente com o governo Bolsonaro e seu incentivo quase ativou a diferentes atividades econômicas que se deslocam para florestas praticamente intactas. Uma total disposição de ignorar os direitos dos povos indígenas.

Então depende com quem você fala na Europa ou na América do Norte. Alguns estarão interessados em direitos humanos e lhe darão um conjunto de questões. Outros estarão interessados em ecologia ou nas florestas tropicais.

Alguns ainda vão se interessar por política e pensar se vai ser melhor se Lula ganhar em vez de Bolsonaro. Ontem à noite, as pessoas estavam me dizendo que provavelmente não fará nenhuma diferença. Se for verdade, eu fico muito preocupado, porque acho que o Brasil está em um caminho muito perigoso.

As pessoas te disseram que Lula e Bolsonaro podem não representar muita diferença, mas como o sr. enxerga? Lula está comprometido por causa do processo contra ele —e eu sei que ele foi inocentado. Mas quando estou no Brasil trabalhando para diferentes empresas, e penso, por exemplo, na Petrobras, o nível de corrupção é bastante significativo e está aqui há muito tempo.

Então, mesmo que Lula seja completamente inocente, a percepção no mundo todo é de que o Brasil é outro desses países —como Índia e Indonésia— onde a questão da governança provavelmente ainda não foi abordada.
Quando penso em Bolsonaro, não acho em nenhum momento que ele possa melhorar a posição do Brasil no mundo. Eu acho que ele vai continuar a minar isso.

Acho que Lula é lembrado com algum carinho por muita gente. Lembro-me de algumas das cúpulas que ele fez sobre a agenda social. Ele é um homem extraordinário, mas será que pode realmente dar a volta por cima e mover o Brasil em uma direção diferente? Eu não sei.

O sr. argumenta que separar as questões políticas e ambientais está ficando mais complicado. Por quê? Não me refiro apenas à agenda ambiental. Refiro-me à agenda de sustentabilidade, portanto econômica, social, ambiental, governança e política também.

A maioria das empresas, a maioria dos líderes empresariais, que pensaram em sustentabilidade, pensaram nisso como uma agenda, que é a agenda de ser mais legal, um pouco mais transparente, abrir um pouco [as questões envolvendo] sua cadeia de suprimentos, fazer relatórios, auditorias sociais e todas essas coisas. Tudo isso é bom, mas não podemos pensar que, enquanto fizermos isso, a nossa parte estará feita.

O problema é que, enquanto isso está acontecendo, a política não tem funcionado. Os líderes empresariais foram, por muito tempo, instruídos a ficarem fora da política. Hoje, eles não podem mais esconder o fato de que estão dizendo uma coisa em público e fazendo outra bem diferente no particular. Portanto, devem ser transparentes.

Desculpe-me, mas a ExxonMobil é a inimiga. Sinto muito em dizer isso, e pode parecer irracional, mas há cerca de 15 anos eu tive um embate público com o então CEO da ExxonMobil, Rex Tillerson. Eu estava em uma conferência na

Noruega falando sobre o lobby que a empresa fez para conter a ação climática ao longo de décadas. Tillerson, então, entrou no fundo da sala, ouviu o que eu estava dizendo e gritou “isso é uma mentira maldita!”.
Uma semana depois, a imprensa nos EUA mostrou que não era uma “mentira maldita”. Era exatamente o que eles vinham fazendo há muito tempo. Essas pessoas pensam que podem forçar seu caminho para que os outros as deixem fazer o que quiserem.

Eu acho que elas deveriam ser levadas aos tribunais criminais. Qualquer um que conscientemente permita que seus negócios poluam a atmosfera com gases de efeito estufa deve ser levado ao tribunal. Os danos que estão causando destruirão milhões de vidas, trilhões de dólares. Por que eles deveriam se safar disso? É isso que quero dizer quando falo que [a sustentabilidade] é cada vez mais política.

O sr. defende uma mudança no capitalismo para atingir os objetivos sustentáveis. Mas ainda dá para confiar na lógica capitalista da acumulação e do lucro se realmente quisermos alcançá-los? Não. Eu não acho que podemos confiar no capitalismo de forma alguma. Acho que precisamos de formas diferentes de revolução. Não como a Revolução Russa, onde você gasta quase 200 anos, mas uma combinação de revolução da tecnologia industrial.

Acabei de comprar um livro, não me lembro como se chama, mas é sobre os bilionários que querem ir para a Patagônia, para a Nova Zelândia, e estão investindo cada vez mais em bunkers. É isso que o capitalismo, particularmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, está nos dando no momento.

Minha experiência no Brasil é exatamente a mesma. Conheci pessoas aqui que administram grandes negócios e que estão completamente isoladas do mundo em geral.

Esse modelo não vai entregar nem mesmo uma fração dos objetivos de desenvolvimento sustentável. O capitalismo não vai desaparecer e acho que já estamos vendo o capitalismo evoluir para muitas formas diferentes.

A agenda ESG está crescendo no mundo e as empresas estão falando sobre sustentabilidade mais do que nunca. Ao mesmo tempo, vemos as emissões atingirem níveis recordes, o desmatamento no Brasil crescer… Quão otimista você realmente está sobre o futuro? Nasci otimista e sou otimista. Eu acredito, porque a história sugere isso, que quando as coisas estão ficando realmente terríveis, esse é o momento em que elas começam a mudar.

Não acho que a Guerra da Ucrânia terminará com um belo tratado de paz e Putin decidindo ser legal com as pessoas.

Acho que estamos caminhando para um período de expansão do conflito, não de encolhimento. E parte disso é a rivalidade de superpotências, como entre China e Estados Unidos —ou devo dizer Estados Unidos e China.

Sou otimista em certos níveis, mas também penso como espécie. Às vezes podemos ser incrivelmente míopes e incrivelmente estúpidos. E é onde estamos agora.

No entanto, acho que nos próximos 15, 20 anos veremos a inovação em diferentes formas. As pessoas vão começar a mudar o sistema, porque está cada vez mais claro que o sistema que desenvolvemos, por exemplo, nas décadas de 1940 e 1950, simplesmente não está funcionando para muita gente.

A questão é: ou vamos para a revolução ou fazemos algo diferente. Estou otimista de que podemos fazer algo diferente, mas a menos que façamos isso rapidamente, essa revolução à moda antiga vai se impor em nosso mundo.

Há um crescente movimento anti-ESG nos EUA. Você vê algum risco disso se espalhar para outros países? Qualquer movimento social ou empresarial com poder suficiente —e com alguma intenção radical— ameaçará os interesses dos investidores e das indústrias tradicionais.

Eu tenho dito há anos, e não estava falando sobre ESG, mas sobre sustentabilidade, que chegará o momento em que as pessoas perceberão quais são as implicações dos compromissos envolvendo carbono e a perda de espécies para seus investimentos e suas indústrias —e elas iriam começar a lutar de volta.

Elas estão lutando há muito tempo, como a ExxonMobil. Mas isso se tornará mais público e mais desagradável.
Vamos ter sucesso no final? Não sei, todas as civilizações entraram em colapso, seja por causa de pandemias, guerras ou mudanças ambientais críticas. Por que seríamos diferentes?

Eu espero poder continuar ajudando a manter essa agenda por mais tempo. Acho que o Brasil tem as condições e algum tipo de superpoder, mas não com essa classe política atual e provavelmente também não com a maioria de seus líderes empresariais.

John Elkington, 73
Autoridade mundial em responsabilidade corporativa, John Elkington é sociólogo, fundador da Volans, criador do conceito de tripé da sustentabilidade e autor de 20 livros, sendo o mais recente “Cisnes verdes: o boom que se aproxima do capitalismo regenerativo”. Nascido no Reino Unido, Elkington foi membro do corpo docente do Fórum Econômico Mundial de 2002 a 2008, atuou em mais de 70 conselhos consultivos e ajudou a criar o GRI (Global Reporting Initiative) e os índices de sustentabilidade do Dow Jones.

Brasil passa por mais um momento Gramsci, por Nelson Barbosa.

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Sintomas mórbidos aparecem enquanto o velho morre e o novo ainda não nasce

Nelson Barbosa, Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Folha de São Paulo, 07/10/2022

O Brasil passa por mais um momento Gramsci. Falo do historiador, filósofo e político italiano do século 20, que disse: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

Começando pelo que está acabando, assim como em outras democracias ocidentais, a extrema direita ocupou o espaço da centro-direita no espectro político brasileiro.

A nova composição do Congresso registrou grande avanço do bolsonarismo, espremendo a antiga centro-direita. A centro-esquerda e a extrema esquerda também cresceram, mas infelizmente menos do que a extrema direita.

Em minha opinião de cientista político amador, o encolhimento da centro-direita deve-se a dois fatores mundiais: o fracasso do neoliberalismo em gerar crescimento para todos e o surgimento das redes antissociais.

Na economia, a crise de 2008 e a estagnação que se seguiu, em parte derivada da hipótese de austeridade expansionista adotada em várias democracias ocidentais, desacreditaram o discurso neoliberal e os políticos a ele associados.

Somem-se à crise neoliberal os temores da classe média branca sobre globalização e imigração em países avançados e sobre corrupção e falsa ameaça comunista em países como o Brasil, e você tem a avenida aberta para a extrema direita.

Nos dois casos, o surgimento das redes antissociais, onde todos falam e quase ninguém escuta, permitiu a aglutinação de movimentos minoritários, mas ruidosos, de extrema direita. Existem também doidos de extrema esquerda (o pessoal que defende stalinismo), mas esses são minoria da minoria.

A maioria da minoria doidivana de rede antissocial está na extrema direita, em que vários “homens de bem” acharam a oportunidade de extravasar suas frustrações em racismo e misoginia, sempre com a desculpa: “Eu estava brincando”. Bolsonaro é a versão nacional de um fenômeno mundial.

E os sintomas mórbidos previstos por Gramsci? Há vários. Na economia, discurso fiscalista com prática populista, basta ver o pacote eleitoral de Bolsonaro e a crise atual no Reino Unido. Na política, judicialização crescente de todo e qualquer assunto, com paralisia administrativa. Nas relações sociais, crescimento do porte de arma e discussões pessoais que acabam em tragédia.

Os sintomas mórbidos continuam na saúde pública, educação, meio ambiente e outras áreas, mas paro por aqui para não desanimar os leitores.

Do lado positivo, a frente ampla construída por Lula é um sinal positivo do que pode aparecer. Do PSOL a eminentes tucanos, várias pessoas constataram que é preciso se juntar para barrar o bolsonarismo enquanto isso é possível, mas falta definir o que fazer depois.

Apesar de o “novo” ainda não ter nascido, é possível antever dois princípios para que ele tenha sucesso: 1) de nada adianta responsabilidade fiscal com paz de cemitério e 2) o crescimento econômico tem que ser para todos, em vez de para poucos. É por esses dois motivos que Lula ganhou o primeiro turno das eleições presidenciais. Convém escutar o que ele tem a dizer.

Do meu lado, digo apenas que há várias formas de reequilibrar o orçamento público com geração de emprego e redução de desigualdades, desde que petistas e ex-antipetistas concordem com uma pauta mínima de estímulos de curto prazo e reformas de longo prazo, mas hoje isso virou “detalhe” para depois das eleições.

Agora a prioridade é apoiar o santo guerreiro contra o dragão da maldade, por isso é Lula de novo com a força do povo!