Como tornar escolas mais seguras, por Thiago Amparo

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Respostas são multifacetadas e exigem políticas de paz, não cassetetes

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 30/03/2023.

A professora Elisabeth Tenreiro, 71, era alegre. Defendia fervorosamente a vacinação e a ciência e trabalhou por muitos anos no Instituto Adolfo Lutz na área da saúde. Bem-humorada, postava nas redes sociais sobre química e biologia de forma espirituosa. Desafiando o etarismo, tornou-se professora na rede pública paulista aos 60 anos de idade. Gostava de samba e do Corinthians. Apesar da leveza deste prelúdio, leitor, o ofício de colunista impõe o fardo sufocante de escrever palavras duras.

Beth, como era conhecida por colegas e alunos, foi morta a facadas por um aluno de 13 anos na zona oeste de São Paulo na última segunda-feira (27). O adolescente tentara comprar uma arma de fogo online antes, sem sucesso. No Brasil, ataques violentos em escolas explodiram a partir de agosto de 2022, segundo dados da Unicamp e Unesp: foram nove ataques de extrema violência em oito meses; a média era um ataque a cada dois anos, mas passou a ser de um por mês.

Rapidamente, o governador paulista propôs policiamento permanente dentro das escolas e congressistas reaqueceram a redução da maioridade penal. Por trás da boçalidade bruta, há oportunismo penal — como se policiais em sala protegessem professores e resolvessem a saúde mental de alunos— e venda de soluções fáceis para temas complexos. Recair no niilismo de que nada possa ser feito, tampouco, ajudará. Tornar as escolas mais seguras requer respostas multifacetadas.

Entre elas estão o monitoramento por inteligência policial preventiva de discursos de ódio online; regulação adequada das plataformas para lidar com ameaças de violência; ensino e extensão nas escolas para uma cultura de paz e contra bullying, envolvendo pais, professores, alunos e comunidade; expandir e ampliar programas de saúde mental de crianças e adolescentes; apoio psicossocial à comunidade escolar, em especial àquelas com medo da violência. Tornar escolas mais seguras é possível e urgente, mas requer políticas de paz, não cassetete.

Desafios chineses

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Estamos caminhando para um período de grandes conflitos geopolíticos entre as grandes potências internacionais, muitos especialistas em política internacional acreditam que estamos numa Guerra Fria 2.0, que está gerando e intensificando os desequilíbrios da economia global, incrementando incertezas, aumentando as volatilidades financeiras e em contrapartida, destruições generalizadas, crescimento das desigualdades, aumento da violência e a redução dos investimentos produtivos.

Nas últimas décadas, estamos observando rapidamente a ascensão da China, que nos últimos quarenta anos construiu um novo modelo de desenvolvimento, centrado no Estado, com fortes investimentos governamentais, altos dispêndios em ciência e tecnologia, reconfigurando a sociedade internacional, ameaçando o predomínio norte-americano e fragilizando fortemente a economia europeia, gerando novos desafios para as nações, exigindo fortes investimentos em capital humano e gerando conflitos geopolíticos com todo ocidente, lembrando-os que este último dominou concretamente a sociedade mundial desde a consolidação da Revolução Industrial.

A ascensão chinesa está gerando novos modelos econômicos e produtivos, uma verdadeira revolução no pensamento econômico, levando novos eixos de análise e reflexão da economia, colocando em xeque os modelos de equilíbrio geral do sistema econômico, questionando a existência do homem econômico, rechaçando a chamada “mão invisível” conceito criado pelo economista escocês Adam Smith. Neste cenário, destacando a importância dos investimentos governamentais, políticas industriais ativas, modelo exaustivamente utilizado no fortalecimento das nações orientais, contribuindo diretamente para que essas nações saíssem de posições intermediárias e se transformassem em países desenvolvidos, relevantes e fortemente industrializados.

O mundo contemporâneo prescinde de pragmatismo, as nações precisam de fortes atuações conjuntas de todos os setores da comunidade, num momento de fragilização e questionamento da democracia, como estamos percebendo em todas as regiões do mundo, a sociedade global precisa aprofundar os ideários da verdadeira democracia, incentivando a participação social de todos os setores, abrindo espaços para grupos marginalizados e que aceitem a diversidade social que vem ganhando espaço na sociedade globalizada.

Nesta sociedade, percebemos que a ascensão asiática abre novos canais de negociação, buscando novos investimentos, novas parcerias estratégicas, trazendo novas tecnologias, consolidando nosso mercado interno que pode ser utilizado como um ativo fundamental para angariar novas perspectivas econômicas, revertendo as tendências negativas de um futuro sombrio da sociedade brasileira, fortemente polarizada, marcadamente imediatista, cada vez mais individualista, que degrada rapidamente o meio ambiente, destruindo a sociabilidade, nos levando a uma comunidade violenta, centrada na desigualdade e fortemente concentrada.

Nesta sociedade globalizada, marcada por conflitos militares, hostilidades crescentes, crises financeiras, crescimento de tecnologias disruptivas, onde os trabalhadores perdem renda e carecem de perspectivas futuras, marcados por desequilíbrios emocionais e afetivos, o discurso do empreendedorismo é muito limitado para compreendermos os desafios da sociedade do conhecimento. Neste cenário, as nações que conseguiram alcançar desenvolvimento econômico e diminuição das desigualdades sociais foram aquelas que conseguiram uma solidariedade entre todos os atores sociais, investiram fortemente em educação, melhorando a formação dos professores, aumentando os dispêndios em tecnologia, estimulando a capacidade inovadora, desenvolvendo pesquisa científica, incrementando projetos que incentivem a participação social e olhando sempre para o médio e longo prazo, deixando de lado uma visão imediatista, vislumbrando a construção de uma sociedade menos desigual, mais plural e desenvolvida.

A ascensão chinesa nos traz grandes ensinamentos para a construção de um desenvolvimento econômica e redução da pobreza, nos trazendo elementos para utilizarmos o mercado interno como alavanca de negociação internacional, atraindo empresas e transferência de tecnologias, investindo fortemente em infraestrutura urbana, cujos impactos são imediatos, impulsionando novos empregos, melhorando a renda, mas para isso, precisamos abandonar o complexo de vira lata que vigora no país.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/03/2023.

Como o financismo ameaça Lula 3, por Paulo Kliass

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É constrangedor assistir ministros defendendo bancos, como no caso do crédito consignado – e austeridade, em nome da “responsabilidade fiscal”. Bom-mocismo não reconstrói terra arrasada – e pode minar apoio popular ao governo

Paulo Kliass OUTRAS PALAVRAS – 21/03/2023

A importante vitória de Lula nas eleições de outubro passado gerou uma enorme expectativa de mudança para mais da metade da população, aqueles e aquelas que optaram por enterrar de vez o trágico e criminoso quadro deixado pelo quadriênio em que o bolsonarismo tomou conta do governo federal. O estado de terra arrasada em que o governo do genocida deixou o Brasil e, em especial, a sua população mais pobre estão a exigir ações e programas urgentes por parte da nova equipe governamental. Trata-se de criar as condições para se reconstruir o Estado, as políticas públicas e oferecer perspectivas de superação da crise para a grande maioria.

Ocorre que, apesar de ter sido fundamental para o futuro do país, a derrota de Bolsonaro por si só não alterou aspectos intrínsecos de nossa estrutura econômica e social. O quadro de profunda injustiça na distribuição da renda e do patrimônio permaneceu o mesmo após a maravilhosa e emocionante posse do dia 1º de janeiro. A raiva e o inconformismo dos derrotados no pleito também se fazem presente ainda, como bem demonstraram as tristes e chocantes cenas dos atentados terroristas perpetrados em Brasília antes e depois do 8 de janeiro. A grande diferença é que agora temos um governo que se pauta pelos valores democráticos, populares e republicanos. Assim, estão sendo retomados os processos contra o trabalho escravo, a expulsão o garimpo ilegal das terras Yanomani e vem sendo dada sequência aos inúmeros processos policiais e judiciais contra os atos de corrupção e arbítrio levados a cabo por Bolsonaro e sua quadrilha. Enfim, apenas alguns exemplos de um amplo leque de iniciativas do novo governo.

No entanto, apesar disso, algumas esferas da nossa complexa formação social ainda não foram tocadas. Refiro-me, em particular, aos poderes do financismo em nossas terras. Lula já declarou em alguns momentos que se arrependeu de não ter conseguido promover mudanças substantivas e duradouras em dois domínios nos quais as políticas públicas poderiam ter contribuído para algum tipo de rearranjo de natureza mais estrutural. E costumava mencionar o sistema financeiro e os grandes meios de comunicação. Na verdade, talvez ele tenha percebido que a política de boa vizinhança e do “lulinha-paz-e-amor” não tenham sido suficientes para que as elites brasileiras o aceitassem como legítimo representante da vontade da maioria da população. A tentação golpista reiterada ao longo dos 14 anos em que o PT esteve no governo e a adesão incondicional a Bolsonaro a partir de 2018 são provas cabais de tal comportamento de nossas classes dominantes.
Financismo segue firme e forte

O sistema financeiro segue achando que pode mandar e desmandar, como sempre fez. Essa postura arrogante e de defesa intransigente de sua pauta conservadora entrou em operação antes mesmo da realização das eleições. Depois de perceberem que o flerte com Bolsonaro não teria o efeito que conseguiram produzir em outubro de 2018, os representantes da banca passaram a assediar o futuro governo pelas bordas. Criaram factoides de candidatos ministros da área da econômica e impuseram, mais uma vez, sua terna agenda conservadora e monetarista. Alguns dos motes seguiam a linha da impossibilidade de se colocar um freio no processo da privatização, da necessidade de se manter a linha da austeridade fiscal ferro e fogo, que o novo governo não ousasse rever dispositivos da reforma trabalhistas de Temer/Bolsonaro e que a independência do Banco Central não fosse colocada em discussão.

A estratégia de criar um clima de alarmismo e de chantagem, caso suas propostas não sejam adotadas pela equipe de Lula, segue a pleno vapor. Assim tem sido, por exemplo, o debate a respeito da necessidade de revogar o criminoso “Novo Regime Fiscal”, o eufemismo inserido na Emenda Constitucional nº95, que criou o teto de gastos em 2016. A defesa enérgica do austericídio, levado à frente por parte dos “especialistas” a soldo do financismo, parece que colocou na defensiva os principais expoentes do novo governo na área econômica, que parecem morrer de medo de se opor aos interesses da banca. Ocorre que não há caminho possível para cumprir minimamente com o programa com que Lula foi eleito sem tocar nos ganhos fáceis do parasitismo financista e sem romper com as amarras que a austeridade fiscal burra e cega coloca no conjunto da política econômica.

É bem verdade que o governo mal começou, nem apresentou seu balanço dos 100 primeiros dias ainda não completados. No entanto, alguns casos da agenda da Esplanada, já sob nova direção, oferecem elementos de preocupação para quem se coloca na expectativa da mudança necessária. Em especial, vale a pena conferir três itens da pauta em movimento: i) a definição do novo arcabouço fiscal; ii) a relação do governo com a direção do Banco Central e a definição da Selic; iii) a discussão em torno do crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS.

Austeridade fiscal a todo custo?

No caso da indefinição do pacote fiscal, pode até parecer infantil e ingênuo o jogo de quem acha que pode atender a todas as demandas do sistema financeiro e dos economistas do campo conservador, ao mesmo tempo em que busca convencer o presidente da República de que não há outra alternativa que não seja o respeito a uma indefinida responsabilidade fiscal returbinada. A rápida reconversão daqueles que se diziam oposição a Paulo Guedes assusta qualquer analista mais isento. Manter elementos de austeridade em nome de um suposto respeito à responsabilidade fiscal é trair o resultado das eleições e abrir o caminho para frustração de parcela importante da sociedade que aguarda por sinais de mudanças.

Os analistas dos grandes conglomerados não escondem seu desejo e apontam para exigência de uma “âncora”, em lugar do termo “arcabouço” para tratar do novo arranjo fiscal. O assunto seguiu por semanas tratado a boca pequena, sem vazamento para imprensa. É importante esperar para conhecermos a última versão daquilo que vai ser apresentado ao Congresso Nacional em nome de Lula. Mas pelo que se pode imaginar, a preocupação da equipe da Fazenda é guiada mais por não contrariar o financismo do que em propor uma mudança necessária na abordagem do tema fiscal.

A armadilha de Campos Neto e do Copom

A relação com Roberto Campos Neto segue na mesma linha. Lula não poupou críticas ao nomeado por Bolsonaro para comandar a política monetária, juntamente com os demais oito integrantes da diretoria do órgão regulador e membros natos do Copom. A independência do Banco e a novidade dos mandatos fixos de seus diretores funciona como um sério obstáculo à implementação de uma política econômica voltada para o crescimento e o desenvolvimento. Mas a preocupação do Ministério da Fazenda parece se resumir a não criar nenhuma aresta com o neto de Bob Fields, com a ilusão de que essa postura submissa e de bom mocismo pode provocar alguma redução na Selic. Já houve duas reuniões do comitê responsável pela definição da taxa oficial de juros depois da eleição de Lula.

Em 7 de dezembro do ano passado e em 1º de fevereiro deste ano, o colegiado optou por manter a Selic nos estratosféricos níveis de 13,75%. Trata-se de flagrante sabotagem ao governo legitimamente eleito. Dentre outros problemas, Campos Neto representa os interesses do bolsonarismo no interior da nova equipe econômica. É até possível, ainda que improvável, que o Copom resolva demonstrar alguma boa vontade e decida por baixar a taxa em 0,25%, por exemplo, na próxima reunião prevista para ocorrer nesta semana. Seria uma mera demonstração de cosmética, sem alterar a essência da política monetária. E não adiantaria nenhuma tentativa de festejar por parte de integrantes da linha moderada do governo, pois não há nada a comemorar com esse patamar da Selic.

Mas como avaliam onze em cada dez economistas não vinculados ao financismo, o fato que importa reter é que esse nível de juros inviabiliza qualquer projeto de desenvolvimento de longo prazo. Em evento organizado pelo BNDES e praticamente ignorado pela grande mídia, o economista condecorado com o Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, não poupou palavras a respeito dos equívocos de nossa política monetária, mesmo estando junto a representantes do governo e do Ministério da Fazenda.

(…) “A taxa de juros de vocês é realmente chocante. Os números de 13,75% e 8% [taxa real] são o que vai matar qualquer economia. O que é impressionante é que o Brasil sobreviveu ao que é uma pena de morte. O que surpreende é que vocês tenham sobrevivido” (…)
Crédito consignado: governo não pode se humilhar

No desenrolar da questão dos juros consignados, mais uma vez fica demonstrado que os interesses do financismo seguem muito bem assegurados por setores deste governo. Tudo começou com uma decisão adotada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) no dia 13 de março. Por iniciativa do Ministro da Previdência, Carlos Lupi, o colegiado decidiu reduzir o limite máximo para a taxa na modalidade e de crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS. A taxa máxima autorizada para os bancos realizarem tal operação era de 2,14% ao mês e ela passou a ser 1,7%.

A medida começou a ser bombardeada pela grande imprensa e por integrantes do próprio governo, como o ministro Chefe da Casa Civil e o ministro da Fazenda. O boicote orquestrado para inviabilizar a mudança chegou ao ponto de os bancos federais, Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica (CEF), pararem de oferecer tal alternativa de empréstimo a seus clientes, assim como fizeram os grandes bancos do oligopólio privado.

Independentemente dos aspectos da disputa interna por espaço no primeiro escalão, o fato é que chega a ser constrangedor ver ministros de Lula argumentando contra a redução decidida, pois ela seria inviável do ponto de vista dos custos das instituições bancárias. Vergonha alheia completa!

Além de não ser verdadeira, a orientação do setor público adota a narrativa da banca privada. A seguir nessa toada, é bem capaz assistirmos gente do governo argumentando que não existe espaço para reduzir tampouco para diminuir os tresloucados spreads cobrados nas operações de cartão de crédito ou as elevadíssimas tarifas cobradas pela banca. Afinal, sempre alguém vai encontrar um “estudo técnico isento” escondido no fundo da gaveta para justificar essas práticas espoliativas absurdas.

Caso as taxas debatidas pelo CNPS sejam anualizadas, elas representam uma redução de 29% para 22%. Ora, frente a uma Selic de 13,75%, os bancos não teriam nenhum problema em se acomodar no novo limite. É importante levar em consideração que o crédito consignado do INSS apresenta risco zero para a instituição bancária. Não existe possibilidade de inadimplência nesse caso, uma vez que o pagamento da mensalidade do empréstimo contratado pelo cliente/beneficiário já sai direto do Tesouro Nacional para as contas do banco. Ao contrário do jogo de cena montado contra Lupi, caberia ao governo apoiar a medida e orientar o BB e a CEF a adotarem a linha de frente da modalidade, caso o financismo privado opte mesmo pelo boicote.

O próprio BC oferece respostas para esse ponto em sua página na internet. Há um conjunto de instituições bancárias que já estavam oferecendo crédito consignado a taxas inferiores ao novo limite máximo decidido pelo CNPS. E, obviamente, não estavam perdendo dinheiro com tais operações.

Na verdade, o financismo, receia que a medida seja um teste para eventual conjuntura mais à frente, onde os bancos federais possam eventualmente ser orientados pelo governo a operar com spreads mais reduzidos do que seus concorrentes privados em todas as suas modalidades de empréstimo. Esse movimento ocorreu durante o governo Dilma e agora a banca resolveu se antecipar e cortar a mal pela raiz (sic).

Lula já disse mais de uma vez que só teria aceitado o desafio de um terceiro mandato pois deseja fazer mais e melhor do que nos outros dois. O presidente sabe que para cumprir tal missão não pode ficar, de novo, refém do financismo. Pois agora precisa dar mostras de que está disposto a tanto.

Caso sua intenção seja mesmo a de deixar um legado de desenvolvimento e de redução das desigualdades em nosso país, ele precisa romper, desde já, com as amarras que pretende lhe impor esse pessoal da finança. Para que Lula 3.0 seja mesmo aquilo que os setores da base da sociedade aguardam dele, é preciso deixar de apenas agradar ao sistema financeiro e à tecnocracia que pensa como a banca. O governo precisa se voltar de forma urgente aos desejos e às necessidades da maioria.

Ventos intervencionistas

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Nos últimos anos a situação da economia internacional vem degradando de forma acelerada, com impactos sobre todas as regiões do mundo, levando a incertezas, aumento dos riscos dos países e piora dos indicadores macroeconômicos. Depois da crise financeira internacional de 2008, a chamada crise Imobiliária nos Estados Unidos, o mundo sentiu na pele uma forte degradação financeira na Europa, levando vários países a quase bancarrota, culminando na saída da Inglaterra da União Europeia. Somando a esse cenário de crises financeiras, destacamos ainda, a pandemia do coronavírus, que vitimaram mais de seis milhões de pessoas na sociedade mundial, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, com fortes impactos nos preços internacionais e o incremento da inflação, gerando instabilidades e volatilidades. Atualmente, estamos, novamente, vivenciando uma nova crise financeira global, cujos impactos ainda são impossíveis de fazer previsões, seus contágios, seus desdobramentos e seus impactos para todas as economias.

Neste cenário, de possível crise financeira internacional, os cenários estão confusos e pouco visíveis, mas percebemos que os agentes econômicos estão se movimentando ativamente para agilizar o socorro para as instituições bancárias, como fizeram anteriormente, despejando trilhões de dólares para proteger os investidores e evitar que acumulem perdas substanciais, que poderiam inviabilizar seus ganhos e seus patrimônios.

Essa crise, como em todas as outras que impactaram o sistema econômico e produtivo mundial, nos mostra claramente, que quando os grandes agentes econômicos e políticos solicitam proteção do Estado, os grandes incentivos monetários e subsídios financeiros crescem rapidamente, sem transparência, sem atrasos e sem mixarias, dispendendo fortunas que, se fossem canalizados para investimentos produtivos, seus retornos sociais seriam muito maiores, garantindo ganhos substanciais para toda a comunidade, aumentando o emprego, melhorando o salário e as rendas agregadas, vislumbrando um cenário propício para o crescimento econômico.

Neste cenário de possível crise financeira global, os governos se colocam numa condição de paradoxo crescente, dispendem trilhões de dólares para socorrer os investidores incautos, acenando positivamente para os setores financeiros, despejando recursos com pouca transparência, com ausência de governança e acenam para a redução dos investimentos públicos em políticas sociais, cujos retornos são maiores e auxiliariam na construção de um ambiente mais propício para a recuperação das economias.

A crise nos mostra, que ao contrário dos liberais, que advogam a ausência do Estado, todos os grandes conglomerados privados contaram com os recursos públicos, direto ou indiretamente, para se constituir, se consolidar e prescindem de seu apoio político e financeiro, protegendo-os, expandindo-os e fortalecendo-os para que seus lucros cresçam de forma acelerada. Na verdade, ao investigar os grandes conglomerados econômicos e produtivos percebemos que a parceria entre Estado e Mercado sempre existiu. A economista italiana Mariana Mazzucato, autora do livro O Estado Empreendedor, destaca os mais variados exemplos de parcerias exitosas entre governos e empresas, desde o financiamento a fundo perdido, auxílios institucionais, compras governamentais, proteção geopolítica, isenções tarifárias, dentre outras.

Neste cenário de incertezas e instabilidades crescentes no ambiente internacional, marcados por preocupações econômicas, polarizações políticas e o crescimento de crises sociais em todas as regiões, percebemos o incremento das parcerias entre Estados e Mercados, onde países desenvolvidos estão injetando trilhões de dólares para fortalecer setores econômicos estratégicos, nações desenvolvidas estão barrando empresas de países vistos como adversários e impedindo a compra de empresas nacionais por concorrentes externos. Neste ambiente de fortes concorrências, as nações desenvolvidas estão olhando mais fortemente para seus interesses imediatos, internalizando cadeias produtivas, fortalecendo suas empresas e consolidando setores nacionais.

Internamente, estamos desindustrializando, vendendo empresas estratégicas e acreditamos que somos contemporâneos. Será?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/03/2023.

Ignorância e crueldade, por Ana Cristina Rosa.

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Estado deve ser responsabilizado nos casos de trabalho análogo à escravidão

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

Folha de São Paulo, 20/03/2023

O número de resgates de trabalhadores em situação degradante e análoga à escravidão —eufemismo para a “escravização contemporânea”— bateu recorde no primeiro bimestre de 2023.

Num país de miseráveis, ultimamente não há semana em que o noticiário deixe de trazer a descoberta de pessoas aliciadas com falsas promessas de trabalho decente para acabarem submetidas a jornadas de trabalho exaustivas, em condições precárias, algumas vezes mediante ameaças e castigos físicos.

Não bastasse isso tudo, em muitos dos casos os libertos —não me ocorre termo mais apropriado— são mantidos em cativeiro por conta de dívidas contraídas com os empregadores.

Mas o que é que está acontecendo no Brasil?

Como não houve ampliação na fiscalização, talvez a consciência das pessoas tenha aumentado e, com ela, o número de denúncias tenha se elevado também. Espero que seja isso.

Mas temo que o crescimento seja mesmo da iniquidade dos que, sem dó ou piedade, não perdem oportunidade de explorar e tirar vantagem da penúria alheia. Tanto que, apesar do cenário pavoroso, há interessados em acabar com o Ministério Público do Trabalho.

Entre os “escravizados contemporâneos” tem gente de várias idades, de todas as cores. Contudo, a maioria é formada por homens negros e jovens.

E, diante do que se tem observado, a crueldade parece estar valendo a pena. O que são R$ 7 milhões em indenizações comparados ao faturamento anual bilionário das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, por exemplo?

Além da legislação nacional, o Brasil —última nação das Américas a abolir a escravidão, é bom lembrar— ratificou uma porção de pactos, declarações, convenções e tratados internacionais assumindo o compromisso de combater essa abominação que é o trabalho escravo. Talvez tenha passado da hora de responsabilizar o Estado por essa violação de direitos humanos.

A intimidade artificial virou o mal do século, por Ronaldo Lemos

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Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 20/03/2023

Esther Perel é psicoterapeuta. Nasceu na Bélgica, filha de sobreviventes do holocausto. Hoje é professora da universidade de Nova York e especialista em temas como solidão e relacionamentos contemporâneos, incluindo relações amorosas. No festival SXSW, realizado em Austin, no Texas, que se encerrou ontem, ela roubou a cena. No meio de uma pletora de palestras sobre tecnologia, sua fala sobre comportamento humano foi a mais importante na minha opinião.

Ela desenvolveu o fascinante tema da “intimidade artificial”. Seu argumento é que estamos vivendo nossas vidas em permanente estado de atenção parcial. Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso celular, mídias sociais, alertas de mensagem e assim por diante. Nesse contexto não é possível intimidade real.

As mídias sociais e nosso celular funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a se materializar, partimos para o mundo confortável e controlado do celular, que nos distrai do que é verdadeiramente humano.

Essa é a intimidade artificial. Estamos todos vivendo coletivamente o experimento do rosto parado que o psicólogo Edward Tronick realizou nos anos 1970. Nele, uma mãe primeiro é gravada se relacionando normalmente com seu bebê de 6 meses. Ela sorri, o bebê sorri de volta. Ela fala algo e o bebê dá uma gargalhada. No segundo momento a mãe paralisa seu rosto. Ela olha fixamente para o bebê, sem expressar qualquer reação. O bebê então gargalha. A mãe permanece impassível. O bebê então começa a gritar. Nenhuma reação da mãe. O bebê então chora e grita desesperadamente, até que a mãe retoma suas reações normais e acolhe a criança.

No mundo que estamos vivendo hoje somos todos simultaneamente a mãe e a criança. Como somos incapazes de dar atenção integral ao outro, estamos sempre em dívida emocional com as pessoas que nos cercam. Ao mesmo tempo, somos também o bebê, sedentos por atenção. Nunca houve uma carência tão grande por escuta e acolhimento como a que vivenciamos coletivamente no mundo de hoje.

Esther nos conclama a nos rebelarmos contra a intimidade artificial. A exigir e a dar atenção total para aqueles com quem nos relacionamos. A darmos o difícil passo de aceitarmos o conflito e o atrito como parte das relações humanas, parando assim de nos anestesiarmos parcialmente o tempo todo. Sem isso seremos obrigados a conviver com relações que julgamos “defeituosas” o tempo todo.

Uma pesquisa realizada nos EUA em 2019 apontou que 22% dos “millenials” têm hoje zero amigo. 25% dizem não ter nenhum conhecido. Muitos têm um número de seguidores gigantesco em redes sociais, mas amigos mesmo, nenhum. Em gerações anteriores o número dos sem-amigos girava em torno de 9%. Não é por acaso que ansiedade e depressão são um dos assuntos que mais circulam em mídias sociais hoje entre adolescentes e também crianças. Na era da intimidade artificial, não são só as amizades que estão em risco, mas também as relações amorosas e familiares. Apertem os cintos para a sociedade da solidão, com consequências nefastas para todos os campos da vida humana.

Fogo no sistema bancário, por Antônio Martins

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Quebra de três bancos dos EUA gera pânico e leva Casa Branca a salvá-los com recursos públicos.

Há riscos de contágio. Por que uma estrutura financeira voltada para capturar a riqueza da sociedade, sem nada produzir, torna-se vulnerável

Antônio Martins, editor de Outras Palavras.

Outras Palavras, 13/03/2023.

Nenhum mito é para sempre. A crença na solidez das finanças que floresceram sob o neoliberalismo tornou-se mais frágil neste domingo (12/3), quando as três principais autoridades monetárias dos EUA reuniram-se às pressas, entre si e com o preside nte Biden, para tentar debelar um incêndio que crepitava no sistema bancário. Três bancos haviam quebrado nos dias anteriores – um deles, o Silicon Valley Bank (CVB), especializado em financiar startups e considerado por alguns o “sangue do setor tecnológico”. Havia sinais de que os depositantes corriam para sacar seus depósitos em outras instituições, temendo perdê-los. Surgiu o risco de uma “crise sistêmica”, catastrófica para a economia.

A mobilização de emergência envolveu o poderoso presidente do Fed (o banco central), Jerome Powell, a secretária do Tesouro (espécie de ministra da Fazenda), Janet Yellen, e o presidente do instituto garantidor de depósitos bancários (FDIC), Martin Guenberg. As medidas anunciadas são pouco ortodoxas. O Fed honrará, com recursos públicos, todos os depósitos nos bancos quebrados, favorecendo em especial os clientes mais ricos, cujos saldos acima de 250 mil dólares não estão protegidos pela lei. Não se sabe quanto custará este resgate, mas p otencialmente ele pode chegar a centenas de bilhões de dólares. Além disso, abriu-se um crédito inédito (Programa de Financiamento a Prazo dos Bancos, ou BTFP, em inglês) para salvaguardar, também com dinheiro do Estado e em condições favorecidas, outras instituições bancárias sob risco. É muito cedo para saber se as ações, defendidas por Biden num pronunciamento na manhã de segunda, terão êxito. No início da tarde, os sinais eram preocupantes, com novos bancos sob risco. Como em todas as crises, os fatos ajudam a jogar luz sobre realidades por muito tempo ocultadas.

Por trás da quebra, os juros

As taxas básicas de juros, determinadas pelos bancos centrais, estão em alta em todo o Ocidente desde o início de 2022. O movimento afeta de diferentes maneiras as economias e sociedades. No Brasil, periférico e regredido, um índice absurdo (13,75%, ou 8,5% ao ano acima da inflação) paralisa os investimentos e sangra o Estado. É o maior do mundo e duas vezes superior ao dos países que vêm em segundo lugar.

Nos EUA, as taxas reais mantém-se negativas (4% ao ano, contra uma inflação de 6,4%). Mas a alta
prossegue e o presidente do Fed prometeu acelerá-la, em depoimento ao Senado em 7/3. Foi este movimento altista, num cenário marcado por financeirização generalizada da economia, que levou o SBV ao colapso e ameaça outros bancos.

Um texto da revista Economist ajuda a entender. Sediado em Santa Clara, na Califórnia, o SBV especializou-se em ter como clientes startups tecnológicas e de serviços de Saúde. Os depósitos afluentes que recebeu deste setor fizeram seu valor “de mercado” mais que triplicar entre o início de 2020 e o fim de 2021. Seus depósitos quadriplicaram, chegando a US$ 189 bilhões nesse mesmo momento. Parecia saudável a ponto de ser incluído pela revista Forbes, há algumas semanas, na lista de “melhores bancos” norte-americanos.

Os juros derrubaram-no por dois caminhos. O SBV comprou títulos do Tesouro dos EUA em massa,
quando as taxas estavam quase zeradas. As primeiras perdas significativas vieram quando a alta abrupta dos juros desvalorizou estes papéis mais antigos, que “micaram” (já que é possível investir em títulos novos, com muito maior rendimento). A situação piorou com a crise do setor de tecnologia dos EUA, que provoca há meses quebras de empresas e demissões em massa.

Mas o fato mais chocante – e indicador de possível contágio – foi a rapidez do colapso final do
SVB. Em 8/3, o banco anunciou que buscava US$ 2,5 bilhões (pouco mais de 1% de seus ativos) para cobrir um déficit em seu balanço. A notícia bastou para uma corrida devastadora a seus depósitos, feita em especial por clientes graúdos. Depositantes com mais de US$ 250 mil, desprotegidos de garantias legais, transferiram suas contas quase instantaneamente para instituições maiores. Em dois dias, as ações do SVB perderam 88% de seu valor. Na sexta-feira, 10/3, as autoridades monetárias fecharam o banco.

Em pleno domingo, fizeram o mesmo com o Signature Bank, de Nova York, também exposto a depositantes endinheirados que fugiam do risco. Já na manhã desta segunda (13/3), apesar das
medidas das autoridades bancárias e do discurso de Biden, um movimento semelhante parecia ameaçar o First Republic, de San Francisco e outros bancos regionais. Em sua fala pela manhã, Biden prometeu “fazer tudo o que for necessário” para proteger o sistema bancário. Mas a que custo?

Amplia-se a busca de alternativas ao rentismo

A crise financeira aberta em 2008-2010 é o marco inicial da fase política que vivemos. Foi então que a classe do 0,1% exigiu e obteve dos governos do Ocidente a salvação de seu patrimônio e interesses; que se abriu o fosso global da desigualdade; que se ampliaram os ataques ao Estado de Bem-Estar Social; que se tornou nítido o esvaziamento da democracia.

Quinze anos depois, as sociedades estariam dispostas a viver um episódio semelhante?

As respostas começaram a surgir no próprio domingo (12/8). Nos EUA, viralizaram nas redes sociais as postagens que exigiam: “Nenhum resgate dos contribuintes para os ricos” [“No taxpayer bailout for rich clients”]. O senador Bernie Sanders, ex-candidato à Presidência, manifestou-se: “Não é hora de salvar o SVB. Não podemos continuar ladeira abaixo, com socialismo para os ricos e individualismo cru para todos os demais”. Já a senadora Elisabeth Warren, conhecida por sua luta pela reforma do sistema financeiro, lembrou num artigo para o New York Times que sobram socorros para os bancos e os especuladores – enquanto não há à vista uma saída para milhões de estudantes afundados em dívidas bancárias.

Talvez duas vozes devam ser ouvidas com ainda maior atenção. Uma é a do veterano economista
Michael Hudson. Em um texto de denúncia sobre o papel do sistema financeiro sob o capitalismo neoliberal, publicado hoje, ele lembra que (ao contrário do que prometeu Biden) as maiorias sempre pagam pelo salvamento dos bancos. O dinheiro despendido com eles nem sequer entra nos Orçamento do Estado – nem nos EUA, nem no Brasil. Simplesmente é emitido a partir do nada e passa a compor a dívida pública. Nem Legislativo nem Executivo decidem ou são ouvidos. A aristocracia financeira tem cordéis mais eficientes para colocar o Estado a seus pés.

Hudson também lembra que esta dinâmica de desregulação dos mercados financeiros e socorro pelo
Estado, sempre que uma crise sobrevém, está criando modalidades cada vez mais tóxicas de especulação. Uma delas é a explosão de “instrumentos derivativos”, puras apostas, por meio das quais grandes “players” financeiros tentam multiplicar seu capital, ganhando sobre os valores futuros dos alimentos, dos minérios, da inflação, das moedas, dos índices da bolsa, do número de falências… Este cassino cresceu tanto, alerta Hudson (teria ultrapassado um quatrilhão de dólares, ou quarenta vezes o PIB dos EUA) que imprevistos mínimos pod em gerar perdas colossais e acender a centelha de uma crise bancária sistêmica.

A outra voz é de Ellen Brown, a grande defensora de um sistema de bancos públicos. O aumento dos juros que todo o Ocidente agora persegue, sustenta ela, é uma ferramenta tola contra a inflação. Inflige sofrimento enorme às sociedades e não ataca a raiz dos problemas. Há alternativas – adotadas não apenas na China, mas também em outros países asiáticos, como Coreia do Sul e Nova Zelândia. Consiste em empregar a capacidade do Estado, de criar moeda a partir do nada não para alimentar a especulação, mas para grandes projetos de reforço dos serviços públicos e renovação da infraestrutura.

Dá certo, mostra Ellen Brown no artigo. Falta saber se haverá vontade política – nos EUA e, em breve, no Brasil.

Resgate a bancos quebrados cria o chamado risco moral, por Schwartsman

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É fundamental que operações de salvamento não recompensem gestores incompetentes

Hélio Schwartzman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 18/03/2023

Um mundo justo é aquele em que cada um responde por suas ações e omissões. A definição não é despropositada, mas receio que a maioria de nós não gostaria de viver num lugar assim. Nele, pessoas que não tivessem poupado para aposentadoria seriam condenadas à miséria na velhice; quem não tivesse plano de saúde morreria na porta do hospital. Vivemos em sociedades que redistribuem riscos, por variados mecanismos.

No Brasil, temos o SUS, um sistema de saúde universal bancado com dinheiro dos impostos. Temos também o INSS e programas de governo voltados para populações específicas. Mais longe do âmbito do Estado, temos seguros, hedges etc.

Também entram aí os aportes bilionários que governos estão fazendo no sistema bancário. A ideia aqui é que, se houver crise sistêmica, todos perdem. O problema com a redistribuição de riscos é que ela altera o comportamento de agentes de um modo que nunca é moralmente neutro. Os primeiros economistas já se deram conta do fenômeno e o chamaram de “moral hazard” (risco moral).

Um exemplo clássico é o do sujeito que, por ter contratado um seguro para seu carro, se torna menos cuidadoso e passa a estacioná-lo em ruas perigosas sem trancar a porta. Tais mudanças de comportamento podem afetar as taxas de sinistro, impondo custos extras a segurados que não ficaram mais desleixados.

É por isso que os desenhos institucionais e contratuais importam. Um modo de desincentivar o descaso do segurado é a franquia, que faz com que ele arque com parte do prejuízo se o carro sofrer dano. No caso do resgate de bancos, é fundamental que as operações de salvamento não recompensem gestores incompetentes e que se minimize o estímulo à complacência de correntistas (se meus depósitos estão garantidos, nem me preocupo em procurar um banco sólido). Uma boa contrapartida aos resgates é a regulação mais rígida, mas ela nunca vem ou é rapidamente deixada de lado.

Carta Mensal – Fevereiro 2023

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O mês de fevereiro de 2023 foi marcado por grandes atribuições na sociedade brasileira, onde destacamos os desastres ocorrido no litoral norte paulista, na região de São Sebastião, marcado por grandes devastações geradas pelas chuvas, que destruíram a cidade e seu entorno, provocando a morte de mais de sessenta pessoas, desabrigando milhares de cidadãos e trouxeram um caos para as cidades, mobilizando os governos federal, estadual e município, exigindo investimentos vultosos para recuperar a região.

O fenômeno mostra uma mistura bárbara na sociedade brasileira, de um lado, percebemos o descaso para a população em situação de fragilidade, residências construídas em situação calamitosas, ausência do setor público, fiscalização precária e descaso para a sociedade local, levando destruições materiais e imateriais que se acumulam na sociedade brasileira, lembramos que, todo começo de ano, somos vitimados por estes episódios, com mortes e devastações crescentes. De outro lado, percebemos a fúria da natureza, chuvas assustadoras, enxurradas devastadoras e clima sem controle, com isso, as alterações climáticas em curso na sociedade mundial mostram mais um capítulo da destruição geradas pelo aquecimento global, levando discussões estéreis entre grupos variados com seus interesses imediatos.

O mês de fevereiro se destaca pelo retorno do carnaval brasileiro, depois de três anos de pandemia, o carnaval 2023 retornou com grande efetividade, onde os investimentos foram variados, aumento dos eventos, festas regadas por muito barulho, agitação e variados formas de brincar com a festa nacional, que sempre foi vista como uma característica do povo brasileiro, onde alguns teóricos importantes destacaram que o carnaval é visto como a “cara” do povo brasileiro, alegre, flexível, criativo e carismático. Com isso, percebemos que a festa deve ser vista como um verdadeiro negócio, que movimenta bilhões de reais, injetando bilhões de reais, com organização e responsável pelo emprego de milhares de cidadãos, movimento a roda da economia.

O Brasil é sempre marcado por grandes contradições, de um lado, o mês de fevereiro foi marcado por grandes
desastres naturais no litoral paulista, com inúmeros mortos e devastações do entorno, com perdas materiais e imateriais que mobilizaram a solidariedade do povo brasileiro, com campanhas, doações e colaborações de todas as
regiões do país. De outro lado, o mês se caracterizou pelo retorno das festas do carnaval, com alegria, danças regionais e diversidades culturais e festas típicas e tradicionais, uma verdadeira festa e confraternização nacional.

Neste período é importante destacar ainda, que o assunto econômico do momento é as taxas de juros que estão na casa dos 13,75% na Selic, com impactos generalizados para toda a economia nacional, impactando sobre o sistema econômico, inviabilizando os investimentos produtivos, postergando a geração de empregos e afetando a renda agregada da sociedade, levando-a a uma condição de recessão técnica que inviabilizam o governo, suas políticas públicas, postergando as promessas eleitorais e retardando a recuperação econômica.

Neste momento, percebemos o embate entre dois pensamentos econômicos, um mais intervencionista e um outro mais ortodoxo. Neste embate, a sociedade sente na pele uma forte desaceleração econômica, lembro-os que em janeiro último, a economia recebeu com forte preocupação as dificuldades das Lojas Americanas, uma empresa de grande porte, nome conhecido pelo mercado nacional e internacional que tem, como seus acionistas, empresários conhecidos no cenário global, com movimentações intensas que podem reduzir o crédito da economia, gerando constrangimentos para toda a estrutura produtiva, levando grupos que passam por apertos financeiros a perderem recursos monetários e creditícios, gerando quebradeiras nas empresas, com fortes impactos sociais para a comunidade, aumentando o desemprego, fragilizando a renda agregada e impactando fortemente sobre o setor bancário em decorrência do aumento da inadimplência das famílias, das empresas e de todo o sistema econômico.

Vivemos num momento de grandes inquietações econômicas, governo novo com novos ideários e novos projetos econômicos, equipe econômica com visão mais progressista, muito diferente do anterior, mais ortodoxo e liberal. Estamos num período de grandes dificuldades, além de salientar as polarizações políticos que geraram confrontos constantes na sociedade nos últimos quatro anos, exigindo do governo atual uma forte capacidade de liderança: a grande pergunta que estamos fazendo, será que temos liderança suficiente para resolver os grandes desafios criados na sociedade brasileira?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular (Uniyleya), Mestre, Doutor em Sociologia (Unesp) e professor universitário.

Recessão à vista

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A economia brasileira vem convivendo com baixo crescimento econômico desde meados dos anos 1980, com impactos generalizados para toda a estrutura produtiva, impulsionando a desindustrialização, piorando os indicadores sociais, fragilizando os trabalhadores e contribuindo para a construção de um ambiente centrado na baixa confiança, nas perdas econômicas e nas desigualdades crescentes.

Neste ambiente, a economia brasileira perdeu espaço precioso na economia internacional, chegamos a ser a sexta maior economia global e, atualmente, perdemos grande potencial econômico e produtivo, nos colocando como a décima quarta na economia mundial. Perdemos espaços na indústria global, estamos distantes das grandes discussões da Indústria 4.0, fragilizamos nossa indústria da saúde e nos tornamos um importador de máquinas e equipamentos médicos e hospitalares, demonstrando nossa fragilidade produtiva, nos tornamos dependentes de produtos importados, como vimos no período da pandemia, quando para suprir as demandas internas tivemos que recorrer ao mercado mundial.

Desde o Plano Real, a economia brasileira se acostumou com juros elevados, que limitam os investimentos produtivos, impedindo a geração de emprego, aumentando o endividamento das famílias, incrementando a inadimplência e aumentando os ganhos dos rentistas, que ganham recursos com a intermediação financeira, gerando poucos empregos e contribuindo para que sejamos vistos como um verdadeiro paraíso fiscal, até mesmo recentes autoridades governamentais mantém recursos substanciais em paraísos fiscais, driblando a legislação nacional, uma verdadeira excrescência, garantindo ganhos elevadíssimos, fugindo da tributação e inviabilizando os investimentos produtivos.

Neste momento, a economia brasileira caminha para uma recessão técnica, com taxas de juros elevadas, incertezas no ambiente internacional, quebradeira de empresas nacionais, como vimos no caso das Lojas Americanas, que acendeu um alerta para toda a economia, impactando sobre o crédito e afetando todo o sistema econômico, inviabilizando a sobrevivência de muitas empresas e novos modelos de negócios, como fintechs, cooperativas de créditos e novos empreendimentos, criando um cenário sombrio para o decorrer do ano, com um aumento do desemprego e degradação da renda.

A recente discussão econômica brasileira se concentrou nas elevadas taxas de juros, com este patamar a economia tende a caminhar a passos largos a uma recessão, asfixiando as empresas, levando-as à bancarrota e inviabilizando-as, aumentando os degradantes números de desemprego e, principalmente, numa economia com um cenário de incertezas e lentidão econômica. A fragilização econômica das empresas e dos consumidores terão impactos para todo o sistema financeiro, gerando fortes prejuízos para o setor bancário que, como não é bobo, está começando a pressionar para uma redução da taxa de juros, evitando que a recessão não se aprofunde, degradando os setores produtivos e aumentando o desemprego.

Neste cenário a recuperação econômica será muito mais dispendiosa e seus custos políticos e monetários serão mais elevados, inviabilizando o governo e elevando as instabilidades, as incertezas e aumentando as polarizações políticas. As crises recentes, como a das Lojas Americanas tendem a degradar o mercado de crédito, levando outras empresas e conglomerados a situações de insolvência, aumentando os custos financeiros e inviabilizando novos investimentos produtivos.

Antes os riscos da economia brasileira, segundo os analistas da mídia corporativa e dos economistas liberais, eram os riscos fiscais do Estado, agora, com as fraudes financeiras das Lojas Americanas, que prejudicou parte da confiança dos bancos, aumentando a inadimplência, reduzindo o poder de compra dos consumidores, levando muitos conglomerados a mostrarem suas fragilidades econômicas. A recessão da economia brasileira trará grandes prejuízos para a estrutura produtiva, mas quando essa recessão gera fortes constrangimentos financeiros para o sistema bancário, com certeza, a redução dos juros deve começar imediatamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/03/2023.

Vinho sujo, por Angela Alonso.

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Desmonte da CLT em nome da modernização econômica açulou o escravismo

Angela Alonso, Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 13/03/2023

As joias árabes ofuscaram o vidro sujo das garrafas gaúchas. A última presepada do finado governo merece, sem dúvida, a escarafunchada. Mas o espetáculo nababesco da corrupção empanou a miséria do mundo do trabalho, com colares e relógios roubando a atenção do vinho avinagrado. Vinho lá do Sul, que, como as salsichas, ninguém perguntava como é feito.

Nos barris de carvalho, envelheceram bem ingredientes centenários, os do escravismo. A escravidão acabou na lei, mas se prolongou nas relações de trabalho. Isto souberam imigrantes que atravessaram o Atlântico enlatados na terceira classe de navios fétidos. Na chegada eram “contratados” para as lavouras. Aspas porque as condições de trabalho pouco distavam das escravistas, dadas as longas jornadas e a alimentação precária. A diferença seria o salário.

Seria, porque em muitos casos se estabeleceu, desde o fim legal do trabalho compulsório, a prática flagrada agora entre os gaúchos. Funcionava singelamente: o contratante monopolizava o comércio de víveres e o que ali se ganhava ali mesmo ficava. A venda de João Romão, em “O Cortiço”, detalhou em 1890, o processo que as notícias da semana passada recontaram.

A modalidade contemporânea não é exclusividade gaúcha. O estado está lá para o fim da fila no levantamento da Comissão Pastoral da Terra, com 327 ocorrências entre 2003 e 2020. Os paraenses é que são os campeões nacionais, com cerca de um quinto (10.427) do total de 49.076 pessoas libertadas de servidão involuntária no período. Mas o resto do país não se faz de rogado: em Minas, Goiás e Mato Grosso se encontraram em torno dos 4.000 trabalhadores em situação análoga à escravidão, Tocantins e Bahia ficaram na casa dos 3.000, e Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio e Maranhão, na dos 2.000. Mácula sobretudo no campo (incluído o garimpo), mas 32,7% às vistas, em áreas urbanas.

Isso é o que a fiscalização alcança. Debelar trabalho forçado depende de ação estatal, como de legislação que o impeça. A CLT evitou cenas como a sulista de permanecerem como a regra, ao regular horas, idade e remuneração mínima, além de férias, assistência na doença e na velhice.
Esse regime de proteção social garantiu a dignidade de milhões de brasileiros.

O desmonte recente deste sistema em nome da modernização econômica açulou o escravismo a tirar as manguinhas de fora. Ante reclamações patronais com os gastos com a mão de obra, embutidas no eufemismo “custo Brasil”, desmontou-se muito da política trabalhista. Andou junto a terceirização de partes da produção e dos serviços. Empresas top, globalizadas e modernas, emagreceram em empregados. A parte menos nobre do pacote foi expelida delas, via delegação de tarefas a “empreendedores” autônomos, como os motoboys, desassistidos de direitos. São as que, como a Salton, a Aurora e a Garibaldi, têm face pública limpinha, sem se interessar em saber se a matéria-prima de suas fornecedores é suja de lágrimas e sangue.

A extinção efetiva do trabalho escravo depende de leis e vigilância, como de uma política de empresários e acionistas. Cabe também a este nicho, no qual se fala tanto em liberalismo, zelar pela liberdade dos trabalhadores que produzem seus insumos. As vinícolas gaúchas se desculparam, alegando desconhecimento da cozinha alheia. Mas apenas desconhece quem não quer olhar. E se a vista se desviar, capaz da parceira, que se chama Fênix, renascer das cinzas.

A Selic já pode cair, por André Roncaglia.

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Faria Lima já aceitou a queda antecipada dos juros; o jogo virou

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 10/03/2023.

A taxa Selic iniciou sua ascensão no início de 2021, saindo de 2% e chegando aos atuais 13,75%. A variação de 11,75 pontos percentuais e a manutenção da taxa nesse patamar deveriam resfriar a atividade preventivamente, impedindo que a reabertura da economia descambasse numa espiral inflacionária. Não funcionou a contento. O teto da meta foi violado em 2021 e 2022, e o discurso do Copom previa manter a taxa nesse patamar até o fim de 2023.

Lula questionou a viabilidade de uma meta de inflação menor para 2023 e 2024, a qual reforça a postura extremamente restritiva da política monetária. A Selic muito alta asfixia as empresas, inibindo a geração de empregos. Foi acusado de ser populista.

Até há pouco tempo, o maior risco à estabilidade, na visão farialimer de mundo, era exclusivamente fiscal. Isso permitia entrincheirar a postura de cobrar do governo indicações de responsabilidade fiscal. A reoneração dos tributos sobre os combustíveis deu algum alívio, e a pressão já se deslocava para a definição do novo marco fiscal.

Foi aí que um novo risco tomou conta da cena. Gestores de ativos e consultorias começaram a expressar preocupação com a meta irrealista de inflação em 2023 e 2024 e com o nível da taxa de juros definida pelo BC (Banco Central). O motivo da mudança: a possibilidade de ocorrência de um credit crunch (dito em inglês, para não reconhecer que Lula tinha razão).

A restrição de crédito já aparece no mercado de dívida privada, segundo dados da Anbima. A fraude contábil no caso Americanas dissemina desconfiança no mercado de crédito, encarecendo ainda mais o financiamento empresarial.

A realidade que antes ameaçava apenas os trabalhadores bateu às portas das empresas. Em recente artigo publicado pelo BIS, Claudio Borio e coautores sugerem que a elevação da taxa de juros em contexto de elevado endividamento pode gerar “dominância financeira”. O encarecimento agudo do crédito agrava a fragilidade financeira da economia. As empresas precisam gastar cada vez mais recursos para honrar suas despesas financeiras.

Nessa situação, o estopim que converte a fragilidade em crise pode ser um choque adverso —por exemplo, uma desvalorização abrupta da taxa de câmbio causada por eventos externos.

Como uma crise financeira assusta muito mais do que inflação acima da meta, o BC se vê obrigado a reduzir a taxa de juros e acionar outros instrumentos para conter pressões inflacionárias. Traduzindo: a Selic vai ter de cair na marra. Vejamos.

A política monetária é um jogo estratégico de expectativas e de poder. Os dados indicam que as expectativas da Faria Lima afetam a reação do BC e vice-versa. Além disso, a Selic tem forte correlação com o custo médio da emissão de dívida pública pelo Tesouro Nacional.

A partir do fim de 2020, quando a Selic estava em 2% ao ano, o mercado elevou o custo da dívida pública no mercado aberto, indicando que o BC estava “atrás da curva”. Para resgatar sua credibilidade perante o mercado, o Copom correu atrás, subiu a Selic e a manteve lá até convencer o mercado de sua aversão à inflação. O mercado chamou o BC para o seu “devido lugar”.

Agora o BC deve retribuir o favor. O custo da preservação de sua credibilidade nos levou endogenamente às portas dessa dominância financeira. A Faria Lima já aceitou a queda antecipada da Selic e aceita qualquer narrativa crível de sustentabilidade fiscal.

O governo tem na mão a capacidade de arbitrar o tamanho da queda da taxa de juros, ganhando espaço fiscal sem gerar temores nos desconfiados, pelo menos até a discussão do Orçamento de 2024, em agosto.

O jogo virou. É hora de aproveitar a oportunidade.

Livro destrincha a história econômica do século 20, por Schwartzman

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Segundo o autor, os bons tempos não vão voltar

Hélio Schwartzman, jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 12/03/2023.

Numa coisa Karl Marx e John Maynard Keynes concordavam. Ambos viam o progresso tecnológico como uma solução do problema econômico da humanidade. Um dia as máquinas produziriam sozinhas tudo o que as pessoas precisam, o que nos libertaria para viver a utopia, a verdadeira emancipação do homem. “Slouching Towards Utopia” (“Arrastando-se rumo a Utopia” em tradução não oficial), de Brad DeLong conta essa e várias outras histórias.

Na verdade, “Slouching…” pode ser descrito como uma história econômica do século 20 ampliado. Começa em 1870, com a segunda Revolução Industrial, e vai até 2010, após a crise dos subprimes. DeLong começou a escrever a obra nos anos 1990, mas o livro só foi publicado em 2022, entre outras razões porque o autor não conseguia terminar. As coisas não
paravam de acontecer.

A tese central de DeLong é que o progresso tecnológico pós-1870 permitiu que a humanidade escapasse à armadilha malthusiana que a assombrou até então. Os ganhos de produtividade foram tamanhos que possibilitaram o enriquecimento das sociedades e não só o aumento das populações, como era a regra. E, de fato, um indivíduo de classe média de país desenvolvido tem hoje acesso a mais riqueza que os milionários do século 19. Mesmo a pobreza extrema do Terceiro Mundo foi substancialmente reduzida. Mas nem o mais rematado otimista diria que chegamos à utopia.

Para DeLong, foi só em duas janelas, entre 1870 e 1914 e nos 30 anos após a Segunda Guerra, nos quais as sociais-democracias prosperaram, que os países do Norte Global experimentaram um gostinho de milagre. O avanço técnico se somou a outras particularidades históricas, como a globalização, para produzir ciclos de grande otimismo. Nos demais períodos tivemos eventos como duas guerras mundiais e duas grandes recessões que falam por si.

Mazzucato: no Comum, uma nova Economia

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Não se trata de “corrigir as falhas” do mercado, sustenta a economista – mas de superar sua lógicas de captura da riqueza coletiva e concentração de poder. As sementes da mudança já existem. Falta articulá-las em teoria e ação política

Mariana Mazzucato – OUTRAS PALAVRAS – 02/03/2023

Após a reunião de governantes, líderes empresariais e sociedade civil no Fórum Econômico Mundial deste ano em Davos, espalhou-se a observação de que vivemos numa era de “policrise”. A ocorrência simultânea de vários eventos catastróficos define o atual ambiente sócio-económico e geopolítico.

Face a desafios tão imensos como o aquecimento global, a crise dos cuidados de saúde, o crescente abismo digital e uma economia financeirizada que amplia as desigualdade de renda e riqueza, não é surpreendente que a desilusão com a política se amplie, criando condições ideais para populistas que prometem soluções fáceis. Mas as soluções reais são complexas e exigirão investimento, regulamentação e inovações sociais, organizacionais e tecnológicas, não só dos governos e empresas, mas também de indivíduos e organizações de toda a sociedade civil.

Os governos, convencidos de que as políticas públicas só podem ter como objetivo corrigir as falhas do mercado, muitas vezes dão respostas insuficientes e tardias. Mesmo bens públicos como o financiamento da investigação e desenvolvimento a nível básico são vistos como formas de corrigir um problema de externalidades positivas, tal como os impostos sobre o carbono corrigem um problema de externalidades negativas. Mas conseguir uma mudança transformadora que produza um crescimento inclusivo e sustentável depende menos da correção dos mercados do que da sua formação e criação. Isto exige complementar a ideia de bens públicos com a do “bem comum”, o que não é apenas uma questão de “o quê” mas também de “como”.

O bem comum é um objetivo a ser alcançado em conjunto através da inteligência coletiva e da partilha de benefícios. Transcende a ideia (na qual se baseia) dos recursos comunitários. Enfatiza a forma de conceber investimentos, inovações e mecanismos de colaboração na prossecução de um objectivo comum. Os bens comuns são o produto de interações e investimentos coletivos que exigem modelos de propriedade partilhada e de governação. Os benefícios resultantes destas atividades devem, portanto, ser partilhados colectivamente. A ideia dos bens comuns também aborda a necessidade de uma governação internacional eficaz, sublinhada na noção de bens públicos globais desenvolvida pela minha colega, a falecida Inge Kaul, que ajudou a inspirar o trabalho da Comissão Mundial sobre a Economia da Água.

Na sua encíclica “Laudato si: Sobre Cuidados com o Lar Comum”, de maio de 2015, o Papa Francisco defende eloquentemente uma forma de pensar baseada no bem comum para um mundo em constante mudança. Não é um idealismo abstrato. A ideia do bem comum fornece um quadro útil para estabelecer objetivos partilhados e determinar como alcançá-los. Francisco fala da necessidade de subsidiariedade (o princípio da resolução de questões particulares ao nível mais local possível) e de ver o mundo através dos olhos das pessoas mais vulneráveis.

Segundo Francisco, a prioridade em todas as mudanças sociais, econômicas e políticas deve ser a proteção das condições essenciais de que depende a vida humana. A tomada de decisões para o bem comum envolve a defesa da dignidade daqueles que são marginalizados em termos sociais, políticos e econômicos, não apenas com palavras, mas com políticas e novas formas de colaboração. Envolve a criação de uma rede de solidariedade através da qual vozes inauditas podem participar em processos decisórios cruciais.

Para atingir estes objetivos, é necessário um novo modelo de crescimento, no qual os atualmente excluídos devem participar, e não um que seja simplesmente implementado em seu nome. Um exemplo são as organizações cooperativas, que têm se mostrado eficazes em reunir pessoas com meios limitados e em dar-lhes oportunidades de ação autônoma que de outra forma não teriam.

Francisco também compreende que em tempos em que alguns setores econômicos têm mais poder do que os governos em certas áreas, é dever do Estado defender o bem comum em nome de todos. Para inverter a tendência e enfrentar os grandes desafios que se avizinham, é necessária uma mudança fundamental na política econômica. Hoje em dia, o princípio do bem comum é visto como uma correção dos excessos do sistema atual. Mas ele deve ser, em vez disso, o objetivo central do sistema.

O dinheiro não é tudo: também é importante encorajar certas formas de colaboração. No caso da covid 19, o mundo fez um investimento coletivo muito bem sucedido na investigação de vacinas Mas não conseguiu assegurar que o resultado final se traduzisse num “bem comum”: o de imunizar toda a população mundial.

Temos frequentemente uma ideia preguiçosa de “parcerias” entre várias partes. A mera parceria entre as partes não significa que estejam trabalhando em conjunto para o bem comum; para isso é também preciso estabelecer objetivos e harmonizar riscos e benefícios em conjunto. Todos os participantes devem concordar sobre o “o quê”, bem como sobre o “como”. Por exemplo, não se trata apenas de desenvolver vacinas, mas também de torná-las acessíveis a todos.

Com uma abordagem baseada no bem comum, cada passo do processo é quase tão importante como o resultado final. Nos Estados Unidos, o governo gasta centenas de bilhões de dólares por ano em investimento público em Pesquisa e Desenvolvimento no domínio da saúde (em 2022, só os Institutos Nacionais de Saúde forneceram 45 bilhões de dólares), mas depois deixa todos os lucros em mãos privadas. Ao se materializar, a “recompensa” por um esforço coletivo (muitas vezes sob a forma de lucros empresariais, ou como conhecimento valioso), deve ser partilhados tanto quanto foram os riscos.

Como mostro em meu livro Missão Economia, há muitas maneiras de fazê-lo. Uma é condicionar o apoio público a certos requisitos de propriedade intelectual ou de preços; ou exigir a partilha de lucros, por exemplo através de um modelo de participação acionária. Outra forma de encorajar uma distribuição mais equitativa do valor entre todos os membros da sociedade é através de estruturas coletivas de propriedade. Todos estes mecanismos limitam a concentração indevida do poder nas mãos de alguns indivíduos e empresas privilegiadas.

E estes problemas não são exclusivos da saúde. A economia digital tem crescido há anos às custas de um investimento público em grande escala. Como algumas empresas poderosas controlam a maior parte dos dados, tecnologias-chave como a inteligência artificial reproduzem os preconceitos e desigualdades pré-existentes. Para enfrentar esta tendência, precisamos conceber um quadro mais inclusivo e transparente que, por exemplo, imponha certos critérios éticos sobre os termos e condições dos serviços digitais.

Finalmente, é preciso estimular uma maior valorização do poder da inteligência coletiva. Tal como os indicadores ambientais, sociais e de governação empresarial ajudam as empresas a fornecer informação sobre o seu comportamento organizacional e cultura, uma abordagem de bem comum requer um melhor fornecimento de informação sobre as dinâmicas inter-organizacionais e público-privadas, expressando todo o ecossistema de colaboração (ou parasitismo, como também pode acontecer)

A base do bem comum é uma ideia de colaboração intensa, inteligência coletiva, criação conjunta de fins e meios, e uma partilha adequada dos riscos e benefícios. A inovação orientada pela missão e as políticas industriais mostram como estes princípios podem ser postos em prática.

Governos ou organizações internacionais podem estabelecer um objetivo claro (muitas vezes através de um processo de consulta com outros interessados) e depois criar as condições para uma colaboração intensa entre os setores público e privado para alcançar esse objetivo. E neste processo, a tentativa e o erro são um elemento crucial. A direção deve ser clara, mas também deve haver amplo espaço para a experimentação descentralizada.

O bem comum é um objectivo comum. Ao concentrar-se tanto na forma como no quê, promove a solidariedade humana, a partilha de conhecimentos e a distribuição coletiva de benefícios. É a melhor (e de fato a única) forma de assegurar uma qualidade de vida decente para todas as pessoas num planeta interligado.

Guerra sem fim

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Uma das grandes características da sociedade contemporânea é a instabilidade, vivemos num momento de grandes incertezas, as mudanças econômicas acontecem todos os instantes, alterando o cotidiano de todos os indivíduos, o mundo do trabalho vive uma verdadeira hecatombe, os modelos de negócios se movimentam cotidianamente, as famílias percebem rápidas transformações e os relacionamentos vivem momentos de fortes volatilidades, neste cenário, percebemos que os indivíduos, em todas as nações, sentem na pele todas as alterações em curso, cultivando medos, ressentimentos e grandes confrontos internos. Vivemos momentos de transformações estruturais em todos os eixos dos seres humanos, com questionamentos crescentes, novas oportunidades, novas guerras e novas formas de destruição, onde os conflitos militares voltam a criar possibilidades de destruições mundiais, com possibilidades concretas e confrontos nucleares, onde a razão perde espaço para o radicalismo, a arrogância e a desesperança.

A semana passada a sociedade internacional percebeu que a guerra entre a Rússia e Ucrânia completou um ano, neste período vislumbramos destruições materiais são incontáveis, números elevados de mortos, destruições crescentes, estruturas produtivas devastadas, cidades bombardeadas, famílias desagregadas, crianças e jovens órfãos, futuros apagados e fortes probabilidades de expansão de conflitos para outras regiões, tornando um conflito global, aumentando a destruição e aumentando a desolação daqueles que sonham que a paz predomine nesta região do mundo, uma região marcada por fortes incertezas, conflitos duradouros e devastações crescentes. Depois de uma pandemia que dizimou mais de 7 milhões de pessoas na sociedade internacional, a guerra em curso da humanidade é uma verdadeira mostra de que somos mais irracionais do que imaginamos.

O modelo econômico reinante na economia contemporânea está gerando forte degradação do meio ambiente, as alterações abruptas e intempestivas do clima, estão gerando devastações crescentes nas cidades, gerando passivos materiais e imateriais elevados para a comunidade, demandando políticas públicas rápidas, consistentes e eficientes, além de uma forte profissionalização dos agentes públicos, deixando de lado os modelos de contratação através do compadrio que sempre caracterizou os setores públicos, denotando, claramente, o nosso atraso institucional.

Percebemos o incremento da desigualdade social das sociedades contemporâneas, anteriormente a pobreza e a indigência eram características dos países em desenvolvimento, atualmente a pobreza também é percebida no interior de nações ricas e sociedades afluentes, gerando novas formas de exclusão social e confrontos políticos, aumentando a polarização, limitando a capacidade de crescimento econômico, abrindo possibilidades de desenvolvimento produtivo e incremento do bem-estar social.

Neste cenário, a guerra em curso na Europa deve degradar a sociedade por muito tempo, primeiro devastando as nações em conflito, gerando o incremento da inflação de produtos imprescindíveis da comunidade internacional, como energia e alimentos, levando as Autoridades Monetárias a elevarem as taxas de juros internas, reduzindo os investimentos produtivos, diminuindo a geração de empregos, contraindo as rendas e fragilizando o poder de compras dos trabalhadores e, posteriormente, inviabilizando a recuperação econômica das nações e aumentando os confrontos políticos e afastando das convergências necessárias para retomarmos os momentos de melhorias das condições sociais da população.

A guerra em curso da sociedade global demostra que estamos rumando para momentos preocupantes e, infelizmente, irreversível de destruição da humanidade. Os recursos financeiros, além de equipamentos militares e tecnologias bélicas altamente sofisticadas, enviados para financiar o conflito internacional é muito maior do que os recursos utilizados para reduzir a fome e a exclusão social das nações subdesenvolvidas que crescem a olhos vistos. A verdadeira guerra da sociedade contemporânea deve ser outra e o inimigo deve ser a fome, a miséria e a indiferença.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração. Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/03/2023.

A insistente tragédia da fome que atinge o Brasil, por Priscilla Bacalhau

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Sem iniciativas coordenadas entre setores não haverá resultado de longo prazo

Priscilla Bacalhau, Economista, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV/EESP Clear, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na gestão de políticas públicas

Folha de São Paulo, 02/03/2023

Quando o sociólogo Betinho fundou a ONG Ação da Cidadania, em 1993, a fome no Brasil era uma tragédia. Mais de 32 milhões de pessoas estavam abaixo da linha da pobreza. Sua campanha mais famosa, Natal sem fome, arrecada toneladas de alimentos, aliviando a pressa de quem tem fome.

Foram muitas conquistas de lá pra cá. Mobilizações sociais foram além de campanhas de arrecadação: elas informaram a sociedade sobre o problema e, principalmente, influenciaram soluções estruturais.

A solução concreta para a fome vai muito além da distribuição de cestas básicas. Sem estratégia e iniciativas coordenadas e interssetoriais não haverá resultados de longo prazo. Apenas com políticas públicas que não fiquem à mercê de ciclos políticos e o envolvimento da sociedade civil e empresarial será garantida segurança alimentar e nutricional, com acesso adequado à alimentação, que respeite meio ambiente, cultura alimentar e sustentabilidade econômica.

Foi assim, com ações integradas, que o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, em 2014. Além de políticas de transferência de renda, outras tiveram papel relevante na garantia da segurança alimentar. O Programa de Aquisição de Alimentos, por exemplo, garante a compra da produção da agricultura familiar pelo Governo Federal. Associado ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, escolas públicas também receberam comida de verdade, provenientes da agricultura familiar, com qualidade nutricional e respeito às especificidades regionais.

Qual não seria a decepção de Betinho se estivesse vivo ao ver os recentes retrocessos que culminaram na volta do país ao Mapa da Fome? Retomamos a inaceitável marca de mais de 30 milhões passando fome, 15,5% da população, e o Brasil retrocedeu mais que a média mundial durante a pandemia.

Mais de metade da população do país vive com algum grau de insegurança alimentar, ou seja, sem acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes, vide a situação dos yanomamis. A maior parte está na área rural: quem produz os alimentos está passando fome.

As ações sociais de combate à fome nunca pararam, e a agenda de políticas precisa urgentemente voltar ao orçamento da União. Só nesta semana houve a restituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, para resgatar a participação social na formulação, acompanhamento e controle de políticas, e o anúncio do novo Bolsa Família, que contribui para colocar comida no prato, mas precisa ir além.

Com coordenação e participação popular, seus saberes e experiências acumuladas, é possível corrigir erros do passado e vencer a fome, definitivamente.

Racismo não vem de cor da pele, mas de projeto de desumanização, por Itamar Vieira Júnior

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Obras de Toni Morrison e James Baldwin refletem sobre a transformação dos ‘outros’ dos brancos em categoria subalterna

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 05/03/2023

Nos últimos dias, o discurso xenófobo e racista proferido pelo vereador de Caxias do Sul (RS) Sandro Fantinel recordou-me os ensaios de dois grandes autores negros do século 20: Toni Morrison e James Baldwin. São reflexões sobre o embrião do racismo, de onde parte e o que há por trás do preconceito baseado na diversidade de origem, cor e fenótipo, mesmo sabendo que a diferença é uma singularidade da espécie humana.

Em “Romantizando a escravidão”, Morrison conta que, quando criança, recebeu em casa a visita de sua bisavó, matriarca da família que gozava de prestígio por ser parteira de uma comunidade. Ao olhar para a futura escritora e a irmã que brincavam no chão de casa, Millicent MacTeer apontou a bengala para as duas e disse: “Essas crianças foram adulteradas”.

Elas não eram capazes de compreender o significado daquela expressão, mas a mãe de Morrison protestou veementemente, sem que o mal-estar fosse desfeito. Anos mais tarde, Morrison compreenderia o sentido daquelas palavras: a bisavó, uma mulher de pele negra e retinta, afirmava que as netas de pelo mais clara não eram “puras”.

Foi dessa maneira que Toni Morrison aprendeu ainda muito cedo que as diferenças podem se tornar fontes de uma inferioridade proveniente do fato de ser o outro. Na coletânea “A Origem dos Outros”, Morrison se vale da literatura para refletir o que torna a diferença singular de homens e mulheres em muros, que por vezes podem se tornar intransponíveis. No caso do racismo, o muro confina a cor da pele numa categoria que inferioriza e é sinônimo de subalternidade.

Morrison chama esse fenômeno, de fazer da diferença um fator de divisão, de “outremização” (do inglês “otherness”). Se o outro do branco seria o não branco, o outro do humano seria o não humano e, portanto, um ser inferior.
Humanos foram racializados não por serem compreendidos como diversos, mas para atender a projetos de poder que dependiam da “outremização”, ou seja, do subjugo, da exploração do trabalho, da violência que nos desumaniza. Morrison escreve que “a tendência de os humanos separar aqueles que não pertencem ao nosso clã e julgá-los como inimigos a serem controlados é longa e ocorre desde os primórdios da humanidade”.

Nesse sentido, raça nada mais é que uma convenção social, já que não há justificativa científica para revelar uma subcategoria de nossa espécie. Morrison avança escrevendo que o conceito de raça, criado pelos opressores, “tem sido um parâmetro de diferenciação constante, assim como a riqueza, a classe e o gênero, todos relacionados ao poder e à necessidade de controle”.

Um ensaio de James Baldwin que reflete sobre a origem do racismo é “Um estranho na aldeia”, disponível no livro “Notas de um Filho Nativo”.

Ali, Baldwin relata uma temporada num vilarejo da Suíça. Num lugar onde só havia pessoas brancas, nos idos dos anos 1960, ele contempla a surpresa dos habitantes ao conhecerem-no. A observação afiada de Baldwin revela um misto de ingenuidade dos locais —que lhe tocavam o cabelo e a pele, “espantando-se ao ver que a cor dela não saía”— e de racismo igualmente doloroso, ainda que fomentado por um contato de estranhamento prévio, não como a consciência racial dos Estados Unidos segregado, onde ele nasceu.

Se, neste local, Baldwin viveu a experiência primeva da “outremização”, o estranhamento, ele também destacou que ser reconhecido como estranho pode revelar um projeto de poder, em que o diferente nunca será familiar, ou seja, jamais será reconhecido pelo que se compartilha mutuamente. Ou ainda, perversamente, o familiar pode servir para legitimar a subalternidade do diferente.

Desconstruir a ideia do outro é impossível, mas podemos subverter o senso que impera e serve apenas à lógica da subalternização e da perpetuação do poder.

Para tanto, Morrison faz uma defesa enfática da arte, em especial da literatura, que é capaz de nos possibilitar uma subversão de valores onde a experiência humana pode transpor os muros das diferenças. Ela escreve: “A ficção narrativa proporciona uma selva controlada, uma oportunidade de ser e se tornar o Outro. O estrangeiro”. A literatura pode ser um poderoso instrumento que nos permite reconhecer o que há de humano em todos nós, independentemente de nossas origens e diversidade.

Sobre as relações raciais de uma sociedade diversa, Baldwin conclui que só é possível superar o racismo compreendendo a teia de ambiguidades e paradoxos que existe não somente nas relações entre brancos e negros, mas em todos nós. Reconhece que a pacificação não será fácil, porque o mundo racializado estabelecido é “poderoso demais, autocomplacente demais, excessivamente dado a perpetrar humilhações e, acima de tudo, ignorante e inocente demais para que isso seja possível”.

Consciente de que o ódio só consegue destruir a quem odeia, Baldwin recusava a aceitação de qualquer injustiça indicando o caminho do combate: “Essa luta começa, porém, no coração, e agora era responsabilidade minha manter meu coração livre do ódio e do desespero”.

Castells: o que (não) penso sobre o ChatGPT

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Manuel Castells – OUTRAS PALAVRAS – 01/03/2023

É uma ferramenta impressionante, com potencial para revolucionar muitos setores. Também representa enormes riscos. É importante que as aplicações da IA, além de éticas e responsáveis, sejam utilizadas para a justiça social

O ChatGPT3 é a mais recente versão da plataforma de linguagem natural desenvolvida pela OpenAI, e representa um marco no avanço da inteligência artificial (IA), quanto a processamento e geração de linguagem natural.

Em termos simples, o ChatGPT3 é capaz de processar e gerar respostas de linguagem natural numa ampla gama de idiomas e dialetos, incluindo o espanhol [e o português], e adaptar-se ao tom e estilo das consultas que recebe. Além disso sua impressionante capacidade para processar grandes quantidades de dados o converte em uma ferramenta valiosíssima para aqueles que buscam extrair conhecimento de grandes conjuntos de dados.

Ainda que a capacidade do ChatGTP3 para processar linguagem natural seja impressionante, ele também apresenta alguns desafios e preocupações importantes. Em primeiro lugar, sua capacidade para gerar respostas de linguagem natural convincentes converte-o numa ferramenta potencialmente perigosa para a geração de notícias falsas e a difusão de informação enganosa nas redes sociais.

Em segundo lugar, como uma ferramente que pode automatizar muitas tarefas, também apresenta o risco de substituir trabalhadores humanos em muitas indústrias e setores, o que poderia ter consequências sociais e econômicas negativas.

Apesar destes riscos, há muito que celebrar no desenvolvimento do ChatGPT3. Em particular, sua capacidade para processar grandes quantidades de dados e gerar respostas precisas e relevantes tem o potencial de ser uma ferramenta muito útil para os profissionais da investigação e análise de dados. Também pode ser uma ferramenta muito valiosa para as empresas, especialmente na atenção ao cliente, já que o ChatGPT3 pode oferecer respostas automatizadas às consultas dos clientes, melhorando a eficiẽncia dos processos de atendimento.

Quanto ao impacto que o ChatGPT3 poderia ter no mercado de trabalho, é importante levar em conta que, ainda que a automatização e a inteligência artificial possem deslocar os trabalhadores de algumas tarefas, também podem criar novas oportunidades de emprego em outros campos. Portanto, é importante que os líderes empresariais e políticos trabalhem juntos para garantir que os benefícios da inteligência artificial sejam distribuídos de maneira justa, e que os trabalhadores tenham as habilidades e formação necessárias para se adaptar a um mercado de trabalho em constante mudança.

Em resumo, o ChatGPT3 é uma ferramente impressionante que tem potencial para revolucionar muitas indústrias e setores. No entanto, também representa riscos que devem ser considerados e manejados cuidadosamente. É importante que trabalhemos juntos para assegurar que as aplicações da inteligência artificial sejam éticas e responsáveis, e que sejam utilizadas para o bem-estar humano, o avanço da justiça social e a inovação responsável.

[Este texto foi gerado até aquí pelo ChatGPT3, a partir de minha demanda: “Escreva uma nota de opinião sobre o ChatGPT3 como se fosse Manuel Castells”. Agora tudo é possível]

Medos contemporâneos

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Vivemos numa sociedade centrada em grandes instabilidades e incertezas crescentes, que geram medos, preocupações e sensações ambíguas. De um lado, percebemos o incremento das tecnologias, transformando os seres humanos, gerando novas oportunidades, novos desafios, novas inovações e novos modelos de negócios que revolucionam a humanidade e, de outro lado, percebemos o aumento da volatilidade desta sociedade que crescem no nosso entorno, gerando receios sobre nossas atividades profissionais, a chamada descartabilidade, alterando fortemente os relacionamentos humanos do cotidiano e medos crescentes do incremento tecnológico, gerando contradições que habitam os seres humanos na contemporaneidade.

A sociedade contemporânea está centrada nos interesses materiais e financeiros, somos todos cobrados cotidianamente, somos vistos apenas como um número, buscando bater as metas dos setores produtivos, viabilizando seus bônus monetários e angariando ganhos imediatos, deixando valores filosóficos mais consistentes e nos entregando nesta sociedade de consumo, que nos levam a prazeres materiais e, ao mesmo tempo, gerando repulsas, receios e preocupações crescentes.

A sociedade está estimulando valores centrados no individualismo, no imediatismo e na busca crescente nos ganhos rápidos e imediatos, estimulando as aplicações financeiras, as fraudes contábeis estão crescendo, levando a destruição de empregos, a constante impunidade, a desesperança reina em quase todos os grupos sociais, gerando uma verdadeira guerra de todos contra todos, destruindo os valores da solidariedade e do respeito aos seres humanos.

Anteriormente os discursos estavam centrados no esforço individual, no estímulo do estudo contínua e na capacitação crescente, levando os seres humanos a um verdadeiro sucesso social, com emprego decente, salários dignos e perspectivas de melhorias social e econômica. Na contemporaneidade, esse discurso perdeu a centralidade, muitos embarcaram neste discurso de capacitação crescente, fizeram cursos de qualificação, investiram suas economias em cursos de mestrado e partiram para o doutorado e, se transformaram em profissionais altamente qualificado, sonhando com salários decentes e melhores condições de trabalho e, caíram na real, vivemos num mercado degradado e com pagamentos irrisórios, exploração crescente, cargas de trabalho elevadas e aposentaria indigna. Com isso, percebemos que caminhamos fortemente para uma degradação crescente, onde a educação é colocada em último nas prioridades nacionais.

Os medos contemporâneos estão estimulando comportamentos agressivos e violentos, levando os indivíduos a buscarem uma defesa antecipada, como se as pessoas estivessem se antecipando a possíveis movimentos posteriores. Dessa situação de confrontos constantes, as pessoas não dialogam mais, as famílias se afastam cotidianamente, não conversam sobre as dificuldades e os medos, terceirizam a educação de seus filhos e buscam as responsabilidades nos outros, em terceiros, se isentando de suas responsabilidades. O resultado desta equação é o mundo que vivemos na contemporaneidade, com medos, rancores e ressentimentos crescentes, eivados de grandes desastres materiais e imateriais.

No mundo do trabalho, percebemos o medo da descartabilidade cotidiana, os indivíduos perceberam a velocidade das transformações geradas pela tecnologia, novas máquinas e equipamentos estão levando as pessoas a perderem os empregos e, perdendo a esperança de dias melhores, levando ao culto dos conflitos e das agressões constantes. Neste movimento, a classe média percebe que sua posição na sociedade está sendo alterada e ameaçada, levando-a a perder espaço no mercado de consumo, sua renda está em queda constante, seus salários e seus benefícios estão se escasseando, as perspectivas futuras para seus filhos são assustadoras, levando-os a abraçar as soluções mirabolantes, mágicas e inconsistentes e se assustando com a violência dos medos contemporâneos.

Os medos da contemporaneidade crescem cotidianamente, precisamos rever comportamentos, repensar os valores que cultivamos, reconstruir modelos econômicos e entender que caminhamos rapidamente para uma degradação constante e duradoura.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/03/2023.

Educação cidadã é primordial para enfrentar racismo, diz Kabengele Munanga

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Educação cidadã é primordial para enfrentar racismo, diz Kabengele Munanga

Para antropólogo, combate ao problema se dá por três caminhos: leis, ensino com viés antirracista e ações afirmativas

Priscila Camazano – Folha de SÃO PAULO, 26/02/2023

O combate ao racismo estrutura depende de uma educação cidadã antirracista, sugere o antropólogo congolês-brasileiro Kabengele Munanga. Ele a firma que não há uma receita pronta para lutar contra o preconceito racial, mas há três caminhos possíveis: as leis, a educação antirracista e as ações afirmativas.

“As leis, embora existam, só atingem práticas racistas observáveis. Os preconceitos que são introjetados pela educação e estão na cabeça das pessoas, não. Só a educação pode atingir esse terreno”, afirma.

Munanga é antropólogo e professor aposentado da USP. Ele nasceu em Bakwa Kalonji, no antigo Zaire, atualmente República Democrática do Congo, em 1940. Está no Brasil desde 1975.

Ao longo desses anos, ele se debruçou nos estudos sobre antropologia da África e da população afro-brasileira e nas questões raciais. O intelectual contribuiu de forma significativa na discussão sobre raça e para derrubar o mito da democracia racial.

Foi no país do continente africano que ele iniciou seus estudos na antropologia, ao cursar a graduação na Universidade Oficial do Congo (1964-1969). Depois, ganhou uma bolsa de estudos para fazer o doutorado na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

Em 1971, o antropólogo retornou ao país de origem para fazer um trabalho de campo, mas foi impedido pela ditadura de Mobutu Sese Seko (1930-1997).

A convite do então diretor do Centro de Estudos Africanos da USP, ele veio ao Brasil, em 1975, e conseguiu, assim, concluir sua pesquisa.

O antropólogo ingressou como docente na USP em 1980, tornando-se o primeiro professor negro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Na universidade, lecionou até 2012, quando se aposentou, após 32 anos na instituição.

O livro “Negritudes: Diálogos com o Pensamento de Kabengele Munanga” (Editora Autêntica), lançado em novembro, reúne textos em homenagem ao legado intelectual do professor.

A publicação aborda a sua longa trajetória no engajamento sociopolítico em defesa dos direitos humanos, por sua produção crítica de combate ao racismo e promoção da equidade étnico-racial.

Em conversa com a Folha, o professor falou sobre mito da democracia racial, racismo estrutural, ações afirmativas e a lei 10.639, que estabelece o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica.

Por que o senhor define que no Brasil o racismo é um crime perfeito? É um crime perfeito porque o mito da democracia racial, por muito tempo, impediu que se falasse da existência do racismo no país.

Na época em que eu cheguei aqui, dizer que o Brasil era um país racista era como um crime. Eu não tive problema para fazer minhas pesquisas, porque meu tema era a África e nada tinha a ver com a questão do negro no país.

Mas tive um colega que veio da Índia para São Paulo com um projeto de estudo sobre a classe média negra em São Paulo. Um dia, ele declarou em uma entrevista que seu projeto era estudar aqui o racismo e a questão do negro no Brasil. Ele foi convocado pelo Dops [Departamento de Ordem Política e Social], passou duas noites lá e, no dia seguinte, não quis mais tocar no assunto. O tema do trabalho dele mudou para a existência das castas na Índia.

Isso é para mostrar o quanto era difícil [falar sobre racismo]. Nesse sentido, eu e outros colegas, como Hélio Santos, achamos que o racismo é um crime perfeito. É como um carrasco, e o carrasco mata sempre duas vezes. Mata fisicamente os negros e mata a consciência de todos os brasileiros.

Mas essa frase não é minha, vem de um prêmio Nobel judeu, Elie Wiesel. Foi ele que disse: o carrasco sempre mata duas vezes, a segunda é pelo silêncio.

Falando em silêncio, como lidar com essa faceta do racismo? Olha, esse silêncio é o mito da democracia racial e, como diz a própria palavra, é um mito. Os políticos e ideólogos usaram essa ideia justamente para escamotear os problemas da sociedade. Para dizer que o Brasil não é racista, porque é uma sociedade mestiça.

Essa ideia foi desmistificada a partir da década de 1930 pela Frente Negra Brasileira. Eles acreditavam que o problema era simplesmente de educação, mas, aos poucos, os negros que tiveram acesso a ela encontraram barreiras no mercado de trabalho. Eles chegaram à conclusão de que isso aqui não era democracia.

Depois, com as pesquisas da academia e as denúncias e protestos do movimento negro, a sociedade brasileira começou a se conscientizar.

Os negros se deram conta de que a educação era muito importante, mas depois chegaram à conclusão de que não bastava, precisava também de uma educação cidadã, que conscientizasse os brasileiros de que o Brasil é um país do pluralismo cultural, do encontro das culturas e civilizações.

O sr. afirma que “o mito da democracia racial, apesar de já ter sido destruído política e cientificamente, tem uma forma inercial difícil de desmantelar”. Que forma é essa? Sabe o que é inércia? A inércia é um movimento que ainda deixa traços. Ainda há pessoas, apesar do crescimento da consciência, que acreditam em ideologias antigas, como a de que não há racismo no Brasil.

O mito foi desconstruído pelo movimento negro, pelos intelectuais, mas a força desse mito ainda existe na estrutura da sociedade e no inconsciente coletivo. Isso que chamo de inércia.

O que podemos fazer para combater essa forma inercial do racismo? Hoje, no Brasil, se fala em racismo estrutural depois do livro do Silvio Almeida e do Dennis de Oliveira, que escreveram obras com esse título. Ninguém utiliza a palavra racismo sem adjetivá-la.

O racismo tem uma forma difícil de destruir, aquela alojada na estrutura da sociedade que se manifesta nas instituições.

Esse racismo é o maior problema. Nós não temos ferramentas, receita pronta, para lutar contra ele.

Se tivéssemos, não existiria mais racismo no mundo.

Como modificar a estrutura de uma sociedade capitalista? Não é pelo discurso. Ou se faz uma revolução e constrói outro modelo de sociedade, mas isso é uma utopia —com a qual estamos sonhando.

Ou nós temos três caminhos, que eu chamo de clássicos. O primeiro é pela lei. A primeira foi a Lei Afonso Arinos, de 1951. Depois, em 1988, na nova Constituição, aparece uma nova que diz que qualquer prática de racismo é crime imprescritível, inafiançável e sujeita a reclusão. Agora tem uma nova lei que o presidente Lula acabou de assinar. Ela considera a injúria como um crime sujeito a reclusão.

Mas as leis, embora existam, só atingem práticas racistas observáveis. Os preconceitos que são introjetados pela educação e estão na cabeça das pessoas elas não atingem. Só a educação pode transformar esses nuances que o racismo criou. Nesse sentido, a educação é um instrumento de luta contra o preconceito.

O terceiro caminho são as políticas de ações afirmativas, de inclusão, porque não basta dizer que perante a lei somos iguais, as pessoas vão continuar a discriminar.

Por que o racismo é sempre do outro? Qual a dificuldade em assumir as próprias manifestações racistas? Essa dificuldade tem a ver com a maneira como o racismo entrou no tecido social através da educação. As pessoas hoje têm dificuldade para dizerem que somos iguais.

Já ouviu falar da branquitude? Esse conceito nasceu da tese da Cida Bento. Ela foi a primeira pessoa a trabalhar com a consciência de branquitude, para mostrar que os brancos têm consciência das suas vantagens, mas não as criticam. Quer dizer que eles aceitam que são superiores para ter essas vantagens, mas ninguém reclama. Isso é racismo. Quando chega ao nível de naturalização não se vê mais injustiça.

A lei 10.639, que estabelece o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, completou 20 anos. Educadores e especialista ouvidos pela Folha afirmaram que professores e material didático sobre o assunto. Qual a avaliação do sr. sobre a lei? Por que as escolas estão com dificuldade de implementá-la? Olha, quando essa lei foi promulgada, fui uma das primeiras pessoas a falar dessa questão. Eu estava tentando mostrar que os educadores, os brancos e os negros, receberam uma educação racista. Muitos não sabem nem o que é realmente o racismo.

Como é que um educador que não sabe como o racismo à brasileira se expressa vai trabalhar com isso na sala de aula? A primeira coisa que fiz depois da lei 10.639 foram conferências de conscientização e sensibilização dos educadores em alguns municípios, para eles entenderem a importância da lei e que tinham uma grande responsabilidade.

Além dessas conferências, precisamos formá-los, porque eles não sabem como lidar com esse fenômeno. Tem também que produzir livros, materiais didáticos, porque os anteriores são repletos de preconceitos contra negros e povos indígenas.

Além do mais, em cada município teria que ter um monitoramento para saber se a lei está funcionando. Será que esse monitoramento existe? Eu tenho impressão de que a lei veio de uma maneira caótica.

Estava prevista para o ano passado a revisão da lei de cotas, mas foi adiada. Como avalia a situação das cotas? Há chances de perdermos essa política pública? As cotas são para reduzir um abismo de 400 anos [de escravidão]. Não se reduz um abismo de 400 anos em 20 ou 10 anos. Apesar da qualidade da política, isso vai demorar gerações. Não sei por que definiram 10 anos. Olha o exemplo da Índia. As cotas estão lá há 72 anos, porque eles sabem que é um longo processo.

As políticas de cotas têm de continuar, senão vai ser uma perda muito grande, um regresso para os negros. Quem vai perder vai ser a sociedade brasileira.

RAIO-X | KABENGELE MUNANGA, 82

Doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo. É professor emérito do departamento de antropologia da FFLCH-USP. É autor de mais de 150 publicações entre livros, capítulos de livros e artigos científicos na área da antropologia da África e da população negra no Brasil, entre os quais “Os Basanga de Shaba” (1986); “Negritude: Usos e Sentidos” (1988); “A Revolta dos Colonizados” (1995); “Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial” (1996). É professor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. É também pesquisador emérito do CNPq, entre outras dezenas de prêmios e títulos