Informar mais pobres de maneira incompreensível freia o desenvolvimento, diz Nobel de Economia

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Michael Kremer, professor de Harvard, diz que crise do coronavírus pode servir como empurrão para uso mais intenso de tecnologias simples

Érica Fraga – Folha de São Paulo – 13/06/2020.

A informação transmitida de forma incompreensível para os mais pobres pode ser uma barreira maior ao desenvolvimento econômico do que a falta de tecnologia ou de interesse dos governantes.

Essas são algumas conclusões que o economista norte-americano Michael Kremer, professor da Universidade Harvard, tira de seu trabalho dedicado à avaliação de políticas públicas, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia ao lado de Esther Duflo e Abhijit Banerjee, em 2019.

Os três foram reconhecidos por mostrar que experimentos semelhantes aos testes da eficácia de remédios na medicina poderiam ser usados para mensurar o impacto de soluções para problemas como dificuldades de aprendizagem.

Nos últimos anos, Kremer tem focado o desenvolvimento de mecanismos desse tipo para aumentar a eficiência de pequenos produtores rurais em países da África e da Ásia.

Assim como um estudo antigo do economista mostrou que livros didáticos são pouco úteis para alunos pobres se eles não entenderem seu conteúdo, suas pesquisas recentes indicam que muitos agricultores não compreendem a linguagem técnica de orientações oferecidas por governos.

“Houve um caso em que forneciam orientação com base no pH [nível de acidez] do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo”, disse Kremer em entrevista à Folha.

Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), o economista trará, agora, para a América Latina ferramentas que testou em nações como Quênia e Índia.

Na semana passada, ele participou de uma agenda intensa de reuniões com representantes do IICA e de um debate online com Manuel Otero, presidente da instituição.

Nesses encontros, ressaltou que a crise do coronavírus pode servir como empurrão para o uso mais intenso de tecnologias simples, via celulares, na comunicação com pequenos produtores.

O vencedor do Nobel também está envolvido em uma iniciativa que busca convencer governos e empresas a investir pesadamente na busca por uma vacina contra a Covid-19 assim como em fábricas para a sua produção.

“Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo”, afirmou o Prêmio
Nobel de Economia.

Quais são os principais fatores que freiam o aumento da produtividade de pequenos agricultores em países pobres e em desenvolvimento?

Muito da pobreza no mundo está concentrada em áreas rurais. Há muitos fatores que impactam a renda na agricultura, como acesso à terra, educação limitada, mas também a informação.

Nesse contexto em que a tecnologia agrícola está mudando, seja pelo surgimento de novos meios de produção, novas pragas e mudanças climáticas, os fazendeiros precisam de acesso à informação e às melhores recomendações científicas.

Tradicionalmente, essa informação é fornecida por agentes de instituições oficiais de extensão [formação] rural, que visitam os fazendeiros pessoalmente. Esse é um canal muito importante, mas muito caro.

A maior parte dos fazendeiros tem telefones pelos quais conseguem pegar informações sobre as mais recentes evidências científicas, formatadas sob medida para os desafios particulares que afetam suas regiões, as sementes que estão usando, as condições meteorológicas, a época da safra.

Os celulares são uma ótima ferramenta para alcançá-los neste momento em que a Covid-19 nos dá um empurrão extra para usarmos as tecnologias disponíveis para interagir remotamente.

A linguagem da ciência é normalmente complicada, e, no meio rural, principalmente o mais pobre, há uma barreira educacional. Como resolver isso?


Temos feito muitos trabalhos em países da África oriental, como Quênia, Etiópia e Ruanda, e, com outros colegas, na Índia e no Paquistão. Há abordagens que incluem mensagens de texto, dependentes do nível de alfabetização, mas outras que incluem mensagens de voz.

É possível ter sistemas pelos quais os fazendeiros recebem mensagens de voz e podem até escolher previamente os tópicos que lhes interessam ou preocupam, a língua que preferem.

Temos evidências científicas, com outros pesquisadores, dos ganhos enormes em termos de custo e benefício que eles podem ter com as tecnologias existentes.

Na conversa com Manuel Otero, o sr. disse que o trabalho dos economistas é buscar evidências e que caberia à ciência política responder sobre como governos reagem a elas. Os economistas não deveriam se preocupar com essa questão do convencimento dos governos também?


Inicialmente, em minha carreira, acho que fui um pouco cínico demais sobre governos, o que pode soar estranho, porque, normalmente, as pessoas começam idealistas, aí deparam com a realidade nos governos e se tornam cínicas.

Mas, nesse caso da agricultura, descobrimos, muito consistentemente, que os governos normalmente são responsivos às evidências.

Bem, para ser um pouco cínico, acho que os governos têm interesse em agradar aos fazendeiros porque há muitos votos nas áreas agrícolas. Mas, se há algo barato, eles se interessam. Se é caro, talvez não.

Mensagens de celular são baratas. E acho que as pessoas nos ministérios da Agricultura realmente se importam, querem transmitir os conteúdos adequados. Mas os funcionários dessas áreas escrevem mensagens muito técnicas, que os fazendeiros têm dificuldade de entender.

Como vocês têm ajudado nisso?

Realizamos muitos grupos focais com os agricultores para descobrir que mensagens eles entendem. Muitos governos tinham dados que nos ajudaram também. Fomos testando ideias para descobrir o que funcionava.

Na Índia, o governo estava prestes a iniciar um programa de larga escala para distribuir informações para os agricultores sobre a qualidade do solo. Fizemos entrevistas com eles e descobrimos que não
entendiam esse conteúdo.

Estavam apresentando muita informação de forma complicada, mencionando unidades que os agricultores não conheciam. Então, trabalhamos com o governo para criar mensagens de telefone muito simples e isso aumentou dramaticamente a compreensão.

Não houve nenhuma resistência da parte do governo, uma vez que eles viram as evidências. Mas tenho certeza de que há outros temas em que é diferente, quando há muitos interesses financeiros envolvidos, corrupção ou algo mais.

Em um estudo antigo, o sr. descobriu que livros didáticos melhoravam o desempenho apenas dos melhores alunos. Pode haver um problema comum, de comunicação incompreensível, atrapalhando áreas diversas como educação e agricultura?

Sim. No trabalho muito inicial com o qual estive envolvido, descobrimos que o livro didático que o Ministério da Educação estava produzindo em escolas muito pobres, no Quênia, ajudava os alunos que já estavam entre os melhores, mas não os estudantes típicos.

Com o tempo, outros pesquisadores mostraram que não é que os alunos não conseguem aprender, mas que você precisa desenvolver materiais baseados no que já sabem. A partir daí, eles conseguirão alcançar os conteúdos mais avançados e progredir na aprendizagem.

Acho que, de fato, há uma analogia com a agricultura. Houve um caso em que o serviço de informação telefônica fornecia orientação sobre o que o agricultor deveria fazer com base no pH do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo. Mas, se você desenvolver uma mensagem compreensível, ela terá mais impacto.

No Brasil, pequenos agricultores têm dificuldade em compatibilizar sua produção com o mercado consumidor. Mensagens de texto podem ajudar nisso?

No Quênia, uma empresa grande de açúcar deveria fornecer fertilizantes e sementes aos agricultores. Mas algumas vezes atrasava ou não fazia a entrega por problemas internos de administração. Então, criaram uma linha telefônica cujo objetivo não era enviar conteúdo aos agricultores, mas coletar informações deles. Isso levou a uma queda dramática nas falhas de entregas.

Há um estudo muito interessante de Robert Jensen que olhou o mercado de peixes. Com telefones celulares, os pescadores, ainda no mar, passaram a poder ligar para os mercados e descobrir os preços. Isso permitiu que ganhassem mais dinheiro e beneficiou também os consumidores. Haverá ganhos ainda maiores quando estivermos não só fornecendo informações mas indo além e as integrando, por exemplo, às cadeias de oferta.

Qual é sua expectativa em relação ao trabalho que fará na América Latina?

Já trabalhei na Colômbia, avaliando um programa educacional que fornecia recursos para crianças de áreas pobres irem para a escola secundária. Descobrimos resultados muito bons.

Já fui a conferências no Brasil, que é um país maravilhoso, mas não trabalhei ainda aí.

Minha impressão é que os governos têm dados muito bons na América Latina. Além disso, por serem países com renda média, e não baixa, mais recursos estão disponíveis, há economistas e especialistas em agricultura muito bons, que podem implementar as ferramentas adequadas.

O sr. está envolvido em discussões sobre a busca pela vacina contra o novo coronavírus. Como tem sido isso?

Obviamente, esse é um assunto-chave para o Brasil e para o mundo. Muitas vidas
estão sendo perdidas, e as perdas econômicas são da ordem de US$ 375 bilhões mensais. Se conseguirmos uma vacina semanas ou meses mais cedo, economizaremos bilhões de dólares.

Isso significa que vale a pena investir um montante enorme de recursos para tentar descobrir uma vacina e mesmo para instalar uma fábrica para sua produção antes de termos os resultados dos testes.

Claro que há o risco de você fazer a fábrica, o resultado da vacina não ser efetivo e parte do investimento ser perdida, mas o custo desse risco é muito pequeno relativo ao custo de não ter uma vacina.

Estou particularmente preocupado com a situação dos países de renda média. Em países como os Estados Unidos, já há parcerias com empresas farmacêuticas grandes para a produção. Os países de renda muito baixa, representados pela Gavi (entidade de disseminação de vacinas), levantaram recursos para isso também, pelo menos para a fase inicial.

Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo.

 

Perigo são patógenos originados dos animais silvestres, diz Jared Diamond

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Biogeógrafo afirma ter cautela ao comparar Covid-19 com pandemias do passado

Reinaldo José Lopes – Folha de São Paulo – 13/06/2020

Autor do best-seller “Armas, Germes e Aço”, uma das análises mais importantes sobre o impacto das doenças infecciosas sobre a história humana, o biogeógrafo americano Jared Diamond, 82, diz que é preciso cautela ao comparar a Covid-19 com outras pandemias do passado.

Além de ser menos letal do que o sarampo e a varíola, que dizimaram boa parte da população indígena do Novo Mundo logo após o contato com os europeus, o novo coronavírus representa também uma fase relativamente recente da história das moléstias emergentes, afirma Diamond.

As doenças infecciosas mais importantes do passado costumavam vir de animais domésticos, enquanto o maior perigo atual são os patógenos vindos de espécies silvestres, por meio do contato gerado pela devastação ambiental e pelo tráfico de animais.

Diamond, que conta ter perdido cinco amigos próximos por causa da Covid-19, afirma ter esperanças de que a doença mostre como a cooperação internacional é imprescindível para enfrentar os grandes desafios globais, em especial a mudança climática.

Muita gente tem comparado o impacto do novo coronavírus ao efeito das doenças infecciosas europeias sobre os povos indígenas na Era dos Descobrimentos. Até que ponto o sr. acha que a analogia é válida?

Por um lado, é verdade que, assim como o mundo inteiro hoje no caso do coronavírus, os povos do
Novo Mundo não tinham defesas naturais contra as doenças trazidas pelos europeus.

Já os habitantes da Europa, por causa de milênios de exposição a esses patógenos, tinham certo nível de imunidade genética a tais doenças, por efeito da seleção natural, e principalmente a imunidade adquirida a elas ao longo da vida. Ou seja, eles também podiam ficar doentes e morrer de sarampo ou varíola, mas alguns já estavam imunes por terem tido essas doenças antes e sobrevivido, e outros sofriam sintomas mais leves, ao contrário dos indígenas.

Por outro lado, a analogia não é muito precisa por dois motivos. A Covid-19 só se espalhou com tanta velocidade graças às viagens de avião de hoje, enquanto em 1500 as doenças dependiam de viagens marítimas ou terrestres lentas para se propagar. E, claro, não há como comparar a letalidade relativamente modesta do corona, de cerca de 1%, com a das doenças da Era dos Descobrimentos. Só o sarampo matou entre 20% e 30% dos indígenas das Américas.

Mas a letalidade de 1% depende do uso de medicina moderna, certo? Sem a tecnologia atual, ela não seria muito maior?

Alguns dados sugerem que na verdade ela não seria muito maior em épocas pré-modernas. A Covid-19 atingiu duramente a população da reserva indígena dos navajos [sudoeste dos EUA], onde não há infraestrutura médica e, em muitos casos, nem água encanada. A mortalidade é alta, mas nem chega perto da causada pelo sarampo na época colonial [de cerca de 6.000 infectados do povo navajo, 300 morreram até agora, uma letalidade de 5%].

O aparecimento de doenças como a gripe aviária, a Sars e agora a Covid-19 na China têm levado o público a enxergar o território como a grande fonte de novas pandemias ao longo da história. Essa impressão é justificável?

Não. Historicamente, a China não desempenhou um papel especial no surgimento de pandemias. Trata-se de algo que surgiu nos últimos 30 anos ou, no máximo, 50 anos. As principais doenças infecciosas do Velho Mundo, como o sarampo, a varíola e a tuberculose, apareceram nos mais variados lugares da Eurásia, e não há razão para acreditar que a China tenha desempenhado um papel na sua origem.

A África Subsaariana provavelmente é a fonte da malária, enquanto a dengue surgiu na Ásia tropical. A China parece ter sido importante na origem da peste bubônica e da gripe, mas durante a maior parte do tempo essas doenças não tiveram impacto significativo no Novo Mundo.

O Velho Mundo como um todo produziu a grande maioria das doenças infecciosas por dois motivos importantes: a presença de animais domésticos de grandes portes como bovinos e suínos, que não existiam nas Américas e foram a principal fonte dessas moléstias; e o fato de que os grandes símios [como chimpanzés e gorilas] e os demais macacos do Velho Mundo são geneticamente muito mais próximos do ser humano do que os macacos do Novo Mundo. Com isso, era mais fácil que as doenças dos primatas do Velho Mundo infectassem também as pessoas.

O que explica a importância da China nos últimos 30 anos é o fato de que a maioria das doenças de animais domésticos que podem nos infectar já saltaram para a população humana faz tempo, de modo que só as vindas de espécies selvagens podem se tornar novas pandemias.

A China se consolidou como mercado importante para animais silvestres vivos e também para produtos derivados deles para a medicina tradicional, o que aumenta o risco. Um fenômeno parecido envolvendo o consumo de carne de caça explica o surgimento de vírus como o HIV, o Ebola e o Marburg na África.

A intensificação da pecuária industrial também não aumenta esse tipo de risco? 

É verdade que a criação de animais em escala industrial aumenta o risco de novas doenças. Empacotar porcos e bois num espaço exíguo aumenta a transmissibilidade de doenças, e novas cepas de gripe muitas vezes vêm de suínos, mas a probabilidade de que algum patógeno fundamentalmente novo venha desses animais é pequena.
Se um visitante maligno do espaço sideral, um ser de seis pernas da galáxia de Andrômeda, resolvesse criar um plano para causar mal à humanidade, ele provavelmente pensaria: “Vou convencer esses terráqueos a criar mercados cheios de animais selvagens”.

O sr. buscou compreender as causas do fim de civilizações em “Colapso”. Há algo na pandemia atual que revele fragilidades da civilização do século 21? 

Acho que podemos dizer que ela é frágil em um aspecto: o que a Covid-19 está fazendo é ameaçar o futuro do comércio internacional. E o paradoxo é que, para ser franco, a taxa de letalidade da doença é baixa, mesmo quando comparada a outras pandemias recentes. A letalidade da Aids foi alta durante muito tempo, mas com efeito no longo prazo. O Ebola e o Marburg matam 50% ou mais dos infectados, mas sua transmissibilidade é baixa, o que impediu o pior. O coronavírus, apesar de efeitos normalmente modestos sobre a saúde individual, afeta a estrutura das conexões internacionais: contatos sociais e tecnologia do transporte moderno baseado em caminhões, ferrovias, aviões.

Em muitos países, parece ter havido um aumento da confiança da população na ciência por causa da pandemia. O sr. concorda que se trata de um sinal positivo?

É claro que é difícil falar de um lado positivo dessa pandemia. Eu e minha mulher perdemos cinco de nossos amigos próximos por causa da Covid-19, tem sido terrível. Mas é um sinal de esperança, sem dúvida. Com exceção do atual governo federal dos EUA, que é anticientífico, ignorante e estúpido, trata-se de um efeito positivo.

Mas o mais importante seria a compreensão sobre como precisamos lidar com problemas em escala global. Não adianta cada país controlar apenas a sua situação interna: se a Mongólia, digamos, continuar com a transmissão do vírus, o mundo inteiro pode acabar sofrendo de novo.

As vacinas vão vir, muito provavelmente, mas o mundo ainda vai ter de lidar coletivamente com os desafios muito maiores da mudança climática e da perda de recursos naturais. Minha esperança é que a Covid-19 ajude as pessoas a reconhecer isso.

E as coisas estão conectadas, certo? A destruição ambiental está diretamente ligada ao surgimento de patógenos. 

Sim, as pandemias recentes mostraram que o contato próximo entre seres humanos e animais selvagens, que é resultado da exploração desenfreada de ambientes naturais, é muito perigoso.

O sr. está escrevendo um novo livro?

Sim, como eu sempre digo, enquanto estou respirando e com o coração batendo, estou escrevendo (risos). Mas prefiro contar qual é o tema numa próxima ocasião.

RAIO-X

Jared Diamond, 82, Biogeógrafo, é professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles e escritor; estuda a interface entre teoria da evolução e história da humanidade; é autor de “Armas, Germes e Aço” (1997, ganhador do prêmio Pulitzer) e “Colapso” (2005), entre outros

 

 

‘A pandemia vai reprogramar muitas das nossas cidades’

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Coronavírus acelerou tendências de prazo mais longo, como a digitalização do varejo, a mudança para o trabalho remoto e a ‘pedestrianização’ das cidades, diz diretor do Instituto Igarapé

Pablo Pereira

Estado de São Paulo, 14/06/2020

Ao mesmo tempo em que coloca em xeque o futuro dos “open offices” e, consequentemente, deve levar à revisão de políticas de mobilidade, a pandemia provocada pelo novo corovavírus não significa o fim da densidade populacional ou da forma como vivemos nos grandes centros urbanos no mundo. A opinião é de Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé. “Embora algumas pessoas certamente venham a se afastar das cidades, não veremos uma desconcentração maciça e uma mudança para os subúrbios”, afirma.

Ele também chama de “fictícia” a ideia de que, a partir de agora, veremos cidades mais “verdes”, com menos carros e mais espaço para pedestres e ciclistas. Mas diz que é inegável que muitas das cidades devem ser “reprogramadas” após o período de confinamento. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:

Quais são as principais mudanças que devem ocorrer nas cidades após a pandemia?

A pandemia está transformando muitos aspectos da vida das cidades em tempo real, sobrecarregando os hospitais, interrompendo o comércio, forçando as pessoas a ficarem fechadas dentro de casa e restringindo o acesso a espaços públicos. Na ausência de uma vacina ou de antivirais adequados, muitas dessas mudanças poderão se tornar permanentes. As cidades já vinham enfrentando problemas crônicos, déficits e escassez de receitas antes da epidemia. Hoje, sua prioridade no curto prazo é salvar vidas, prestar serviços essenciais e manter a lei e a ordem. Mas no longo prazo necessitarão aprender a fazer mais com menos. Muitos prefeitos e Câmaras Municipais em todo o mundo não estão concentrados apenas em conter a doença, mas estão revendo também os seus planos para evitar um próximo surto. No período mais imediato, introduzirão testes rápidos maciços e sistemas de monitoramento digital dos contatos; prédios e espaços públicos terão de ser reformulados tendo em vista o distanciamento social, e deverão reforçar os sistemas de saúde para enfrentar ameaças futuras. A pandemia da covid-19 também vem acelerando tendências mais profundas de prazo mais longo, como a digitalização do varejo, a mudança para o trabalho remoto, a localização da produção de alimentos, a energia renovável distribuída e a “pedestrianização” das cidades. Seria exagerado dizer que a covid-19 mudará todos os aspectos da vida na cidade. A ideia de que as cidades estão de algum modo condenadas é um exagero. Não vemos uma fuga em massa para os subúrbios ou uma ascensão da distopia. Mas a expectativa de que em breve veremos cidades verdes, livres de carros e com mais espaços para bicicletas também é fictícia. O fato é que haverá fatores empurrando as pessoas a partirem do seu local de origem e também fatores que atrairão uma população para outra área ou lugar. O que sabemos é que a pandemia vai reprogramar muitas das nossas cidades.

Como a distância social afetará o trabalho, o lazer e a movimentação das pessoas nas cidades a partir de agora?

O distanciamento social ou físico terá efeitos de curto e longo prazo na vida cotidiana. Muitas cidades introduzirão testes em massa e até espaços de emergência digitais – essas medidas devem variar, dependendo da intensidade das ondas futuras. O que isso significa em termos práticos é que máscaras faciais, testes biométricos, vistos de imunização e outras restrições serão generalizados. Devemos esperar um aumento de gastos em saúde pública e “cercas virtuais”, além de sistemas de monitoramento de contatos para manter as pessoas resguardadas. Pode-se dizer que a mudança mais significativa é no sentido do trabalho remoto e digitalizado. Isso já vinha ocorrendo, mas vem se acelerando rapidamente por causa do chamado “onboarding” digital em larga escala. Facebook, Apple, Twitter, Microsoft já têm um grande número de empregados trabalhando off-site, alguns deles de modo permanente. Muitas startups já declararam a morte do escritório. Isso tudo obviamente terá grande impacto sobre o espaço de escritório e o futuro dos centros das cidades no mundo todo. Algumas cidades também sofrerão mudanças nos espaços públicos onde as pessoas se reúnem. Devemos esperar reformulações em tudo, desde os edifícios de escritórios aos shopping centers e arenas esportivas. O “open office” acabou neste momento. E também veremos novas rotinas em termos de trabalho e mobilidade, incluindo uma redução do volume de pessoas em linhas de metrô e ônibus próximos a elas.

A pandemia também vem acelerando um boom na virtualização dos espaços público e privado. Galerias, museus e sítios históricos já vinham oferecendo visitas digitais e essas ofertas aumentarão. Isso não é obviamente um substituto para o turismo, mas é o futuro – o modelo de negócio no qual se baseiam e a monetização dessas ofertas não estão ainda claros, mas devemos esperar uma expansão delas. E já estamos observando uma rápida virtualização do sistema de delivery de serviços, especialmente em termos de saúde e educação. Desde o surgimento da covid-19, temos visto uma transição importante no campo dos ensinos primário, secundário e universitário. Este é um teste para o futuro. E também vimos uma explosão dos serviços de telemedicina – agora mais possível de acabar com as divisões digitais. Isso está acelerando uma tendência no sentido de serviços impulsionados pelas pessoas e possibilitados pela Inteligência Artificial. Algumas dessas mudanças de curto prazo permanecerão. A pandemia não está apenas arruinando o turismo em muitas cidades, mas está devastando o modelo de negócio subjacente de grandes novas companhias, como AirBnB e Uber. As duas empresas serão obrigadas a mudar radicalmente seu modelo e pelo menos uma delas talvez não sobreviva. Como cidades que dependem do turismo em todo o mundo vão se recuperar, incluindo o Brasil, é uma grande pergunta. Claramente, haverá um grande foco na promoção do turismo doméstico.

Há uma possibilidade de mudanças reais como a emergência de um novo sistema de transporte urbano, hoje baseado em metrôs, ônibus e carros particulares?

A covid-19 está levantando perguntas fundamentais sobre o futuro do trânsito, incluindo o transporte público e o tráfego de massa. No médio prazo, aviões, trens e ônibus, incluindo os serviços de carona como Lyft e Uber, terão dificuldade para continuar com o mesmo número de passageiros sem ajustes no tocante ao distanciamento social – devemos esperar medidas para melhorar a higiene e reduzir a superlotação. O futuro do automóvel é mais incerto. De um lado, o uso do carro pode aumentar à medida em que as pessoas evitarem usar o transporte público, o que pode gerar aumento perigoso dos congestionamentos e emissões. De outro, há também potencial para uma redução do uso do carro, provocada pelas mudanças no ambiente de trabalho. As empresas de aluguel de carros observaram uma queda dramática da demanda, e os futuros desafios econômicos devem reduzir novas compras de veículos. É possível também que vejamos um florescimento do transporte de massa sustentável e da “pedestrianização”. Medidas temporárias adotadas em algumas cidades, de Milão a Melbourne, para criar pistas para bicicletas e cidades abertas durante a crise da covid-19 se tornaram permanentes. Muitas cidades estão agora pavimentando e convertendo ruas em caminhos para bicicletas. As cidades futuras serão mais “caminháveis” e com mais bikes, cidades onde podemos chegar ao destino em 15 minutos. Isso não reduz apenas o congestionamento, mas melhora a saúde pública, diminui a poluição e até mesmo o crime.

O senhor imagina que, com o isolamento social, as comunicações digitais podem transformar a maneira como os cidadãos interagem? E como o senhor vê questões como a proteção da privacidade digital e dos dados? É possível, por exemplo, estabelecermos uma educação a distância qualificada?

Com a covid-19 forçando as pessoas a trabalhar e interagir online, o mundo viveu em apenas alguns meses o equivalente a dez anos de digitalização. Alguns países e cidades já estavam investindo pesado em serviços eletrônicos e expandindo a banda larga para seus habitantes. E este processo vai continuar em muitos lugares do mundo. Essa virtualização gerou eficiências e melhorias. T também acelerou a adoção de serviços remotos de educação e saúde (embora seja muito cedo para dizer se isso vai dar certo ou não). Ao mesmo tempo, viver em um mundo dominado pelo Zoom e por algoritmos que moldam nossos hábitos de consumo reduz a possibilidade do inesperado e da criatividade – exatamente as coisas que fazem a vida na cidade valer tanto a pena.

A massiva digitalização dos serviços também tem um lado sombrio. Alguns governos (de mentalidade autoritária) estão expandindo a vigilância e implementando tecnologias invasivas em nome da saúde pública. Nos países democráticos, o tema do rastreamento de contatos inspirou um importante debate sobre a natureza da proteção e da privacidade dos dados. Essa discussão está mais avançada na Europa e na América do Norte, mas vem se espalhando pelo resto do mundo. Também estão surgindo questões importantes sobre os efeitos da covid-19 na governança. A doença já está atrapalhando a realização de eleições e manifestações, com consequências para a integridade da democracia e dos direitos humanos. A grande questão não é apenas como fazer campanhas e audiências públicas em um mundo digital, mas também como garantir eleições digitais seguras.

Nos últimos anos, os planejadores urbanos vêm trabalhando para aumentar a densidade populacional nas cidades, com o intuito de reduzir custos e promover uma convivência baseada na proximidade das pessoas. O que vai acontecer agora? É possível tomar a direção oposta?

A densidade é uma grande virtude das cidades. Como observou o economista Paul Romer, vencedor do Prêmio Nobel, a capacidade dos aglomerados de pessoas para agregar inovação e produtividade é uma força irresistível. O fato é que as cidades compactas também conseguem facilitar os serviços sociais e de saúde, reduzir o isolamento social e proporcionar todos os outros “bens” para uma cidade saudável. A covid-19 não significa a morte da densidade. Embora algumas pessoas certamente venham a se afastar das cidades, não veremos uma desconcentração maciça e uma mudança para os subúrbios. Os assentamentos humanos têm sido focos de contágio por milhares de anos. Apesar disso, as pessoas talentosas sempre retornam às cidades, atraídas pela perspectiva de melhores empregos, salários mais altos e estilos de vida mais interessantes do que no interior. Mas o que a covid-19 revelou é como a densidade também pode se reproduzir e intensificar vulnerabilidades em certos segmentos da população – especialmente os pobres, os idosos, os doentes crônicos e os grupos minoritários. O problema são as condições econômicas e sociais estruturais, não a densidade em si. O que a covid-19 também pode fazer, paradoxalmente, é aumentar a disponibilidade de moradias populares, à medida em que os espaços comerciais ficarem vagos e forem reaproveitados e que algumas pessoas se mudem para os subúrbios recém-gentrificados. Muito mais perigosa que a densidade são a superlotação e o acesso desigual aos serviços básicos. Em muitas cidades de baixa e média renda, especialmente nas favelas e assentamentos irregulares, os pobres vivem amontoados em edificações precárias e mal ventiladas, o que facilita a propagação da doença. Muitos não têm acesso a água potável, saneamento básico e nem mesmo eletricidade constante. Essas pessoas muitas vezes se espremem em ônibus lotados para ir e voltar do trabalho. A indeterminação dos direitos de propriedade garante que os pobres urbanos não tenham acesso a muitos serviços públicos básicos ou ferramentas bancárias e de crédito.

Um dos setores mais afetados pela pandemia nas grandes aglomerações urbanas de hoje é o comércio. O senhor acha que as coisas voltarão a ser como antes? Ou teremos o sistema Amazon como modelo para abastecer as famílias?

A pandemia de covid-19 forçou uma pausa na globalização. Desacelerou não apenas o movimento de bens e serviços, mas também o turismo e as viagens. Além disso, apressou o processo de desagregação das cadeias de alguns países, principalmente da China. Vimos muitas empresas adotando medidas para encurtar suas cadeias de suprimentos e deixar a produção mais local. Essas tendências já estavam aparentes antes do surto e provavelmente vão se intensificar nos próximos anos. Isso será particularmente traumático para indústrias, empresas aéreas e grandes redes de hotéis. Além disso, a covid-19 tem sido devastadora para empresas de pequeno e médio portes que não se posicionaram rapidamente na internet. A maioria das lojas do mundo está vendendo seus produtos – de computadores a peças de automóveis – no ciberespaço. Embora algumas delas tenham recursos suficientes para enfrentar a crise (inclusive subsídios do governo), muitas entrarão em colapso porque não conseguirão sobreviver a choques prolongados de oferta e demanda. Grandes varejistas online, como a Amazon, a Shopify e, agora, o Facebook, vão se dar bem. Infelizmente, muitos pontos de venda menores estão correndo risco muito maior, apesar de serem os ativos que dão identidade e personalidade às cidades.

‘Bairros precisam ser mais do que loteamentos, devem ser reinventados’

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Crises tendem a acelerar decisões que em tempos normais demorariam anos ou décadas, como a retomada da vizinhança como referência para as atividades diárias, afirma professor

Pablo Pereira – Estado de São Paulo, 14/06/2020

Jeferson Tavares, professor no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (IAU-USP)

O momento atual, na visão do professor Jeferson Tavares, da USP, é uma oportunidade de pensar em uma sociedade mais solidária, que incentive a retomada de políticas públicas voltadas ao combate de desigualdades. Ele também acredita na reconstrução da identidade cidadão-cidade, perdida em bairros sem qualidade urbanística. “Quantos bairros conhecemos que não passam de um aglomerado de casas?”, questiona. “Nesses lugares, o cidadão perdeu a identidade com a cidade, e essa identidade precisa ser reconstruída pela base social”.

O professor também defende, para um futuro próximo, sistemas de cidades baseados na cooperação. “Em vez de espaços isolados, podemos construir cidades que cooperem entre si e por isso sejam mais eficazes no combate dos conflitos comuns”.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:

As cidades mudarão a maneira como funcionam? Ou a vida seguirá no mesmo modelo?

Para entender a difusão do vírus da covid-19 é necessário entender o processo de urbanização do nosso território. No Estado de São Paulo, temos evidências de que o vírus se propagou seguindo a rota das principais rodovias e se difundiu a partir das cidades mais centrais. Ao longo de todo o século 20, o Estado estruturou-se por eixos e polos, e são esses elementos da urbanização que estão na base da interiorização da pandemia. As primeiras e principais cidades atingidas ou são cidades-sede das regiões metropolitanas ou sedes das regiões administrativas, indicando que, mais importante que o adensamento, é a conexão desses polos com outras cidades que tem acentuado a disseminação na escala regional. Ou seja, numa pandemia, compreender o território é elemento central para a prevenção e o combate da doença. É difícil prever exatamente quais mudanças ocorrerão no meio urbano, mas entendo que é uma oportunidade de pensar uma sociedade mais solidária, a começar por romper as barreiras históricas da desigualdade do desenvolvimento territorial que levou à precariedade habitacional e urbana, à vulnerabilidade social e ambiental, e à falta de condições mínimas de moradia. É possível traçarmos um quadro das prioridades e a principal delas, certamente, é retomar políticas públicas que combatam essas desigualdades e respeitem as diversidades regionais.

Como o trabalho, o lazer e a movimentação das pessoas nas cidades vão mudar daqui para a frente?

Crises tendem a acelerar decisões que em tempos normais demorariam anos ou décadas para serem tomadas. Desde o urbanismo racionalista de fins do século 19, a divisão monofuncional instalou-se como regra nas cidades e o lugar de trabalho tornou-se distinto do lugar de morar. As críticas a esse modelo são conhecidas há mais de 50 anos e hoje a mudança parece iminente, mas sem alternativas concretas. Haja vista a improvisação do ambiente doméstico para as atividades profissionais. Por outro lado, um indício importante é a retomada da vizinhança como referência para as atividades diárias. Os deslocamentos mais curtos, a valorização das opções do bairro e a integração social comunitária convergem como possibilidades a serem exploradas. Nesse aspecto, os bairros precisam ser mais que loteamentos, precisam ser reinventados. Quantos bairros conhecemos que não passam de um aglomerado de casas sem nenhuma qualidade urbanística? Nesses lugares, o cidadão perdeu a identidade com a cidade. E essa identidade precisa ser reconstruída pela base social.

São Paulo tem cerca de 8 milhões de usuários por dia no sistema público de transportes. Existe a possibilidade de mudanças no transporte urbano?

O transporte urbano é essencial para a qualidade de vida nas cidades. Se hoje é lugar de aglomerações é porque sua frota e/ou sistema não atendem à demanda. É preciso investimento e planejamento, porque ele interage com a estruturação urbana e sua qualidade e eficiência ajudam a tornar a cidade mais justa ao garantir acesso as infraestruturas urbanas, aos serviços públicos e às ofertas de emprego. É necessário integrar os meios de transportes ativos (caminhadas e bicicleta, por exemplo) aos motorizados e transformar as estações em marcos urbanos, pois em sua maioria – e principalmente nas periferias pobres – essas estações representam um lugar de cruzamentos de fluxos de pessoas e produtos sem representar sua importância para a vida contemporânea.

Durante anos, os urbanistas trabalharam para aumentar a densidade populacional nas cidades para reduzir custos e promover convivência baseada na proximidade das pessoas. O que vai acontecer agora? É possível um caminho no sentido contrário?

As economias de aglomeração como estratégias de ordenamento territorial ajudaram a produzir a cidade do século 20 que conhecemos. Mas estamos vivendo uma tendência à dispersão do tecido urbano com a profusão de condomínios residenciais, industriais e de serviços em áreas rurais, fora da mancha urbana e ao longo de rodovias. Essa dispersão força uma diminuição das densidades populacionais, rompe a dicotomia campo-cidade e centro-periferia, mas não representa uma solução adequada porque esse modelo tem intensificado a segregação social, a dependência do automóvel como principal meio de locomoção e a ocupação de áreas verdes cuja função ambiental é suprimida. Estamos vivendo um dilema entre cidades compactas e cidades dispersas que ofusca a essência do debate: é possível um novo modelo de desenvolvimento urbano?

O senhor acha que haverá uma mudança nas diretrizes, por exemplo, com mudanças sanitárias na infraestrutura de coleta de lixo nas ruas e nas residências?

Sem dúvida. Numa crise sanitária, o saneamento é central, sobretudo nos assentamentos precários. A falta de água potável atinge cerca de 40 milhões de pessoas. O déficit habitacional chega a 6,5 milhões de moradias. Some-se a isso as áreas de risco em encostas ou sobre córregos que são agravadas pelo descarte inadequado de lixo. Nas regiões metropolitanas, a desigualdade social acentua esses problemas nos bairros mais pobres. As soluções devem ser integradas aos projetos de urbanização e são urgentes. Atender à demanda é o mínimo a ser feito, mas dar segurança e qualidade de vida deve ser o principal objetivo.

Um dos setores mais afetados pela pandemia nas grandes aglomerações urbanas de hoje é o comércio, principalmente lojas de rua e empresas locais, como restaurantes e bares. O senhor acredita que isso voltará a ser como antes?

Desde os anos 1980, no Brasil, temos acompanhado o esvaziamento da rua pelo argumento da violência e a emergência de formas alternativas de serviços que quase sempre partem da precarização do trabalho informal. Fato é que a origem da cidade é a aproximação, a reunião e o encontro. Na vida urbana, não podemos abandonar a defesa do uso do espaço público. Ruas, praças, parques e calçadões são os lugares que concretizam a esfera pública do convívio. Ao contrário do que se pensa, valorizá-los é uma estratégia para manter a saúde física e mental dos cidadãos. E a vida econômica urbana está ligada a eles.

Existem pensadores que já planejam cidades com áreas independentes, o que facilitaria qualquer necessidade futura de isolamento em caso de futuras epidemias. O senhor acredita que é possível que tenhamos cidades policêntricas em vez das grandes cidades de hoje no futuro?

A descentralização de serviços e a constituição de uma estrutura policêntrica faz parte das políticas mais progressistas de desenvolvimento urbano e estão no centro da democratização da cidade. Portanto, não necessariamente significa independência, mas melhor redistribuição de estruturas de bem-estar social aproximando-as de seus usuários. Numa escala ainda mais ampla, pesquisadores têm estudado o fenômeno da cidade-região como uma nova forma de compreender a realidade urbana. A análise desse fenômeno no contexto brasileiro leva-nos a sistemas de cidades que estejam baseados na cooperação. Ou seja, em vez de espaços isolados, podemos construir cidades que cooperem entre si e por isso sejam mais eficazes no combate dos conflitos comuns.

Quais seriam as mudanças imediatas em metrópoles gigantes de hoje, como São Paulo, Rio, NY, Tóquio, Londres, Paris?

Vivemos num momento de cidades globais, megacidades e megalópolis como paradigmas atuais do urbanismo mundial. Mas a desigualdade, a precariedade e a segregação social nas grandes cidades brasileiras tornam nossa realidade diferente dos casos estrangeiros. Para combater esses problemas, sintetizo três urgências: formar novas instituições de planejamento a partir de uma visão territorial, sistêmica e interescalar; reconhecer que a dinâmica das cidades não está submetida às divisas municipais e, portanto, as principais soluções exigem um diálogo de cooperação interfederativa; e incorporar as águas urbanas nas diferentes escalas do planejamento. Precisamos tensionar os paradigmas de onde as decisões são tomadas para constituir cidades com mais urbanidade. Advogo pela cidade como artefato inacabado cuja perenidade está vinculada à dignidade do trabalho humano que o construiu.

 

The Economist: Jair Bolsonaro ameaça a democracia?

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Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, muitos brasileiros temem o risco que ele representa

The Economist, O Estado de S.Paulo 

13 de junho de 2020

Em muitos fins de semana desde que a covid-19 chegou ao Brasil, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizam manifestações em Brasília e São Paulo, para demandar a reabertura da economia, parcialmente submetida a um lockdown, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e o retorno do regime militar dos anos 1964/1985. Alguns estão armados. Em Brasília, Bolsonaro com frequência se junta a eles, distribuindo abraços e apertos de mão e desafiando as regras de saúde estabelecidas. Nem ele e nem as pessoas usam máscaras no rosto.

Desde que Bolsonaro, antigo capitão do Exército com ideias de direita, assumiu o governo, em janeiro de 2019, muitos brasileiros temem a ameaça que ele representa para a democracia. Alguns argumentam que as instituições do País são fortes o bastante para freá-lo. Na verdade, o presidente lotou o seu governo com oficiais militares. Mas eles são vistos como tendo uma influência moderadora e as manifestações são pequenas.

As tensões aumentaram nas últimas semanas. Bolsonaro se tornou mais ameaçador, ao se dirigir ao Congresso afirmando que “o tempo da vilania acabou, agora é o povo no poder”, e ao Poder Judiciário dizendo “acabou, porra!” Alguns ministros militares, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, também fizeram ameaças veladas contra o STF, o Congresso e a mídia.

Em uma mensagem pelo WhatsApp vazada no mês passado, o ministro do STF Celso de Mello escreveu: “temos de resistir contra a destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar “que foi derrubada por Hitler”. “A democracia brasileira está sob uma grave ameaça”, diz Oscar Vilhena Vieira, diretor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “O presidente não vem tentando apenas criar um conflito institucional, mas também estimulando grupos violentos”.

Deputado durante 28 anos, Bolsonaro nunca mostrou muito respeito pela democracia. E se tornou mais controvertido por duas razões. Em primeiro lugar, o STF iniciou investigações que o envolvem. Uma delas tem a ver com a destituição do diretor da Polícia Federal para proteger um dos seus filhos contra um processo, afirmam seus críticos.

E a outra se refere a apoiadores (incluindo dois filhos dele) suspeitos de orquestrarem acusações falsas e ameaças contra ministros do STF. A segunda razão é que Bolsonaro mostra pouca capacidade para governar. A pandemia amplificou isto. Sua recusa em apoiar os lockdowns e o distanciamento social contribuíram para agravar a propagação da covid-19, com o País registrando hoje quase 40 mil mortes, o terceiro número mais alto do mundo.

Ele vem perdendo apoio popular embora mantenha uma base de 30% de eleitores. Um sinal da sua fragilidade é que ele cada vez mais depende do Exército. Dez dos seus 22 ministros são militares e outros três mil ocupam cargos no governo. “Na verdade, temos um regime miliar”, disse um oficial aposentado. E isto representa um risco para as forças armadas e para a democracia. Bolsonaro tem exacerbado a divisão interna e a politização do Exército, cuja disciplina e hierarquia vêm se desgastando. Muitos oficiais de escalão inferior apoiam Bolsonaro nas redes sociais. Quatro generais com cargos no governo, dois no serviço ativo, têm mais poder do que o comandante das forças armadas, seu superior.

O Exército também coloca em sério risco a sua reputação. Está hoje à frente do ministério da Saúde (onde por um breve período tentou suspender as publicações de dados completos sobre a covid-19), da coordenação política e proteção do Amazonas. “Eles realmente acreditam que sabem como fazer as coisas”, diz um ex-oficial. Eles poderão aprender da maneira difícil, como durante a ditadura, que não sabem. Bolsonaro não parece forte o bastante para desencadear um golpe. Ele enfrenta oposição de muitos governadores.

Embora o vírus tenha temporariamente incapacitado o Congresso, Oscar Vilhena Vieira observa que o STF tem atuado de uma maneira inusitadamente unida. Entretanto, “a democracia pode desaparecer se você não tiver um homem forte”, alerta Matias Spektor, do Centro de Relações Internacionais da FGV. Se Bolsonaro acabar sofrendo um impeachment, Mourão o sucederá, trazendo o Exército para ainda mais perto do poder.

Uma outra ameaça, observa Spektor, é o esvaziamento das instituições democráticas por Bolsonaro, como também a instigação do conflito. Nomeou um procurador geral mais simpático a ele e tem influência sobre as forças de polícia estaduais, como também sobre a Polícia Federal. Uma batida policial silenciou o governador do Rio de Janeiro, que recentemente começou a criticá-lo. Os democratas brasileiros, seus adversários, começam a reunir uma oposição ao presidente. E estão certos em ficar alarmados.

Laura Carvalho fala sobre curto-circuito na política econômica e discute volta do Estado

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Para economista, valorização do papel do governo como indutor do crescimento não é fato consumado

Eduardo Cucolo – Folha de São Paula – 12/06/2020

Dois anos após o lançamento de “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”, a economista Laura Carvalho (FEA-USP) lança o livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado”, no qual defende a necessidade de se repensar as funções do Estado diante de uma crise que tem exigido gastos públicos em níveis sem precedentes em todo o mundo.

Para a economista, a volta do Estado como indutor do crescimento e garantidor de um ambiente de bem-estar social não é um fato consumado. Ela diz também que o elevado nível de endividamento global, inclusive do Brasil, pode gerar uma reação semelhante àquela vista após a crise de 2008-2009, que foi seguida por uma onda de austeridade fiscal e desmonte de políticas públicas em outros países.

Sobre o título do livro, Laura diz que o curto-circuito se refere também à forma como a crise atual obrigou uma equipe econômica alinhada com esse pensamento a agir em sentido contrário e à dúvida sobre como o bolsonarismo irá se colocar diante da possibilidade de que uma política de austeridade atrase a recuperação econômica do Brasil e abale ainda mais a popularidade do presidente da República.

A senhora estruturou o livro em cima de cinco funções do Estado. A pandemia e a recuperação posterior tendem a fortalecer essas funções e a presença estatal?

São cinco funções que a pandemia contribuiu para revelar e para fazer a gente repensar. De forma alguma eu quero dizer que a volta do Estado seja um fato consumado. Não estou anunciando que o Estado voltou. O que eu tento fazer é repensar os papéis do Estado a partir dessa pandemia, muito mais no sentido de propostas do que de uma previsão ou futurologia.

Dessas cinco funções do Estado, quais a sra. considera mais fundamentais hoje e quais serão mais importantes no período de recuperação pós-pandemia?

As duas igualmente importantes hoje são as funções de Estado protetor e prestador de serviços. Eu trato no livro da questão da proteção, da renda básica universal, que é fundamental diante dessa massa de trabalhadores informais e que vêm perdendo sua renda nesse momento e precisam de alguma renda até para conseguir evitar o contágio. Na função de prestador de serviço, principalmente considerando a necessidade de recursos para a área de saúde e de uma gestão mais eficiente. Essas duas são as urgentes. Para o pós-pandemia, para uma recuperação mais rápida da economia, eu colocaria a função de investidor em infraestrutura como aquilo que pode contribuir para dinamizar a economia e, ao mesmo tempo, para superar algumas lacunas históricas que ficaram mais aparentes.

Quando se fala em ação do Estado como investidor e empreendedor, vêm à mente os problemas que ocorreram no governo Dilma Rousseff, o que é usado como argumento por muitos economistas para defender que a recuperação precisa ser puxada pelo setor privado.

A função do Estado como empreendedor tem a ver com uma crítica da política industrial que foi implementada no passado, no governo Dilma, e eu busco refletir sobre um novo modelo de política de desenvolvimento que estivesse ligada às demandas da sociedade e não à ideia de proteger algum setor.

O livro tenta partir de questões da história contemporânea para introduzir conceitos da economia, mas também tentar fazer uma análise crítica do passado mirando uma agenda futura. Em todas essas funções aparece um pouco uma crítica à trajetória e papéis que o Estado veio tendo no Brasil nas últimas décadas, ao mesmo tempo mostrando que alguns dos instrumentos foram importantes para que a gente conseguisse reagir agora, mesmo que de forma insuficiente, como o Cadastro Único, a existência do BNDES, mesmo que não tenha sido aproveitado nessa crise, o SUS. Alguns desses instrumentos vinham sendo desmontados.

A senhora faz um diagnóstico de que a economia brasileira vem, desde a saída de recessão em 2016, em um cenário de estagnação porque se tirou do Estado o papel de indutor do crescimento.

Na situação atual, ou a gente dá sorte de ter o resto do mundo puxando nosso crescimento via exportações ou precisa do Estado. Só tem essas duas maneiras de injetar ânimo em uma situação como essa. Essa pandemia criou uma situação ainda mais dramática por ter vindo sobre uma economia que, ao contrário dos países ricos, não vinha em uma trajetória de expansão, não estava com taxa de desemprego baixa, tinha informalidade recorde. Isso fará com essa crise seja ainda mais grave por aqui e o volume de recursos para responder a isso seja muito maior.

A equipe econômica do governo federal defende uma ideologia econômica que você chama no livro de anacrônica e está tendo de lidar com uma demanda por mais Estado neste momento. A pandemia pode trazer mudanças nessa política econômica?

O título do livro, curto circuito, tem dois sentidos. Um sentido é o curto circuito macroeconômico que a pandemia gerou, o diagnóstico de que as características dessa crise são bem diferentes das crises originadas no setor financeiro, de 1929, de 2008.

Mas o título também vale para a ideia, para a maneira como essas demandas de um Estado maior, muito urgentes, se dão em um ambiente de um governo que não tem essas características e não se preparou para isso. As demandas e as necessidades do momento bateram de frente com essa ideologia da equipe econômica.

O bolsonarismo entrou um pouco em curto circuito na medida em que houve uma ruptura drástica, tanto na política fiscal como na política monetária em relação ao que vinha ocorrendo nos últimos anos. A atuação do Banco Central e da política fiscal é anticíclica, ao contrário do que foi nos últimos anos. Isso em um governo que se propunha a fazer o contrário.

A política econômica continuará nesse caminho nos próximos anos?

Neste ano, a gente teve uma ruptura muito clara. O déficit vai a 7% do PIB, a dívida pública tende a subir para mais de 100% do PIB em alguns anos. Há também uma valorização do papel do Estado pela sociedade.

Agora, dizer que está claro que daqui pra frente haverá uma mudança na postura que incorpore a valorização dessas funções, criando uma agenda econômica nova, que reduza desigualdades, isso a gente não tem como afirmar. Pelo contrário, o Ministério da Economia aponta para uma tentativa de utilizar essa dívida maior para acelerar reformas que reduzam o tamanho do Estado, até de forma mais agressiva do que vinha ocorrendo.

Essa é uma das perguntas do livro. Será que o bolsonarismo abrirá mão daquele fundamentalismo de mercado que ajudou a elegê-lo e a conquistar a maior de parte das elites econômicas desde 2018 ou o manterá, com o risco de perder ainda mais apoio, dado que a gente vai ter um quadro econômico mais difícil daqui pra frente?

A senhora defende no seu livro um sistema de renda básica universal. Qual a sua proposta?

Há duas visões de renda básica.  A ideia do [ganhador do Prêmio Nobel Milton] Friedman de um Imposto de Renda negativo. Abaixo de um certo patamar de renda, as pessoas recebem o benefício e acima pagam imposto. E a renda básica universal, a ideia de que todos têm direito a uma renda mínima.

Isso cria a ideia de que vai transferir para pessoas ricas, porque está dando renda para todos, sem exigir que se comprove nada, assim com no SUS, mas você corrige isso na tributação. A Justiça não vem por tornar os serviços ou direitos mais focalizados, vem ao dar a todos esses direitos de forma universal, mas tributar mais os que ganham mais. É isso o que eu defendo como sistema.

O caminho pode ser gradual, mas é possível financiar um sistema de renda básica para todos, o que substitui os programas existentes, que exigem que se comprove renda. Uma parte do custo sai daí, mas outra parte precisa tirar da tributação progressiva, com a redução de deduções do IR para saúde e educação privadas, isenção para lucros e dividendos e até criando alíquotas mais altas para o topo da pirâmide.

RAIO-X

Laura Carvalho, 36, é professora livre-docente do Departamento de Economia da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP) e autora de “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico” (Todavia, 2018). Foi colunista da Folha de 2015 a 2019.

O TCU deve desculpas a Dilma, por Nelson Barbosa.

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Tribunal decidiu fazer apenas uma ressalva às contas de 2019, mudando radicalmente de postura em relação ao que fez durante o governo Dilma Rousseff

Nelson Barbosa – Folha de São Paulo – 11/06/2020

O TCU fez uma “ressalva” às contas do primeiro ano de governo Bolsonaro. Segundo informações da imprensa, em 2019, houve pagamento de R$ 1,5 bilhão em benefícios previdenciários sem respaldo na Lei Orçamentária.

Especificamente, diante do forte contingenciamento de gastos no início de 2019, o governo reavaliou para menos a dotação orçamentária do INSS, de modo a evitar cortes maiores em outras áreas. Porém, com o passar do tempo, a despesa do INSS acabou sendo maior do que o inicialmente esperado, e houve pagamento de R$ 1,5 bilhão de benefícios previdenciários sem autorização do Congresso.

A realização de despesa sem previsão orçamentária viola a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas o TCU decidiu fazer apenas uma ressalva às contas de 2019, mudando radicalmente de postura em relação ao que fez durante o governo Dilma Rousseff.

Façamos uma pausa para contar até três e refletir se a atitude do TCU caracteriza ou não dois pesos e duas medidas. Um, dois, três… voltou? Pois bem, prefiro considerar a reviravolta no TCU como aprendizado em vez de má fé. Assim como pessoas, as instituições podem melhorar.

Vou ainda mais longe e parabenizo a todos os envolvidos no TCU pela decisão construtiva em relação do governo Bolsonaro. Ainda bem que agora vocês decidiram poupar o presidente, apontar falha técnica e recomendar sua correção, pois com certeza teria sido pior não pagar R$ 1,5 bilhão a quem tinha direito à aposentadoria no final de 2019.

A mudança no TCU é ainda mais bem-vinda quando lembramos que, em 2016, a presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment sob acusação de ter irregularmente realocado verbas orçamentárias por decreto, mas sem gastar um centavo acima do aprovado pelo Congresso!

É verdade que o absurdo processo de impeachment foi do Congresso, não do TCU. Porém, também é verdade que, em 2016, vários membros do corpo técnico do TCU foram ao Congresso acusar a presidente de crime fiscal por realocar verbas sem gasto adicional. Um deles chegou a revelar, em ato falho, que ajudou na redação de um pedido de investigação que ele mesmo avaliou! O referido servidor deveria ter sido afastado, mas no Brasil de 2016… um, dois, três.

Voltando aos dias de hoje, presumo que os mesmos integrantes do TCU que acusaram a presidente Dilma de crime em 2016 tenham mudado de opinião diante da ressalva que deram ao “gasto sem orçamento” de R$ 1,5 bilhão por parte de Bolsonaro. Se for isso, que o bom senso seja eterno enquanto dure e mandem uma carta de desculpas à presidente Dilma.

Também torço para que a reviravolta no TCU seja o início do fim da “idolatria da auditoria e controle” em que nos metemos desde 2005, quando começou a politização da justiça pelo processo do mensalão.

Desde então houve muitas notícias falsas, acusações infundadas na primeira página de jornais e revistas, geralmente por procuradores e auditores em busca de fama, quase sempre só contra pessoas de esquerda, mas sem registro bombástico equivalente quando vários acusados foram inocentados.

Combate à corrupção e maior eficiência na alocação de recursos públicos são deveres de qualquer político, independente de ideologia. Por este motivo relembro que os governos do PT aumentaram a transparência da máquina pública e deram mais poder aos órgãos de controle, mesmo sabendo que isto poderia ser temporariamente desvirtuado por falsos heróis contra o próprio PT. Já tivemos “Batman”, “Super-Homem” e até “Messias”, todos com seu séquito de “minions”, mas no final a verdade sempre aparece.

Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

 

EUA e China podem evoluir para oligarquias, diz Branko Milanovic

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Para economista, há risco de capitalismo liberal caminhar em direção a regime plutocrático

Celso Rocha de Barros – Folha de São Paulo- 31/05/2020

[RESUMO] Nesta entrevista, o economista Branko Milanovic comenta as diferenças e similaridades entre os dois modelos de capitalismo, a relação de ambos com a corrupção e a desigualdade e os efeitos da disputa entre EUA e China sobre a América Latina.

O que aconteceu com o capitalismo desde que ele ficou sozinho no mundo, desde que o único outro “game in town”, o comunismo, desmoronou? Branko Milanovic tenta responder a essa questão em seu livro mais recente, “Capitalismo sem Rivais”, sobre o qual conversou com a Folha em entrevista por email. A editora Todavia lança a obra no país na quarta-feira (3).

Economista, especialista em estudos sobre desigualdade, o autor trabalhou no Banco Mundial e hoje é professor da City University de Nova York. Nas últimas duas décadas, Milanović se consagrou como um dos principais nomes no debate mundial sobre desigualdade —mais especificamente, no debate sobre a desigualdade sobre a desigualdade global.

“As frequentes alusões de Bolsonaro favoráveis ao regime militar brasileiro podem levar a acreditar que uma combinação de capitalismo liberal e político talvez não seja mal vista por alguns”, diz Milanović à Folha.

O senhor escreveu recentemente que a pandemia da Covid-19 poderia ser o “momento Sputnik” da China, o ponto em que o país assumiria a liderança em importantes aspectos mundiais. A analogia com a Guerra Fria ainda faz sentido hoje, quando o mundo está muito mais integrado? A analogia com a Guerra Fria não é perfeita porque a China é muito mais integrada à economia global e mais interdependente dos Estados Unidos que a União Soviética era. Em segundo lugar, a disputa ideológica é muito menos aguda.

Mas também não devemos ser prisioneiros da analogia da Guerra Fria, esquecendo outras disputas entre as grandes potências que provocaram duas guerras mundiais e inúmeros outros conflitos. Penso que é cada vez mais evidente que existe um conflito de interesses real entre a China e os Estados Unidos.

Em algum momento deste século, a China, cuja população é quatro vezes maior que a dos EUA, pode alcançar um desenvolvimento tecnológico inigualável, o que a tornaria o poder econômico supremo.

Nos termos do seu livro, a concorrência entre a China e os EUA é, entre outras coisas, uma competição entre dois tipos de capitalismo, um “meritocrático” (o norte-americano) e um “político” (o chinês). Existem países que poderiam passar de um modelo para o outro em um futuro próximo? Isso dependerá, primeiro, da vontade da China de exportar seu modelo e, segundo, de outros países interessados ​​em aceitá-lo. Acredito que, apesar da relutância histórica da China em impor seus arranjos políticos internos a outros, ela será inexoravelmente levada a fazer exatamente isso devido à grande competição de poder com os Estados Unidos. Agora, quanto à atratividade do “modelo chinês”, acho que é o maior entre as elites modernizadoras nacionalistas.

Tais elites desejam modernizar (desenvolver) seu país e, ao mesmo tempo, ficar isoladas do estrito controle popular. Elas podem achar o modelo chinês atraente. Nesse modelo, podem até aceitar eleições e um sistema multipartidário, mas aos partidos alternativos nunca seria permitido chegar ao poder.

A propósito, a China também possui formalmente vários partidos com assentos pré-designados no Congresso Nacional.

Não são poucos os países que possuem hoje esse sistema: Argélia, Angola, Azerbaijão, Belarus, grande parte da Ásia Central, Etiópia, Rússia, Singapura, Tanzânia, Vietnã. Pode-se até incluir a Turquia e a Hungria.

Qual dos dois modelos acredita ser mais dependente do sucesso da globalização econômica? Eu acho que a China precisa da continuação da globalização ainda mais que os Estados Unidos. Em parte porque ainda é tecnologicamente menos avançada (embora isso esteja mudando rapidamente em algumas áreas) e, portanto, pode se beneficiar mais da globalização e da transferência de tecnologia. Mas as elites nos Estados Unidos também precisam da globalização, pois é uma maneira de enriquecer levando a produção da mão de obra doméstica ocidental, de custo mais elevado, para o resto do mundo.

Costuma-se dizer que o capitalismo foi capaz de absorver pontos fortes dos regimes comunistas (Estado de bem-estar etc.), mas o contrário não aconteceu. Você acha que algo semelhante pode decidir a concorrência entre o capitalismo político e o meritocrático? Essa é uma pergunta interessante. Havia na década de 1960 uma corrente (por exemplo, Jan Tinbergen, John Kenneth Galbraith, Andrei Sakharov) afirmando que os dois sistemas convergiriam: os requisitos tecnológicos em ambos são semelhantes e, argumentou-se, os sistemas socialistas teriam que aceitar uma dose maior dos mercados para crescer mais rapidamente, enquanto o capitalismo teria que aceitar direitos sociais e trabalhistas mais amplos. O último ponto ocorreu, mas não o primeiro. Isso mostrou claramente que o capitalismo era mais flexível.

No final de “Capitalismo sem Rivais”, vislumbro uma possibilidade de convergência entre os dois modelos de capitalismo, mas de uma maneira diferente do que se pensava em relação a uma convergência entre socialismo e o capitalismo. Penso que não se pode descartar a possibilidade de o capitalismo liberal caminhar cada vez mais em direção a uma política plutocrática.

Isso é mais óbvio nos Estados Unidos, onde o dinheiro e os ricos desempenham um papel enorme na política. Isso poderia levar à criação de uma elite político-econômica “unificada” que controlaria tanto a economia quanto a política.

Mas algo semelhante também é visível na China, com a diferença de que lá a elite política tende a tomar para si o poder econômico. No final, ambos os sistemas podem evoluir para uma oligarquia, com a diferença de que, nos Estados Unidos, a oligarquia econômica conquistará o poder político, enquanto na China seria o contrário.

O senhor menciona que a corrupção no capitalismo político não pode ser eliminada, mas tem que ser mantida sob controle. Se a China decidir avançar em direção a um sistema menos corrupto, existe alguma maneira de fazer isso gradualmente? O Brasil recentemente teve um choque anticorrupção que levou a uma intensa turbulência política. Penso que devemos considerar a corrupção como uma característica inerente ao capitalismo político, porque ele se baseia na ausência de Estado de Direito e na capacidade de o Estado tomar decisões que não sejam limitadas pelas regras.

O poder irrestrito do Estado em decisões de importância significativa é uma característica fundamental do capitalismo político e a causa principal da corrupção. Portanto, não vejo como alguém poderia manter o capitalismo político e eliminar a corrupção.

Mas, para preservar a estabilidade política, é importante que o Estado não tome muitas dessas decisões políticas e mantenha a corrupção sob controle (isto é, dentro de alguns limites).

O senhor escreveu que a existência da União Soviética forçou o capitalismo ocidental a se tornar mais igualitário. Acha que concorrência entre os modelos de capitalismo pode afetar os níveis de desigualdade nos dois lados? Não tenho certeza disso, porque os dois sistemas são muito desiguais, portanto a concorrência deles não parece jogar na área da igualdade, mas na área do crescimento econômico.

Na literatura sobre transições pós-socialistas, houve a ideia de “sub-reforma”, o risco de países periféricos ficarem presos na terra de ninguém entre comunismo e capitalismo, com “o pior dos dois mundos”. Pode ocorrer o mesmo com os países da América Latina nesta disputa entre o capitalismo meritocrático e político? Isso não é impossível. Podíamos antes ver os países latino-americanos como democracias consolidadas, mas os recentes acontecimentos na Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua e El Salvador nos fazem pensar se os sistemas híbridos não podem também reaparecer em outros países da América Latina.

As frequentes alusões de Bolsonaro favoráveis ao regime militar brasileiro, combinadas com a ênfase em destacar o crescimento econômico (que, aliás, foi significativo nesse período), podem levar a acreditar que uma combinação de capitalismo liberal e político talvez não seja mal vista por alguns.

 

Pandemia tirou mundo de rota suicida do sistema econômico tradicional, diz Nobel da Paz

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Muhammad Yunus afirma que crise é oportunidade para livrar humanidade de modelo que cria e sustenta pobreza

Folha de SÃO PAULO – 01/06/2020.

O vencedor do Prêmio Nobal da Paz Muhammad Yunnus vê a crise causada pelo coronavírus como uma oportunidade para o mundo redesenhar o sistema econômico tradicional, que, segundo ele, havia colocado a humanidade em uma rota suicida.

“Tínhamos acabado de começar a década da última chance”, disse o economista em entrevista por email.

Segundo Yunus, o aquecimento global atingiu seu último estágio, e o aumento da desigualdade de renda se transformou em uma “bomba-relógio de raiva e desconfiança”.

Nascido em Bangladesh, país pobre da Ásia, Yunus ganhou notoriedade ao criar, em 1976, o Grameen Bank, instituição dedicada a emprestar recursos a pequenos empreendedores de baixa renda.

Por essa iniciativa, recebeu a alcunha de “pai do microcrédito” e foi laureado —ao lado do banco que fundou— com o Nobel da Paz em 2006, pelo seu papel no combate à pobreza.

Depois disso, uma tentativa de entrar para a vida política colocou Yunus em choque com Sheikh Hasina, atual primeira-ministra de Bangladesh. O economista preferiu não comentar o tema na conversa com a Folha.

Afastado do Grameen desde 2011, Yunus, que fará 80 anos em junho, dedica-se a outros empreendimentos, inclusive no Brasil, onde é sócio da Yunus Negócios Sociais.

O economista disse que seu sonho no país é criar um empreendimento social numa zona “desmilitarizada de intenções agressivas” na Amazônia.

Para Yunus, o mundo espera que o Brasil exerça uma maior liderança em assuntos globais.

Recentemente, participou, ao vivo de Bangladesh, do debate “No going back talks”, promovido pela instituição no Brasil para discutir o mundo pós-pandemia. O evento foi acompanhado por 6.000 pessoas, segundo os organizadores.

O sr. escreveu recentemente que a crise do coronavírus é uma oportunidade para que o mundo se reinvente. O que precisa ser reinventado? 

Antes de essa crise começar, a contagem regressiva para o fim da sobrevivência humana neste planeta já havia começado. Tínhamos acabado de começar a década da última chance. O aquecimento global atingira seu último estágio. A concentração de riqueza chegou a um nível tal que tornou o mundo uma bomba-relógio de raiva e desconfiança.

A inteligência artificial ameaçava criar desemprego em massa. Nós estávamos nos aproximando rapidamente da linha final. A pandemia nos salvou de tudo isso, levando o sistema à paralisia. Criou uma tremenda oportunidade para nos distanciarmos da rota suicida dos dias pré-coronavírus e criarmos um novo mundo livre de todos esses perigos.

O que sugiro é a criação de um novo tipo de negócio que contrabalance o antigo. Um modelo que seja exclusivamente dedicado a solucionar os problemas das pessoas e que não gere lucro para seus donos. É o que chamamos de negócio social.

Mas houve desenvolvimentos positivos também nas últimas décadas?

A tecnologia mudou tudo e estará por trás das mudanças do futuro. Mudou os jovens, tornando-os mais independentes e empreendedores. Graças à tecnologia da comunicação, as distâncias desapareceram. A inteligência artificial está mudando os sistemas de saúde dramaticamente.

Mas a tecnologia também desempenha papéis negativos. Tem ajudado a falsidade a competir com a verdade. A inteligência artificial tem ameaçado a própria existência humana neste planeta. Continua a viabilizar a produção de armas de destruição em massa.

No balanço geral, o mundo vinha se tornando pior?

Podemos fazer uma lista impressionante de coisas que conquistamos para o planeta e as pessoas. Evitamos o holocausto nuclear e a Terceira Guerra Mundial. Conquistamos o espaço. A economia global cresceu a um ritmo sem precedentes. Houve conquistas impressionantes na saúde e na educação. A tecnologia transforma o mundo rapidamente. Todas essas conquistas ainda vão longe.

Mas, enquanto nos orgulhamos delas, simultaneamente, temos de reconhecer que empurramos o mundo ao limite de sua sobrevivência. Todas essas conquistas se tornam sem sentido diante de todas as ameaças. Levamos o mundo a um estágio em que nossos adolescentes são obrigados a nos culpar por privá-los da vida deles.

Uma questão que surge naturalmente é: quem nos dá o direito de destruirmos o futuro das nossas futuras gerações? Não temos resposta aceitável.

Não podemos negar que esse feito é nosso. Mas o ponto importante é que podemos desfazer isso e criar um mundo de felicidade perpétua. É uma questão de escolha. Mas não estamos fazendo essa escolha. Por quê? Isso me intriga.

A desigualdade de renda aumentou, mas a pobreza caiu bastante. Isso é positivo? 

Claro que sim. É uma das conquistas mais gloriosas. Não devemos minimizar sua importância. Milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza em tempo recorde, mas elas continuam muito próximas dela. Sua vulnerabilidade aparece agora novamente durante a pandemia da Covid-19. De repente, elas voltam para baixo da linha da pobreza.

Esse sobe e desce não pode ser uma solução sustentável. Elas não merecem isso, para começar. São seres humanos tão criativos como todos os outros. A pobreza não foi criada por elas. É o sistema econômico que cria e sustenta a pobreza. A pobreza torna a injustiça da máquina econômica visível. Ela é facilmente visível porque é muito cruel.

Como a crise do coronavírus incentiva a reinvenção da economia?

Esta crise criou uma oportunidade enorme porque derrubou o sistema atual. Quando uma cidade grande é, inesperadamente, atingida por um terremoto e é totalmente destruída, ela cria a oportunidade para reconstrução a partir do zero. Devemos construir uma cidade como a antiga ou desenhá-la de forma totalmente diferente? É exatamente essa pergunta que precisamos nos fazer agora.

A crise do coronavírus cria uma oportunidade, não um incentivo. O incentivo vem da nossa experiência do mundo pré-corona, quando debatíamos quanto tempo o mundo ainda tinha antes de atingir sua linha final. Era o incentivo para mudar drasticamente e escapar do desastre iminente, que se tornava mais forte a cada dia. Mas havia poucas oportunidades. Agora, a crise cria uma megaoportunidade.

O sr. já identificou mudanças positivas na sociedade desde a eclosão dessa crise?

Nosso principal objetivo é redesenhar o motor econômico que nos trouxe a esse ponto. Temos de criar um mundo que garanta zero emissão líquida de carbono, zero concentração de riqueza, zero desemprego.

No processo de redesenho, temos de fazer o seguinte: o novo sistema começa com mudanças conceituais, fazendo todo negócio que visa ao lucro se tornar social e ambientalmente responsável. O lucro a todo custo não será mais permitido. O sistema novo introduzirá o negócio social.

É quase o inverso dos negócios convencionais. Em vez de maximização de lucros, ele trabalha com zero lucro pessoal. É dedicado a solucionar os problemas das pessoas. Esses negócios sociais têm de estar no centro do nosso novo mundo. Diremos aos jovens que eles não são caçadores de empregos, mas criadores de empregos, empreendedores.

O novo sistema redesenhará todo o sistema financeiro, tornando-o, majoritariamente, baseado em negócios sociais, garantindo que todos os serviços financeiros estarão disponíveis aos 50% dos homens e mulheres da parte inferior da pirâmide social.

Todos os desempregados receberão ativos para começar suas empresas. O sistema educacional será redesenhado para preparar os jovens para começar suas vidas como empreendedores.

Como os governos podem ajudar nesse redesenho? 

O papel dos governos é inspirar e mobilizar os indivíduos e envolver os negócios na construção de outros negócios sociais focados em solucionar os problemas das pessoas; ajudar a criar empreendedorismo entre os jovens; dar apoio legal e regulatório. Sua principal responsabilidade será remover barreiras legais e regulatórias para a criação de novas instituições financeiras e novos negócios.

Com base em sua experiência com a Yunus Negócios Sociais no Brasil, quais são as principais barreiras à inovação no país?

Yunus Negócios Sociais no Brasil enfrenta os mesmos problemas que em outros países. Os sistemas financeiros são construídos para propósitos diferentes dos nossos. O sistema legal, institucional, não foi desenhado para atender os 50% da base, aqueles que realmente precisam de acesso a linhas de crédito para suas iniciativas. Mas não desistimos. Sabemos que o futuro está do nosso lado.

Uma de nossas conquistas no Brasil indica isso. Com apoio do escritório Mattos Filho Advogados e sua sócia Marina Procknor, nosso time criou um fundo de investimento inovador que serve exclusivamente a negócios sociais. Sete investimentos já foram feitos, em setores como educação, reflorestamento e construção.

Continuamos a perseguir nosso projeto dos sonhos no Brasil, que visa à criação de uma empresa social brasileira para transformar um pedaço grande da floresta amazônica numa área protegida de incêndios e outros ataques, criando qualidade de vida para as famílias que morem nessa área. Convidamos empresas brasileiras e internacionais a juntarem-se a nós nesse projeto.

Nosso desejo é fazer desse negócio social uma “zona desmilitarizada” em que todos trabalhem juntos por um propósito comum, não importa o quão antagônicas sejam suas ideias fora dela. Todas as armas e intenções agressivas seriam deixadas de fora dessa zona. Precisamos da ajuda de vocês, brasileiros, para identificar uma área apropriada para esse projeto.

Que aspectos positivos vocês destacariam com base na experiência no Brasil?

Brasil se tornou um poder econômico e social, se transformou muito rapidamente. Ganhou respeito global por suas conquistas, se tornou um líder em transformação social. O mundo acompanha os passos do Brasil com enorme interesse. Debates políticos e sociais do Brasil são de grande interesse para o mundo.

Mas eu tenho a impressão de que o Brasil não está muito ciente de sua influência global. Espero que se torne mais envolvido com o resto do mundo e ofereça a liderança que o mundo espera de vocês. Isso beneficiará ambos os lados.

 

“A ‘economia donut’ satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta”, Entrevista com Kate Rayworth.

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Para Kate Rayworth (Londres, 1970), a economia deveria ter a forma de um donut, de uma rosquinha. Esboçou uma teoria que rompe com o mercado da forma como é hoje. Propõe deixar de buscar riqueza à custa dos limites ambientais e da justiça social. Sua teoria foi apresentada como um documento de trabalho para Oxfam, em 2012, depois conquistou protagonismo na Assembleia Geral da ONU e foi uma referência para o movimento social Occupy London.

Defende uma transição da que chama economia do século XX para a do século XXI, na qual o PIB, um índice finito, seria substituído por uma rosquinha que relaciona as necessidades humanas com o impacto ambiental da economia na sociedade e na Terra como ente vivo.

A entrevista é de Belén Kayser, publicada por Rebelión, 16-05-2020. A tradução é do Cepat. Publicado no Brasil 20/05/2020.

Nota do Instituto Humanitas Unisinos IHU: Amanhã, quinta-feira, Kate Raworth proferirá a conferência ‘Designing a regenerative and distributive economy‘ promovida por A Economia de Francisco. On-life seminars. Moving towards a post-Covid better World.

Estudou economia, mas não se sente economista. Por quê?

Defino-me como uma economista renegada e me parece razoável. Acredito no conceito grego de economia como a arte de administrar o lar. A Universidade deveria reconhecer que o sistema de produção e distribuição depende da sociedade e do mundo vivo, onde está integrado, e da saúde de ambos. A economia é interdependente da saúde e dos recursos do planeta, são as fontes às quais recorre. Todos os economistas deveriam repensar os indicadores do mundo em que vivemos e questionar como lidamos com os nossos recursos planetários. Isto deveria ser o ponto de partida: a natureza é inerente à economia.

O que quer dizer, quando pede para abandonar a concepção do século passado?

Nos anos 1870, os economistas fizeram uma analogia entre as leis do movimento de Newton e a economia: assim como a gravidade atraía coisas para ela, os preços iriam atrair a economia para o equilíbrio. O problema é que, enquanto a ciência avançou, a economia ficou no século XIX. Se a questão é administrar seu lar, primeiro você precisa entender como funciona. Aprender da psicologia, da neurociência, da sociologia, da antropologia e da ciência terrestre. É preciso colocar à frente o bem-estar humano e planetário e a saúde de ambos. O indicador do crescimento é o PIB, mas deveria ser a prosperidade humana. É preciso traçar que tipo de mentalidade econômica, instituições, políticas e estruturas são necessárias para isso.

Propõe uma nova estrutura em forma de ‘donut’. O que significa?

É um diagrama que almeja condensar o salto do velho para o novo pensamento econômico. O desafio é criar economias locais e globais que levem a todos o espaço seguro e justo do donut [o anel principal, por baixo do qual estão as carências do sistema e, por cima, os excessos]. Em vez de perseguir um PIB cada vez maior, é hora de descobrir como prosperar de forma equilibrada. A economia donut satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta. Que tipo de economia do século XXI poderá fazer isto?

Por que é tão importante o meio ambiente em seu sistema?

O bem-estar humano depende da terra viva. Se quisermos ter comida suficiente, precisamos de solos férteis e um clima estável. Se quisermos viver de forma saudável, precisamos de ar limpo e uma camada de ozônio. Nosso bem-estar depende dos sistemas que suportam a vida na Terra. Estes foram mal compreendidos no século passado e deixados à margem da teoria econômica. É hora de colocá-los no centro de nossa visão de bem-estar.

Como sua teoria propõe repartir a riqueza?

É preciso pré-redistribuir as fontes de crescimento e de conhecimento. Por exemplo, auxiliar para que a propriedade seja distribuída, compartilhada, com energias renováveis, e que as comunidades sejam proprietárias. O crescimento das licenças de código aberto é um conhecimento de forma distributiva. Em relação à moradia, apoiar um modelo mais distributivo, por exemplo, mediante cooperativas. A reforma é profunda. Mais que confiar na redistribuição de renda, é preciso pensar em instituições mais distributivas e pensar em como criar uma economia com tecnologia, com desenho.

Em que a gestão centralizada e a distributiva se diferenciam?

Pensemos na energia fóssil: era extraída, refinada e vendida. Isso era uma gestão centralizada nas mãos de uma empresa que possui os direitos de uma exploração e que gere tudo. No caso da energia, a distribuição por desenho seriam as pequenas estações solares de uma casa. No século XX, a propriedade se tornou muito importante, um campo de batalha entre companhias, com suas patentes e a propriedade intelectual. Haviam boicotes para que a inovação não crescesse. Hoje, temos creative commons, licenças de uso coletivas e padrões abertos, outra forma de distribuição por desenho. Em matéria de instituições, é possível aplicar o mesmo modelo e mudaria seu comportamento.

Como deveríamos mudar, então, a forma de fazer negócios?

Perguntando-nos: Por que uma companhia pode explorar os recursos da Terra com a bandeira de conseguir lucros e aumentar as vendas? Por que tem o direito de minar os direitos sociais? O desenho das empresas do século XXI precisa gerar valor social, ambiental e cultural, compartilhar e beneficiar a criação conjunta e a devolver ao planeta do qual dependemos. Então, rapidamente as empresas velhas ficarão realmente velhas, caducas, não terão lugar. Mas, cuidado, há empresas que querem repensar seus modelos e podem ocorrer casos como a da mal chamada economia colaborativa: que sejam negócios de antes, com o disfarce novo.

Você não acredita na economia compartilhada?

As mudanças de modelo, tecnológicas e de uso sempre trarão consigo possibilidades muito distintas, mas a palavra compartilhar implica outras coisas mais humanas e profundas na natureza. Nunca chamaria o Airbnb de economia compartilhada. Isto é microcapitalismo, continua sendo aluguel, não é compartilhar, ainda que o termo esteja tão ampliado. A tecnologia nem sempre defende distribuir de forma igualitária os recursos. A rede, por exemplo, está dominada pelo Facebook, EbayGoogle… bem poucas empresas levam a vantagem das redes em que estão.

A Internet retrocedeu?

A Internet 2.0 se tornou algo muito concentrado, mas nem sempre foi assim. A Internet 1.0 abrigava redes mais autênticas, com mais valor. Estamos nos inícios da Internet 3.0. As pessoas estão começando a reagir, a se rebelar contra tudo, a entender os efeitos negativos dessas redes, dessa Internet. Preocupam-se com a privacidade, os preços dos aluguéis… A Internet terá um valor diferente se formos capazes de criar, de ter outro tipo de redes de colaboração: menores, melhor conectadas entre si e não dominadas pelos grandes da Internet.

Como acontecerá a transição?

Haverá velhos agentes que se transformarão para fazer parte do novo sistema, mas será difícil. Por exemplo, o redesenho concebido pelo donut consiste em que as companhias poderiam começar a vender serviços em vez de produtos: iluminação em vez de lâmpadas.

Que exemplos você conhece que estão neste novo paradigma?

O diretor executivo de Unilever, Paul Polman, está tentando reinventar a companhia, dar a ela um propósito do século XXI, mas segue nas mãos do mercado, negocia na bolsa, continua sendo regido pelo curto prazo. Patagonia é uma empresa que de base possui um sistema distinto, que trabalha para mudar o sistema em que vivemos. Yvon Chouinard (1938, Lewiston) a fundou sobre valores realmente ambientais – é alpinista e ecologista –, é assim na filosofia da marca. Ou Houdini, fundada com base dos limites planetários.

As empresas podem pensar que seu sistema não é possível ser aplicado ao mundo em que vivemos, onde quase tudo é extrativo ou tem obsolescência. Eu falo também em minha teoria da ética. Suponho que não é muito ético fabricar algo que você sabe que irá quebrar.

As pequenas empresas têm maiores possibilidades de se transformar em empresas do século XXI?

É certo que as startups, a priori, têm maiores possibilidades de mudar suas estruturas ou de nascer com um modelo de negócio mais circular, mas quando falo com elas, o que mais repetem é que precisam crescer. É o que mais lhes importa. Nisso está baseado seu modelo. Todas estão competindo no mesmo terreno, ainda que às vezes em mundos paralelos. Você pode centrar seus esforços em ser sustentável e regenerador, mas em última instância depende da estrutura da companhia. Obter o maior retorno e lucros possíveis deve deixar de ser a meta. E a base deve ser a proteção ambiental, não pode ser algo acessório.

Não é partidária de frear os abusos ambientais com impostos. Por quê?

Os impostos, as cotas e os preços escalonados podem contribuir para aliviar a pressão que a humanidade exerce sobre as fontes da Terra, mas são insuficientes. As empresas exercem pressão para atrasar sua execução ou para reduzir os tipos fiscais, obter bonificações… Os Governos cedem porque temem que seu país possa perder competitividade ou que seu partido perca votos. As cotas e impostos que limitam as existências e reduzem os fluxos de poluição pretendem mudar o comportamento de um sistema, mas são alavancas de baixa influência. Quando a indústria é de fabricar, usar e jogar, os incentivos não evitam que os recursos se esgotem. O que se necessita é um paradigma de desenho regenerativo que mude as empresas.

E por onde começamos?

Por exemplo, para retirar do mercado os plásticos de apenas um uso e os produtos com obsolescência, é preciso criar um ecossistema de materiais diferente do que temos e pelas mãos das empresas. Algumas companhias têm em suas fábricas alguns dos engenheiros e desenhistas mais engenhosos e brilhantes, estou certa de que existiriam desenhos mais efetivos, se fosse o seu objetivo. É preciso pensar que todos os materiais, sejam biológicos ou técnicos, sejam metais, fibras que não se decompõem naturalmente, devem ser desenhados para ser reutilizados ou reacondicionados e, em última instância, reciclados.

Olhe, por exemplo, os telefones móveis: em 2010, só foram reutilizados 6%, 9% foram desmontados para reciclar e 85% foi para o lixo. É preciso outro desenho.

O ‘donut’ acabará com a desigualdade?

Das emissões poluentes, 45% partem da demanda de 10% da população. Existe uma enorme diferença no uso que se faz dos recursos planetários. Um dos principais propósitos do donut é criar uma economia regeneradora e reduzir esta brecha. Eliminar os extremos no bem-estar. E uma das razões pelas quais insisto tanto nos limites planetários é a mudança climática. Sei que é um projeto muito audaz para o século XXI, mas é precisamente este o tipo de projeto que devemos abordar, porque não podemos deixar este legado aos que vierem depois e aos filhos destes. E devemos nos sentir orgulhosos de colocá-los como meta.

 

 

Peste Negra reduziu desigualdades mas o coronavírus vai aumentá-las, diz historiador Walter Scheidel

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Professor da Universidade de Stanford, o pesquisador austríaco lança no Brasil livro sobre a história da desigualdade e fala sobre o impacto da covid-19 no mundo

André Cáceres, O Estado de S.Paulo

23 de maio de 2020

Peste, guerra, fome e morte. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse podem ter significados variados a depender da crença de cada um, mas para o historiador austríaco e professor da Universidade de Stanford Walter Scheidel essas condições significam uma coisa ao longo dos séculos: redução das desigualdades econômicas.

Em seu mais recente livro, Violência e a História da Desigualdade – Da Idade da Pedra ao Século 21 (ed. Zahar), Scheidel defende que o nivelamento das rendas só se deu, em toda a história humana, por meio dessas grandes catástrofes, que ele chama de Quatro Grandes Niveladores — uma dos poucas exceções, de acordo com o pesquisador, foi a América Latina nos anos 2000, que reduziu disparidades por métodos pacíficos e democráticos, mas esse processo não se provou duradouro.

Scheidel utiliza-se de farta documentação histórica para demonstrar como as guerras, epidemias, crises e revoluções foram eventos niveladores. Após a Peste Negra, por exemplo, o contingente de trabalhadores ficou tão reduzido que a mão-de-obra tornou-se valiosa ao ponto de reduzir as injustiças sociais durante vários séculos. Mas esse tipo de nivelamento não deve acontecer, segundo ele, após a atual pandemia de covid-19.

Há alguma perspectiva de que a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus traga efeitos similares de redução de desigualdades ao das grandes epidemias do passado?

Estou muito cético quanto a isso por várias razões. O maior motivo é que a atual pandemia será muito menos severa em termos de mortalidade do que as grandes pestes do passado. Mesmo no pior cenário, a mortalidade será muito menor, em termos de porcentagem da população, e deve afetar ainda menos a força de trabalho, porque a maioria das vítimas são pessoas mais velhas. Salários não devem subir como resultado dessa pandemia, porque a mão-de-obra não se tornará escassa. Então esse efeito não deve aparecer desta vez. Há uma grande quantidade de motivos para crer que a pandemia deve aumentar em vez de reduzir a desigualdade, pelo menos a curto prazo, o que já estamos testemunhando. Há certos grupos de pessoas que estão relativamente protegidas, seus empregos estão seguros, eles podem continuar a trabalhar, e outras pessoas que estão muito mais expostas em determinados setores ou perdendo seus empregos. Então o desemprego está mal-distribuído pela população, como resultado disso a disparidade deve aumentar. Você a vê entre crianças e estudantes, alguns capazes de estudar online e outros sem acesso a esses recursos, e isso deve aumentar as injustiças educacionais também. Na crise de 2008, os ricos perderam inicialmente porque o valor de seus investimentos decaiu, mas eles os recuperaram em um período razoavelmente curto de tempo. Já se vê tendências semelhantes nas bolsas de valores, que não estão indo tão mal, então há uma boa chance que, mais uma vez, os ricos se recuperem mais rapidamente que a maioria da população. Isso deve aumentar a desigualdade. Então ainda que haja algum potencial de nivelamento, isso depende de como políticos, legisladores e eleitores responderão a essa crise e seus efeitos. Qualquer tipo de ruptura tem o potencial de balançar as coisas, e um resultado possível disso é que mais pessoas abracem políticas progressistas de redistribuição de renda, oferecendo mais proteção social e acesso à saúde aos trabalhadores ou aumentando impostos para os ricos. Isso é uma possibilidade, e certamente haverá partidos políticos que tentarão converter a crise em uma motivação para esses programas, mas também haverá uma resistência conservadora considerável, e, no longo prazo, dependerá de quem tem a vantagem. Não é algo que será decidido este ano, mas deve se arrastar por vários anos.

O mundo contemporâneo parece estar repleto de guerras, revoluções, crises e epidemias, mas por que não vemos esse efeito acontecer novamente hoje em dia?

Há muitas guerras, revoluções e epidemias hoje, isso é verdade em certa medida, mas se compararmos com grandes rupturas do passado, o que estamos vivendo atualmente no mundo não chega perto da magnitude do que já passamos. Apenas guerras muito grandes, como as mundiais, reduziram as desigualdades na Europa, América ou Ásia. O fato de a América Latina nunca ter passado por nada como as guerras mundiais ajuda a explicar por que sua disparidade ainda é muito alta. Nunca houve rupturas realmente violentas. O mesmo é verdadeiro para revoluções, não temos nenhuma grande revolução desde a maoista e suas derivadas em meados do século 20. Estados não entram mais em colapso. Eles eventualmente caem em certas partes do mundo, como a África Central e o Oriente Médio, mas em nenhum outro lugar, nem mesmo na Venezuela nesse momento, pelo fato de os Estados serem muito mais resilientes do que eles costumavam ser. E essa pandemia é muito menos severa do que a Gripe Espanhola há um século ou as grandes pragas do passado. Então eu acho que depende muito do quão grave e disruptivo um evento de crise é. Tenho pensado muito sobre isso, porque eu falo em meus livros sobre os quatro grandes niveladores, e eu acho que no mundo temos hoje quatro grandes estabilizadores, que previnem deslocamentos mais traumáticos (que poderiam ter um efeito de redução de desigualdade) de ocorrer. Um é que boa parte do mundo é muito mais rica do que era, o que evita colapsos sociais ou guerras civis, muito mais comuns no passado. O segundo são as redes de seguridade social, que, claro, estão desenvolvidas desproporcionalmente em diferentes partes do mundo, mas mesmo no Brasil há algum grau de segurança que não havia antes, e isso é ainda mais evidente em outros países, evitando que a pobreza chegue a níveis que façam as pessoas se radicalizarem. Também há a habilidade de bancos centrais criarem dinheiro para manter a economia girando, o que não era possível na década de 1930, por exemplo, durante a Grande Depressão, o que provocou um resultado muito diferente. E o quarto fator consiste na ciência moderna e na tecnologia, que ajudam a estabilizar a ordem existente, seja o fato de podermos trabalhar remotamente pela internet, o que não poderíamos fazer há dez ou vinte anos, ou o fato de sermos capazes de sequenciar o RNA do vírus em apenas algumas semanas e termos mais de uma centena de medicamentos ou tratamentos em teste pelo mundo. A ciência é hoje tão poderosa que tem o potencial de nos levar para fora dessa crise em relativamente pouco tempo. E se ela o fizer, então a ordem é novamente estabilizada. Então essa é uma resposta bem longa para a questão de por que não há grandes rupturas hoje como havia no passado. Sociedades, economias e tecnologias evoluíram de modo a manter a ordem existente. Quanto maior a estabilidade, mais a disparidade é favorecida, porque há menos pressão por mudanças. É isso que essencialmente vemos desde o fim da guerra fria, cada vez mais, então creio que a perspectiva de qualquer transformação radical por meio de grandes rupturas está ficando cada vez menos provável.

O sr. menciona brevemente a América Latina dos anos 2000 como um caso bastante único de redução de desigualdades sociais sem grandes choques ou rupturas, mas boa parte das conquistas sociais obtidas no início do século foram se perdendo nos últimos anos. O que o caso latino-americano pode nos dizer sobre desigualdade social no século 21?

O caso latino-americano é fascinante, porque, como eu disse, não houve grandes choques na história recente, o que explica que a desigualdade, que é historicamente alta por conta do colonialismo e outros fatores, tenha se mantido elevada durante o século 20, enquanto reduziu em outras partes do mundo. E depois de 2000 vemos muitos países experimentarem uma redução pacífica de injustiças, o que foi muito interessante, porque parece um contraexemplo à minha tese, de que rupturas violentas são necessárias para que isso ocorra. O que houve na América Latina nesse período foi o resultado de uma combinação incomum de circunstâncias favoráveis. Houve alguma recuperação de crises econômicas anteriores, uma forte desregulamentação nos anos 1990, abrindo as economias para o mundo, mais investimento em educação, transformações políticas e a explosão das commodities na China, então as exportações cresceram e beneficiaram determinados setores da população. E todos esses fatores se alinharam na medida certa para reduzir a disparidade, não drasticamente, mas de forma significativa. E não estava claro naquela época se esse processo era sustentável e poderia se manter por muito tempo. E ele não pôde. Primeiro por causa da guinada econômica no início dessa década, e também por conta da reação política de forças conservadores para derrubar os proponentes de mudanças progressistas no Brasil e em outros países. E, é claro, houve locais em que os próprios progressistas se radicalizaram, como na Venezuela e no Equador, e houve reação política contra isso. Então há muitas razões para explicar por que esse processo não pôde ser sustentado pelos últimos anos, e agora a situação é ainda pior, porque a atual crise deve amplificar esses problemas. Eu não tenho esperanças de ver uma nova redução de desigualdades na América Latina em um futuro próximo, graças às consequências da crise do coronavírus.

É possível haver no futuro mecanismos que favoreçam cenários pacíficos de redução de desigualdades?

É possível teoricamente, mas não parece acontecer muito na prática, então seria ao menos muito difícil. Não é que as pessoas nunca reduziram a disparidade por meios pacíficos, não está limitado ao exemplo latino-americano. Tem acontecido em pequenas proporções por todo o mundo. É possível, mas nunca ocorre em grande escala. Então, se o que você estiver procurando é uma redução maciça da desigualdade em um período curto de tempo, você vai precisar de um choque violento. Se você colocar suas esperanças em mudanças políticas pacíficas, a transformação será gradual e mais lenta, e por isso enfrenta um grande risco de ser desarmada por obstáculos como crise econômica, reação política e outros fatores que interferem nesse processo e o tornam muito mais difícil. Dito isso, há sociedades no mundo que são tão injustas hoje que não é preciso muito esforço para reduzir um pouco de sua disparidade. Se você vive na Suécia, não há muito o que se pode fazer, porque a desigualdade já é muito baixa. Mas se você vive no Brasil, na África do Sul ou nos Estados Unidos, há medidas que se pode tomar pacificamente que teriam um efeito real e não seriam terrivelmente radicais ou dramáticas. E a melhor chance que temos é que tais medidas sejam identificadas e implementadas. Certamente temos um modelo no que ocorreu na América Latina nos anos 2000.

Existe um ponto de equilíbrio no nível de desigualdade de um país que, se atingido, impede ela de voltar a crescer a níveis prejudiciais?

Pode ser que o nível de equilíbrio varie entre países. Nem todos os países são iguais. Se você olhar para países nórdicos que são, ou costumavam ser, muito homogêneos em termos de sua população, poderia ter sido mais fácil há 50 anos estabelecer Estados de bem-estar social altamente redistributivos. Se você vive em sociedades como o Brasil, a África do Sul e os EUA, que são muito mais heterogêneos e diversos, onde há legados de racismo e todo tipo de iniquidade estrutural, o ponto de equilíbrio da desigualdade pode simplesmente ser mais elevado. Talvez não seja possível baixá-lo a níveis escandinavos por causa da maneira pela qual a sociedade está estabelecida. Não quer dizer que seja impossível reduzir disparidades, mas talvez seja necessário ajustar as expectativas do que é politicamente ou socialmente viável em cada contexto. Essa é uma ótima questão que ainda não foi estudada o suficiente, porque não basta apontar para a Dinamarca e perguntar por que não somos como eles, isso não ajuda em nada. Deve-se levar em consideração todas as variáveis. Então a pergunta é: “Qual é o nível realista de desigualdade para o Brasil dadas condições que não mudarão do dia para a noite ou em nossos tempos de vida? O que pode ser conquistado nesse contexto?” Certamente haverá algo a ser feito, apenas não na mesma escala de outros países.

 

 

A economia mainstream sobreviverá à pandemia?

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Economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas

Folha de São Paulo, 20/05/2020

Marília Bassetti Marcato

 Uma das principais lições da pandemia do novo coronavírus é o risco de eleger lideranças que tenham como hábito ignorar as evidências.

Atualmente, sabemos que idosos e pessoas de qualquer idade com sérias condições médicas subjacentes correm risco maior de contrair doença grave por causa da Covid-19. Pessoas com doença pulmonar crônica ou asma de moderada a grave, pessoas com problemas cardíacos, pessoas imunocomprometidas, pessoas que transplantaram órgãos, pessoas de qualquer idade com obesidade grave, pessoas com diabetes, pessoas com insuficiência renal ou doença hepática. Pessoas.

Os economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas. Historicamente, eles buscaram artificialmente se separar de outros campos de estudo, isentando-se da exigência de testabilidade empírica tão cara às ciências “duras”. Nesse tortuoso caminho, a economia neoclássica parece ter invertido o objetivo da pesquisa científica de descobrir a realidade sob a aparência, assumindo a forma de uma estrutura analítica cada vez mais formalista, axiomática e dedutiva.

Um “indivíduo sem individualidade” costuma assustar àqueles que não possuem treinamento fornecido em graduações de economia. Em pouco tempo, o aspirante a economista entende que é preciso fazer sacríficos para gerar soluções. Assim, não são incomuns análises econômicas que eliminam o tempo e o espaço, sem qualquer referência às evidências empíricas.

O prodigioso reducionismo da economia neoclássica estabeleceu conceitos e aparato técnico fundamentais para expandir a influência da economia para outras ciências sociais. Segundo Ben Fine e Dimitris Milonakis em “From economics imperialism to freakonomics”, essa característica reducionista teria um caráter triplo. Primeiro, o reducionismo do indivíduo constitui o principal elemento analítico (com o coletivo a partir da simples agregação de indivíduos). Segundo, a economia é reduzida às relações de oferta e demanda de mercado. Por fim, a análise econômica seria baseada em princípios sem apego à história.

Se o mundo real é profundamente diferente, este não parece ser um problema. Para os preocupados com o irrealismo das suposições, Milton Friedman deu a palavra de ordem metodológica: “Não se preocupem com as suposições, apenas observem suas consequências”. Pouco importa se todos os empresários buscam ou não maximizar seus lucros, o que importa é que tudo deve ocorrer como se os mesmos se comportassem de tal forma.

Mas o que restará da economia mainstream após a pandemia?

É certo que se ocupar de problemas concretos é uma virtude rara no meio da ciência econômica dominante, uma vez que não é de hoje que a dita ciência triste escolhe tratar de tópicos com menor probabilidade de suscitar questões de importância fundamental. Mas momentos de crise como o atual incitam perguntas fundamentais sobre a relação entre Estado e mercado que parecem desafiar a nossa compreensão.

A pandemia reforça a necessidade de repensar dogmas sobre o funcionamento da economia. Não há como separar a economia da sociedade e é, portanto, falsa a noção de que o arranjo econômico pode ser analisado independentemente dos processos de saúde pública e das interações sociais. Com isso em mente, não é preciso muito para identificar o descaramento dos sociólogos de mercado brasileiros quando comemoram que o pico da doença nas classes altas já passou.

No entanto, persiste a incapacidade da economia mainstream de considerar o funcionamento e a dinâmica dos sistemas econômicos em seus modelos abstratos e com amnésia histórica. Se todos somos keynesianos em momentos de crise, supor que o mercado é uma máquina autorreguladora certamente contém “um elemento de verdade, um elemento de má-fé e também algum engano” (salve, Braudel!).

Mas há uma esperança. Se a arrogância —traço tão comum aos economistas mainstreams— der lugar ao reencontro da ciência econômica com as demais ciências, em especial as sociais, é possível que os cálculos de quanto vale uma vida sejam deixados de lado.

Caso contrário, caberá à desconfiança popular decretar a morte da ciência econômica antes que a ciência econômica mate o povo.​

Marília Bassetti Marcato

Professora do Instituto de Economia da UFRJ

 

 

Deveríamos ajudar os trabalhadores, não matá-los

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 Auxílio-desemprego: uma história de sucesso que não é celebrada

Folha de São Paulo, 19/05/2020 –

Paul Krugman

Até onde sei, a maioria dos epidemiologistas está horrorizada com a corrida dos Estados Unidos para reabrir sua economia, e abandonar boa parte do distanciamento social que ajudou a conter a Covid-19.

Sabemos o que uma reabertura segura requer: um nível de contágio baixo, testes abundantes, e a capacidade de rastrear e isolar rapidamente os contatos de novos casos. Até o momento, não temos qualquer dessas coisas.

É claro que os epidemiologistas podem estar errados. Mas em cada estágio da crise, eles estiveram certos, enquanto as previsões dos políticos e seus asseclas quanto a um fim rápido da pandemia se provaram absolutamente incorretas. E se os especialistas estiverem certos mais uma vez, a abertura prematura pode resultar em centenas de milhares de mortes –e gerar resultados adversos mesmo em termos econômicos, já que uma segunda onda de infecções poderia nos forçar a voltar ao confinamento.

Assim, de onde vem essa pressão pela reabertura?

Parte dela vem dos malucos da direita. Apenas uma pequena minoria de americanos acredita que a liberdade inclui o direito de colocar vidas alheias em risco (e é isso que congregar grandes grupos de pessoas em meio a uma pandemia causa); que usar uma máscara seja antipatriótico, ou efeminado, ou algo assim; que a Covid-19 seja uma trapaça perpetrada pelos progressistas. Mas essa minoria tem imensa influência dentro do Partido Republicano.

Parte da pressão vem da obsessão de Donald Trump com o mercado de ações. Sua recusa inicial a fazer qualquer preparativo para a pandemia aparentemente se devia à preocupação de que reconhecer a ameaça, de qualquer maneira que fosse, “assustaria o mercado”. E a pressão pela reabertura pode refletir uma convicção semelhante de que voltar à vida normal seria bom para o mercado, mesmo que mate muita gente. Vamos morrer pelo índice Dow Jones!

Uma coisa que ouço com frequência é que devemos reabrir pelo bem dos trabalhadores, que precisam voltar a ganhar salários a fim de colocar comida na mesa para suas famílias. Por isso é importante compreender que esse é realmente um péssimo argumento.

Pois os Estados Unidos são perfeitamente capazes de proteger contra dificuldades econômicas severas os trabalhadores que perderam o emprego. Como disse Jerome Powell, o chairman do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, em uma entrevista televisada domingo, podemos e devemos adotar políticas que “mantenham os trabalhadores em suas casas, permitam que continuem pagando suas contas e mantenham suas famílias solventes”.

E o que realmente surpreende é que já estamos fazendo boa parte disso. A Lei CARES, o pacote de US$ 2 trilhões em assistência contra a pandemia aprovado no final de março, expandiu substancialmente a elegibilidade para o auxílio-desemprego e a generosidade desse auxílio. E os benefícios expandidos, a despeito de alguns tropeços iniciais, estão cada vez mais fazendo o que necessita ser feito.

É verdade que quando as solicitações de auxílio-desemprego começaram a disparar, em março, os escritórios que distribuem os benefícios – administrados pelos governos estaduais– ficaram sobrecarregados, o que levou muitos americanos que tinham direito a benefícios a não conseguir atendimento. E muitas famílias ainda não estão recebendo a assistência a que teriam direito.

Mesmo assim, um estudo da Brookings Institution indica que em abril o desemprego-desemprego cobriu cerca de metade dos salários perdidos por conta do confinamento –uma estimativa que confirma meus cálculos caseiros.

E esse “índice de substituição” deve quase certamente ter crescido de forma substancial nas últimas semanas. Os escritórios que administram o auxílio-desemprego estão gradualmente eliminando os atrasos acumulados no atendimento dos pedidos, e com isso o auxílio vem chegando a um número cada vez maior de trabalhadores desempregados. Ao mesmo tempo, as provas disponíveis indicam que os mercados de trabalho mais ou menos se estabilizaram, ao menos por enquanto, há cerca de um mês.

Por isso é uma aposta segura que, a esta altura, a maior parte, se bem que não toda, a perda de salários causada pelo distanciamento social esteja sendo compensada pela assistência governamental ampliada.

É uma história de sucesso que não está sendo celebrada; a maior parte da atenção da mídia se concentrou em outras partes da Lei CARES, especialmente o apoio às pequenas empresas, que está uma bagunça.

Mas o auxílio-desemprego, depois de problemas iniciais, está fazendo muito para ajudar os trabalhadores americanos. E o crédito por isso cabe aos democratas, que insistiram em que essa assistência fosse parte do pacote.

Suspeito que o sucesso do auxílio-desemprego ajude a explicar um aspecto chave da situação política com relação à reabertura –ou seja, que o clamor pelo fim das restrições não está vindo dos trabalhadores. As perdas de empregos se concentraram entre os trabalhadores de remuneração mais baixa, mas pesquisas de opinião pública indicam que a demanda por abertura rápida vem principalmente dos republicanos de alta renda.

Ou seja, fizemos um trabalho bem melhor do que a maioria das pessoas percebe em proteger os trabalhadores americanos contra dificuldades no período de confinamento. É claro que não foi um completo sucesso, e as primeiras semanas foram bem complicadas. Mas o fato é que o sofrimento foi bem menor do que se poderia esperar diante de um índice de desemprego real de provavelmente cerca de 20%.

Mas o auxílio-desemprego expandido que está apresentando resultados tão bons deve expirar em 31 de julho. Isso deveria causar medo.

Suponha que os epidemiologistas estejam certos, afinal, e que uma reabertura prematura leve a uma segunda onda de infecções. O que precisaremos nesse caso será de um segundo período de confinamento. Mas todas as indicações são de que os republicanos se opõem a prorrogar o auxílio.

O que eles querem, em lugar disso, são leis que isentem as empresas de responsabilidade legal caso seus empregados adoeçam.

Ou seja, querem forçar os americanos a voltar a trabalhar mesmo que isso os mate.

 

 

Vírus limitou tática de Trump de mudar a história quando convinha, afirma filósofo.

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Para Simon Critchley, pandemia é pior para líderes populistas como Bolsonaro e o presidente dos EUA.

Bruno Benevides – Folha de São Paulo, 17/05/2020

A pandemia de coronavírus está aumentando a importância das nações ao redor do mundo —e isso, paradoxalmente, pode prejudicar líderes de viés nacionalista, como o americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro, de acordo com o filósofo político britânico Simon Critchley.

“Quando as pessoas estão sob ameaça de ficarem doentes ou de morrerem, elas querem um governo que saiba o que está fazendo. E isso é ruim para líderes como Bolsonaro e Trump. Eles não vão poder mudar de ideia a toda hora”, diz ele à Folha, por telefone, de Nova York, onde é professor da universidade The New School.

Conhecido pela capacidade de unir filosofia e cultura pop, Critchley tem livros publicados sobre assuntos como futebol, o músico David Bowie e a importância do humor na história humana. Atualmente ele atua como curador da Stone, a seção de filosofia do jornal The New York Times.

Ex-integrante de bandas punks antes de enveredar pela vida acadêmica, Critchley usa o tempo durante a pandemia para refletir sobre a mortalidade humana.

“É um momento que força as pessoas a pensarem em algumas questões básicas, de como elas vivem a vida, como elas entendem sua vida e outras coisas nesse sentido. É muito revelador o que está acontecendo”, afirma.

É possível voltar para o mundo como ele era antes da pandemia? Possível é, mas não é provável. Algumas coisas estão sendo revistas. Acho que o período de auge da globalização acabou. Há uma mudança em como compreendemos essa globalização, ela traz questões sobre a produção. Muitos países que supostamente são economias avançadas, como os Estados Unidos e o Reino Unido, não produzem mais as coisas, eles são dependentes de uma cadeia global, o que é uma opção questionável. Há também uma mudança sobre a ideia de nação.

Qual é essa mudança? O interessante da pandemia, em especial no contexto europeu, é que está ocorrendo uma espécie de reação nacional, um nacionalismo indefinido. A União Europeia é uma tentativa de 70 anos de estabelecer instituições transnacionais. Só que ninguém enfrentou um problema de saúde pública como o atual.

As pessoas estão assustadas, voltamos a um mundo hobbesiano, no qual a obrigação primária da nação é proteger e garantir a segurança de seus cidadãos. E isso requer um governo mais tradicional. É isso que está sendo revisto pela pandemia. É possível olhar para a Europa e ver a diferença na resposta de cada país, da Alemanha à Dinamarca, da Itália à Holanda, cada um desses países respondeu de acordo com seu contexto nacional. E seus líderes foram julgadas por um tipo de competência mais tradicional. Quem está se saindo melhor são pessoas como [a chanceler alemã] Angela Merkel.

E como ficam líderes com discurso nacionalista, como Jair Bolsonaro e Donald Trump? Eles estão em dificuldade política. Isso revela algo muito tradicional da natureza de governar. Quando as pessoas estão sob ameaça de ficarem doentes ou de morrerem, elas querem um governo que saiba o que está fazendo. E isso é ruim para líderes como Bolsonaro e Trump. Eles não vão poder mudar de ideia a toda hora.

Há um problema real no mundo, que tem efeitos reais. Não dá para mudar a história como Trump fazia a todo momento, todo dia. Obviamente que a pandemia é algo ruim, mas para uma pessoa como eu, que ensina filosofia, é um momento de muita reflexão. É um momento que força as pessoas a pensarem em algumas questões básicas, de como elas vivem a vida, como elas entendem sua vida e outras coisas nesse sentido. É muito revelador o que está acontecendo.

Como assim? Há um choque de realidade acontecendo. Há uma verdade. A verdade é o vírus, e ele não se importa. São processos diferentes dos processos políticos dos últimos anos, da era da pós-verdade. Não há pós-verdade em relação a isso, não em relação a um vírus. Há uma verdade sobre esse vírus.

No contexto americano, Trump tem administrado a situação de uma maneira muito ruim e desonesta. Creio que essa estratégia que ele usou nos últimos três anos, de constantemente mudar a história quando convinha, encontrou um limite com o vírus. Ele está aqui, está tendo efeitos reais em diferentes partes do mundo e requer um pensamento cuidadoso de longo prazo.

Quase todos os cientistas estão trabalhando para tentar encontrar uma vacina, mas isso ocorre em um tempo diferente do tempo político. Trump conseguia controlar esse tempo da política muito bem. Então o que está acontecendo agora é uma grande ameaça para Trump. E acho que vale a mesma coisa para Bolsonaro. O lado esperançoso do que estou falando é que a pandemia terá consequências políticas reais para o tipo de populista que chegou ao poder nos últimos anos.

Alguns intelectuais têm defendido que a pandemia causará grandes mudanças na sociedade. O senhor concorda? Acho que a mudança será menos dramática. Vamos lembrar que o que queremos do governo é a capacidade de liderar as pessoas, de ajudar as pessoas durante uma situação crítica. Então acho que a situação atual vai produzir uma espécie de conservadorismo leve. Espero que faça as pessoas terem um pouco mais de compaixão com as outras, que as faça serem um pouco mais solidárias, que as faça se sentirem parte de uma unidade maior, seja qual for —no meu caso, é a cidade de Nova York.

Há um desejo desesperado de se sentir a salvo, de se sentir seguro. A melhor coisa que pode acontecer em decorrência da pandemia é nos fazer focar assuntos como sustentabilidade. Se conseguirmos juntar a pandemia à mudança climática, isso será uma grande conquista. Não estou extremamente esperançoso que isso irá acontecer, mas é uma possibilidade.

O senhor disse que pensamos em questões básicas durante a pandemia. Ela mudou o modo como lidamos com a morte? Nós nos esquecemos de que somos mortais, que somos finitos, que morremos, parece que sempre precisamos ser lembrados disso. De certa maneira, a pandemia é uma coisa muito antiga, é uma situação muito semelhante à que nossos ancestrais viveram. Se pensar na peste negra, na varíola, nos efeitos da guerra. Nós somos parte de uma geração à qual foi permitida esquecer a nossa mortalidade, negá-la. Essa pandemia está nos lembrando dessa característica muito antiga dos seres humanos. E é bom que estejamos sendo lembrados disso.

Estamos nos sentindo menos imortais, então? Espero que sim. O que está acontecendo durante a pandemia é que estamos sendo lembrados disso, isso está sendo jogado na nossa frente. Eu espero que isso nos deixe menos narcisistas, porque esse sentimento de imortalidade tem sido amplificado por essa nossa vida virtual. Essa segunda vida, essa vida mágica online, os rastros que deixamos para trás nas mídias sociais, imaginamos que isso seja imortal. Um dos grandes problemas nos últimos tempos tem sido o grande crescimento do narcisismo. E acho que a pandemia mostra isso, acho que ela cria buracos nesse nosso senso de proteção.

O senhor é um conhecido fã de futebol. Como fica o esporte no meio disso tudo? Olha, eu tenho um interesse pessoal nisso, sou torcedor do Liverpool. Faz 30 anos que não ganhamos a Liga e estávamos 25 pontos na frente na Premier League [o campeonato inglês]. Se decidissem cancelar o campeonato, eu ficaria muito desapontado. Acho que os campeonatos vão terminar, mas sem torcedores, vai ser uma caricatura. Os jovens vão ser muito estranhos, esporte sem torcedores é algo sem sentido.

O senhor disse que acabou o auge da globalização. Isso também acontecerá no futebol? Eu não sei se o futebol vai mudar, hoje há esse livre comércio de seres humanos no mercado de transferências. Acho que seria bom se conseguíssemos pensar mais racionalmente na quantidade de dinheiro envolvida no jogo, que é uma questão pornográfica. Acho que seria ótimo se essa pandemia levantasse algumas questões sobre isso, se nos fizesse repensar o que realmente importa no futebol.

SIMON CRITCHLEY, 60

Inglês, formou-se em filosofia na Universidade de Essex, onde também concluiu seu doutorado sobre a obra do francês Jacques Derrida. Já deu aulas em instituições da Holanda, Alemanha, Austrália, Noruega e Estados Unidos e desde 2004 é professor da The New School, em Nova York. Além da vida acadêmica, tem mais de uma dezena de livros publicados (a maioria sem tradução para o português), incluindo “The Ethics of Deconstruction”, “The Book of Dead Philosophers” e “What We Think When We Think About Football”

 

Ameaça protecionista, por Lourival Sant’Ana.

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Mudança na OMC é resultado do enfraquecimento da ordem comercial internacional

O Estado de S.Paulo – 17 de maio de 2020

A renúncia do diplomata brasileiro Roberto Azevêdo ao cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) um ano antes de encerrar seu mandato é resultado do espetacular enfraquecimento da ordem comercial internacional baseada em regras.

A OMC foi criada em 1995 sob a liderança dos Estados Unidos e da Europa. Na época, eles eram os mais competitivos do mundo e portanto os mais beneficiados por regras que impedem a imposição arbitrária de tarifas e o exercício de subsídios que solapam a concorrência.

Se americanos e europeus eram os beneficiários imediatos, no longo prazo o incentivo à concorrência abriria caminho para novos players. Afinal, o livre-comércio leva as empresas a se desdobrar para melhorar seus produtos e reduzir seus custos, sob pena de desaparecer.

Inversamente, a proteção, na forma de tarifas altas e outros benefícios, cria um ecossistema de ineficiência e acomodação. O Brasil, um dos países mais fechados do mundo, é o melhor exemplo disso. Quando viajam para países que têm acordos de livre-comércio com o restante do mundo, os brasileiros compram tudo o que podem.

Nesse processo, surgiram concorrentes como Japão, China, Taiwan, Coreia do Sul, Índia e México, na indústria; Brasil e Austrália, no agronegócio. Por isso, as regras de livre-comércio se tornaram nocivas para camadas da população nos EUA e na Europa, que perderam seus empregos para mexicanos, chineses, etc.

A China se tornou a principal vilã no comércio internacional. Manipulava a moeda, subsidiava a indústria, praticava dumping, inundando o mercado com produtos abaixo do custo de produção, desrespeitava patentes, violava direitos trabalhistas e normas ambientais. Em 2002, a China entrou na OMC, com apoio dos EUA, que pretendiam com isso enquadrar o parceiro/concorrente.

Foi o que aconteceu. Na medida em que aperfeiçoou sua tecnologia, ela passou a usufruir das regras e do sistema. Já no governo de Barack Obama, os EUA começaram a barrar a nomeação de juízes para o Órgão de Apelação (OA) da OMC, o mais importante da entidade.

A eleição de Donald Trump foi parte desse processo. Ele apresentou o discurso mais contundente para os americanos que se sentiam – ou que passaram a se sentir, por influência de Trump – prejudicados pela globalização. Trump passou a ameaçar e a impor tarifas contra a China e outros países. O aço e o alumínio brasileiros estiveram na mira. Os EUA se tornaram grandes violadores das regras do comércio.

Em dezembro, com a falta de nomeações, o Órgão de Apelação ficou reduzido, de sete, para um juiz. Isso o tornou inoperante, já que ele só pode tomar decisões na presença de três juízes. Dois dias antes de Azevêdo anunciar sua saída, dois deputados democratas apresentaram proposta de retirada dos EUA da OMC. Antes disso, um senador republicano havia feito a mesma coisa, sugerindo que essa é uma posição acima de diferenças partidárias.

No último lance da disputa entre EUA e China, Trump determinou, na sexta-feira, que exportações de componentes para a Huawei, a gigante chinesa do 5G, precisarão de autorização. Ele acusa a China de tentar roubar as pesquisas de vacina dos EUA.

Trump ameaça até mesmo não honrar títulos da dívida americana em mãos da China, em retaliação contra a suposta origem do coronavírus em um laboratório de Wuhan. As evidências indicam que ele veio da natureza.

As pesquisas do Partido Republicano mostram que o eleitorado gosta quando Trump ataca a China. Por isso sua campanha tem dito que o candidato democrata Joe Biden ficou do lado da China e não do povo americano.

Kellie Meiman Hock, estrategista democrata para comércio exterior, me garantiu que as duas campanhas se diferenciarão nitidamente nesse tema. Seria uma prova de duas coisas: coragem e lucidez. O protecionismo fará mais mal do que bem aos EUA. Pergunte ao Brasil.

‘Dívida externa deveria ser suspensa’, diz Carmen Reinhart

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Economista de Harvard defende que emergentes adiem pagamentos para poderem gastar no que é necessário

Entrevista com

Carmen Reinhart, economista e professora em Harvard

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 17 de maio de 2020

Após publicar, em meio à crise de 2009, um estudo que foi abraçado por governantes que defendiam a austeridade e que indica que países com uma relação entre dívida e PIB superior a 90% crescem menos, a economista Carmen Reinhart vem defendendo que os países gastem o que for preciso para amenizar a crise decorrente da pandemia da covid-19. Professora em Harvard, Reinhart diz que, neste momento, há preocupações maiores do que o endividamento. “Há muitas rupturas, além da questão do endividamento, que provavelmente terão um efeito adverso maior no crescimento.”

A seguir, trechos da entrevista.

A sra. tem defendido políticas fiscais agressivas durante a pandemia. Depois da crise de 2009, porém, advogava pela redução de gastos públicos, porque seus estudos indicavam que países com dívida maior que 90% do PIB cresciam menos. Por que essa mudança?

O que estamos respondendo agora não é uma crise padrão. É uma emergência de saúde. Durante uma guerra – e hoje há muitos elementos de guerra -, você se preocupa em vencê-la e, depois, em pagar a dívida. Eu me preocupo com os desafios que teremos no futuro por causa do endividamento, mas também me preocupo que uma falta de reação agora tenha consequências grandes tanto em termos de vidas como em efeitos de longo prazo que uma epidemia pode causar em todas as dimensões da vida.

O que podemos esperar para esses países que chegarão a uma dívida/PIB superior a 90%, como o Brasil? Vão crescer menos depois da pandemia?

Não tenho ideia. Sabemos se a crise vai terminar em um mês ou em um ano? A feição da economia dependerá da duração da pandemia. Minha suspeita é que teremos um período de crescimento mais lento, mas isso não ocorrerá apenas por causa do endividamento. Ocorrerá também porque cadeias de fornecimento globais estão sendo interrompidas. A Organização Mundial do Comércio (OMC) indicou que o comércio global neste ano pode cair de 13% a 32%. Se for um número no meio desses dois extremos, teremos a maior queda desde a depressão de 1930. Outra questão é que a pandemia não é sincronizada, começou na China, foi para a Europa, agora está atingindo os Estados Unidos. Por quanto tempo o turismo e outras atividades relacionadas ficarão suspensas? Há muitas rupturas, além da questão do endividamento, que provavelmente terão um efeito adverso maior no crescimento.

Como ficam os países emergentes diante dessas rupturas?

O Brasil e outros produtores de commodities vão sofrer mais um impacto negativo. Esses países se beneficiaram depois da crise de 2008/2009, porque a China estava crescendo a dois dígitos, o que elevou o preço das commodities. Não acho que a China vá voltar a crescer nem 6%. Então o preço das commodities não vai mais ser um propulsor. O que quero dizer é que me preocupo com o endividamento dos países, mas tenho muitas outras preocupações, incluindo uma desglobalização.

A sra. vem defendendo a suspensão do pagamento da dívida externa de países emergentes. No caso do Brasil, que tem sobretudo uma dívida doméstica, o que poderia ser feito?

O que Kenneth Rogoff (também autor do estudo que relaciona endividamento elevado a baixo crescimento) e eu propomos é uma suspensão temporária para permitir que os países não tenham de se preocupar com a dívida neste ano e possam se preocupar em gastar no que é preciso. Suspender o pagamento da dívida externa ajudaria um pouco o Brasil também, porque há dívida externa, mas não é algo relevante. Suspender o pagamento da dívida interna não ajudaria. Se você tem um fundo de pensão que depende de investimentos em letras do Tesouro e suspende os pagamentos, as consequências são o oposto do que se quer, que é colocar dinheiro no bolso de famílias. O mais próximo do que estamos propondo seria o Brasil negociar com os investidores estrangeiros que têm papéis da dívida doméstica brasileira.

O que o Brasil poderia fazer, então, para amenizar a crise?

O Brasil entrou na crise já endividado e com questões fiscais não resolvidas. O Banco Central está sendo mais agressivo na parte dos juros. Mas, do lado fiscal – e você está falando com alguém que se preocupa muito com endividamento -, minha visão é que não se pode lutar uma guerra como essa com um braço atrás das costas. É preciso uma resposta fiscal para ajudar aqueles que perderam seus empregos por causa do lockdown e os negócios que tiveram de fechar. Não estamos falando de luxo, estamos falando de necessidades.

Como um país como o Brasil pode financiar esse aumento de gastos?

Tem de ser uma mistura: uma parte com emissão de dívida, outra com relaxamento monetário (que reduz os juros da dívida). Uma coisa que tem de ter cuidado é com o gerenciamento da dívida. Não se pode ter muita dívida de curto prazo, porque aí você pode enfrentar problemas de risco mais alto. É preciso escalonar os pagamentos para não ter agrupamentos, para não ter um perfil de pagamento de dívidas que dê origem a pontos vulneráveis.

Quais impactos no sistema financeiro global teria uma suspensão do pagamento da dívida externa pelos emergentes? Não poderia incentivar os países a adotarem políticas fiscais irresponsáveis?

A palavra chave é ‘temporário’. O G-20 já endossou isso para países da IDA (braço do Banco Mundial que ajuda os países mais pobres do mundo) enfrentarem uma crise que supera qualquer outra desde 1930

Em artigo recente, a sra. mencionou que a situação das empresas americanas é preocupante, dado suas dívidas. Qual a probabilidade de a crise causada pela pandemia resultar também em uma crise financeira global?

Significante e depende de quanto a pandemia vai durar. O Fed (Federal Reserve, o banco central americano) foi agressivo ao estabelecer medidas para incentivar a economia. Então, há políticas tentando mitigar esse risco (de crise financeira). Mas, quanto mais tempo a pandemia durar, mais provável serão os defaults, sejam eles corporativos ou de países. Os ingredientes para uma crise sistêmica estão aí.

Se houver uma crise financeira depois da crise da pandemia, podemos ter um cenário similar ao de 1930?

A diferença chave é que políticas monetárias e fiscais estão sendo adotadas para estimular a economia. Em 1930, as taxas de juros reais eram altas, ainda que as nominais tivessem caído a zero. Não acho que haverá isso agora. Mas há similaridades importantes. Como em 1930, agora há a queda do preço das commodities, que não é apenas um choque da covid-19. A guerra do petróleo entre Arábia Saudita e Rússia derrubou o preço do petróleo e de outras commodities e golpeou mercados emergentes. Outro problema é a queda do comércio global. Temos ainda uma parada brusca e exagerada em fluxos de capitais para mercados emergentes e uma volatilidade enorme no mercado financeiro. Outra semelhança é que economias avançadas e emergentes serão atingidas de forma grave, a última vez que isso ocorreu foi em 1930. Nos anos 80, foi uma crise nos emergentes e, em 2008/2009, foi mais nos avançados.

 

Afinal, emitiremos dinheiro para lutar contra a Covid-19? Por Bresser Pereira

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Folha de São Paulo, 15/05/2020.

Não precisam ter medo: prática não provocará aumento da dívida pública

Desde o fim de março venho defendendo que o Banco Central seja autorizado a emitir dinheiro para financiar os grandes gastos necessários para enfrentar o novo coronavírus. Já há algum tempo o tema é objeto de uma reforma constitucional, a emenda da guerra à Covid-19. Os membros do Congresso, porém, mal assessorados, e a opinião pública brasileira, ainda escaldada pela grande inflação de 1980-1994, tem medo de que isso provoque alta de preços.

Não precisam ter medo. No quadro atual de aumento violento do desemprego e de recessão —senão depressão—, a compra de títulos novos do Tesouro não causará inflação. Hoje, depois de ter sido abandonada pelos bancos centrais nos anos 1990, e depois das enormes emissões de moeda feitas pelos países ricos desde 2009 sem que houvesse qualquer inflação, a teoria monetarista está completamente desmoralizada.

Essa prática, baseada em uma identidade elementar (MV=Py), transformava-se em uma teoria na qual V, o número de vezes em que a mesma moeda é usada no ano, era considerada constante; e, portanto, a inflação (P) era causada pelo aumento da quantidade de moeda (M) acima do aumento da produção (y). Na prática, a velocidade de circulação da moeda não é constante, e é o PIB que determina a quantidade de moeda. O aumento dos preços independe da quantidade de moeda; ele é causado pelo excesso de demanda, que não faz parte dessa equação.

Como é possível que a variação do PIB determine a quantidade de moeda em circulação? Porque o dinheiro é criado pelo aumento do crédito, seja ao setor privado ou ao Estado, e o crédito tende a crescer com o PIB para que a moeda possa desempenhar seu papel de óleo lubrificante do motor econômico. Quando o país entra em recessão e precisa aumentar fortemente sua despesa pública, o Tesouro precisa de crédito para financiá-lo, e, portanto, haverá uma emissão de moeda, não importando se os títulos emitidos forem financiados pelo setor privado ou público.

Portanto, se concordamos que o Estado precisará realizar grandes gastos, muito mais do que os 3,2% hoje previstos, haverá emissão de moeda, tanto quando o setor privado for o credor quanto se o Banco Central fizer esse papel.

Qual é, então, a diferença entre a venda de títulos do Tesouro ao setor privado ou ao Banco Central? A diferença objetiva é que no primeiro caso haverá aumento da dívida pública, que depois precisará ser paga e envolverá anos de austeridade, enquanto no segundo não há aumento da dívida pública. A dívida pública é a dívida do Estado, e tanto o Tesouro quanto o Banco Central fazem parte dele. Em termos líquidos, não há qualquer aumento da dívida pública.

É verdade que as normas contábeis geralmente seguidas pelos países não reconhecem esse fato. Segundo meus cálculos, o Japão deve ter reduzido em 77%, e os Estados Unidos, em 12% do PIB sua dívida pública entre 2009 e 2019 —mas a dívida pública contabilizada desses dois países não mudou por isso. Porque os economistas adoram ficções.

Neste momento, é importante jogar no lixo esse medo de emissão de moeda. Porque não haverá aumento da dívida pública e porque não se deve prever que o governo federal mergulhe na irresponsabilidade fiscal —ele apenas terá menos medo em realizar os gastos necessários.
Parece que esse medo está diminuindo. No dia 1º de maio, a Folha dedicou duas páginas ao problema da emissão de moeda via Banco Central-Tesouro.

Paulo Guedes diz que pode emitir moeda se a inflação for a zero. Dois economistas igualmente ortodoxos, Henrique Meirelles e Márcio Garcia, defendem essa política. E a Folha defende que “ao imprimir dinheiro, o Estado cria poder de compra que antes não existia”. Equivoca-se apenas em afirmar que haverá aumento da dívida pública.

A compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central precisará ser cuidadosamente regulada e transparentemente controlada. Dessa maneira, estou seguro que será um trunfo na luta contra a Covid-19 e a depressão à vista.

 

A era da superexploração virtual do trabalho, entrevista com Ruy Braga.

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Isolamento impõe transformação radical do ambiente doméstico, com jornadas extenuantes e redução de salários. Corporações aceleram projeto de ensino à distância. Um desafio urgente à esquerda: a criação de plataformas cooperativas.

Ruy Braga Neto e Rafael Grohmann, em entrevista ao IHU Online.

Sociologicamente, nas análises, costumava-se usar o termo “mundo do trabalho”. Ou seja, é observar os diversos aspectos da vida atravessados pela perspectiva do trabalho. Mas, e quando o trabalho – ou a falta dele – transborda, passa a ser uma espécie de agenciador de todas os aspectos da vida? Nesses tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas pessoas foram jogadas na realidade do home office e o lar passou a ser organizado desde a centralidade do trabalho. As jornadas extrapolam e as demais tarefas e aspectos da vida preenchem os – poucos – espaços que sobram. De outro lado, há quem sequer consegue se manter no trabalho, seja porque foi demitido em decorrência da crise ou porque a exposição a jornadas extenuantes levou ao adoecimento. Nesse contexto, em que a Revolução 4.0 é o outro aspecto a ser levado em conta, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU foi ouvir especialistas sobre o atual contexto do mundo do trabalho, na passagem por um 1º de maio nunca visto.

O professor Ruy Braga Neto observa que o “home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso”. Mas adverte que “sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho”. Além disso, lógicas de produção terão de ser repensadas. “O ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar”, pontua em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha”, acrescenta.

Já o professor Rafael Grohmann chama atenção para outra perspectiva de uma mesma realidade. “De um lado, trabalhadores que ficam em home office estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco”, analisa, em entrevista concedida via WhatApp à IHU On-Line. Para Rafael, que ainda lembra daqueles que simplesmente são excluídos desse mundo, este é um momento em que a discussão sobre uma renda universal se coloca com força. “Falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930”, sintetiza.

Ruy Braga também pensa nesse sentido e aponta que entre as propostas para se sair da crise está a necessidade de o Estado “ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação”. “É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos”, acrescenta. Rafael ainda vê a emergência de “pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma”.

Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é autor dos livros A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012) e A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).

Rafael Grohmann é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Doutor e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, é criador e editor da newsletter DigiLabour. Entre os livros publicados, está As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista (São Paulo: Atlas, 2013).

Confira as entrevistas

IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?

Ruy Braga Neto – A questão principal diz respeito aos desdobramentos econômicos em escala mundial decorrentes do que muitos estão chamando de “grande isolamento”. O mais evidente é a desaceleração da economia e, consequentemente, a desaceleração do processo de globalização econômica. A partir de agora, ficaremos mais tempo em casa e, consequentemente, o mundo do trabalho tende a se transformar com um predomínio de tecnologias remotas e virtualização das relações de trabalho onde isso se mostrar viável. Apesar de o setor de serviços ser mais permeável ao trabalho remoto e virtual, contraditoriamente, alguns segmentos deste setor, notoriamente, o turismo, a aviação, a hotelaria, o entretenimento etc., serão mais duramente atingidos pela desaceleração econômica.

Por outro lado, uma das consequências do isolamento social é a ampliação do uso do trabalho remoto. O home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso. Ocorre que sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho.

Na realidade, o ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar. Isso deve causar inúmeros problemas relacionados ao sofrimento psíquico do trabalhador e, consequentemente, à queda da produtividade do trabalho. Ou seja, as empresas terão que redefinir os parâmetros globais dessa modalidade de trabalho a partir de algum modelo híbrido no qual as atividades remotas sejam combinadas com atividades presenciais. O grande isolamento irá promover uma mudança muito profunda no ambiente de trabalho e as tecnologias virtuais e comunicacionais serão cada dia mais importantes na redefinição deste ambiente. O mesmo deve ocorrer também na indústria com uma pressão cada vez maior para a automação de processos.

IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?

Ruy Braga Neto – O futuro previsível do trabalho está muito conectado às soluções tecnológicas providas pelas tecnologias da informação. Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha. A tendência é que haja um aumento das desigualdades e um aprofundamento da polarização social que fatalmente irá tensionar as estruturas políticas.

Isso é inescapável quando pensamos no aumento do desemprego e, consequentemente, do subemprego e da informalização econômica daí decorrentes. Trata-se de uma situação dramática na qual muitos serão lançados a sua própria sorte e tendo a rua, agora, mais como uma ameaça de morte do que como uma aliada da sobrevivência. Na realidade já estamos assistindo este fenômeno acontecendo agora. Basta observarmos os números do seguro-desemprego: mais de um milhão de trabalhadores acessaram o direito nos últimos 45 dias. Em pouco tempo, estes trabalhadores passarão para a informalidade, pois as empresas não irão recontratá-los.

A previsão feita recentemente pelo Banco Mundial para o Brasil aponta para um aumento de 5 milhões de desempregados decorrentes da crise econômica. O pior para o trabalhador ainda está por vir. E não há como enfrentar uma situação como essa sem o recurso às políticas públicas protetivas do trabalho. Ou seja, os Estados nacionais serão agentes cada dia mais centrais neste mundo redesenhado pelo grande isolamento.

IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?

Ruy Braga Neto – Em um sentido progressista, os Estados poderão ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação. É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos. O caminho da renda cidadã incondicional será cada dia mais desejável e, de uma certa maneira, incontornável.

Em um sentido regressivo, devemos assistir ao fortalecimento de populismo de direita com o emprego massivo de meios repressivos a fim de conter revoltas e o descontentamento social com o aprofundamento da fratura social trazida pelo grande isolamento. Infelizmente, para o caso brasileiro, prevejo um futuro bastante sombrio em termos de iniciativas políticas, com um processo de aumento da desigualdade alimentando a angústia dos trabalhadores. Resta saber se este estresse social que se acumula irá se voltar contra os governantes que nada fizeram para enfrentar a crise de saúde pública somada à crise política ou se servirá para alimentar protestos que reivindiquem mais proteção e soluções redistributivas.

IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?

Rafael Grohmann – Nós estamos num ponto crucial da história do século XXI porque estamos num momento de disputas e lutas em relação ao nosso futuro e o que vamos apreender desse futuro em relação também ao mundo do trabalho. O professor Rafael Evangelista, da Unicamp, escreveu um texto em que diz que estamos numa disputa de três caminhos: aceleração, ruptura e exceção, ou seja, qual vai ser o sentido da pandemia de coronavírus para as nossas vidas.

De um lado – e essa parece ser a narrativa e o sentido por enquanto dominante –, o capital quer acelerar processos que estavam em andamento pelas suas vias, como home office, educação a distância, digitalização de todos os serviços que já estavam numa agenda conjuntamente de financeirização, dataficação e uma racionalidade neoliberal por trás desses processos. Por outro, podemos considerar este momento como uma exceção ou uma ruptura – e esse é o ponto que o Evangelista coloca. Tenho entendido que este momento pode servir para essas questões, que o Rafael chama de aceleração do próprio movimento do capital – o que já tem acontecido – e algumas mudanças podem se manter a despeito de as pessoas estarem mexidas com sua saúde mental, estarem se sentido cada vez mais pressionadas por produtividade, sentindo que o mundo do trabalho é o único mundo possível neste cenário de quem acaba ficando em home office, por exemplo.

Então, de um lado, trabalhadores que ficam em home office – que é uma parcela da população –estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco. Mas o ponto do que vai mudar na sociedade é que este é um momento de disputa.

Neoliberalismo progressista

Já antes da pandemia, Nancy Fraser, no livro “Capitalismo em debate” (Boitempo, 2020), diz que o que está em crise é uma certa hegemonia do que ela chama – com certa controvérsia – de neoliberalismo progressista, ou seja, as alianças neoliberais do século XX, desde Tony Blair, Bill Clinton, Rede Globo e por aí vai. É isto que está colocado em xeque hoje tanto pela extrema direita quanto numa alternativa à esquerda. Se este é um momento de disputa, é hora também de a esquerda mostrar alternativas a esse momento e colocar-se na disputa por esse sentido. Quer dizer, de que maneira vamos sobreviver nesta crise de pandemia com mais cooperação, alternativas de trabalho que mudem uma lógica individualista, que pensem em coletivização, seja de plataforma, seja de trabalho, ou seja, como este também é o momento para prefigurar ou vislumbrar outros tipos de vida que estavam naturalizados antes da crise de pandemia.

Capitalismo: dominação plena ou seu fim?

Então, este é um momento de disputa e não são desses dois sentidos entre aceleração e essa possível volta, pois isso está em aberto. Não dá para dizer, de um lado, que o capitalismo já ganhou e dominou tudo e, por outro, não dá para dizer que o capitalismo nunca esteve tão próximo do seu fim. Isso seria de uma ingenuidade tremenda de não ver como as lógicas do capital, num cenário de financeirização e plataformização, e as grandes empresas tecnológicas estão de mãos dadas com vigilância extrema aos trabalhadores, inclusive pela própria gestão algorítmica. Por isso considero que este é um cenário aberto e que setores progressistas da sociedade têm que disputar o que é e como apreendemos outros futuros possíveis a partir disso que está acontecendo também no mundo do trabalho.

IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?

Rafael Grohmann – A intensificação da digitalização do trabalho, neste contexto de pandemia, vai trazer uma intensificação das desigualdades de gênero, de raça, de classe num contexto como o do Brasil. Isso vai acabar dividido em pessoas que podem fazer home office e pessoas que estarão nas ruas e o trabalho digital feito de casa, em home office, com diferentes clivagens.

Pensando na própria questão de gênero, várias pesquisas estão mostrando que as mulheres acadêmicas estão sofrendo mais nesse processo de home office por maior sobrecarga de trabalho e estão submetendo menos artigos do que os homens proporcionalmente. Vamos ver uma intensificação da conta da pandemia para o próprio trabalhador. Por mais que se ensaie novamente o papel do Estado, o que temos visto por aí é uma intensificação do “se vire com o que você tem”, “faça mágica com o que você tem”. Saímos do que Ludmila Abílio chama de gestão da sobrevivência para a sobrevivência puramente, quer dizer, de nem conseguir pensar essa gestão. Isso envolve pensar como a crise de coronavírus impacta a saúde mental dos trabalhadores, porque falar em mundo do trabalho é falar que essas pessoas não são máquinas produtivas; são seres humanos que precisam ter não só o mundo do trabalho como o único norte da vida no sentido de só trabalhar, porque é preciso viver.

É preciso reinventar o espaço da vida de modo que não seja só trabalho. Aí entra o papel do trabalho não pago, do trabalho gratuito em contexto de pandemia e entra também a própria invisibilidade – se intensificando com o fato de todo mundo ficar em casa – de quem não trabalha e está perdendo o emprego. Isso é algo que se vislumbra para o futuro em relação a essa intensificação do trabalho.

Renda básica universal

Tem um índice criado pela Universidade de Oxford, The Online Labour Index, que mede a demanda e a oferta de trabalho digital on-line, principalmente home office, seja em plataformas para alimentar inteligência artificial ou plataforma freelancer em geral. Nesse tempo de coronavírus, a oferta de “jobs on-line” tem caído drasticamente. Pegar uns “freelas” em algumas plataformas enquanto se está com metade do salário tem sido cada vez mais difícil.

Na verdade, hoje, falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930. O que se prenuncia é isto: de que maneira os Estados vão assumir, no mínimo, essa tarefa? É preciso buscar formas alternativas de sustentação de arranjos produtivos para além da falácia do empreendedorismo. Quer dizer, como podemos pensar em coletivização das plataformas ou, como defende o autor Callum Cant num livro sobre entregadores de delivery, Riding for Deliveroo: Resistance in the New Economy, a expropriação das plataformas pelos trabalhadores. Este já era um desafio colocado antes da pandemia e agora se acentua não mais como uma utopia, mas de que maneira vamos sobreviver com o cenário que estamos enfrentando. Este é um ponto chave para pensarmos o que vai ser o pós-pandemia, que não vai ser “ok”. Vai ser um processo do qual não vamos sair os mesmos.

IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?

Rafael Grohmann – Se, como falei antes, estamos num momento de disputas e intensificação dessas disputas relacionadas ao mundo do trabalho, é hora de lutarmos por outros mundos possíveis em um contexto de trabalho digital e de plataformas. O que queremos não é uma volta ao mundo sem tecnologias, mas é preciso reconhecer as disputas políticas dentro das tecnologias e reconhecer que tecnologias são fruto do trabalho humano e reapropriadas por grandes empresas. É preciso pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma.

Também é preciso lutar por uma regulação mais rígida das plataformas de trabalho, como tem feito o projeto Fairwork, coordenado pela Universidade de Oxford e que está vindo para o Brasil com a coordenação da Unisinos. Consiste em pressionar as plataformas digitais por melhores condições de trabalho. É hora de nós mesmos, pesquisadores universitários, estarmos mais envolvidos com pesquisas de intervenção no cenário do mundo do trabalho de maneira que não só compreendamos o que está acontecendo, mas busquemos, na prática, caminhos possíveis para outros futuros do trabalho que não este que repete a ideologia do Vale do Silício, que repete mantras de coaching e futuristas, através dos quais vamos cair num abismo do trabalho.

Lutas globais em contextos digitais

Precisamos ainda, como país, pensar o que queremos para as nossas políticas não só do trabalho, mas de ciência e tecnologia, como um país soberano também dentro de um contexto global. Quer dizer, como fazer circular a luta dos trabalhadores local, nacional e globalmente em um contexto digital. Como eu disse, não devemos lutar por uma era sem tecnologia, mas por plataformas alternativas.

Há uma pesquisa da Universidade de Westminster, capitaneada pelo professor Christian Fuchs, que mostra que mais da metade das pessoas no Reino Unido clama por outros tipos de plataformas alternativas. Precisamos também imaginar quais seriam esses modelos que não estão ainda dados. O que está colocado aí é que tipo de futuros possíveis podemos apreender e de que maneiras podemos ir além dos modelos que estão colocados. O momento é menos de respostas prontas e mais de imaginar futuros alternativos para o mundo do trabalho digital.

 

No governo, uma criança onipotente se transforma num canalha. Por Contardo Calligaris.

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Folha de São Paulo, 14/05/2020

Há quem ache que, diante da pandemia, deveríamos sacrificar vidas

A bolsa ou a vida? Anos atrás, o psicanalista francês Jacques Lacan se serviu dessa alternativa para explicar o que é uma escolha forçada —que, de fato, nem sequer é uma escolha.

Eis por quê: se eu escolher ficar com a bolsa, não perderei só a vida, mas também a própria bolsa pela qual me sacrifiquei, pois nenhum ladrão vai ser burro a ponto de deixar a bolsa com o meu cadáver.

Então, quem escolhe a bolsa perde a vida e também a bolsa.

Conclusão: só resta escolher a vida e entregar a bolsa. No Brasil, por causa de um gosto antigo pela violência (que talvez tenha penetrado a cultura nacional junto da prática da escravatura), o bandido, às vezes, recebe a bolsa e ainda assim nos dá um tiro de despedida. De qualquer forma, entregando a bolsa, temos ao menos uma chance de ficar com a vida —embora, é claro, uma vida sem a bolsa.

A alternativa de “a bolsa ou a vida?” talvez nos ajude a enxergar a estranheza do debate em curso entre a saúde e a economia diante da pandemia de coronavírus. Deveríamos, por exemplo, proteger as vidas com o maior isolamento social possível? Ou deveríamos aceitar um aumento da taxa de infecção e do número de mortos para preservar a atividade econômica? A vida ou a bolsa?

Parênteses: em outros países, o debate a favor ou contra o isolamento existe como discussão sobre qual caminho poderia, a longo prazo, produzir uma imunidade coletiva e portanto poupar mais vidas.

No Brasil, a questão é apenas sobre a “necessidade” de reabrir o comércio e retomar a atividade econômica.

Voltemos. Há uma diferença considerável entre a alternativa proposta pelo bandido e nossa situação atual. A pergunta do bandido se endereça a uma pessoa só —você, que está sendo assaltado.
Imagine que, na hora do assalto, você esteja com um seu conhecido. Ao serem assaltados, você consegue se entrincheirar numa sala segura, junto com a sua bolsa, mas seu conhecido fica de fora. O bandido pede para você escolher entre a sua bolsa e a vida do conhecido. Qual será sua escolha?

Os que acham que, diante da pandemia, deveríamos escolher a bolsa e sacrificar vidas não estão entrincheirados em abrigos que os protejam da contaminação e de uma morte eventual. Eles apenas se consideram invulneráveis. São crianças atrasadas, convencidas de sua onipotência e da proteção eterna que lhes seria reservada pelo amor de suas mães.

Essa é uma patologia frequente, sobretudo masculina, incômoda para quem tem a desgraça de conviver com o paciente e só realmente perigosa quando o paciente ocupa um cargo de governo, sobretudo executivo.

No governo, a criança onipotente se transforma facilmente num canalha, que, considerando-se invulnerável, está disposto a escolher a bolsa, porque a vida que ele perderia seria sempre a vida dos outros.

Ou seja, os negacionistas acham que deveríamos desistir do isolamento social para preservar a economia e estão dispostos, para isso, a entregar, não a vida deles, mas a vida dos outros. Eles escolhem a bolsa e deixam o bandido (o vírus) matar a quem ele quiser (salvo a eles mesmos, que se imaginam protegidos por serem os eternos bebês maravilhosos de suas mães).

Alguém dirá: então deveríamos escolher a vida e esquecer a bolsa? E como vamos pôr comida na mesa?

Pois bem, é exatamente aqui que se esperariam a existência e a intervenção de um governo. O debate entre privilegiar a saúde ou a economia (a bolsa ou a vida) parece ser uma diversão inventada por um governo que não enxerga sua função crucial, a qual consistiria em administrar as consequências econômicas da única escolha aceitável (a escolha pela vida).

Ou seja, uma vez que só é possível escolher a vida (e não a bolsa), resta a tarefa de sustentar a vida de todos da melhor maneira possível.

Os governos, mundo afora, gastam e gastarão o que têm e o que não têm (sim, há momentos em qualquer administração nos quais é necessário gastar o que não se tem) para que os cidadãos possam proteger suas vidas (e logo retomá-las) sem se preocupar com sua sustentação básica, suas dívidas vencidas, seu aluguel e seus impostos atrasados etc.

Em vez disso, no Brasil, até agora, assistimos a uma comédia patética em que o governo promete, brada e não consegue nem sequer distribuir dignamente uma ajuda irrisória (os famosos R$ 600) sem que a própria distribuição se torne, para muitos, a ocasião de mais uma sinistra exposição ao contágio, em filas de espera.

Se governo não agir em favor da economia, classe política o fará, diz economista.

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Para diretor do Ibre/FGV, com empresas privadas combalidas durante pandemia, caberá ao Estado impulsionar retomada

Eduardo Cucolo e Alexa Salomão

10 de maio – Folha de São Paulo

Nem tudo é desastre para a economia brasileira diante da pandemia do novo coronavírus, diz o diretor do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Luiz Guilherme Schymura.

Contrariando alguns de seus pares, ele acredita que a equipe econômica do governo federal deve tomar a dianteira para comandar um plano de recuperação dos investimentos que ajude o país a sair da crise em marcha.

Schymura defende um programa nos moldes do Pró-Brasil, lançado sem o aval do Ministério da Economia, porque acredita na necessidade de investimento público. Mas faz a ressalva: é preciso garantir que fique restrito ao menor gasto possível com obras exequíveis e que ofereçam alta taxa de retorno.

Qual o cenário que o sr. traça para a economia do país em meio à pandemia? Há alternativas para dirimir a queda do PIB? 
Ainda há muitas incertezas no ar, pessoas que estão perdendo emprego, e há iniciativas iniciais de transferência de renda, como o auxílio emergencial. Mas o momento da retomada vai gerar inexoravelmente a discussão sobre a atuação do Estado.

Teremos um setor privado em uma situação muito difícil, alquebrado, por causa da dificuldade em relação ao crédito, do período de poucas vendas e da economia combalida. É natural que o setor privado demore para reagir.

Quando esse cenário se desenhar, haverá uma cobrança muito grande da classe política para que ações sejam feitas. Vamos esperar que, com o tempo, o mercado se ajuste e a economia comece a crescer? Não foi assim depois da reforma da Previdência.

Acredito que a saída está num programa de investimento público, como esse que o Ministério da Infraestrutura está desenhando. Tem de dosar a quantidade de recursos, ver quais as obras mais viáveis, mas é por aí. A pressão política será insuportável. É importante o governo sair na frente com esse programa, gastando o mínimo necessário.

Há muitas resistências por causa de programas anteriores que não deram certo, como o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]. 
Ficamos com a impressão de que todo investimento público tem uma efetividade muito pequena, e há obras paradas. Mas algumas estão maduras para serem concluídas. A equipe dessa área tem um programa que pode fazer sentido, com obras que pedem investimento relativamente baixo para uma taxa de retorno alta.

Dada a situação fiscal muito delicada, eu não seria favorável a esse movimento, mas não podemos esquecer a pressão política que haverá e que alguns investimentos poderão ter uma taxa de retorno muito acima do esperado se forem bem selecionados.

Mas não é necessário um programa que não mexa negativamente com as expectativas? 
Isso é fundamental. É importante que o governo crie uma narrativa que deixe claro aos agentes econômicos que isso é inexorável em razão da necessidade de retomada da economia, mostre o quão eficazes serão os investimentos nesses projetos e que não é tanto [dinheiro] assim.

Nada de pensar em Plano de Metas, Plano Marshall, nada disso. Esse discurso neste momento é temerário. Não conseguiremos sair da crise se não mantivermos nossos juros em um patamar razoável. Os agentes econômicos precisam entender que não haverá aventuras, que o Brasil amadureceu na questão fiscal.

Mas repito. Se o governo não se mobilizar e agir para impulsionar a economia, a classe política o fará. Não esqueçamos que dificilmente iniciaremos a retomada com uma taxa de desemprego abaixo de 15%.

É possível administrar a questão fiscal com uma dívida que vai crescer? Saindo da pandemia, o estoque da dívida será muito mais alto, na faixa de 90% a 100% do PIB [Produto Interno Bruto]. Não vejo isso como uma situação tão dramática hoje.

As dívidas só fazem crescer em outros países, e ninguém está preocupado, porque tem um excesso de poupança, e a taxa de juros vai continuar muito baixa.

Pela pandemia, o mundo vai se tornar um lugar mais pobre. Que efeito pode ter para o brasileiro, em termos históricos, empobrecer? 
Devemos ter uma queda do PIB próxima a 4%, e o desemprego vai para 18%. Não estou dizendo que seja bom, mas, se no ano que vem começar a retomar um pouquinho, não vejo muitos problemas do ponto de vista de desastre social. Mas ficarão algumas questões.

Uma pergunta que eu me faço é como ficará esse modelo em que, no meio de uma pandemia, estamos repassando R$ 600, até R$ 1.200, para pessoas do Bolsa Família que ganhavam em média R$ 190. Como vai trabalhar politicamente o retorno aos R$ 190? Difícil entabular um discurso.

Como fica a questão do distanciamento social para a economia? Distanciamento horizontal é uma saída? Por enquanto, sim. Quem tentou fazer coisas diferentes entrou pelo cano, e estou falando de países de primeiro mundo.

Não sabemos o que significa esse vírus entrando nas nossas comunidades. Achar que a economia vai ter um desempenho pelo menos satisfatório enquanto esse vírus andar por aí é ilusão, isso não é possível. Enquanto não conseguirem uma vacina ou um antiviral com uma força grande, difícil acreditar que os países da América Latina consigam ter uma economia pujante.

A gente não consegue nem fazer dinheiro chegar à mão do informal. Como vai pensar em separar a população?
Isso aqui não é Coreia nem Japão. Mesmo naqueles países que estão tentando alternativas que não o isolamento horizontal a economia está sofrendo. Esse dilema isolamento horizontal e economia não é uma coisa tão simples.

Como o senhor avalia as ações atuais do governo do ponto de vista econômico? 
Um aspecto que me preocupa muito é a questão das pequenas e médias empresas. Vou mostrar uma coisa. [O entrevistado pega o celular e mostra uma imagem, uma placa na frente de um bar]. Está escrito assim: “Devido o [sic] novo coronavírus, não estou vendendo fiado!!! Vai que você morre”.

Isso é uma metáfora para o problema que estamos enfrentando. Os bancos privados não têm como emprestar para alguém se o risco de não receber é muito alto.

E vai ter quebradeira. Muitas das pequenas e médias empresas não têm como superar o momento de queda da demanda tão acentuada. Para muitas delas, esse financiamento não as tornará empresas viáveis. As empresas pequenas e médias têm fôlego para um ou dois meses. Os bancos não querem botar a mão nesse negócio, não têm interesse. No final das contas, o risco dessas operações deveria ficar com o governo. Não tem como.

O governo precisa ser mais enfático no combate à crise? 
Eles estão tentando, é difícil. Você vê hoje a PEC do Orçamento de Guerra. O objetivo é que o Banco Central possa comprar papéis do setor privado, coisa que não era permitida. Isso é muito razoável. Os bancos não vão ajudar diretamente. Quem vai fazer esse papel tem de ser o governo. No país mais liberal ou menos liberal do mundo, funciona dessa maneira.

Não interessa aos bancos emprestar, o risco é muito grande. Você acha que vai adotar medidas que os bancos vão sair emprestando como loucos? Isso não vai acontecer.

Agora, imagina qualquer um de nós sentado no Banco Central. Você compra um papel. A empresa quebra. O papel vira pó. Essa pandemia acaba daqui a três meses. Quanto tempo você acha que você fica fora da cadeia? Quem vai assinar um negócio desse? Você vê o BNDES. Passaram a limpo 500 vezes todas as operações que fizeram. Hoje tem um apagão de canetas. Você vai assinar uma coisa de altíssimo risco?

A postura do presidente da República, que se contrapõe a grande parte das medidas de isolamento, ajuda ou atrapalha? 
Não quero entrar na discussão da parte política, porque acho que já temos um problema institucional grande. O ideal é que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário estivessem trabalhando juntos, não tenho dúvida de que ajuda. A atual situação também não resolveria o problema do trabalhador informal. Não resolve a falta de liquidez das empresas de pequeno e médio porte. Não resolve o fato de comunidades não terem estrutura de saneamento.

Nós temos problemas socioeconômicos, e instituições que têm dificuldade de lidar com crises, como essa pandemia, o que não tem nada a ver com a questão política.

Pelo fato de a gente ter uma posição socioeconômica mais desfavorável que países de Primeiro Mundo e algumas instituições que não funcionam como no primeiro mundo, é mais importante que tenhamos uma coordenação não só entre os Poderes, mas entre os entes federativos.

Temos muitos informais, o que gera uma dificuldade em identificar quanto ganham. Nos países em que você quase não tem informalidade, é mais fácil fazer política para mitigar riscos dessa classe trabalhadora.

O que o senhor mencionou tem a ver com problemas estruturais do Brasil. O ministro Paulo Guedes estaria certo ao dizer que é o momento de mexer nas estruturas também? Que reformas seriam importantes neste momento? 
Acho que agora não dá para mexer nas estruturas. A gente ainda não sabe quais setores serão mais atingidos.

Agora é hora de questões mais emergenciais. Vamos esquecer as questões estruturais. Seria ótimo se conseguisse parar para resolver isso. Estamos vivendo um momento muito complicado.

O grande tema é a reforma do Estado. Essa eu acho essencial. Existe uma pressão da opinião pública com relação à visão dos servidores. Algumas vantagens, de estabilidade, de aposentadoria, que incomodam muito, vão incomodar muito mais.

Essa pandemia vai agravar essa questão. Enquanto o desemprego vai ser crescente e os salários de quem tem emprego vão cair na iniciativa privada, os servidores estarão sendo preservados.

Também está ficando claro com essa crise a questão do papel do Estado, ter um setor público que seja funcional, que esteja bem organizado. Quem é que está complementando salário? É o setor público. Essa questão do empoçamento de liquidez. Quem tem de estar por trás disso? O setor público. Inclusive estou aliviando os bancos aqui. Não estou criticando nenhum. Não estou esperando nada do setor privado. Nossa conversa toda aqui é setor público. Não falei nada de setor privado hoje. O setor privado está para ser ajudado, não está se exigindo nada do setor privado, pelo contrário.

Ocorre que isso exige mudanças do papel do Estado. Temos quadros espetaculares no setor público. Temos um grupo de servidores muito qualificados. É importante que essa questão seja desenvolvida puxando a questão da eficiência, da produtividade. Quando se fala de reforma do Estado, se fala de uma reforma administrativa para cortar salário. Mas estou falando em uma coisa mais pensada.

Se essa pandemia se estender, é possível ir mais longe nesses gastos? 
Aí é difícil traçar cenários. Tem de ver um pouco como está a situação global, como a economia mundial vai andar, como vão resolver a questão da pandemia, como vai estar o juro internacional nesse contexto.

Já estão falando em coronabonds na zona do euro para salvar alguns países. Será que isso vai virar um processo inflacionário que obrigue a elevação dos juros? Para nós, seria uma desgraça. Mesmo nos EUA. Eles são muito mais organizados do que a gente, mas lá está morrendo gente.

Quanto mais distante estamos da vacina ou de um antiviral que reduza o contágio ou a letalidade, pior vai ficando a situação para a gente.