‘Desertificação da política é o legado da Lava Jato’, diz cientista político

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Para cientista político, operação ‘morre’ pelos próprios erros, como ações ‘messiânicas’ e querer ‘salvar o País’
Luiz Werneck Vianna

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo – 13/03/2021

Rio – Depois que o ministro Edson Fachin, do Suprema Tribunal Federal, anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e considerou a 13.ª Vara Federal em Curitiba incompetente para julgá-lo, o cientista político Luiz Werneck Vianna afirmou ao Estadão que a Lava Jato “morreu de morte morrida”. Para o professor da PUC-Rio, a ação dos procuradores da força-tarefa e do então juiz Sérgio Moro tinha objetivo “messiânico” – mudar o País pelo Código Penal –, durou demais e deu errado. Vianna descartou ainda a possibilidade de Moro ser candidato à Presidência, e disse que o combate à corrupção será tema “lateral” em 2022.

Que balanço faz desse processo, com a decisão de Fachin?
Demorou muito. Não é a primeira vez que a Justiça tarda e falha. Mas o fato é que a decisão é inatacável do ponto de vista jurídico. A Lava Jato não podia assimilar todos os casos de corrupção que estavam ocorrendo no País. Desde o começo, foi um erro monumental, em que juízes e procuradores jovens, eu diria provincianos, assumiram o papel de salvadores do País. Andaram estudando a operação que transcorreu na Itália (Mãos Limpas) e aplicaram aqui. Fizeram uma leitura descontextualizada da situação italiana. E mobilizaram a mídia como peça de sustentação. Acho que foi um erro.

Mas tudo que o STF está revendo foi aprovado pelo próprio STF. Por que a mudança agora?
Não creio que tenha sido uma manobra conspiratória. A Lava Jato… ela durou demais. Nasceu de uma concepção abstrusa, em que um pequeno núcleo de procuradores e juízes assumiu um papel messiânico, de salvação da política.

Querer fazer política pelo Judiciário é um caminho ruim. E foi o que a “República de Curitiba” tentou. Pelo processo formal, os processos não deveriam ser vinculados a Curitiba, mas à Justiça Federal. Houve um erro humano.

Desqualificou-se a política, os partidos, e ficamos em um deserto. O legado da “República da Lava Jato” é a desertificação da política.

Qual foi o ponto de virada, no qual se notou que a Lava Jato estava indo além do que poderia?
Foi um processo. Começa com a revisão da política da chamada condução coercitiva. Havia as prisões demoradas, a que eram submetidos os indiciados nas ações, ações cercadas de espetaculosidade. A mídia participou disso, de uma forma inteiramente franca e aberta. Não existiria “República de Curitiba” sem a mídia.

Essas prisões prolongadas muitas vezes foram confirmadas pelo Supremo…

Mas de outras vezes, não. A sociedade também não estava atenta ao que se passava, na medida em que a luta contra a corrupção encontrou guarida na alma popular. Encontrou legitimidade nos anseios escondidos, ocultos, da sociedade.

Os integrantes da Lava Jato atendiam a uma demanda social?
É, eles foram levados à desgraça pelo sucesso. Foi um grande sucesso, não é? Chegou-se até a especular uma candidatura de Moro a presidente da República.

Isso está afastado?
Está. Moro sai desse processo inteiramente desqualificado como juiz. Ele foi parcial.
Que saldo fica?

O saldo primeiro, para mim, é o de que não se deve combinar ação política com ação judiciária. São duas dimensões: a política é uma coisa, a Justiça é outra. Houve essa combinação esdrúxula, e deu no que deu.

Mas isso, de certa forma, continua, não? Porque agora, com a decisão de Fachin, a Justiça também interveio na política…

Ah, continua. Isso agora faz parte do nosso DNA. A política se judicializou no Brasil. Por falta de política, falta de partido. Não se veem medidas judiciais interferindo na questão sanitária brasileira? Na compra de vacina? No lockdown? Isso foi trazido para a política pelos erros da própria política. E agora dificilmente sai.

Quais são as consequências do retorno de Lula à política?
O fato é que, para escapar da polarização extremada, Bolsonaro e Lula, seria preciso que as forças do centro tivessem outra capacidade de interferir nos acontecimentos. Mas o centro está fraco também!

Existe centro na política, com chances de sucesso eleitoral?
Não sei se o centro vai se reconstituir. Ele pode se reconstituir para ter um papel marginal. Penso que, se o PT tiver maior lucidez, não vai ser o protagonista da sucessão. Seria, nessa minha projeção utópica, o construtor de uma frente de centro-esquerda. Ele participaria, evidentemente, ativamente. Agora, sem o papel principal. É possível? Ele não tem história disso. Sempre procurou ser o protagonista. E ficou claro, no discurso de Lula, que isso vai persistir.

Voltando à Lava Jato: a postura messiânica do Ministério Público e da Justiça acabou?
A Lava Jato está acabada. Morreu de morte morrida.

Não foi de morte matada?
Não.

Não foi o STF que matou?
Pode ter sido um golpe de misericórdia, mas estava morta. Passou da conta. Foi um projeto messiânico de salvação do Brasil pela reparação da criminalidade, pela punição, pela extirpação do crime. Isso é uma proposta fora de sentido. Os males do Brasil não são esses. Tem corrupção, sempre teve. É necessário que se combata a corrupção de outra forma, não de uma forma que comprometa todo o tecido político, como se fez. Queriam salvar o País por mecanismos judiciários, pelo Código Penal. Não é por aí.

Em 2022, um candidato com a bandeira do combate à corrupção seria então enfraquecido?
Olha, a bandeira da luta contra a corrupção não fará parte da próxima sucessão eleitoral de forma protagônica. Vai ser um tema adjetivo, lateral.

Mulheres criam filhos, acumulam plantões e limpam a casa na folga, por Drauzio Varella

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O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação? Salários baixos e condições precárias

Drauzio Varella – Folha de São Paulo, 14/03/2021

Deu no que deu. É a crônica de uma tragédia anunciada: caminhamos para perder 3.000 brasileiros por dia.

Não temos estrutura hospitalar para dar conta dos que procuram os pronto-socorros e superlotam nossas enfermarias e UTIs, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por São Paulo, o estado mais rico.

É a consequência das ações e atitudes da autoridade máxima do país, que desde o início da epidemia fez de tudo para combater as medidas de prevenção, da irresponsabilidade demagógica de muitos governadores e prefeitos incapazes de impor restrições à movimentação nas cidades nos momentos cruciais e do egoísmo fraticida dos nossos conterrâneos que decretaram por conta própria o fim da epidemia, comemorado com desfaçatez perversa nas festas e aglomerações.

Quem teve o privilégio de nunca haver entrado numa UTI com todos os leitos ocupados não faz ideia do inferno vivido pelas equipes de plantão. As emergências e as solicitações são ininterruptas, atender a todas é humanamente impossível quando há 20 ou 30 pacientes em estado crítico e um punhado de
profissionais para cuidar deles.

Enquanto todos se mobilizam para socorrer um paciente em parada cardíaca, outro fica mais grave porque o aparelho de ventilação mecânica deixou de ser ajustado, ao mesmo tempo em que uma senhora inconsciente aspira o próprio vômito e o monitor de um dos leitos dispara o alarme para indicar queda da pressão arterial.

Quem já viveu situações como essas sabe que há horas nas quais nos sentimos tão estressados e impotentes, que dá vontade de sair correndo para nunca mais voltar.

A demanda crescente por plantonistas nas UTIs leva à contratação de profissionais que nem sempre receberam treinamento adequado. Para piorar, os salários baixos obrigam muitos a trabalhar em mais de um hospital.

A insegurança financeira, o medo de contrair o vírus e infectar os familiares, o cansaço físico, a sucessão de noites mal dormidas, a frustração por não conseguir realizar o melhor atendimento e o convívio com a morte onipresente causam impactos psicológicos que nem todos conseguem suportar.

Outro dia, ouvi o desabafo de um colega que, ao sair de um plantão no qual precisou dobrar o turno, para cobrir o horário de um companheiro que havia que havia morrido de Covid, passou por um bar na Vila Madalena lotado de gente sem máscara. “Senti vontade de descer do carro e esbofetear um por um aquele bando de imbecis.”

Nesta semana seguinte à do Dia da Mulher, quero fazer uma homenagem àquelas que estão na linha de frente do atendimento de pacientes com Covid. São enfermeiras, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, farmacêuticas, faxineiras, psicólogas, nutricionistas, médicas, atendentes e outras mulheres que constituem no mínimo 60% a 70% da força de trabalho dedicada aos cuidados com os doentes e seus familiares. Não fossem elas, o que seria de nós?

Essas figuras anônimas criam filhos sozinhas, gastam duas horas para ir e mais duas para voltar do trabalho, acumulam plantões em outras unidades de saúde para cobrir as despesas da família, cuidam das lições dos filhos, da saúde dos pais e ainda cozinham, fazem compras e limpam a casa nas horas em que deveriam descansar.

Quando vejo prestarem homenagens aos “médicos da linha de frente”, acho merecido, é claro, mas sinto falta do reconhecimento a essa legião de mulheres que administram os medicamentos prescritos, dão banho nos acamados, levam ao banheiro os que ainda conseguem andar, trocam as roupas de cama e as fraldas dos incontinentes, dão comida na boca, consolam os que se desesperam, seguram as mãos dos aflitos e ainda amparam os parentes inconformados, alguns dos quais transmitiram o vírus ao ente querido.

O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação aos mais frágeis? Salários baixos, condições precárias de trabalho e de assistência social. Quando perdem a vida por causa do vírus contraído no emprego, os filhos e os que dependem financeiramente delas ficam desprotegidos.

O que leva tantas mulheres a exercer uma profissão que lhes impõe tamanhos sacrifícios, renúncias, tristezas e frustrações para cuidar de pessoas que podem lhes transmitir um vírus capaz de pôr em
risco a vida delas e das pessoas que mais amam é um dos mistérios da alma feminina.

Degradação Econômica

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A pandemia está confirmando todas as previsões catastróficas feitas anteriormente pelos especialistas, vivemos num momento de degradação em todas as áreas, culminando no ambiente sombrio de desesperança e de incertezas. Em pleno século XXI, onde as tecnologias comandam a sociedade, aproximam as pessoas e estimulam a comunicação, estamos envoltos em medos, instabilidades e na ausência de empatia, nos sentimos inseguros, amedrontados e carecemos de lideranças e direcionamentos.

Recentemente, o governo divulgou os dados do produto interno bruto do ano passado, uma queda de 4,1%, pior indicador desde o começo dos anos 90, com sérios impactos sobre a sociedade, aumento no desemprego, queda do consumo, redução do investimento produtivo e degradações sociais. Os dados nos mostram que a economia brasileira está devastada, sem capacidade de recuperação, exigindo atuação de todos os agentes econômicos, num verdadeiro acordo entre todos os grupos sociais, deixando as críticas de lado e construindo novos consensos políticos, sem estes os números da degradação tendem a piorar.

A gestão econômica é caótica, os resultados positivos estão sempre adiados, as promessas de emprego não se efetivam, o crescimento do subemprego é patente, as esperanças do empreendedorismo crescem, mas num ambiente de negócio cada vez mais degradado, as esperanças inexistem. Os dados econômicos mostram uma piora em muitos setores produtivos, levando muitas empresas a deixarem o mercado nacional, como grandes conglomerados internacionais que estão de saída, como a Ford, a Sony, a Mercedes e a Audi, aumentando o desemprego, a informalidade e espalhando um caos generalizado.

Os dados divulgados recentemente mostram ainda, que a queda seria mais acentuada se o governo não atuasse mais efetivamente para estabilizar a queda na renda agregada, adotando políticas públicas como o auxílio emergencial, o programa de apoio às pequenas e médias empresas (Pronampe), o programa de preservação de empregos formais e a recuperação da economia internacional, cujos impactos foram positivos. Mais uma vez devemos destacar que, sem políticas públicas efetivas, transparentes e universais, não conseguiremos sair deste imbróglio econômico, social e político.

A pandemia desnudou as condições sociais existentes na sociedade brasileira, a pobreza se mostrou mais nítida e evidente, as limitações econômicas ficaram mais expostas e passou a exigir, de forma estratégica, a reconstrução do tecido industrial. Vivemos um momento de inquietação e incertezas, marcados pelas degradações sanitária e econômica, os investimentos em ciência e em tecnologia são fundamentais e inadiável, como forma de garantir a soberania nacional, reconstruir as bases da indústria nacional, estimulando a cooperação entre os setores produtivos e capacitando os trabalhadores para empregos mais dignos e decentes, dinamizando as demandas internas e incrementando a produtividade da economia.

Precisamos construir um projeto de nação, ressuscitando as ideias de desenvolvimento econômico, observando exemplos exitosos de outras economias, reorganizando os setores produtivos, estimulando os setores mais dinâmicos da economia nacional, reconstruindo os grupos mais vulneráveis da sociedade, investindo em ciência e tecnologia, deixando de lado discursos de curto prazo e construindo novas narrativas contemporâneas. Estamos num momento decisivo, precisamos de sinergias entre todos os setores, capacitando a sociedade para os embates que crescem numa sociedade marcada por instabilidades, inseguranças e incertezas generalizadas.

No momento necessitamos construir confiança e credibilidade, sem estes não teremos investimentos produtivos, gerando as sementes de crescimento da economia e contribuindo para o desenvolvimento econômico. Os indicadores divulgados mostram que, neste momento estamos, sem confiança, sem projeto econômico e sem consenso político, o país ruma rapidamente para o caos, para a degradação econômica e para a convulsão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno de Economia, 10/03/2021.

Profissão, qualidade e desenvolvimento econômico

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A sociedade vem passando por grandes transformações nos últimos anos, com impactos generalizados para toda a comunidade, levando as empresas a repensar seus modelos de negócios, os indivíduos estão perdendo os espaços no mundo do trabalho e os governos estão buscando novos instrumentos de desenvolvimento, com isso, numa sociedade em constantes transformações todos os agentes econômicos se mostram ansiosos e assustados com estas mudanças.

Estamos vivendo a quarta revolução industrial, desde o final do século do XVIII, o mundo passou por mudanças assustadoras, as estruturas foram destruídas e outras formas de sobrevivência nasceram e desenvolveram, desde então os indivíduos perderam seus eixos de comparação, estimulando as capacitações e qualificações constantes como forma de sobrevivência. Estas alterações impactam para todos os indivíduos, as empresas e o Estado Nacional, construindo novas concorrência e novos espaços de competitividade, reduzindo momentos de ociosidade e aumentando o tempo de qualificação, deixando uma diminuição crescentes das horas em convivência familiares.

Com o incremento da revolução industrial, novas ocupações e profissões surgem para impulsionar o desenvolvimento industrial, exigindo novos escolas e universidades na capacitação dos profissionais, surgindo novos cursos e modelos de negócios, impulsionando novos negócios na educação, crescendo e se consolidando na esteira das novas demandas do mercado do conhecimento. Novas ciências nascem neste intuito de estimular a consolidação das pesquisas e reflexões sociais, exigindo professores qualificados e remunerados, diminuindo até acabar com modelos de ensinos nas casas e nas residências, crescendo os investimentos em escolas públicas e particulares, se transformando a educação em um negócio muito atrativo e interessante para os donos do capital.

Setores educacionais crescem e impulsionam novos investimentos e atraindo setores privados e garantindo espaços na construção de conteúdos e metodologias. Estes investimentos contribuíram para o crescimento de estruturas educacionais e garantindo empregos e remunerações para professores e profissionais da educação, impulsionando novos setores que estão integrados para o setor educacional, angariando vários investimentos correlatos e deixando claros a importância dos setores educacionais e formação profissional.

Os setores educacionais foram fundamentais para impulsionar o crescimento das economias, levando economias ao caminho do desenvolvimento econômico, capacitando profissionais e contribuindo para o bem-estar social da sociedade, melhorando o salário da população, incrementando a renda, o consumo de todos os grupos sociais.

Nos últimos anos, ao analisar o caso brasileiro, perdemos o incremento acelerado de investimentos em setores educacionais, desde que o governo estimulou o crescimento destes setores, surgindo novos fundos de investimentos, criando grandes grupos econômicos, que despejaram recursos na aquisição de escolas, faculdades e universidades em todas as regiões do país. Estes investimentos contribuíram para aumentar a inclusão de estudantes nas universidades. Devemos destacar ainda, que este crescimento deve ser creditado pelas políticas públicas do governo federal, com investimentos maciços do setor educacional, onde devemos destacar o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e o crescimento do FIES, que abriu espaços para negros, pobres e marginalizados socialmente a entrarem nas universidades. Além desta política, devemos destacar o incremento do governo federal de novas universidades federais em variadas regiões e o incremento dos institutos federais, criando novos campis em todas as comunidades, contratando professores e garantindo espaços para cidadãos que, sem estes investimentos, dificilmente teríamos condições de ter acesso ao ensino superior ou cursos de nível técnico de qualidade e excelência.

Estes movimentos foram interessantes e aumentaram a qualificação da população, garantindo muitos grupos sem recursos financeiros e condições de demandar espaços no ensino superior, destacando nomes de relevo da intelectualidade e de empreendedores sociais, tais como destacamos Silvio Almeida, Djamila Ribeiro, autora dos livros “Lugar de fala”, “Quem tem medo do feminismo negro?” e “Pequeno manual antirracista”, dentre outros livros. Devemos destacar o intelectual e professor Silvio Almeida, advogado, professor universitário e jurista, autor dos livros “Racismo Estrutural” e “Racismo sem racistas”. Estes autores que fazem sucesso nas discussões contemporâneas só podem ser compreendidos através de políticas públicas que angariaram espaços para muitos negros e indígenas nos bancos escolares e das universidades, aumento a inclusão nas universidades públicas e fortalecimento a democracia, dando espaços para várias vozes e construindo novas oportunidades de ascensão social.

O papel da educação é fundamental para o desenvolvimento da sociedade, nenhum país se transforma em uma sociedade desenvolvida sem estudos de qualidades, empregos mais dignos e salários decentes, nestes países percebemos a importância dos investimentos educacional, desde os ensinos fundamental, ensino médio e ensino superior. Devemos salientar que a educação é fundamental para todo este crescimento, mas precisamos destacar que se faz fundamental da adoção de políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico. Sem estes investimentos no conhecimento, na pesquisa científica e na melhora educacional, perceberemos que teremos uma sociedade com quantidade de bacharéis sem empregos dignos, levando uma leva de trabalhadores altamente qualificados para se vender aos empregos precarizados, sem carteira de trabalho assinados, sem FGTS, sem férias, sem descanso semanal, como estamos percebendo os novos empregos no mundo contemporâneo, como aqueles atrelados com os da Uber, os chamados uberizados.

Destacamos ainda, que cabe aos investimentos em educação a construção de uma sociedade desenvolvida e qualificada, onde as universidades públicas e privadas precisam formar indivíduos capacitados e conscientes dos desafios da sociedade do conhecimento, a educação é uma concessão pública e devem ser cobradas das empresas privadas a entrega de uma mercadoria de qualidade, queremos educação de qualidade para todos os setores econômicos, sociais e políticos, desde que cumpram com seu papel de serviço de alta qualidade, não apenas setores que buscam lucros e crescimentos econômicos elevados, sem preocupações com a formação profissional, acadêmica e moral da sociedade.

Dowbor lê Mariana Mazzucato

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Livro da economista italiana mostra as engrenagens do rentismo. Desvinculado da economia real, deforma a noção de riqueza de países. Por emaranhados de instituições financeiras, acossa Estado e o setor produtivo — e endivida milhões de famílias…

Ladislau Dowbor

Outras Palavras – 04/-3/2021

Conhecemos bem Mariana Mazzucato pelo seu excelente estudo sobre o papel do Estado na economia moderna (O Estado Empreendedor), mas o presente livro, The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy (PublicAffairs, 2018), cujo subtítulo podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, é mais amplo, e sistematiza de forma clara e muito organizada as transformações do capitalismo nas últimas décadas.

Em termos econômicos, produzir e extrair constituem dinâmicas diferentes. Os magnatas das arábias se entopem de dinheiro vendendo o petróleo que nunca tiveram de produzir, inclusive repassando para corporações transnacionais a tarefa da extração, comercialização e transporte. Estão vendendo o futuro dos seus países, dilapidando recursos naturais de que as próximas gerações irão precisar. O petróleo alimenta não só os sheiks, como um mundo de acionistas pelo mundo afora, que dizem “investir” o seu dinheiro, e que passam a aumentar o seu capital à medida que o capital natural do planeta vai se esgotando. No Nordeste usam a imagem de “festa com o chapéu dos outros”, e a expressão traduz rigorosamente o que em economia chamamos de rentismo, que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Quem produz, no sentido de produzir efetivamente coisas úteis para a sociedade, tem lucro, que vai permitir que a pessoa aumente a sua ‘renda’. Quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”.

O livro de Mariana Mazzucato, The Value of Everything, analisa precisamente a diferença entre “Making and Taking” na economia global. Por que é tão importante? Porque o capitalismo atual gerou um mundo de parasitas que extraem renta por meio de um emaranhado de mecanismos de intermediação financeira, de pedágios sobre qualquer transação, permitindo fortunas absurdamente elevadas nas mãos de gente esperta, mas que trava a economia. “Renta – considerada como renda não ganha – foi classificada como uma transferência do setor produtivo para o setor improdutivo, e era em consequência excluída do PIB.”

Entender como se alimentam as maiores fortunas do planeta, e se agrava a desigualdade mundial, em proveito de gente que não só não produz como essencialmente descapitaliza a economia, é essencial para resgatar os rumos de uma economia que funcione. São os mecanismos que permitem entender como, em plena pandemia, com a economia em plena crise (com exceção da China), 42 bilionários no Brasil aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares, equivalentes a 180 bilhões de reais, seis anos de Bolsa Família, em praticamente quatro meses (entre março e julho de 2020), sem precisarem produzir, simplesmente cobrando juros, dividendos e outros ganhos financeiros. Inclusive ver a Bolsa subir enquanto a economia cai, é significativo.

Outro exemplo: a publicação Valor Econômico: Grandes Grupos apresentou em dezembro de 2020 a evolução dos 200 maiores grupos econômicos do país. Baseado em dados de 2019, portanto antes do impacto da pandemia, o estudo constata que “dos quatro setores analisados, apenas o setor de Finanças registrou aumento no lucro líquido (27,1%). Comércio (-6,8%), Indústria (-7,8%) e Serviços (-34,8%) caminharam para trás”. Trata-se não do conjunto da economia, mas dos grandes grupos, onde as finanças predominam, mas é impressionante. O estudo ressalta “o bom desempenho da área financeira, sobretudo bancos, cuja fatia no lucro líquido consolidado dos 200 maiores aumentou de 37,7% para 48,9%” (p.12). Traduzindo, o que rende é ser banco, e de preferência grande; não é produzir, é cobrar pedágio de quem produz. E quanto mais os intermediários financeiros extraem, menos sobra para o investimento produtivo.

A força do livro de Mariana Mazzucato é explicitar os mecanismos. “Hoje, o setor [financeiro] se expandiu muito além dos limites da finança tradicional, essencialmente atividades bancárias, para envolver uma imensa gama de instrumentos financeiros, e criou uma nova força no capitalismo moderno: gestão de ativos (asset management). O setor financeiro hoje representa uma parte significativa e crescente do valor agregado e dos lucros da economia. Mas apenas 15% porcentos dos fundos gerados vão para as empresas no setor de indústrias não-financeiras. O resto é negociado entre instituições financeiras, fazendo dinheiro simplesmente pelo dinheiro mudar de mãos, um fenômeno que se desenvolveu enormemente, dando lugar ao que Hyman Minsky chamou de “capitalismo de gestores de dinheiro” (money manager capitalism). Ou dizendo de outra maneira: quando as finanças fazem dinheiro ao servir não à economia ‘real’, mas a si mesmas” (p.136). O setor financeiro passou a “capturar uma parte crescente do excedente da economia” (p.124).

O sistema passou a drenar a capacidade de compra das famílias, o ritmo de investimento das empresas produtivas, e os investimentos públicos, pelo endividamento generalizado. As empresas abertas se veem drenadas na sua capacidade de expansão pelos dividendos cobrados pelos “investidores institucionais”. As fortunas dos mais ricos em vez de servirem para financiar atividades produtivas, passaram a ser geridas pela indústria de gestão de fortunas (wealth management). O comércio internacional de commodities passou a ser administrado por traders, grandes intermediários que criaram gigantes financeiros por meio dos chamados derivativos: o maior deles, a BlackRock, tem ativos da ordem de 8,7 trilhões de dólares, cinco vezes o PIB do Brasil. Desenvolveu-se a indústria de securitização, autêntica indústria de distribuição de riscos que levou em boa parte às crises sistêmicas, e que também cobra pedágios sobre as operações. As corporações financeiras são suficientemente poderosas para extrair parte dos nossos impostos por meio de suporte público direto (QE, Quantitative Easing) em volume que nos EUA superou 4 trilhões de dólares. O dreno é generalizado, os favorecidos nunca tiveram o trabalho de entrar numa fábrica, numa fazenda, num hospital. Administram papéis, hoje aliás simples sinais magnéticos.

Os bancos também cobram taxas impressionantes sobre o lançamento de ações de empresas (IPOs), e aplicam um conjunto de tarifas que oneram o setor produtivo. Financeirizar o ensino superior também se generaliza: temos hoje uma geração de jovens enforcados em dívidas que lhes permitiram aceder ao ensino superior, mas que eles irão carregar por décadas. Quando as contraíram lhes acenaram com os excelentes salários que iriam ganhar. A autora traz os diversos mecanismos que expandem a apropriação do excedente social por intermediários financeiros dos mais diversos tipos.

Um impacto indireto da financeirização é que ela deforma profundamente o nosso cálculo do PIB. Quando calculamos como aporte produtivo o que são custos adicionais de intermediários – obrigando-nos a sustentar uma imensa burocracia financeira privada – criamos uma falsa impressão de crescimento econômico. Contar os lucros dos atravessadores da atividade produtiva como aumento do PIB, portanto como expansão da própria produção, quando apenas aumentamos os custos com mais intermediários, constitui um absurdo ao qual Mazzucato dedica boa parte do livro.

Na realidade, trata-se de uma contabilidade simplesmente errada. Se eu tenho uma empresa produtiva, e tenho custos financeiros, esses serão incorporados no valor do meu produto final, fazem parte dos custos de produção. Mas se o dinheiro que eu transfiro para os bancos são igualmente contabilizados nos bancos como valor de produção, estou contando duas vezes a mesma soma no PIB. Na contabilidade tradicional, seriam deduzidos como “consumo intermediários”. Se eu produzo carros, e incorporo no meu custo final o que me custou o aço que comprei, em termos de contas, não posso contar como produto o aço da siderúrgica, pois já está incorporado no valor do carro.

Essa dupla contagem dos custos financeiros, uma vez no lucro dos bancos e outra vez no valor da produção final das empresas tomadoras dos serviços financeiros, é recente. “Durante grande parte da história humana recente, em radical contraste com o atual entusiasmo com o crescimento do setor financeiro como sendo um sinal (e estimulante) da prosperidade, os bancos e os mercados financeiros foram durante longo tempo considerados como o custo de fazer negócios. Os seus lucros refletiam o valor agregado apenas na proporção em que melhoravam a alocação dos recursos de um país.” (102) Mais recentemente, no entanto, “por meio de uma combinação da reavaliação econômica do setor e de pressões políticas exercidas, as finanças foram promovidas de fora para dentro das fronteiras produtivas – e no processo geraram o caos (havoc).” (105)

Assim, a partir da revisão do sistema de contabilidade nacional de 1993, os custos financeiros passaram a ser calculados como valor agregado, contribuindo para o PIB: “Isso transformou o que previamente era considerado como um custo, em uma fonte de valor agregado, da noite para o dia. A mudança foi oficialmente apresentada na conferência da International Association of Official Statistics de 2002, e incorporada na maioria das contabilidades nacionais bem a tempo antes da crise financeira de 2008. Os serviços bancários são naturalmente necessários para manter as rodas da economia girando. Mas isso não significa que os juros e outros encargos cobrados dos que usam os serviços financeiros sejam um ‘output’ produtivo” (p.108). “As contas nacionais agora declaram que estamos melhor quando uma massa maior da nossa renda flui para pessoas que “administram” o nosso dinheiro, ou que jogam (gamble) com o seu próprio dinheiro” (p.109). Para o Brasil, isso é muito significativo, pois os lucros dos intermediários financeiros, custos para a economia, permitem que o PIB apareça como “crescendo”.
Mazzucato apresenta uma série de exemplos de como isso deforma a economia, pelo fato de que custos de intermediários são apresentados como “produto”, aumento do PIB, portanto da prosperidade. Da mesma forma, os atravessadores que compram barato na mão do agricultor e revendem caro nos mercados poderiam apresentar os seus lucros como aumento do PIB, enriquecimento da sociedade. Na realidade, os fazendeiros recebem pouco dinheiro e podem investir menos na produção, e os consumidores irão comprar menos porque o produto está mais caro. O que acontece quando, como é atualmente o caso, expande-se a venda direta, online, do agricultor para o consumidor, é que os dois polos do ciclo, o produtor e o consumidor, ficam mais eficientes. Dizer que fragilizar o atravessador fragiliza a economia é absurdo.

Mas o que acontece nas formas como a economia analisa o processo? Mazzucato vai direto ao ponto: “Quando os custos da intermediação financeira se elevam em termos reais, nós celebramos o fortalecimento do setor vibrante e cheio de sucessos dos bancos e das seguradoras” (p.108). Na realidade, o que foi um setor que reunia poupanças e financiava atividades produtivas, fomentando a economia, transformou-se num dreno descontrolado, que torna claro como bilionários improdutivos, especuladores de Wall Street, banqueiros, no conjunto que Michael Hudson resume como FIRE (Finance, Insurances, Real Estate), especuladores imobiliários, traders internacionais – uma massa de intermediários improdutivos – controlam hoje tantas fortunas.

O livro de Mazzucato desdobra o raciocínio para a compreensão do rentismo por meio de patentes, e fecha com a análise do “mito da austeridade”. Não há como não lembrar aqui a clareza de Conceição Tavares: “Rendemo-nos à financeirização, sem qualquer resistência… O Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas”.

Naomi Klein: Por que voltar à crise de antes da crise?

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Por trás do colapso da Saúde e dos lucros obscenos dos super-ricos na pandemia, o fracasso neoliberal e a urgência de uma economia sustentável e baseada no Bem-Estar. Mundo está em mudança – e até políticos como Biden parecem aceitá-la

Entrevista ao La Vanguardia, com tradução na Carta Maior – 01/03/2021

O mundo vive um grande incêndio e não o estamos apagando, afirma a popular ativista Naomi Klein (Montreal, 1970) em seu novo livro “En llamas” (Paidós). Para ela, no meio do fogo, seguimos presos a todos os tipos de telas e fazendo selfies como se não vivêssemos em meio à sexta grande extinção e como se a emergência climática não pudesse tirar nossas vidas.

Autora de “Sem logo” e “A doutrina do choque”, Klein propõe um “Novo Acordo Verde”, uma mudança tão copernicana como a de Roosevelt após a Grande Depressão, mas verde e inclusiva para todos.

Quem foi o ganhador do choque do coronavírus?
Os bilionários das empresas tecnológicas. Chegaram a esta pandemia obscenamente ricos e se aproveitaram extraordinariamente. Jeff Bezos [CEO da Amazon] é o que mais [lucrou], e o Google realizou enormes avanços em nossas escolas. É a herança do neoliberalismo. O Estado estava tão frágil antes da crise que a tornou pior e mortal, com hospitais e serviços sociais já colapsados previamente e com a capacidade de produzir vacinas dentro de nossos países erodida. E por essa fragilidade muitas empresas tecnológicas puderam entrar em cena, uma privatização pela porta dos fundos.

O Vale do Silício é, então, o grande ganhador?
E as farmacêuticas. Conseguiram um grande negócio, bilhões em dinheiro público para pesquisar e desenvolver vacinas, mas embora o público tenha pago por elas, não as possui, estão protegidas pela propriedade intelectual. Não faz sentido. A razão de existir patentes é pelo investimento que as empresas fazem, mas não foram elas que fizeram, mas nós. É a mesma lógica neoliberal que rejeita reivindicar direitos públicos sobre o que é essencial para manter as pessoas vivas.

Essa fragilidade do Estado faz com que o Ocidente administre pior a crise do que outros lugares?
Os piores surtos tendem a ocorrer nos setores mais desregulamentados, onde muitos trabalhadores precários sofriam abusos, em granjas ou depósitos da Amazon. A isto se soma o corte em hospitais públicos em nome da eficiência, pois cada leito vazio era visto como um fracasso. Houve exceções como a Nova Zelândia, que decidiu desobedecer a lógica neoliberal e cuidar das pessoas.

Nos Estados Unidos, não. E isso alimentou a reação violenta, que tem a ver com as companhias tecnológicas e a desinformação viral, mas que atingiu esse volume porque as pessoas se sentiam descartadas e há uma compreensível suspeita sobre as grandes companhias e os bilionários. Tudo isto criou essa sopa tóxica em que, nos Estados Unidos, um número incrível de pessoas não acredita que a Covid seja real, mas uma conspiração de Bill Gates, e acredita na conspiração QAnon e que as eleições foram roubadas. Uma amputação total da realidade.

Qual a sua opinião sobre a nova normalidade?
Nossa normalidade já era uma crise. Por que iríamos querer voltar a isso? Dá ânimo ouvir Joe Biden falar em não voltar à normalidade e usar esta crise como um catalisador para transformar, dá ânimo que fale que não existe somente uma crise de saúde pública, mas também climática, de desigualdade econômica e de injustiça racial.

O trabalho que fizemos nas décadas passadas, formulando como poderia ser a economia do futuro, era sobre como resolver múltiplos problemas ao mesmo tempo. Reconhecer que estamos em crises sobrepostas: devemos reduzir as emissões, lutar contra o racismo sistêmico e fechar a lacuna da desigualdade, tudo ao mesmo tempo. Por que voltar à crise de antes da crise?
Disse que o capitalismo não serve contra a crise climática, que é preciso mudar o sistema operacional.
A mudança não será trazida pelo mercado ou pelos bilionários. Bill Gates lança um livro esta semana, vai nos salvar. Nem com boas intenções funcionará, a mudança de sistema é tão ameaçadora para os que se beneficiam, que tentarão mudar sem mudar, isso é o que os leva a ideias como a geoengenharia ou a energia nuclear em grande escala. Com o capitalismo há um choque entre a necessidade de um crescimento econômico sem fim e a crise ecológica, da qual o clima é uma parte.
Nosso esgotamento do mundo natural é a crise central e precisamos de uma economia muito mais atenciosa, que comece perguntando o que é necessário para ter uma boa vida, respeitando os ciclos de regeneração do planeta. Como garantimos que todos tenham o suficiente dentro dos limites do planeta e construímos a partir daí. É uma pergunta diferente de como gerar crescimento econômico no próximo trimestre. Não digo que nisto não exista lugar para os mercados, mas não o podem guiar.

O que seria o Green New Deal (Novo Acordo Verde)? Envolve muitos sacrifícios?
Os princípios básicos de qualquer Green New Deal supõem seguir a ciência climática para que o aquecimento do planeta não ultrapasse 1,5 grau. E que seja guiado pela justiça: que as pessoas que fizeram menos para criar esta crise e estão na linha de frente de seus efeitos sejam as primeiras a receber apoio para a transição, tanto dentro dos países ricos como no que os países ricos devem aos do Sul.
Outros princípios são que os trabalhadores em setores de alto carbono não sejam deixados para trás. E ver em que áreas podemos nos permitir ter abundância. Não no consumo esbanjador, mas, sim, em áreas onde hoje há escassez: saúde, cuidado do lar, de crianças, de idosos, um setor baixo em carbono.
Devemos colocar a energia da recuperação pós-covid não em um, mas em milhares de Green New Deals em cada setor, que os especialistas de cada área projetem o seu. Já conseguimos uma grande vitória: Biden, que não é um radical, soa agora como um militante do movimento Sunrise. É a ideia de que necessitamos de uma resposta contra a mudança climática que tenha justiça social, crie trabalhos, repare injustiças e não diga às pessoas que precisam escolher entre alimentar suas famílias ou se preocupar com o meio ambiente.

É otimista em relação a Biden?
Não, em relação a nós. Ele foi político a vida toda e durou porque sabia qual vento soprava em cada momento. No neoliberalismo, ia com ele. Agora, reformula-se como o “novo Roosevelt”, não por ele, mas pelas forças que o empurram. Se ele pode mudar, qualquer um pode.

Trump seria presidente sem a pandemia?
É um pensamento terrível, mas provavelmente sim. Sua época foi de incansável vandalismo. A imagem de seus seguidores no Capitólio saqueando mostrou o que foram os anos de Trump: saquear o Estado à luz do dia.

Socorro espiritual na pandemia

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Vivemos um momento de medos e preocupações em todas as regiões do globo, a pandemia está alterando os comportamentos, as pessoas estão amedrontadas, as dificuldades crescem e criam desesperanças em todas as nações, da mais ricas as mais empobrecidas, estamos vivendo sem rumos, a população carece de informações seguras e confiáveis para acalmar os corações e clamamos por líderes conscientes e capacitados para conduzir neste momento de guerras, onde os inimigos são invisíveis e dotados de forte potencial de destruição.

Neste momento de desesperanças, muitas pessoas se revoltam com os desígnios divinos, enfatizando que, nesta pandemia, fomos abandonados pelo mais alto, se acreditando sozinho e desassistidos, criando um caldo de depressão, ansiedades e, muitos nos momentos de desesperos, cometem o maior dos crimes que os seres humanos podem cometem, o suicídio. Neste momento, as dores crescem de forma acelerada, os medos aumentam, os distanciamentos, as dores da alma e se percebem, cada vez mais, vitimados por inimigos espirituais, muitos deles são dotados de ódios, mágoas e ressentimentos.

A sociedade presencia momentos de destruições e devastações, onde espíritos desencarnados se aproveitam da situação para arquitetar as mais íntimas vinganças, acreditando que suas atitudes tresloucadas ficariam sem punição, neste momento de desesperos as pessoas percebem as vulnerabilidades que estão envoltos na sociedade, sendo que, somente aqueles que comungam com os verdadeiros sentimentos de moral e de solidariedade, mesmo percebendo os ataques das trevas, sentem a proteção e o amparo dos espíritos elevados.

Nesta pandemia, a comunidade se esquece de inúmeras pessoas que se desdobram para melhorar o ambiente dos indivíduos, profissionais das mais variadas áreas da saúde, religiosos e líderes espirituais que se dedicam para levar os corações mais degradados pelas dores e ressentimentos, são espíritos elevados que se desdobram para amenizar as dores das almas mais fragilizadas, levando conforte e esperanças. Estes espíritos atuam em todos os cômodos da sociedade mundial, desde os mundos espirituais, no invisível, nas colônias espirituais e nos mundos materiais, são verdadeiros espíritos de luz que desdobram para enxugar as dores dos que sofrem, se angustiam e se desesperam.

No livro Nosso Lar, psicografia de Francisco Cândido Xavier, ditado pelo espírito André Luiz, destacamos um momento de preparação da colônia para receber a chegada de espíritos vitimados pela segunda guerra mundial, um momento de grandes dores e desesperanças, onde a espiritualidade se preparou para receber, da melhor forma, os desencarnados no conflito. A chegada destas entidades no mundo espiritual foi planejada pelos dirigentes da colônia, as pessoas estavam muito assustadas e revoltadas com a situação, o conflito gerou grandes degradações em todas as regiões, a atuação dos socorristas do mundo imaterial foram fundamentais para equilibrar os desencarnados, confortar os familiares e contribuir para enxugar as dores mais íntimas dos corações emocionados.

Vivemos um momento parecido nos períodos de guerras e conflitos militares, nos planos superiores os espíritos se desdobram para auxiliar as pessoas vitimadas pelo vírus do covid-19. Os medos crescem, os conflitos se intensificam e as desesperanças acometem todos os espíritos, suas lágrimas reverberam para todos os familiares, gerando desequilíbrios sentimentais, ressentimentos generalizados e, neste momento, o auxílio espiritual é fundamental, sem estes amparos as dores se tornam cada vez mais intensas, levando-os a loucuras imediatas, violências e crueldades.

Os espíritos se fortalecem para auxiliar os recém desencarnados, unindo em prol da comunidade material, fortalecendo suas energias e angariando novos instrumentos de proteção, sabendo que o desafio gerado pelo coronavírus exige os mais sentimentos dos seres humanos e espirituais, amor, solidariedade e caridade.

A sociedade mundial está envolta em grandes dificuldades, o planeta Terra é um espaço de expiação e provas, neste momento sabemos que a felicidade não faz parte deste mundo, somos viajantes de uma embarcação que não nos garante a felicidade total, vivemos momentos de felicidade, espasmos de alegrias combinadas com dores, tristezas e frustrações, desta forma caminhamos em prol de momentos melhores e mais consistentes, rumando para um mundo de regeneração. A pandemia pode ser compreendida como um passaporte para esta evolução, embora não queiramos compreender, este momento é fundamental para a construção de nossa ascensão como seres humanos e, principalmente, como seres espirituais.

A pandemia nos dá a oportunidade de compreendermos os rumos que a civilização está caminhando, este momento percebemos que a solidariedade entre os seres humanos se mostra cada vez frágeis, os grupos mais abastados se esquivam de adotar políticas em prol dos mais fragilizados, com isso, as dores e as mortes crescem de forma acelerada. No mundo capitalista, centrado na acumulação e enriquecimento, onde a concorrência se torna a bíblia sagrada dos novos capitalistas, o capital se tornou a grande religião, seu poder destruidor aumenta e a desigualdade cresce, levando os grupos mais vulneráveis ao desencarne e a degradação. Estas elites precisam desenvolver a empatia e a solidariedade, sem estes sentimentos perceberemos que o crescimento do coronavírus tende a matar milhões de pessoas, deixando um rastro de ódios e ressentimentos em classes, levando os países a convulsões sociais.

Neste momento, todos os grupos precisamos de união para superar este inimigo invisível, que muitos poderiam acreditar que o vírus seja o grande inimigo da sociedade global, mas estamos nos referindo aos vírus do desamor e da falta de solidariedade, estes sentimentos são cruciais para reconstruir as bases do mundo globalizado. A ciência contemporânea nos deu mostras claras de seu desenvolvimento nos últimos anos, os maquinários de comunicação cresceram de forma acelerada, a informática aproximou as pessoas de todas as regiões do mundo, os desenvolvimentos das áreas da saúde, as novas técnicas de tratamentos, as pesquisas educacionais avançaram em algumas regiões, todo este crescimento deve ser celebrado efusivamente, mas precisamos destacar que precisamos abrir caminho para sentimentos melhores, os respeitos para os seres humanos, a inclusão e a solidariedade são instrumentos de caridade, expressão destacada pelos conhecimentos espíritas, que se preconizou a importância da caridade para a construção dos laços de amor e evolução espiritual.

Neste momento percebemos autoridades irresponsáveis se utilizando da situação de medos e desesperos da população para enriquecer, desviando recursos escassos e acreditando na ausência nas punições, esquecendo que, muitas vezes, esta punição na virá no mundo material, um ambiente marcado por irresponsabilidades e injustiças, mas num outro momento, já que acreditamos fielmente na existência de outras vidas e locais melhores, marcados pela justiça, pela punição e pela responsabilização de seus comportamentos.

Muitas pessoas querem acreditar que a pandemia é uma punição divina, esta visão é muito limitada e imediatista, alguns enxergam a existência de um Deus autoritário e arbitrário, como aquele existente no período feudal, que foi criado pelas religiões como forma de gerar medos e subserviências, garantindo poder político e benesses econômicos. O espiritismo nos mostra que o Deus é sempre amor e solidariedade, nada de punição e autoritarismos, vivemos um momento de grandes consequências, estamos colhendo as escolhas que fizemos anteriormente, apoiamos o imediatismo, o mundo do consumo nos traz prazeres e deixando as leituras edificantes e nos alegramos com os programas superficiais, as escolas transformam as narrativas e se concentram no enriquecimento, estimulando a construção de consumidores e deixando de lado os cidadãos, mostrando através da educação que vivemos, ou deveria viver, numa sociedade marcada por direitos e por deveres, este último sempre esquecidos.

Neste momento percebemos os hospitais lotados no mundo material, ao mesmo tempo, percebemos que os relatos vindos do mundo espiritual, que na pátria espiritual os hospitais também estão lotados, as pessoas desesperadas, os ressentimentos crescem, as energias negativas se avolumam, a saudade de seus familiares e a desesperança cresce, vivemos um momento de transformação que exige a união e a solidariedade. A oração deve ser estimulada todo o momento, neste instante de desesperança a ligação com os entes espirituais deve ser aumentada, as famílias devem ser fortalecidas, as amizades devem ser consolidadas, as rivalidades devem ser esquecidas, as desavenças devem ser deixadas de lado e, posteriormente, devem ser transformadas em espaços de solidariedade e conscientização espiritual, deva forma, perceberemos que o caminhar, neste momento de adversidades, será mais protegido e iluminado.

A pandemia desnudou as pobrezas materiais da humanidade, vivemos numa guerra fratricida entre ricos e pobres, a desigualdade é a tônica do mundo contemporâneo, a ciência foi apropriada por pequenos grupos mais aquinhoados, controlando as riquezas da sociedade e monopolizando a informação e o conhecimento, uma sociedade como esta não se sustenta, este modelo econômico é excludente e se compraz com a degradação, desta forma conseguiremos compreender os rumos desta caminhada, somos frutos de nossas escolhas, se vivemos a pandemia somos responsáveis pelas destruições e seremos chamados a prestar contas por todas as destruições que estamos presenciamos, somos responsáveis pelas escolhas anteriores, são estas escolhas que levamos para a pandemia, pela ausência da solidariedade e pela ausência da empatia. Precisamos repensar as escolhas, logo estaremos num outro estágio do ser humano e responderemos pelas escolhas imediatas, no mundo espiritual teremos que responder pelos nossos equívocos e pelo imediatismo e não poderemos colocar a culpa de nossas desditas por outros atores.

Economia compartilhada

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A ciência econômica vem passando por grandes alterações estruturais desde o começo XXI, principalmente depois da crise imobiliária dos Estados Unidos que impactou sobre toda sociedade internacional, onde somamos o incremento das tecnologias das comunicações e da informação, alterando modelos estabelecidos e consistentes, contribuindo para a construção de novas estruturas produtivas e percebendo os grandes desafios para a sociedade global, dentre eles destacamos a degradação do Meio Ambiente, o crescimento da pobreza e da desigualdade, os conflitos culturais, o aumento da xenofobia e as preocupações crescentes do avanço da pandemia, que dizimou milhões de cidadãos nas mais variadas regiões do mundo.

O crescimento da tecnologia está destruindo novos modelos de negócios, até então tradicionais e consistentes, aproximando as pessoas e construindo novos horizontes para as empresas, os governos e indivíduos, exigindo flexibilidades e agilidades, sob pena de perderem espaços nos mercados globais, sendo substituídos por novos concorrentes, mais consolidados e mais integrados nos modelos da sociedade do conhecimento.

Destacamos o crescimento da economia compartilhada, um modelo que ganha espaço em todas as regiões do mundo, mostrando novas perspectivas de desenvolvimento de negócio, contribuindo para o crescimento da economia e criando espaços para a integração de empreendedores e consumidores. Neste modelo, as pessoas trocam as compras dos produtos pelo uso dos serviços, motivando novas oportunidades de negócio. Este modelo de compartilhamento só é possível devido ao crescimento da internet e o crescimento do desenvolvimento de novos instrumentos de comunicação e de informação, aproximando pessoas nas mais longínquas regiões do mundo, disponibilizando serviços variados.

Um dos mais exitosos modelos de compartilhamento foi a Netflix, que alterou comportamentos arraigados, criando espaços para assistir programas e séries, deixando de lado a posse física de produtos e passando a disponibilizar várias plataformas, uma verdadeira revolução, que destruiu modelos tradicionais e criou novos negócios para os setores sociais e culturais.

A economia do compartilhamento altera o modelo de produção do capitalismo contemporâneo, deixando de lado a posse dos produtos, dos bens e dos serviços. O novo modelo se preocupa com os limites do meio ambiente, contribuindo para a conscientização dos cidadãos, estimulando novas realidades sociais e ambientais, engajando a sociedade para nossos futuro comum.

A internet, a tecnologia e os conhecimentos científicos estão transformando as bases da sociedade, exigindo novos investimentos nos setores educacionais, nas pesquisas e na formação do capital humano, deixando conflitos e discussões desnecessárias e melhorando as discussões sobre os rumos de nossa sociedade, deixando questões conjunturais superficiais e estimulando novos espaços de discussão dos rumos do país. Esta discussão deve ser encabeçada por todos os agentes sociais e atores econômicos, construindo novos espaços de integração e compartilhando responsabilidades, com transparência e cobranças dos grupos envolvidos, deixando de lado interesses imediatos e corporativos em prol de interesses nacionais.

A economia do compartilhamento nos traz novos horizontes para a sociedade, seu impacto pode ser positivo para os seres humanos, mas é fundamental entendermos que a construção de uma sociedade desenvolvida precisa incluir todos os grupos sociais, aumentando as oportunidades, incrementando investimentos em capital humano e na construção de uma agenda que olhe para todos os setores mais fragilizados da sociedade, sem esta visão, infelizmente, viveremos espasmos de crescimento econômico com empregos degradantes, violência crescente, conflitos generalizados e incremento de ódio e ressentimento, dessa forma não conseguiremos criar uma verdadeira nação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/03;2021.

Dois anos de desgoverno – a política da caverna. Por Ricardo Antunes.

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A Terra é redonda, 20/02/2021.

Bolsonaro é expressão de uma variante de semibonapartismo, um reles gendarme da classe dominante, uma espécie de Trump dos grotões.
“Finalmente, a ralé da sociedade burguesa constituiu a sagrada falange da ordem e o herói Crapulinski se instaura nas Tulherias como o “salvador da sociedade”. (Marx, O 18 Brumário).

1.

Bolsonaro apresentou-se, durante a campanha eleitoral de outubro de 2018, como sendo um “radical” crítico do “sistema”, embora seja sua autêntica criação, onde nasceu e proliferou. O mesmo “sistema”, vale dizer, que foi responsável pelo golpe parlamentar em 2016.
Aproveitando-se de uma conjuntura internacional favorável, bem como de contingências internas que muito lhe beneficiaram no período imediatamente anterior às eleições presidenciais, o inesperado acabou por acontecer. A “contarrrevolução preventiva”, para recordar Florestan Fernandes,[1] que estava em curso desde o golpe que levou Temer ao poder, acabou por abrir o caminho para o trágico desfecho nas eleições em 2018.

Como tentar caracterizar, ao menos preliminarmente, o governo Bolsonaro?

Penso que o ex-capitão é expressão de uma variante de semibonapartismo, isto é, trata-se de uma figura política que, não sendo originária diretamente das classes burguesas, as representa fielmente, mesmo que, para tanto, procure assumira aparência de independência e autonomia, ainda que, de fato, seja um reles gendarme da classe dominante.

Os traços pessoais do “líder” são, como muitos tem indicado, claramente neofascistas, oscilando sua ação política entre a preservação de uma raquítica formalidade “democrática”, mas sempre carregando o sonho inabalável de dar o golpe e implantar uma ditadura. Enquanto o bote não pode ser dado, atua como um autocrata da ordem, respaldado na enorme militarização que vem sendo realizada cotidiana e sistematicamente em seu governo.

A fórmula encontrada para estruturá-lo – visto que sua candidatura se mostrou como a única capaz de vencer o PT nas eleições em 2018 – foi combinar a autocracia militarizada com a implantação de uma política econômica ultraneoliberal, predatória, que foi a exigência feita pelo grande capital para que sua candidatura fosse efetivamente apoiada. O empresariado, sabendo do desequilíbrio que tipifica o candidato, temia por algum arroubo nacionalista (de direita), que fora largamente defendido pelo ex-capitão em seu passado parlamentar.

Numa síntese direta: Bolsonaro é uma espécie de Trump dos grotões.[2]

2.

Seus primeiros dois anos se constituíram, como era possível de se prever, na maior tragédia econômica, social e política do país em todo o período republicano. Não há, em nenhum outro momento da história mais do que secular da nossa Republica, nada que se aproxime à devastação tão profunda e tão agudamente destrutiva que estamos presenciando hoje.

O cenário já sinalizava um período muito duro, uma vez que, desde que o início da década de 1970, ingressamos em um longo período de crise estrutural do sistema de metabolismo antissocial do capital, para lembrar István Mészáros,[3] que gerou o ideário e a pragmática neoliberais, sob forte hegemonia financeira. Tendência que se aprofundou significativamente a partir do biênio 2008/9, criando as condições para que se forjasse uma contrarrevolução burguesa de amplitude global, especialmente a partir de eleição de Trump nos EUA.

Foi neste contexto que a nossa classe dominante, abandonando completamente qualquer resquício de apoio formal à institucionalidade “democrática” (que em verdade nunca esteve em seu horizonte, nem político e nem ideológico) assumiu abertamente sua desfaçatez colonial, escravista e quase prussiana, o que lhe permitiu rapidamente pular para a banda (ou o bando) do ex-capitão, ajudando assim a forjar um monstrengo politicamente autocrático, militarizado e ideologicamente primitivo e negacionista, desde que ancorado economicamente na variante mais rudimentar do neoliberalismo, ou seja, aquela que quer reduzir tudo a pó. Não por acaso, uma das tantas inspirações de Paulo Guedes e Bolsonaro, encontramos na política econômica do medonho governo de Pinochet, tão corrosivamente neoliberal quanto indigentemente ditatorial.

O que vivenciamos, então, nesta primeira metade do Governo Bolsonaro pode ser assim resumido: desmonte avassalador da legislação social protetora do trabalho; destruição da política de seguridade social, com a aprovação da Reforma da Previdência Pública – em verdade sua destruição – aprovada no dia 22 de outubro de 2019, na qual os assalariados mais pobres foram excluídos de uma efetiva previdência pública, restando-lhes, no máximo, um assistencialismo vergonhoso e acintoso.

No universo sindical, ampliaram-se as medidas repressivas do governo visando o enfraquecimento dos organismos de classe, além de tolher ainda mais o âmbito de atuação da Justiça do Trabalho, empurrando-a cada vez mais para os “valores do mercado” e para a aceitação das imposições oriundas do “mundo corporativo”, do qual a legalização do ilegal trabalho intermitente é o flagelo mais evidente e aberrante.

Vale dizer que esta proposição já estava estampada no programa eleitoral do ex-capitão e seu fiel escudeiro. A denominada Carteira de Trabalho “Verde e Amarela”, bem o sabemos, tem como leitmotiv implantar o sonho das burguesias predadoras, no qual “o contrato individual prevalecerá sobre a CLT”, derrogando de vez o que resta da legislação do trabalho no Brasil.

No plano da destruição da natureza, também não há paralelo em toda a história recente do país. Tivemos uma liberação recorde de agrotóxicos e defensivos agrícolas que adulteram os alimentos, tornando-se ainda mais prejudiciais à saúde pública. As queimadas e a devastação da Amazônia e Pantanal (dentre tantas outras áreas verdes) agudizaram o traço destrutivo desse governo, para beneficio das burguesias vinculadas ao agronegócio, à extração de minérios, madeira etc.

Economicamente, ainda que suas medidas devastadoramente neoliberais tenham gerado catarse na classe dominante, a eclosão da pandemia fez soçobrar o projeto presente em sua política da caverna.[4] O culto da ignorância, na pior linhagem trumpiana, o desprezo e combate à ciência, à saúde pública, tudo isso acabou por levar o país ao fundo do poço, tanto no plano sanitário, quanto no econômico.

Foi esse quadro catrastrófico que forçou o governo a criar uma renda emergencial, sem a qual a economia entraria em crise depressiva ainda mais profunda, sem falar no temor de que tal situação pudesse deflagrar uma onda de revoltas e rebeliões sociais.

As reformas tributária e administrativa, as novas privatizações (incluindo a Petrobrás, bancos públicos etc.), também estão no tabuleiro negocial deste governo. Se esta é a impulsão que vem do neoliberalismo primitivo de Guedes, vale, então, indagar como agirá o Centrão, frente a essa realidade? Isto porque, todos sabemos, o pântano encontra e agasalha o seu quinhão não só através da barganha negocial parlamentar, mas também através do saque das empresas públicas.

E mais: se a recessão econômica não for estancada e não der sinais de retomada do crescimento, como agirão as distintas frações do grande capital, temerosas de repetir, em 2021, a retração dos ganhos e lucros que imaginaram obter, quando apoiaram e elegeram esse governo? Em 2020, os lucros que pretendiam obter, viram escorrer pelos dedos das mãos, consequência não só da pandemia, mas da trágica condução governamental frente a essa brutal crise sanitária.

Politicamente, já indicamos que Bolsonaro, ora avança em direção à ruptura da institucionalidade jurídico-parlamentar, ora a ela se amolda, pois percebe que o cerco ao seu governo pode levar ao seu fim (arrastando também toda a sua famiglia). É só por isso que o ex-capitão caminha entre estas duas pontes. Sonha com a ruptura institucional e com o golpe ditatorial, mas teme ser fagocitado, se a tacada não der certo. Aqui, vale dizer, tem papel decisivo a postura e ação das Forças Armadas, tema difícil e que se mostra cada vez mais grave, merecendo, por isso, ser tratado em profundidade e por especialistas.

Antevendo os riscos políticos que estava correndo, o defensor da “nova política” e do “fim da corrupção”, em flagrante evidência de estelionato eleitoral, recorreu ao colo do Centrão. Deu-lhe tudo que foi exigido e assim conseguiu arrastar uma instável maioria dos deputados – o conhecido pântano – de modo a tentar se safar do processo de impeachment. Risco, vale dizer, que aumenta cada vez mais, vistos os resultados desastrosos da política genocida do governo em relação à pandemia, cuja letalidade não para de crescer assustadoramente. E, uma vez mais, a maioria do Parlamento brasileiro se curvou às moedas reais, aniquilando de vez o minguado resquício de respeito que talvez ainda pudesse encontrar junto à população, para recordar a cortante crítica de Marx.

Por tudo isso, uma vez mais o desfecho deste quadro agudamente crítico parece nos remeter à anatomia da sociedade civil, uma vez que a crise tende a se exacerbar nesta segunda metade do mandato de Bolsonaro. Mas, atenção, pois aqui não se fala só de economia e nem só de política, mas de algo um pouco mais profundo: a economia política.

3.

Por tudo isso, o cenário que se descortina para o biênio 2021/2 é ainda mais imprevisível. Os níveis de desemprego explodiram e não param de crescer, a tal ponto que a informalidade já não consegue absorver os bolsões de desempregados/as. Um exemplo disso vimos nos dados do IBGE, de maio de 2020, que indicavam a redução dos níveis de informalidade, uma vez que também neste universo o desemprego estava se ampliando. Foi assim que, dentre as tantas “conquistas” deste governo-de-tipo-lumpen (figuração que, creio, não precisa ser explicada) mais um novo personagem da tragédia social brasileira foi criado: o informal-desempregado, adicionando ainda mais brutalidade ao monumental contingente de desempregados/as que ampliam os bolsões de miserabilidade no Brasil. Em 2014, depois de visitar a Índia, escrevi que nosso país caminhava para se tornar uma Índia latino americana. A provocação parece que fazia algum sentido…

Evidencia-se, assim, a decomposição econômica, social e política do governo Bolsonaro. Como consequência, nas classes populares, o apoio obtido em 2018 se retrai expressivamente. Processo similar vem ocorrendo também nas classes médias, que lhe apoiaram majoritariamente até pouco tempo e que parece estar se desmoronando, como resultado da política letal de combate à pandemia, com centenas de milhares de mortos e que repete, em versão muito pior, como vimos em Manaus, a morte por asfixia de milhares de doentes que não encontraram atendimento nos hospitais públicos.

Por certo, o núcleo duro do bolsonarismo, ou seja, aqueles que berram como debiloides trotando em manada, ao que tudo indica seguirá com o seu “Mito” até o fim, mesmo quando ele pratica as ações mais indigentes.

Por tudo que indicamos anteriormente, então, a luta pela deposição do governo Bolsonaro não resultará de uma iniciativa parlamentar, mas somente poderá vir a ocorrer como desdobramento de amplas manifestações populares, capazes de empurrar os deputados a abandonar o barco bolsonarista.

Neste cenário, é possível que presenciemos um movimento dúplice, que poderá se desenvolver tanto “pelo alto”, sob o comando das classes burguesas, quanto “pela base”, isto é, no universo das classes populares.

É possível imaginar, por um lado, que a oposição burguesa possa vir a desencadear um processo de descolamento em relação ao governo autocrático e semibonapartista que elegeu, o que poderá ocorrer se a crise econômica se intensificar e aprofundar ainda mais o quadro recessivo ao longo desta segunda parte do mandato.

Por outro lado, com o arrefecimento da pandemia, uma vez concluída uma etapa expressiva da vacinação, tudo indica que veremos florescer, nas ruas e praças públicas, um crescente movimento popular de repulsa e confrontação, exigindo o impeachment deste (des)governo. Mas é preciso acentuar que esse segundo movimento, de oposição social e popular, não deve ter nenhuma ilusão, nem com a oposição pelo alto e muito menos com o Parlamento. Tanto a primeira, a ação burguesa, quanto a parlamentar, serão tentadas a empurrar a “resolução” da crise para as eleições de 2022, na esperança de fazer a sucessão ao seu modo, sob seu comando e controle.

Já a oposição social e popular terá que se reinventar, evitando especialmente aquele que tem sido (recorrentemente) o seu principal erro social e político, que é o de atuar como cauda da burguesia, para uma vez mais lembrar Florestan Fernandes. Já é hora de se compreender definitivamente que a política de conciliação de classes é, ao mesmo tempo, um grave equívoco político e, mais ainda, uma impossibilidade real, uma vez que as forças econômicas do capital e as forças sociais do trabalho são entificações sociais inconciliáveis. Os governos do PT, ao longo de quase quatro governos, foram a evidência última e maior desta impossibilidade.

Em outras palavras, somente com uma forte confrontação social e política, extraparlamentar em sua centralidade, capaz de aglutinar um leque de forças populares das cidades e dos campos, poderá ser capaz de dar impulsão ao impeachment do governo Bolsonaro e de sua tropa. E esse movimento social e político encontra ancoragem nas lutas e resistências da classe trabalhadora, com seus sindicatos e partidos de classe, que devem decididamente abandonar a prioridade da ação institucional. Do mesmo modo, encontra densidade no vasto e ampliado conjunto dos movimentos sociais das periferias e no movimento negro antirracista. Deve decisivamente incorporar também as rebeliões feministas e LGBTs que lutam contra as múltiplas e persistentes formas de exploração/opressão, dimensões que estão profundamente inter-relacionadas. Last, but not least, encontra suporte nas vitais lutas das comunidades indígenas, no movimento ambientalista anticapitalista, nas revoltas da juventude etc., sem ter nenhuma ilusão com as forças burguesas, cujas portas quando se abrem, é para lhes conferir o papel de subalternidade. Tão logo seus objetivos são atingidos, celeremente as portas se fecham. Vide a deposição de Dilma.

Somente através dessa impulsão social e popular é que a luta pelo impeachment do governo Bolsonaro poderá efetivamente avançar. Se as praças públicas se avolumarem, através da presença multitudinária de amplos contingentes sociais e políticos, só então o Parlamento se verá obrigado a pautar aquilo que vem do clamor popular e assim, finalmente, pautar o impeachment do governo Bolsonaro.

E se esse movimento de deposição, por algum motivo, não se concretizar, ao menos estaremos dando início à criação de uma oposição social e política que poderá efetivamente pensar no que fazer em relação às eleições de 2022.

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho no IFCH-UNICAMP. Autor, entre outros livros, de O privilégio da servidão (Boitempo).

Notas
[1] FERNANDES, F. (1975). A revolução burguesa no Brasil. São Paulo, Zahar, 1975.
[2] Utilizei esta expressão no livro Politica della caverna: La controrivoluzione di Bolsonaro, Roma, Castelvecchi, 2019.
[3] MÉSZÁROS, I. (2002) Para Além do Capital. São Paulo, Boitempo.
[4] Ver Politica della caverna e também O Privilégio da Servidã, p. 293/302.

Dois anos de desgoverno? – um projeto criminoso. Por Laymert Garcia dos Santos.

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A Terra é redonda, 27/02/2021.

Com a pandemia, o genocídio passa a se configurar efetivamente como política estatal.
A equipe editorial do site A Terra é Redonda concebeu a publicação de uma série de artigos sobre a era Bolsonaro intitulada “Dois anos de desgoverno”. O que leva a interrogar-me sobre o que teriam em mente e a pensar, antes de tudo, no sentido ambíguo do termo proposto.

Com efeito, numa acepção primeira, mais frequente, desgoverno designaria um governo errático feito uma biruta, desorientado, sem rumo definido. A ser verdade, estaríamos diante de uma atuação marcada sobretudo pela imprevisibilidade, pela ignorância e pela incompetência de governantes “sem noção”. Mas tal perspectiva só procede se tomarmos como medida e parâmetros aquilo que a era Bolsonaro não é (mas deveria ser…): uma democracia representativa funcionando, ainda que precariamente, de acordo com as regras de um Estado de Direito republicano.

O que, convenhamos, não é bem o caso, tendo em vista a sucessão vertiginosa de antecedentes criminosos e fraudulentos dos últimos seis-sete anos que abriu o caminho para a ascensão da orcrim ao poder máximo. Aliás, a rigor, tal sucessão nem precisaria ser lembrada – está gravada na mente traumatizada de todos. Assim, se levarmos a sério o que aconteceu, e que é do conhecimento geral, torna-se impossível aceitar que a palavra desgoverno designe desacerto. Aceitar tal hipótese seria corroborar a tese da primazia da falta de competência e de conhecimento, da falta da arte de governar…

Seria, então, desgoverno um des-governo, isto é, o desfazimento da política de Estado, pelo menos tal como a experimentamos, de novo, precariamente, no Brasil republicano? Se for isso, temos de admitir que não há falta, há afirmação sempre reiterada de um agencia categórica de desmandos para destruir a frágil ordem vigente até então, com suas leis, usos e costumes, em todas as esferas da vida social, visando implantar uma nova ordem – ainda que ela aspire à reconfiguração fantasmática do rebotalho do passado colonial e da ditadura.

Nesse caso, deveríamos compreender a expressão “dois anos de desgoverno” em sua acepção positiva, isto é, como dois anos de uma política deliberada de destruição das instituições, de decomposição da nação e de desconstituição da sociedade brasileira. O que, evidentemente, a inteligência praticamente se recusa a aceitar, dada a enormidade e a monstruosidade do empreendimento. Pois estaríamos falando do fim do Brasil como país.

Mas se à lucidez repugna tal constatação imperiosa, o mesmo não acontece com os afetos. Sente-se o choque do fim na angústia renovada (e intensificada) a cada dia, que se declara incontornável e, ao mesmo tempo inassimilável. Como diria o escritor Henry Miller, o mundo degringola primeiro secretamente, no inconsciente, antes de irromper no exterior.

“Se penso na Alemanha durante a noite, / Logo perco o sono.” – escreveu Heinrich Heine, na década de 30 do século XIX. Os célebres versos do poeta alemão dão uma ideia da inquietação que o sacudia. Ora, o que dizer da reação dos intelectuais brasileiros diante de um “país em crise total e mortal”, na expressão do arguto analista político Jânio de Freitas? Parece-me que perdem muito mais que o sono. Perdem, além dele, a voz – seja porque não encontram palavras à altura do acontecimento, seja porque só lhes resta esgoelar as desgraças até a rouquidão, em um alarme tanto mais estridente quanto mais impotente. O silêncio… ou palavras ao vento.

À esquerda, muita gente reclama da falta de intervenções propositivas, da desconexão dos intelectuais com o povo e com o país. Talvez não seja um caso de indiferença, de desinteresse, mas sim da percepção que o horizonte do Brasil se fechou, tornou-se “horizonte negativo”. Isso fica bastante evidente quando pensamos nos grandes intelectuais brasileiros do século XX. Apesar dos óbices de toda ordem (e mapearam muitos), eles acreditavam que seria possível superar a herança maldita do passado colonial e construir um futuro.

Por isso, dedicavam-se à questão da formação de um país chamado Brasil – que se pense em Caio Prado Jr, em Sérgio Buarque, em Gilberto Freire, em Antônio Candido, em Florestan Fernandes, em Celso Furtado, em Darcy Ribeiro, e tantos outros tentando entender o Brasil para ajudar a transformá-lo. Mas quem, hoje, pode em sã consciência pretender pensar o país em termos de formação? Roberto Schwarz, já na década de 1990, empregava o termo desmanche para designar uma característica maior do capitalismo contemporâneo, e, em 2003, nomeava o Brasil como um “ex-país ou semipaís”; Paulo Arantes publicava em 2007 um livro intitulado Extinção, e Chico de Oliveira, que tanto amava a sua terra natal, teve de reconhecer nela a figura de um ornitorrinco…

Não faz muito tempo – foi em 2003! Hoje, a evolução sem saída do ornitorrinco-Brasil se consumou. O bicho cresceu exponencialmente, assumiu sua dimensão continental. E cada uma de suas incongruências entrou em guerra com todas as outras, dilacerando a figura monstruosa. Salvo engano, sem remissão.
Desgoverno?

A palavra, agora, até soa gentil, recatada demais para nomear um processo letal, desde que os diversos estratos do establishment selaram uma aliança jurada sobre a bíblia do fundamentalismo neoliberal para acabar com a raça dos trabalhadores e abrir a temporada internacional de rapina dos recursos do Brasil, enormes, porém não-inesgotáveis.

Cada estrato do establishment deu a sua contribuição específica: os militares inventando e promovendo Jair Bolsonaro com métodos de guerra híbrida até alçá-lo ao trono, para supostamente “salvar” o Brasil do comunismo petista e a Amazônia da cobiça internacional, através de uma política de terra arrasada (o que inclui, além da devastação dos biomas, a limpeza social e étnica do território, com o genocídio de índios e quilombolas); o Judiciário pondo em prática o lawfare da Lava-Jato em todas as instâncias, para criminalizar os opositores e instaurar a exceção permanente; os órgãos de “segurança” mancomunando-se com milicianos e jagunços para semear o terror nas periferias e ameaçar os movimentos sociais e seus líderes no campo e nas cidades; a grande mídia com sua leniência em relação a todos os crimes que vêm sendo cometidos, para não falarmos de seu mal dissimulado jogo de afetar “independência” mas fechar com a extrema-direita sempre que necessário; e, last but not least, a alta finança e o alto empresariado – verdadeiro pilar de sustentação do regime, junto com os militares –, interessados nas “reformas” que implicam na demolição do pouco de Estado de Bem Estar que existia e na conversão do Estado em mera polícia do Kapital. E não vale invocar a resignação suspirosa dos punhos de renda por terem de tolerar a escrotidão sem limites dos governantes. A sagração do lumpesinato miliciano aos postos máximos é obra deles, sua responsabilidade histórica.

A Lei, a Ordem, o Kapital… e todos os “homens de bem” do establishment. De mãos dadas com o lúmpen de todos os estratos sociais, em prol da destruição. Por motivos diversos, porém convergentes. Os bandidos do Judiciário para transformar o poder de julgar e punir (e seus efeitos) em cosa nostra; isto é o poder da lei em poder do arbítrio.

Os militares, associados aos milicianos, para exercer o mando através da força armada e do medo dela. O Kapital para impor o fundamentalismo neoliberal. É sabido que este tem como princípios basilares o não-reconhecimento da existência da sociedade e a extinção da categoria “trabalhadores”, até mesmo de uma perspectiva teórica. “And, you know, there’s no such thing as society. There are individual men and women and there are families” – sentenciara, em 1987, Margareth Thatcher, o totem de Paulo Guedes, junto com Pinochet.

Há indivíduos e há mercado. E como não há mais trabalhador, quem puder que se transmute em empreendedor, capitalista de si próprio, investindo no mercado seus recursos inatos e adquiridos. Quem não puder, “sujeito monetário sem dinheiro”, na expressão de Roberto Schwarz, que morra em silêncio, como descartável. Por isso mesmo, todas as reformas propostas convergem para a extinção de todos os direitos, inclusive o direito à vida, menos o sacrossanto direito à propriedade. Por isso mesmo, garantia de emprego e renda, acesso à saúde e à educação, estabilidade do serviço público, moradia, segurança pública, ciência, cultura, ambiente, vida enfim, precisam ser aniquilados. Em última instância, o fundamentalismo neoliberal reserva às populações, como única perspectiva, a vida nua, isto é, matável.

Assim, para todo lado que se olhe, na cena da vida brasileira, prevalece a tendência à destruição e uma formidável pulsão de morte, cuja manifestação concreta teve início em 2013. Agora que ela se espraiou, o projeto do desgoverno é mobilizá-la nos níveis micro e macro, isto é tanto dentro do indivíduo quanto no coletivo, é desembestá-la para, posteriormente, quem sabe, instaurar sobre os escombros um regime de dominação total.

Isso já foi diagnosticado por vários analistas e classificado como necropolítica, seja ela considerada fascista, ou meramente autoritária, bonapartista, etc… Contudo, o diagnóstico ficou restrito ao âmbito dos letrados e era de difícil compreensão até para as camadas médias mais informadas das grandes cidades. Ora, a pandemia mudou tudo, ao tornar explícito o projeto criminoso. Levou certo tempo, é claro, para que todo mundo entendesse que a inexistência de uma política sanitária era deliberada e zelosamente conduzida pelo Ministério da Saúde, além de acompanhada por medidas administrativas de toda sorte que pudessem, seja impedir o combate ao vírus, seja comprometê-lo.

Entretanto, a partir da publicação da pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, no início de 2021, ficou demonstrado que Bolsonaro tem uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”.
Ou seja: o genocídio deixou de ser deduzido do desgoverno federal, como um desacerto, passando a se configurar efetivamente como política estatal. À falta de medidas sanitárias preventivas, para evitar a proliferação do
contágio, somou-se a falta, patente, de vacinas e de outros insumos, sem esquecermos da promoção sistemática de medidas pró-contaminação. Já nem se trata de um descaso com a pandemia, de um Cada um por si e Deus contra todos – é pior, muito pior. Assim, a peste radicalizou a crise ao escancarar a natureza perversa do governo e ao inviabilizar o mantimento das aparências de que “as instituições estão funcionando”.

Num texto instigante e, num certo sentido, profético, intitulado “Para além da necropolítica”, Vladimir Safatle prenunciou que a crise entrava numa nova fase, na qual a disseminação da morte deixava de ser dirigida aos “outros”, para tornar-se, também, suicídio do Estado. Inspirando-se no conceito de Estado Suicidário forjado por Paul Virilio para pensar a lógica explicitada pelo nazismo quando a constatação da derrota se tornou incontornável (o famoso Telegrama 71, no qual Hitler ordena: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”), o filósofo aponta que o Brasil se tornou ingovernável.

Não em virtude de uma espécie de efeito colateral e imprevisto do processo de destruição, mas sim porque militares, magistrados, políticos, financistas, madeireiros, mineradoras, agronegócio e investidores internacionais, em luta para arrancar o máximo que puderem da riqueza nacional, no menor tempo possível, atuam no sentido de acelerar o fim do Estado-Nação. No entender de Safatle, esse é o sentido do “experimento” que está sendo posto em prática aqui.
Cujos contornos se delineiam quando o entreguismo desenfreado e a destruição das instituições ganham sinergia. No estamento militar, com a desmoralização continuada de um Exército já comprovadamente desonrado; no Judiciário, com as revelações escabrosas da Vaza Jato desmascarando as ilegalidades da “República de Curitiba” e a cumplicidade das instâncias superiores, elevando ao máximo a insegurança jurídica (Walter Delgatti é o nosso Snowden, o hacker que expôs as entranhas podres que o establishment mais desejava esconder); na diplomacia, com a transformação do Brasil em molambo internacional e seu banimento do jogo geopolítico; na política, com as negociações escandalosas entre o Centrão e os militares bolsonaristas, afundando ainda mais o Congresso no já conhecido pântano da corrupção; e agora, no primeiro embate entre o bolsonarismo e o mercado, uma vez que as contradições entre o projeto de poder total miliciano-militar e as exigências do Kapital nem sempre convergem, o que deve ensejar o aprofundamento da crise para a população e para o país.

Em suma: o establishment está sendo atravessado por tensões violentas entre suas diferentes vertentes e dentro de cada uma delas. E já dá sinais de que tem dificuldades para processá-las e contê-las, muito embora siga acreditando que pode jogar a conta exclusivamente nas costas da população, como sempre foi o seu costume.

Alguém acredita que o Kapital rifará Bolsonaro através de um processo de impeachment por seu descontentamento com a intervenção militar na Petrobrás? Seria fácil criminalizá-lo – há razões de sobra. Mas poucos dias antes o Kapital não havia recebido de presente a autonomia do Banco Central? Caso houvesse um rompimento, como ficaria a santa aliança para gerir a liquidação do mundo do trabalho, sem o braço armado que em última instância permite executá-la? Por outro lado, há chance de o nacionalismo de araque dos militares tornar-se algo sério, a ponto de passar a confrontar diretamente os planos do Kapital, que o governo endossava até ontem? Há forte probabilidade de tudo terminar em pizza, com Bolsonaro e os militares cedendo… Porém, as fissuras vão se acumulando… enquanto a esquerda ainda parece acreditar numa saída eleitoral para contradições e conflitos dessa envergadura!

Vários indícios e tendências sugerem que o diagnóstico de Vladimir Safatle está correto. A destruição das instituições conduz à decomposição do país e à desconstituição da sociedade; sugere que o Estado brasileiro está num processo suicidário, levando junto o povo e a nação. E não será o conceito miserável e fajuto de “Nação” dos militares que poderá camuflar a desintegração do Brasil. Cujas consequências, evidentemente, serão incalculáveis, tendo em vista a riqueza de recursos em água, em minérios, em petróleo, em florestas. Mais ainda: tendo em vista a dimensão continental do Brasil e sua importância crucial para a solução do aquecimento climático global.

O mundo inteiro tem interesse em que o Brasil sobreviva. Mas o establishment brasileiro não tem olhos nem ouvidos para a intensidade do colapso. O establishment tem certeza de que tudo está como sempre esteve. Sob controle.

*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).

É intolerável que as empresas de tecnologia tenham poder absoluto, diz acadêmica

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Para Shoshana Zuboff, mundo está finalmente tentando recuperar o que entregou às big techs

Patrícia Campos Mello – FSP, 26/02/2021

É “intolerável” que as democracias não tenham ferramentas para evitar que um líder como Donald Trump dissemine mentiras para milhões de pessoas, sob o manto da liberdade de expressão —e que o mundo precise depender do poder absoluto das empresas de tecnologia para evitar que mandatários como Trump fragmentem a sociedade e espalhem o caos.

Essa é a opinião da acadêmica americana Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School e ex-docente associada no Centro Berkman Klein para Internet e Sociedade em Harvard, que acaba de lançar no Brasil seu livro “A Era do Capitalismo de Vigilância”, pela editora Intrínseca.

Zuboff foi uma das primeiras —e é uma das principais— intelectuais a examinar os efeitos das grandes plataformas de internet sobre a sociedade.

Para ela, o mundo está vivendo um golpe epistêmico antidemocrático, marcado por uma concentração inédita de conhecimento sobre nós, e o poder que deriva desse conhecimento. Zuboff afirma que o golpe se dá em quatro estágios, e nós estamos no terceiro.

No primeiro, origina-se o capitalismo de vigilância, quando empresas descobrem que podem se apoderar da vida das pessoas para extrair dados comportamentais, que elas transformam em sua propriedade privada.

No segundo, há um enorme aumento na desigualdade epistêmica, que é a diferença entre o que nós temos a capacidade de saber, e o que pode ser sabido sobre nós. No terceiro estágio, o atual, começa o caos epistêmico, causado por amplificação movida a algoritmos e lucros, disseminação de informação corrupta, grande parte produzida por esquemas coordenados de desinformação. Os efeitos são polarização, realidades alternativas e incitação à violência, como demonstrou o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro.

No último estágio, a dominação epistêmica está institucionalizada, e a governança computacional do capitalismo privado de vigilância substitui a governança democrática. Abaixo, trechos da entrevista concedida à Folha por videoconferência.

Um projeto de lei introduzido na Austrália obriga as empresas de tecnologia a remunerar os veículos jornalísticos.

Em reação, no dia 18 de fevereiro, o facebook bloqueou todos os conteúdos jornalísticos no país, embora tenha anunciado no dia 23 que restabeleceria o serviço em alguns dias. Essa é uma amostra do excesso de poder das plataformas de internet, que a senhora combate? O quarto estágio do golpe epistêmico é a dominância epistêmica, que é a crescente disposição das empresas de exercer o poder bruto derivado do controle total dos sistemas e da infraestrutura de informação. Normalmente, elas tentam disfarçar esse poder bruto, esconder o fato de poderem ligar e desligar esse poder quando quiserem, e ninguém pode impedir. Elas não querem atrair atenção para isso.

Mas agora, ao demonstrar esse poder abertamente, acho que há uma reação ao techlash [reação negativa às empresas de tecnologia], uma mensagem, um aviso. Rupert Murdoch levantou o assunto, ao dizer “vocês estão roubando nossas notícias, precisam pagar por elas”. Independentemente de se gostar ou não de Murdoch, eu concordo: essas empresas extraem nossas experiências pessoais arbitrariamente, sem que a gente saiba ou consinta, e isso é fundamentalmente ilícito.

O problema é que ninguém está disposto a dizer isso, permitiram que essa extração continuasse, e a democracia sofreu. O que aconteceu na Austrália foi uma espécie de “clawback” [cláusula que permite recuperação ou retenção de valores]. Nós precisávamos desesperadamente de proteção aos jornais 15 anos atrás.

Quinze anos atrás, toda democracia deveria ter entendido que a ideia de disrupção [do setor jornalístico] era como fornecer um carro para ladrões poderem fugir. As democracias deviam ter entendido que o quarto Estado [imprensa] é essencial para uma sociedade democrática, e não é algo que se deixe na mão do mercado. Especialmente quando há assimetrias de mercado em que um grupo pequeno realmente compreende a revolução estrutural tecnológica e a grande maioria não entende.

As sociedades ao redor do mundo finalmente estão começando a refletir sobre tudo o que deram de mão beijada para as empresas de tecnologia e o que permitiram que o capitalismo de vigilância acumulasse —não apenas receita, lucro e capitalização de mercado, mas também conhecimento e o poder que advém desse conhecimento, inclusive sobre infraestrutura.

Que tipo de estratégias de “clawback” estamos vendo? Há estratégias tributárias, como por exemplo no estado americano de Maryland, que irá taxar lucros obtidos no estado. Enquanto tantas empresas passam por dificuldades ou estão à beira da falência, com tantos empregos destruídos e tantas vidas ameaçadas, as empresas de tecnologia flutuam acima de tudo isso, porque lucram com operações que, só agora, começamos a considerar ilegítimas e como ameaças para indivíduos, sociedades e, especialmente, a democracia.

Medidas antitruste são uma estratégia de recuperar esse poder obtido de forma ilegítima? A senhora se mostra cética e já afirmou que medidas contra monopólios não vão solucionar o golpe epistêmico… Como vamos controlar esse monstro que foi libertado, que permitimos que ficasse solto e crescesse em tamanho e poder? Os governos estão tentando várias estratégias, e uma delas é reviver velhas ferramentas. Medidas antitruste são ferramentas óbvias, não há dúvida de que essas empresas são capitalistas implacáveis, que causam muitos danos à concorrência.

Antitruste é bom na medida em que mostra que a democracia está de volta, em ação, pronta para usar a lei contra essas empresas. Mas o perigo da estratégia antitruste é que, apesar de os danos à concorrência serem reais, eles não são os problemas mais graves que temos agora. Os maiores danos que estamos sofrendo derivam da extração de nossas informações pessoais, porque essa é a fonte do microdirecionamento, que, por sua vez, é a fonte da desinformação, amplificação e disseminação.

A desinformação, que leva à fragmentação social, é uma enorme ameaça à democracia. Podemos comparar com o século 20, quando a legislação antitruste foi criada nos EUA. Na época, graças à Suprema Corte, medidas antitruste foram aplicadas contra um enorme monopólio, a Standard Oil. Isso apagou incêndios políticos, porque fez os americanos sentirem que essas empresas gigantes precisavam obedecer às mesmas leis que a população.

Mas as necessidades reais das pessoas na época tinham muito pouco a ver com o que a decisão contra a Standard Oil conseguiu fazer. As pessoas precisavam de direitos trabalhistas, possibilidade de se filiar a sindicatos, de negociar salários coletivamente, de fazer greves, não tinham salários decentes, nem ambiente de trabalho seguro. E as pessoas também precisavam de direitos do consumidor, de garantias de que os remédios não iriam matar e de que a carne enlatada não tinha pelo de rato.

Essas eram as necessidades reais das pessoas, mas levou décadas para que houvesse leis que as abordassem… Agora, nós não temos tanto tempo para desperdiçar. Se optarmos pela estratégia antitruste, que é menos importante, vamos gastar anos nos tribunais.

A senhora menciona no seu livro que enfrentou um incêndio em sua casa e, como nunca tinha passado por nada igual, reagiu como reagiria a problemas conhecidos, com velhas ferramentas. Nesse sentido, estamos usando velhas ferramentas para lidar com um problema sem precedentes? E quais são as ferramentas de que precisamos? Sim. Nas sociedades modernas, as pessoas partem do pressuposto que, como indivíduos independentes, têm um direito fundamental, que é parte integral do ser —o direito elementar de ser a pessoa que detém conhecimentos sobre sua própria experiência, privada, e o direito de dizer quando e como esse conhecimento é usado. Esse direito está sitiado. Se não transformarmos esse direito em uma prerrogativa legal, formal, ele vai deixar de existir.

A privacidade foi, em grande parte, destruída, e precisamos ter legislação para reinstituí-la como direito natural. Não podemos depender de velhas ferramentas, como medidas antitruste, precisamos desenvolver um novo arcabouço legal para abordar danos que nunca havíamos enfrentado antes. Da mesma maneira que as pessoas, no século 19, não tinham leis para lidar com o poder absoluto dos donos das fábricas, que ditavam todas as condições de trabalho.

A senhora acha que as plataformas de internet têm o direito de banir o ex-presidente Donald Trump ou outros líderes?

Estamos em 2021, e não temos nenhuma lei para evitar que uma pessoa permaneça na internet para exercer seu direito de mentir, que as mentiras dessa pessoa circulem na corrente sanguínea global, auxiliadas com esses acessórios algorítmicos que as amplificam e levam essas falsidades para todos os cantos do mundo. Não temos leis que nos digam: “Espere aí, isso não é liberdade de expressão, tire essas mentiras daqui, tire esses algoritmos e
toda a lógica de lucros, para que possamos ter, realmente, liberdade de expressão”.

Twitter e Facebook não são herois. Eles esperaram para agir até o dia em que os Democratas conquistaram o controle do Senado, e eles sabiam que estariam na mira do partido, enquanto Trump passaria os próximos anos sentado em um bar em Mar a Lago. Esperaram até que o estrago já tivesse sido feito. Isso não é heroico.

E isso, para voltar ao início da nossa conversa, tira a máscara dessas empresas, e mostra seu poder bruto. Mostra que, no final das contas, elas controlam tudo. Se apertarem um botão, desligam, mas se decidirem que Trump deve voltar à atividade, apertam o botão e ligam. Isso é inaceitável. Trump deveria ser banido? Sim. Mas o fato de a democracia não ter uma maneira de lidar com isso, e que depende do poder absoluto das empresas de tecnologia para, ocasionalmente, fazer o que precisa ser feito —isso é intolerável.

Shoshana Zuboff, 69
É professora emérita da Harvard Business School e ex-docente associada no Centro Berkman Klein para Internet e Sociedade em Harvard. Entrou para o corpo docente de Harvard em 1981, onde foi uma das primeiras mulheres contratadas como professora efetiva. Obteve o doutorado em psicologia social na Universidade de Harvard e o bacharelado em filosofia na Universidade de Chicago.

Estado Empreendedor

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O mundo da pandemia está transformando muitos conceitos importantes e comportamentos cotidianos da sociedade internacional, teorias e reflexões que eram aceitas com naturalidade estão sendo transformadas e repensadas, levando a intelectualidade e os gestores públicos e privados a reverem as novas teorias e novas reflexões, adaptando as situações, reconstruindo novos desafios e oportunidades.

As novas visões que estão surgindo passam a nortear as políticas sociais e os gastos públicos, levando os especialistas a repensarem as prioridades e construírem novos consensos. Novas ideias demoram para nascer, os conceitos anteriores resistem, neste momento percebemos os combates em curso na sociedade, gerando conflitos, constrangimentos e expectativas. Neste momento de reflexões e de avanço da pandemia, perceberemos os rumos da sociedade nos próximos anos, fazendo escolhas entre os grupos mais abonados ou, os grupos sociais que, historicamente, tiveram trajetórias de espoliação, de exploração e da degradação, neste embate perceberemos os caminhos que vamos trilhar no futuro imediato.

Neste momento, devemos abandonar o Estado inchado e excessivamente intervencionista, marcado por grandes investimentos faraônicos e desnecessários, mas devemos rechaçar um Estado mínimo que deixa os movimentos restritos aos interesses do capital, que buscam apenas os ganhos imediatos e se esquecem dos movimentos estratégicos de longo prazo. Precisamos construir um novo modelo de Estado, que atue como indutor do desenvolvimento econômico, fortalecendo os estímulos do empreendedorismo das empresas e dos cidadãos, investindo em setores sociais, capacitando o capital humano, melhorando os setores da educação e da saúde, investindo em pesquisas científicas e tecnológicas, moldando as instituições reguladoras para coibir os excessos, protegendo setores nacionais e cobrando desempenhos, deixando de lado a proteção sem cobranças que construíram estruturas industriais fragilizadas, onde os empresários acumularam fortunas e suas empresas dependiam dos benesses estatais e incapazes de concorrer no ambiente global.

Este Estado moderno deve induzir o desenvolvimento econômico e a melhoria do bem-estar da coletividade, cobrando todos os setores que receberam subsídios tributários e financeiros. Reduzindo os privilegiados de setores que ganham variados benesses e contribuem muito pouco com a consolidação institucional do país, setores que sobrevivem através das benesses do Estado, sem contrapartidas e sem condições de participar ativamente deste momento de reconstrução nacional, inconscientes dos desafios e das oportunidades que abrem no mundo da pós-pandemia.

Os recursos econômicos e financeiros são escassos e limitados, o Estado empreendedor deveria se destacar pela transparência, pela cobrança dos setores produtivos, motivando a competição no ambiente internacional, construindo infraestrutura moderna, investindo na excelência educacional, mas ao mesmo tempo, investindo no aumento da capacidade produtiva, gerando novas oportunidades para os trabalhadores, impulsionando o setor industrial, o agronegócio e os setores de serviços, garantindo instrumentos para concorrer com os melhores atores da economia global. Precisamos analisar a economia não apenas pelo lado da oferta, mas nos setores da demanda, garantindo maiores empregos, salários e rendimentos dignos para sua sobrevivência e para seus descendentes.

O mundo contemporâneo não tem mais espaço para o conflito entre o Estado e o Mercado, vivemos num momento marcado pelo crescimento da informação e pelo conhecimento, os países que ganharam espaços na comunidade global se caracterizaram pela integração e pela estruturação dos grandes agentes sociais, unindo forças entre Estado e Mercado. A nova sociedade mundial precisa aprender a compartilhar conhecimentos, respeitar as diferenças e unir forças, sem esta união rumamos para uma sociedade sem perspectivas, sem rumos e sem esperanças.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia, professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/02/2021.

Reconstrução Nacional

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O mundo contemporâneo está vivendo grandes transformações em todos os setores, desde questões comportamentais, dos relacionamentos, das estruturas produtivas, das bases sociais, das relações políticas e das culturais. Dentre as grandes mudanças da sociedade, os grupos sociais estão em confrontos abertos, gerando desequilíbrios e constrangimentos variados, uns buscando seus interesses imediatos, lutando por maiores benefícios monetários e financeiros, garantindo seus poderes econômicos e a manutenção de seus ganhos políticos. Nesta situação, percebemos que estamos caminhando a passos largos a um grande conflito social, com claros desequilíbrios econômicos e políticos, que podem culminar em grandes rupturas institucionais e impactos sobre a democracia.

Vivemos num momento de reconstrução nacional, os impactos da pandemia se disseminam para todos os setores econômicos e sociais, com graves preocupações políticas, diante disso, precisamos de um sólido projeto de reconstrução nacional, onde todos os grupos sociais precisam contribuir, de forma democrática e transparente, em prol da reconstrução nacional, onde o cidadão volte a ter orgulho deste país. Neste momento, precisamos reconstruir a economia brasileira, melhorando os ambientes de atuação dos setores mais empreendedores, garantindo empregos dignos e bem remunerados, estimulando um mercado consumidor consolidado, impulsionando o espírito inovador do setor privado, aumentando os investimentos produtivos e a melhoria das condições de vida da população. Nesta reconstrução precisamos reduzir os ganhos do rentismo e garantindo a construção de um pacto nacional em prol dos setores econômicos e produtivos, para isso, precisamos de uma união entre todos os grupos sociais, econômicos e políticos.

A pandemia nos trouxe grandes prejuízos, milhares de pessoas morreram, uma parcela substancial da população perdeu renda, os empregos foram reduzidos e a pobreza cresce de forma acelerada. Além dos impactos da pandemia, percebemos ainda os impactos das grandes transformações do capitalismo contemporâneo, que estão gerando o incremento da tecnologia, a redução dos postos de trabalhos formais e grandes preocupações em setores inteiros, gerando medos e desesperanças, levando os trabalhadores a buscarem requalificação profissional e investimentos na capacitação. Neste momento de transição na economia global, a atuação dos Estados Nacionais é fundamental, receita recomendada por todos as grandes instituições multilaterais, mostrando o nascimento de uma nova agenda econômica que, infelizmente, ainda não se faz presente nos gestores da política econômica, que insistem no discurso de austeridade e da redução dos gastos públicos, receituário abandonado pelo próprio Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pela Secretária do Tesouro, que recentemente destacou a importância dos gastos públicos na reconstrução da economia, ainda mais num momento marcado por incertezas e instabilidades gerados pela pandemia.

Neste momento, precisamos modernizar nosso discurso econômico, abandonando o excesso de ortodoxia e reduzindo a austeridade fiscal, cujos impactos são negativos, com a destruição das relações sociais e o aumento das desigualdades. Neste novo consenso econômico, precisamos de uma visão mais sistêmica dos problemas sociais, atuando conjuntamente para reconstruir a sociedade nacional, colocando no centro das decisões econômicas, os investimentos em capital humano, em pesquisas científicas e tecnológicas, na melhoria dos setores da saúde e da educação, setores muitos fragilizados na pandemia. Estes investimentos podem alavancar a economia nacional, construindo aspirações audaciosas na comunidade internacional, mostrando que a riqueza nacional não se restringe a uma economia exportadora de produtos primários, como no período colonial, mostrando para a comunidade internacional que, além de um setor primário pujante e empreendedor, somos uma nação industrializada e dotada de um setor de serviços modernos e capacitados para superar os desafios do mundo contemporâneo, marcados pela concorrência e pelas instabilidades produtivas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/02/2021.

‘Será muito difícil a economia não piorar’, diz pesquisadora da FGV.

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Segundo Laura Karpuska, falta de foco do governo, tanto na luta contra a covid quanto na agenda econômica, dificultam uma recuperação

Luciana Dyniewicz, O Estado de S. Paulo – 14/02/2021

Pesquisadora na Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, a economista Laura Karpuska acha improvável não haver uma deterioração ainda maior na economia neste ano. A falta de foco do governo para lidar com a pandemia e avançar em uma agenda econômica travam a atividade no País, segundo Laura, que é doutora pela Universidade de Stony Brook. “Para pensarmos em retomada, tem de haver confiança no ambiente político, mas, nesse ambiente, faltam prioridades e um plano de ação. Isso tem impacto na economia”, diz ela. A seguir, trechos da entrevista.

As previsões para o PIB têm recuado com a lentidão da vacinação. Qual cenário você enxerga para a economia neste ano?

A pandemia deixou claro que, quando a gente sofre um choque dessa magnitude, o papel do governo é fundamental. O mercado vem revisando para baixo suas expectativas de PIB e acho que isso é coerente com o fato de que vemos um governo com dificuldade de organizar prioridades, não só orçamentárias, mas de forma ampla, de estabelecer um plano de ação. A gente passou, no começo da pandemia, por uma dificuldade de criar um plano de testes e de rastreamento.

Isso agora culminou no fato de que não temos um plano de vacinação claro. O governo não fez um debate aberto e não houve uma busca organizada pela vacina. Tem também a questão do discurso do governo. A gente viu a importância do discurso de líderes em tempos de crise para coordenar as expectativas dos agentes, para se ter um equilíbrio. Um equilíbrio de respeito à ciência, de uso de máscara, de pressão coletiva por vacina. Para pensarmos numa retomada sustentável, tem de haver confiança no ambiente político, mas, no ambiente, faltam prioridades e um plano de ação. Isso tem impacto na economia.

Dado esse cenário, o que podemos esperar para a economia até o fim do ano?

No curto prazo, acho muito difícil não piorar. É difícil pensar que o fim do auxílio emergencial não vai dificultar primeiro a vida dos brasileiros e, depois, a atividade econômica. Pensando de uma forma mais ampla, o Brasil saiu de uma depressão com crescimentos pífios. Ainda não retomamos o nível de atividade que tínhamos antes da última recessão. Com a volta do auxílio emergencial, essa questão do curto prazo pode ser resolvida. Mas ser resolvida sem uma agenda de governo só dificulta ainda mais o nosso crescimento de longo prazo, nos deixando ainda numa situação desfavorável.

Está na mesa a possibilidade de se retomar o auxílio e deixá-lo de fora do teto de gastos. Como avalia isso?

Acho positiva a retomada de um auxílio. A gente viu que o auxílio de R$ 600 foi custoso. A redução foi importante para diminuir o aumento dos gastos. Hoje a gente precisaria de um auxílio mais focalizado. Não concordo com a ideia de o tirar do teto de gastos, porque acaba virando remendo em cima de remendo. Uma distorção leva a outra distorção e, quando você vê, não sabe nem qual é a que está te atingindo. O teto de gastos foi muito importante para a convergência das expectativas dos agentes no momento de crise fiscal no Brasil, mas ele é um bom exemplo de que, se você tem uma regra, mas não regulamenta os mecanismos e os gatilhos de forma adequada, a regra pode ser difícil de ser mantida no longo prazo. Criar mais um apêndice negativo para essa regra é não usá-la para o que deveria, que é para a saúde das contas públicas.

Como resolver isso?

O teto foi muito importante para manter as expectativas dos agentes alinhadas com o compromisso do governo de longo prazo, mas também para termos alguma regra que incentive os governantes a mostrarem as escolhas que fazem no Orçamento. O Orçamento público escancara as escolhas sociais que a gente faz. O teto mostrou que, se você não quiser ter despesas crescentes e se já tem um grande número de despesas obrigatórias, ou você arrecada mais fazendo uma reforma tributária ou corta outras coisas. O teto foi excelente por isso, mas ele não foi feito de uma forma que os gatilhos que garantem a saúde das contas públicas funcionem. Vejo como inevitável uma discussão do teto no sentido de que, sem gatilhos de corte de despesas obrigatórias, ele é uma bomba relógio, principalmente em um ambiente recessivo.

A chegada do Centrão à presidência da Câmara dos Deputados interfere no projeto do ministro da Economia?

Esses partidos (do Centrão) costumam ter um certo pragmatismo, são mais maleáveis e pouco firmados com ideologias.

Se tivermos uma confirmação dessa característica, caberá ao Executivo encabeçar a agenda que deseja e saber barganhar. Mas voltamos ao problema da falta de foco do governo, principalmente na agenda econômica. No entanto, ainda não está claro se esse Centro que compõe as mesas do Congresso é pragmático. Ano que vem o foco do governo ficará nas eleições. Temos um ano para discutir as reformas administrativa e tributária e a PEC emergencial, sem falar no auxílio emergencial e na pandemia, que imporiam, ao menos idealmente, outras prioridades ao governo.

Portanto, eu diria que, até o momento, essa coalização entre o Executivo e os partidos de centro não trouxe otimismo quanto a uma agenda econômica saudável. A falta de foco numa agenda específica e a convergência de interesses em assuntos não econômicos, por ora, parecem prevalecer.

Racismo precisa ser tratado como tema fundamental da economia

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Há uma relação estrutural entre pobreza, raça e gênero, reforçada e naturalizada pelo funcionamento do sistema tributário

Folha de São Paulo, 16/08/2020.

Silvio Almeida, Professor da Fundação Getulio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Pedro Rossi, Professor do Instituto de Economia da Unicamp

Racismo e economia são temas intrinsecamente ligados. A economia é uma condicionante do racismo, e o racismo, por sua vez, impacta na organização econômica.

No debate econômico, há duas posições distintas sobre o racismo: a primeira é a abordagem predominante, presente
nos principais manuais e na maioria das escolas de economia, que vê o racismo como um problema comportamental, atinente ao indivíduo.

Do ponto de vista político, a economia ortodoxa reforça a ideia do racismo como um problema individual que pode ser resolvido por meio de um sistema penal “eficiente” que puna condutas desviantes, com projetos educacionais que reformem o indivíduo moralmente e, no limite, com algumas políticas de ação afirmativa. Gary Becker e Milton Friedman, ganhadores de Prêmio Nobel de Economia, são referências para essa abordagem.

Para Becker, a discriminação racial se manifesta, por exemplo, quando um empregador não contrata um negro, seja por ignorância ou preconceito.

Segundo essa visão, as atitudes discriminatórias são exógenas ao sistema econômico e, a longo prazo, a busca pelo autointeresse econômico em um ambiente de livre mercado eliminaria comportamentos preconceituosos: os indivíduos discriminados que têm salários menores seriam contratados até o ponto em que a discriminação salarial fosse zero.

Consoante essa concepção, o racismo –sintomaticamente tratado como “preconceito”– é uma “falha de mercado”, uma “desutilidade”.

Na mesma linha, Friedman reduz o fenômeno a uma questão de gosto ou preferência pessoal que implica custo para quem o pratica. Para ele, o capitalismo traz fortes incentivos para a não discriminação racial e, a partir dessa visão idealizada, o autor nega a alternativa da intervenção estatal para tratar do tema, uma vez que essas interfeririam na liberdade dos indivíduos.

Já a segunda abordagem parte de concepções teóricas que não se limitam às lentes da economia neoclássica e entende o racismo como um problema sistêmico, ou seja, como uma consequência do funcionamento “normal” e regular das instituições e das estruturas sociais que conformam a ação dos indivíduos.

Por exemplo, autores como Gunnar Myrdal e Arthur Lewis –também Prêmios Nobel– apontam que o racismo não está restrito a comportamentos individuais e nem pode ser tido como uma distorção passível de ser corrigida pelo mercado.

O racismo é constitutivo do sistema, está enraizado nas estruturas da sociedade e normalizado pelo próprio funcionamento das instituições. Nesse contexto, os economistas brasileiros –em sua esmagadora maioria brancos– poderiam refletir sobre como o racismo está presente nas instituições econômicas e na forma como a política econômica é pensada.

A carga tributária, por exemplo, pune mulheres negras, que pagam proporcionalmente mais impostos do que homens brancos, como mostra o estudo de Evilásio Salvador.

Há, portanto, uma relação estrutural entre pobreza, raça e gênero, que é reforçada pelo funcionamento regular do sistema tributário e é naturalizada –assim como naturalizamos a violência direta contra pessoas negras nas periferias– a ponto de o Congresso Nacional discutir uma reforma tributária com foco na eficiência, deixando de lado o problema da desigualdade.

Da mesma forma, a emenda constitucional nº 95 reforça o racismo estrutural ao constranger gastos públicos que beneficiam proporcionalmente mais a população negra e indígena, como os gastos com saúde, educação e assistência social.

Além disso, como aponta o estudo de Bova, Kinda e Woo, os ajustes fiscais, especialmente aqueles baseados nos cortes de gastos, tendem a aumentar a desigualdade e o desemprego, que afeta proporcionalmente mais a população negra. Tais políticas têm sido implementadas no Brasil a partir de diagnósticos e objetivos macroeconômicos sem uma avaliação prévia dos impactos sobre desigualdades e direitos sociais.

Dessa forma, dada a sua relevância para o Brasil, o tema do racismo em sua dimensão estrutural precisa ser tratado como um dos temas fundamentais da economia.

Redes Sociais

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O filósofo digital Jaron Lanier explica porque as mídias sociais se tornaram um parasita que tomou conta de seu hospedeiro – a própria internet.

Por Alexandre Matias*

Se os tempos parecem deprimentes, a vida, inútil, as perspectivas, péssimas, e o fim, iminente, o cientista da computação e filósofo digital Jaron Lanier tem a resposta exata para essa perturbação sem fim: as redes sociais. Um dos pioneiros da realidade virtual e um dos principais críticos da produtização do usuário na internet por meio do uso gratuito de serviços cujos termos de uso todos concordamos sem ler, Lanier entende que a busca por atenção que movimenta financeiramente todos os sites da chamada web 2.0 pode, de fato, destruir a sociedade como a conhecemos.

Autor de livros como Gadget: Você não é um aplicativo!, de 2010, e Who Owns the Future? (Quem é o dono do futuro?), de 2013, ele agora Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, cujo título resume suas intenções. E se o alerta urgente não o deixa cabreiro, talvez o título de alguns capítulos o façam: “Você está perdendo seu livre-arbítrio”, “As redes sociais estão tornando você um babaca” e “As redes sociais deixam você infeliz”. Tudo é bem argumentado e defendido por Lanier, que entende os serviços on-line como a forma mais avançada de vício digital, comparada a um parasita que toma conta de seu hospedeiro. Veja mais na entrevista feita com exclusividade para a Intrínseca.

Antes de falarmos sobre seu livro, queria que você comentasse a influência das redes sociais nas eleições brasileiras.

Jaron Lanier – Isso tem acontecido em todo o mundo. Estamos vendo a ascensão de candidatos descritos como populistas de direita ou como novos fascistas, mas não considero essa uma descrição adequada. Acho que o melhor jeito de descrever esses candidatos é tratá-los como pessoas apoiadas por pessoas mal-humoradas, paranoicas, irritáveis, invejosas, nervosas e de personalidade insegura que estão associadas às mídias sociais modernas.
Vemos essas pessoas ganhando poder no mundo inteiro, em países bem diferentes uns dos outros. Podemos arrumar todo o tipo de explicação para o que está acontecendo no Brasil, mas o Brasil é muito diferente, em vários aspectos, dos Estados Unidos, que por sua vez é diferente da Suécia, que é diferente da Hungria. Mas o que estes países têm em comum é o novo problema tecnológico. Acredito que entramos em uma corrida para ver se conseguimos mudar os padrões das tecnologias on-line antes que elas destruam a nossa sociedade.

No passado, era possível dizer que a ascensão de um fascista ou de um populista talvez tivesse relação com a situação do país, talvez fosse resultado de uma guerra ou de um terrível problema econômico. Por exemplo, podemos dizer que a Alemanha dos anos 1930 tinha um sério problema econômico, como a hiperinflação. Mas, quando vemos [a ascensão de fascistas] acontecendo em diferentes lugares, isso significa que não diz mais respeito apenas às circunstâncias específicas desses países, mas à tecnologia. O que significa em último caso que o problema pode continuar se repetindo. E não acho que o mundo é capaz de sobreviver a isso.

Uma das coisas que sei sobre o presidente recém-eleito no Brasil é que ele poderia tornar o país o segundo no mundo, depois dos Estados Unidos, a negar completamente a mudança climática no planeta e a sair dos acordos internacionais destinados a conter o problema. Dessa forma, teríamos dois dos maiores países do mundo contribuindo para um risco que envolve não apenas a civilização, mas toda a espécie. É extremamente sério. Estive no Brasil há pouco tempo, conversei com alguns jornalistas brasileiros e muitos deles acreditavam que o problema não era só o WhatsApp, mas que era necessário regular melhor o Facebook e o Twitter. O problema é que essas tecnologias são tão sorrateiras que as pessoas não percebem ou acham muito difícil perceber que estão sendo manipuladas, não notam como a sociedade está sendo envenenada. É realmente muito sério.

Mas como sair das redes sociais uma vez que elas entraram de vez em nossas vidas?

Jaron Lanier – Escrevi esse livro pensando no contexto norte-americano — e em algum nível no contexto europeu. O contexto brasileiro é muito diferente porque, em muitos casos, as pessoas são viciadas no WhatsApp. Ele praticamente monopoliza a atenção de muitas pessoas. E eu reconheço essas diferenças. Mas acho que há coisas que precisam ser ditas. Primeiro, mesmo nos Estados Unidos ou na Europa, fazer com que as pessoas saiam dessas plataformas de uma vez só é impossível. Mas, quando lidamos com esse vício em massa, um bom começo seria fazer com que algumas pessoas, e depois mais pessoas, começassem a se reconhecer como viciadas.

É consenso a diminuição dos espaços para fumantes em todo o mundo, mesmo que o cigarro seja um produto altamente viciante que gera muito dinheiro para algumas empresas. O aumento de regulação dos espaços reservados a fumantes e da propaganda de cigarro aconteceu porque houve um número suficientemente grande de pessoas viciadas em nicotina que se dispôs a conversar sobre isso e ser racional. Então as coisas começaram a mudar: é possível ser cool sem ter um cigarro na boca, é possível ser criativo sem ter um cigarro na boca. Da mesma forma, precisamos ter um número grande de pessoas que queira abandonar o vício nas redes sociais para podermos falar sobre ele.

No caso do Brasil, me parece que a situação é um pouco diferente, porque, no geral, não há alternativas. Nos Estados Unidos é possível mandar mensagens de texto de um telefone para outro sem pagar, ou seja, você consegue entrar em contato com outras pessoas sem necessariamente usar plataformas de empresas, e, além disso, as pessoas ainda usam muito e-mail. Mas isso não significa que os brasileiros precisam considerar isso uma falha tecnológica do país, porque é uma sabotagem: uma empresa veio de fora e fez tudo isso. É como se uma empresa de fora roubasse recursos ou fizesse algo terrível com o país.

Eu realmente não tenho uma resposta definitiva para o problema, mas, de certa forma, acredito que os brasileiros devem impedir o WhatsApp de prejudicar ainda mais o país. É possível que o Brasil volte a ser como na época da ditadura militar e depois de um tempo a população se sinta incomodada a ponto de permitir que forças democráticas e progressistas retomem o poder e tratem essa tecnologia de forma mais humana e racional, sem a manipulação, as teorias da conspiração e as mentiras. Mas, como nos Estados Unidos, e talvez de forma pior, não será fácil.

Há também o fato de as pessoas acreditarem que as redes sociais são a própria internet, que não existe internet fora desses domínios.

Jaron Lanier – É muito triste que no Brasil um aplicativo como o WhatsApp seja considerado fundamental. Claro que não é. É mais um invasor que tomou conta da internet do que a internet em si. É muito fácil ter algo similar ao WhatsApp que não venha com toda a manipulação, todo o veneno. Um outro aplicativo poderia existir — e por si só, não ser algo ruim —, só não existe porque as corporações tomaram conta da internet. Todas as coisas boas do WhatsApp — a possibilidade de mandar mensagens, por exemplo — podem ser alcançadas, tecnologicamente falando, sem a necessidade de que haja manipulação. Isso é um plug-in criado por essas empresas, não tem nenhum motivo de estar lá.

Podemos dizer que o Facebook é a pior rede social por ser a mais presente?

Jaron Lanier – Por enquanto me parece que as redes sociais que são propriedades do Facebook, enquanto corporação, são as que fazem mais mal ao mundo, em particular Instagram, Messenger, WhatsApp e o próprio Facebook. O Facebook propriamente dito talvez tenha mais influência nos Estados Unidos, enquanto Instagram, WhatsApp e Messenger são piores no resto do mundo. As redes sociais do Google, como o YouTube, também têm sido problemáticas de certa forma.

Não sei se faz sentido dizer qual delas é a pior, pois todas usam o mesmo plano de negócios corrupto e horrível e funcionam mais ou menos da mesma forma. Todas precisam mudar.

Você vê alguma possibilidade de o Facebook ser ultrapassado, como aconteceu no passado com outras redes sociais?

Jaron Lanier – Acho difícil, porque essas antigas redes sociais, como Friendster e MySpace, pertenceram a outro tempo, um em que menos gente tinha acesso a internet e se vivia menos tempo conectado; e as pessoas não estavam tão presas a essas redes. O Facebook tem sido muito paranoico e preocupado com a possibilidade de que outras redes tomem seu lugar, por isso a corporação comprou empresas novas, que já tivessem algum poder, ou tentou destruir quem pudesse crescer. Como sabemos, WhatsApp e Instagram foram compradas exatamente por medo de que alguma delas chegasse a ter um momentum. Não foram muitas empresas que conseguiram aproveitar o embalo de crescimento e se dar bem, e é até surpreendente que agências reguladoras tenham permitido que isso acontecesse. É claro que ainda há outras empresas por aí, como o Twitter, mas elas são muito pequenas e vulneráveis.

Um dos criadores do The Pirate Bay, Peter Sunde, escreveu artigos dizendo que a guerra da internet foi perdida e que as corporações venceram. O que você acha disso?

Jaron Lanier – Li vários comentários e análises recentes que chegavam a essas conclusões derrotistas. “Nós perdemos”, “não há nada mais a ser feito”, “agora vai ser sempre assim ou pior”, “não conseguimos fazer mais nada”, “acabou”. Talvez isso seja verdade, mas acho que sou um maluco e não acredito que seja hora de dizer isso. Insisto em trabalhar continuamente em alternativas, continuo a acreditar que encontraremos uma saída e que vale a pena imaginar soluções melhores e inventar novas opções que permitam que o trabalho seja melhor. Desistir é meio que um paradoxo filosófico: se você chegar à conclusão que não vale mais a pena fazer nada, nada será feito — é uma profecia que se cumpre automaticamente.

É claro que não há garantias de que seja possível fazer isso, mas eu realmente acredito que precisamos buscar alternativas. Acho que a resposta correta tem a ver com a mudança do modelo de negócio, de forma que essas empresas não precisem negociar nossa busca por atenção.

Realmente acho que não devemos entrar em pânico ou ficar desesperados, especialmente agora. Estamos entrando em uma era em que o mundo será comandado por esses caras mal-humorados e paranoicos e ela pode durar muito tempo; talvez seja uma época em que não tenhamos democracia. E a única coisa que podemos fazer de verdade por ora é tentar nos preparar para a próxima época, quando as coisas talvez melhorem. Esse é um projeto meu. É o que estamos tentando fazer aqui nos Estados Unidos e vocês precisam fazer no Brasil e os europeus na Europa. Todos temos que tentar atravessar este período e não podemos perder a fé nem nossa imaginação para encontrar o caminho para a nova era.

Você está escrevendo um novo livro?

Jaron Lanier – Não me decidi ainda. Queria escrever sobre instrumentos musicais. Mas estou em conflito. Se estivéssemos em outra época, mais comum, acho que eu escreveria menos sobre política e mais sobre algo de que gosto, porque acho que é importante deixar espaço para essas coisas. Ainda estou decidindo sobre isso.

Obrigado, Jaron, foi uma boa conversa.
Jaron Lanier – Boa sorte para vocês. Esperamos o melhor para o Brasil.

Alexandre Matias é jornalista e cobre cultura e tecnologia há vinte anos, com base em seu site, o Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br).

A Sibéria já não tem mais fronteiras, por Paulo Nogueira Batista Jr.

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‘Ortodoxia de galinheiro’ rege o debate econômico

Folha de São Paulo, 07/02/2021.

O debate econômico nos principais órgãos de comunicação brasileiros quase desapareceu nos anos recentes. Com poucas exceções, lê-se e ouve-se um único ponto de vista.

Só recebe grande veiculação o que eu costumo chamar de “ortodoxia de galinheiro”, uma versão empobrecida da ortodoxia econômica ensinada (mas nem sempre praticada) nos EUA. Em geral, repete-se por aqui o que os ortodoxos de lá consideraram verdadeiro em décadas passadas.

Um debate pobre e unilateral, como o que temos, tem consequências perigosas para um país, pois é da contraposição de ideias que surge o progresso. Sem esse debate livre e aberto, sem as fricções que ele produz, não há avanços, e nem se pode falar propriamente em democracia.

A estagnação ou semiestagnação da economia nos últimos 40 anos é, em parte, resultado da estagnação do debate de ideias entre nós. Com um debate livre, dificilmente teriam prosperado políticas econômicas antinacionais, inconsistentes com os interesses da maioria da população. Dificilmente o Brasil teria importado “consensos” que nos levaram a seguir políticas temerárias em diversos períodos, tais como o excessivo de endividamento em moeda estrangeira, a liberalização prematura dos movimentos de capital, a apreciação exagerada do câmbio e o abandono do

investimento público em infraestrutura.

A pregação de “reformas” é sempre muito seletiva. Quase nunca são lembradas reformas fundamentais como a do sistema financeiro, a “estagnação” do Banco Central a (para torná-lo independente de interesses privados) e a redistribuição ampla da renda, inclusive da tributação, para que ela possa ser socialmente justa.

Nos anos 1980 e 1990, vigorava um sistema de censura na Rede Globo, conduzido por um diretor de jornalismo chamado Evandro Carlos de Andrade. Quando um político, economista ou algum outro profissional atuava de forma, digamos, pouco construtiva do ponto de vista do establishment, caia nas más graças do tal Evandro e passava a ser sistematicamente excluído do noticiário. Não podia ser ouvido, entrevistado ou mesmo mencionado.

Uma curiosidade é que o responsável pela lista dos excluídos era um ex-stalinista, que reproduziu comportamento encontradiço em pessoas com esse passado político: usava, na defesa dos interesses do capital, os métodos e vícios aprendidos na escola do venerável Joseph Stalin, grande especialista em apagar o presente e o passado. O mais destacado dos integrantes da lista era Leonel Brizola, que foi quem lançou o mote que estou recuperando agora. Em entrevista à época, Brizola ironizou: “Mandaram-me para a Sibéria”. A alusão era ao passado stalinista do executivo da Globo.

Hoje, o quadro é pior. Na mídia brasileira, a Sibéria quase não tem mais fronteiras. As suas imensas e lívidas paisagens se alastraram por toda a parte —televisão, rádio, jornais, revistas e canais de internet. Além disso, a lista dos exilados inchou e passou a incluir, com exceções ocasionais, a centro-esquerda e a esquerda inteiras. A Sibéria está ficando “crowdeada”.

Fora da mídia alternativa —basicamente sites, canais e blogs independentes—, quase não há mais espaço para visões críticas ao “consenso do mercado”. Esta Folha, com limitações, é uma das poucas exceções. O brasileiro desavisado haverá de pensar que não existem mais dúvidas sobre os pilares da ortodoxia de galinheiro.

É espantoso, leitor, o que passa por sabedoria econômica no Brasil! Um estágio de curta duração no FMI já faria bem aos economistas do mercado tupiniquim. É que o Fundo, desde a crise de 2008, empreendeu considerável revisão da sua macroeconomia. Hoje, por exemplo, é difícil encontrar na instituição uma defesa radical da austeridade fiscal, que não leve em conta seus efeitos sobre a atividade, o emprego e a distribuição da renda. É verdade que o braço operacional, mais conservador, ainda se mostra relutante em abandonar a abordagem fiscalista. Mas é difícil encontrar algum economista do FMI que elogie, com sinceridade, um teto que congela em termos reais a maior parte do gasto público primário por 20 anos —e ainda por cima inscrito na Constituição.

Como é sintomático do nosso atraso que se possa invocar até o FMI, velho de guerra, para criticar a ortodoxia brasileira!

Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelos Brics em Xangai), ex-diretor-executivo no FMI em Washington e autor de ‘O Brasil não cabe no quintal de ninguém’ (editora LeYa)

O mito do progresso

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A pandemia está desnudando as condições sociais da sociedade internacional, mostrando as negatividades que foram construídas nas últimas décadas, deixando uma sociedade refém das desigualdades e da desesperança, criando medos e instabilidades que levam os seres humanos a preocupações crescentes, ansiedades, depressões e o incremento do suicídio em todas as regiões do mundo. De outro lado, neste momento percebemos que o sistema econômico dominante garante a um reduzido grupo, mas forte econômica e politicamente, o poder e o controle dos recursos monetários, os instrumentos de comunicação, os valores que transitam nas Bolsas globais, os costumes e os comportamentos.

A pandemia está trazendo novos instrumentos de reflexão, o caos gerado pelo vírus mostra como somos frágeis, nos mostra ainda que não estamos capacitados por uma grande degradação econômica e sanitária, os consensos são frágeis e os recursos são concentrados, onde uma pequena parte, algo em torno de 1% da sociedade global, concentrava, em 2018, mais de 85% das riquezas geradas no mundo, perpetuando as desigualdades sociais, levando-nos a indagarmos se o mundo contemporâneo está progredindo ou estamos caminhando a passos largos para uma convulsão social, cujos impactos são impossíveis de serem mensurados.

O desenvolvimento da tecnologia foi assustador nos últimos anos, o crescimento das áreas da saúde, como percebemos neste momento de pandemia, cujas pesquisas culminaram em várias vacinas num período recorde, criando possibilidades e esperanças. O crescimento nas áreas da comunicação e das finanças estão contribuindo para incluir milhões de pessoas, levando a todos os continentes informações e recursos financeiros, dinamizando as regiões e impulsionando novos espaços de produção e de empreendedorismo, com impactos positivos.

Os benefícios da tecnologia são inquestionáveis, doenças que facilmente poderiam levar o ser humano ao óbito, na atualidade, podem ser facilmente tratadas, melhorando a qualidade de vida e o bem-estar social, levando os indivíduos a transformarem suas vidas, abrindo novos mercados de consumo e novas oportunidades para os trabalhadores, com incremento da expectativa de vida. Ao mesmo tempo, temos que refletir sobre os grandes ganhadores deste progresso, onde uma parte da população está desprovido destes benefícios. Neste momento, percebemos um grande contingente de trabalhadores, estimados em 2 bilhões de pessoas, que vivem em residências sem saneamento básico, sem o mínimo acesso à internet, sem serviços de saúde, inexistência de proteção social, sem escolas decentes e perspectivas degradantes, nesta situação, percebemos que a desigualdade está crescendo de forma acelerada, perpetuando pobrezas e indignidades.

Neste ambiente, percebemos discursos centrados na meritocracia, numa sociedade tão marcada por iniquidade, onde as oportunidades inexistem para uma grande parte das pessoas, o discurso do mérito perde a efetividade e a legitimidade, contribuindo para aumentar as frustrações e as desesperanças que permeiam a sociedade contemporânea.

O verdadeiro progresso da humanidade deve melhorar a qualidade de vida e o bem-estar da grande parte da sociedade, garantindo novas oportunidades, melhorias educacionais, incremento dos serviços de saúde dos indivíduos, empregos dignos e bem remunerados. O sonho do progresso é possível desde que os desafios sejam enfrentados de frente, na sociedade global as discussões sobre a desigualdade crescem de forma acelerada, instituições mais ortodoxas e conservadoras estão advogando políticas públicas mais efetivas para combater esta desigualdade, percebendo que dentre os maiores desafios do capitalismo mundial é criar novos espaços de sobrevivências digna e decente, evitando que a sociedade caminhe para a barbárie, a convulsão social e a degradação dos seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/02/2021.

A economista que defende uma mudança radical do capitalismo para o mundo pós-pandemia

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Margarita Rodriguez, BBC News Mundo – 08/08/2020

Mariana Mazzucato é considerada uma das economistas mais influentes dos últimos anos. E existe algo que ela quer ajudar a consertar: a economia global.

“Admirada por Bill Gates, consultada por governos, Mariana Mazzucato é a especialista com quem outras pessoas discutem por sua conta e risco”, escreveu a jornalista Helen Rumbelow no jornal britânico The Times, em um artigo de 2017 intitulado “Não mexa com Mariana Mazzucato, a mais assustadora economista do mundo”.

Para Eshe Nelson, da publicação especializada Quartz, a economista ítalo-americana não é assustadora, mas “franca e direta, a serviço de uma missão que poderia salvar o capitalismo de si mesmo”.

O jornal The New York Times a definiu como “a economista de esquerda com uma nova história sobre o capitalismo”, em 2019. Em maio deste ano, a revista Forbes a incluiu no relatório: “5 economistas que estão redefinindo tudo. Ah, sim, e elas são mulheres”.

“Ela quer fazer com que a economia sirva às pessoas, em vez de focar em sua servidão”, escreveu o colunista Avivah Wittenberg-Cox.

Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação na University College London, na Inglaterra, onde também é diretora-fundadora de um instituto de inovação na mesma universidade. Também é autora do livro O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado

O trabalho de Mazzucato teve inclusive um impacto fora dos círculos dos economistas. “No futuro econômico, a visão da economista Mariana Mazzucato, professora da University College London, é interessante. Acho que ela ajuda para pensar no futuro”, escreveu o papa Francisco, em março, em uma carta dirigida a Roberto Andrés Gallardo, presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Humanos.

Mazzucato acredita que o capitalismo pode ser orientado para um “futuro inovador e sustentável que funcione para todos nós”, diz a organização Ted, que promoveu três palestras com ela.

De fato, Mazzucato considera que a crise desencadeada pela pandemia de covid-19 é uma oportunidade de “fazer um capitalismo diferente”. Ela fala há anos sobre a importância dos investimentos do Estado nos processos de inovação.

Um de seus objetivos é acabar com o mito de que o Estado é uma entidade burocrática que simplesmente promove a lentidão. Outro é demonstrar que na economia “o valor não é apenas o preço”.

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrevistou Mariana Mazzucato. Confira a seguir os principais trechos.

BBC News Mundo – Você já chegou a declarar: ‘Não podemos voltar à normalidade. O normal é o que nos levou não apenas a este caos, mas também à crise financeira e à crise climática’. Essas palavras têm um significado especial para a América Latina, uma região com alto nível de desigualdade e pobreza, que luta contra as mudanças climáticas e com muitas de suas comunidades atingidas pela pandemia de coronavírus. Como podemos evitar voltar à normalidade pré-pandemia? Por que as pessoas não deveriam querer voltar a isso?
Mariana Mazzucato – A crise nos mostrou as deficiências na capacidade dos Estados e também que a maneira como vemos o papel do Estado no último meio século foi completamente inadequada.

Desde a década de 1980, os governos foram instruídos a se sentarem no banco traseiro para permitir que as empresas administrem (a economia) e criem riqueza. O Estado só poderia intervir para resolver problemas eventuais. O resultado é que os governos nem sempre estão adequadamente preparados e equipados para lidar com crises como a pandemia de covid-19 ou a emergência climática. Ao se presumir que os governos precisam esperar até que ocorra um grande choque sistêmico para agir, são tomadas medidas insuficientes.

Nesse processo, as instituições essenciais que fornecem bens e serviços públicos de maneira mais ampla (como o Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido, que teve cortes de verbas de US$ 1 bilhão desde 2015) ficam enfraquecidas. As medidas de austeridade impostas após a crise financeira de 2008 foram o oposto do investimento necessário para aumentar a capacidade do setor público e, assim, prepará-lo para o próximo choque do sistema.

Na América Latina, é fundamental que a agenda se concentre na criação e na redistribuição de valor.

Altos níveis de desigualdade e pobreza significam que existem populações vulneráveis com potencial para enfrentar enormes dificuldades econômicas no contexto de uma crise como a que estamos enfrentando agora. E, para agravar ainda mais as coisas, as economias latino-americanas são caracterizadas por enormes setores informais. Em todo o mundo, incluindo a América Latina, Estados despreparados gastam menos recursos para financiar serviços públicos. Além disso, eles também têm menos opções para ajudar o setor informal, o que é desastroso para as populações vulneráveis.

Portanto, os Estados devem criar valor investindo e inovando para encontrar novas maneiras de fornecer serviços públicos a populações vulneráveis na economia informal. Quando os Estados ficam em segundo plano e não se preparam para crises (o que aconteceu em muitos países, não apenas na América Latina), sua capacidade de oferecer serviços públicos é severamente prejudicada.

Mas esses serviços públicos devem fazer parte de um sistema de inovação: cidades verdes e crescimento inclusivo exigem inovação social e tecnológica. As tendências de desindustrialização na região criam dificuldades adicionais. Os Estados não têm capacidade para exigir que os produtores locais aumentem a criação de bens necessários para enfrentar a crise (por exemplo: suprimentos hospitalares), o que os obriga a depender do mercado internacional em colapso para acessar esses bens.

BBC News Mundo – Você disse que ‘a crise da covid-19 é uma oportunidade de criar um capitalismo diferente’. O que isso quer dizer? O que esta crise está nos dizendo sobre o sistema atual que outras crises não nos disseram?
Mazzucato – Há uma “tripla crise do capitalismo” acontecendo. Uma crise de saúde: a pandemia global confinou a maioria da população mundial, e está claro que somos tão vulneráveis quanto nossos vizinhos, local, nacional e internacionalmente.

Uma crise econômica: a desigualdade é uma causa e uma consequência da pandemia. A crise da covid-19 está expondo ainda mais falhas em nossas estruturas econômicas. A crescente precariedade do trabalho é uma delas. Pior ainda, os governos estão agora emprestando para empresas em um momento em que a dívida privada é historicamente alta, enquanto a dívida pública tem sido vista como um problema na última década de austeridade. Além disso, um setor de negócios excessivamente ‘financeirizado’ tem desviado o valor da economia.

A terceira crise é climática: não podemos voltar aos ‘negócios de sempre’. No início deste ano, antes da pandemia, a mídia estava cheia de imagens aterrorizantes de bombeiros sobrecarregados (tentando apagar incêndios), e não de profissionais de saúde.

BBC News Mundo – O capitalismo como o conhecemos pode sobreviver? Ele deve ser salvo?
Mazzucato – Essa crise e a recuperação de que precisamos nos dão a oportunidade de entender e explorar como fazer o capitalismo de maneira diferente. Isso justifica repensar para que servem os governos: em vez de simplesmente corrigir as falhas de mercado quando elas surgirem, elas devem avançar ativamente para moldar e criar mercados para enfrentar os desafios mais prementes da sociedade.

Eles também devem garantir que as parcerias estabelecidas com empresas, envolvendo fundos governamentais, sejam motivadas pelo interesse público, e não pelo lucro. Quando empresas privadas pedem resgates para os governos, devemos pensar no mundo que queremos construir para o futuro e na direção da inovação que precisamos alcançá-lo, e, com base nisso, adicionar condições que beneficiem o interesse público, não apenas o privado. Isso garantirá a direção da viagem que queremos: verde, sustentável e equitativa.

Quando as condicionalidades são bem-sucedidas, elas alinham o comportamento corporativo às necessidades da sociedade. No curto prazo, isso se concentra na preservação das relações de trabalho durante a crise e na manutenção da capacidade produtiva da economia, evitando a extração de fundos para os mercados financeiros e a remuneração de executivos. A longo prazo, trata-se de garantir que os modelos de negócios levem a um crescimento mais inclusivo e sustentável.

Em 31 de março, em sua conta no Twitter, Mazzucato reagiu às palavras do papa Francisco sobre seu livro: “Estou profundamente honrada pelo papa ter lido meu livro O valor de tudo: criar e absorver a economia global e por concordar que o futuro — especialmente pós-covid-19 — tem a ver com uma repriorização de ‘valor ‘acima’ preço'”.

A especialista disse à BBC News Mundo que ela foi convidada a participar de uma comissão do Vaticano focada na economia no âmbito da pandemia da covid-19 e nos contou sobre essa experiência: “Fornecemos relatórios semanais ao papa e à Diretoria do Vaticano, antes dos discursos semanais do papa, sobre aspectos-chave da resposta econômica à covid-19. É uma grande honra”.

“Nosso instituto de pesquisa e inovação se junta ao grupo de trabalho de outras universidades, incluindo a Georgetown, nos Estados Unidos, e do World Resources Institute. Esses relatórios variam da economia política do alívio da dívida à reestruturação das relações econômicas público-privadas”, prossegue.

“Nosso principal interesse é trabalhar com o Vaticano sobre como seu conceito de ‘bem comum’, do qual falamos em termos de ‘valor público’, pode ser usado para estruturar a forma de investimento e colaboração públicos e privados. Sem isso, corremos o risco de fazer o mesmo que aconteceu com a crise financeira de 2008: bilhões foram injetados sem afetar a economia real. A maior parte disso voltou ao setor financeiro e a crise seguinte começou a crescer”, diz ela.

“Para construir um crescimento inclusivo e sustentável, precisamos de investimento público impulsionado pelo conceito de bem comum e novos tipos de relações público-privadas que são estruturadas sob condições que criam um ecossistema mais simbiótico e não-parasitário. E temos que trazer grupos de cidadãos e sindicatos para a mesa de discussão, para garantir que não apenas tenhamos uma transição mais justa, mas que também haja vozes diferentes para definir que tipo de sociedade queremos. Acredito que a energia renovada por trás dos movimentos sociais, como o Black Lives Matter, é um bom sinal de que haverá uma forte pressão para que nossas sociedades evoluam progressivamente. Se não o fizermos, perderemos.”
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O Brasil não é só uma grande fazenda, por Marcus V. Rodrigues.

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Folha de São Paulo, 08/02/2021.

Desconhecer este fato é grave erro para alguns e ‘crime’ para outros

Em tempos de fake news, não acreditei, num primeiro momento, na veracidade das declarações recentes do sr. Carlos von Doellinger, dirigente maior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), defendendo a desindustrialização do Brasil nas atividades não vinculadas à agricultura e à mineração.

Um jovem assistente meu chegou a dizer, de forma humorada, que ele deve ter um doutorado em economia em Chicago, como muitos dos geniais burocratas da atual equipe de economistas do Ministério da Economia, que não são favoráveis e não entendem do tema desenvolvimento industrial.

Logo depois, também com o humor brasileiro, levantou a hipótese de que ele tinha tomado a vacina, e isso poderia ter alterado seu DNA, fazendo com que perdesse o bom senso ou esquecesse os ensinamentos básicos de uma especialização que fez em engenharia de produção e fabricação na PUC-RJ.

Mas nada disso! O atual presidente do Ipea, uma instituição que abriga os mais bem formados doutores em economia do país, possui somente um mestrado. E, pelas informações a que se teve acesso, ainda não tomou a vacina contra a Covid 19.

O Ipea é uma das instituições de referência e excelência, herança bendita dos governos militares, com o legado de “pensar o Brasil” e que ajudou a forjar o milagre econômico dos anos 1970. Historicamente, ele tem a função de dar suporte técnico ao governo para a formulação de políticas públicas destinadas aos programas de desenvolvimento.

Portanto, seu dirigente maior deveria ter uma visão macro e atualizada do contexto atual e ser independente do órgão responsável pelos programas de desenvolvimento, hoje o Ministério da Economia. Mas o atual presidente do Ipea foi indicação pessoal, segundo informações da imprensa, do titular do citado ministério, Paulo Guedes.

Assim, tudo foi explicado. Nem fake news, nem os efeitos da vacina, nem Chicago. O que pode ter ocorrido foi um saudosismo no retorno aos debates da “política do café com leite” da República Velha, quando se discutia o que era mais importante: a industrialização ou vender commodities. Posições míopes e desatualizadas quanto ao desenvolvimento, com foco apenas nos aspectos macroeconômicos, desprezando conhecimentos atuais e experiências de nações que cresceram e empregaram seus cidadãos a partir do setor industrial.

Hoje não existe nação forte, independente e soberana sem um parque industrial moderno, abrangente, diversificado e ativo, que fabrique de alfinetes a aviões. O exemplo disso é a recente pandemia que explicitou o erro estratégico das nações ocidentais ao terceirizar suas produções industriais, passando a administrar apenas marcas, marketing e fumaça. O desespero de muitas para comprar respiradores, e agora os insumos para a vacina, despertou o Ocidente para o erro cometido. Mas, diante das recentes declarações do titular do Ipea, o instituto que “pensa o Brasil”, o posicionamento brasileiro deveria ser o oposto.

É inconsequente e irresponsável que se defenda a desindustrialização de atividades não vinculadas à agricultura e à mineração. Isso poderia ser um crime de traição à pátria? Não tenho conhecimento jurídico para responder.

E tudo isso durante a quarta fase da Revolução Industrial, que tem como foco a inteligência artificial e que bate às nossas portas. No Brasil, a produção primária e a manufatura de seus produtos se fazem imperiosas sim. Mas só isso é pouco! Seria como planejar o fim dos sonhos de um país independente e autossuficiente.

Mas o Brasil é forte, grande e inovador. E o empresário brasileiro tem garra, é empreendedor e pensa grande —não vai se adequar somente à produção ou manufatura das commodities como foi sugerido, de forma limitada e infeliz, por um frentista do posto Ipiranga.

Pense mais, Ipea. Faça o seu papel e ajude a acordar o Brasil!

Marcus Vinicius Rodrigues
Doutor em engenharia da produção e autor de livros na temática qualidade e produtividade, é membro do Conselho Editorial do Instituto General Villas Bôas e da Academia Brasileira de Ciências da Administração e ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)