Sociedade precisa se convencer do problema que é a desigualdade, diz Martin Wolf

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Para comentarista-chefe do jornal Financial Times, ascensão do populismo é um dos sintomas da ‘doença’ da disparidade de renda

Fernando Canzian – Folha de São Paulo, 07/08/2019

LONDRES

Para Martin Wolf, 73, comentarista-chefe do jornal Financial Times, a ascensão do populismo é sintoma da “doença” da desigualdade de renda e só tem a oferecer respostas que tornarão as sociedades “mais furiosas, menos justas e mais violentas”.

Segundo ele, o populismo de direita é quase sempre “uma fraude”. “O de esquerda pode ser mais produtivo, mas apenas se for muito disciplinado”. O risco, diz, é terminar como a Venezuela. Wolf, um dos mais conceituados colunistas de economia e finanças da atualidade, afirma que a sociedade precisa se convencer de que a desigualdade é um problema.

As evidências mostram importante aumento da desigualdade de renda em praticamente todos os países. Há meios de reverter ou atenuar essa tendência?

É importante perceber que, embora existam tendências subjacentes que podem ser vistas no mundo todo, o que sugere que algumas forças econômicas estão presentes, também vemos enormes diferenças [em relação ao grau de desigualdade] entre países com níveis similares de renda. Isso evidencia que há coisas a serem feitas.

Se você tiver uma educação de alta qualidade, como alguns países da Europa continental e o Japão, isso reduz a desigualdade drasticamente.

Há políticas de gastos e de impostos. Há regulamentações e normas que afetam a economia. Há o papel dos sindicatos e o de outras atividades humanas que, de modo cumulativo, fazem muita diferença. Em última análise, todas essas coisas refletem até que ponto a igualdade é uma norma social.

Se uma sociedade como um todo não acredita que seja possível um grau razoavelmente alto de igualdade, e de igualdade de oportunidades para filhos de pessoas pobres, será impossível obter um alto nível de educação para todos.

Se tivermos apenas sociedades muito heterogêneas, com níveis relativamente limitados de solidariedade, sobretudo entre ricos e pobres, as instituições não forçarão a igualdade, o governo será indiferente a essa questão e nada vai acontecer.

Ao contrário de respostas solidárias, o que se vê em todo o mundo são respostas populistas, sobretudo da direita, não?

O populismo de direita é quase sempre uma fraude, porque essencialmente é uma maneira de desviar a atenção e ignorar as pessoas que estão sofrendo com a desigualdade. Coloca-se a culpa nos imigrantes, nos estrangeiros, nos criminosos, e os verdadeiros problemas não são enfrentados.

Acho que o populismo de direita é sempre uma armadilha e um delírio. O populismo de esquerda pode ser mais produtivo, mas apenas se for muito disciplinado. Se você só gastar muito dinheiro sem pensar a respeito, pode acabar como a Venezuela.

O populismo é um sintoma dessa doença [a desigualdade], e às vezes dá uma resposta ou outra, mas nunca a resposta final. É preciso respostas mais inteligentes e, acima de tudo, que a sociedade realmente acredite que esse é um problema a ser enfrentado.

O sr. diria que Donald Trump, brexit e políticos de esquerda e de direita são produtos da desigualdade?

Diria que são em parte produto da desigualdade, sim. Eles também são o resultado da estagnação e até certo ponto o resultado da mudança cultural. Mas a desigualdade ou a crescente desigualdade é uma parte disso.

O que me preocupa é que respostas como Trump e brexit não farão nada para resolver o problema. Na verdade, vão piorar as coisas e vão encorajar as pessoas a culpar algum outro grupo, muitas vezes mais vulnerável. Isso tende a tornar a sociedade ainda mais dividida. Essas respostas são uma consequência de males sociais, mas nunca serão uma solução para isso.

Tivemos uma longa experiência com o populismo de direita no mundo nos últimos 150 anos que levou, na minha opinião, ao desastre. O populismo de esquerda geralmente fez a mesma coisa, de maneira bastante uniforme.

Então, o que me preocupa é que ao mesmo tempo em que entendo o ultraje populista, entendo a necessidade de mudança. Sinto que os políticos populistas só oferecem respostas que tornarão nossas sociedades mais furiosas, menos justas, mais amargas e violentas.

Alguns acadêmicos defendem a implementação de renda básica universal para atenuar a desigualdade. O que o sr. acha?

Eu diria que essa não é a resposta fundamental. Se você tiver condições de aumentar substancialmente os impostos, então pode adotar gastos para tornar a sociedade um lugar melhor, e menos desigual. Mas a renda básica não é suficiente para atingir esse objetivo.

Porque ainda haveria o problema da educação, que não se resolve com renda básica. Haveria a questão da preocupação com o nível de prosperidade da sociedade, que depende fundamentalmente do investimento em infraestrutura e em tudo o que torna uma sociedade produtiva.

Para fazer um programa desses funcionar, de modo que se dê uma renda mínima a todos, seria preciso elevar o nível dos impostos para um patamar muito alto. E é óbvio que, quando se pensa nisso, será preciso tirar dinheiro da classe média e depois devolver isso a ela. A renda básica não vai resolver muitas das coisas das quais dependem a vitalidade, a prosperidade e as perspectivas de uma sociedade. Preocupa-me que isso esteja sendo apresentado como uma panaceia.

 

Classe média encolhe no Ocidente, mas China puxa renda global

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Apesar do avanço dos asiáticos, EUA e Europa concentram a maior fatia de altos rendimentos 

Fernando Canzian – Folha de São Paulo, 05/08/2019

WASHINGTON

Para o economista Rakesh Kochhar, do Pew Research Center, de Washington, a China é o país que mais tem contribuído para o aumento da classe média no mundo.

Segundo ele, vários fatores levam, porém, ao encolhimento desse estrato no Ocidente.

 

Os países asiáticos, sobretudo a China, estão tirando rapidamente milhões de pessoas da pobreza extrema e, ao contrário do que ocorre no Ocidente, têm ampliado as suas classes médias. Quais as perspectivas futuras desse processo?

Consideramos a distribuição das pessoas em cinco grupos. Começamos no nível de pobreza e vamos para os grupos de baixa renda, renda média, renda média alta e renda alta.

A renda média engloba pessoas que ganham entre US$ 10 a US$ 20 ao dia. Globalmente, o número de pessoas com essa faixa de rendimentos médios dobrou a partir de 2000.

Grande parte desse crescimento veio apenas da China, responsável por mais da metade desse aumento. Por isso, a história do crescimento da classe média em alguns locais do mundo deve-se ao grande número de pessoas na China que se beneficiaram de um tremendo crescimento, baseado em reformas econômicas iniciadas na década de 1980.

Secundariamente, há crescimento da classe média vindo também da América Latina, particularmente da Argentina e do Brasil. Essa região contribuiu com cerca de 50 milhões de pessoas que recentemente chegaram à renda média neste século.

Em outros países em rápido crescimento, como a Índia, principalmente, pessoas migraram da pobreza para o grupo de baixa renda. Mas um grande número de pessoas ainda têm de ser colocado no grupo de renda média, de acordo com o padrão global.

Portanto, há crescimento, mas ele não é igualitário. Alguns países de renda média ainda estão atrás da curva em comparação a outros de renda alta, como a Europa Ocidental ou os Estados Unidos e o Canadá, onde a classe média alta prevalece.

Houve alguma melhora no sentido de alcançá-los. Mas a grande maioria, entre 80% e 90% das pessoas consideradas globalmente como de renda alta, ainda vivem nesses países do Ocidente.

Quando se fala em concentração de renda e do encolhimento da classe média no Ocidente, muitos apontam para a Ásia como uma das causas, devido ao deslocamento da produção industrial para lá. Mas há outros aspectos, como a diminuição dos sindicatos e a tecnologia. Qual a sua opinião?

Há uma infinidade de fatores aqui. Infelizmente, não temos uma boa resposta para o quanto determinado aspecto contribuiu para a diminuição da participação da classe média.

O declínio dos sindicatos, associado ao declínio da indústria manufatureira, desempenhou um papel importante.

A globalização e a concorrência, com mais mão de obra no exterior capaz de fazer o trabalho que se fazia nos Estados Unidos, por exemplo, desempenham um papel também.

O mesmo acontece com a tecnologia. A maioria das pessoas diz que a tecnologia tem mais a ver com isso do que qualquer outra coisa.

Por tecnologia entendemos aquele engenheiro que projeta o carro e é muito produtivo. Ele ou ela realmente se beneficia da informatização. Essa pessoa é produtiva e é bem paga.

Mas a mesma informatização, ou automação, tira o trabalho da pessoa que costumava montar o carro. Ela é substituída, e seus rendimentos e empregos sofrem pressão.

A maioria apontaria para a tecnologia, a globalização e o enfraquecimento dos sindicatos como forças que contribuíram para o declínio da classe média. Mas é impossível definir se isso explica 50% ou 80% do problema

O significado da vida em um mundo sem trabalho, segundo Yuval

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A maioria dos empregos que existem hoje pode desaparecer dentro de décadas. À medida que a inteligência artificial supera os seres humanos em tarefas cada vez mais, ela substituirá humanos em mais e mais trabalhos. Muitas novas profissões provavelmente aparecerão: designers do mundo virtual, por exemplo. Mas essas profissões provavelmente exigirão mais criatividade e flexibilidade, e não está claro se os motoristas de táxi ou agentes de seguros desempregados de 40 anos poderão se reinventar como designers do mundo virtual (tente imaginar um mundo virtual criado por um agente de seguros!?). E mesmo que o ex-agente de seguros de alguma forma faça a transição para um designer de mundo virtual, o ritmo do progresso é tal que, dentro de mais uma década, ele pode ter que se reinventar novamente.

O problema crucial não é criar novos empregos. O problema crucial é a criação de novos empregos que os humanos apresentam melhor desempenho do que os algoritmos. Consequentemente, até 2050, uma nova classe de pessoas poderá surgir – a classe desocupada. Pessoas que não estão apenas desempregadas, mas desempregáveis. A mesma tecnologia que torna os seres humanos inúteis também pode tornar viável alimentar e apoiar as massas desempregadas através de algum esquema de renda básica universal. O problema real será, então, manter as massas ocupadas e o conteúdo. As pessoas devem se envolver em atividades propositadas, ou ficam loucas. Então, o que a classe desocupada irá fazer o dia todo?

Uma resposta pode ser jogos de computador. Pessoas economicamente redundantes podem gastar quantidades crescentes de tempo dentro dos mundos da realidade virtual 3D, o que lhes proporcionaria muito mais emoção e engajamento emocional do que o “mundo real” externo. Isso, de fato, é uma solução muito antiga. Por milhares de anos, bilhões de pessoas encontraram significado em jogar jogos de realidade virtual. No passado, chamamos essas “religiões” de jogos de realidade virtual.

O que é uma religião, se não um grande jogo de realidade virtual desempenhado por milhões de pessoas juntas? Religiões como o Islã e o Cristianismo inventam leis imaginárias, como “não comem carne de porco”, “repita as mesmas preces um número determinado de vezes por dia”, “não faça sexo com alguém do seu próprio gênero” e assim por diante. Essas leis existem apenas na imaginação humana. Nenhuma lei natural exige a repetição de fórmulas mágicas, e nenhuma lei natural proíbe a homossexualidade ou a ingestão de porco. Muçulmanos e cristãos atravessam a vida tentando ganhar pontos em seu jogo de realidade virtual favorito. Se você reza todos os dias, você obtém pontos. Se você esqueceu de orar, você perde pontos. Se, no final da sua vida, você ganhar pontos suficientes, depois de morrer, você vai ao próximo nível do jogo (também conhecido como o paraíso).

Como as religiões nos mostram, a realidade virtual não precisa ser encerrada dentro de uma caixa isolada. Em vez disso, ele pode se sobrepor à realidade física. No passado, isso foi feito com a imaginação humana e com livros sagrados, e no século 21 pode ser feito com smartphones.

Algum tempo atrás, fui com o meu sobrinho de seis anos, Matan, para caçar Pokémon. Enquanto caminhávamos pela rua, Matan continuava a olhar para o seu telefone inteligente, o que lhe permitia detectar Pokémon à nossa volta. Eu não vi nenhum Pokémon, porque não carregava um smartphone. Então vimos outras duas crianças na rua que estavam caçando o mesmo Pokémon, e quase começamos a lutar com eles. Parecia-me como a situação era semelhante ao conflito entre judeus e muçulmanos sobre a cidade sagrada de Jerusalém. Quando você olha a realidade objetiva de Jerusalém, tudo que você vê são pedras e edifícios. Não há santidade em qualquer lugar. Mas quando você olha através de smartbooks (como a Bíblia e o Alcorão), você vê lugares sagrados e anjos em todos os lugares.

A ideia de encontrar um significado na vida ao jogar jogos de realidade virtual é, evidentemente, comum não apenas às religiões, mas também às ideologias seculares e estilos de vida. O consumo também é um jogo de realidade virtual. Você ganha pontos adquirindo carros novos, comprando marcas caras e tendo férias no exterior, e se você tiver mais pontos do que todos os outros, dizendo a si próprio que ganhou o jogo.

Você pode contrariar dizendo que as pessoas realmente gostam de seus carros e férias. Isso certamente é verdade. Mas os religiosos realmente gostam de orar e realizar cerimônias, e meu sobrinho realmente gosta de caçar Pokémon. No final, a ação real sempre ocorre dentro do cérebro humano. Não importa se os neurônios são estimulados observando pixels em uma tela de computador, olhando para fora das janelas de um resort do Caribe ou vendo o céu nos olhos da mente? Em todos os casos, o significado que atribuímos ao que vemos é gerado pelas nossas próprias mentes. Não é realmente “lá fora”. Para o melhor de nosso conhecimento científico, a vida humana não tem significado. O significado da vida é sempre uma história de ficção criada por nós humanos.

Em seu ensaio inovador, Deep Play: Notas sobre a Briga de Galos em Bali (1973), o antropólogo Clifford Geertz descreve como na ilha de Bali, as pessoas passaram muito tempo e dinheiro apostando em brigas de galos. As apostas e as lutas envolveram rituais elaborados, e os resultados tiveram um impacto substancial na posição social, econômica e política de jogadores e espectadores.

As brigas de galos eram tão importantes para os balineses que, quando o governo indonésio declarou a prática ilegal, as pessoas ignoraram a lei e se arriscavam a prisão e multas pesadas. Para os balineses, as brigas eram “jogo profundo” – um jogo confeccionado que é investido com tanto significado que se torna realidade. Um antropólogo balines poderia, sem dúvida, ter escrito ensaios semelhantes sobre futebol na Argentina, Brasil ou no judaísmo em Israel.

De fato, uma seção particularmente interessante da sociedade israelense fornece um laboratório exclusivo de como viver uma vida satisfeita em um mundo pós-trabalho. Em Israel, um percentual significativo de homens judeus ultra-ortodoxos nunca trabalhou. Eles passam toda a vida estudando escrituras sagradas e realizando rituais de religião. Eles e suas famílias não morrem de fome, em parte porque as esposas muitas vezes trabalham, e em parte porque o governo lhes fornece generosos subsídios. Embora geralmente vivam na pobreza, o apoio do governo significa que eles nunca faltam para as necessidades básicas da vida.

Isso é uma renda básica universal em ação. Embora sejam pobres e nunca trabalhem, em pesquisa após pesquisa, esses homens judeus ultra-ortodoxos relatam níveis mais elevados de satisfação com a vida do que qualquer outra parte da sociedade israelense. Nos levantamentos globais sobre a satisfação da vida, Israel está quase sempre no topo, graças em parte ao contributo destes pensadores profundos e desempregados.

Você não precisa ir a Israel para ver o mundo do pós-trabalho. Se você tem em casa um filho adolescente que gosta de jogos de computador, você pode realizar sua própria experiência. Fornecer-lhe um subsídio mínimo de Coca-cola e pizza e, em seguida, remover todas as demandas de trabalho e toda a supervisão dos pais. O resultado provável é que ele permanecerá em seu quarto por dias, colado na tela. Ele não vai fazer qualquer lição de casa ou tarefas domésticas, vai ignorar a escola, ignorar as refeições e até mesmo ignorar os chuveiros e dormir. No entanto, é improvável que ele sofra de tédio ou uma sensação de sem propósito. Pelo menos não no curto prazo.

Portanto, as realidades virtuais provavelmente serão fundamentais para fornecer significado à classe desocupada do mundo pós-trabalho. Talvez essas realidades virtuais sejam geradas dentro dos computadores. Talvez sejam gerados fora dos computadores, sob a forma de novas religiões e ideologias. Talvez seja uma combinação dos dois. As possibilidades são infinitas, e ninguém sabe com certeza que tipos de peças profundas nos envolverão em 2050.

Em qualquer caso, o fim do trabalho não significará necessariamente o fim do significado, porque o significado é gerado pela imaginação em vez de pelo trabalho. O trabalho é essencial apenas para o significado de acordo com algumas ideologias e estilos de vida. Os escravos ingleses do século XVIII, os judeus ultra-ortodoxos atuais e as crianças em todas as culturas e eras encontraram muito interesse e significado na vida, mesmo sem trabalhar. As pessoas em 2050 provavelmente poderão jogar jogos mais profundos e construir mundos virtuais mais complexos do que em qualquer momento anterior da história.

E quanto à verdade? E a realidade? Realmente queremos viver em um mundo no qual bilhões de pessoas estão imersas em fantasias, buscando objetivos criativos e obedecendo leis imaginárias? Bem, goste ou não, esse é o mundo em que vivemos há milhares de anos.

Yuval Noah Harari é professor na Universidade Hebraica de Jerusalém e é autor de ‘Sapiens: Uma Breve História da Humanidade’ e ‘Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã’

Brasileiro abandonou ‘máscara’ de cordial e assumiu sua intolerância, diz Lilia Schwarcz

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 Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil/São Paulo. 01/07/2019

As manifestações em 2013 e o impeachment da presidente Dilma Rousseff “abriram a tampa da democracia no Brasil e permitiram aflorar sentimentos que andavam um pouco reclusos”, diz a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.

Para ela, até então o brasileiro zelava por uma imagem “de muito receptivo, muito aberto” que servia de verniz para uma intolerância e um autoritarismo que ficavam escondidos e que estavam enraizados na própria história do país – a característica mais marcante do “homem cordial” descrito em 1936 pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda.

O conceito, que dá nome ao capítulo mais célebre do livro Raízes do Brasil, foi muitas vezes mal interpretado como um elogio – quando queria expor, na verdade, “uma representação do que queríamos ser”, explica a historiadora.

A “cordialidade” que se manifesta, por exemplo, no uso de diminutivos ou na informalidade que marca a nossa cultura seria o expediente usado para misturar as relações públicas e privadas e guardar uma proximidade que, na verdade, disfarça as distâncias sociais. Algo que “evita as hierarquias para, no silêncio, reafirmá-las”.

Quase 80 anos depois, em um contexto de avanço do conservadorismo no mundo e de crise das democracias, esse homem “tira a máscara”.

 

“Com a crise, a recessão, o impeachment, acho que nós avalizamos pessoas que não tinham a coragem de dizer coisas do tipo: ‘eu sou contra negro mesmo’, ‘acho que lugar de mulher é no fogão’, ‘acho que os trans são uma vergonha'”, diz ela.

Uma mudança que transformou a percepção que o mundo tinha sobre o país, diz a historiadora, que dá aulas na Universidade de São Paulo (USP) e na universidade americana de Princeton.

No recém-lançado Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Companhia das Letras), escrito entre outubro de 2018 e março deste ano, ela traça um longo histórico da violência, da corrupção, das desigualdades sociais, da intolerância e das questões de raça e gênero no país para discutir o momento atual, que caracteriza como uma “guinada conservadora e reacionária”.

Para ela, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 marca uma nova fase do autoritarismo brasileiro, referendado pelas urnas.

“Por mais que (o livro) tenha endereço certo, acho que de nada adianta apontar só para o Bolsonaro, senão eu também faria o jogo do personalismo que eu quero evitar.”

O livro é uma tentativa de abrir mão dos rigores da academia para buscar um público maior e debater temas atuais, à semelhança de autores americanos como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos da Universidade Harvard e autores de Como as Democracias Morrem, e Timothy Snyder, da Universidade Yale, que escreveu A Tirania e Na Contramão da Liberdade: A Guinada Autoritária nas Democracias Contemporâneas.

Nesse sentido, ela foi além: mantém uma conta no Instagram e um canal no YouTube em que aborda temas que vão de violência e racismo a ditadura e corrupção.

Se há alguns meses a antropóloga não sabia ainda que as respostas aos comentários no YouTube eram públicas ou que o Instagram não era lugar de “textão”, hoje ela admite que quer usar o espaço das redes sociais para “cutucar” aqueles que discordam de seus pontos de vista a fim de discutir “com argumentos”.

Leia, a seguir, trechos da entrevista à BBC News Brasil.

BBC News Brasil – Muita gente defende que Bolsonaro só existe como presidente por causa do PT. Em que medida corrupção e crise formam o alicerce desse, como a senhora classifica, novo período autoritário referendado nas urnas?

Lilia Schwarcz – O primeiro eleito nas urnas e o primeiro que usa as redes sociais, isso é muito importante. Eu acho que a gente tem que ser um pouco mais sério com o Bolsonaro. Fazer esse jogo do tipo “ele só ganhou porque”… Ele também ganhou. Mas dizer que só ganhou (por causa do PT) é minimizar um fenômeno que eu tento mostrar no livro que é de mais longo curso.

Ou seja, não é que os brasileiros viraram autoritários, eles sempre foram autoritários.

Acho que a gente também tem que entender o fenômeno Bolsonaro à luz do fenômeno do autoritarismo no mundo.

Porque se você pensar em EUA, Hungria, Polônia, Filipinas, Israel, Venezuela, estamos falando de governos populistas e autoritários.

Diferentes, mas governos, sobretudo os populistas autoritários mais à direita, que têm uma fórmula muito comum: esse repúdio à imprensa – você deve estar sentindo isso -, essa desautorização do discurso das minorias, essa tremenda desautorização do discurso da academia, o uso muito inteligente das redes.

Esse é o modelo internacional, grosso modo. Mas cada país carrega sua própria especificidade.

A do Brasil é essa que eu tentei tratar nesse livro: o fato de ter sido o último país a abolir a escravidão, de ter recebido quase metade dos africanos e africanas que saíram compulsoriamente de seu continente, de ter sido uma colônia de exploração, administrada por meio de mandonismos localizados, um país tremendamente violento, muito corrupto.

E eu tento mostrar como a corrupção é longa entre nós. A gente atribuir tudo ao PT…

O PT teve uma parte fundamental, e acho que meu capítulo da corrupção mostra o quão independente eu sou…

BBC News Brasil – Vou aproveitar então para emendar uma pergunta. Em alguns trechos, ainda que com ressalva, a sra. coloca argumentos que fazem parte do discurso do PT, especialmente o da perseguição política, como no trecho em que fala que “jogar todas as baterias contra apenas uma pessoa – e, assim, personalizar a questão ou transformar um único partido em bode expiatório – não dá conta do problema”. Não teme que seja interpretado como partidarismo e abra um flanco para críticas?

Schwarcz – Eu penso que o livro tem flanco pra todos os lados. Acho que os meus colegas do PT não vão gostar da análise que eu faço do Mensalão e da Lava Jato – e é esse mesmo capítulo.

Esse é o capítulo mais longo, salvo engano, e o mais difícil justamente porque eu tinha uma questão de mostrar a minha independência e a minha autonomia aí muito claras.

Quando você vai tratar da questão da corrupção, ninguém é favor da corrupção e ninguém é corrupto. Eu sou uma pessoa da academia que chego lá e digo com todas as palavras que a corrupção criou uma máquina de governar, não eximo o PT, não eximo o PSDB.

Essa sua pergunta poderia ser “Você não tá dando argumento pros ‘bolsominions’?”. Tô também – “até ela está mostrando como o PT foi corrupto”. Acho que, se a gente for pegar o livro nesse momento de polarizações afetivas que nós vivemos, a cada página você vai ter alguém de carteirinha contra ou a favor.

O que eu tentei fazer foi me valer muito dos dados, contar a história inteira, para só depois me dar ao luxo de opinar.

BBC News Brasil – O livro está recheado de ironias e provocações. Há um momento em que a sra. se refere de forma indireta à ministra Damares Alves, quando diz, ao falar dos feminicídios, que “a princesa não casa com o príncipe”, há também uma crítica velada ao ministro Sergio Moro no trecho: “juízes que combateram a corrupção vigente, mas igualmente, usaram de seu poder de formas muitas vezes subjetiva e ao sabor dos afetos políticos”. Com que emoção a sra. escreveu?

Schwarcz – Eu fiz em pouco tempo, mas fiz muitas versões desse livro. Tive momentos claramente destemperados, né, e meus editores aqui falavam: “Beleza, mas agora vamos ponderar isso, aquilo”.

Eu tentei de alguma forma contrabalançar as opiniões, tentei bravamente.

Tem um lado que você pode falar que é muito meu, a parte dos feminicídios. Claro, vai ter que me aguentar. Pediu para uma mulher escrever, então vamos lá, né?

Essas são todas questões que me afetam no sentido de “afetar” da antropologia, porque o afeto é produtor. Porque, quando você se afeta, isso quer dizer que você se contamina do outro.

BBC News Brasil – Voltando ao seu comentário sobre o fato de o fenômeno de ascensão da direita ser global. Em que medida ela não se deve também a uma crise global das democracias liberais, que não estão conseguindo mais dar conta dos efeitos da globalização, aumento da desigualdade, da violência?

Schwarcz – Com certeza, eu digo no livro que corrupção, violência, insegurança não são sentimentos inventados por Bolsonaro.

Costumo dizer que a minha geração falhou. Colocou todas as fichas na democracia e não lidou muito bem com o que fazer com a nossa recessão, o que fazer com as populações que vão ascendendo e que não se espelham exatamente nesse momento.

Como é que a gente pode valorizar a nossa Constituição, mas também mostrar as suas falácias? Quais são os nós que resolvemos não enfrentar e que vão aparecendo agora?

Você tem toda razão. Houve uma soberba, sobretudo no consórcio criado entre PT e PSDB. Uma cegueira. Nós não atendemos a uma parte da população que se sentiu atendida por Bolsonaro.

E não é possível caricaturar essa população. Eu, por exemplo, tenho como projeto entender mais as igrejas evangélicas. E no plural. Porque a gente ataca tanto as pessoas que fazem de nós um só…

Esse é um fenômeno fundamental para entender o Brasil, e eu nunca parei para estudar.

BBC News Brasil – Fazem sentido então críticas como a do cientista político Mark Lilla, de que a esquerda vem perdendo espaço porque se prende a pautas identitárias e não privilegia, por exemplo, pautas econômicas ou temas que falem com um público mais amplo?

Schwarcz – Eu gosto muito do Lilla, mas discordo que o discurso identitário seja só ruim. Há uma tese lá de que o discurso identitário enrijeceu esses famosos lugares de fala e jogou para fora parte da população que não sentia de modo algum representada por esses discursos.

Eu penso que o discurso dos direitos civis produziu esse discurso de identidade, um discurso que vai ter que se transformar em algo menos enrijecido, mas que tem um papel fundamental para pressionar para que o mundo mude.

Nós vivemos em um mundo muito branco, muito “europocêntrico”, muito colonial, que só vai mudar se for questionado.

BBC News Brasil – E a sra. vê a esquerda brasileira fazendo isso, se reinventando para abordar essas pautas de forma diferente, não se isolar?

Schwarcz – Eu digo no livro – e vai desagradar as esquerdas também – que a polarização é uma relação. Você só polariza de um lado se o outro lado polarizar também.

Acho que as esquerdas brasileiras são muitas. E vão ter que vivenciar esse luto, vão ter que se haver com o que aconteceu com o Partido dos Trabalhadores. Mas não só: também com o que aconteceu com esse projeto das esquerdas. Vão ter que se reinventar.

É difícil falar de todos, senão eu vou estar caricaturando, mas acho que uma parte das esquerdas tem ficado mais alerta e mais ciente sobre o que foi esse processo das eleições de 2018. Acho que a gente não tem que só demonizar o que foi, mas fazer um esforço de compreensão, até para fundar uma nova República.

BBC News Brasil – A sra. se refere a quais figuras, à corrente mais jovem, representada, por exemplo, pela deputada Tabata Amaral?

Schwarcz – Acho que houve um projeto de uma geração que se mostrou insuficiente.

E acho que existe aí um outro discurso, não só o discurso dos jovens, mas que carrega outros marcadores, um discurso feminista, negro, trans. Pessoas que vêm de outros locais. Um discurso religioso progressista.

Penso que a saída virá da formação de novas figuras. Não só de novas figuras, porque eu não gosto de “essencializar” a juventude. Juventude não é uma qualidade em si, é uma situação. Mas eu acho que a gente tem que encontrar novas saídas e novos repertórios. Nós estamos carentes de repertório mesmo.

BBC News Brasil – E consegue enxergar essa mudança?

Schwarcz – Eu penso que sim. Outro dia falei que era otimista e fui quase morta. Nós não estamos em um momento bom, estamos em uma crise de desemprego, temos essa questão pela frente da reforma, senão o Estado vai falir, estamos vivendo momento de grande intolerância.

Por todos os lados que você olhar não há motivo para otimismo. Mas, por exemplo: uma manifestação como a do dia 15 (contra os contingenciamentos na Educação) me faz otimista, porque você vê na rua que tem mais pessoas clamando por um Brasil mais justo, mais generoso.

BBC News Brasil – Como vê as manifestações do último domingo, a favor do presidente?

Schwarcz – Foi um ato democrático como aquela do dia 15. Mas o esforço do governo de, ao mesmo tempo, afirmar que tudo era “espontâneo”, mas também “convocar a manifestação” representa mais um gesto populista.

Esse tipo de palavra de ordem serve mais para candidatura do que para mandato.

BBC News Brasil – A sra. não cita nominalmente o presidente em nenhum momento do livro. Foi proposital?

Schwarcz – Foi. E foi um esforço. Porque, por mais que tenha endereço certo, eu acho que de nada adianta apontar só para o Bolsonaro. Isso aí é, de alguma forma, perder a figura e o fundo.

A família aparece claramente no capítulo dos mandonismos, né.

Mas foi proposital, porque senão eu também vou fazer o jogo do personalismo que eu quero evitar. O meu problema não é pessoal, é com aquele que ocupa a chefia do Estado.

BBC News Brasil – Em mais de um trecho a senhora afirma que o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda não é um elogio ao brasileiro, pelo contrário. Próximo ao fim, parece chegar à conclusão de que essa figura não existe mais e tem dado lugar ao “homem da intransigência e da aversão à diferença”. Esse seria, então, um momento de inflexão?

Schwarcz – Eu tento mostrar aqui que nunca foi (cordial), né, que é uma representação do que queríamos ser.

BBC News Brasil – Isso, mas a tese do Sérgio Buarque é de que a gente ainda disfarçava…

Schwarcz – Eu penso que o tempo provou que o processo do impeachment da presidente Dilma de alguma maneira abriu a tampa da democracia e permitiu aflorar uma série de afetos e sentimentos que andavam um pouco reclusos porque “não ficavam bem”, porque o que era bom era dar sempre essa face – como nós brasileiros somos muito cordiais, muito receptivos, muito abertos.

O livro tenta provar que nunca fomos isso.

Mas eu acho que, a partir de 2013, com a crise, a recessão, o impeachment, nós avalizamos pessoas que não tinham a coragem de dizer coisas do tipo: “eu sou contra negro mesmo”, “acho que lugar de mulher é atrás do fogão”, “acho que os trans são uma vergonha”.

BBC News Brasil – Então o “homem cordial” agora tira de vez a máscara, é isso?

Schwarcz – Por isso um episódio como o da Marielle é pra mim muito significativo, porque nós tiramos a máscara não só nacionalmente, mas também internacionalmente.

Internacionalmente o Brasil não é mais visto (como um país receptivo e tolerante)… e isso eu sei porque há dez anos dou aula em Princeton e os meus cursos foram mudando sistematicamente. E não porque eu mudei.

As pessoas vinham em busca do Zé Carioca, do futebol, da capoeira, dessa “exotização” dos trópicos como paraíso dos costumes, dos hábitos. E cada vez mais as pessoas vêm pra falar de contravenção, violência, falta de lei, intolerância.

Você tem um governo como esse, ministros como esses, da Educação, das Relações Exteriores, da Agricultura. São ministros que não têm a mínima preocupação em professar valores que nós acreditávamos que eram nossos. Esse foi o tombo grande que as esquerdas tomaram também.

 

Políticos usam caricaturas da globalização para ludibriar eleitores, diz ex-diretor do Banco Mundial

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Economista diz que distorções criadas para atender a demandas domésticas prejudicam a economia mundial

Fernando Canzian/ WASHINGTON – Folha de São Paulo, 31/07/2019.

Para o economista Homi Kharas, pesquisador do Brookings Institution e ex-diretor do Banco Mundial, políticos como Donald Trump e movimentos como o Brexit vêm fabricando a narrativa de que problemas internos são causados por outros países.

Segundo ele, há muitos dedos apontados, afirmando que “estamos indo mal porque essas pessoas não jogam limpo; essas pessoas estão roubando nossos empregos, estão fazendo algo injusto”.

Kharas enxerga essas alegações como falsas “caricaturas da globalização” —distorções criadas por políticos para atender a demandas domésticas. Elas prejudicariam estruturas da economia mundial que estão na base do progresso global.

Alguns especialistas afirmam que a classe média nos países ricos encolhe devido à transferência de empregos, sobretudo industriais, para a Ásia. O sr. concorda? 

Sempre que duas coisas acontecem ao mesmo tempo as pessoas observam essas tendências e acham que elas estão conectadas. Não creio que a história seja essa. A classe média na Ásia está indo muito bem porque a economia cresce.

A classe média nas economias avançadas não vai bem porque a desigualdade está aumentando rapidamente e também devido à natureza do crescimento, que vem muito mais das empresas de tecnologia, que têm um número reduzido de funcionários.

São dois padrões de crescimento simultâneos. Mas as pessoas querem tentar conectar os dois e, como sempre, em qualquer país, diante de problemas econômicos, a coisa mais fácil para um político é colocar a culpa em alguém.

Nas economias avançadas há muitos dedos apontados: “Estamos indo mal porque essas pessoas não jogam limpo, essas pessoas estão roubando nossos empregos, estão fazendo algo injusto”. São caricaturas da globalização, que considero falsas, uma história fabricada por políticos, por razões políticas domésticas.

Mas agora essa ideia se tornou parte perigosa de uma narrativa global que prejudica muitas das forças e das estruturas da economia global, como o comércio internacional, que é a base do progresso.

Como o sr. avalia o encolhimento dos empregos industriais e o aumento da desigualdade nos EUA? 

A indústria dos EUA vem perdendo empregos há décadas. Isso é uma tendência. À medida que economias se desenvolvem, a participação da indústria cai e a do setor de serviços aumenta.

Assim, em muitos aspectos, a grande classe média dos EUA foi construída também pelas pessoas que deixaram o setor industrial. Muitos empregos da indústria são perigosos, há acidentes, e há limites para o quanto se pode pagar.

As pessoas nos EUA preferiram migrar para áreas financeiras, de imóveis, da saúde. Elas se profissionalizaram, tornaram-se advogados, economistas. Todas essas profissões são mais bem pagas do que empregos em fábricas.

A maioria dos estudos assinala que a tecnologia é responsável pela mudança na natureza do trabalho. Os carros costumavam ser pintados à mão; hoje, por robôs. Há segmentos inteiros da força de trabalho que tiveram que encontrar outros tipos de ocupações.

Não há evidências de que essas mudanças na economia mundial estejam reduzindo o número de empregos nos EUA. Elas estão mudando a estrutura de um lugar para outro, e isso cria problemas de transição para muitos.

O sr. mencionou o fato de políticos usarem “o outro como inimigo” na narrativa da desigualdade. Quais são as consequências disso? 

Na verdade, acredito que seja possível que a tendência da desigualdade comece a mudar, mas será preciso mais do que ação governamental. Acho que hoje as corporações percebem que é bastante útil serem vistas como empresas que pagam um salário decente.

Hoje, nos EUA, existe uma grande empresa de varejo chamada Target. Ela acaba de aumentar seu salário mínimo para US$ 13 (R$ 48) por hora e concorre com a Walmart, cuja tendência histórica é a de pagar salários muito baixos.

As empresas também estão competindo umas com as outras em termos de reputação, e algumas das melhores empresas estão buscando tanto aumentar os salários quanto alterar a desigualdade salarial.

Assim, as empresas agora se concentram em garantir que homens e mulheres recebam salários iguais por trabalhos iguais, de modo que muitas fontes de desigualdade inseridas em nossas estruturas sociais estão sendo abordadas à medida que as pessoas olham mais de perto.

Outra grande fonte de desigualdade é geográfica. Se você pegar o exemplo do Reino Unido, sobre sair ou ficar na União Europeia: todo mundo em Londres, que é onde o crescimento econômico está concentrado, quer ficar. Outros, no interior, querem sair.

A desigualdade que está sendo gerada em lugares como o Reino Unido deve-se em parte à baixa mobilidade. As pessoas não querem se mudar para outro lugar apenas porque há empregos lá. E se elas não estiverem preparadas para mudar, será um período de transição de maior desigualdade.

Então ocorrem mudanças no poder político à medida que as pessoas se mudam geograficamente. Mas, em vez de se mudar, as pessoas podem votar. No “rust belt” (cinturão da ferrugem, estados industriais dos EUA), ou no brexit, em Manchester ou no norte da Inglaterra.

E as pessoas vão tentar ver se há soluções que o governo possa oferecer, que não exijam que elas se mudem. De muitas maneiras, governos tentam estabelecer políticas que superem as forças do mercado, e isso não é fácil. Muitas vezes acaba criando problemas ainda maiores do que os que você estava tentando resolver.

No curto prazo o que vemos é o desejo dessas pessoas de permanecer onde estão, por isso estão votando em Trump, não? 

Claro. Raízes familiares são algo muito poderoso, e não estou dizendo que é ruim. É bom que pessoas se sintam conectadas a onde estão. Mas é algo muito difícil de sustentar em um ambiente moderno, cuja economia exige que você vá para lugares onde os outros se aglomeraram.

Então, a desigualdade no curto prazo…

Pode piorar.

Uma das lições do século 20 foi que, ao final do século 19, quando se comparam países, a desigualdade diminuía. Mas internamente, em cada país, ela aumentava, como vemos agora. No começo do século 20 tivemos uma guerra e agora temos outro tipo, comercial. Como o sr. compara os dois períodos? 

Pode-se afirmar que no final do século 19 e início do 20 a globalização estava em um nível muito alto. Muitos negócios, movimento de capital, de pessoas.

E muitos disseram que as economias estavam tão conectadas umas às outras que uma guerra não poderia acontecer. Bem, hoje sabemos que foi uma avaliação totalmente errada. O fato de as economias estarem conectadas não significa que não poderia haver uma guerra, e tivemos uma das mais brutais. E ainda tivemos que ter uma segunda.

Espera-se que as pessoas tenham aprendido algo com isso. Mas a história tem uma tendência a se repetir. E hoje novamente temos uma situação em que há uma grande potência, os EUA, e uma nova potência surgindo muito rapidamente, a China.

A economia da China está crescendo, mas seu poderio militar ainda é inferior ao dos EUA. Sua economia é, em termos de projeção internacional, muito inferior à dos EUA, e sua tecnologia, apesar de muitas histórias que contam, é na maioria dos setores inferior à americana.

Mas a China está se aproximando em todas as áreas. E a questão, para todo mundo, é como essas duas potências lidarão uma com a outra.

Acredita-se que se houver uma ordem internacional baseada em regras, isso ajudará a minimizar o grau de confronto entre potências. Por isso queremos uma ordem internacional baseada em regras. Por isso o que realmente importa neste momento é abraçar o multilateralismo.

Isso é muito difícil quando se têm sistemas econômicos muito diferentes, e China e EUA os têm. É isso que torna a ordem internacional tão difícil de se construir e manter no período atual.

Homi Kharas, 65
Pesquisador do Brookings Institution, trabalhou durante 26 anos no Banco Mundial, no qual foi economista-chefe para a Ásia. Com o economista Indermit Gill, criou o conceito de “armadilha da renda média”, em que países que alcançam um determinado nível de renda por conta de vantagens específicas têm dificuldades em se tornar ricos (o Brasil é dado como exemplo por alguns)

Espiritismo, conhecimento e transformação

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O mundo esta passando por um amplo processo de desenvolvimento científico e tecnológico, nos últimos cinquenta anos as descobertas e invenções foram inúmeras, alterando as formas de pensar, de comunicar e de sobreviver, vivemos um verdadeiro renascimento, onde o conhecimento, a ciência e a tecnologia estão no centro desta nova sociedade, gerando novos desafios e oportunidades para o ser humano e novas oportunidades de progresso para a humanidade.

Neste novo momento da humanidade, muitas atividades serão destruídas, muitas profissões serão extintas e muitas novas formas de ocupação surgirão e ganharão força, obrigando os indivíduos a uma verdadeira rediscussão sobre as bases e os contratos sociais que embalam a sociedade, obrigando as autoridades a olharem os grupos menos favorecidos de uma forma diferente, sob pena de vermos um aumento considerável de conflitos abertos, guerras e desequilíbrios generalizados, ainda mais quando observamos, que um conflito na sociedade contemporânea, tende a destruir e gerar graves constrangimentos para a coletividade global.

Desde o século XIX as tecnologias vêm ganhando força na sociedade, o surgimento e o desenvolvimento de indivíduos capacitados e qualificados que se entregam ao estudo e ao desenvolvimento de novos produtos e tecnologias, em parcerias com pessoas dotadas de recursos econômicos e financeiros, auxiliou no nascimento de uma nova classe, mas estruturada, com métodos e pensamentos científicos, cujas ideias e descobertas auxiliaram no progresso da ciência e da sociedade global.

Se analisarmos em épocas remotas, as pessoas estavam muito sujeitas a doenças variadas, qualquer nova peste ceifava a vida de milhares de pessoas e geravam rastros de destruição e violências generalizadas, nestes momentos a ciência era muito atrelada a bruxaria e os atuais médicos eram vistos como bruxos dotados de conhecimentos escassos e grandes habilidades de manipulação de ervas e chás, no livro O físico, de Noah Gordon, o autor destaca a saga e as dificuldades da medicina neste momento de privações e dificuldades.

Estes aspirantes a médicos eram acompanhados, como são na atualidade, por espíritos desencarnados que os auxiliavam nas manipulações e no desenvolvimento de medicamentos e vacinas para reduzir as dores dos indivíduos vitimados por variadas doenças, neste momento percebemos como a espiritualidade nos auxilia em todos os momentos de nossas existências, muitos pesquisadores amadores eram levados em espírito durante o sono físico para estágios com médicos e pesquisadores renomados desencarnados, nestas viagens recebiam informações e participavam de pesquisas e descobertas, todas visando o aperfeiçoamento da medicina terrestre e a redução das dores e dificuldades dos encarnados, cujas dores causavam constrangimentos físicos variados.

Com o surgimento da Doutrina Espírita e o crescimento da ciência e da investigação científica, novas áreas e setores surgiram na sociedade, descobertas revolucionárias, inovação e novas linhas de pesquisa foram apresentadas para a coletividade, impulsionando a pesquisa e o conhecimento científico, levando muitos indivíduos a se aperfeiçoar em novas áreas e setores, abrindo novas oportunidades e um amplo leque de escolhas para a sociedade, por trás destas descobertas a atuação discreta de pesquisadores encarnados motivas e inspirados por renomados cientistas desencarnados.

Neste momento histórico, marcado ainda pelo poder da Igreja Católica, mesmo este poder tendo sido diminuído por equívocos anteriores e pelos lances finais da inquisição, a ascensão da Doutrina dos Espíritos inaugura o fortalecimento de uma visão religiosa que enxerga a ciência como parceira e não mais como rival, como acontecia até então por outras visões religiosas. O Espiritismo nasce baseado em um tripé, como destacou Allan Kardec em O Livro dos Espíritas, neste novo modelo a ciência e a fé raciocinada devem caminhar passo a passo com a filosofia e a religião, esta tríade sustenta a doutrina espírita e faz dela uma nova forma de pensar a sociedade e a relação entre ciência e religião.

A Doutrina dos Espírito vai inaugurar um novo momento na história da sociedade mundial, a partir das obras de Allan Kardec, o mundo vai se deparar com uma nova estrutura de pensamento, segundo esta, o mundo material está umbilicalmente relacionado com o mundo espiritual, nesta concepção de sociedade somos espíritos animando corpos materiais mas a verdadeira vida se dá no mundo imaterial, estas ideias vão gerar muitos constrangimentos e vão criar adeptos e detratores, sendo que estes últimos serão implacáveis tentando denegrir e constranger os adeptos da nova revelação.

A Doutrina se apoia em princípios como a reencarnação e nas variadas vidas sucessivas, onde ora estamos encarnados ora nos encontramos no mundo dos espíritos, estes dois mundos estão interligados e se comunicam muito mais do que imaginamos, nos influenciando e, muitas vezes, até nos comandando. No século XX, inúmeras pesquisas científicas, muitas delas ainda não foram divulgadas ou muitas foram boicotadas, encontraram rastros da existência de variados mundos que se interligam, como a física quântica e suas descobertas de mundos integrados.

A Doutrina está centrada no estudo e na reflexão criticas, nestes estudos os indivíduos recebem informações variadas sobre fenômenos que se sucedem, nestes estudos compreendemos as leis da natureza que estamos sujeitos em nossas vivências cotidianas, diante disso, percebemos o quanto para o Espiritismo as leituras e o conhecimento são importantes e fundamentais, no espiritismo não fugimos da ciência, muito pelo contrário, a ponto de muitos considerarem o Espiritismo como a religião dos livros.

A Doutrina nos mostra como é a vida no mundo espiritual, para isto nos traz inúmeras obras, tais como a coleção de André Luiz, onde o autor dita para o médium Francisco Cândido Xavier, como vivem os espíritos, seu cotidiano, sua relação com o mundo material, com a ciência e com o conhecimento, dentre outros temas, nos mostrando que a realidade da vida é muito mais intensa e compreensível do que as religiões anteriores divagavam e conjecturavam, a doutrina nos mostra in loco, via depoimento de espíritos desencarnados através de médiuns, estes relatos nos auxiliam a desmistificar a morte e o morrer, afinal, em quarenta mil anos de racionalidade no mundo, nós seres humanos já fomos ao mundo imaterial e voltamos ao mundo material ao menos algumas centenas de vezes.

Muitas descobertas da ciência são creditadas a pesquisadores e homens da ciência e do conhecimento, a maioria ignora o trabalho do mundo espiritual e da atuação dos bons espíritos, mal sabem eles que muitas inspirações e direcionamento nas pesquisas científicas são dadas por pesquisadores desencarnados, isto acontece tanto para pesquisas que geram bem-estar e avanços para a coletividades quanto para pesquisas que levam a descobertas de mercadorias e produtos que geram vícios e desequilíbrios para a coletividade. Um bom exemplo destas descobertas são os medicamentos e drogas que geram dependência dos usuários e causam inúmeros constrangimentos para os dependentes, que enveredam para um mundo que propiciam inicialmente prazeres e gozos terrestres e geram dependência e degradação emocional, psicológica e espiritual.

Os ensinamentos espíritas no mostram a importância da leitura e do conhecimento, que podem ser compreendidos como instrumentos de reflexão e de melhoras visando um crescimento espiritual, objetivo primeiro e fundamental para todos os indivíduos. A literatura espírita é bastante volumosa, desde romances e dissertações, passando por biografias e obras variadas, todas elas nos trazem uma ampla gama de conhecimentos para que a coletividade possa repensar seus comportamentos e alterar suas formas de vida, visando os tão almejados progressos moral e espiritual.

A tríade Espírita nos mostra que para o progresso do ser humano, faz-se necessário o crescimento espiritual, o moral e o intelectual, a leitura pode nos ajudar nesta renovação, o conhecimento pode nos levar a uma reflexão e esta pode nos mostrar os nossos equívocos e orientar para que alteremos rotas e atitudes, sem estas mudanças teremos grandes dificuldades para progredir. Muitas pessoas buscam na Doutrina Espírita elementos para compreender melhor suas dificuldades, nesta busca constante se deparam com o conhecimento espírita, estes conhecimentos auxiliam em sua renovação interior e podem abrir portas importantes para seu progresso, nesta caminhada muitos indivíduos desistem desta transformação, pois percebem que, para o espiritismo, não existem vítimas, somos todos culpados.

O conhecimento nos auxilia mas, muitas pessoas não aceitam as suas dificuldades e mesmo percebendo a racionalidade desta situação, continuam questionando e se rebelando contra as forças do bem, colocam-se como vítimas e se esquecem de que se sofrem na vida atual as razões deste sofrimento está ou em experiências e vícios anteriores ou nos equívocos contemporâneos, sair da zona de conforto e se colocar no centro de suas dificuldades ainda é difícil para muitas pessoas que preferem se colocar como vítimas, terceirizando suas responsabilidades.

O conhecimento é uma grande benção divina, estudar, refletir e compreender as questões que envolvem a sociedade e o cotidiano de todos é algo fundamental e transformador, muitos se dedicam a este conhecimento e o distorcem em prol de interesses imediatos, usam de forma equivocada tudo que aprendem, visando apenas seus interesses mesquinhos e imediatos, buscando o lucro e os gozos terrestres. Estes indivíduos se deixam levar por vaidade e egoísmos variados e passam a acreditar que seus saberes são bens individuais e se esquecem do caráter coletivo e social, neste instante passam a acumular passivos negativos que, num futuro muito próximo, terão que prestar contas a Deus e as entidades superiores, afinal muitos lhes foi dado e, por isso, muito lhes será cobrado.

Muitas vezes encontramos indivíduos idiotizados ou desprovidos de uma maior capacidade reflexiva, alguns atrasos mentais e sensoriais, neste momento nos perguntamos porque nascem e vivem desta forma? Porque Deus autoriza alguns a nascerem com tais limitações e outros apresentam saúde física e plenas capacidades reflexivas? A Doutrina Espírita nos concede algumas pistas para estas indagações, nos auxilia na compreensão dos porque e esclarece algumas dúvidas e nos abrem novas questões e indagações. Muitos destes irmãos nascem desta forma e com estas limitações porque abusaram da inteligência e do conhecimento em vidas anteriores, são indivíduos altamente inteligentes que se deixaram levar por interesses imediatistas e particulares, utilizando seus conhecimentos para acumular riquezas e degradar a vida de outros irmãos, nesta encarnação serão educados com estas limitações físicas e emocionais, sua inteligência ainda existe e se faz latente dentro de sua alma, mas momentaneamente se encontra em estado de repouso e brevemente será reativada por completo.

O conhecimento deve ser uma mola para o progresso da humanidade, deve ser vista como um instrumento de prosperidade e crescimento dos indivíduos e, principalmente, da coletividade. Quando nos deixamos levar pelos gozos imediatos e pelos prazeres materiais, nos distanciamos de Deus e dos princípios que regem a sociedade universal e seremos cobrados integralmente por nossas escolhas e direcionamentos.

A Doutrina dos Espíritos nos traz grandes instrumentos de reflexão, muitos a enxergam apenas como uma filosofia, enquanto outros a veem como uma religião, na verdade o pensamento Espírita é muito mais do que isto, une uma tríade de conceitos e áreas diferentes e nos auxilia na compreensão da vida e dos processos evolutivos, sempre com responsabilidades e segurança, mostrando-nos que somos atores de nosso próprio desenvolvimento. Enquanto não nos conscientizarmos disso, vamos continuar deixando oportunidades sublimes para trás e, mais uma vez, atribuindo a outros as responsabilidades por nossos fracassos e limitações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Crescimento, Estado de bem-estar e a democracia seguirão ameaçados

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Branko Milanovic

Para economista, quanto maior a desigualdade, menor a tendência de crescimento e da parcela de ricos interessados em financiar serviços públicos aos demais 

Fernando Canzian/ BARCELONA

Um dos maiores especialistas em desigualdade global, o economista Branko Milanovic diz que o encolhimento da classe média em países como os EUA leva à ascensão de líderes populistas e coloca em risco o crescimento mundial.

“Estamos votando contra porque estamos infelizes”, diz.

De fora, o mundo parece cada vez menos desigual, com a renda dos países pobres e ricos convergindo. Internamente, porém, a desigualdade só aumenta, espremendo a classe média. Qual a consequência disso?

Há de fato uma melhora significativa entre as classes mais pobres em países emergentes, principalmente na Ásia. A China atrai mais atenção, mas essa tendência ocorre também na Índia, na Tailândia, no Camboja e no Vietnã.

Esses países têm uma força de trabalho razoavelmente bem-educada, capaz de fazer o que era feito no Ocidente a um custo muito menor.

Vem daí parte do fato de a classe média estar sendo espremida. É a globalização somada ao avanço tecnológico trabalhando juntos. Mas é ilusório acreditar que seja possível isolar quanto disso se deve à globalização e quanto às mudanças tecnológicas, porque a globalização é a moldura do quadro no qual acontecem as mudanças tecnológicas.

Mas há uma segunda pressão, que vem do topo. Dos 1%, 5% ou até 20% mais ricos que estão no alto da pirâmide. São pessoas que conseguem se dar muito bem na globalização, que não estão competindo com os que estão na China ou em outros locais.

Pessoas que, de certo modo, se beneficiam da existência de uma força de trabalho mais barata nesses países.

Então, temos uma situação paradoxal, pois o que há de fato é um alinhamento de interesses entre o mundo pobre e o mundo rico contra a classe média nos países ricos.

Ao contrário do dinheiro, que se movimenta livremente pelo mundo, há um limite claro para a imigração. É possível atacar a desigualdade só com taxação sobre o capital, que é móvel?

Os governos se tornaram impotentes para fazer muita coisa, particularmente para colocar impostos sobre o capital.

Conhecemos boas citações de Adam Smith (1723-1790) dizendo basicamente que uma pessoa que possui capital não é um cidadão do seu país de origem, é um cidadão do mundo. Porque pode movê-lo para onde quiser.

E isso agora também é verdade para a mão de obra altamente qualificada.

Você pode fazer muitos trabalhos em muitos lugares do mundo hoje em dia. Com isso, os governos nacionais não são capazes de cobrar impostos facilmente dessas pessoas. É uma situação muito difícil para o Estado de bem-estar social, sob as condições da globalização, porque as pessoas que têm capital monetário ou habilidades muito qualificadas realmente deixam esses países e vão para outros lugares.

E, como se sabe, há muitos países que ficariam felizes em recebê-los, porque eles trazem o poder de compra, dinheiro e tudo o mais.

A ironia aqui é que enquanto países ricos no Ocidente se beneficiam do influxo de trabalho qualificado vindo de países pobres, eles não estão felizes em receber mais estrangeiros. Por isso, fecham a fronteira.

A consequência parece ser um revide da classe média, quando ela vota em governos e líderes populistas, não?

É verdade. E é comum as pessoas perguntarem qual é o programa para as classes médias, como elas poderiam mudar. O fato é que não há nenhum programa coerente.

Então, grande parte dessa votação é o que costumava ser, e ainda é, o chamado voto de protesto. Em outras palavras, estamos votando contra e em boa medida porque estamos infelizes.

Agora, quais são as promessas que pessoas como Donald Trump fazem? São de dois tipos.

De um lado, de que algo será alterado na globalização. No caso de Trump, a promessa é ir a uma guerra comercial com a China, trazer esses empregos de volta para os EUA, o que evidentemente é impossível. Os empregos se foram e não vão voltar.

Mas pelo menos existe uma retórica, existe algum uso de força política para possivelmente forçar a China a mudar os direitos sobre propriedade intelectual, o uso da tecnologia estrangeira, talvez aumentar a importação de soja e coisas assim.

Do outro lado, há só promessa de melhora da distribuição em nível nacional. Porque até agora vimos a reação contra a China e a globalização. Mas muito pouca reação política em termos de medidas a favor da diminuição da desigualdade interna.

Há idas e vindas de políticos. Há, por exemplo, [a deputada democrata norte-americana] Alexandria Ocasio-Cortez, que fala em alíquotas de 70% para os mais ricos ou [o senador independente] Bernie Sanders.

A ironia é que hoje vemos essa ala do espectro político americano mais à esquerda do que em qualquer outra nação no Ocidente. Estamos acostumados a ver os EUA mais à direita do que, digamos, a Suécia ou a Alemanha. É irônico que haja um segmento socialista nos EUA.

Qual a consequência do aprofundamento das desigualdades para o crescimento econômico sustentável?

Essa é a grande questão. O argumento de sempre era o de que seria preciso uma classe média muito forte não apenas para manter a democracia, mas para criar um grupo de pessoas com o mesmo padrão de consumo para gerar produção em massa.

O perigo de fazer a classe média desaparecer é que o motor do crescimento terá que mudar. Não significa que não haverá crescimento, mas que haverá um tipo muito diferente de crescimento.

Outra questão é que quanto maior a desigualdade, menor será a parcela de ricos interessados em serviços públicos, porque eles podem pagar por serviços privados de melhor qualidade como escolas, transporte e saúde.

Numa sociedade polarizada e desigual será possível existir seguro social, sendo que, por definição, a seguridade social inclui todo mundo? Porque se o seguro social for apenas para pessoas que não têm dinheiro ou estão sem trabalho, quem vai pagar por isso?

Os ricos, com certa razão, então pensam que, se não usam nada do Estado, porque pagam por serviços privados, não deveriam pagar pelos serviços públicos.

Portanto, percebemos que há problemas imensos à frente. Primeiro, do Estado de bem-estar social; segundo, do tipo de crescimento que estamos tendo; e, terceiro, da democracia.

Isso não é brincadeira. São questões sérias sobre as quais não teremos consequências em seis meses, mas daqui a 10 ou 20 anos.

 

Pré-distribuir habilidades é melhor jeito de reduzir desigualdade, diz Nobel de Economia

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James Heckman afirma que só é possível haver livre competição com igualdade de oportunidades 

Fernanda Mena – Folha de São Paulo, 29/07/2019.

CHICAGO

Políticas para a primeira infância podem ser o antídoto contra a perpetuação de desigualdades de uma geração para outra. Isso porque a tendência é que famílias estruturadas invistam na educação dos filhos desde o berço, enquanto as mais vulneráveis não conseguiriam fazê-lo, consumidas pela batalha da sobrevivência diária.

O economista James Heckman, 75, já havia sido consagrado com um prêmio Nobel quando descobriu a relação entre a desigualdade e o estímulo a crianças de zero a cinco anos de idade.

Sua pesquisa acompanhou indivíduos expostos a estímulos no início da vida e descobriu que, no longo prazo, eles obtiveram melhor desempenho escolar, salários mais altos, melhor saúde e menor envolvimento com crimes. Tais benefícios, constatou, se estenderam à geração seguinte.

“São as habilidades que farão com que alguém deixe de ser meramente uma criatura de seu berço desprivilegiado”, disse Heckman à Folha no Centro de Economia do Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago (EUA), que dirige. “Quanto mais as pessoas adquirirem competências, menor tende a ser a desigualdade”.

A partir da ideia de que é possível aprender habilidades que garantirão melhores escolhas, mais trabalho e mais renda, Heckman defende como melhor estratégia de redução da desigualdade a pré-distribuição de competências, no lugar da redistribuição de renda.

Com isso, ele refuta cânones do pensamento político ocidental à esquerda e à direita. Assim, de um lado, falar em classes sociais é “algo que pertence ao reino da eugenia”; de outro, a livre competição defendida pelos ultraliberais só é possível com igualdade de oportunidades, algo atingível apenas por meio de políticas públicas.

Heckman defende também que a pré-distribuição tenha como base as famílias, que passam por mudanças estruturais profundas nas sociedades contemporâneas e, por isso, precisam de apoio.

Para reduzir desigualdades, pré-distribuição é melhor que redistribuição? Antes de discutirmos a redistribuição de dinheiro de um adulto para outro, precisamos pensar em prover crianças com as habilidades básicas para o mercado de trabalho no futuro.

Nessa fase, do nascimento até os cinco anos, as crianças são muito maleáveis, aprendem com grande facilidade e podem desenvolver uma base sobre a qual aprenderão todas as proficiências que a vida vai lhes oferecer. E isso cria vantagens diante das oportunidades que a vida ou mesmo a escola proporcionam.

É preciso preparação para a vida escolar? Sim. Quando falamos em adquirir destrezas, não basta mandar as crianças para a escola. É preciso que estejam preparadas para receber o conhecimento, equipadas com habilidades cognitivas e socioemocionais com as quais possam enfrentar desafios e interagir.

Se uma criança recebe estímulos aos três anos, ela será mais concentrada nas aulas no ensino médio, portanto mais inclinada a se beneficiar das oportunidades que a vida vai lhe oferecer.

Mas o foco na primeiríssima infância não desencoraja os investimentos na educação básica? Os estímulos e o desenvolvimento de habilidades podem ser adaptados para crianças maiores, adolescentes ou mesmo adultos de 20 e poucos anos.

Sabemos, pela neurociência, que as competências relacionadas às tomadas de decisão, chamadas de funções executivas, influem em nossa personalidade e podem ser desenvolvidas bem mais tarde do que apenas aos 5 anos.

Não existe a ideia de que, após certo período, tudo está perdido — essa ideia é errada. Uma criança que não teve acesso a estímulos na primeira infância ainda deve ser objeto de atenção para intervenções públicas na puberdade.

Qual a relação custo-benefício da pré-distribuição em relação à redistribuição? Do ponto de vista de um economista, se eu tirar R$ 1 de mim e der para você, isso é uma transferência de recursos. É algo que não vai aumentar a riqueza nacional, ainda que possa ser importante porque você precisa mais desse recurso do que eu.

Para além da questão ética —devo dar dinheiro para uma pessoa pobre? — , o que proponho é um investimento nos indivíduos de uma idade muito tenra, pois isso traz taxas muito altas de retorno econômico.

Qual é essa taxa? Calculamos que o investimento nos primeiros anos de vida tem taxas de retorno tão altas quanto 10% ou até 14% por ano. Isso porque fornecer habilidades básicas a uma criança melhora, no longo prazo, a saúde do indivíduo, sua cognição e sua autorregulação, o que faz com que fique longe de problemas.

São consequências amplas, que impactam toda a sociedade. Diminui custos da saúde, reduz os crimes, melhora a educação, aumenta os rendimentos. Não estou dizendo que não devemos transferir recursos em caso de necessidade, mas, sim, que podemos evitar que pessoas permaneçam pobres oferecendo habilidades para que floresçam e, com elas, a economia.

Essas vantagens se transferem para as gerações seguintes? Sim. Observamos que os filhos dos que receberam esse tipo de intervenção na infância também foram beneficiados. Mais do que ganhar mais status social e econômico, essas pessoas se tornam capazes de ajudar seus filhos a se desenvolverem melhor.

E como os pais podem promover esse estímulo? O ambiente doméstico tem papel fundamental no desenvolvimento do indivíduo, pois o bebê é influenciado pela família, especialmente nos primeiros meses de vida. Ter um ambiente saudável é crucial para desenvolver habilidades. Ler para as crianças, envolvê-las em atividades da casa, brincar com elas, desenhar com elas. A interação com os pais é muito importante.

Como a mulher, historicamente responsável por cuidar dos filhos, mas que agora ocupa posições no mundo político e corporativo, pode lidar com esse dilema? Estudos norte-americanos mostram que mulheres com mais anos de educação tendem a trabalhar mais, ao mesmo tempo em que querem passar o máximo de tempo possível estimulando e educando os filhos.

O que se descobriu é que é relativamente pequena a diferença de tempo dedicado aos filhos entre uma mãe que trabalha fora e uma que fica em casa. A mãe que trabalha retira esse tempo dos seus momentos de lazer. Mas, se ela encontra uma boa creche ou escola de educação infantil que possa ser sua parceira, é possível substituir parte das horas diárias do estímulo materno.

Essa nova perspectiva fez da desigualdade algo menos problemático? Você pode abordar a desigualdade como uma questão moral. Mas, em vez de falar do capitalista rico espremendo o pobre trabalhador, estou falando do pobre trabalhador aprimorando suas condições para se integrar ao restante da população.

Nesse sentido, a ideia de classe é algo que pertence ao reino da eugenia. Duzentos anos atrás, um menino nascido em uma família de mineiros seria um mineiro. Hoje sabemos que isso só acontece se forem restritas suas oportunidades em termos de educação e acesso à sociedade.

Ainda assim, é fato que a desigualdade está aumentando em muitos países. A pobreza é que é um problema. Mas claro que, se as pessoas estão passando fome ou não satisfazem suas necessidades básicas, isso é coisa séria.

Algo interessante no Brasil é que estudos feitos nos anos 1960 mostraram que a desigualdade havia aumentado, o que motivou grande preocupação. Mas um jovem que foi meu aluno aqui na Universidade de Chicago, Ricardo Paes de Barros, mostrou que toda a distribuição de renda havia mudado, e que os brasileiros pobres estavam bem mais ricos do que 15 ou 20 anos antes.

​E isso hoje é verdade na China e em muitos outros países do mundo. Nesses casos, a desigualdade de fato aumentou, mas também aumentou o bem-estar da população.

Não existe problema em uns ganharem muito e outros, muito pouco? Por que deveria ser uma preocupação para mim se outra pessoa ganha muito mais do que eu? Falando tecnicamente, se tenho recursos, uma vida digna, o que isso importa? A questão se torna de inveja, que não é bom motivo para nada.

A renda da classe média está encolhendo em várias partes do mundo. Quais os perigos disso? As evidências são menos claras do que parecem. Existe, sem dúvida, uma transformação da força de trabalho, e ela envolve um agrupamento de habilidades que coloca muita gente em desvantagem, especialmente os mais velhos.

É um problema grave, mas eu diria que é um problema de transição. Porque outras carreiras estão surgindo, beneficiando outros grupos de pessoas, especialmente as mulheres, que são mais educadas do que os homens, na média.

Um dos maiores desafios desse processo, sobre o qual as pessoas não gostam muito de falar, é o da família.

Como assim? A estrutura da família tradicional tem se transformado tremendamente. Se a mulher é o arrimo de uma casa, algo cada vez mais frequente, ela em geral combina dois desafios muito difíceis: formação ruim e dificuldade extrema em criar os filhos, o que contribui para a pobreza.

Essa questão é tão sensível nos Estados Unidos que nem sequer é debatida. Os governos resistem a prover educação pré-escolar porque presumem que as crianças estão em famílias saudáveis, com dois adultos relativamente educados cuidando delas. A realidade, porém, é que a família mudou e precisa de apoio.

Por que alguns países atingem alto grau de desenvolvimento enquanto outros não? Acho que isso tem a ver com a política. O populismo, em qualquer lugar, tem sido uma maldição para o crescimento. Corrupção, falta de vontade política e políticas ineficientes frequentemente impediram que nações se desenvolvessem.

Isso é verdade para o Brasil também? O Brasil, sem dúvida, apresenta muita desigualdade, social e racial. Embora a educação esteja certamente se expandindo, ainda há muito a ser feito.

É um país engraçado aos olhos de um norte-americano porque, mesmo que haja casamentos interraciais, o grupo cultural dominante é extremamente distinto do resto da sociedade. Está na cara das pessoas. E as forças da sociedade têm ainda que encorajar uma maior integração racial.

James Heckman 
Desde que foi laureado com o Nobel de Economia em 2000, o economista James Heckman, 75, tem se dedicado a pesquisar tanto as origens de grandes problemas sociais e econômicos, como a desigualdade, quanto as estratégias para remediá-los.

Ele desenvolveu modelos teóricos sobre escolhas parentais, bem como modelos intergeracionais de influência familiar, para determinar as origens das diferenças entre as pessoas e quais intervenções são efetivas para remediar desvantagens.

Nascido em Chicago (EUA), formou-se em matemática e fez mestrado e doutorado em economia na Universidade Princeton. É professor do Departamento de Economia da Universidade de Chicago desde 1973, onde dirige o Centro de Economia do Desenvolvimento Humano.

A origem da desigualdade, o custo do capital e a manutenção do poder

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Carta Maior – 23/07/2019

Os teóricos economistas que serviram aos governos ao longo da história brasileira sempre se mantiveram afastados do verdadeiro processo econômico. A maior parte esteve próximo à gestão financeira, associada e orientada ao mercado. Para atender a sua demanda, não aprenderam a gerar riqueza, então focaram suas fórmulas no outro lado, diminuindo custos, cortando gastos, economizando riquezas.

A mudança que o Brasil precisa é através da geração e distribuição de suas riquezas. E, não existe crescimento, geração de riquezas, sem investimento. Esse investimento pode vir pela iniciativa privada da riqueza de pessoas ou pelo investimento público, advindo da riqueza de todos, por meio do Estado. Nesse caso, envolve, sobretudo, o entendimento e o exercício do conceito de nação.

É nesse momento que a velha elite econômica, detentora histórica do poder e da riqueza atua e sempre atuou. Ela é a mão que impulsiona os investimentos, mas que majoritariamente são feitos para atender seus próprios interesses, afastando a nação da riqueza e revertendo para ela própria o bônus do investimento. Além disso, ao emprestar esse recurso ao Estado ela se torna credora dele. Um credor que cobra juros e favores.

Com o aumento do endividamento interno, o Estado não consegue investir. Essa dívida vem contraída de juros e esse juros consome cada vez mais a capacidade das pessoas de entregar um pouco de suas riquezas para o bem comum, através do pagamento de impostos.

O Estado arrecada esse montante de impostos, mas endividado, passa a pagar somente juros para quem deve e perde sua capacidade de investir. O problema é que quem recebe esses juros é aquela mesma elite financeira, sobretudo os grandes bancos, que emprestaram o dinheiro ao governo. Para piorar, o dinheiro que recebem como pagamento de juros não vai para a geração de riqueza, mas sim para a compra de títulos de dívida pública, aumentando ainda mais seus ganhos e, crescendo o endividamento do Estado, criando um círculo vicioso, não virtuoso.

Isso posto, a elite econômica, utilizando do discurso dos economistas de mercado citado anteriormente, transfere ao Estado a responsabilidade que ela mesmo causou e escolhe os representantes políticos como marionetes para a articulação e atuação nas esferas legais do poder, afastando os interesses populares das decisões políticas.

O povo, desencantado com o Estado, vislumbra no discurso político do “bom gestor” associado a uma equipe de economistas igualmente reconhecida pela sua “competência”, a solução para os problemas econômicos do país.

Contudo, como já foi dito, o sistema econômico não é capaz, sozinho, de gerar riqueza. Ele precisa da nação e do apoio do Estado. Em um país com extrema desigualdade, esse processo facilita a concentração de riqueza (fundiário, financeiro, imobiliário etc) e, perpetua por gerações, o ônus da pobreza. Ela (a elite econômica) passa, então, a ser administradora dessa divisão social. Cria um muro e separa aqueles que são capazes de gerar riqueza através do trabalho, que é uma fonte geradora de riqueza, daqueles que detém os meios de produção.

Essa frágil divisão tem que ser mantida a todo custo, minando a capacidade desses trabalhadores derrubarem essa relação de dependência, impedindo que se reúnam em associações, dificultando greves e manifestações. No passado isso era facilmente controlado pela própria falta de consciência de classe dos trabalhadores e do desamparo legal em relação a eles.

Para conduzir a economia brasileira na atualidade, a elite econômica não precisa se utilizar desses subterfúgios e indisposições sociais. Basta apenas elevar os custos e impedir que essas pessoas atravessem o muro que as separa dos meios de produção.

Com os custos do dinheiro (juros) mais altos do que a riqueza que ela consegue gerar, a classe trabalhadora se torna dependente do sistema. Além disso, através do poder político e com o urgente discurso de que o Estado precisa reverter essa situação, o governo e os seus economistas convencem a população de que a solução se faz pelo “corte” de gastos. E assim, o governo vai promovendo o desmantelamento das conquistas e dos direitos populares e trabalhistas. São as tais das “reformas” e dos cortes.

Por essas razões, o trabalhador e o pequeno produtor têm dificuldade de empreender e ascender socialmente. A desigualdade se mantem como um projeto de poder e de riqueza nas mãos de poucos.

A república repete as velhas práticas oligárquicas.

Precisamos de um Estado democrático que valorize o trabalho e o pequeno produtor, como geradores de riqueza.

*Gabriel Davi Pierin é professor, historiador e escritor, autor de “Uma Estrela na Escuridão – A história do único brasileiro sobrevivente ao holocausto”.

 

A ressaca da Globalização, democracia e a desigualdade social

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O processo de globalização foi responsável por um grande conjunto de transformações na sociedade mundial nos últimos trinta anos, desde uma maior aproximação entre os agentes econômicos e produtivos, até um incremento no desenvolvimento científico e tecnológico e uma maior aproximação entre os indivíduos, com um aumento da imigração e uma maior integração entre as culturas, as línguas e os comportamentos, este processo alterou a vida de todas as regiões e transformou o cotidiano de grupos sociais e comunidades, gerando novos desafios, oportunidades e muitos medos.

Os defensores do processo de globalização defendiam a ideia de que a imersão no mundo globalizado seria a grande panacéia da sociedade global, os ganhos seriam generalizados, a pobreza e a fome estariam com os seus dias contados, o mundo estaria iniciando uma nova fase de integração, solidariedade e forte crescimento e desenvolvimento econômico.

Nestes anos a economia dos países se abriram para uma maior integração comercial, os fluxos financeiros cresceram de forma acelerada, as exportações e importações se tornaram fundamentais para que a nova produção global se efetivasse, os investimentos estrangeiros se avolumaram, os fluxos de imigração cresceram e as empresas multinacionais ganharam uma centralidade poucas vezes vistas na história da humanidade.

O pós segunda guerra mundial propiciou um momento fértil para o avanço do processo de globalização, como a grande parte das regiões foram destruídas pelo conflito, foi necessário a construção de consensos entre os países, para que a sociedade mundial fosse reconstruída e os países tivessem a oportunidade de se levantar, criando instrumentos para suas populações voltarem a ter melhores perspectivas, depois de décadas de mortes e conflitos que deixaram mais de 100 milhões de pessoas mortas e regiões inteiras destruídas, inclusive locais vitimados com bombas nucleares de alta destruição.

O grande líder deste período foi os Estados Unidos da América, país emergente em todas as áreas e setores, desde o industrial até o tecnológico e o cultural, além de possuírem a moeda que se tornaria reserva para a nova estrutura econômica internacional. Para agilizar a recuperação global e se consolidar como potência hegemônica, os Estados Unidos levaram sua moeda e suas empresas para as mais variadas regiões, obrigando os outros países a aceitarem suas empresas, seu modelo de produção baseado no fordismo e a aumentar o comércio, a integração financeira e produtiva.

O crescimento do comércio e a integração produtiva, somados ao aumento dos fluxos financeiros consolidaram os Estados Unidos como a grande economia do mundo, levando seu governo a adotar políticas liberais, desde que estas atendessem aos seus interesses econômicos e políticos, ou intervencionistas, desde que fossem positivas para civilização, com isso, garantiram grandes benefícios para sua economia e se consolidavam como a maior estrutura militar da sociedade global, líder em variados setores mas tendo no militar sua grande força bélica e, principalmente, tecnológica e científica.

O modelo difundido pelos Estados Unidos estava centrado, na democracia representativa e na economia de mercado, com separação de poderes e uma maior liberdade para seus agentes econômicos, estimulando o empreendedorismo, a concorrência e a inovação, bases para a construção de uma nova sociedade, mais dinâmica e menos dependente do estado.

Com a ascensão da China nos anos 1990, os Estados Unidos acabaram perdendo a centralidade deste modelo, mesmo tendo sido considerado o grande vencedor da chamada Guerra Fria, os norte-americanos perderam terreno com a ascensão asiática, primeiramente o Japão, a Coréia do Sul e, principalmente, com a chegada da China. Inicialmente, os norte-americanos viram a região oriental como um local para produção com mão de obra mais barata e, posteriormente, vendo-a como um forte competidor, um rival e até para muitos como inimigos, vide a guerra comercial deflagrada contra empresas chinesas.

A ascensão asiática, vista inicialmente como uma grande oportunidade de reduzir custos de produção, já que estes países são dotados de mão de obra abundante e com preços baixíssimos, se mostrou um grande fator de desequilíbrio para toda a economia internacional. Com uma economia mais integrada e interdependente, grandes conglomerados ocidentais passaram a transferir suas estruturas produtivas para os países asiáticos, gerando milhões de empregos e contribuindo para uma vigorosa transformação na estrutura dos países asiáticos.

Nestas regiões da Ásia, milhões de pessoas que viviam em condições de forte degradação, passaram a ser empregados em grandes empresas ocidentais, foram treinados e capacitados para participar dos processos produtivos, com isso, as regiões mais pobres passaram por um grande fluxo migratório para as regiões mais industrializadas, gerando novas ocupações e garantindo um maior crescimento econômico, com fortes impactos sociais e políticos.

Os trabalhadores orientais passaram a trabalhar no setor industrial, foram treinados e capacitados, ao mesmo tempo os governos investiram fortemente em qualificação e expandiram os recursos para a educação básica, transformando alguns países da região em grandes produtores de mão de obra qualificada e fortalecendo a perspectiva de que, num futuro muito próximo, a região se transformará em um grande polo de desenvolvimento tecnológico, gerando inovação, ciência e tecnologia.

Neste movimento os países asiáticos, principalmente, China, Coréia do Sul, Japão, Indonésia, Malásia, Singapura, dentre outros, foram os grandes ganhadores com o processo de globalização, sua participação no comércio internacional cresceu de forma acelerada, galgando novos espaços, atraindo investimentos e se utilizando de uma política pragmática que combina governos fortes e autoritários com uma economia de mercado, centrada na ampla concorrência e competição, é bom lembrar que esta competição só aconteceu quando os países estavam capacitados e suas empresas preparadas, antes disso, o Estado teve um papel central como grande construtor de instituições dinâmicas e eficientes.

O modelo chinês se caracteriza por traços de grande autoritarismo, os cidadãos são reprimidos e são obrigados a seguir as regras implementadas pelo Partido Comunista Chinês, PCC, que define as regras e estrutura todas as instituições. Este modelo ajudou a garantir um crescimento fantástico desde os anos 1980 e foi responsável por um recado negativo para o sistema democrático dos países ocidentais, isto porque deixou em aberto que os regimes autoritários podem garantir crescimento econômico e ganhos sociais consideráveis, ao contrário das democracias ocidentais.

Uma população que sempre viveu, em sua grande parte, na miséria, sob governos autoritários ou em condições de indignidade, moradores de comunidades rurais que sobreviviam em condições degradantes, muitos deles viviam como seus antepassados viveram durante muitos séculos, sem perspectivas e esperanças de melhorias e avanços nas condições de sobrevivência. Nesta situação, a chegada de investidores estrangeiros e um forte planejamento e intervencionismo do Estado, levaram estas populações a um espasmo de crescimento, com melhoras consideráveis na vida, mesmo ganhando pouco, mesmo assim, era algo muito melhor e mais consistente do que ganhavam anteriormente.

A chegada de empresas multinacionais em territórios asiáticos significou, para os países ocidentais a migração de suas empresas para a Ásia, afinal num mundo marcado pela concorrência crescente, os custos da mão de obra fazem a diferença na conquista ou na perda dos mercados. A migração de multinacionais dos países desenvolvidos para a Ásia, significou a perda de empregos e a redução do poder de compra da população dos países desenvolvidos, impactando diretamente sobre a classe média destes países, que viram seus empregos serem reduzidos e suas massas salariais em queda acentuada.

A globalização trouxe benefícios para os países asiáticos, os investimentos estrangeiros criaram bons empregos e alteraram de forma substancial a vida destes trabalhadores, que migraram do campo para as cidades, impulsionaram o crescimento econômico destes países e abriram espaço para novos mercados e setores produtivos dentro da sociedade, incorporando uma região inteira no sistema capitalista de produção.

No lado ocidental os impactos são variados, de um lado, o preço dos produtos que passaram a ser produzido nos países asiáticos se reduziram rapidamente, inundando o mercado mundial com mercadorias de baixo preço e bastante competitivas. De outro lado, os empregos migraram dos países ocidentais para as economias emergentes da Ásia, gerando uma leva de desempregados e subempregados, levando muitas regiões a um amplo processo de desindustrialização, com queda na arrecadação de impostos e graves desequilíbrios para as finanças dos governos estaduais e municipais. Um exemplo interessante deste esvaziamento das regiões, geradas pelo processo de desindustrialização, foi a cidade de Detroit, que sempre se caracterizou pela dependência do setor automobilístico, sua economia girava em torno destes produtos e das cadeias produtivas dos automóveis, com a migração destas empresas para os mercados da Ásia, a região entrou em uma situação falimentar, com graves desequilíbrios sociais, econômicos e políticos.

A fragilização desta classe média em países ocidentais levou uma parcela considerável de seus membros a flertarem com o populismo de direita, apoiando decisões protecionistas e xenofóbicas, além de uma grande hostilidade a imigração e uma ojeriza a órgãos e instituições multilaterais, com isto, estes grupos passaram a flertar com políticas autoritárias e eleger líderes com viés totalitária, fragilizando e colocando em xeque a democracia. As pessoas estão ansiosas em relação ao futuro, e como nos diz a Psicologia, quando ansiosas, olham para o mundo exterior em busca de culpados. Ao propor o fechamento das fronteiras, isso acalma a ansiedade das pessoas mas não resolve os problemas que as afligem.

A classe média passou a se afastar das classes ricas e a se aproximar dos grupos mais depauperados, esta aproximação gerou graves constrangimentos para a classe média e uma grande revolta com relação a sua degradação e perda de centralidade na sociedade contemporânea, alimentando partidos e movimentos de direita ou de ultra direita, que defendiam ideias e prometiam reverter a situação de empobrecimento da classe média, tão central no desenvolvimento das economias e fundamental para setores culturais e de direitos humanos, setores estes abandonados atualmente.

Como destacou Lucas Chancel, um dos coordenadores do Relatório de Desigualdade Global, as promessas da globalização fracassaram para muitos ao redor do mundo: “Onde quer que olhemos ao redor do mundo, na Europa, na América Latina, na América do Norte ou na Ásia, vemos a renda do 1% mais rico subindo brutalmente. São taxas acima de 100% ou de 200% para 1% do topo entre 1980 e hoje. Em alguns países a taxa ultrapassa os quatro dígitos”.

Neste novo modelo, os grupos mais poderosos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento conseguiram construir um modelo com grandes benefícios para o capital em detrimento do trabalho, como controlam ou tem muitas influencias sobre os Estados nacionais, controlam estes órgãos e definem as políticas que lhes garantem ganhos consideráveis, com isto as Bolsas batem recordes de rentabilidade, agora, quando percebem movimentos perturbatórios, os capitais fogem rapidamente, esvaziam as Bolsas e geram perdas substanciais, com isso, mostram seu poder e sua capacidade de acumular ganhos consideráveis.

O grande problema do processo de Globalização é que nos últimos anos, os grandes comandantes deste processo, foram os donos do capital financeiro, estes senhores passaram a controlar os recursos disponíveis na sociedade global e transformaram este poder em rentabilidades maiores, garantindo retornos fáceis e astronômicos. Cabe a este grupo de poderosos o controle dos Bancos Centrais, dos Secretários do Tesouro, dos Ministros da Economia e das Finanças e das agências multilaterais, garantindo aos membros ganhos crescentes e aos dissidentes um empobrecimento e um afastamento da inovação e do conhecimento científico e tecnológico.

A classe média perdeu espaço neste modelo, principalmente das cidades menores que apresentam menos oportunidades e esperanças de angariar bons empregos, obrigando-as a migrarem para outras regiões ou cidades maiores, objetivando uma melhor colocação profissional, única forma de manter seus ganhos e vantagens como classe.

Com o crescimento da fome e da pobreza e um enfraquecimento da democracia, percebemos que o processo de globalização apresentou ganhos relativos, neste ambiente de instabilidades e constrangimentos aos perdedores, cabe aos Estados Nacionais uma centralidade maior, organizando as estruturas e garantindo serviços públicos de qualidade e com eficiência, com isso, aliviam os temores da classe média, pois se estes temores crescerem, os movimentos posteriores serão bastante negativos e preocupantes, com impactos generalizados sobre todas as comunidades, no final do século passado estas instabilidades culminaram em duas grandes guerras mundiais, esperemos que neste momento a civilidade e o respeito não abram espaço para a barbárie.

Sobre Santidades, Medianeiros, Missionários e homens comuns

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A humanidade sempre concedeu a algumas pessoas uma importância fundamental, deram-lhes títulos e responsabilidades adicionais, vendo nestes habilidades para conversar e se relacionar com forças superiores, eram homens e mulheres ungidos para missões especiais, dotados de sensibilidades e uma grande capacidade de conversação com entidades abstratas e imateriais, antigamente eram os feiticeiros, bruxos e pitonisas e, na atualidade, são conhecidos como pastores, missionários e médiuns, todos dotados de um elevado poder espiritual e grandes estruturas moral e carisma, sendo vistos como exemplos a serem seguidos por suas comunidades.

Estes indivíduos eram vistos como pessoas especiais, dotados de uma grande capacidade de comunicação, carisma e empatia, eram seres enviados pelas forças superiores para auxiliar os indivíduos nas duras lutas existentes no mundo material, ajudando-os a superar as dificuldades e angariar valores para seu amplo crescimento espiritual, todas as religiões e crenças traziam em suas fileiras pessoas com estes dons divinos.

Nos escaninhos da humanidade, estes indivíduos desempenhavam um papel central, se dotados de bons sentimentos auxiliavam as comunidades e seus cidadãos a uma reflexão mais íntima e a atitudes mais salutares, angariando informações e consolidando valores muitas vezes esquecidos, em um mundo marcado pelas brutalidades e por tendências de violentas e de agressividade. Agora, se fossem marcados por sentimentos menores e por uma ambição descontrolada, eram responsáveis por atitudes de dominação e controle, levando muitos indivíduos a se perpetuarem em situações degradantes e constrangedoras.

Com o passar do tempo, muitos líderes religiosos passaram por momentos de contestação e foram desmascarados pela sociedade, muitos deles se mostraram mais intimamente, como nos dizia Maquiavel, quer conhecer os homens, dê a eles poder. Muitos se misturaram com os prazeres do mundo e se deixaram levar pelas paixões mundanas e imediatistas, deixando de lado seus compromissos espirituais e se entregando aos gozos sexuais e aos supostos prazeres do álcool, tendo seus caminhos e jornadas alteradas e, em muitos casos, até interrompidas pelo plano espiritual para que seus equívocos não fossem maiores e suas dificuldades posteriores não lhes impusessem esforços descomunais.

No Espiritismo, muitas são as obras que retratam casos de degradação e abandono de ideais superiores em prol de prazeres materializados, dentre eles destacamos o livro Trilhas da Libertação, escrito pelo médium Divaldo Pereira Franco e ditado pelo espírito Manuel Philomeno de Miranda, uma obra central para que entendamos as paixões e os desejos que levam muitas pessoas a abandonar ideais construídos no mundo espiritual em busca de caminhos suspeitos e equivocados, cujos constrangimentos futuros são intensos e as dores posteriores marcam a trajetória do espírito.

Os médiuns devem ser vistos como seres humanos, dotados de valores e sentimentos como qualquer indivíduo, tendo como única diferença, uma maior sensibilidade e uma abertura maior com o mundo espiritual. Muitos deles passam a ser divinizados por uma sociedade doente e carente de cultos e personalidades, estes sensitivos sentem prazer nesta bajulação e, aos poucos, se afastam de ideais e de valores mais sólidos e consistentes, sentindo uma maior atração pelos prazeres da carne, que tem levado os indivíduos a uma vida marcada pela ilusão e pela insignificância moral, trazendo-lhes um grande vazio interior, levando muitos deles a patologias, ansiedades e depressão.

Os presentes e os mimos passam a ser constantes, os beneficiados pelos seus auxílios se sentem agradecidos e passam a presentear estes médiuns e passam a confundir seus chamados dons, concedendo-lhes títulos e vendo-os como seres especiais, ungidos por Deus e dotados de poderes que estes não possuem, tudo isto contribui para que estes médiuns passem a se sentir seres especiais, passem a acreditar que são possuidores de poderes e forças diferenciadas, neste momento passam a se afastar dos verdadeiros ideais de progresso espiritual e se entregam aos prazeres da bajulação e das tietagens, estampando capas de revistas e matérias em jornais e documentários televisivos.

As religiões nos trazem inúmeros exemplos de pessoas vistas como diferenciadas, dotados de poderes sobrenaturais, que se envolveram em episódios destrutivos e suas imagens foram destruídas, desde padres e bispos católicos pegos e denunciados em pedofilia, passando por pastores e lideres evangélicos que se comprazem com os prazeres do dinheiro público e se empanturram na política para defender seus interesses e de seus rebanhos, até médiuns espírita que se utilizam de um falso poder para enganar e degradar os valores e sentimentos de pessoas incautas e ignorantes, os exemplos são muitos e não se restringem a uma única religião ou grupo religioso.

Os prazeres do mundo espiritual são inúmeros e são estimulados por entidades que querem fragilizar o médium e boicotar seu trabalho, são inimigos espirituais do próprio médium ou da religião que estes professam, são irmãos que ora estão centrados em vingança e em ressentimentos, infelizmente se comprazem com a degradação e elegem como inimigos e fazem de tudo para destruí-los, impedindo que as luzes difundidas pelos conhecimentos religiosos reduzam seus poderes e angarie adeptos para suas fileiras religiosas.

Estes espíritos atuam fortemente sobre o médium, querem humilhá-lo e enfraquecer seus conhecimentos e desviar seu caminho, com isso, denigrem as religiões e levam o médium a humilhações, gerando constrangimentos variados e colocando a população da comunidade em rota de colisão com os adeptos da religião, neste ambiente de intolerância e de xenofobia, acabam gerando violências e atitudes equivocadas.

Em um livro recentemente publicado no Brasil No Armário do Vaticano, o escritor francês Frédéric Martel, destaca como a cúpula da Igreja Católica se degradou e passou a inviabilizar mudanças importantes, acumulando ilícitos de todas as naturezas, desde corrupção, passando por pedofilia, homossexualidade e variados desequilíbrios, gerando no movimento religioso graves constrangimentos morais e degradando os valores defendidos pelo Cristianismo e sempre divulgados em suas fileiras.

Quando analisamos estes fatos destacados no livro, percebemos que muitos grupos religiosos são caracterizados por discursos fortemente centrado na moral e nos bons valores e que, na intimidade cultivam atitudes e comportamentos diferentes, pregam valores que não possuem, exigem das pessoas e, principalmente, dos fiéis, comportamentos exemplares e atuam clandestinamente em movimentos de intolerância, defendendo uma limpeza espiritual incompatível com seus gestos e comportamentos.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra claramente que a renovação moral deve ser o primeiro passo para que os indivíduos cresçam e se consolidem espiritualmente, para isto, faz-se necessário uma atuação constante no bem, o cultivo do hábito saudável da oração, da renovação e da reflexão, seguindo sempre a máxima de que fora da caridade não há salvação.

            Todos que levantam bandeira do bem e do equilíbrio espiritual são alvos dos espíritos desequilibrados, estes últimos se associam para destruir os trabalhos no bem, se utilizam da escuridão para constranger os trabalhadores do bem, para atuar na matéria controlam todos aqueles irmãos desequilibrados, utilizando-os para denegrir, humilhar, maltratar e gerar falsas notícias, distribuindo calúnias e difamação, sempre visando atingir e fragilizar os trabalhadores do bem. De outro lado, todos que cogitam trabalhar para o bem, devem cultivar hábitos saudáveis e vigiar sempre, suas energias e pensamentos devem estar sempre calibrados com os ideais do Cristo, com isso, atraem bons espíritos para a construção de um trabalho digno e edificante, tendo a proteção e o amparo de todos que se esforçam para que o mal, o rancor e o ressentimentos sejam transformados em energias de luz e de equilíbrio e possam retornar para a humanidade em forma de amor, caridade e bons sentimentos.

A Doutrina Espírita nos mostra que, quando um médium começa a adotar uma postura equivocada, os bons espíritos que o acompanhavam até então, acabam deixando o medianeiro, antes disto usam todos os instrumentos possíveis para auxiliá-lo e dissuadi-lo de seguir para um outro caminho, tentam instruí-lo no sono físico e colocam pessoas em seu caminho para que este lhe traga informações confiáveis para evitar que o médium altere o caminho planejado anteriormente, muitos fazem este planejamento no mundo espiritual e são lembrados constantemente sobre o projeto antes de reencarnar.

Os espíritos que querem desviar o caminho do medianeiro, se utilizam de um instrumento que, constantemente, gera um êxito aparente e desviam o médium de seu caminho anterior, estimulam a vaidade e a ambição do indivíduo e colocam pessoas para o elogio fácil e para a bajulação constante, concedendo-lhe uma falsa sensação de poder e superioridade, que o leva facilmente, isto se não manter seus interesses, pensamentos e valores blindados, a escolhas equivocadas e quedas bastante violentas, gerando dores e constrangimentos variados.

Francisco Cândido Xavier foi um exemplo completo de médium integral, sua mediunidade abarcava vários tipos e modelos, para fugir da vaidade e da bajulação adotava princípios e valores edificantes, a oração era presente frequente em suas atividades cotidianas, a companhia de seu mentor espiritual, Emmanuel, lhe trazia, muitas vezes a realidade da vida, sua dureza e perseverança foram fundamentais para que o nosso Chico Xavier conseguisse obter êxito máximo em sua vivência material, sendo que seu mentor espiritual, no momento do encontro definiu de forma intensa três palavras e conceitos fundamentais para a consolidação de seu mandato mediúnico: disciplina, disciplina e disciplina.

A sociedade busca constantemente a santidade das pessoas em todos os momentos e épocas e, ao mesmo tempo, se refestela quando os supostos missionários caem e são vítimas de humilhações e constrangimentos, transformando-os em escárnios e portadores de verdadeiras doenças contagiosas, o que os tornam mais humanos e os fazem mais parecidos com o cidadão comum, marcados por equívocos e limitações.

Somos todos imperfeitos e inconsequentes, a perfeição não existe neste mundo de provas e expiações, se aqui estamos temos muito trabalho a fazer, a Doutrina dos Espíritos e as outras religiões podem ser vistas como um instrumento para que encontremos o caminho, nenhuma religião sozinha garante a evolução espiritual mas podem auxiliar, desde que nos utilizemos deste instrumento para refletir e nos transformarmos intimamente, a evolução é inexorável e inadiável, uns evoluem mais rapidamente enquanto outros estão ainda esperando a chegado de um todo poderoso para lhes mostrar o caminho e, quem sabe, caminhar ao lado deles nesta estrada.

 

 

Globalização fracassou para muitos, e reações podem ser violentas

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Coordenador do Relatório da Desigualdade Global diz que ‘fuga para o mais barato’ achatou as classes médias e levou à precarização dos serviços públicos

Para o economista Lucas Chancel, um dos coordenadores do Relatório da Desigualdade Global, as promessas da globalização “fracassaram” para muitos ao redor do mundo.

Em sua opinião, os países precisam reorganizar a integração econômica global para evitar “reações violentas” no futuro.

Frenando Canzian – 22/07/2019 – Paris

Embora os muitos pobres estejam melhorando por causa da Ásia, os mais ricos ficam cada vez mais ricos em todo o mundo e a classe média está sendo espremida. Quais as razões e as perspectivas desse movimento?

O que vemos são os três lados da história da globalização. O lado mais feliz é o enorme crescimento da Ásia. Na China, na Índia e em outros países. Há uma melhora substancial nos padrões de vida,e isso levou à redução das desigualdades entre os países.

Alguns se concentraram nisso para dizer que a globalização é ótima e que é preciso aprofundá-la,pois a desigualdade global diminuiu.

Mas há um outro lado. A renda cresce em ritmo muito baixo entre as classes trabalhadoras na América do Norte e em alguns países europeus. Nos EUA, toda a metade mais pobre ficou de fora do crescimento da renda nos últimos 38 anos.

Isso também precisa ser entendido a partir da perspectiva da terceira história da globalização, que é a da elite econômica global.

Onde quer que olhemos o mundo, na Europa, na América Latina, na América do Norte ou na Ásia, vemos a renda do 1% mais rico subindo brutalmente. São taxas de crescimento acima de 100% ou de 200% para o 1% do topo entre 1980 e hoje. Em alguns países a taxa ultrapassa os quatro dígitos.

Um debate bem informado sobre a globalização precisa levar em conta essas três histórias. Não dá para dizer apenas que os pobres estão melhorando e que isso é ótimo. Ou que as pessoas do topo estão ganhando muito e que isso é terrível.

O que vai acontecer? O lado bom da história é que tudo depende de nós.

Tudo vai depender do que os formuladores de políticas implementarem. E isso vai depender, em muitos países, das decisões dos cidadãos.

Como os países individualmente podem combater as desigualdades se as empresas hoje são globais e o capital é livre para migrar, mas as pessoas, não?

O capital pode migrar por que organizamos a globalização dessa maneira. Assinamos tratados que nos permitem mover bens e às vezes trabalhadores e, em muitos casos, o capital. Mas não assinamos tratados que harmonizassem a tributação.

Então, qualquer tipo de entidade na qual há livre comércio sem harmonização fiscal será uma entidade econômica que não funcionará adequadamente. Particularmente do ponto de vista da desigualdade. Com certeza, essa é uma questão-chave que precisa ser enfrentada.

Nos últimos 30 anos houve, dentro da União Europeia, uma “fuga para onde for mais barato” em termos de tributação progressiva,ou em termos de tributação de uma empresa. Porque todo país acha que, se não fizer o jogo da “fuga para o mais barato”, vai sair perdendo.

Mas, no final, todo mundo perde porque não sobram recursos para os atores públicos que quer em financiar um bom nível de educação, transporte público e saúde.

Basicamente, os formuladores de políticas foram um pouco preguiçosos, e apenas diziam que “tudo bem, vamos fazer o jogo da fuga para o mais barato”. Mas qual é a consequência desse jogo?

Bem, há contribuintes “móveis”, que são as multinacionais e os cidadãos ricos, que ameaçam e chantageiam o governo com o argumento de que “se você aumentar meus impostos, eu me mudo”.

Mas também há”contribuintes imóveis”, a classe trabalhadora, a classe média e o contribuinte que simplesmente não pode se mudar. E essas pessoas querem a manutenção de bons níveis de serviço público.

Então, quem vai pagar os impostos? Se isso recair sobre a classe média, sobre os grupos de baixa renda, não será nenhuma surpresa que venhamos a ter uma reação muito violenta, brutal.

Já temos fenômenos como Donald Trump, brexit e populistas ganhando terreno. A “desglobalização” vai se acentuar nessa onda?

Um dos problemas é que as promessas da globalização em grande parte fracassam. Ela deveria aumentar o padrão de vida em países de baixa renda, e isso aconteceu

Mas também deveria melhorar a vida das classes médias e dos trabalhadores nos países ricos, e isso não aconteceu.

Uma das formas de entender a rejeição a o multilateralismo é o próprio fracasso do multilateralismo.

Mas uma maneira de tentar torná-lo bem-sucedido é abordar a questão-chave que você colocou, da fuga de capitais. É preciso organizar a globalização e saber com muito mais transparência onde está a riqueza e como ela se move de um país para outro.

Isso significa, por exemplo, que não podemos continuar negociando com paraísos fiscais que não respeitam as regras básicas da transparência. Porque países e governos perdem nesse jogo. Isso justifica a imposição de limites.

Em “The Great Leveler”, Walter Scheidel argumenta que a desigualdade é um fato da vida. Que só diminuiu após eventos extremos, como guerras e pestes. Qual a sua opinião?

Sim, é um fato da vida e, em certa medida, sempre existirá, até o fim dos tempos.

Mas a questão é até que ponto aceitaremos esse nível de desigualdade. E há outro fato, não um fato da vida, mas das sociedades humanas, que é a discussão permanente sobre como a riqueza deve ser compartilhada. E esse tipo de discussão está no centro da construção das democracias modernas.

 

Desencarnação, crescimento e desenvolvimento espiritual

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A morte sempre foi uma grande incógnita para os indivíduos e para as coletividades, as culturas tratam de forma diferente este tema e encontram respostas originais e inusitadas, todos sabemos que desde o nascimento estamos em contagem regressiva para uma outra vida, para alguns vamos para um vazio absoluto ou para uma escuridão sem precedentes, outros acreditam em uma espera que pode durar muitos anos ou quem sabe séculos ou milênios, a morte ainda desperta muitas dúvidas e reflexões das pessoas em todos os lugares do mundo.

Existem muitas discussões e dúvidas sobre a morte, as religiões, as culturas e as correntes filosóficas apresentam visões variadas, algumas trazem explicações mais vigorosas e consistentes, enquanto outras atribuem as respostas a dogmas inatingíveis para os homens no momento atual, contribuindo para o crescimento e o fortalecimento de um verdadeiro misticismo, que cultiva ignorância e desinformação, gerando medos e inseguranças.

A Doutrina Espirita, codificado por Allan Kardec, em 1857, com a publicação de O Livros dos Espíritos nos traz informações novas e originais, suas análises perpassam a questão religiosa e se concentram em uma visão científica e filosófica, com isso, nos mostra uma situação mais completa e uma interpretação mais consistente e inteligente, sem dogmas e desprovida de preconceitos, que muitas vezes limitam a capacidade de compreensão dos indivíduos e das coletividades.

Os conhecimentos trazidos pela Doutrina dos Espíritos nos informam que a morte como a conhecemos não existe, somos espíritos que estagiamos no corpo físico e, posteriormente, retornaremos para o verdadeiro local da vida, o mundo espiritual, embora não nos recordemos este é o verdadeiro local da nossa existência, somos espíritos habitando corpos materiais temporariamente, nele passamos por variadas experiências que devem servir como vivências, nunca como punição, mas como educação, em prol do progresso e de um verdadeiro desenvolvimento espiritual.

As informações trazidas por Allan Kardec geraram muitas controvérsias na época, é importante lembrar que, neste momento histórico, a Europa vivia os últimos espirros da Inquisição, momento marcado pelos desatinos da Igreja Católica, que se outorgava o direito de alienar os indivíduos e impor seus interesses mesquinhos e imediatos, condenando os indivíduos a uma cegueira moral e perpetuando seu poder e dominação.

As ideias descritas por Kardec reviviam os ensinamentos de Jesus de Nazaré, mostrando aos indivíduos a importância de sermos bons e justos com nossos semelhantes, isto porque estas atitudes nos auxiliariam em nosso progresso espiritual e em outros momentos da vida. Pelas doutrinas anteriores, os prazeres do mundo eram os grandes ideais dos indivíduos, as posses materiais, as terras, os títulos e as insígnias eram buscadas como forma de prazer e enriquecimento, formas de poder da sociedade da época.

Quando restringimos a vida dos indivíduos a apenas uma única vida, quando não cogitamos a existência de uma vida posterior a existência atual, nos deixamos levar por todos os instrumentos de acumulação e de prazeres materiais, afinal a vida se restringe aos momentos atuais, os prazeres do hedonismo dominam os indivíduos e nos garantem prazeres e mais prazeres, esta era, para a grande maioria dos indivíduos, os ideais da existência humana.

Se vivemos eternamente em momentos e em estágios diferentes, a vida material deve ser encarada como uma nova experiência de progresso do ser humano, uma nova oportunidade de crescimento e de desenvolvimento espirituais onde novas oportunidades e antigas experiências são revividas para que consigamos encontrar o equilíbrio e o progredir, estes sim os grandes objetivos da vida e o caminho para a evolução.

A doutrina dos espíritos vem nos mostrar um mundo muito maior e mais complexo, nos esclarecendo sobre verdades e nos mostrando que o verdadeiro caminho para a melhoria espiritual está na máxima fora da caridade não há salvação, onde devemos compreender a caridade como algo maior e mais consistente, não como muitas a veem, como a doação de recursos financeiros e de valores materiais, esquecendo-se de que a verdadeira caridade é algo muito maior do que esta doação monetária, a verdadeira caridade pode ser feita com palavras, gestos e conversas desinteressadas e estimulantes, quando despendendo tempo para ouvir e esclarecer corações aflitos e solitários.

Os desencarnados retornam ao mundo espiritual, voltam ao verdadeiro local da existência humana, quando retornam encontram situações variadas e individualizadas, a Doutrina Espírita nos mostra que não existe um modelo único de desencarnação, existem regras gerais, mas os méritos e a meritocracia são instrumentos que diferenciam os indivíduos, os que melhor se comportaram na matéria, que mais fizeram pelos semelhantes e mais trabalharam para o bem, recebem mais segundo seus merecimentos agora, aqueles que se afastaram dos caminhos do bem recebem de acordo com seus parcos merecimentos.

As pessoas desencarnadas voltam para o mundo espiritual e com a passagem não melhoram instantaneamente, muitos acreditam que os desencarnados passam deste mundo para um outro melhor, isto nem sempre é uma verdade irrefutável, muitos ao desencarnar passam para o mundo espiritual de uma forma muito pior do que estavam na matéria, muitos vivem uma verdadeira ilusão marcada por riquezas, posses e bens materiais e quando desencarnam acordam em uma situação deplorável e degradante, como encontramos no livro Nosso Lar, escrito por Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito de André Luiz, nesta obra nos deparamos com o relato do médico fluminense que vivia uma vida de conforto e posses materiais e ao desencarnar se depara com uma situação assustadora em uma região fétida e deplorável.

A Doutrina nos mostra que os espíritos são entidades que não mais possuem corpos materiais, o fato de estarem no mundo dos espíritos não os concedem nenhuma capacidade intelectual ou moral superior, são apenas espíritos em uma outra condição de vida, a desencarnação não gera desenvolvimento espiritual em ninguém, a morte física não faz o papel da evolução.

A evolução é uma conquista individual que demanda muito tempo e muita dedicação, reflexão, empenho e reforma íntima são instrumentos centrais para o desenvolvimento do ser humano, a morte é um fenômeno natural e a evolução uma conquista particular e imprescindível que todos alcançaremos, uns mais cedo e outros mais tarde, dependendo do esforço e dedicação de cada indivíduo.

Encontramos muitas pessoas buscando notícias e informações de parentes, amigos e familiares desencarnados, esta atitude é muito saudável e louvável, afinal temos saudade e queremos saber como estão nossos afetos que partiram para uma outra existência, embora saibamos que a desencarnação não conduz ao progresso imediato, muitos familiares oram e buscam auxílio de pessoas recém desencarnadas, acreditando que estes podem auxiliar nos momentos de dores e decepções. A Doutrina Espírita nos mostra que quando retornamos ao mundo espiritual somos nós mesmos, trazemos embutidos na alma os valores e conquistas morais e intelectuais, estas não podem ser tiradas, são conquistas verdadeiras que levamos para todos os momentos de nossa existência.

Todos os indivíduos que desencarnam com sentimentos saudáveis, desprendimento de bens materiais e bons pensamentos, marcados pelos trabalhos no bem e no respeito as Leis de Deus, todos que cultivam a oração e a reflexão edificante, com certeza encontrarão, no mundo espiritual, as energias e os sentimentos compatíveis com seus pensamentos e com a suas condutas individuais, estes irmãos muito brevemente estarão integrados em trabalhos e continuarão suas atividades no mundo espiritual. Ao contrário, todos aqueles que passam para o outro lado da vida, com os corações marcados pelo rancor e pelo ressentimento, muito atrelados aos bens materiais e aos prazeres do álcool e do sexo, com certeza estes irmãos demorarão algum tempo para se libertar destas energias desagradáveis e limitantes, necessitando de oração e bons pensamentos como forma de auxiliá-los no processo de melhoria e de conscientização espiritual.

Todas as vezes que interpelamos familiares desencarnados com problemas particulares, dificuldades materiais ou constrangimentos afetivos, levamos a estes irmãos, energias pesadas e densas, nos deixamos levar por sentimentos menores e transmitimos e estes irmãos desencarnados estas energias e sensações, prejudicando-os muito mais do que imaginamos, embora não queiramos prejudicá-los, nossas energias causam desequilíbrios a estes irmãos. Numa situação como esta devemos evitar os petitórios que fazemos aos irmãos desencarnados, o melhor a fazer nesta situação é nos apegarmos a oração e o envio de boas vibrações, estas devem auxiliá-los em seu progresso e desenvolvimento espiritual.

A oração deve ser uma conduta constante na vida das pessoas, quando oramos e solicitamos o amparo e a proteção de amigos espirituais estamos reconhecendo nossas limitações e fragilidades, no livro Nosso Lar, André Luiz destaca que as poucas orações recebidas em seu auxílio foram fundamentais para que este vencesse seus desequilíbrios e lhe trouxesse as energias necessárias para superar os momentos de dores e dificuldades.

Outro depoimento interessante retratado na literatura espírita está na obra Voltei, neste livro psicografado pelo ilustre Francisco Cândido Xavier, ditado pelo espírito de Frederico Figner, encontramos o autor espiritual descrevendo seu próprio velório, embora um episódio inusitado, percebemos como nos comportamos em um momento de tanta dificuldade, as pessoas se encontram distante das orações e se entregam as conversas desimportantes e as piadas degradantes, todas estas energias são absorvidas integralmente pelo desencarnado, trazendo-lhe energias e sentimentos menores marcados pelo pessimismo, pelo medo e pela insegurança.

Na obra acima, o autor nos mostra como estamos distantes dos sentimentos e das energias edificantes e desenvolvidas, mesmo sendo descrito pelos encarnados como uma pessoa de bem, de boas obras e elevados sentimentos morais, o autor espiritual se encontra em uma situação de medos e preocupações, acreditou encontrar “facilidades” variadas devido a suas obras no plano material, mas infelizmente seu trabalho foi insuficiente para angariar as conquistas que acreditava ser merecedor.

Todos os dias uma grande quantidade de pessoas retornam ao mundo espiritual e uma quantidade elevada retornam ao munda da matéria, estes fluxos mostram a grandeza das obras divinas que nos auxiliam no desenvolvimento constante da sociedade, embora buscamos todos os momentos o crescimento e o desenvolvimento espiritual, para que o angariemos, faz-se necessário nascer, morrer, renascer e morrer novamente, afinal como nos diz Allan Kardec, esta é a verdadeira Lei da vida e da natureza, e todos estamos sujeitos a esta lei para que consigamos evoluir e alcançar o verdadeiro progresso.

A vida nos traz grandes desafios e oportunidades, todos que conseguem compreender as grandes realidades da vida conseguem trilhar caminhos mais sólidos e consistentes, vive melhor e morrem de forma serena e equilibrada, mostrando que a tão falada morte na verdade não existe, mas uma nova vida se abre em um local diferente e com uma maior liberdade e consciência, afinal somos todos seres humanos em constante evolução.

Matthew H. Kramer

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Professor de Filosofia Política e Jurídica na Universidade de Cambridge, Kramer discute temas como teorias da justiça, o positivismo jurídico e a objetividade de juízos morais.

Estado da Arte 

19 de julho de 2019

por Gilberto Morbach

Matthew H. Kramer é professor de Filosofia Política e Jurídica na Universidade de Cambridge. Autor de uma vasta obra, Kramer discute temas como teorias da justiça, o positivismo jurídico, a objetividade de juízos morais, o liberalismo político, direitos e responsabilidades, a pena de morte, enfim, questões que gravitam em torno do núcleo central que constitui sua obra: a filosofia moral, política, jurídica. Seus livros mais recentes são H.L.A. Hart: The Nature of Law — uma das mais completas obras a discutir o legado de Hart — e Liberalism with Excellence — no qual Kramer articula sua versão de liberalismo político.

Tomando suas obras mais recentes como ponto de partida, conversei com o Prof. Kramer sobre Hart, sobre positivismo, sobre uma teoria perfeccionista de liberalismo político e sobre o próprio liberalismo em tempos de populismos iliberais ao redor do globo.

  1. Seu livro mais recente, L.A. Hart, é uma análise tão interessante quanto aprofundada da teoria jurídica de Hart. Naturalmente, há, como em qualquer livro que lide com a obra de um autor, espaço para elogios e críticas. Se estivermos a tratar de sua posição, em que o senhor acompanha Hart, e em que segue um caminho distinto do dele? Dito de outro modo, como o senhor resumiria seus principais acordos e desacordos com Hart?

Kramer: Meu livro de 2018 expõe apenas as ideias de Hart com relação à teoria geral do direito (i.e., suas ideias sobre a natureza do direito, da filosofia do direito, do raciocínio jurídico e do discurso jurídico). Com a maior parte dessas ideias, estou de acordo com Hart. Como Hart, sou um positivista. Especialmente em meus livros In Defense of Legal Positivism (1999), Where Law and Morality Meet (2004) e Objectivity and the Rule of Law (2007) — e, é claro, no próprio livro de 2018 sobre Hart —, eu desenvolvo uma concepção positivista de direito. Além disso, como Hart, sou um positivista inclusivo e não exclusivo. É verdade, estou longe de alguém que não tem críticas a Hart com relação à teoria do direito. Meu livro traz uma série de objeções à obra de Hart em uma série de pontos e meus outros escritos sobre o positivismo são igualmente críticos à teorização hartiana sobre o direito em vários aspectos. Seja como for, em termos de teoria geral, a minha posição e a de Hart são muito próximas uma da outra. Sou imensamente grato a ele.

Em outras questões filosóficas, minhas divergências com relação a Hart são mais contundentes. Por exemplo, Hart foi um dos mais notáveis proponentes da teoria da vontade no âmbito dos direitos, enquanto eu tenho proeminentemente articulado uma teoria do interesse — a teoria rival. No mesmo sentido, embora eu seja, como Hart, um liberal em questões de liberdade civil, seus fundamentos eram eminentemente consequencialistas, ao passo que os meus são fortemente deontológicos. Mais do que isso, embora eu tenha me baseado fortemente na concepção de causalidade no direito elaborada por Hart com Tony Honoré, a minha concepção (desenvolvida de forma mais robusta em The Quality of Freedom, meu livro de 2003) vai além da deles em várias questões. Além disso, sou um realista moral, na medida em que não é assim tão fácil definir a visão de Hart com relação à natureza dos juízos morais. Falarei mais sobre o realismo moral mais à frente.

Finalmente, enquanto Hart era um forte crítico da pena capital (baseado em fundamentos consequencialistas), argumentei amplamente — a partir de fundamentos deontológicos — em favor da legitimidade, em princípio, da pena de morte em determinados contextos bastante restritos. Admitidamente, contudo, deixo em aberto a questão sobre se os problemas práticos subjacentes à administração da pena capital são superáveis

  1. A partir do debate entre positivismo jurídico exclusivo e inclusivo, alguns autores derivam uma espécie de positivismo normativo — ou seja, a aceitação do positivismo inclusivo num plano conceitual, mas com a prescrição de algo próximo aos fundamentos do positivismo exclusivo. Alguns autores adotam essa posição, outros veem-na como possível, outros rejeitam-na. Como um positivista inclusivo, como o senhor vê essa questão?

Kramer: O positivismo jurídico prescritivo é certamente uma doutrina que tem sido defendida por alguns filósofos do direito. Tom Campbell é o filósofo contemporâneo que a articulou de forma mais contínua, mas ela foi ainda mais notavelmente proposta ao início da era moderna por Thomas Hobbes e Jeremy Bentham. Basicamente, ela consiste na proposição de que uma série de leis em determinada jurisdição devem ser formuladas de modo a garantir que o processo por meio do qual se pode atribuir caráter de juridicidade a determinadas proposições raramente ou nunca envolvam juízos morais. Como tal, essa é uma posição ortogonal ao positivismo jurídico enquanto teoria geral do direito (i.e., uma teoria sobre a natureza do direito). Pessoalmente, oponho-me ao positivismo prescritivo; não por fundamentos teóricos, mas por razões de moralidade política.

  1. Algumas pessoas — equivocadamente, a meu ver, mas ainda assim — insistem que é difícil reconciliar o positivismo jurídico com uma posição de realismo moral. Como o senhor articula suas visões sobre a objetividade moral de um lado e, de outro, a tese da separabilidade entre direito e moral?

Kramer: Longe de serem incompatíveis, o positivismo jurídico e o realismo moral ajustam-se um ao outro tranquilamente. Nenhuma dessas teses pressupõe a outra, mas elas são absolutamente consistentes entre si. De fato, dado que a minha versão de positivismo jurídico é parcialmente sobre a relação entre o direito e a moralidade tout court (i.e, a moralidade como um conjunto de princípios básicos cuja existência e conteúdos são independentes daquilo que se pense sobre eles), minha posição na teoria do direito já pressupõe a correção do realismo moral como explicação sobre a natureza da moralidade.

Eu suponho que a visão de que as doutrinas são incompatíveis se dá em razão da crença de que a insistência do positivismo na separabilidade entre direito e moral significa uma asserção de um caráter não moral do direito — i.e., uma asserção de que o direito não é suscetível a apreciações morais. Qualquer asserção desse tipo seria de fato incompatível com o realismo moral, mas (como eu coloco enfaticamente em meus escritos jurídicos) nenhum positivista até hoje sugeriu que o direito é um fenômeno não moral.

  1. Agora, com relação ao seu trabalho na filosofia política: em Liberalism with Excellence (2017), o senhor reflete sobre se é moralmente exigível que governos mantenham-se neutros com relação a concepções razoáveis sobre o desenvolvimento humano e a boa vida. A partir desse debate, o senhor articula uma posição a que chama de perfeccionismo de aspiração [“aspirational perfectionism”]. Como o senhor definiria sua posição dentro da esfera do liberalismo àqueles que ainda não leram o livro?

Kramer: Como indicado em vários momentos do livro, minha posição é amplamente estóica. A sequência a Liberalism with Excellence — que será escrita assim que eu finalizar outros dois livros, sobre aborto e liberdade de expressão — será intitulada A Stoical Theory of Justice. Entretanto, meu liberalismo estoico não pode ser propriamente designado como uma espécie de liberalismo amplo [“comprehensive liberalism”] no sentido utilizado por John Rawls e seus seguidores, tais como Jon Quong. Quero dizer, não se trata de uma tentativa de fundamentar o liberalismo em um valor (ou uma série de valores) que poderia ser sensatamente rejeitado por alguns liberais. Ao contrário: o âmago de meu liberalism estoico é o valor da garantia de autorrespeito — que é igualmente o coração do liberalismo rawlsiano.  Não posso entrar em maiores detalhes aqui, mas, com efeito, o que quero fazer é criar um certo desacordo entre a busca rawlsiana por neutralidade e a doutrina de razão pública de Rawls. Eu apoio, afinal, a neutralidade, enquanto rejeito as limitações da razão pública. (Aos leitores não familiarizados com a obra de Rawls, gostaria de colocar que o princípio da neutralidade prescreve que qualquer Sistema de governança deve manter-se neutro com relação à concepções razoáveis do que é bom e valioso — sendo que “razoável” significaria “consistente com os valores básicos do liberalismo”. As limitações da razão pública são restrições nos tipos de considerações às quais as pessoas podem recorrer em desacordos políticos públicos. Essa limitação foi tomada por seguidores de Rawls como uma decorrência lógica do princípio da neutralidade, mas eu rejeito a primeira conservando a segunda.)

  1. Finalmente, em tempos de democracia iliberal e populismo, qual é a maior ameaça — se houver alguma — ao liberalismo?

Kramer: No Reino Unido e em alguns países como a Venezuela, o populismo de esquerda foi muito mais danoso que o da direita. As calamidades produzidas pelos regimes populistas de esquerda de Chávez e Maduro são certamente bem conhecidos pelas pessoas de sua região, então concentro-me no Reino Unido. Em 2015, o Partido Trabalhista britânico foi dominado pelo ideólogo de extrema esquerda Jeremy Corbyn e sua trupe de sinistros asseclas. Corbyn, à época, talvez fosse mais conhecido por seu apoio de longa data ao terrorismo da República da Irlanda e por seu efusivo apoio a tiranias antiocidentais, mas ele já tinha também uma longa e nada atrativa história de associação com antissemitas fanáticos. Ao longo de seus anos enquanto líder do Partido Trabalhista, os níveis de antissemitismo interno à organização aumentaram de forma exponencial, levando milhares de judeus ao abandono do partido mesmo após uma filiação durante boa parte da vida adulta. Mais do que isso, o partido passou a se comprometer com uma política econômica que transformaria desastrosamente o Reino Unido na Venezuela do Mar do Norte caso os britânicos fossem suficientemente loucos a ponto de eleger um governo liderado por Corbyn. Um governo desse tipo seria firmemente leal a tiranos como Vladimir Putin, Ali Khamenei e Bashar al-Assad. Sobre esses tiranos, Corbyn não tem uma única palavra negativa. Toda sua raiva é direcionada às democracias liberais ocidentais.

Nos Estados Unidos, em seu país e em alguns países europeus, como Hungria, Polônia e Áustria, o populismo de direita tem sido pior que o de esquerda. Donald Trump é o primeiro candidato por um dos grandes partidos a, em quase um século, engajar-se em retórica racial ao longo da campanha. A robustez, o desenvolvimento geral da democracia liberal nos EUA limitou (embora não tenha evitado completamente) os danos gerados pela lamentável presidência de Trump, mas outros países como Polônia e Hungria não tiveram a mesma sorte. Tendo quase definhado sob o despotismo comunista até poucas décadas atrás, cada um desses países é agora governado por regimes manifestamente antissemitas e quasi-fascistas que podem arruinar de vez todo o progresso em direção aos valores da democracia liberal.

Ainda, em outros países como a França, o populismo à esquerda e à direita parece ganhar força. Isso quer dizer que qualquer resposta adequada à sua pergunta deve levar em conta as circunstâncias variáveis de país a país. A democracia liberal, ao longo de sua história, sofreu ataques de uma série de ideologias iliberais, e seus inimigos são diversos e abundantes.

Liberalismo e dogmatismo

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Por André Lara Resende – Valor Econômico – 13/05/2019

No início da década, a Grécia se viu obrigada a fazer um extraordinário ajuste fiscal. Tendo sido beneficiada pela condição de membro da União Europeia, o que lhe permitiu financiar sua dívida a juros baixos, a Grécia tinha sido fiscalmente irresponsável. Com a crise financeira de 2008, a realidade bateu à porta. Os mercados, sempre dispostos a absorver mais dívida quando a maré está alta, com o refluxo, secaram. O aumento do prêmio de risco cobrado pelos bancos tornou a dívida, além de muito alta, também muito onerosa.

Yanis Varoufakis, à época um professor visitante na Universidade do Texas-Austin, foi o primeiro a afirmar o que qualquer pessoa com uma noção básica de aritmética poderia constatar: a dívida grega era impagável. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, a Troica, preocupados com o impacto sobre o sistema bancário, decidiram entender que não, que a Grécia deveria fazer um drástico ajuste fiscal e refinanciar a dívida. O ajuste foi feito. O déficit, de mais de 10% do PIB em 2010, foi revertido. Em 2017 a Grécia, a Alemanha, a Dinamarca e a Suécia, eram os únicos países da União Europeia com superávit fiscal.

O resultado pode ser avaliado por alguns números. O desemprego, que já era alto antes do início do ajuste, quase de 10%, três anos depois chegou a 28% da força de trabalho e a mais de 60% entre os jovens. No ano passado o desemprego ainda estava perto de 20% e o PIB tinha caído mais de 30% em relação a 2010. A dívida, que era equivalente a 150% do PIB em 2010, depois de quase uma década de ajuste, chegou a 180% do PIB. Mas os números, por mais impressionantes que sejam, não podem exprimir a dimensão da verdadeira tragédia que se abateu sobre a Grécia. O país foi destroçado.

Em 2015, depois de três anos de ajuste fiscal, a população exprimiu sua rejeição ao estrangulamento econômico a que o país estava sendo submetido. Um novo partido de esquerda, o Syriza e seu jovem lider, Alex Tsipras, venceram as eleições. Varoufakis foi convocado para ser o ministro da fazenda e renegociar a dívida. Condicionou a sua aceitação a ser eleito para o congresso. Sem jamais ter exercido qualquer cargo público, em menos de três meses de campanha, foi eleito o deputado mais votado da história. Ministro, enfrentou a tecnocracia europeia e o FMI, procurando demonstrar a inviabilidade do ajuste como exigido pela Troica. Convocou um referendo para avalizar a sua proposta alternativa. Saiu vitorioso das urnas, mas foi derrotado pela tecnocracia. O governo cedeu à Troica e Varoufakis voltou à academia e ao ativismo político. O seu livro, Adults in the Room, publicado em 2017, que resenhei para a revista Quatro Cinco Um, é uma fascinante incursão pelos bastidores das forças políticas do mundo contemporâneo.

Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal

A tragédia grega deste século XXI traz à cena todos os elementos do impasse da democracia contemporânea. Desde o início do século passado, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra, o mundo parecia ter encontrado a fórmula do progresso e da paz social. A democracia representativa liberal e a separação dos poderes davam a impressão de compatibilizar a vontade da maioria com a defesa dos direitos individuais e o respeito às minorias. Através de políticas compensatórias, o Estado, administrado por uma tecnocracia ilustrada, garantiria as condições mínimas de vida para os mais desfavorecidos. Nos países mais atrasados, o Estado exerceria ainda o papel de coordenador do desenvolvimento econômico.

Neste início de século, o equilíbrio entre os três elementos que compõem as democracias representativas – a vontade popular, o respeito aos direitos individuais e o governo tecnocrático – se rompeu. O populismo, tanto de direita como de esquerda, que hoje se alastra pelo mundo, deve ser entendido como uma reação à tomada de consciência de que a tecnocracia e as instituições liberais para a defesa dos direitos individuais se tornaram dominantes e abafaram a vontade popular. Tantos as razões desta tomada de consciência, como as implicações para o futuro da democracia têm sido objeto de inúmeros estudos e livros publicados nos últimos anos.

O populismo chega ao poder pelo voto, explorando a percepção de um déficit democrático, que foi acentuada pela internet e pelas mídias sociais. Primeiro, questiona as instituições liberais, depois desmantela a tecnocracia, para em seguida instaurar o autoritarismo. Não importa se a partir da esquerda, como na Venezuela, ou da direita, como na Turquia, na Polônia e nos EUA. Tanto a sua ascensão, quanto a sua capacidade de manter acesa a chama do ressentimento, dependem da frustração das expectativas. Por isso, o mau desempenho da economia, a recessão e o desemprego, são o combustível de que depende para solapar a democracia. Quando a economia se desorganiza mais rápido e profundamente, maior é a probabilidade do populismo descambar para o autoritarismo aberto. Confrontado com a perda de apoio, o populismo sobe o tom contra a política representativa, as minorias e as instituições liberais. A desorganização da economia, a recessão e o desemprego, se tornam um terreno fértil para a sua campanha de ressentimento.

No Brasil, depois de alguns meses do novo governo, a economia não dá sinais de que irá se recuperar. Continua estagnada, com a renda abaixo do que era há cinco anos e o desemprego acima de 12% da força de trabalho. O programa dos tecnocratas que estão no comando da economia parece estar condicionado à aprovação da reforma Previdência, uma reforma há décadas mais do que necessária, mas na qual não faz sentido depositar todas as esperanças. Transformada num cavalo de batalha com o congresso, insistentemente bombardeada como imprescindível pela mídia, a reforma da Previdência, ainda que aprovada sem grande diluição, como os resultados não são imediatos, não será suficiente para resolver o problema fiscal dos próximos anos. Também não será capaz de despertar a fada das boas expectativas. Como demonstra de forma dramática a experiência recente da Grécia, a busca do equilíbrio fiscal no curto prazo, quando há desemprego e capacidade ociosa, não apenas agrava o quadro recessivo, como termina por aumentar o peso da dívida em relação ao PIB.

A Grécia não tinha escolha: ou se submetia ao programa de austeridade fiscal ou seria obrigada a sair da zona do euro, com custos possivelmente ainda mais altos. No Brasil, a obsessão pelo equilíbrio fiscal no curto prazo é uma auto-imposição tecnocrática suicida. O liberalismo econômico do governo parece estar subordinado ao seu dogmatismo fiscal. Como liberalismo e dogmatismo são incompatíveis, o liberalismo sairá inevitavelmente derrotado. No século passado, o dogmatismo monetário derrotou o liberalismo econômico de Eugênio Gudin. Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal.

André Lara Resende é economista.

 

 

Lara Resende a meio caminho

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Marcelo Manzano – Le Monde Diplomatique Abril de 2019

Em artigo publicado semanas atrás no jornal Valor Econômico, o economista André Lara Resende, talvez um dos maiores expoentes do liberalismo econômico no país e o pater familias do Plano Real, colocou a moeda em cima da mesa e tratou de questionar a forma como a corrente dominante entende o seu papel na economia capitalista contemporânea.

Aos não economistas, esse debate pode parecer um tanto esdrúxulo ou lateral, mas, acreditem, é fundamental, já que em última instância é esse entendimento sobre o papel da moeda que define o norte das políticas econômicas que governam um país. Antes de avançar, portanto, vale um breve esclarecimento sobre o assunto.

Costuma-se considerar que a moeda cumpre três funções clássicas no capitalismo: 1) meio de troca: quando é utilizada como um equivalente geral para que sejam trocados produtos e serviços no dia a dia dos mercados; 2) unidade de conta: quando serve como um padrão de medida (um índice) que permite comparar e avaliar o valor de produtos, serviços e riquezas diferentes entre si e 3) reserva de valor: quando funciona como forma geral da riqueza, isto é, quando os agentes a retém para preservar os valores que puderam se apropriar até o presente.

Pois bem, desde a velha tradição monetarista (surgida na Escola de Chicago em meados do século XX) até os atuais e predominantes economistas novo-keynesianos (que de keynesianos não têm nada), prevalecia uma perspectiva de que a moeda é apenas e fundamentalmente um meio de troca, o que significa dizer que a moeda seria neutra, uma espécie de graxa que ajuda no funcionamento dos mercados, mas que em nada afetaria a dimensão real (material) da produção e da renda. Desta perspectiva, o volume de moeda que circula na economia impactaria apenas o nível geral de preços. Emissão de moeda em excesso ou gastos financiados por endividamento público seriam assim inúteis para impulsionar a atividade econômica e prejudiciais ao bom ambiente econômico, na medida em que produziriam pressões sobre o sistema de preços provocando inflação. Logo, controlar a quantidade de moeda por meio de regras rígidas de emissão (como recomendavam os velhos monetaristas) ou pelo manejo da taxa de juros (como querem os novo-keynesianos) seria o fundamento primordial a orientar a ação governamental.

Como essa concepção um tanto simplista da moeda serve muito bem aos interesses de todos os agentes econômicos que estão na ponta credora do sistema (instituições financeiras e rentistas de um modo geral), ela foi sempre abraçada com afinco pelas classes dominantes, principalmente a partir dos anos 1970, quando o padrão de regulação da ordem econômica internacional de Bretton Woods foi desmantelado, abrindo o flanco político para a emergência das finanças desreguladas e o império dos rentistas.

Nessa toada, o mundo seguiu aos trancos e barrancos até a grande crise financeira de 2008, que não só explicitou o fracasso daquela ordem desregrada, como ensejou políticas emergenciais que jogaram na lata do lixo toda a construção teórica que vinha sendo lapidada pelos novo-keynesianos e sua certeza na moeda neutra. Para socorrer os bancos que iam a pique empapuçados de títulos podres, os governos dos países centrais (principalmente dos Estados Unidos) passaram a comprar seus micos com um apetite ciclópico, inundando de liquidez as praças financeiras e salvando os bancos privados do colapso. A essa solução deu-se o nome de quantitative easing (QE), termo em inglês que pode ser traduzido por “laxidão monetária”. Com ela, a crise não engoliu o capitalismo, nem o capitalismo engoliu a crise. Entretanto, o que mais intrigou os economistas convencionais, até então fieis ao mantra da moeda neutra, é que a avalanche de dinheiro circulando no mundo ao lado de taxas de juros próximas de zero não tiraram a inflação do rés do chão, embora muito tenham contribuído para inflar os preços dos ativos (reais e financeiros).

Intrigada com teimosia mundana de trilhar caminhos não prescritos pelos manuais de economia, a ortodoxia econômica voltou aos livros em busca de interpretações alternativas a respeito das funções da moeda. Acabou trazendo à tona teorias que apontavam a função “unidade de conta” como aquela que deveria ser considerada a primordial. Resgataram assim a MMT (modern monetary teory) dos anos 1990 e com ela, toda a velha ladainha sobre a relação entre excesso de moeda e inflação passou a ser fortemente questionada. Mais do que isso, corretamente, os economistas da MMT jogaram luz sobre um aspecto contra intuitivo do capitalismo que é fundamental para se compreender o seu real metabolismo: a quantidade de moeda não é controlada pelos governos ou pelos bancos centrais, mas gerada endogenamente, isto é, por dentro do circuito financeiro na medida em que há maior ou menor demanda por crédito. Como bem observa Lara Resende “sua expansão ou contração [da moeda] é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica”.

Como decorrência lógica dessa concepção um tanto mais realista das funções da moeda, uma segunda conclusão que obrigatoriamente vem sendo resgatada diz que, se não é cabível satanizar o excesso de moeda, então também deixa de ser problema o fato dos governos se endividarem, vendendo títulos da dívida pública (que são uma variante da moeda) para aumentarem os seus gastos e estimularem a demanda.

Ora, ora, se assim for – e a história do capitalismo demonstra com fartura de evidências que assim é – então o setor público não precisa lidar com as impertinências da restrição financeira, podendo avançar os seus gastos muito além da sua capacidade de arrecadação. Keynes e Kalecky já haviam tratado disso – e muito mais! – há quase noventa anos, mas estranhamente a ortodoxia preferiu descartar suas profícuas reflexões, apostando na ideia de que todos os agentes econômicos, inclusive o Estado, se movem segundo as mesmas regras universais, notadamente a da restrição financeira.

Deve-se reconhecer, portanto, que o despertar de Lara Resende para este “novo” entendimento da macroeconomia tem o mérito de trazer um debate que nas últimas décadas rastejava pelo campo da heresia para o centro do ninho das garças, digo, do clube de economistas liberais brasileiros que cuida de azeitar os argumentos da corrente dominante neste nosso fim de mundo. Se for finalmente derrubado o tabu teórico que pregava limites espartanos para o gasto público, poder-se-á abrir uma avenida no campo da política econômica para se avançar rumo ao pleno emprego e ao financiamento do Estado de Bem Estar Social.

É de se lamentar, entretanto, que tanto Lara Resende quanto os economistas que hoje se entusiasmam com as revelações da MMT não avancem como poderiam. A bola segue quicando na frente do gol, mas eles preferem ignorar o fato incontornável de que a moeda cumpre uma outra função – a mais crucial das três – na ordem capitalista: a de “reserva de valor”. Vejamos qual seria então o busílis da questão.

Primeiramente, vale notar que por ser uma modalidade de ativo com qualidades muito especiais (liquidez plena, grande mobilidade, fácil entesouramento, dentre outras), a moeda é o porto seguro para onde a riqueza se transmuta sempre que sente cheiro de crise e, também, é o cálice sagrado que abriga mais ou menos quinhões de capital quando seus possuidores não estão seguros quanto às alternativas de acumulação produtiva que se apresentam no cenário. Keynes, lendo em Marx o problema do salto mortal da mercadoria (i.e., da sempre possível e ameaçadora não realização da produção) denominou esse traço de caráter dos capitalistas como “preferência pela liquidez” e demonstrou que nele reside a mãe de quase todos os problemas que cercam esse colérico sistema em que estamos metidos.

Como deveria parecer óbvio a todo aquele que pisa a calçada da rua, o ambiente econômico que aflora da dinâmica capitalista é atravessado do início ao fim por inescapáveis incertezas, pois nada pode garantir que as inversões produtivas alcancem plenamente o lucro que era planejado no momento em que se decidiu imobilizar capital. Se assim for, deve-se considerar que ao menos uma fração do capital não seja empenhada em processos de acumulação produtiva, ficando preservada em sua forma líquida (olha a moeda aí!). O problema é perturbador porque, embora cada capitalista individual possa decidir soberanamente o quanto de sua riqueza deseja imobilizar em um processo de acumulação produtiva (comprando trabalho, máquinas e insumos), é ao mesmo tempo incapaz de controlar ou sequer prever o quanto de capital será investido pelo conjunto da classe capitalista. Dessa anarquia das decisões de investir, resultam dois problemas da maior gravidade: (1) periódicas e imprevisíveis crises de acumulação e (2) a prevalência de um padrão comportamental que prima pela aversão ao risco, cujo reflexo em termos agregados é a tendência ao subemprego das forças produtivas.

Dito isso, e partindo do entendimento de que a função “reserva de valor” não apenas deve ser considerada, como deve ser percebida como crucial na formulação das políticas econômicas, vale refletir sobre certas implicações desta particular função da moeda no campo da economia política.

Por servir como “equivalente geral da riqueza” que, em última instância, permite estabelecer o balanço entre as relações de propriedade em nossa sociedade, a moeda atua como a chave de comando (o comutador) que estabelece as hierarquias de poder entre países, blocos de capital, modalidades de ativos e classes sociais. Não por outra razão, a gestão da moeda, ou melhor, a manutenção artificial de sua escassez, é antes de mais nada um instrumento político, de preservação do valor relativo da riqueza e, consequentemente, da luta de classes. Por isso, ao contrário do que propõe a autocrítica tardia e meritória de Lara Resende – e de seus colegas da MMT –, o anacronismo do pensamento econômico dominante não deve ser imputado a equívocos teóricos que por ventura lhes encantavam, mas antes à sua pertinência para manter o jugo do capital sobre os interesses gerais da sociedade.

Em outras palavras, o que Lara Resende não se atreve a dizer – e talvez até mesmo conceber – é que o debate em torno da gestão da moeda é tão somente a epiderme de um conflito muito mais profundo e crítico a respeito do poder relativo das classes no capitalismo. Para o polo dos possuidores da riqueza, não apenas é imprescindível manter o torniquete privado (i.e., o banco central independente) regulando a quantidade de moeda que circula na economia, como é fundamental guardar em segredo o poder que dispõem de decidir acumular riqueza em forma líquida (eis a moeda como reserva de valor), especialmente quando a produção se esfarela e o desemprego grassa.

 

*Marcelo Manzano é economista, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, pós-doutorando do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit/IE/Unicamp) e coordenador da Maestría Estado, Gobierno y Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO Brasil).

A busca da economia ética, por Jospeh Stiglitz

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É através do nosso sistema político que as regras da economia são estabelecidas, e quando os resultados dessas regras são inaceitáveis – como na crise de 2008 – as consequências devem ser abordadas e resolvidas através de mudanças radicais.

Agora está claro que algo está fundamentalmente errado com o capitalismo moderno. A crise financeira global de 2008 mostrou que o sistema atualmente construído não é nem eficiente nem estável. Se uma série de dados ainda não nos convenceu de que, durante quarenta anos de crescimento econômico lento nas economias avançadas, os benefícios foram majoritariamente superiores aos 1% – ou 0,1% -, os votos anti-establishment nos Estados Unidos e no Reino Unido certamente deveria. Os principais economistas, governadores dos bancos centrais e políticos centristas de Blair e Clinton, que nos colocaram e mantiveram esse curso sombrio e declararam confiantemente que a globalização e a liberalização do mercado financeiro trariam crescimento sustentado e benefícios financeiros para todos, foram profundamente desacreditados.

Considerando a devastação provocada por políticas financeiras equivocadas, ao longo da última década em particular, poder-se-ia razoavelmente esperar uma revolução na profissão de economia semelhante à keynesiana no rescaldo da Grande Depressão. Mas tendemos a esquecer que, nos anos 1930, à medida que a economia afundava cada vez mais na depressão, muitos economistas nos EUA e no Reino Unido se atinham ao laissez-faire. Os mercados se corrigiriam, disseram eles; não há necessidade de se intrometer. E mesmo depois de John Maynard Keynes brilhantemente articulado o que estava errado, e como as ações do governo poderiam corrigir as coisas, um grande número de economistas não queria seguir suas prescrições, por medo ideológico de intervenção excessiva do governo. Portanto, não é surpresa, na verdade, que a resposta da profissão de economia à crise de 2008 tenha sido lenta e hesitante.

É assim que a disciplina funciona. Cinco anos antes da crise, o economista ganhador do Prêmio Nobel, Robert Lucas, capturou o espírito da profissão quando afirmou orgulhosamente que “a macroeconomia… teve sucesso: seu problema central de prevenção da depressão foi resolvido, para todos os efeitos práticos, e tem de fato resolvido por muitas décadas ”. Para ser claro: com isso, Lucas não quis dizer que o problema havia sido resolvido por Keynes e seus discípulos, mas pelos seguidores de outro ganhador do Prêmio Nobel, Milton Friedman, no que veio a ser chamado de “nova economia clássica” e “negócios reais”, “ciclos ”(essencialmente a ideia de que choques econômicos são respostas eficientes do mercado). E enquanto muitos desses economistas friedmanistas permaneceram extraordinariamente aquiescentes após a crise, a ideologia e os conjuntos de crenças que eles impulsionaram e que têm responsabilidade significativa pela crise permanecem vivos e bem.

É por isso que esses três livros bem escritos de eminentes estudiosos são muito bem-vindos. Juntos, eles montam um ataque convincente à ortodoxia estabelecida – convencendo, pelo menos, àqueles que não estão ligados às teorias desacreditadas – e propõem remédios para corrigir algumas de suas falhas. Suas idéias, muitas delas originais e intrigantes, fornecem uma base para a tão necessária reforma de nossa economia e da profissão econômica. Paul Collier, por exemplo, em O Futuro do Capitalismo: Enfrentar as novas ansiedades propõe um imposto não apenas sobre a terra urbana – sobre as rendas que se acumulam como resultado do aumento da produtividade da aglomeração econômica em nossas prósperas cidades – mas sobre as altas renda dos trabalhadores urbanos que compartilham dessa prosperidade (veja o artigo de Collier no TLS, 27 de janeiro de 2017). Mesmo assim, mesmo tomadas em conjunto, essas idéias estão longe de ser abrangentes ou suficientemente desenvolvidas para fornecer um paradigma alternativo às doutrinas econômicas neoliberais que predominaram nas últimas décadas.

Nosso atual sistema econômico é freqüentemente chamado de capitalismo, um termo – como Fred L. Block aponta no Capitalismo: O futuro de uma ilusão – que a esquerda uma vez usou pejorativamente e a direita agora defende como se fosse uma estrutura imutável e nobre que proporciona um crescimento milagroso e interminável, do qual todos se beneficiam, ou se apenas o governo não interferisse. Mas todas as premissas subjacentes deste termo são erradas: nenhuma economia, e certamente nenhuma economia moderna, tem um setor privado que funciona no vácuo. O governo está bem ao lado dele, promulgando regras e regulamentos, reforçando os padrões comerciais, apoiando o sistema bancário e estabilizando a economia de mercado. O capitalismo não é um sistema rígido. Está sempre mudando. E as promessas feitas por seus defensores mais redutivos – de que a desregulamentação, a privatização e a globalização trarão o bem-estar para a maioria dos cidadãos em todos os países – provaram estar terrivelmente erradas. (A globalização, para seu crédito, contribuiu para a enorme diminuição da pobreza global: os sucessos na Ásia Oriental, em particular na China, onde cerca de 740 milhões foram retirados da pobreza, não teriam sido possíveis sem ela. a globalização mal administrada e injusta, com grandes subsídios agrícolas para as fazendas corporativas nos países avançados, prejudicou os mais pobres dos pobres: trabalhadores rurais nos países menos desenvolvidos.)

Duas outras crises acompanham a crise em nossa economia. O primeiro é uma crise em nossa democracia, pois os dois são inseparáveis. É através do nosso sistema político que as regras da economia são estabelecidas, e quando os resultados dessas regras são inaceitáveis – como na crise de 2008 – as conseqüências devem ser abordadas e resolvidas através de mudanças radicais. E esses tipos de mudanças têm que ser feitos através do sistema político – caso contrário, as coisas só vão piorar, especialmente quando uma terceira crise de interconexão é levada em consideração: o meio ambiente. Infelizmente, nenhum desses livros enfrenta o fracasso do nosso sistema em abordar a questão existencial do momento: a mudança climática.

Em um nível, eu simpatizo com o chamado de Collier para me afastar da ideologia e do extremismo, e sua ênfase no pragmatismo. Ele é um centrista de esquerda forte, moralmente motivado e se opõe aos excessos de ambos os extremos. Afinal, qualquer estudante de revolução sabe onde essas ideologias quase inevitavelmente levam. Mas foi o pragmatismo – o pragmatismo de Tony Blair e Bill Clinton, apoiado pelo que eles chamariam de “políticas baseadas em evidências” – que nos ajudaram a entrar na bagunça atual, e o incrementalismo não nos levará para fora. Quando sua geração e a geração de seus pais estavam crescendo, a era progressista da América e o New Deal trouxeram mudanças radicais (embora, para todos os epítetos lançados contra eles, longe de serem revolucionários) das quais todos nós nos beneficiamos enormemente. Da mesma forma, na Grã-Bretanha, as reformas foram feitas durante o governo trabalhista pós-guerra de Clement Attlee. O mesmo vale para a macroeconomia keynesiana. Todas essas políticas transformaram nossa concepção do papel do Estado e nos mostraram as possibilidades, até mesmo as necessidades, da ação coletiva. Imagine quão pior seria o mal-estar de hoje se não fosse pelas ações radicais das gerações anteriores.

Collier começa seu livro com uma descrição contundente das divisões que separam tantos países desenvolvidos, divisões entre cidades prósperas como Londres e Nova York e cidades provinciais e áreas rurais, e entre as elites educadas e os cidadãos com escolaridade limitada. Não muito tempo atrás, a teoria econômica predominante era “convergência”. Isso argumentava que havia forças econômicas subjacentes que reduziriam as discrepâncias na renda entre diferentes lugares, à medida que o capital se deslocava dos países ricos para os pobres, dos trabalhadores dos países pobres para os ricos e o comércio elevava os salários não qualificados nos países em desenvolvimento e nos países desenvolvidos. . Este último ponto raramente foi enfatizado – pois previu que a globalização por si só, sem intervenções governamentais significativas, incluindo a redistribuição, poderia deixar piores as grandes regiões dos países avançados. Mas o raciocínio era direto, e deveria ter sido óbvio para qualquer um que tivesse tomado um curso de iniciante em economia: mão-de-obra e, especialmente, mão-de-obra não qualificada, era relativamente abundante em países em desenvolvimento e emergentes, o que significava que esses países seriam exportadores líquidos. bens com uso intensivo de mão-de-obra (especialmente bens que requerem mão-de-obra não qualificada) para países avançados. Como a produção desses bens declinou nos países avançados, a demanda por mão-de-obra (especialmente a mão-de-obra não qualificada) diminuiu, levando a salários mais baixos e desemprego mais alto. Como Collier nos mostra, em vez da convergência geral prevista, a evidência agora sugere um quadro mais complexo, com os mercados emergentes convergindo para os países avançados, enquanto as brechas se ampliam entre os cidadãos mais pobres e mais ricos dentro e entre os países.

Robert Skidelsky, cujo dinheiro e governo: Um desafio para a economia mainstream é mais voltado para economistas do que os outros dois livros em análise, concentra sua atenção em fracassos macroeconômicos – a incapacidade da economia para evitar crises decrépitas e seu corolário, alto desemprego. A crise de 2008 mostrou vividamente que Lucas estava errado. As flutuações que fizeram parte do capitalismo desde o início ainda estavam conosco. Enquanto economistas da direita, como Friedman, por muito tempo culparam o governo por essas flutuações – e nos Estados Unidos o fizeram novamente depois de 2008 – a esmagadora evidência mostra que os delitos do setor financeiro privado foram responsáveis ​​por provocar a recessão global. Naturalmente, o que o governo fez e o que não fez moldou as conseqüências dos fracassos do setor privado: a recusa do governo dos EUA de resgatar o Lehman Brothers desencadeou a crise financeira, enquanto a subsequente intervenção governamental impediu que a crise se transformasse em outra Grande Depressão. Aqueles que, como eu, criticam o resgate por causa do modo como foi feito, e não pelo fato de que foi feito. Poderíamos ter salvado os bancos e seus depositantes sem socorrer os banqueiros e seus acionistas e detentores de títulos. Skidelsky argumenta convincentemente que a desaceleração teria sido ainda mais bem administrada se os conservadores no Reino Unido e os republicanos nos EUA não mantivessem a política fiscal. Com taxas de juros reais negativas (taxas de juros ajustadas pela inflação) em meio à crise, esse era precisamente o momento para investimentos públicos robustos. Nas primeiras semanas de seu governo, em fevereiro de 2009, Barack Obama aprovou uma medida de estímulo aprovada pelo Congresso, no valor de US $ 787 bilhões, que incluiu gastos significativos em infraestrutura e seguiu isso com várias medidas menores, mas dada a escala, escopo e duração provável. da recessão, era improvável que a economia retornasse rapidamente ao pleno emprego. (Eu disse isso na época, e eventos subseqüentes provaram que isso era verdade.) Enquanto estava sob o Partido Trabalhista, o Reino Unido tinha medidas expansionistas mais modestas, que foram revertidas sob o governo de coalizão de David Cameron em 2010. Mesmo se a real “austeridade” fosse por vezes, menos grave do que aquilo que foi reivindicado, constituiu uma mudança na direcção errada, e o Reino Unido sofreu, como resultado, demorando muito tempo a emergir da recessão e depois a registar anos de crescimento lento. A noção de uma “contração expansionista” provou ser a quimera que economistas como Skidelsky disseram que seria. Haveria um duplo dividendo – rendas mais altas hoje e no futuro.

Até mesmo os republicanos da América concordaram que esse investimento era muito necessário. Alegadamente, eles se preocuparam com o déficit resultante, que é o que os reteve; no entanto, não foi o déficit, mas a ideologia que impulsionou sua oposição à política fiscal: eles queriam impedir que o Estado assumisse um papel crescente. Apesar da tão alardeada promessa de Donald Trump de investir em infra-estrutura, isso não parece ser algo que ele, e certamente seus colegas republicanos, levaram a sério, e sua mais recente (ainda não realizada, e com virtualmente zero sua proposta, em fevereiro, para injetar US $ 200 bilhões fica bem aquém das várias promessas de trilhões de dólares que ele fez na campanha. Em contraste, quando, no primeiro ano da presidência de Trump, os republicanos tiveram a oportunidade de cortar impostos para bilionários e corporações, eles o fizeram com entusiasmo – mesmo quando aumentaram enormemente o déficit: até 2022, os EUA são esperados pelo Orçamento do Congresso. Escritório terá déficits de US $ 1,1 trilhão de dólares, totalizando quase 5% do PIB. E enquanto as estimativas oficiais colocam o aumento total do déficit nos próximos dez anos em cerca de US $ 1,5 trilhão, elas se basearam em cenários de crescimento que já estão perdendo sua credibilidade. Se o crescimento se mostrar mais fraco do que os números rosados, os déficits e a dívida aumentarão.

Todos os três livros dão destaque ao papel da batalha de idéias, explicando como as teorias equivocadas venceram a era de Reagan e Thatcher em diante. Block, por exemplo, detalha o papel desempenhado por vários equívocos sobre nosso sistema econômico e político, começando com o fundamentalismo de mercado (o que eu refiro em meu livro, Globalization and Its Discontents, 2002, como a crença quase religiosa de que os mercados, por conta própria , são eficientes, estáveis e, em certo sentido, justas). Ele mostra com razão que, sem as restrições do governo, os ricos e poderosos moldam o capitalismo para obter vantagem, minando a competição e explorando os outros, acabando por minar o próprio sistema capitalista. Adam Smith reconheceu isso, mas seus seguidores nos últimos dias parecem esquecer-se disso.

Aqui, Skidelsky se junta à sua análise macroeconômica: não há presunção, argumenta Skidelsky, que as economias de mercado obtêm o equilíbrio certo – ou seja, demanda agregada suficiente para garantir pleno emprego sem inflação, uma espécie de economia de ouro de não muito pouco, não muito Muito de. Jean-Baptiste Say afirmou em 1800 que os mercados atingem essa economia de Cachinhos Dourados; a história mostrou que ele estava errado. Keynes, seguindo uma série de escritores anteriores, incluindo John Stuart Mill, explicou as falácias da teoria de Say. Skidelsky acrescenta a essa refutação uma exposição clara e útil: os indivíduos, especialmente quando enfrentam altos níveis de incerteza sobre o futuro, podem decidir converter o poder de compra que ganham da produção de bens em dinheiro, ou, ainda, em qualquer bem não produzido, como a terra. Nesse caso, a demanda agregada por bens produzidos será menor que a oferta. Os macroeconomistas modernos “resolvem” o problema assumindo-o: os modelos-padrão presumem que, de algum modo, a economia está em equilíbrio, com a demanda por trabalho e bens de alguma forma apenas igualando a oferta. O fato de alcançarmos esse belo equilíbrio é, como a crença na própria eficiência do mercado, uma questão de profunda convicção religiosa e o caminho que seguimos para chegar a uma questão de revelação mística. Se surgir um problema nesta teoria abrangente – se houver desemprego, por exemplo – a resposta é simples: culpe a vítima, significando trabalhadores, por exigir salários muito altos, ou migrantes, por inundar o mercado de trabalho. Se apenas os salários fossem suficientemente flexíveis, diz a teoria, ou fronteiras suficientemente proibitivas, a economia estaria sempre em pleno emprego. E se tudo o mais falhar, culpe o governo por estragar tudo.

Como Block coloca, há uma ilusão de que a democracia ameaça a economia; isso levará o governo a inevitavelmente estragar as coisas. Friedman tentou culpar a Grande Depressão pelas políticas equivocadas dos bancos centrais: sua contração da oferta monetária, argumentou ele, foi o que derrubou a economia. Sua análise é agora entendida como ilusória. E o que aconteceu depois do colapso do Lehman Brothers pode fornecer a prova mais convincente. Ninguém poderia imaginar até que ponto os bancos centrais em todo o mundo expandiram a oferta monetária em 2008 e 2009, e ainda assim o mundo experimentou uma profunda recessão. Assim, também, a direita hoje tentou culpar a recessão de 2008, com suas origens na crise do subprime, no incentivo do governo à propriedade imobiliária. E mais uma vez os argumentos foram refutados: ninguém forçou os bancos a fazer empréstimos ruins, a emprestar uma quantia que estava além da capacidade de pagamento dos compradores – na verdade, mesmo encorajando a casa própria, o governo também encorajou a prudência. A Comissão de Inquérito da Crise Financeira, nomeada pelo Congresso para investigar as causas da crise, concluiu que esses programas de propriedade não foram os fatores que originaram a crise financeira; foram as más ações do setor financeiro privado.

Ao mostrar que a intervenção do governo pode evitar os piores excessos do desemprego, Keynes, sem dúvida, salvou o capitalismo, e o mesmo deve ser verdade hoje em dia. O capitalismo deformado, no qual a renda sobe para os que estão no topo, enquanto os salários estagnam e a qualidade de vida se desintegra para a maioria dos cidadãos – um estado de coisas apenas aumentado desde 2008 – não é política ou socialmente sustentável. Se o capitalismo deve ser salvo, o governo terá que mostrar que pode ser reformado, que o capitalismo pode proporcionar prosperidade para todos ou pelo menos para a maioria dos cidadãos.

Há muitos elementos dessa agenda de “reforma”. Collier acertadamente leva as corporações modernas à tarefa por seu foco único no valor do acionista – o que muitas vezes simplesmente significa alinhar os próprios bolsos do CEO. E Block corretamente critica a doutrina da “ganância é boa”, uma idéia que na verdade tem algum pedigree intelectual. Isso aconteceu por meio de uma extensão do teorema da mão invisível de Adam Smith – de que a busca de interesse próprio de indivíduos e empresas levaria, como que por uma mão invisível, ao bem-estar da sociedade. (Como já observamos, Smith entendia as limitações dos mercados não regulamentados, observando, por exemplo, a tendência das empresas de conspirar para aumentar os preços.) Assim, as empresas deveriam simplesmente maximizar seu valor de mercado de ações, aconteça o que acontecer. Para economistas como Friedman, era errado, quase imoral, que as empresas se comprometessem com a responsabilidade corporativa, não conseguindo baixar os salários. Essa noção desempenhou um papel fundamental na reformulação das normas e do arcabouço legal em torno do capitalismo. Foi novamente uma agenda política, com fortes consequências para o crescimento e distribuição. As empresas se concentraram no que poderiam fazer para aumentar o valor das ações hoje, sem pensar no futuro. Isso levou tanto à contabilidade criativa – os investidores enganados a acreditar que as perspectivas futuras da empresa eram melhores do que de fato eram – quanto a diminuir o investimento em fábricas, equipamentos e pessoas. O foco nos retornos de curto prazo – graças às ideias de Friedman – levou a um crescimento mais lento. Uma empresa não pode ter um crescimento de longo prazo baseado em pensamento de curto prazo.

A análise de Friedman baseou-se em argumentos superficiais que, na época em que ele os impulsionou, já haviam sido desacreditados por avanços simultâneos na teoria econômica. Por exemplo, a doutrina da “ganância é boa” foi refutada pelo trabalho (feito na segunda metade do século passado por Kenneth Arrow, Gérard Debreu, Bruce Greenwald e eu) que mostrou que as condições sob as quais o teorema da mão invisível de Smith era true eram tão restritivas que tornavam o teorema irrelevante como uma questão prática. Em suma, esta pesquisa mostrou que os mercados não eram eficientes em geral sempre que a informação era imperfeita e os mercados incompletos – o que é sempre. Se alguém precisasse de evidências empíricas de que a ganância desenfreada era ruim para a economia, bastava olhar para as ações dos banqueiros no período que antecedeu a recessão de 2008: sua voracidade levou a economia global à beira da ruína. Mais uma vez, legisladores, legisladores e políticos pró-negócios da direita não prestaram atenção: seus argumentos econômicos eram simplesmente uma fachada, um meio para um mercado menos regulado que lhes proporcionaria mais oportunidades de lucros, mais chances de explorar e tirar vantagem de outros. .

Uma força desses três livros é que eles saem dos limites estreitos da economia. Essa abordagem é natural para Block, que vem de um departamento de sociologia e cuja visão está profundamente enraizada no trabalho do pensador vienense Karl Polanyi. Mas também não é surpresa para Collier, um eminente economista de desenvolvimento que está particularmente interessado em reconciliação pós-conflito e conflito. Collier reconhece que o colapso econômico é causa e conseqüência do colapso social; mas ele é rápido demais para culpar o paternalismo, os utilitaristas e os globalistas pelas doenças da sociedade. Há razões mais profundas para isso – por exemplo, o colapso do engajamento cívico e o sentimento de isolamento que permeia. Há muitas explicações estruturais que considero mais plausíveis do que aquelas que Collier foca, incluindo os impactos de muitas das novas tecnologias, os extremos do individualismo enfatizados pelo Reaganismo / Thatcherismo e as vertentes dominantes do neoliberalismo, e o declínio da confiança pública por eventos como as guerras do Iraque e do Vietnã e Watergate.

Collier acredita que uma catastrófica falta de moralidade – evidenciada pela ganância é boa doutrina – está no cerne do capitalismo moderno. Ele pede uma família ética, uma empresa ética e uma globalização ética. Essa é a abordagem correta, mas, embora possamos discutir se ele definiu esses conceitos adequadamente, ou até mesmo forneceu bases filosóficas suficientes, a questão central é: como podemos alcançar essa sociedade ética? Collier não responde de forma persuasiva, nem vai longe o bastante para expor os lapsos éticos das economias e sociedades capitalistas do século XXI. Afinal de contas, o que podemos dizer sobre a ética de uma sociedade que parece estar disposta a comprometer a saúde e o bem-estar das futuras gerações ao consumir, com carência, mais bens materiais intensivos em carbono hoje? Os manifestantes de colete amarelo em Paris, enquanto clamam contra um imposto verde progressivo destinado a garantir o futuro do planeta, estão, com razão, imaginando como terão dinheiro suficiente para chegar ao final do mês. O que mostra que um capitalismo verdadeiramente ético deve abordar simultaneamente a desigualdade estrutural e o meio ambiente. O tempo não está do nosso lado. O tipo de pragmatismo e centrismo defendido por Collier não servirá se quisermos reagir com prudência aos riscos reais que enfrentamos. O Green New Deal, proposto por um grupo de jovens democratas nos EUA, está mais próximo da meta: uma mobilização de recursos da magnitude que cabe à tarefa e feita de forma a reestruturar a economia para que os “coletes amarelos” do mundo ”Não estão mais vivendo as vidas precárias que foram. Eu acredito que esses jovens democratas estão certos. De fato, haveria um enorme aumento na renda nacional se eliminássemos a discriminação e o desemprego, reformassemos nossos mercados de trabalho para facilitar que mais mulheres e trabalhadores mais velhos participassem em igualdade de condições no local de trabalho e reduzissem as distorções decorrentes de empresas com mercado. poder. Este aumento de renda seria um longo caminho no sentido de fornecer os recursos necessários para o Green New Deal. Sem dúvida, precisaríamos fazer mais: redistribuindo recursos – inclusive reduzindo o consumo excessivo e conspícuo dos ricos por meio de impostos mais progressivos e reduzindo o efetivo militar (a segurança global é a ameaça real à segurança no longo prazo). Essa agenda alcançaria não apenas um crescimento maior, mas uma prosperidade mais equitativa e sustentável.

Collier está certo em se preocupar com o extremismo, e o nativismo e a fealdade sintetizados por Trump – o que Collier chama de “nacionalismo excludente”. Mas seu diagnóstico da causa principal é equivocado. Ele conclui seu livro com o seguinte argumento: “Evitando o pertencimento compartilhado e o patriotismo benigno que ele pode apoiar, os liberais abandonaram a única força capaz de unir nossas sociedades aos remédios. Inadvertidamente, imprudentemente, eles o entregaram aos extremos charlatães, que estão alegremente torcendo-o para seus próprios propósitos distorcidos ”. Esta posição parece injusta. Esses não são os liberais que conheço, que lutaram para enriquecer a vida coletiva de nossas nações. Uma pessoa pode ser cidadã do mundo, cidadã do país e da mesma cidade ao mesmo tempo. Os economistas – e especialmente os liberais – reconhecem há muito tempo a importância do capital social e da confiança, a cola que não apenas mantém a sociedade unida, mas faz a economia funcionar.

Não é inevitável que nossa economia de mercado misto continue em sua forma atual no Reino Unido e nos EUA. De fato, podemos olhar para um capitalismo mais temperado na Escandinávia e, pelo menos de tempos em tempos, em outros lugares: o atual governo da Nova Zelândia está mostrando o caminho. Até mesmo seu orçamento é formulado em termos de “bem-estar” nacional. Os EUA e o Reino Unido talvez tenham liderado o caminho errado ao criar uma versão extrema do capitalismo, muitas vezes em nome de doutrinas neoliberais aparentemente “centristas” e pragmáticas. Há pouca dúvida em minha mente de que podemos criar um capitalismo mais ético, projetado para moldar uma sociedade mais desinteressada – e o resultado será uma sociedade menos povoada por indivíduos egoístas. Mas isso não vai acontecer sozinho. E isso não vai acontecer com palestras corporativas sobre responsabilidade social. As corporações são especialistas em greenwashing, ou alegam falsamente ser ambientalmente responsáveis, porque é um bom negócio. A Apple e a Starbucks falam sobre responsabilidade corporativa e, em algumas esferas, agem com responsabilidade. Mas a verdade subjacente é a seguinte: onde Collier enfatiza a importância da obrigação mútua, a Apple, a Starbucks e muitas outras multinacionais estão dispostas a aceitar, mas não a retribuir em igual medida. O primeiro elemento da responsabilidade social é pagar seus impostos, e essas empresas e outros como eles empregaram a mesma engenhosidade que usaram para produzir produtos melhores para evitar a tributação.

É por isso que a criação deste novo sistema só acontecerá através da política – o que, por sua vez, é o motivo pelo qual o futuro do capitalismo, nossas democracias e o mundo estão inextricavelmente ligados. Vimos o que o capitalismo disforme tem feito às democracias nos EUA e em outros lugares e como as perversões eleitorais resultantes distorcem nossas economias. A triste realidade é que as coisas podem piorar. O presidente Jair Bolsonaro do Brasil é apenas o mais recente autoritário no cenário global.

Se quisermos alcançar um capitalismo ético, precisamos de uma política ética, que respeite os princípios básicos dos valores democráticos. Novamente, isso não é provável que aconteça sozinho. Podemos ver isso claramente nos EUA, onde a direita tem se engajado em uma agenda sistemática de privação de direitos e desempoderamento – limitando o voto aos cidadãos que se opõem às ideias da direita, limitando a capacidade dos opositores de traduzir votos em poder político, e limitando o que pode ser feito se seus oponentes obtiverem poder político (ou como Nancy MacLean colocou em seu livro com esse título, colocando “a democracia acorrentada”; ver TLS, 6 de julho de 2018). Isso é especialmente fácil nos EUA, onde a Suprema Corte altamente politizada julga à direita ler na Constituição novos direitos para os ricos e menos direitos para os cidadãos comuns: por exemplo, o direito das corporações ricas de fazer contribuições de campanha desenfreadas enquanto circunscrevem os direitos dos cidadãos. trabalhadores para organizar ou indivíduos para processar corporações que abusaram deles. Mesmo os democratas de alguma forma conseguiram superar as desvantagens eleitorais gerrymandering, o Senado dos EUA (em que populações em pequenos estados são super-representados) e o colégio eleitoral (que assegurou que ambos os presidentes republicanos eleitos neste século assumiram o cargo com uma minoria de votos ), eles só poderiam mudar essas e outras políticas obtendo novas decisões da Suprema Corte.

Esses três livros naturalmente atribuem um papel fundamental ao poder das idéias. Mas os interesses também importam. A economia tem a ver com crescimento, mas também com batalhas distributivas – e, como ilustra a devastadora Lei de Cortes de impostos e Empregos de Trump, de 2017, a última mostrou-se mais importante do que ideias ou crescimento. Um pequeno estado é uma serva para esses interesses. Os cidadãos com poder econômico simplesmente não querem um estado que os impeça de exercer esse poder. As empresas que exploram outras pessoas não querem um governo capaz de impedi-las de se envolver em atividades nefastas ou de redistribuir seus ganhos ilícitos. As empresas de petróleo, produtos químicos e carvão não querem um estado poderoso o suficiente para impedi-los de destruir nosso planeta.

Em suas tentativas de circunscrever o Estado, a direita também destrói a capacidade de uma nação de fazer o que deve para que todos os seus cidadãos prosperem. Os enormes aumentos nos nossos padrões de vida nos últimos 250 anos são baseados em avanços no conhecimento – cuja base é a pesquisa básica – um bem público que deve ser fornecido publicamente através de universidades e outras instituições de pesquisa financiadas pelo setor público. Nossa prosperidade também repousa sobre organização social, nosso estado de direito, democracia e sistemas de freios e contrapesos, todas as funções públicas essenciais. Em seu egoísmo, mesmo aqueles que estão no topo podem estar se prejudicando: eles estariam melhor com uma fatia menor de um bolo maior e, como todos os outros, se beneficiariam de uma economia e sociedade mais estáveis e sustentáveis. Para não mencionar um planeta habitável.

Agora é hora de encontrar um caminho entre o incrementalismo, por um lado, e a revolução violenta, por outro. Uma mudança radical nas relações econômicas e de poder é possível. Também é existencialmente urgente. Essa é a única coisa que salvará o capitalismo de si mesmo e dos capitalistas que o destruiriam involuntariamente, e a Terra junto com ele.

A redescoberta da nação: Nacionalismo econômico volta a ser lembrado

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Luiz Carlos Bresser Pereira

A grande crise que começou em 2013 dura até hoje. No plano econômico, ela é estrutural; decorre do fato de desde os anos 1980 tanto o Estado quanto o setor privado terem perdido capacidade de investir; no plano político, ela começa com as grandes manifestações de junho de 2013 que marcaram o rompimento da classe média brasileira com o pacto democrático-popular das Diretas Já.

O rompimento da classe média decorreu da incapacidade dos governos, tenham sido eles de centro-direita ou de centro-esquerda, de retomar o desenvolvimento econômico interrompido em 1980.

A partir de 1990, no quadro da democracia, com a preferência pelo consumo imediato, os interesses financeiros prevaleceram sobre o componente desenvolvimentista do pacto, e a classe média se viu espremida entre uma classe alta, financeiro-rentista, que se beneficiava dos juros e do câmbio apreciado, enquanto os pobres eram beneficiados pelas políticas sociais e pelo aumento do salário mínimo.

O rompimento da classe média ocorreu em 2013, quando essa classe deu uma grande guinada para a direita e se submeteu ao neoliberalismo. Quando, em 2014, o PT ganhou as eleições por pequena margem, não obstante haver perdido o apoio das elites econômicas, esse partido e seu líder foram transformados em “inimigos públicos”, aprofundando a crise política. O desencadeamento de uma crise financeira e fiscal nesse mesmo ano de 2014, cuja culpa foi atribuída ao governo Dilma Rousseff, agravou essa guinada.

Ocorre, então, uma sequência de conluios que aproveitam da hegemonia neoliberal. Primeiro, o vice-presidente Michel Temer, para obter o apoio das elites e da classe média e lograr o impeachment, encomendou a economistas neoliberais o documento “Uma Ponte Para o Futuro”; ao mesmo tempo, para se legitimar as violências contra o Estado de Direito da Operação Lava Jato, o então juiz Sérgio Moro e seus procuradores escolheram o PT e Lula como seus alvos; finalmente, e segundo a mesma lógica, o candidato Bolsonaro escolheu um economista radicalmente ortodoxo, Paulo Guedes, para alcançar a Presidência.

Esses três conluios não foram apenas contra a esquerda, foram contra o Brasil. Os governos que deles resultaram colocaram todas as suas fichas em uma incompetente política fiscal procíclica de corte dos investimentos públicos, mostrando-se, assim, incapazes de adotar as políticas necessárias para a retomada do desenvolvimento econômico, enquanto procuravam vender as empresas públicas monopolistas a estrangeiros.

Hoje, o fracasso desse conservadorismo e dessa dependência radical aos Estados Unidos está minando a hegemonia neoliberal. E vemos, de repente, ressurgir a ideia da nação brasileira. Vemos intelectuais e políticos tanto na centro-esquerda quanto na centro-direita, que haviam “esquecido” o nacionalismo econômico, voltarem-se para ele —voltarem-se para uma nação que, não obstante as lutas inerentes à sociedade civil, seja capaz de unir os brasileiros em torno de um projeto nacionalista e desenvolvimentista.

Não há desenvolvimento econômico sem nacionalismo econômico, mas o nacionalismo implica um projeto de desenvolvimento econômico que tenha como principal característica macroeconômica a rejeição radical de déficits em conta corrente que a taxa de câmbio apreciada gera no longo prazo. Não basta para um país a competitividade técnica (a produtividade); é preciso que o país tenha também competitividade monetária, ou seja, uma taxa de câmbio competitiva que assegure às empresas brasileiras igualdade de condições na concorrência com as empresas de outros países.

Não basta ser contra a venda dos móveis da família. É preciso que a família brasileira abandone a não-política de um regime econômico voltado para o consumo e o substitua por um regime de política econômica voltado para a produção e a competitividade. O nacionalismo econômico só faz sentido quando o país, além de rejeitar a dependência, abandona a preferência pelo consumo imediato e se dispõe a competir no nível internacional.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Pensamentos, influências e as companhias espirituais

Os teóricos da autoajuda sempre destacaram a importância do pensamento positivo para o equilíbrio emocional e para as conquistas que cada pessoa almeja nesta sociedade, o pensamento tem uma importância central para a vida dos indivíduos, aqueles que controlam seu pensamento e vibram de forma positiva conquistam tudo que querem e se tornam mais eficientes e felizes, justamente tudo que almejamos em uma sociedade dominada pelo poder do dinheiro e pelos prazeres da matéria e das sensações.

O pensamento é força criadora, pensar positivamente pode auxiliar em nosso crescimento profissional, auxiliando nossas conquistas e nosso crescimento corporativo, esta fórmula a muito fora compreendida pelos teóricos da gestão e foi vendida como um grande mantra pessoal, levando muitos a acumular fortunas e prestígio na sociedade do consumo e do entretenimento.

A Doutrina Espírita, desde sua codificação, sempre destacou a importância do bem pensar, do reflexionar e do conhecimento interno para nosso crescimento e desenvolvimento pessoal, mostrando-nos a importância do pensamento como força de atração criadora e realização de sonhos e na construção de perspectivas salutares para a vida e o futuro imediato.

Como nos mostra Emmanuel, no livro Pão Nosso, psicografia de Francisco Cândido Xavier: “Pensar é criar. A realidade dessa criação pode não se exteriorizar-se, de súbito, no campo dos efeitos transitórios, mas o objeto formado pelo poder mental vive no mundo íntimo, exigindo cuidados especiais para o esforço de continuidade ou extinção”.

Num mundo marcado pela competição crescente e pela busca do prazer, onde os desejos são facilmente realizados e as condutas individuais são, na sua maioria, pautadas, pelos interesses do dinheiro e do poder material, o pensamento deve ser construído com grande intensidade pelas pessoas, como uma forma de atrair energias saudáveis para equilibrar o ambiente e buscar alcançar os ganhos da sociedade contemporânea.

Vivemos numa sociedade muito competitiva, os valores muitas vezes são deixados de lado em prol de prazeres e satisfações momentâneas, como acreditamos nos prazeres imediatos, nos esquecemos de questões espirituais mais relevantes e nos esquecemos que somos espíritos em constante evolução, embora nosso corpo físico tenha uma limitação física e temporal, nos esquecemos que, num futuro muito próximo, estaremos de volta a roupagem material em busca do crescimento e do desenvolvimento, tudo isto nos foi revelado com a publicação de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, obra basilar da codificação espírita.

Na obra, O Livro dos Espíritos, nos foi revelado que somos espíritos que habitamos corpos materiais, a verdadeira face da vida se encontra no mundo espiritual, a matéria pode ser descrita apenas como um processo de crescimento individual, um momento necessário e imprescindível para a evolução de cada indivíduo, todos somos obrigados a passar por este momento de amplo crescimento e aprendizado em busca da evolução moral, emocional e espiritual.

O pensamento nos auxilia na organização das energias que atraímos para nosso convívio, se pensamos coisas saudáveis e salutares, atraímos estas energias que nos fazem muito bem, nos ajuda em nosso crescimento e nos aproxima de bons espíritos que nos protegem e nos inspiram em atitudes e comportamentos melhores, contribuindo para nosso desenvolvimento enquanto ser humano.

As energias salutares podem ser encontradas em bons pensamentos, no hábito da oração e nas atitudes saudáveis, na caridade e nos trabalhos assistenciais. Quando agimos de forma caridosa e buscamos auxiliar as pessoas em dificuldades, estamos nos capacitando para angariar boas energias e com elas renovamos nossos sentimentos e pensamentos, trazendo para perto de nós bons espíritos e amigos espirituais.

Quando temos atitudes negativas, pensamentos grosseiros e, muitas vezes, negativos e maldosos, atraímos para nosso convívio entidades e espíritos ora dominados por sentimentos menores, estes irmãos nos geram mal-estar e nos geram constrangimentos, muitos deles podem até nos dominar e comandar nossas atitudes e nossos comportamentos.

Na sociedade atual, marcada por sentimentos hedonistas e imediatistas, onde os sentimentos de concorrência e competitividade dominam e, na maior parte das vezes, não trazem embutidos valores mais sólidos e estruturados, os sentimentos negativos e os pensamentos agressivos dominam de forma acelerada, moldando as pessoas e motivando-as intensamente.

Nesta mesma sociedade, os pensamentos negativos estão atraindo espíritos desencarnados dotados de sentimentos e pensamentos equivocados, muitos irmãos desencarnados ainda não se conscientizaram de seu estágio atual, morreram e não compreenderam o que está lhes acontecendo, muitos chafurdam na lama e desconhecem as profundidades do pântano, com isso, atraem dores e ressentimentos em escalas crescentes.

Numa sociedade doente, como a que vivemos na contemporaneidade, marcada pela busca do lucro indiscriminado e pelos prazeres do dinheiro, os espíritos estão presentes em nossa vida muito mais do que imaginamos, muitos deles nos controlam e nos dominam, fazendo com que seus pensamentos desequilibrados dominem nossas atitudes e comportamentos. Como nos foi dito em O Livro dos Espíritos, os espíritos nos influenciam muito mais do que imaginamos, enquanto nos comportamos como seres dotados de uma única vida e não encararmos de frente a riqueza do mundo espiritual, corremos o risco de perpetuar um desequilíbrio constante entre os dois polos da vida, o material e o espiritual.

O pensamento é uma fonte criadora constante, os teóricos da autoajuda entenderam esta equação muito mais rápido do que os outros mortais, seus conhecimentos podem auxiliar os indivíduos em sua renovação e crescimento íntimos, mas para que este crescimento se materialize, é fundamental que os indivíduos busquem atrair bons espíritos e boas energias, sem estas dificilmente as teorias vendidas nos mercados da literatura de autoajuda encontrará ecos e resultados auspiciosos.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que como somos todos espíritos envoltos em corpos materiais, necessitamos auxiliarmo-nos mutuamente, precisamos construir uma evolução conjunta, todo progresso do ser humano está envolto em um desenvolvimento coletivo, somos entidades criadas para viver em comunidade e evoluir em comunidade, todos aqueles que dificultam o desenvolvimento da sociedade são expurgados para outros mundos, como nos foi retratado por Edgar Armond em Os exilados de Capela.

Na obra acima, a espiritualidade nos leva a conhecer a trajetória dos capelinos, estes irmãos dotados de grande crescimento intelectual e tecnológico, mas desprovidos de valores espirituais e de uma ética de responsabilidade coletiva, estes espíritos estavam dificultando o crescimento de seu mundo e, com isso, foram levados a mundo mais atrasados como forma de evoluir e valorizar suas conquistas em prol da coletividade, dando maior sentido para sua existência enquanto ser espiritual, dotado de valores emocionais sólidos e consolidados.

Como nos destaca Suely Caldas Schubert, no livro Obsessão e desobsessão: Profilaxia e terapêuticas espíritas: “Na qualidade do pensamento que emitimos, que cultivamos e que recebemos dos outros, aceitando-os ou não, está o ‘mistério’ da saúde ou da doença, da paz ou do desequilíbrio”

O pensamento deve ser visto como algo central na sociedade e no processo de crescimento espiritual dos indivíduos, diante disso, faz-se necessário destacar, que pensar positivamente exige trabalho incessante para a concretização de seus sonhos e de seus desejos, o pensamento positivo sem obras e trabalho consistente não nos garante as conquistas almejados no cotidiano.

Outro ponto interessante e fundamental a ser destacado, é que muitas conquistas não se efetivam por completo, muitos sonhos e desejos não se materializam como desejamos, isto acontece porque muitos de nossos desejos e de nossas vontades não nos trariam as vantagens no médio ou no longo prazo, sendo inviabilizadas por espíritos superiores que zelam pela nossa caminhada. Muitos de nossos desejos imediatos ou caprichos materiais não se viabilizam porque nos trariam ganhos ilusórios e num prazo posterior pode nos custar muito mais caro e nos trazer prejuízos e desequilíbrios enormes, diante disso, os bons espíritos evitam que estes desejos sejam materializados.

Neste momento, é importante refletir e compreender, que muitas das nossas vontades são apenas desejos imaturos de indivíduos tolos e inconsequentes, muitos desejos se realizados no momento podem nos levar a desequilíbrios e dores intensas num futuro muito próximo, diante disso, o auxílio dos bons espíritos pode evitar que nossas vontades inconsequentes se transformem em uma realidade assustadora.

O pensamento equilibrado é uma grande conquista dos seres humanos, embora saibamos que a razão e a racionalidade estão presentes nos indivíduos a uns quarenta mil anos, sabemos que a liberdade de pensar pode nos levar a equívocos generalizados ou auxiliar-nos em progressos imensuráveis, a liberdade é uma grande benção concedida por Deus e deve vir sempre junto com a responsabilidade, para merecermos a liberdade devemos assumir a responsabilidade.

Neste mundo contemporâneo percebemos pensamentos viciados e desequilibrados, na nossa caminhada escolhemos caminhos equivocados e percebemo-nos escravos das paixões mundanas e dos desejos imediatos e nos esquecemos que somos seres em constante evolução, e esta trajetória envolve vitórias e derrotas, mas nunca devemos esmorecer e nos esquecer que somos auxiliados constantemente por uma força propulsora que tende a nos levar pra frente, uns mais rápidos do que os outros, mas todos vão alcançar o progresso.

A obsessão, muito estudada na Doutrina Espírita, pode ser descrita como o pensamento a transitar e a sintonizar nas faixas vibratórias inferiores. A desobsessão é a mudança de direção do pensamento para rumos novos e construtivos, é a mudança do padrão vibratório, sob o influxo da mente, que optou por uma frequência mais elevada.

As dificuldades do mundo contemporâneo são constantes e vencê-las é fundamental para o progresso e o crescimento espiritual, nesta jornada rumo ao desenvolvimento do espírito, o controle e a domesticação do pensamento devem ser vistos como fundamentais, pensamento positivo nos leva em direção ao progresso e nos aproxima dos bons espíritos, enquanto sentimentos viciados e inconsequentes nos afasta do progresso espiritual e nos distancia dos bons espíritos.

 

 

 

 

Corporações: já vivemos uma distopia…

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Poder global das megaempresas manipula pessoas, devasta o meio ambiente e corrompe democracias. Uma ameaça a existência humana mais devastadora — e real — que a Inteligência Artificial. Podemos superá-la?

Por Jeremy Lent | Tradução: Simone Paz

Alguns dos principais pensadores de nossos tempos vêm soltando uma série de alertas sobre a ameaça da inteligência artificial dominar os humanos. Stephen Hawking profetizou que isso poderia ser “o pior acontecimento na história de nossa civilização”, a menos que encontremos uma forma de controlar o seu desenvolvimento. O bilionário Elon Musk fundou uma companhia para tentar manter os humanos um passo à frente no que ele considera uma ameaça existencial da Inteligência Artificial (IA).

O cenário que os aterroriza é que, apesar das boas intenções, terminemos criando uma força mais poderosa do que toda a humanidade, com um sistema de valores que não necessariamente incorpora o bem-estar social dos humanos. Quando essa força atingir uma massa crítica, ela poderá dominar o mundo, controlar as atividades humanas e, essencialmente, sugar toda a vida do planeta, enquanto se otimiza para seus próprios fins. O notável futurista Nick Bostrom nos dá o exemplo de uma superinteligência projetada para fabricar clipes de papel que poderia transformar toda a Terra em uma grande instalação industrial produtora de clipes.

Estes futuristas estão certos ao falarem de suas preocupações, mas se esquecem do fato de que os humanos já criaram uma força que está no caminho de devorar a humanidade e o planeta juntos, exatamente da forma em que eles temem. É a Corporação.

“Governado por corporações”

Quando as corporações foram inicialmente criadas, no século XVII, seus fundadores — assim como os engenheiros de software modernos — acreditavam que agiam com boas intenções. Os primeiros estatutos corporativos foram feitos apenas para limitar a responsabilidade do investidor à quantia de seu investimento, portanto, encorajando-os a financiarem expedições arriscadas para a Índia e para o Sudeste da Ásia. Porém, logo surgiu uma consequência imprevista, conhecida pelo seu perigo moral: com vantagens maiores do que os prejuízos, desatou-se um comportamento imprudente, que desencadeou uma série de grandes fraudes e a falência do mercado. Com isto, as corporações foram banidas temporariamente da Inglaterra, em 1720.

Thomas Jefferson e outros líderes dos Estados Unidos, precavidos pela experiência inglesa, desconfiavam profundamente das corporações e davam a elas contratos limitados com poderes muito restritos. No entanto, no turbilhão da Guerra Civil americana, industriais se aproveitaram da desordem para alavancar e generalizar a corrupção política e, assim, expandir sua influência. “Este não é mais um governo das pessoas, feito por pessoas e para as pessoas. É um governo de corporações, feito por e para corporações”, lamentou Rutherford Hayes, que virou presidente em 1877.

As corporações se aproveitaram completamente de sua nova autoridade e passaram a influenciar legislações estatais para que emitissem contratos perpétuos que lhes dessem o direito de fazer qualquer coisa que não fosse explicitamente proibida pelas leis. O ponto de inflexão em seu trajeto para a dominação ocorreu em 1886, quando a Corte Suprema denominou corporações como “pessoas” com direito à proteção da 14ª Emenda, que havia sido aprovada para dar direitos iguais aos antigos escravos, libertos após a Guerra Civil. Desde então, a dominação das corporações só tem sido otimizada pela lei, culminando no conhecido caso do Citizen United, em 2010, que liberou as restrições de gastos políticos das corporações em eleições.

Sociopatas com alcance global

Corporações, bem como uma Inteligência Artificial potencialmente desertora, não possuem interesses intrínsecos de bem-estar humano e social. São construções legais: entidades abstratas, projetadas, acima de tudo, com o objetivo final de maximizar os retornos financeiros para seus investidores. Se corporações fossem, de fato, pessoas reais, seriam sociopatas, completamente esvaziados de empatia, que é um elemento crucial do comportamento humano normal. Todavia, diferentemente dos humanos, corporações são teoricamente imortais, não podem ir para a cadeia e, no caso das maiores multinacionais, não podem ser restringidas pela lei de nenhum país de forma individual.

Com a incalculável vantagem de seus poderes sobre-humanos, corporações dominaram o mundo, literalmente. Cresceram de forma tão acentuada que um impressionante número de 69 das 100 maiores economias do mundo não são Estados-nações, mas entidades corporativas.

Corporações têm conseguido usar seus poderes transnacionais para ditar suas próprias condições a qualquer país do mundo. Como resultado de décadas de globalização, corporações podem explorar a livre movimentação de capitais para construir fábricas em países com sindicatos mais fracos ou distribuir plantas poluentes em países com leis ambientais inconsistentes, baseando suas decisões somente na maximização dos retornos para seus acionistas. Os governos disputam entre si para tornar seus países o mais atraente possível para o investimento corporativo.

As corporações manejam seus vastos poderes para controlar a mente dos consumidores, seduzindo-os para um estado de consumo sem fim. No começo do século XX, Edward Bernays, o grande cérebro do empoderamento corporativo, apresentou seu audacioso plano de jogo como “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões das massas, de forma organizada”. Declarou, ameaçador, que “aqueles que manipulam este mecanismo invisível da sociedade constituem um governo invisível, que é o verdadeiro poder dominante deste país”. As tenebrosas palavras de Wayne Chilicki, diretor executivo da General Mills, demonstram como a visão de Bernays tem se perpetuado: “Quando se trata de segmentar consumidores infantis, nós da General Mills… acreditamos em capturá-los bem cedo e tê-los conosco para a vida toda”.

O resultado desta apropriação da humanidade pelas corporações é um mundo fora de controle, onde a natureza é impiedosamente saqueada para extrair as matérias-primas necessárias ao aumento dos retornos dos acionistas num vórtex de crescimento econômico infinito, sem se preocupar com a qualidade da vida humana e sem consideração pelo bem-estar das futuras gerações.

Apropriação corporativa da governança global

Em vez de serem julgados pela sua destruição voraz, aqueles que dedicam suas vidas aos importantes senhores das corporações são recompensados com riqueza e elevados cargos com maior poder e prestígio. ExxonMobil, por exemplo, foi denunciada por ter mentido descaradamente sobre as mudanças climáticas, sabendo há décadas das suas consequências e, ainda assim, ter ocultado informações — condenando, deste modo, as gerações presentes e futuras à catástrofe. Longe de ir preso, Rex Tillerson (que foi o diretor executivo da ExxonMobil durante grande parte desse período), é hoje o Secretário de Estado dos EUA e coordena as relações globais do país mais poderoso do mundo.

De fato, o atual gabinete dos Estados Unidos representa a maior dominação até então vista de corporações no governo norte-americano, com cerca de 70% dos altos cargos preenchidos por executivos corporativos. Nas palavras de Robert Weissman, presidente da Public Citizen (organização liberal progressista de advocacia de direitos do consumidor, fundada em Washington), “no governo Trump, lobistas da indústria automobilística definem a política de transporte, a Boeing tem uma posição elevada no Ministério de Defesa, Wall Street controla as políticas financeiras e as agências regulatórias e advogados de defesa corporativa ocupam os cargos-chave no Ministério de Justiça”. Corporações estão entrando em acordos internacionais, com o objetivo de alcançarem seus interesses de forma mais eficaz. No Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2015, uma nova Global Redesign Initiative (Iniciativa de Reestruturação Global, na tradução), estabeleceu uma agenda para que as corporações multinacionais se envolvessem diretamente na governança mundial. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, apresentados com muito orgulho como uma proposta para reduzir a pobreza, em 2015, adotaram essa abordagem convidando corporações a se sentarem em sua mesa para discutir os impactos das políticas da ONU, pedindo mais globalização. Companhias de combustíveis fósseis têm se infiltrado nas conferências anuais das Nações Unidas sobre mudanças climáticas para assegurar-se de que não sejam prejudicados por algumas ações, mesmo com o planeta enfrentando as ameaças da catástrofe climática.

O fato das multinacionais terem assumido a administração mundial fez com que o bem-estar social fosse minado em todas as partes, na busca do lucro. Sem remorso algum, a Nestlé compra de comunidades rurais o domínio das reservas de água subterrânea para vendê-la engarrafada, deixando para essas comunidades a conta da limpeza ambiental e o resultado é que, em alguns países como a Colômbia, os refrigerantes são mais baratos do que a água. Como resultado dos produtos químicos vendidos por companhias globais de agronegócio, como a Cargill e a Monsanto, a ONU estima que a camada superior do solo só possa aguentar mais 60 anos de colheitas. Nestes casos, assim como em muitos outros, tanto os humanos como a terra são mera ração para o insaciável apetite de uma inteligência desumana e amoral, fora de controle.

Há uma saída

A posse da humanidade pelas corporações é tão abrangente que fica difícil visualizar qualquer outro sistema global possível. Porém, existem alternativas. Ao redor do mundo, cooperativas administradas por trabalhadores mostram-se tão eficientes quanto corporações — ou até mais — sem almejar, em primeiro lugar, a riqueza dos acionistas. A Cooperativa Mondragon, na Espanha, tem receitas que superam os 12 bilhões de euros, demonstrando que este tipo de organização pode dar muito certo.

Também há mudanças estruturais que podem ser feitas pelas corporações para realinhar seus sistemas de valores ao bem-estar humano. Contratos corporativos podem ser reformados e otimizados, para terem uma linha de fundo tripla, com resultados sociais, ambientais e financeiros — os chamados “três P”, de people (gente), planet (planeta) e profit (lucro). Uma certificação “benéfica” ou B-Corp, que mantém companhias dentro dos padrões de performance social e ambiental, está sendo cada vez mais adotada e, hoje, já é tida entre mais de 2 mil corporações em torno de 50 países.

Por fim, se queremos impedir que essa força tome o completo controle da humanidade, essas abordagens alternativas precisam ser sistematizadas para nossa governança nacional e internacional. Imagine um mundo em que contratos corporativos só pudessem ser reconhecidos se adotasse um “fundo de linha triplo” e onde processos judiciais ameaçassem os acionistas cada vez que uma companhia quebrasse uma de suas regras sociais ou ambientais. Até que isso aconteça, pode ser que o “pior acontecimento na história de nossa civilização” não seja o futuro desenvolvimento da Inteligência Artificial moderna, e sim a decisão de um grupo de políticos do século XVII, que desatou o poder da Corporação sobre uma humanidade desavisada.