Keynes volta a galope, Hayek no limbo da história por André Motta Araujo

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Jornal GGN, 03/04/2020

A História é fruto das grandes crises, dos cataclismas religiosos, bélicos, sanitários, da luta pelo poder, das ondas migratórias, das fomes provocadas por fenômenos naturais, fatores incontroláveis, gigantescos, muito maiores que ciclos econômicos naturais, processos menores apesar de aparentarem serem protagonistas da História.

O que é a China de hoje senão a expressão geopolítica produzida pela Revolução Comunista de 1949, que unificou um país até então dilacerado por senhores regionais, os “warlords” de Chiang Kai Shek roubando até o último grão de arroz dos camponeses? Os grandes cataclismas moldam a História e por causa, e gerado por eles, nascem gigantes com um Lord Keynes, que salvou a economia mundial nos anos 30. Parece que as crises criam seus grandes homens, produzidos antes, mas revelados pela crise.

KEYNES, UM HUMANISTA

Ao contrário do espirito mesquinho e pequeno de Hayek, apostando uma ideologia econômica em um vício do ser humano, a ganância, Keynes não tinha ideologia, pensava e agia de acordo com as circunstâncias, podia ser conservador e no momento seguinte ser heterodoxo inovador, depois voltando a ser ortodoxo mas sempre com inteligência, o Keynes do New Deal era um criativo de ideias novas e, em 1944, em Bretton Woods, inventou a catedral da ortodoxia econômica, o Fundo Monetário Internacional.

Como o costureiro capaz de desenhar vestidos longos para as grandes damas e na semana seguinte produzir uma coleção “pret a porter” ou o pianista clássico que também sabe tocar bossa nova, Keynes fazia parte das MENTES ECLÉTICAS, as únicas que representam a inteligência natural do ser humano. Os cérebros com ideias fixas, como os neoliberais de Hayek, não são inteligentes, são meros crentes de uma ideologia congelada no tempo e que nunca foi valiosa e muito menos é universal, uma receitinha que serve em algumas épocas e em alguns territórios, descartável quando aparecem os cataclismas como o vírus e as guerras dilacerantes.

Como o mundo pode aceitar pela boca de Mrs.Thatcher um sistema econômico baseado em DEFEITO do ser humano, um modelo baseado na ganância?

O homem deve visar seu aperfeiçoamento moral e não seu pecado como se esse fosse qualidade. O neoliberalismo é um mecanismo vicioso, mau na essência, porque não é lastreado no humanismo e na solidariedade, é calçado na ambição egoísta, apresentada como virtude, uma torção intelectual inaceitável, o que é ruim não pode virar bom.

A fragilidade moral do neoliberalismo é seu buraco no caso, no limite o excesso de ganância afunda o barco, todos não podem ser gananciosos ao mesmo tempo. O neoliberalismo é um aleijão social e moral que no fim de cada ciclo gera uma crise que, além de financeira, é também moral, provocada pelos excessos do egoísmo de mercado.

PENSAMENTO ECONÔMICO IDEOLÓGICO É UM CONTRASSENSO HISTÓRICO

Friedrich von Hayek, cientista político austríaco criou a ideologia do “mercado” como antídoto contra as tiranias que geraram a Segunda Grande Guerra. Em 1944 fundou a Sociedade do Monte Pelerin e publicou o livro-base O CAMINHO DA SERVIDÃO, bíblia dos avôs dos atuais neoliberais, movimento dos anos 70 lastreado em Hayek e apresentado como ideário contra o Estado Social Democrata Europeu. O grande defeito desse conjunto de ideias que formam a IDEOLOGIA DO LIVRE MERCADO é que não prevê crises.

Com crises tanto financeiras, como as de 2008, como epidêmicas, como a atual ou com guerras de todos os calibres, a ideologia neoliberal não funciona. E não funciona porque o ferramental da grande política, onde se insere uma política econômica, NÃO TEM IDEOLOGIA, depende das circunstâncias. Essa foi a grande visão de Keynes.

É infantil alguém pretender operar a economia a partir de uma ideologia universal, que serve para todas as geografias físicas e humanas, para todos os contextos políticos e sociais, a gestão da economia depende do território, de tipologia humana e social, do nível de educação, da índole do povo, cada contexto um tipo de política.

Keynes não foi o único grande pensador eclético em economia. Hjalmar Schacht, economista alemão era tão eclético quanto Keynes, mas queimou sua biografia ao servir ao nazismo como Ministro da Economia do Terceiro Reich. O mesmo cérebro era ultra ortodoxo ao liquidar com a hiperinflação alemã de 1923, um trabalho brilhante que serviu de base ao Plano Real brasileiro e foi ultra heterodoxo ao criar os mecanismos monetários para tirar a Alemanha da recessão em 1933, muito antes dos EUA, de um desemprego de 40% em 1933 chegou a pleno emprego em 1936, financiando sem dificuldades a recuperação da indústria alemã e o enorme rearmamento do Reich.

Processado em Nuremberg, Schacht foi absolvido e teve uma terceira e bem sucedida carreira de consultor econômico para países.  Que contraste desses grandes cérebros com um medíocre Hayek, cozinheiro de um prato só, propondo um sistema que inevitavelmente produz crises, como as de 2008, a serem resolvidas pelo mesmo Estado que ele propõe reduzir.

A CRISE DO NEOLIBERALISMO É ANTERIOR AO CORONAVÍRUS

A “economia de mercado” já estava em crise mundial antes do Coronavírus. A absurda concentração de renda e riqueza provocada pelo encolhimento das políticas públicas, a liberdade licenciosa para os “mercados” operarem contra o interesse geral da sociedade, caso das FUSÕES de empresas onde só ganham os acionistas e perdem todos os demais interessados, dos consumidores aos empregados, enquanto executivos nadam em bônus indecentes, banqueiros faturam comissões sobre riqueza papel fictícia e advogados jogam na mesa faturas de milhões de dólares, a sociedade é quem paga a conta como perdedora nesse processo.

O Coronavírus apenas apressará a liquidação desse modelo vicioso reciclado por Hayek e repaginado por Mrs.Thatcher e o Presidente Reagan, país do modelo renascido nos anos 7O. Nada disso sobreviverá após o Coronavírus porque agora volta com toda a força o Estado para refazer os estragos antigos e novos, da crise do modelo e da crise da saúde.

Pascácios neoliberais acham que tudo volta ao normal depois da crise sanitária. Ledo engano. A operação keynesiana nos países ricos e suas vertentes nos emergentes vai mudar a geografia do dinheiro e contas serão apresentadas.

O derrame de liquidez a partir dos EUA vai provocar mudanças nos canais mundiais do dinheiro, para o bem ou para o mal. Modelos serão revistos, nasce um novo mundo.

Mais do que nunca, como no pós-guerra de 1945, os Estados serão demandados para resolver monumentais crises sociais e econômicas, adeus neoliberais, fiquem na saudade.

Chegou a hora de o andar de cima colaborar, por Paulo Feldman.

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Imposto emergencial de 4% para o 1% mais rico da população seria decisivo

Folha de São Paulo, 04/04/2020

Claro que o problema mais sério decorrente da pandemia são os doentes e as vidas que estão indo embora —e que, infelizmente, vai aumentar. Mas o país precisa derrotar o vírus da Covid-19 com todas as suas forças, inclusive econômicas. E as projeções sobre a necessidade de recursos ultrapassam os R$ 300 bilhões.

Uma quantia gigantesca, mas fundamental para melhor equipar nossos hospitais públicos, o SUS e dotar os mais necessitados e desempregados de alguma renda básica para sua sobrevivência durante os meses de crise mais aguda.

Como resolver essa questão? Sem esses gastos 2020 já fecharia no vermelho, com um déficit fiscal previsto em R$ 150 bilhões. Agora, com esse montante adicional, o governo federal terá um rombo da ordem de meio trilhão de reais. Para resolver o colapso econômico pós-vírus, teremos que enfrentar alguns anos de recessão.

A solução existe e está em se fazer algo que nunca fizemos: taxar a riqueza. Dados recentemente divulgados pela Receita Federal e Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) mostram que a riqueza total do país —ou seja, patrimônio, imóveis, propriedades, aplicações financeiras e ações em poder das famílias brasileiras— atinge R$ 16,3 trilhões, sendo que 49% deste valor (R$ 8 trilhões) estão na mão de apenas 1% das famílias. Um imposto emergencial de 4%, aplicável apenas a essas famílias super-ricas, conseguiria eliminar todo o rombo acima mencionado.

Alternativa mais branda seria taxar apenas as aplicações financeiras. Nesse caso, segundo dado de 2019 divulgado pelo respeitado Banco Credit Suisse, existem no Brasil 259 mil famílias com aplicações superiores a R$ 5 milhões.

São chamadas pelos bancos de famílias milionárias ou super-ricas. Mas, em média, cada uma dessas famílias possui o dobro deste valor. Se resolvêssemos taxar apenas essa categoria, e com a mesma alíquota de 4% acima exemplificada para o patrimônio total, então conseguiríamos arrecadar cerca de R$ 100 bilhões; ou seja, um terço do que o país vai precisar. Claro, já seria uma ajuda considerável na guerra contra o vírus.

Taxar a riqueza é algo trivial nos países mais desenvolvidos, e precisamos caminhar para isso, pois estamos entre as nações mais desiguais do mundo. Da lista divulgada no último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, estamos entre os dez piores, ao lado de países africanos muito pobres. Aliás, entre esses países paupérrimos, somos o único que tem alguma importância na economia mundial.

A proposta de taxar a riqueza é necessária apesar de a desigualdade nos países ser medida mais pela renda e menos por propriedade e patrimônio. Mas, quando consideramos a renda, a situação também é calamitosa: o 1% mais rico da população possui 28% da renda total. Só existe um outro país no mundo com tamanha aberração. É o Qatar, uma nação pequena de xeiques e emires.

A verdade é que o Brasil não possui um sistema tributário adequado. Aliás, não fosse o coronavírus, a discussão da reforma tributária estaria efervescente no Congresso neste exato momento. Entre as mudanças necessárias está a necessidade de fazer com que pessoas físicas que possuem lucros em suas empresas ou ganhos em aplicações financeiras e ações voltem a pagar impostos. Como era antes de 1996.

Ao taxarmos os ricos e as grandes fortunas vamos não apenas vencer a guerra contra o novo coronavírus, mas também evitar o colapso econômico iminente. Chegou a hora de o andar de cima colaborar.

Paulo Feldmann
Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas)

De onde veio o dinheiro?, por Nelson Barbosa.

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O dinheiro contra a crise já existia, devido ao desemprego e à ociosidade da economia

A crise da Covid-19 produziu um raro consenso entre economistas. Acostumados a divergir em várias coisas, hoje quase todos nós achamos necessário um aumento temporário e substancial do déficit público para salvar vidas e evitar uma queda maior da economia.

Quase que em um passe de mágica, besteiras como “acabou o dinheiro” ou “PIB público versus PIB privado” desapareceram do debate público. Hoje somos todos keynesianos contra crise.

Diante da mudança de opinião por parte de vários colegas, sinto-me no dever de explicar de onde apareceu tanto dinheiro para combater a Covid-19.

O dinheiro já existia havia algum tempo, devido ao alto desemprego e à alto desemprego e à elevada ociosidade da economia desde 2016, mas vários colegas escondiam esse fato, pois do contrário não poderiam defender um ajuste fiscal draconiano.

Vamos por partes.

O governo financiará suas políticas anticrise com emissão de dívida. O Tesouro colocará mais títulos no mercado, retirando moeda da economia. Ato contínuo, o Tesouro gastará os recursos, reinjetando moeda na economia.

No fim do processo, a dívida pública em poder do mercado subirá, isto é, a sociedade terá emitido uma obrigação contra si mesma, criando poder de compra hoje para ser pago com resultado primário no futuro.

Quanto? A resposta depende do próprio sucesso da política de estabilização. Se as iniciativas derem certo e o PIB se recuperar rapidamente, a sociedade demandará mais moeda, e o Banco Central o poderá criá-la comprando parte dos novos títulos emitidos pelo Tesouro. Como o BC é 100% do Tesouro, isso significa cancelamento de dívida pública por emissão não inflacionária de moeda. O governo não é uma dona de casa.

O restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito, pois o governo não é uma dona de casa. Nesse processo, talvez o resultado primário nem precise subir muito no futuro, se a taxa real de juro cair bastante e o crescimento da economia subir de modo duradouro.

Mas sejamos conservadores. Assumamos que será preciso elevar bastante o resultado primário mais à frente para pagar parte da dívida emitida hoje. Quando?

O ajuste fiscal poderá ser abrupto ou gradual. Se for muito rápido, ele poderá prejudicar a própria recuperação da economia. Se for muito lento, ele também poderá atrapalhar a retomada, consumindo recursos com juros elevados. A arte da política econômica é achar a velocidade ideal e, em breve, nós, economistas, voltaremos a divergir nesse ponto.

Porém, dado que hoje todos corretamente admitem isolamento social para achatar a curva de contágio da Covid-19, espero que a mesma lógica seja aplicada no pós-crise, para achatar o custo social do ajuste fiscal que será necessário.

Por fim, voltando ao tamanho do ajuste em si, tudo depende da taxa de juro real e do crescimento da economia, o que nós, economistas, chamamos de “r menos g” (eu sei, eu sei).

Se a taxa de juro cair de modo duradouro, a conta de juros será menor e, portanto, será necessário menos resultado primário para estabilizar e depois reduzir o endividamento público no futuro.

Mais importante, se a recuperação econômica for mais rápida, parte dos juros será paga com o aumento da arrecadação sobre um PIB maior, diminuindo a necessidade de ajuste fiscal por razões financeiras.

Persistirá a necessidade de ajuste fiscal por questões sociais, para promover justiça tributária e diminuir desigualdade, mas isso é outra história, para outra coluna.

Paro por aqui para respeitar nossa ortodoxia enquanto ela se recupera de keynesianismo pós-traumático.
Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research

Avanços e retrocessos da sociedade brasileira no século XXI: uma análise dos governos petistas e sua herança econômica.

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O artigo faz uma reflexão sobre os governos petistas, dando ênfase do Governo de Dilma Rousseff, seus desafios, impactos e características. Este artigo foi publicado, em quatro mãos, com a professora Deise Maria Marques da Silva Ramos, na Revista Olhar Tecnológica, Volume 5, número 1/2019, ISSN 2358-470X.

 

Leia o artigo completo aqui!

O impacto da crise econômica na juventude, segundo Marcelo Neri.

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A crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas, diz em entrevista exclusiva Marcelo Neri, da FGV Social

Por Davi Franzon – Revista Ensino Superior – Abril/2020.

O agravamento da crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas durante o período mais profundo da recessão. Esse quadro é apresentado com nitidez pela pesquisa “Juventude e trabalho”, realizada pela FGV Social. Na tentativa de compreender a situação enfrentada por aqueles que buscam a primeira oportunidade no mercado de trabalho ou uma recolocação profissional, a Ensino Superior conversou com o economista Marcelo Neri, responsável pelo levantamento. Confira os principais trechos da conversa.

A pesquisa aponta que o agravamento da crise da renda ocorreu nos últimos cinco anos. Qual foi o impacto sobre os ganhos dos jovens brasileiros?

Tivemos um aumento expressivo da desigualdade no Brasil. Uma elevação por 18 trimestres consecutivos. Dentro desse quadro, o jovem brasileiro foi o que perdeu mais, a elevação da desigualdade foi maior. Comparativamente, a crise impactou mais a renda dele (jovem) do que a de grupos tradicionalmente excluídos da população brasileira, como negros, analfabetos e moradores das regiões Norte e Nordeste. Para esta camada da sociedade, a redução foi duas vezes maior que a registrada nas demais. No caso do jovem, ela foi de cinco a sete vezes.

Quando ocorreu esse impacto sobre a renda dos jovens e como isso aconteceu?

A piora da renda dos mais jovens tem seu início no 4o trimestre de 2014, logo na sequência do 2o turno da eleição presidencial, e chega ao 2o trimestre de 2019. Na média, essa perda foi de 14,6%. O ganho médio passou de R$ 664 para R$ 567. Quando falamos nas causas, temos um somatório de situações. O desemprego aumentou muito na base da distribuição, em especial entre os jovens mais pobres, e há também um achatamento dos salários por causa da
precarização. Esse quadro é agravado quando analisamos a situação do jovem de baixa renda.

Falando em emprego, a sondagem mostra uma queda maior dos ganhos entre os jovens com idade entre 15 e 19 anos. A crise impacta diretamente aqueles que estão entrando no mercado de trabalho?

Eu acredito que sim. Nessa faixa, a redução foi de 26,54%, mas é preciso olhar para os componentes desse quadro. O desemprego já era elevado e aumentou muito. O que podemos identificar, como disse acima, é um avanço da precarização, da informalidade. O jovem entra no mercado de trabalho sem a garantia do conjunto de proteção social.

Esse quadro atinge diretamente a renda. Essa faixa da população também enfrenta uma mudança drástica no cenário do emprego. Saímos de um quadro de quase pleno emprego para um universo expressivo de desempregados. O volume de vagas caiu em seis meses o que ofereceu em seis anos.

Esse quadro deixa o mercado mais exigente? A pesquisa mostra uma perda de renda na faixa de 20 a 24 anos. Essa parcela da população, que na maioria dos casos já possui uma experiência, também tem enfrentado dificuldades?

Aqui, temos situações distintas. No caso do jovem que busca o primeiro emprego, ele acaba naquele processo: não tem experiência e não consegue ser contratado e vice-versa. Quando você entra nessa outra faixa etária, as histórias de vida são muito diferentes. Podemos encontrar o jovem que não conseguiu entrar antes dos 20 anos no mercado de trabalho ou aquele que só teve acesso em um mercado precarizado. São trajetórias distintas.

Nesse sentido, a partir dos números da sondagem, temos um quadro de desigualdade entre os jovens brasileiros?

Sim. Essa crise evidencia claramente essa situação. Veja, a população jovem é grande no Brasil e continuará nos próximos anos. Com esse cenário de crise, ocorre uma clara desigualdade dentro desse conjunto da população. Como eu mostrei acima, a perda média de renda do jovem foi de 14%. Quando entramos nas camadas da pesquisa, essa queda é de 24% na parcela mais pobre. No caso dos analfabetos, esse percentual sobe para 51%. Mesmo em um grupo que, na média, não perdeu, como é o caso das mulheres, as mais jovens apresentaram uma retração na renda.

Foi possível identificar os fatores que mais contribuem com a desigualdade entre os jovens brasileiros?

De maneira geral, as causas dessa desigualdade não diferenciam muito daquelas que atingem o conjunto da sociedade brasileira. Temos o aumento do desemprego, a redução da jornada de trabalho e a queda do salário por hora/ano de estudo. Essa é uma característica importante dessa crise, ela devolveu uma importância para a manutenção ou aumento de renda para os mais escolarizados.

Essa característica (a importância do estudo) é diferente do quadro diagnosticado antes do agravamento da crise econômica?

Completamente. A situação até o quarto trimestre de 2014, início de 2015, era totalmente distinta. Tivemos, nesse período, um boom social. A renda da camada menos escolarizada da população apresentou um aumento superior ao da mais escolarizada. Houve um ganho para quem possuía apenas o ensino médio e uma queda entre os que possuíam nível superior. A partir da crise, houve uma inversão.

Seguindo essa análise, essa crise da renda deu mais peso para o ingresso e, principalmente, conclusão de um curso de ensino superior?

Sim. O jovem com maior tempo de estudo ganha mais e tem outras vantagens. Claro, você sempre vai ouvir a história do engenheiro que está dirigindo para empresas de aplicativos e outros profissionais que não exercem a profissão escolhida. Mas, na média, o número de engenheiros fora do mercado de trabalho é menor quando comparado com aqueles que têm apenas o ensino médio.

É possível quantificar essas diferenças entre os mais e menos escolarizados na sociedade brasileira?

É sim. Um profissional com ensino médio completo ganha, em média, R$ 2,2 mil por mês. Quando você pega aquele que tem superior completo, esse valor salta pra R$ 4,7 mil. Vamos falar de empregabilidade. O percentual para o ensino médio é de 84%, para o superior, 90%. A formalidade também é maior: 79,6% (superior) e 70% (médio). O ensino superior só é menor quando o tema é jornada de trabalho, 42,2 horas (médio) ante 41,4 horas (superior). Ou seja, ele possui mais tempo para realizar outras atividades.

A pesquisa aponta uma evolução do chamado “nem-nem” (não estuda e não trabalha). Foi possível identificar os fatores dessa evolução?

Nesse tema, os fatores passam pela recessão, precarização e também uma questão de gênero. Juntos, eles permitem um entendimento desse quadro dos “nem-nem”. No recorte da pesquisa, ele passou de 21,19%, no 4o trimestre de 2014, para 24,53%, no 2o trimestre de 2019. Em contrapartida, houve uma redução, ainda que pequena, entre os jovens que
estudam e trabalham de 12,33% para 11,60%.

As mulheres ainda são as que mais se enquadram nessa situação?

Quando você olha para o quadro fixo, elas são, sim, maioria entre os nem-nem. No segundo trimestre de 2019, o percentual chegou a 30,59%. No caso dos homens, ele é de 18,56%. No entanto, as mulheres, quando comparamos com 2014, apresentaram um avanço mais lento do que o dos homens. Ou seja, como elas estão mais escolarizadas, houve um avanço nos anos de estudo e de acesso ao mercado de trabalho.

Há uma expectativa de melhora nessa crise da renda dos jovens?

Temos alguns sinais a partir de 2017. Não uma retomada do crescimento da renda, mas uma desaceleração das perdas. A decisão do governo de oferecer redução de encargos trabalhistas para a oferta do primeiro emprego para jovens com idade entre 18 e 29 anos pode ajudar nesse quadro. Também temos uma melhora, ainda que tímida, na frequência escolar. Mas ainda há muito a ser feito.

No caso do governo, a pesquisa revela uma insatisfação grande por parte dos jovens. Quais as causas desse quadro?

Os dados são muito claros. Enquanto em outros países a parcela de jovens que confia no governo é de 57,4%, no Brasil ela é de 12%. O jovem brasileiro ocupa a terceira posição entre aqueles que menos confiam nas instituições.

Esse quadro pode ser explicado pela falta de proteção social oferecida para eles. Essa parcela da população não tem uma política voltada para ela. Eles estão em um quadro de precarização do trabalho, de empregos sem carteira assinada, ou seja, sem proteção alguma. Veja o caso da reforma da previdência. Agora, teremos um grupo com direito à aposentadoria e um que terá muita dificuldade para consegui-la. Os mais velhos conseguiram defender sua cota de proteção social, os mais jovens terão que pensar em capitalização, previdência privada. Isso ajuda a entender esse descrédito para com o governo. Temos de lembrar, também, que os estados estão quebrados. E isso impacta diretamente a vida dessa população, seja em relação à oferta de transporte público, de empregos e no combate à violência. Fatores com impacto direto no dia a dia.

Olhando para o ensino superior ofertado no Brasil. Ele dá conta das necessidades dos jovens?

As universidades, hoje, acabam suprindo deficiências da origem dos estudantes. Elas têm de oferecer cursos de português, matemática e outros para permitir que o aluno siga no curso. Esse quadro, obviamente, impacta a formação do futuro profissional. No geral, temos uma boa oferta de cursos superiores. Agora, se dá muita ênfase em cursos profissionalizantes, cursos técnicos. Há um debate sobre um suposto bacharelismo no Brasil, se a busca por um diploma é ou não a solução para poucos. Mas é preciso lembrar que, ao se olhar para o conjunto da sociedade brasileira, o grupo com curso superior completo ainda é relativamente baixo.

“Epidemia e Crise Social”. Artigo de José de Souza Martins.

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“As justificativas geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de 2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do descarte daqueles que não tiveram acesso a UTI, nem a tratamento, nem à recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção da riqueza social.

O peneiramento definirá a consciência política da crise”, escreve José de Souza Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34).
O artigo foi enviado pelo autor.

Segundo o sociólogo, “quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade. A sociedade de setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de referência serão outros, seus sentimentos outros, suas crenças outras. O governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente”.

Esta epidemia a Covid-19 terá consequências socialmente duradouras, como já aconteceu, em várias sociedades, em outras situações de pânico e em situações de guerra. Nesses momentos, as insuficiências, fragilidades e limites de uma sociedade ficam expostos e motivam o despertar do lado crítico da consciência social.

Reinterpretações até radicais substituem a passividade do senso comum. Emerge a possibilidade de transformações sociais necessárias à correção dos problemas de organização da sociedade revelados pelas ocorrências inesperadas. Pandemias são expressões, também, da fragilidade social e da limitada durabilidade das estruturas sociais. Se elas não se renovam na vida cotidiana, se a sociedade não se reproduz, o vazio expõe os carecimentos radicais que promovem a revolução das inovações sociais profundas que possa resolvê-los.

Nossa sociedade ainda não se deu conta da extensão das mudanças sociais que decorrerão da pandemia, tanto na enfermidade quanto nas fantasias que alcançarão a mentalidade popular e as normas sociais com elas relacionadas. São as racionalizações para explicar o inexplicável, tentativas de senso comum para adivinhar causas e fatores das ocorrências e reagir a eles.

Tardiamente, descobriremos, em comparação com países prósperos, alcançados pela pandemia, que a cópia de modelo econômico aqui implantada em 1964 permitiu à economia brasileira produzir lucros de primeiro mundo graças à remuneração do trabalho de terceiro mundo. Relativizaram-se os direitos sociais, o que vem sendo completado no governo de Jair Messias. Implantou-se no país um capitalismo imprevidente e sem horizontes. O empresariado não é inocente nesse equívoco lucrativo, mas anticapitalista. Não foi capaz de construir um capitalismo que, para sê-lo, não pode ser imprevidente, não pode desconhecer o direito de todos a uma quota-parte dos frutos do trabalho social.

As justificativas geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de 2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do descarte daqueles que não tiveram acesso a UTI, nem a tratamento, nem à recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção da riqueza social.

O peneiramento definirá a consciência política da crise.

A pandemia nos dirá o que somos porque anulará a eficácia das máscaras sociais de que a sociedade moderna carece para parecer o que não é, para legitimar-se, desde que nelas acreditemos. A Covid-19 as derreterá. Nossa inautenticidade de sobrevivência será corroída pelo vírus invisível. O próprio rei já está nu.

Uma das várias consequências de desastres como esse é a de anular a relevância das certezas, mesmo de muitas certezas científicas. São desastres que anulam o sentido de normas e valores sociais, das referências da conduta costumeira.

A primeira tendência é a da desagregação da ordem social, o que, em decorrência pode desagregar a ordem econômica e a própria ordem política. É pouquíssimo provável que a sociedade contemporânea, como a conhecemos, sobreviverá ao poder destrutivo do vírus. De vários modos, a sociedade já será outra daqui a seis meses. Nesse meio tempo, terá ela inventado novas regras sociais, novos hábitos, redefinirá prioridades. Relativizará referências que nos regulam há, pelo menos, três gerações. O que valia ainda no outro dia já terá deixado de valer. O modo de vida de classe média a que estamos acostumados, nestas horas, já estará reformulado.

A raiva de classe média que sustentou a irresistível ascensão de Jair Messias ao poder terá sido derrotada pelos sentimentos comunitários que estão renascendo intensamente sobre as cinzas da sociedade que renunciou aos seus deveres na eleição de outubro.

Quando setembro chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade. A sociedade de setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de referência serão outros, seus sentimentos outros, suas crenças outras. O governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente. Isso valerá tanto para o presidente da República, quanto para senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais.

Sob outro tipo de catástrofe, algo parecido já havia derrubado o petismo. O escândalo do mensalão corroeu a base moral do PT e do sistema partidário. Apesar das reeleições, tanto de Lula em 2006, quando de Dilma, a sociedade já se distanciara deles, o que se evidenciou nos movimentos de rua de 2013. Bolsonaro também poderá provar o gosto da ruptura agora.

‘Uberização’ do trabalho. Entrevista com Ricardo Antunes.

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O sociólogo Ricardo Antunes é um incansável pensador sobre o mundo do trabalho. Pós-doutor pela Universidade de Sussex (Inglaterra) e professor titular de Sociologia do Trabalho na Unicamp, perdeu a conta dos artigos científicos, capítulos, e, claro, livros lançados no Brasil e no exterior ao longo de sua carreira acadêmica. Publicações em que aprofunda análises sobre as dinâmicas, contradições e opressões do mercado de trabalho nas últimas décadas.

O livro mais recente tem no título o que pode ser tomado, dentro de uma relação de trabalho, como uma ironia ou provocação ao lado mais forte da corda (o do empregador), em razão das agruras a que vem submetendo o lado mais fraco dela (naturalmente, o do empregado). Relação, a propósito, em condições flagrante e abertamente desequilibradas, dada a situação dos agonizantes direitos trabalhistas, atacados em múltiplas frentes, sobretudo nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro (mas com balões de ensaio ainda nos anos de Collor e FHC).

A entrevista é de Heitor Peixoto, publicada por Congresso em Foco, 25-07-2019.

A obra é “O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital”, lançado pela Boitempo Editorial. A primeira parte do título, a tal provocação mencionada acima, é citação literal garimpada do escritor e filósofo Albert Camus. No livro de Antunes, é como uma alegoria sobre a situação vivida por um número crescente de trabalhadores no Brasil, especialmente aqueles que vêm se agarrando ao precário trabalho em aplicativos como Uber, Cabify, Rappi e tantos outros, para mover o pescoço acima do pântano do desemprego crônico e persistente nos últimos cinco anos.

Em tempos do que o sociólogo chama de “uberização” do trabalho, “se homens e mulheres tiverem sorte hoje, o seu trabalho será precário”. Serão servos, e isso ainda assim será um privilégio, em comparação com o desastre ainda maior, que é o do desemprego.

Foi neste julho friorento que Antunes deu uma pausa em suas férias acadêmicas para, literalmente, falar de trabalho, nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.

Eis a entrevista.

O livro expõe as vísceras do que chama de “uberização” do trabalho, processo que talvez devesse suscitar um urgente debate sobre consciência de classe, dada a precarização a que esses trabalhadores estão submetidos. Mas como fazer esse debate e promover uma luta contra esses efeitos, quando esse trabalho precarizado é tudo o que restou para tantos trabalhadores brasileiros?

Essa forma que nós hoje denominamos como “uberização do trabalho” é o mascaramento de relações assalariadas, que assumem a aparência do trabalho do empreendedor, do trabalho do prestador de serviços, dos trabalhos desprovidos de direitos.

Nós vimos recentemente a morte de um trabalhador que estava entregando alimentos do Rappi. Quando ele começou a se sentir mal, não teve nenhum tipo de atendimento digno dentro da empresa para a qual estava entregando aquilo que foi solicitado a essa empresa, não teve atendimento por parte do serviço público de saúde, e essa é a tragédia dos trabalhadores, digamos assim, “uberizados”.

São trabalhadores que seguem o que na Inglaterra se chama “o contrato de zero hora” (“zero-hour contract” em inglês; ou os “recibos verdes” em Portugal; ou o que existiu na Itália até 2017: o trabalho pago por voucher). São modalidades de trabalho intermitente, em que os trabalhadores são chamados a trabalhar, e só recebem por aquelas horas que trabalham. O tempo que eles ficam esperando, eles não trabalham.

Os direitos desaparecem, porque se desvanece a figura do trabalhador ou da trabalhadora, e se faz aflorar a falsa ideia de um empreendedor, de um PJ, de um trabalhador que é dono do seu instrumental de trabalho, e isso faz com que a degradação da vida no trabalho no capitalismo do nosso tempo chegue a um patamar que se assemelha, em plena era informacional-digital, à era da revolução industrial.

É por isso que eu digo no meu livro que nós estamos vivendo uma era de escravidão digital. O mundo maquínico informacional-digital, ao invés de trazer a redução do tempo de trabalho, as melhores condições de trabalho, mais tempo de vida fora do trabalho, menos penúria no trabalho, tem sido o oposto.

Por quê? Isso é muito importante: porque se trata de uma tecnologia que não tem valores humanos ou societais. O mundo informacional do nosso tempo, do qual a indústria 4.0 é o seu pretenso ápice, não tem um sentido humano ou societal, e sim um sentido de valorizar, ampliar a riqueza das grandes corporações.

O resultado disso é que nós temos uma heterogeneidade muito grande do trabalho, mas com um traço em comum: a homogeneização que caracteriza esse mosaico de trabalhos distintos, que é a tendência à precarização. Esse vai ser, digamos assim, o ponto mais importante nas lutas do nosso tempo.

Nós vimos em maio deste ano uma primeira paralisação, uma primeira greve de amplitude global dos trabalhadores e das trabalhadoras da Uber. Naturalmente, que ninguém possa esperar que a primeira greve seja a mais potente de todas, mas ela é um exemplo de descontentamento frente a esse tipo de trabalho. Os trabalhadores e as trabalhadoras sabem que para sobreviver trabalhando numa empresa como Uber, Cabify, 99, Rappi e todas as outras que nós não paramos de ver crescer, eles têm que trabalhar 10, 12, 14, 16, às vezes 18 horas por dia. Isso coloca uma questão fundamental: não é possível aceitar.

E como é que é possível lutar contra esses efeitos?
Primeiro: retomar as questões vitais. O trabalho deve ter, na medida em que ele se constitui numa atividade vital, elementos de dignidade, que essa nova modalidade de trabalho não apresenta. Segundo: não é possível aceitar a corrosão, a derrelição, a devastação cabal dos direitos do trabalho.

Nós acabamos de ver no Congresso essa medida horrorosa da chamada liberalização econômica, em que, de sopetão, algumas dezenas de artigos da CLT estão sendo fraudados novamente. O Brasil está se convertendo numa Índia. Esse monumental país da Ásia, com mais de um bilhão de habitantes, tem centenas de milhões de trabalhadores desempregados. E mais: a Índia tem um contingente imenso de indivíduos que estão abaixo da linha mínima da dignidade humana. São pessoas que vivem um padrão de vida típico de um indivíduo que tenta sobreviver na indigência.

O Brasil caminha tragicamente para esse quadro de indigência que tipifica a Índia, e não é por acaso. Tanto lá na Índia como aqui, há uma burguesia riquíssima, que não tem limites em se expandir. Basta dizer que os cinco maiores e mais ricos empresários brasileiros recebem uma renda que se aproxima àquela que é produzida por 100 milhões de pessoas no mesmo país. É esse nível de tragédia social que nós não podemos aceitar.

Na obra, você mostra que também a classe média estaria num processo de corrosão, que a aproxima mais do proletariado do que da elite, dando como exemplo profissões outrora elitizadas, mas que já começaram a enfrentar a precarização (como médicos e advogados). A falta de consciência de classe também está presente entre esses?

A primeira questão importante aí é que a consciência de classe é algo que articula elementos objetivos e subjetivos. Por exemplo: a “uberização” do trabalho leva à fragmentação, à intensificação do trabalho, à exploração, à individualização, mas, num dado momento, esse processo, essa intensidade, esse ritmo e essa superexploração do trabalho acabam gerando formas de solidariedade, de sociabilidade, que resultaram, em meados de maio deste ano, na primeira paralisação global da Uber.

As classes médias são um contingente social heterogêneo. As classes médias mais altas, que vivem estritamente do trabalho intelectual, já não têm mais as mesmas condições sociais do passado. Hoje você tem médicos que estão proletarizados, que trabalham em várias empresas fornecedoras de serviços de saúde (convênios). Nós temos advogados hoje que trabalham como “sócios” de escritórios. Se eles não levam trabalho para esse escritório e não realizam esses trabalhos, não recebem. É uma espécie de trabalhador que tem que buscar o seu trabalho. Para poder vendê-lo. Para depois poder sobreviver.
Tudo isso cria dificuldades com relação à consciência de classe. Ela decorre também do espírito do tempo, e o espírito do nosso tempo é de devastação, de contrarrevolução, de neoliberalização, de financiarização. Nós estamos vivendo uma etapa difícil da história mundial.

Os anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e especialmente o ano de 2013 foram de rebeliões. Começou pela Tunísia, esparramou-se por todo o Oriente Médio, Egito e tantas outras partes; rebeliões na Europa, como na França, na Inglaterra, na Grécia, em Portugal, na Espanha; o Occupy Wall Street nos EUA. Houve um conjunto de descontentamentos, revoltas e rebeliões.

De algum modo, [os atos] foram se escasseando, foram se exaurindo, e, a essa era de rebeliões, sucedeu-se uma era de contrarrevoluções. Isso se expressa politicamente na vitória da direita e da extrema-direita em várias partes do mundo, como um desencanto com o período anterior. Não é a direita que está sendo vitoriosa. É a extrema-direita, como nós estamos vendo inclusive no caso brasileiro.

Ainda no seu estudo, vemos que Collor e FHC tentaram promover alterações mais profundas na legislação trabalhista e não conseguiram. O que faltou aos dois em suas respectivas conjunturas, e que, adiante (no caso, nesses últimos anos), deixou de ser obstáculo às medidas rumo à precarização?

Collor e Fernando Henrique Cardoso foram vitoriosos (eleitoralmente) em um outro momento da história. Foram governos subsequentes à ditadura militar. Como sabemos, o primeiro governo foi de Sarney, uma espécie de governo inusitado, tampão (porque Sarney não foi eleito; quem foi eleito pela via indireta foi Tancredo Neves), mas Collor e Fernando Henrique tentaram introduzir o neoliberalismo no Brasil e, consequentemente, essas reformas nefastas, e havia naquele período um sentimento antineoliberal muito importante aqui.

Na década de 1980, houve no Brasil os mais altos níveis de greves, inclusive comparado a outros países. Esse movimento dos anos 80 constituiu uma barreira importante para Collor: esse governo grotesco, esse neoliberalismo completamente irracional no seu modus operandi, essa irracionalidade, tudo isso fez com que em dois anos esse governo desaparecesse. O impeachment o levou de roldão. E o Fernando Henrique Cardoso subiu para implantar um neoliberalismo racional, mas ele sofreu também muita oposição.

O que é diferente em relação ao período atual? Vamos pegar o governo Temer e agora Bolsonaro: é uma era de contrarrevolução preventiva de amplitude global, de neoliberalismo extremado, de financeirização sem limites da economia, de devastação dos direitos sociais. É o fim de qualquer experiência de conciliação de classes. E este cenário – a vitória de Trump nos EUA; o Brexit na Inglaterra; a Le Pen quase ganhando as eleições na França, e Macron conseguindo derrotá-la porque contou com o apoio dos votos do centro e da esquerda, temerosos que estavam, com medo de um governo fascista como Le Pen; a vitória de um governo protofascista na Hungria; a expansão do neonazismo na Alemanha e em várias outras partes do mundo -, todo esse cenário favoreceu com que o neoliberalismo extremado vivesse o seu período de ataque frontal.
A diferença é essa: aquele primeiro momento, com Collor e Fernando Henrique, era uma época de avanço contra o neoliberalismo. Agora, nós estamos vivendo uma era de contrarrevolução, que quer aprofundar um liberalismo extremado.

No meio desses modelos neoliberais que já comandaram o país, tivemos na primeira década do século a ascensão de governos do PT no plano federal, partido nascido da classe trabalhadora. Você fala em avanços e recuos ocorridos nos governos petistas. Quais são eles?

Eu procuro trabalhar mais detalhadamente esse tema no meu livro. O PT nasceu talvez como o mais importante partido de massas, de esquerda, na América Latina, e que tanta influência teve em tantos países do mundo. Mas entre os anos de nascimento do PT – a sua primeira década – e o que veio depois, pouco a pouco o PT foi deixando de ser um partido de classe e de massas, para se tornar um partido adequado ao processo eleitoral. E quanto mais ele adentrava no processo eleitoral e fazia uma mutação – metamorfoses para se tornar palatável, aceito pela ordem no Brasil -, mais ele perdia o vínculo original de classe.

De tal modo que o PT que ganhou as eleições em 2002 é muito diferente do PT que perdeu as eleições em 1989. O que ganhou tinha em suas propostas a “Carta aos Brasileiros” que deixava claro que os bancos não teriam que ter nenhum receio com relação ao governo do PT. E assim foi. Foi essencialmente um governo de conciliação de classes, um governo que trouxe avanços, é inegável, especialmente durante os dois primeiros governos Lula (especialmente o segundo governo) e parte do primeiro governo Dilma.

Mas a partir de um dado momento, quando a crise econômica global atingiu o Brasil (a partir de 2013), a devastação aqui foi de grande monta. Aliás, as rebeliões de 2013 sinalizaram isso, e o governo Dilma foi incapaz de entender que o descontentamento que ali emergia tinha similitudes com esses descontentamentos que estávamos vivenciando em várias partes do mundo.

O resultado, isso é muito triste, mas é importante constatar: o governo do PT, mesmo criando 20 milhões de empregos, o Bolsa Família, e trazendo um pequeno mas relativo aumento salarial, especialmente quando comparado ao do governo Fernando Henrique Cardoso, no conjunto das suas medidas, das suas ações, não trouxe nenhuma mudança estrutural significativa. A estrutura concentrada da terra se manteve, mas o governo do PT foi um enorme incentivador do agronegócio – o Lula chegou a dizer, pasmem, que os grandes heróis brasileiros eram os donos do agronegócio (eu espero que ele tenha se arrependido profundamente dessa frase, dado o absurdo que ela significa, e o que se passou com o [próprio] Lula depois). E nenhum interesse financeiro foi tocado.

O Lula também disse que nunca os bancos tinham ganho tanto dinheiro como no seu governo. E ele tinha razão. Só há um equivalente ao lucro bancário quando a ditadura militar também veio e o incentivou. Foi o primeiro salto financista no Brasil. Sob o governo Lula, os bancos se expandiram, bem como a indústria da construção civil e várias outras, com os vários projetos do BNDES, de incentivo ao empresariado brasileiro. Favoreceram a transnacionalização de alguns setores da nossa burguesia, que entraram no mercado externo.

Foi inclusive essa simbiose entre os governos do PT (especialmente sob Lula) e esse empresariado que se expandiu, que fez com que, aos poucos, o PT adentrasse num terreno do qual ele sempre foi crítico, que foi o terreno da corrupção. Todos nós sabemos que a corrupção não nasceu com o PT. Todos nós sabemos que a corrupção sempre foi o espaço preferencial da direita, da centro-direita e dos partidos burgueses.
Por certo, é verdadeiramente uma tragédia que, num dado momento, um partido de esquerda como o PT tenha sido partícipe dessa tragédia da corrupção, que foi um dos elementos que levaram, inclusive, à sua derrota e ao impeachment da presidente Dilma. Nós sabemos que esse impeachment se deu não pela chamada corrupção, mas quando, na crise de 2013 para cá, aos poucos os interesses da burguesia começaram a ser afetados.

Num momento de crise, a primeira decisão das nações burguesas é “vamos jogar o ônus da crise em cima da classe trabalhadora”. O que estão fazendo [agora], e que o governo Temer fez por excelência. Todas as medidas do Temer eram de um verdadeiro governo terceirizado. Temer foi posto por um golpe, para começar a devastação social no Brasil que o governo de conciliação do PT não podia fazer nessa intensidade. E isso fez com que o quadro se modificasse profundamente.

Então, as vantagens ocorreram: aumento de emprego, melhor política salarial, mas as questões estruturais não foram afetadas, seja no plano da estrutura agrária, financeira, urbana, da política de transporte coletivo, da saúde pública e de um conjunto de outros elementos com os quais, em 2013, com as rebeliões, nós víamos a população manifestar um enorme descontentamento.

Mesmo com toda a aridez da realidade que traz em seu livro, você demonstra algum otimismo, ao dizer que não imagina que a história do trabalho terminará nos parâmetros de hoje. Que horizonte vislumbra à frente e, antes disso, como os trabalhadores de agora conseguirão vencer essa conjuntura tão nefasta?

O genial dos processos históricos, da construção humana ao longo da história, é que ela é imprevisível. Nós tivemos depois da era das trevas da Idade Média um período espetacular do Renascimento. Depois da era feudal, do obscurantismo da igreja durante a Idade Média, dos governos absolutistas profundamente autocráticos, nós tivemos a Revolução Francesa, com a liberdade, a igualdade e a fraternidade, com lutas sociais. Depois do fracasso da Revolução Francesa, nós tivemos as revoluções de 1848 e a eclosão da Comuna de Paris, em 1871.

Ou seja, a história é imprevisível, e não é possível que no caso brasileiro, 30 milhões de trabalhadores sem emprego ou com emprego precarizado, uma taxa de informalidade explosiva, uma corrosão completa dos direitos sociais, a perda dos direitos previdenciários… É impossível imaginar que essa sociedade não tenha força para se rebelar.

Que horizonte eu vislumbro? Florestan Fernandes falava de uma era de contrarrevolução preventiva (quando não há o risco das revoluções). É o período em que as classes dominantes se reorganizam e fazem uma era de devastação. Mas também a era das contrarrevoluções é finita.

Não há na história um período eterno. E o que é mais importante: nós adentramos em uma nova era de lutas sociais de tipos diferentes. Nós não temos mais a mesma classe trabalhadora que tínhamos nos séculos XVIII e XIX, seja nos EUA, seja na Europa, seja na China, seja na Índia, seja no Brasil. Mas nós temos uma nova morfologia da classe trabalhadora, em que, por exemplo, a explosão do proletariado de serviços da era digital é o elemento quantitativa e qualitativamente mais importante.

Esse novo proletariado de serviços das empresas de call-center, telemarketing, hipermercados, fast-food, indústria de turismo, indústria hoteleira, motoboys; essa massa de trabalhadores que hoje está uberizada, trabalhando em empresas sob as condições mais violentas; é evidente que está nascendo aí um novo contingente heterogêneo dentro da classe trabalhadora, e que vai ser responsável por muitas lutas sociais.

Para quem olha a história, não para os últimos cinco anos, mas olha a história por um longo e amplo período, para quem olha a história na amplitude que ela tem, a história não é nem linear, nem estável, mas o mais espetacular dela é a sua imprevisibilidade.

Quem podia imaginar que a China, um país enorme, que fez uma revolução camponesa e popular em 1949, liderada por um partido comunista, e que num primeiro ciclo tentou instaurar um modelo autárquico, fechado, depois de 20 ou 30 anos passasse por um processo que fez com que se tornasse um país que hoje disputa no mundo global o papel de grande potência capitalista? Eu não vou discutir aqui o caráter da China, mas imaginar que a China seja hoje uma potência socialista… É preciso uma dose razoável de otimismo para ver o socialismo onde a exploração do trabalho é intensa, a destruição ambiental é intensa, as lutas sociais são intensas…

Ou seja, o mundo é imprevisível. É isso que permite que o otimismo seja um traço da minha perspectiva, mesmo quando a análise que eu faço do cenário global seja dura e pessimista.

Você é um crítico agudo do capitalismo, atribuindo a ele “a tragédia do desemprego, da destruição ambiental, do risco iminente de guerras mundiais, da propriedade privada das grandes corporações” e de outras mazelas. Por que, contudo, o grupo que exalta esse modelo saiu tão fortalecido das últimas eleições? E por que o socialismo continua sendo visto de maneira tão negativa por parcelas tão numerosas da sociedade brasileira?
O capitalismo vive um momento vitorioso? Vive. Por quê? Porque nós tivemos neste último período, especialmente o período que eu chamei “a era das rebeliões”, um refortalecimento do capitalismo pela via da extrema-direita.

É um período de contrarrevolução de amplitude global, em que houve um desgaste das chamadas experiências “socialistas”, não só o “socialismo” da URSS, do leste europeu, da Coreia, da China, e aí há uma imprecisão na social-democracia europeia: no Partido Socialista francês, desde Mitterrand até Hollande, em todos os governos que foram “socialistas”, não houve nenhuma mudança substantiva da sociedade francesa. O governo “socialista” na Inglaterra, desde o antigo Labour Party(o antigo Partido Trabalhista inglês), até o período do New Labour, com Tony Blair, foi uma vertente branda do neoliberalismo, ou, como eu costumo chamar, uma vertente social-liberal.

Ou seja, em nome do socialismo, práticas capitalistas no fundo neoliberais foram feitas.
O mesmo se passou na América Latina. O governo Lula, eu não caracterizo como um governo socialista. Foi um governo social-liberal. Os pilares fundamentais da política econômica do governo Lula foram neoliberais. Não é por acaso que teve um papel proeminente no governo Lula o ministro Meirelles, que foi chamado para ser presidente do Banco Central, e que tinha sido até pouco tempo antes presidente mundial do Banco de Boston. Isso fala por si só.

Ou seja, aquele pêndulo eleitoral que é muito presente na Europa (partido conservador e partido liberal, ou partido democrático, ou partido socialista); nos EUA (partido democrata e partido conservador); na Inglaterra (Labour Party e o “tories”, o partido conservador); na França (o partido de “esquerda” e o partido de direita). Esse pêndulo levou a um desgaste profundo. As democracias do capital se mostraram incapazes de preservar as conquistas sociais, por exemplo, dos países do Welfare State [estado de bem-estar social].

Então, o cenário é muito complicado. E as revoluções socialistas também fracassaram. Quase todas as experiências socialistas foram fracassadas. Isso é uma evidência. De tal modo que o socialismo tem que ser reinventado. E ele será reinventado a partir de uma autocrítica profunda das suas experiências anteriores.

Por que que ele é mal visto no Brasil? Porque a extrema-direita que venceu as eleições em vários países (nos EUA; na Hungria; nas Filipinas; tem um primeiro-ministro na Itália de claro traço fascista; no caso brasileiro, não paira dúvida de que o grupo vitorioso foi a extrema-direita) jogou em cima desse quadro muito caótico do nosso tempo, de contrarrevolução, de medo de perda de emprego, de ódio ao imigrante, de ódio ao estrangeiro, de ódio aos, digamos assim, chamados “vermelhos”.

Você imagina: o governo do PT não tomou nenhuma medida socialista no Brasil, não há nenhuma medida que aproxime levemente o governo do PT ao socialismo, não há nenhuma medida tomada pelos governos no Uruguai, no Chile, no período de centro-esquerda desses países, que poderia ser chamada de medidas socialistas. Nem a mais remota. Mas estamos vivendo uma era tenebrosa, das trevas.

Ela vai passar, mas a contrarrevolução tem que criar alguns dos seus inimigos. E o que é essa era de contrarrevolução? Ela é impulsionada por uma trípode destrutiva: 1) uma reestruturação permanente do capital, que cria essa mutação tecnológica ilimitada; 2) o neoliberalismo extremado; e 3), que é o mais importante (e isso é passageiro na história, mas é um período de hegemonia): do mais parasitário, da mais destrutiva de todas as formas do capital, que é o capital financeiro.

Se houve um momento em que o neoliberalismo estava abaixo do nível mais baixo da fossa, agora é um momento de hegemonia da aberração neoliberal. A história é imprevisível, para um lado e para o outro. E é dessa imprevisibilidade que há momentos de ascensão e mesmo de hegemonia de valores de esquerda, e há momento de ascensão e de hegemonia de valores e de aberrações da extrema-direita.

Você aponta a inviabilidade do modelo de trabalho intermitente, por não permitir qualquer perspectiva de futuro. E por falar em futuro, estamos no auge dos debates sobre reforma da previdência. Que leitura faz do projeto em tramitação no congresso? Ele permitirá alguma saída para o país, como defendem seus autores, ou intensificará as mazelas do mercado de trabalho adiante?

Não paira nenhuma dúvida nesse ponto. A chamada “Nova Previdência” é o fim da previdência pública no Brasil. Ela é a expressão mais pura de um projeto cujo objetivo principal é tirar do Estado a obrigatoriedade de um sistema previdenciário minimamente digno e justo. Transferi-lo para o mercado, pela via medonha da capitalização, e, desse modo, fazer com que os trabalhadores e as trabalhadoras tenham que pagar, sem a presença do patronato e sem a presença do Estado. Pela via da capitalização, como se os trabalhadores e as trabalhadoras pudessem fazer poupanças “poupudas” para o seu futuro, se quiserem ter previdência. [Nesse ponto, Ricardo Antunes lembra que a proposta da capitalização está, por ora, afastada, mas não duvida de que a ideia possa ser recuperada adiante].

É evidente que há um ponto crucial nessa reforma, que é pouco tratado: se no Brasil, expande-se hoje o trabalho intermitente; se no Brasil, generalizou-se o trabalho flexível; se no Brasil, generalizou-se o espaço da terceirização, que é, em si e por si, o espaço da burla, como é que eu posso imaginar que os trabalhadores e as trabalhadoras mais pobres, das cidades, do campo, possam tirar recursos para capitalizar, para fazer uma poupança capitalizada? Quantos anos os trabalhadores terão que viver para se aposentar, se o seu trabalho é intermitente? Se ora trabalha e ora não trabalha? Quantos anos vão ter que trabalhar, ou vão ter que pagar sem receber?

Então, a reforma da previdência na verdade é o fim da previdência pública no Brasil. As classes médias vão se virar com a capitalização, e as classes ricas, as classes burguesas, essas não precisam de previdência. A sua previdência está garantida pelos bancos que têm, pelas indústrias, pelas fazendas, pelas fábricas, pelo comércio, pelas propriedades em geral que têm.

O elemento mais nefasto dessa reforma é como tornar previdente o trabalho intermitente. É evidente que essa reforma não trata disso. Ela já foi alterada pelo Congresso, mas é um Congresso de maioria neoliberal. Aliás, essa é a “grande qualidade” do [Rodrigo] Maia. O Maia se mostra um político competente, de alma neoliberal, e por isso é que ele está sendo um batalhador da reforma que nasceu das mãos – ou dos pés – do Guedes.

Nós estamos num quadro e num momento difícil. Mais uma desmontagem que nós estamos vivendo no Brasil. Entre tantas outras.

Você diz que o livro é uma resposta a um conjunto de mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho nas últimas quatro décadas. Que mudanças são essas, e, mais do que isso, que resposta a sua análise nos traz?

As mudanças que vêm ocorrendo no mundo do trabalho decorrem de um processo que se inicia com a crise estrutural de 1973, portanto, algumas décadas atrás, quando o padrão taylorista e fordista (a grande fábrica, a grande indústria, a grande empresa, que teve vigência e dominância no século XX) entrou em processo de crise profunda.

Ela foi substituída pela concepção de uma chamada “empresa enxuta” (em inglês, “lean production”). Uma empresa onde cada vez mais o trabalho vivo é retraído, e cada vez mais se expande o trabalho morto, o maquinário informacional digital. E a partir daí, desenvolve-se um processo de computadores, smartphones, essa miríade de equipamentos do chamado mundo informacional digital, que não para de se expandir, porque ele é comandado pelo capital financeiro e pela necessidade das grandes corporações globais. Dez, quinze, vinte grandes corporações globais, que impulsionam esse processo, naquilo que o Karl Polanyi chamava de um “moinho satânico”, e o resultado disso é o plano da classe trabalhadora em escala global: mais informalidade, mais flexibilidade, mais precarização.

A indústria 4.0, por exemplo, que é a proposta que está sendo hoje apresentada em todos os cantos do mundo vai consolidar esse projeto. Tal como ela está sendo proposta, ela terá como consequência a criação de um núcleo pequeno de novos trabalhos, aqueles mais sintonizados com as tecnologias de informação e comunicação, e uma destruição em massa, em escala monumental, profunda nos países capitalistas do norte e mais profunda ainda nos países capitalistas do sul, daquele conjunto de empregos que vão ser substituídos pela internet das coisas, pela inteligência artificial, pela impressão 3D, pelo big data, ou seja, esse arsenal tecno-informacional-digital, que, se fosse voltado para o atendimento das necessidades humano-sociais, teria uma resultante. Mas a finalidade desse processo é, na verdade, o avanço das grandes corporações.

Eu dou um exemplo: a disputa entre a chinesa Huawei e a Apple norte-americana. Em que isso afeta a humanidade? E o que de positivo isso traz para a humanidade? Nada. É uma disputa entre quem vai dominar o mundo informacional digital, o mercado consumidor dos smartphones nos próximos anos. E isso, digamos assim, não tem significado humano ou societal de grande amplitude.

“Pandemia democratizou poder de matar” segundo Achille Mbembe.

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Diogo Bercito
FSP – 31/03/2020

O coronavírus está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Ao sair de casa, afinal, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Já há mais de 775 mil casos confirmados e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”, Mbembe afirma. “O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder”.

Mbembe, 62, é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo “necropolítica”. Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá —e de que maneira viverão e morrerão.

Ele leciona na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Na sexta-feira (27), a África do Sul registrou as primeiras mortes pelo coronavírus.
A necropolítica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todas as pessoas de uma maneira igual.

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtividade.

“Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida”, disse o brasileiro recentemente.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado”.

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia? Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavírus é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar…

E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando. Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte? Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamento. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outras pessoas também se isolarem? Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incineradas ou enterradas imediatamente, sem demora.

Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidamente possível.
Essa lógica de descarte ocorre justamente em um momento em que precisamos, ao menos em tese, da nossa comunidade. E não existe comunidade sem podermos dizer adeus àqueles que partiram, organizar funerais. A questão é: como criar comunidades em um momento de calamidade?

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade? A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.
Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa. Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratizado. O isolamento é precisamente uma forma de regular esse poder.

Outro debate que evoca a necropolítica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorização do resgate da economia. 

Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexuais, usuários de droga? 

Na teoria, o coronavírus pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados. Mas uma coisa é estar confinado num subúrbio, numa segunda residência em uma área rural. Outra coisa é estar na linha de frente. Trabalhar num centro de saúde sem máscara. Há uma escala em como os riscos são distribuídos hoje.

Diversos presidentes têm se referido ao combate ao coronavírus como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolítica. 

Existe dificuldade em dar um nome ao que está acontecendo no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados em todo o mundo retomar as antigas terminologias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalismo durante esta pandemia? 

Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalistas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes? 

Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo. O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida.

Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

ACHILLE MBEMBE, 62
Filósofo e cientista político camaronense, é formado em história na Sorbonne e em ciência política no Instituto de Estudos Políticos. Lecionou nas universidades Columbia, Yale e Duke; é atualmente professor na Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo. É conhecido pelo ensaio “Necropolítica”, publicado em 2003, em que discute como governos escolhem quem vive e quem morre; escreveu também sobre o pós-colonialismo no continente africano.

Quem elogia tortura, admira torturador, não se coloca no lugar do outro, diz Miriam Chnaiderman

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Para psicóloga e psicanalista, está faltando total empatia ao presidente Bolsonaro durante a pandemia de coronavírus.

Claudia Collucci – FSP, 30/03/2020

O isolamento social e toda a angústia gerada pela pandemia do novo coronavírus trazem à tona o melhor e o pior do ser humano. De um lado, muitas pessoas com gestos de empatia e solidariedade, do outro, outras tantas com atos de egoísmo, falta de compaixão.

Para a psicóloga e psicanalista Miriam Chnaiderman, professora do Instituto Sedes Sapientiae, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem minimizado a pandemia e defendido isolamento só para idosos e grupos de risco, enquadra-se no segundo grupo.

“Falta total empatia. É uma coisa absolutamente autorreferente. É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro”, afirma ela, também documentarista e doutora em artes pela USP.
Segundo Chnaiderman, esse é o momento em que todos os fantasmas internos se concretizam. “A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real. É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia.”

Na opinião da psicanalista, as pessoas precisam aceitar a condição de vulnerabilidade e descobrir truques para lidar com essa angústia, caso queiram preservar a saúde mental nesse período tão exigente. 

“Fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários e contar sobre essa experiência. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento”, afirma.

Como a empatia pode ajudar a passar pela pandemia do novo coronavírus? Só empatia junto com a solidariedade é capaz de nos mover e nos ajudar a superar todas as restrições que estão sendo impostas. A gente não escolheu isso. As pessoas se sentem violentadas de não terem escolhido não sair de casa. Mas a gente está fazendo isso, acima de tudo, pelo outro.

O filósofo Max Scheller (1874-1928) diz que a empatia é um ato mediante o qual se realizam a percepção e compreensão do estado de alma de um outro. Por essa razão, condiciona todas as formas de compaixão. Para se ter compaixão de alguém, é necessário conhecer antes o sofrimento do outro.

Esse isolamento social então é uma oportunidade para exercer a empatia? Estão acontecendo gestos incríveis, a empatia que move a vizinhança toda se mobilizar para comemorar o aniversário de uma senhorinha lá nos EUA, ou de uma menininha num condomínio aqui de São Paulo. Ou mesmo tudo o que se cria num panelaço ou nos aplausos aos funcionários da saúde. Você precisa se colocar no lugar do outro.

Têm coisas muito bonitas acontecendo, vizinhança se mobilizando, os mais jovens se oferecendo para comprar coisas aos mais velhos.

É muito novo isso no Brasil. A gente está sendo obrigado a acolher aquilo que não acolhe, como a velhice e a doença.

Por outro lado, aparece também o pior do ser humano nesses momentos. Como gente estocando papel higiênico ou álcool em gel… Sim, é uma coisa atroz, total falta de empatia, total egoísmo, vou pensar só em mim, que se arrebente o outro. As pessoas não percebem que se o outro se arrebenta, você se arrebenta junto também.

Essa coisa do papel higiênico, só a psicanálise mesmo para interpretar. É a fantasia de que se você tiver como limpar aquilo que sai do corpo como sujeira, você não vai adoecer. É uma falência das mediações entre os instintos, as pulsões e o mundo simbólico.

Vivemos num país de muita desigualdade social, intolerância e ataques a minorias. Você vê nessa crise alguma chance de as pessoas reverem valores e comportamentos? Não sei. Depois dessas falas do presidente Jair Bolsonaro, soube de bairros onde as pessoas estão fazendo campanha para sair para as ruas, para acabar com o isolamento. É um discurso que exacerba isso tudo.

Têm pessoas mobilizadas para ajudar travestis, moradores de rua. Mas essas pessoas que saíram comprando feito malucas estão pensando nelas e pronto. Toda essa questão aparece na postura do presidente de só pensar nos negócios e não as pessoas.

Falta empatia ao presidente? Falta total. É uma coisa absolutamente autorreferente, que quer o poder a todo custo, que pensa só na reeleição. É o neoliberalismo e o egoísmo que ficam em questão com o que está acontecendo. É uma explosão de uma coisa terrível que já vinha acontecendo e que se concretiza nessa pandemia.

Tem muita gente falando numa ruptura no jeito de governar, de conduzir a vida. Se você não tem o que a gente chama de empatia, se não é tocado por um mundo que não é o seu, é terrível.

É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro. As pessoas morrem de medo de se colocar no lugar do outro porque se sentem frágeis, se sentem podendo elas degringolarem, de ficarem sem nada.

Nessas horas de tanto medo muitos fantasmas saem do armário, certo? É um momento bem delicado porque todos os fantasminhas internos que todos nós temos estão concretizados numa realidade. A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real.

É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia. As pessoas que eu tenho ouvido não estão conseguindo ler, estar com elas mesmas. Ou grudam na televisão, na internet, ou ficam limpando a casa o dia todo.

Atividades como ouvir música, ver aquele filme que você sempre teve vontade, mas não teve tempo estão sendo difíceis de acontecer. Trabalhar com essa angústia de morte te exaure, te suga. As pessoas não dormem bem.

A história mostra que depois de grandes catástrofes podem surgir coisas boas. Após a peste negra, por exemplo, veio a Renascença. Pode sair coisa boa depois da pandemia de Covid-19? Poder, pode. Mas não sei se há uma mobilização para isso. A gente está vivendo um destroçamento das forças mais libertárias, que buscam um mundo de outro jeito.

Eu vejo como mais possível uma comoção social, as pessoas vão ficar sem dinheiro, não vão ter o que comer, vão ter mudar seus hábitos.
Estamos num momento muito amargo do mundo, de falta de lideranças, de falta de mobilização. É meio imprevisível. Só quem trabalha o sofrimento internamente, pode se identificar com quem sofre.

A gente está num mundo consumista do prazer imediato, onde ter a capacidade de se identificar com a dor do outro e poder acolher a dor em você é considerado fragilidade, você é um nada. Porque o objetivo é o ganho imediato, o prazer imediato.

De qualquer forma, é um abalo. A gente vai sair dessa com um ônus terrível. Alguma coisa vai ter que mudar. Tomara que essa solidariedade, essa empatia que temos visto se introduza de fato na sociedade, que seja algo mais duradouro.

A verdade é que todos nós estamos nos sentindo vulneráveis… Sim, até porque a vulnerabilidade é uma realidade do ser humano. Todo mundo nega. Quando o presidente chega e fala: ‘vai ser uma gripezinha porque eu tenho uma história de atleta’, ele se coloca como um ser não vulnerável, é um deus.

Está todo mundo tendo que trabalhar isso em si, algo foi profundamente abalado nessa história toda. Antes, muitas pessoas pensavam: ‘Ah! eu vou para Europa, vou para Nova York. Ou vou aproveitar que aqui está essa coisa, e vou para a praia’.

Agora não tem mais para onde ir. Todos estamos vivendo essa vulnerabilidade, essa ameaça de morte. É um marco na história da humanidade.

Como cuidar da saúde mental nesse momento? As pessoas estão sofrendo muito com o isolamento, se sentindo muito solitárias. Um caminho seria fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários, contar sobre essa experiência. Isso ajudaria.

Inventar jeitos. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. Para outros, essa vida online pode ser muito frustrante. As pessoas precisam descobrir truques para lidar com a angústia.

Mas é um momento e vai passar. As pessoas não suportam quebrar com que vinham fazendo, com o jeito de atuar. Aproveita e se repensa. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento.

É chato. Eu mesmo estou com essa questão. Tenho mais de 60 anos, fico louca para ir ao supermercado e está sendo superdifícil não ir. Uma das coisas para manter a saúde mental é a manter a casa funcionando, aprender a cozinhar, aprender a passar. Isso porque estou imaginando que a essa altura todos já tenham liberado a empregada.

A gente não teve escolha sobre essa pandemia, mas têm coisas que a gente tem escolha. Como deixar a casa bonita, levantar e se arrumar, passar batom.
As pessoas precisam inventar jeitos de se sentirem donas da própria vida nesse momento em que a gente não escolheu o que está acontecendo.

E como lidar com as crianças nesse contexto todo? Existem pais enlouquecendo no home office com as crianças trancadas em casa… Eu acho que as crianças têm mais recursos que a gente para lidar com esse momento. Elas têm o mundo da fantasia, fica mais solto, né? Elas têm o lúdico, se abrem mais para o brincar.

O problema são as mães, os pais aguentarem as 24 horas de convivência.
Mas talvez as crianças têm bastante para ensinar pra gente neste momento. Te arranca da angústia na marra. Porque querem jogar, querem brincar, querem ver filminho.

A questão é você ter que suportar essa demanda ou poder transformá-la em algo lúdico para você também.

O caminho é se apropriar da situação, pensando em como tornar isso um aprendizado do contato com os recursos que cada um tem com o isolamento, com a ruptura de hábitos muito arraigados.

Eu acho que cada um vai sair transformado disso. Uma experiência dessa vai te levar a romper com hábitos. É muito duro isso, mas quando você rompe, você se abre também. Eu espero (risos).

Miriam Chnaiderman
Formada em psicologia pela USP, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, doutora em artes pela USP. É psicanalista e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Também autora dos livros “O hiato convexo: literatura e psicanálise” (Brasiliense) e “Ensaios de Psicanálise e Semiótica” (Escuta) e diretora de vários documentários e do longa-metragem “De gravata e unha vermelha” (2014)

Laurentino Gomes: “Um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo”

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Em entrevista à GALILEU, autor de “Escravidão” afirma que estudar o passado é essencial para combater o racismo

ROGER MARZOCHI/ 26/12/2019

Durante mais de três séculos, o Brasil foi protagonista de uma das maiores atrocidades da história: dos 12,5 milhões de pessoas que foram transportadas à força da África para as Américas, 4,9 milhões desembarcaram em território nacional para serem escravizadas em grandes plantações de cana-de-açúcar e café, nas minas que extraíam metais preciosos ou para servirem às casas de seus “senhores” brancos.

Ao menos 2 milhões de habitantes de diversos territórios do continente africano nem sequer completaram a travessia pelo Oceano Atlântico e morreram em navios que amontoavam humanos como simples mercadorias. Mais de 130 anos depois da abolição da escravidão no Brasil, os reflexos desse período histórico não são difíceis de perceber: dados recentes do IBGE indicam que entre os 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros. De acordo com informações do Atlas da Violência divulgado em 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no país são negras.

Autor das premiadas obras “1808”, “1822” e “1889”, que resgatam detalhes da história brasileira, o escritor paranaense Laurentino Gomes se deu conta de que o assunto mais importante do passado nacional não eram os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. Era a escravidão. “Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas”, afirma.

E foi pensando nisso que ele escreveu “Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares”, livro lançado em setembro pela Globo Livros e que é o primeiro volume da trilogia que resgata o processo econômico, político e social que envolveu os séculos de escravidão no Brasil.

Para realizar a obra, Gomes consultou centenas de documentos históricos e viajou por 12 países em três continentes, passando por locais como a Serra da Barriga, onde se localizava o Quilombo dos Palmares, até fortificações nas quais os escravos aguardavam os navios responsáveis pelo tráfico.

Defensor das cotas preferenciais para afrodescendentes, ele acredita que o preconceito ainda presente em nosso país deve ser combatido por meio do estudo da nossa história. “Esse é um assunto ainda vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta”.

A seguir, leia a entrevista completa com o escritor.

Como surgiu o interesse de escrever sobre a escravidão no Brasil?
Eu tinha planos de escrever sobre a escravidão desde que comecei a pesquisar meu primeiro livro, 12 anos atrás. Ao tentar descrever o que era o Brasil em 1808, ano da chegada da corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro, me dei conta de que o tráfico negreiro e o uso intensivo de cativos africanos tinham sido a principal característica da colônia portuguesa nos três séculos anteriores.

Essa mesma percepção se repetiu ao me debruçar sobre as duas datas seguintes, 1822 e 1889. É quase impossível explicar o processo de independência, o primeiro e o segundo reinados e, depois, a Proclamação da República sem estudar a escravidão. É como se fosse o fio condutor dos nossos principais eventos históricos.

Era um tema totalmente relacionado com suas obras anteriores…
No livro “1822”, por exemplo, explico que o Brasil se manteve como monarquia depois da independência devido à soma de dois medos: o de uma guerra civil republicana que dividisse o país, a exemplo do que estava ocorrendo na América Espanhola, e o de uma guerra étnica, em que os escravos pegassem em armas contra seus senhores.

Esses dois medos fizeram com que a elite rural escravista brasileira cerrasse fileiras para que o futuro imperador Pedro I rompesse os vínculos com Portugal, mas mantivesse intacta a estrutura social vigente, sobretudo a escravidão e o tráfico negreiro.

Para entender como chegamos até aqui é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos índios e negros, entender quem teve acesso a oportunidades e privilégios ao longo desses últimos 500 anos e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje.

Ao fazer esse mergulho profundo, me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas.

Você trabalhou ao longo de seis anos nesse novo projeto. O que foi mais desafiador durante o processo?

No Brasil, tornou-se uma ideia comum que os documentos da escravidão teriam sido destruídos e estariam malconservados, o que tornaria o estudo do tema difícil, quando não impossível. Isso é verdade apenas em parte.

De fato, parte da documentação histórica, relacionada aos registros de compra e venda de escravos na antiga Alfândega do Rio de Janeiro, foi destruída por ordem de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, logo depois da proclamação da República. Com essa medida, os republicanos queriam, como se dizia na época, “apagar uma mancha” na história brasileira, o que, obviamente, foi inútil, porque a “mancha” nunca se apagou.

Mas, apesar disso, restaram inúmeras outras fontes preciosas, relativamente intactas e pouco exploradas. Isso inclui inquéritos policiais e processos na Justiça envolvendo os escravos e seus senhores; testamentos e inventários pós-morte; certidões de batismo, casamento e óbito; anúncios de fuga ou de compra e venda de cativos registrados nos jornais da época ou em documentação cartorial.
Hoje já se sabe com relativa precisão quantos eram e de que regiões saíam os escravos, quantos morreram no caminho e quantos chegaram ao Brasil e aos demais territórios da América.

Houve algum momento de comoção ao realizar o trabalho de pesquisa?
Fiquei particularmente tocado ao visitar as fortificações do tráfico de escravos na costa da África. Existem dezenas delas, em especial na atual República de Gana. Eram depósitos de seres humanos, onde milhares e milhares de africanos escravizados ficavam à espera da chegada dos navios negreiros como se fossem mercadorias prontas para serem distribuídas aos seus novos donos e compradores.

Um dos maiores e mais antigos é o castelo de São Jorge de Elmina. Dali saíram os antepassados da ex-primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama. Seus porões são visitados hoje por turistas afrodescendentes norte-americanos, que ali depositam coroas de flores em memória aos que partiram ou morreram.

Passei algum tempo sozinho num desses porões, um lugar úmido, frio, muito escuro, onde ficavam as mulheres. Algumas chegavam ali grávidas e davam à luz enquanto aguardavam para ser transferidas para um navio sujo, desconfortável e perigoso. Ali também amamentavam seus filhos recém-nascidos. Muitas morriam de fome, de doenças ou de desespero.

Foi uma experiência que me cortou o coração. Tive seguidas noites de insônia e pesadelos depois de passar por lá. Mas acho também que ninguém pesquisa e escreve um livro sobre a escravidão como se tivesse dando um passeio. Essa é, basicamente, uma história de dor e sofrimento. E para entendê-la precisamos nos aproximar dessa dor e desse sofrimento.

Como tem sido a recepção de sua obra pelo público e pela academia?
Já fiz lançamentos em diversos estados e cidades, incluindo, por exemplo, Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, e Salvador, a maior cidade africana fora da África. As pessoas têm demonstrado um interesse muito grande pelo tema.

Acredito que essa obra pode inspirar algum traço de racionalidade numa discussão que, nas redes sociais e nos pronunciamentos políticos, muitas vezes se resume a gritaria, polarização e intolerância. Apesar do fôlego aparente, em três volumes, esta série de livros não pretende nem poderia ser um estudo exaustivo ou definitivo da escravidão. Seria impossível, além de arrogante, qualquer tentativa de esgotar um assunto tão vasto, importante e premente, embora numa obra que, no conjunto, terá cerca de 1,5 mil páginas.

Meu propósito é destacar e explicar alguns aspectos que julgo importantes na análise do tema seguindo a fórmula já utilizada nos livros anteriores, mediante o uso de linguagem jornalística, simples e fácil de entender. Ou seja, mais uma vez quero ser um “abridor de portas”, especialmente para leitores jovens, mais leigos, ou que nunca se interessaram pelo assunto.

Sua obra explica que foi apenas na América que surgiu uma ideologia racista baseada na cor da pele para legitimar a escravidão. Como é possível superar esse preconceito ainda persistente?

A melhor maneira de enfrentar esses desafios é por meio do estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. Uma sociedade ou um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo porque desconhece suas raízes. Como não sabe de onde veio, provavelmente também não saberá o que (ou quem) é hoje e muito menos o que será no futuro.

Só pelo estudo de história será possível preparar — ou qualificar — os cidadãos brasileiros para a difícil tarefa de fazer escolhas e organizar a realização do país dos nossos sonhos. Isso inclui o racismo e o passivo social resultante da escravidão. Esse não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado.

Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta entre nós. E que ainda dói muito porque nunca foi devidamente tratada.

Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez.

E como todos esses fatores se refletem em nosso presente?
Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte. O resultado está hoje nas estatísticas e nos indicadores sociais, em que a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade que tem menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira.

Um segundo legado da escravidão é o preconceito. É uma das marcas terríveis das nossas relações sociais, embora sempre procuremos disfarçá-la construindo mitos a respeito de nós mesmos — por exemplo, a ilusão de que seríamos uma grande e exemplar democracia racial. O noticiário do dia a dia se encarrega de desmentir isso. É um tema que incomoda muita gente, porque desmente os nossos mitos mais arraigados.

Qual é sua opinião sobre a política de cotas no Brasil?
Sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada.

A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes.

Há ainda muita reação contrária…
Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da República, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram da escravidão e lucraram com ela, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria por que indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso.

Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.
Como é sua rotina de trabalho e onde você busca inspiração?
Antes eu fazia reportagens para jornais e revistas, agora faço livros-reportagem. Mas a essência do meu trabalho continua a mesma, o jornalismo. Convivia com muitos colegas nas redações. Era um ambiente mais animado e barulhento. Hoje, meu trabalho é mais solitário. Mas prefiro assim.
Gosto de pesquisar e pensar sozinho a respeito do que pretendo fazer. E gosto mais de ler do que escrever. É na poesia e nos romances que encontro a verdadeira inspiração para escrever. A literatura de ficção permite um mergulho mais profundo na alma humana do que os livros de não ficção, que, em geral, são obras de natureza técnica.
Leio e releio muito Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Pablo Neruda. Meus romances preferidos são “Sagarana”, de João Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez

Salvar as pessoas, as empresas e o emprego, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Valor Econômico, 23.3.2020

O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa o
custo do ponto de vista fiscal

Há duas semanas a economista Leda Paulani afirmou que a crise do coronavírus seria mais grave do que a crise de 2008. Minha reação foi um “talvez”. Talvez viesse a ser, mas eu não estava seguro. Agora, estou. Associada à pandemia há uma gravíssima crise econômica em formação que levará ao desemprego e à quebra das empresas de todo o mundo, ou, pelo menos, à uma forte redução de suas receitas e dos seus lucros.

As empresas de serviço estão parando porque todos os eventos que puderem ser adiados estão sendo adiados. As famílias, ameaçadas pelo desemprego, estão reduzindo as suas compras. As empresas comerciais estão enfrentando uma forte queda de vendas, e as empresas industriais, mesmo que não tenham sido obrigadas a reduzir a produção para evitar a propagação do vírus, não têm alternativa senão diminuir sua produção dada a falta de demanda.

O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa o custo do ponto de vista fiscal

Na China, onde primeiro apareceu o coronavírus, houve uma prática bem-sucedida de isolamento ou confinamento social e a expansão da doença parece ter sido controlada, mas diversos estudos indicam que nos primeiros três meses a redução da produção naquele país foi de 30%. É muita coisa. Mesmo que façamos a previsão otimista que no segundo trimestre a produção ficará no nível do ano anterior, e nos dois últimos trimestres aumente 8% a cada trimestre, a queda do PIB chinês em 2020 será de 8% (- 12+2+2). É muita coisa, e desconfio que estou sendo muito otimista.

Que fazer diante de um quadro como este? No plano da saúde é o isolamento e o aumento urgente da capacidade do SUS de enfrentar a pandemia. É não poupar gastos para dar capacidade ao Estado de proteger a saúde da população. E no plano econômico? Não pode haver nenhuma dúvida a respeito. O governo deve garantir a solvência das empresas e o emprego. Não importa quanto custe do ponto de vista fiscal.

Uma crise financeira como a Crise Financeira Global de 2008 resultou da quebra de alguns grandes bancos e empresas de seguro e de muitas famílias – todos porque haviam se endividado de maneira irresponsável. Agora não há irresponsabilidade de alguns agentes econômicos situados em posições-chave na economia, mas há a perspectiva de grave redução das vendas e maior redução dos lucros, acompanhada de forte aumento do desemprego porque a melhor defesa que a sociedade tem contra o vírus é o isolamento das pessoas.

A economia mundial deverá ser praticamente paralisada por pelo menos três meses, mas os custos das empresas continuarão a ser incorridos, não apenas os custos fixos, mas também grande parte dos custos variáveis precisarão ser mantidos dado o objetivo de manter o emprego. Em momentos como este, vemos quão importante é ter um Estado forte e capaz. E saber usá-lo. O governo já decretou situação de calamidade pública. Fez bem. Isto o libera dos limites legais estabelecidos para o seu gasto. Está prometendo crédito paras as empresas.

Isto é o mínimo. Mas em um quadro completamente novo como esse que o mundo e o Brasil estão enfrentando, o governo precisa também pensar de maneira nova. Agora o que o governo brasileiro, como, aliás, os governos de todos os países, deve fazer é usar seu Estado para salvar as pessoas da morte, para salvar as empresas da quebra, e para salvar os empregos. O Estado em cada nação tem esse tríplice salvamento como capacidade e como missão. Seu governo não pode ficar calculando qual será o impacto de cada medida que tome na dívida pública. Ela aumentará agora como aumentou em todo o mundo em 2008.

Não basta aumentar o crédito para as empresas. No seu último artigo no Valor Martin Wolf relata a proposta de dois notáveis economistas, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, Berkeley. Para eles “a forma mais direta de prover […] seguro é ter um governo atuando como comprador de última instância. Se o governo substituir totalmente a demanda que se evapora, cada empresa pode continuar pagando seus trabalhadores e mantendo seu estoque de capital, como se estivesse operando […] normalmente”.

Para colocar em prática uma política como essa é preciso haver coordenação com o Banco Central. Este já reduziu os juros, e foi importante que o fizesse, mas há uma segunda crise, mais precisamente, ameaça de crise que não pode ser desconsiderada. Antes do coronavírus o liberalismo econômico radical do governo, além de causar estagnação econômica, já nos ameaçava com crise financeira – com a continuidade da crise financeira de 2014. Esta foi uma crise financeira interna; foi definida pela falta de expectativas de lucro das empresas e paralisação do crédito privado.

Agora é o crédito externo que está diminuindo, como vemos pela retirada maciça de recursos estrangeiros da Bolsa de Valores brasileira, enquanto o déficit em conta- corrente aumenta principalmente devido ao aumento dos juros, dividendos e serviços pagos ao exterior. É a conta da desnacionalização que nos está sendo cobrada. Com o aumento do déficit em conta-corrente e a diminuição dos financiamentos externos, o dólar alcança a cada dia um novo recorde.

Uma crise financeira crônica? Pode parecer estranho, mas em dezembro de 1998 desencadeou-se uma crise financeira que se tornou crônica, só tendo realmente terminado com a crise financeira de dezembro de 2002. Desta vez, a crise financeira de 2014 e a recessão de 2015-2016 causaram a queda dos salários, da inflação e dos juros, mas a crise não chegou à sua solução por falta de demanda.
Os países ricos estão tomando medidas de emergência para enfrentar a propagação do vírus e a recessão provocada pela paralisação das empresas. O atraso da Itália neste ponto está tendo consequências trágicas para o país. Como vários governadores já se deram conta, o Brasil também não pode se atrasar. Mas seus poderes são limitados. Além de enfrentar o coronavírus e enfrentar a própria recessão, o Brasil precisa recuperar a confiança externa, que foi destruída neste último ano. É preciso que os credores externos vejam que nós também estamos fazendo com responsabilidade a nossa parte no enfrentamento da crise.

A crise do coronavírus, por Yuval Harari.

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Extraído de HSM – 16/03/2020

O historiador, filósofo e autor dos best-sellers “Sapiens” e “Homo Deus – Uma breve história do Amanhã”, Yuval Noah Harari, trouxe à tona sua percepção da pandemia que a humanidade está enfrentando.
Trouxemos os principais pontos do artigo publicado na Revista Time, no último domingo (15).

“A melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação”

Muitas pessoas culpam a epidemia de coronavírus pela globalização e dizem que a única maneira de evitar mais surtos desse tipo é “desglobalizar” o mundo. Construa muros, restrinja viagens, reduza o comércio. No entanto, embora a quarentena de curto prazo seja essencial para interromper as epidemias, o isolacionismo de longo prazo levará ao colapso econômico sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas. Exatamente o oposto. O verdadeiro antídoto para a epidemia não é a segregação, mas a cooperação.

As epidemias mataram milhões de pessoas muito antes da era atual da globalização. No entanto, a incidência e o impacto das epidemias diminuíram drasticamente. Apesar de surtos horrendos, como AIDS e Ebola, no século XXI as epidemias matam uma proporção muito menor de humanos do que em qualquer outro período anterior à Idade da Pedra. Isso ocorre porque a melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação. A humanidade tem vencido a guerra contra epidemias porque, na corrida armamentista entre patógenos e médicos, os patógenos dependem de mutações cegas, enquanto os médicos dependem da análise científica da informação.

Ganhando a guerra contra patógenos
Durante o século passado, cientistas, médicos e enfermeiros em todo o mundo reuniram informações e, juntos, conseguiram entender o mecanismo por trás das epidemias e os meios para combatê-las. A teoria da evolução explicou por que e como surgem novas doenças e doenças antigas se tornam mais virulentas. A genética permitiu que os cientistas espiassem o próprio manual de instruções dos patógenos. Embora o povo medieval nunca tenha descoberto o que causou a Peste Negra, os cientistas levaram apenas duas semanas para identificar o novo coronavírus, sequenciar seu genoma e desenvolver um teste confiável para identificar pessoas infectadas.

Depois que os cientistas entenderam o que causa as epidemias, ficou muito mais fácil combatê-las. Vacinas, antibióticos, higiene aprimorada e uma infra-estrutura médica muito melhor permitiram que a humanidade ganhasse vantagem sobre seus predadores invisíveis. Em 1967, a varíola ainda infectou 15 milhões de pessoas e matou 2 milhões delas. Mas, na década seguinte, uma campanha global de vacinação contra a varíola foi tão bem-sucedida que, em 1979, a Organização Mundial da Saúde declarou que a humanidade havia vencido e que a varíola havia sido completamente erradicada. Em 2019, nenhuma pessoa foi infectada ou morta por varíola.

O que a história nos ensina para a atual epidemia de coronavírus?
Você não pode se proteger fechando permanentemente suas fronteiras. Lembre-se de que as epidemias se espalharam rapidamente, mesmo na Idade Média, muito antes da era da globalização. Portanto, mesmo que você reduza suas conexões globais ao nível da Inglaterra em 1348 – isso ainda não seria suficiente. Para realmente se proteger através do isolamento, ficar medieval não serve. Você teria que ficar na Idade da Pedra. Você pode fazer aquilo?

A história indica que a proteção real vem do compartilhamento de informações científicas confiáveis ​​e da solidariedade global. Quando um país é atingido por uma epidemia, deve estar disposto a compartilhar honestamente informações sobre o surto, sem medo de uma catástrofe econômica – enquanto outros países devem poder confiar nessas informações e devem estender a mão amiga, em vez de ostracizar a vítima. Hoje, a China pode ensinar aos países de todo o mundo muitas lições importantes sobre o coronavírus, mas isso exige um alto nível de confiança e cooperação internacional.

A cooperação internacional é necessária também para medidas efetivas de quarentena. Quarentena e bloqueio são essenciais para impedir a propagação de epidemias. Mas quando os países desconfiam um do outro e cada país sente que é o seu próprio país, os governos hesitam em tomar medidas tão drásticas. Se você descobrisse 100 casos de coronavírus no seu país, iria bloquear imediatamente cidades e regiões inteiras? Em grande medida, isso depende do que você espera de outros países. Bloquear suas próprias cidades pode levar ao colapso econômico. Se você acha que outros países irão ajudá-lo – será mais provável que você adote essa medida drástica. Mas se você pensa que outros países o abandonarão, provavelmente hesitaria até que seja tarde demais.

“Não se trata mais de nações, mas da espécie humana”
Talvez a coisa mais importante que as pessoas devam perceber sobre essas epidemias seja que a disseminação da epidemia em qualquer país ponha em perigo toda a espécie humana. Isso ocorre porque os vírus evoluem. Vírus como a corona se originam em animais, como os morcegos. Quando eles pulam para os seres humanos, inicialmente os vírus estão mal adaptados aos seus hospedeiros humanos. Enquanto se replicam em humanos, os vírus ocasionalmente sofrem mutações. A maioria das mutações é inofensiva. Mas, de vez em quando, uma mutação torna o vírus mais infeccioso ou mais resistente ao sistema imunológico humano – e essa cepa mutante do vírus se espalha rapidamente na população humana. Como uma única pessoa pode hospedar trilhões de partículas de vírus que sofrem replicação constante, toda pessoa infectada oferece ao vírus trilhões de novas oportunidades para se tornar mais adaptado aos seres humanos. Cada transportadora humana é como uma máquina de jogo que fornece ao vírus trilhões de bilhetes de loteria – e o vírus precisa comprar apenas um bilhete vencedor para prosperar.

Enquanto você lê essas linhas, talvez uma mutação semelhante esteja ocorrendo em um único gene no coronavírus que infectou uma pessoa em Teerã, Milão ou Wuhan. Se isso de fato está acontecendo, é uma ameaça direta não apenas aos iranianos, italianos ou chineses, mas também à sua vida. Pessoas de todo o mundo compartilham um interesse de vida ou morte em não dar ao coronavírus essa oportunidade. E isso significa que precisamos proteger todas as pessoas em todos os países.

Na luta contra vírus, a humanidade precisa proteger estreitamente as fronteiras. Mas não as fronteiras entre os países. Pelo contrário, precisa proteger a fronteira entre o mundo humano e a esfera do vírus. O planeta Terra está se unindo a inúmeros vírus, e novos vírus estão em constante evolução devido a mutações genéticas. A fronteira que separa essa esfera de vírus do mundo humano passa dentro do corpo de todo e qualquer ser humano. Se um vírus perigoso consegue penetrar nesta fronteira em qualquer lugar do mundo, coloca toda a espécie humana em perigo.

Ao longo do século passado, a humanidade fortaleceu essa fronteira como nunca antes. Os modernos sistemas de saúde foram construídos para servir de barreira nessa fronteira, e enfermeiros, médicos e cientistas são os guardas que a patrulham e repelem os invasores. No entanto, longas seções dessa fronteira foram deixadas lamentavelmente expostas. Existem centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que carecem de serviços de saúde básicos. Isso coloca em perigo todos nós. Estamos acostumados a pensar em saúde em termos nacionais, mas fornecer melhores cuidados de saúde para iranianos e chineses ajuda a proteger israelenses e americanos também de epidemias. Essa verdade simples deve ser óbvia para todos, mas infelizmente ela escapa até mesmo às pessoas mais importantes do mundo.

Um mundo sem líder
Hoje a humanidade enfrenta uma crise aguda, não apenas devido ao coronavírus, mas também devido à falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam confiar em especialistas científicos, os cidadãos precisam confiar nas autoridades públicas e os países precisam confiar uns nos outros. Nos últimos anos, políticos irresponsáveis ​​minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Como resultado, agora estamos enfrentando esta crise desprovida de líderes globais que podem inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada.

Xenofobia, isolacionismo e desconfiança agora caracterizam a maior parte do sistema internacional. Sem confiança e solidariedade global, não seremos capazes de parar a epidemia de coronavírus, e provavelmente veremos mais dessas epidemias no futuro. Mas toda crise também é uma oportunidade. Esperamos que a epidemia atual ajude a humanidade a perceber o grave perigo que representa a desunião global.

Neste momento de crise, a luta crucial ocorre dentro da própria humanidade. Se essa epidemia resultar em maior desunião e desconfiança entre os seres humanos, será a maior vitória do vírus. Quando os humanos brigam – os vírus dobram. Por outro lado, se a epidemia resultar em uma cooperação global mais estreita, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todos os patógenos futuros.

‘Coronavírus isolou líderes populistas’: Para Steven Levitsky

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Para Steven Levitsky, cientista político americano e coautor de ‘Como as Democracias Morrrem’, ignorar especialistas fez líderes como Trump e Bolsonaro reagirem tarde à pandemia
José Eduardo Barella / O Estado de S. Paulo 
29/03/2020

Acostumados a fazer dos adversários inimigos mortais e desprezar o que chamam de elite política, acadêmica, científica e cultural, muitos líderes populistas estão experimentando o próprio veneno. Pegos de surpresa pelo novo coronavírus, eles reagiram tarde à pandemia e estão às voltas com o aumento de casos e mortes, além da expectativa de uma gravíssima crise econômica. 

Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.  

A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky. 

Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.  

Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo. 

No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento? 
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.  

Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento. 

Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.  

A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump. 

Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.  

Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?
Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.  

É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?
Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará. 

Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder. 

Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento? 
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.  

Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada. 

Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero. 

O coronavírus revelou o essencial: o professor. Por Alexandre Schneider

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Mesmo com escolas fechadas, o papel deles é central no desenho e implementação das políticas educacionais

Um momento de distração ao olhar pela janela a rua vazia é interrompido por um chamado de meu filho de 11 anos, às voltas com uma pesquisa sobre o confucionismo. Tomás, assim como seus mais de um milhão de colegas da rede pública da cidade de Nova York, iniciou a semana com uma nova experiência: suas aulas agora são à distância.
 
No Brasil e no mundo, escolas públicas e privadas estão enfrentando o desafio de manter o processo de aprendizagem em novas bases, com o fechamento das escolas por tempo indeterminado, uma das medidas de contenção do coronavírus. A medida já alcançou 157 países e cerca de 1,4 bilhão de alunos, segundo a Unesco.

Diante da necessidade de isolamento social, há duas decisões possíveis, a de antecipar as férias ou a de lançar mão do uso de plataformas digitais e do ensino à distância. Qualquer das escolhas depende de outros dois aspectos fundamentais: a existência de um bom planejamento pedagógico e, sobretudo, a liberdade de escolha pedagógica do professor.

Há inúmeras evidências na literatura educacional a demonstrar que, controlados os demais fatores, estudantes submetidos ao ensino à distância aprendem menos do que aqueles que frequentam aulas presenciais. Como agravante, os mais vulneráveis aprendem ainda menos.

A cidade de Nova York tomou a decisão de cancelar as aulas de sua rede pública na semana passada. O secretário de educação propôs que cada escola realizasse um plano de implantação de ensino à distância, a partir de sua realidade.
Umbigo do mundo capitalista, Nova York é uma cidade muito desigual. Dos cerca de 1,1 milhão de alunos, 300 mil não possuem um equipamento ou acesso a internet.

Para esses, a Prefeitura garantiu o empréstimo de computadores — em muitos casos os das próprias escolas— e o fornecimento de roteadores de acesso à internet com apoio de parceiros da iniciativa privada.

Conversei com estudantes, professores e gestores de escolas públicas e privadas da cidade. Os estudantes me revelaram que se sentem mais cansados no final do dia e que sentem falta dos colegas. Por outro lado, percebem que há continuidade entre o que vinham aprendendo nas aulas presenciais e nas aulas à distância.

O testemunho dos gestores e professores também é o mesmo: estão aprendendo enquanto fazem. Os princípios comuns são os de respeitar o planejamento previsto antes da crise, preparar materiais que provoquem reflexão e pesquisa dos estudantes e estarem preparados para mudar sua estratégia de acordo com a resposta dos mesmos.

Os pais de Helena, que tem 16 anos e estuda em uma disputada escola pública de ensino médio com foco em ciências e matemática, receberam o planejamento das aulas à distância e o calendário escolar no domingo anterior ao início das aulas em modo remoto. O mesmo ocorreu com Tomás, que tem 11 anos e estuda em uma middle school pública (o que equivale ao Fundamental 2 no Brasil).

As duas escolas já utilizavam uma plataforma de relacionamento com alunos e pais. Por ela, além de informações gerais, cada professor envia tarefas de casa, vídeos, materiais de apoio, avaliações dos alunos, realiza mentoria e acompanha se os estudantes estão ou não conectados e se dedicando às tarefas.

Nina tem a mesma idade de Helena e estuda em uma escola privada de qualidade alta. Sua experiência foi um pouco distinta. A escola escolheu utilizar uma plataforma de comunicação em vídeo para que os professores dessem aulas à distância nos mesmos horários em que ocorriam as aulas presenciais. A iniciativa não fez muito sucesso com os estudantes, que se disseram cansados com o método.

A escola rapidamente mudou o desenho, intercalando aulas à distância via plataforma de vídeo, tarefas, mentoria e trabalho em grupo.

No Brasil temos dois grupos de iniciativas. Nas escolas particulares, vêm sendo utilizados vários recursos, como o de vídeo ao vivo ou gravado, reproduzindo o ambiente de uma sala de aula, o envio de tarefas, a mentoria e sessões em grupos menores para tirar dúvidas dos alunos. Muitas vezes essas estratégias são combinadas.

O grande desafio que as escolas particulares terão caso as medidas de isolamento sejam prolongadas é sua sustentabilidade. Os pais precisam compreender que os custos não mudam e que a maior riqueza de uma escola é a qualidade de seus profissionais.

As melhores escolas públicas e privadas de Nova York, assim como as escolas de elite no Brasil, se basearam na continuidade do que foi planejado pelos professores e pelas escolas. Ninguém adotou soluções mágicas que batem à porta nesse momento, como a venda de sistemas, aplicativos e plataformas de apoio didático. Mais do que a tecnologia, as soluções se estruturaram na confiança do compromisso das pessoas que estão no coração do processo: os professores.

A escolas públicas brasileiras estão fechadas. Algumas redes anteciparam o recesso de julho, o que é uma decisão correta. É hora de os secretários estaduais e municipais discutirem com suas equipes pedagógicas as diretrizes para o retorno às aulas presenciais e o que fazer em caso de se optar pelas aulas à distância.

No caso de um prolongamento das medidas de quarentena, um sistema de comunicação simples entre as escolas, estudantes e pais, com a distribuição de materiais preparados pelos professores é suficiente. Para aqueles estudantes que não possuem computadores ou internet, poderia se adaptar espaços que respeitem as regras sanitárias de distância necessárias.

A principal lição desse momento é que mesmo com as escolas fechadas, o papel dos professores é central no desenho e implementação das políticas educacionais.

Para que eles consigam apoiar seus alunos em pleno exercício de suas capacidades, a sociedade precisa garantir-lhes recursos à altura dos desafios que a profissão lhes impõe, como uma carreira que possibilite a esses profissionais trabalhar em uma única escola, como ocorre nas melhores redes públicas do mundo e nas melhores escolas particulares do Brasil.

Deixo aqui sugestões mais gerais a quem está na linha de frente, gerenciando nossas redes públicas. Desenhem soluções capazes de garantir o melhor aos alunos mais vulneráveis de suas redes. Uma solução que os atenda será capaz de atender a todos.

Confiem nos seus profissionais. Peçam a cada uma das escolas um plano específico para esse momento difícil e criem um método de monitoramento dos mesmos. Por fim, deixem os professores livres para realizarem suas escolhas pedagógicas.

Alexandre Schneider
Pesquisador visitante e professor adjunto da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP, consultor e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

Uma depressão ainda maior? Por Nouriel Roubini

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Project Syndicate 
26 de março de 2020

Com a pandemia da covid-19 ainda fora de controle, o melhor resultado econômico que se pode esperar é uma recessão mais profunda do que aquela que se seguiu à crise financeira de 2008. Mas, dada a instabilidade das respostas políticas até agora, as chances de um resultado muito pior estão aumentando a cada dia.
NOVA YORK – O choque da covid-19 na economia global foi mais rápido e mais severo que a Crise Financeira Global de 2008 (GFC, na sigla em inglês) e até mesmo que a Grande Depressão. Nos dois episódios anteriores, as bolsas de valores caíram em 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, grandes falências se sucederam, as taxas de desemprego saltaram acima de 10% e o PIB se contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas tudo isso levou cerca de três anos para acontecer. Na crise atual, resultados macroeconômicos e financeiros igualmente terríveis se materializaram em três semanas.

No início deste mês, foram necessários apenas 15 dias para o mercado de ações dos Estados Unidos despencar para um território de baixa (um declínio de 20% em relação ao pico, o mais rápido já registrado).

Agora, os mercados já caíram 35%, os mercados de crédito se paralisaram e os spreads de crédito (como os de títulos indesejados) subiram para os níveis de 2008. Até mesmo as empresas financeiras mainstream, como Goldman Sachs, JP Morgan e Morgan Stanley, esperam que o PIB americano caia a uma taxa anualizada de 6% no primeiro trimestre e de 24% a 30% no segundo. O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steve Mnuchin, alertou que a taxa de desemprego pode subir para mais de 20% (o dobro do maior nível registrado durante a GFC).

Em outras palavras, todos os componentes da demanda agregada – consumo, investimento em bens de capital, exportações – estão em uma queda livre sem precedentes. Ainda que a maioria dos comentaristas prefira antecipar uma desaceleração em forma de V – com a produção caindo acentuadamente por um trimestre e se recuperando rapidamente no próximo –, agora já deveria estar bem claro que a crise da covid-19 é uma coisa completamente diferente. A contração que está em andamento não parece ter forma de V, nem de U, nem mesmo de L (desaceleração acentuada seguida de estagnação). Pelo contrário, parece um I: uma linha vertical que representa os mercados financeiros e a economia real em queda. 

Nem mesmo durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial a maior parte da atividade econômica foi literalmente fechada, como está ocorrendo na China, nos Estados Unidos e na Europa nos dias de hoje. O melhor cenário seria uma desaceleração mais severa que a GFC (em termos de redução da produção global), mas de vida mais curta, possibilitando um retorno ao crescimento positivo até o quarto trimestre deste ano. Nesse caso, os mercados começariam a se recuperar assim que aparecesse a luz no fim do túnel. 

Mas o melhor cenário pressupõe várias condições. Primeiro, os Estados Unidos, a Europa e outras economias fortemente afetadas precisariam implementar vastas medidas de teste, rastreamento e tratamento da covid-19, quarentenas forçadas e um bloqueio generalizado do tipo que a China implementou. E, como pode levar 18 meses para que uma vacina seja desenvolvida e produzida para toda a população, antivirais e outros medicamentos precisariam ser introduzidos em larga escala. 

Segundo, os formuladores de políticas monetárias – que já fizeram em menos de um mês o que demoraram três anos para fazer depois da CGF – precisariam continuar tirando da cartola medidas não convencionais para combater a crise. Isso significa taxas de juros zero ou negativas; intensificação do forward guidance [ou seja, mais clareza por parte dos bancos centrais na sinalização da trajetória futura da taxa de juros]; flexibilização quantitativa; e facilitação do crédito (compra de ativos privados) para ajudar bancos, instituições financeiras não bancárias, fundos do mercado monetário e até grandes corporações (commercial papers [notas promissórias comerciais] e títulos privados). O Federal Reserve dos Estados Unidos expandiu suas linhas de swaps para atender à enorme escassez de liquidez em dólar nos mercados globais, mas agora precisamos de mais instrumentos para incentivar os bancos a emprestar a pequenas e médias empresas sem liquidez, mas ainda solventes. 

Terceiro, os governos precisariam implantar estímulos fiscais maciços, inclusive por meio de “dinheiro jogado de helicóptero”, ou seja, transferências diretas em dinheiro para as famílias. Dado o tamanho do choque econômico, os déficits fiscais nas economias avançadas precisariam aumentar de 2 a 3% do PIB para cerca de 10% ou ainda mais. Somente os governos centrais têm balanços grandes e fortes o suficiente para impedir o colapso do setor privado. 

Mas essas intervenções financiadas pelo déficit devem ser totalmente monetizadas. Se elas forem financiadas por meio da dívida pública padrão, as taxas de juros subiriam acentuadamente e a recuperação morreria sufocada antes de sair do berço. Dadas as circunstâncias, as intervenções há muito propostas pelos esquerdistas da escola da Teoria Monetária Moderna, entre elas o “dinheiro de helicóptero”, tornaram-se mainstream. 

Infelizmente, a reação da saúde pública nas economias avançadas ficou muito aquém do necessário para conter a pandemia, e o pacote de políticas fiscais hoje em debate não está amplo nem rápido o suficiente para criar condições para uma recuperação oportuna. Assim, o risco de uma nova Grande Depressão pior que a original – uma Depressão Ainda Maior – aumenta a cada dia. 

A menos que a pandemia seja interrompida, as economias e os mercados do mundo todo continuarão em queda livre. Mas, mesmo que a pandemia seja mais ou menos contida, o crescimento geral não retornará até o final de 2020. Afinal, até lá, é provável que comece outra temporada de vírus, com novas mutações; intervenções terapêuticas com as quais muitos estão contando podem se mostrar menos eficazes do que se espera. Assim, as economias se contrairão mais uma vez, e os mercados cairão mais uma vez. 

Além disso, a resposta fiscal pode chegar a um limite se a monetização de déficits maciços começar a gerar inflação alta, especialmente se uma série de choques negativos na oferta, relacionados ao vírus, reduzir o crescimento potencial. E muitos países simplesmente não conseguem fazer esses empréstimos em sua própria moeda. Quem socorrerá governos, corporações, bancos e famílias em mercados emergentes? 

De qualquer forma, mesmo que a pandemia e as consequências econômicas forem controladas, a economia global ainda poderia se ver sujeita a vários riscos da chamada cauda de “cisne branco”. Com a eleição presidencial americana se aproximando, a crise da covid-19 dará lugar a novos conflitos entre o Ocidente e pelo menos quatro potências revisionistas: China, Rússia, Irã e Coréia do Norte, que já estão se valendo da ciberguerra assimétrica para minar os Estados Unidos por dentro. Os inevitáveis ataques cibernéticos ao processo eleitoral americano podem gerar contestação do resultado final, com acusações de “manipulação” e possibilidade de violência e desordem civil. 

De maneira similar, como já argumentei em outra ocasião, os mercados estão subestimando enormemente o risco de uma guerra entre os Estados Unidos e o Irã ainda este ano; a deterioração das relações sino-americanas vem se acelerando, pois um lado culpa o outro pela escala da pandemia da covid-19. É provável que a atual crise precipite a balcanização e o esfacelamento da economia global nos próximos meses e anos. 

Essa trindade de riscos – pandemias não contidas, arsenais de política econômica insuficientes e cisnes brancos geopolíticos – será o bastante para jogar a economia global em uma recessão persistente e produzir um colapso descontrolado do mercado financeiro. Depois do crash de 2008, uma resposta forte (ainda que demorada) afastou a economia global do abismo. Pode ser que não tenhamos tanta sorte desta vez. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

* Nouriel Roubini, professor de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova York e presidente da Roubini Macro Associates, foi economista para assuntos internacionais do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca durante o governo Clinton. Ele trabalhou para o Fundo Monetário Internacional, o Federal Reserve dos Estados Unidos e o Banco Mundial. Seu site é NourielRoubini.com.

‘O Brasil precisa construir sua própria escada rumo ao desenvolvimento’, diz Ha-Joon Chang

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Jornal da Unicamp, 15/05/2018

Docente da Universidade de Cambridge, o economista sul-coreano fez duas conferências no Instituto de Economia e falou ao Jornal da Unicamp
O sul-coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, é considerado um dos mais proeminentes economistas heterodoxos da atualidade. Conhecido por ser um crítico do liberalismo econômico, Chang conta com muitos admiradores no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Prova disso foi o interesse demonstrado por estudantes e docentes da Unicamp nas duas conferências apresentadas por ele no Instituto de Economia (IE), nos últimos dias 8 e 9 de maio. Na primeira delas, o auditório superlotou e parte do público teve que se acomodar no chão. A presença de Chang na Universidade faz parte de uma série de eventos em comemoração aos 50 anos de criação do IE. 
Entre uma atividade e outra, o docente de Cambridge fez uma pausa para falar ao Jornal da Unicamp. Na entrevista que segue, ele aborda diversas questões, várias delas relacionadas ao desenvolvimento econômico. Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, as economias dos países ricos avançaram por causa da adoção de políticas protecionistas, e não porque se basearam no livre comércio. “Somente depois de que suas economias se fortaleceram foi que essas nações passaram a defender o livre comércio”, afirma.

Jornal da Unicamp – Esta é a sua segunda visita à Unicamp. Como avalia o contato com a comunidade universitária nesta oportunidade?
Ha-Joon Chang – Agradeço ao convite do Instituto de Economia da Unicamp para falar aos seus estudantes e professores. Não poderia ter ficado mais satisfeito com a presença e a participação do público nas minhas duas conferências. Os participantes fizeram perguntas de muita qualidade. Também fiquei feliz porque alguns dos meus livros são adotados para reflexão em disciplinas do Instituto de Economia. É um prazer estar aqui para participar deste momento no qual o Instituto comemora 50 anos de atividades.

JU – Em seu trabalho, o senhor afirma que os países ricos, embora defendam o livre comércio, desenvolveram suas economias a partir de políticas protecionistas. Como isso ocorreu?
Ha-Joon Chang – Os países ricos tiveram maior autonomia para implementar essas políticas protecionistas ao longo do Século XIX. Fizeram isso por meio de tratados de comércio desiguais em relação a economias mais frágeis. Já no Século XX, após a Segunda Guerra Mundial, abriu-se um novo espaço, diante do contexto geopolítico da Guerra Fria. Foi quando os países em desenvolvimento também adotaram políticas protecionistas para fomentar indústrias nascentes. Esse cenário vai se reverter a partir dos anos 1980 com a crise da dívida externa enfrentada por muitas economias em desenvolvimento. Em 1995, com a constituição da OMC [Organização Mundial do Comércio], reforça-se a política do livre comércio. Como consequência, nos últimos 20/30 anos, temos observado a deterioração da indústria em muitas economias.

JU – Por falar em deterioração da indústria, o senhor também tem alertado para o risco da desindustrialização das economias emergentes. No caso do Brasil, quais os perigos de o país sustentar a sua economia na produção de commodities? 
Ha-Joon Chang – Esse fenômeno teve início nos anos 1980. É um fenômeno que um colega de Cambridge, Gabriel Palma, denomina de “desindustrialização prematura”. O termo classifica a queda da participação da indústria na economia antes mesmo de o processo de industrialização ter se consolidado totalmente. O Brasil teve uma das principais economias manufatureiras do mundo. Até o início dos anos 1980 a indústria respondia por quase 30% do PIB brasileiro. Depois disso, ocorreu um processo importante de deterioração. Atualmente, essa participação está em torno de 10%. A indústria tem uma importância grande no processo de desenvolvimento econômico. Uma vez desestruturado esse setor, fica muito difícil reconstruí-lo e torná-lo competitivo novamente. 

JU – Num passado recente, sempre que se discutia a necessidade de investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, a Coreia do Sul era apontada como exemplo a ser seguido. Esse modelo continua sendo válido?
Ha-Joon Chang – A Coreia do Sul continua sendo um importante investidor em P&D. Está entre os cinco principais investidores do mundo na área, junto com países como Suécia, Finlândia e Israel, quando consideramos os gastos com P&D em relação ao PIB. Uma questão importante é que, uma vez perdida a capacidade industrial, o país também reduz a demanda por investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A indústria está muito atrelada ao desenvolvimento de novas tecnologias. Tanto é assim que nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, a indústria responde por 60% a 70% dos investimentos em P&D. 

JU – O senhor se autointitula um economista pragmático. Como é defender uma economia pragmática num mundo totalmente polarizado?
Ha-Joon Chang – Ser pragmático nos tempos de hoje, num mundo polarizado como você diz, é muito difícil porque as críticas surgem de todos os lados. É preciso entender que não existe um modelo único de desenvolvimento. Precisamos ser mais pragmáticos. A Suécia, que é um país igualitário, tem uma família que detém metade das corporações do país. Em Singapura, onde a economia é altamente desenvolvida, o Estado é que detém mais de 90% das terras. São modelos diferentes que responderam aos objetivos de cada sociedade.
JU – Falando em sociedade, o senhor considera que o bem-estar social deva ser premissa ou consequência do desenvolvimento?
Ha-Joon Chang – Penso que o desenvolvimento tem que contemplar as duas dimensões. É muito importante que as bases sociais sejam colocadas. Questões como saúde, educação e estabilidade social dos trabalhadores são fundamentais para que a sociedade possa se desenvolver. Ao mesmo tempo em que a economia avança, os indivíduos percebem que têm novos direitos e novas demandas. Nesse ponto, concordo com a vertente marxista que considera que as necessidades da população mudam conforme a sociedade se desenvolve. O desenvolvimento econômico pode trazer consequências positivas em termos sociais.

JU – No Brasil, seguidos governos demonstraram obsessão em relação ao controle da inflação. Foi criada até a figura de um dragão que precisava ser derrotado. O senhor, porém, critica essa sanha anti-inflacionária, dizendo que tão importante quanto controlar a inflação é promover a estabilidade da produção e do desenvolvimento. Pode explicar melhor essa sua posição?
Ha-Joon Chang – Obviamente, uma taxa de inflação muito elevada, na faixa dos 40% ou 50% ao ano, desencoraja os investimentos e compromete o horizonte de decisão. Muitos economistas, porém, dizem que uma inflação abaixo dos 20% não traria grande impacto para a economia, principalmente se o índice girar em torno dos 10%. Essa obsessão pelo combate à inflação prejudica outros setores. Por trás do interesse de manter a inflação baixa está o setor financeiro, que tem ganhos por meio de contratos e aplicações em valores nominais. Ou seja, inflação baixa é sinônimo de vantagem para o setor financeiro. As políticas que garantem a inflação baixa afetam negativamente a indústria. No Brasil, durante os governos do Partido dos Trabalhadores, governos de perfil progressista, houve continuidade dessa política que favoreceu mais o setor financeiro que o industrial. 

JU – Retomando a questão do protecionismo, em um dos seus livros, intitulado “Chutando a Escada – A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica”, o senhor diz que os países ricos utilizaram políticas protecionistas para desenvolver suas economias, mas depois chutaram a escada para que os países emergentes não galgassem o mesmo patamar. No caso do Brasil, o senhor considera possível que essa escada seja reposicionada?
Ha-Joon Chang – Todos os países, uma vez que conseguem alcançar um nível de desenvolvimento maior, acabam chutando a escada. Estados Unidos e Inglaterra fizeram isso. Hoje, a China também vem adotando essa prática. O que talvez caiba ao Brasil e a outras economias em desenvolvimento é pensar em como construir suas próprias escadas. Buscar outros campos, sobretudo no contexto do surgimento de novas tecnologias. As economias avançadas levam vantagem sobre as economias mais atrasadas, principalmente em relação às indústrias tradicionais existentes. Entretanto, as economias em desenvolvimento, inclusive a brasileira, podem buscar oportunidades em indústrias novas, principalmente nas áreas de bioenergia, novos materiais etc. 

JU – Para finalizar, uma questão que não está diretamente relacionada com a economia, mas que tem implicações sobre ela. Como cidadão sul-coreano, como o senhor vê o movimento de reaproximação entre Coreia do Sul e Coreia do Norte?
Ha-Joon Chang – Vejo esse movimento como positivo. Fico satisfeito em poder presenciar isso. A divisão, que persiste há 70 anos, ainda é resultado da Guerra Fria. Apesar dessa reaproximação ser positiva, há um caminho repleto de desafios pela frente. Mesmo que um tratado de paz seja assinado, vários fatores ainda precisarão ser trabalhados. Uma possível reunificação terá que enfrentar questões complexas como as distintas condições econômicas, os diferentes padrões de vida e as especificidades de cada regime político. Esse processo certamente vai requerer muito tempo e diálogo.
 

‘O Brasil está à deriva, não vejo nenhuma estratégia’, diz economista

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Para Eduardo Giannetti, presidente “encarna o corporativismo”, e governo precisa deixar claro conteúdo e cronograma de reformas

O Estado de São Paulo – 06/03/2020

Ainda é cedo para dizer que o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019 – que surpreendeu não tanto pelo crescimento fraco, de 1,1%, mas por sua composição, com baixo nível de investimento – vai se repetir em 2020, segundo o economista Eduardo Giannetti. A ausência de um plano econômico claro, com propostas e cronogramas definidos publicamente, no entanto, pode fazer com que isso volte acontecer, o que, por sua vez, frustraria a população.

“Aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vem se manifestando na sociedade. O desapontamento com o (presidente Jair) Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda”, diz o economista.

Para ele, o País está “à deriva” – “não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido” -, e uma possível perda de poder da ala liberal dentro do governo, além do coronavírus, acentuam a imprevisibilidade. A seguir, trechos da entrevista.

No fim do ano passado, o sr. falou que acreditava que 2020 não repetiria a decepção com o PIB registrada em 2018 e 2019. Ainda acha isso?

Em função de fatores externos e domésticos, estou menos convencido agora de que a recuperação cíclica é irreversível. Mas acho que é cedo para dizer que vamos repetir o que aconteceu nos últimos três anos.

Mas as revisões para baixo já começaram.

Já, mas acho que é cedo para determinar, diante de tantas incertezas, inclusive externas, qual vai ser o desempenho em 2020. O mundo está mais imprevisível. Nos últimos 12 meses, tivemos ameaça de guerra comercial, de guerra entre EUA e Irã e agora o coronavírus. Cada um desses eventos gera incerteza. Seria improvável um mundo em que eventos de baixa probabilidade nunca acontecessem. Eles acontecem. O que mudou é que antes eles eram locais e agora são globais. Isso torna o mundo mais imprevisível.

Três fatores aumentam a imprevisibilidade mundial. Primeiro, a maior interdependência. Quando teve a Sars, em 2003, a China era muito menor do que é hoje. Uma queda da produção da China hoje faz cair o preço das commodities e afeta os emergentes. A interdependência de comércio, finanças, pessoas e informação aumenta a imprevisibilidade. A segunda coisa é a tecnologia. Ninguém sabe qual será a estrutura econômica futura e se ela sancionará os atuais modelos de negócio que são vitoriosos. A indústria digital é um serial killer, mata um setor econômico de cada vez. Isso gera enorme insegurança nos tomadores de decisão e muita imprevisibilidade microeconômica. A terceira coisa é a polarização política. Estamos nas mãos de governos que agem de acordo com uma lógica que não era a estabelecida no sistema democrático de poucos anos atrás. Isso é uma novidade que aumenta a imprevisibilidade no processo decisório. Então, é bom a gente se preparar porque o mundo ficou mais imprevisível. Talvez esse seja o novo normal. O aumento da imprevisibilidade torna mais difícil o processo decisório e afeta investimentos.

A tendência, então, é uma queda geral de investimentos?

As pessoas vão ter de aceitar correr mais riscos. Não vão poder se ausentar completamente. Ao mesmo tempo, as taxas de juros estão baixas, o que leva os detentores de ativos a buscar alternativas para investir. São forças em direções contrárias.

E como o sr. vê a questão de previsibilidade doméstica?

Aí o governo Bolsonaro deixa muito a desejar, porque não está nem um pouco empenhado em dar sequência ao movimento reformista.

O presidente ou o governo como um todo?

É o governo como um todo. O Brasil está à deriva em termos de governo. Não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido.

Não há um plano liberal sendo implementado?

Não vejo estratégia, comprometimento ou clareza. É espantoso que a equipe econômica não tenha, até agora, dito o que deseja de reforma tributária. Eles sabem da importância desse assunto para a vida empresarial e não se manifestam. A única coisa que aparece desse governo é corporativismo. É, por exemplo, liberar terra indígena para mineração. O presidente confunde defender os grupos de interesse que interessam a ele politicamente com o governo do Brasil. Ele defende os militares na reforma da Previdência, se omite na greve das polícias militares, defende os canais de televisão dos grupos de mídia que o apoiam liberando sorteios, quer abrir terras indígenas para garimpo para defender grupos até paralegais que atuam em mineração ilegal na região amazônica.

O corporativismo era tido como uma das grandes características do governo PT…

Ninguém encarna mais o corporativismo pequeno do que o nosso presidente. Ele não vê problema em usar o poder para favorecer aqueles que os apoiam.

O sr. já disse várias vezes que vê risco à democracia no Brasil sob Bolsonaro. Como o sr. avalia o fato de o presidente ter compartilhado um vídeo convocando para protesto contra o Congresso?

Concretamente, a linha não foi atravessada. Mas fica cada vez mais claro que o sentimento é de atropelar instituições. Temo que, num momento de crise, esse sentimento se transforme em ação. O risco é alto e tenho certeza de que a insegurança política gerada pelos pronunciamentos do Bolsonaro em nada contribui para a economia brasileira. Houve um rumor, pouco tempo atrás, de que o Paulo Guedes poderia sair do governo. E se o Bolsonaro resolve dar um cavalo de pau na economia e chamar um militar? Aliás, isso é curioso. Há três grupos no governo: o militar geopolítico, o liberal econômico e o familiar astrológico. Essa correlação de forças tem mudado e o familiar astrológico se enfraqueceu, enquanto o militar avançou e aparentemente está de olho na economia.

O sr. dizia que o familiar o preocupava. Como vê essa mudança?

A força que me parecia menos ameaçadora era a econômica. O enfraquecimento dela é mais um elemento de incerteza.

Voltando ao PIB, o resultado de 2019 e a possível debilidade que deve haver neste ano ameaçam a agenda reformista?

Pouca reforma foi feita até agora, mas uma conquista é que o Brasil saiu da UTI fiscal. Isso começou no governo Temer e teve continuidade neste início do governo Bolsonaro.

Mas isso é algo que a população não sente. As pessoas percebem o desemprego.

Está faltando essa agenda de reforma administrativa, tributária, de marco regulatório adequado para investimento em infraestrutura e de um governo que tranquilize, em vez de hostilizar. Um governo que mostre seriedade e compromisso em criar um ambiente estável para que as pessoas possam se sentir confiantes em relação ao futuro. O governo Bolsonaro não contribui em nada para isso. Essa maluquice que fez, se recusando a comentar os números do PIB, é um desastre para a credibilidade. Mas as reformas não foram feitas ainda. Se forem feitas e não derem resultado, aí tem duas possibilidades: elas podem ser necessárias, mas não suficientes, ou se mostrarem contraproducentes. Mas, se acontecer uma boa reforma tributária, isso só pode contribuir para o melhor desempenho da economia brasileira. Não tem como piorar.

O que mais precisa ser feito?

Reforma administrativa. A questão do pacto federativo é importante. Temos de descentralizar as decisões em relação ao uso de recursos públicos no Brasil. Essa é uma boa agenda que a equipe econômica do governo Bolsonaro tem, mas não está acontecendo. O governo tem de apresentar propostas, apresentar um cronograma de encaminhamento da reforma administrativa, definir uma agenda exequível de iniciativas. Isso não está acontecendo. E a impressão que dá é que eles (ala liberal do governo) estão se enfraquecendo dentro daquele arranjo tripartite de forças do governo.

Sem propostas e cronograma, além dessa ala perdendo força, o que podemos esperar para os próximos três anos?

Vamos continuar nessa frustração e aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vêm se manifestando na sociedade. Tivemos junho de 2013, a quase vitória da Marina (Silva) na eleição de 2014 foi um sentimento anti-establishment violento, o impeachment da Dilma também foi uma onda anti-establishment, a greve dos caminhoneiros e a própria eleição do Bolsonaro. Bolsonaro capturou na eleição esse sentimento anti-político. O desapontamento com o Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda. As pessoas vão começar a ficar muito inquietas, insatisfeitas e aí um acontecimentozinho pode deflagrar, com as novas tecnologias, uma nova onda (de protestos).

Como o sr. vê a ameaça do coronavírus?

Tem dois cenários. Um de que é um fenômeno de grande impacto, mas de curto prazo, que, no segundo semestre, haverá uma volta à normalidade e até um movimento de recuperação do que se perdeu no primeiro semestre. A mais pessimista é de que é um choque de oferta, como foi o do petróleo nas décadas de 70 e 80, que tem implicações duradouras e que vai gerar problemas de demanda também. O choque de oferta interrompe cadeias produtivas, leva à queda de suprimentos, a fechamento de fábricas, ao aumento do desemprego, á perda de renda. E aí você tem uma recessão. O fato de o BC americano ter se precipitado e usado boa parte da sua munição tão rápido. mostra que ele está assustado e que pode ter usado rápido e cedo demais a pouca munição que tem para baixar juros.

Em qual desses cenários o sr. apostaria?

Esses cenários dependem de coisas difíceis de se modelar, quanto mais de ter um resultado para o qual se possa atribuir probabilidade. Qualquer resposta muito confiante em relação a isso mostra ignorância.

Joseph Stiglitz: ”Em todas as dimensões, o neoliberalismo foi um fracasso incontestável”

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O Prêmio Nobel de Economia dispara contra Donald Trump e afirma que o mundo está passando por uma crise tripla hoje

O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz acredita que estamos passando por uma crise tripla: de capitalismo, do clima e de valores. E ele atribui isso à crença em mercados irrestritos, ao neoliberalismo seguido desde o governo de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Pouco antes de viajar de Nova York ao Vaticano, para participar de um simpósio sobre economia justa, o ex-economista-chefe do Banco Mundial e consultor econômico de Bill Clinton conversou dias atrás com o La Vanguardia sobre seu novo livro, “Capitalismo progressista para uma era de descontentamento”, no qual ele dispara contra Donald Trump e diz que os EUA está em guerra consigo mesmo, que a classe média mais poderosa do planeta não para de perder poder de compra. E levanta a necessidade de retornar a um capitalismo de prosperidade compartilhada, no qual a política controla a economia e assume que a educação e, a criatividade e a produtividade dos cidadãos são a base da riqueza de um país.

La Vanguardia – Taxas de juros negativas, manifestações, populismo, crise climática… O que acontece?

Joseph Stiglitz – É o efeito cumulativo de vários fatores, e um é claramente o aumento da desigualdade. A crise financeira criou muita insegurança e a maneira como ela foi resolvida sugere a muitos que o sistema está quebrado. Na Europa, a crise do euro levou ao desencanto com o funcionamento da União Europeia. Há uma sensação de falta de poder diante de problemas muito sérios. E isso é combinado com problemas de desindustrialização em muitos países, de transformação estrutural, com perda de empregos e sistemas inadequados para as pessoas passarem dos empregos antigos para a nova economia.

Às quatro décadas de revolução neoliberal, desde Reagan, cumpriram o que prometeram?

Não, e a evidência é muito sólida de que o crescimento tem sido muito mais lento após o início do reaganismo e thatcherismo que antes. E praticamente todo esse crescimento foi para as pessoas que são mais ricas. Além disso, a crise de 2008 mostrou a instabilidade do sistema. Em todas as dimensões, o neoliberalismo foi um fracasso.

Por que falhou?

O principal fator é que os mercados desregulados muitas vezes levam à exploração e à ineficiência. Os benefícios são alcançados, mas não produzindo produtos melhores a preços melhores, mas tirando vantagem de outros, como temos visto com os bancos. E há um fenômeno relacionado, que é subestimar a necessidade de ação coletiva. Muitos dos sucessos da pesquisa básica em ciência e tecnologia são financiados pelo governo e, se você cortar seus fundos, diminuirá o crescimento. Vemos isso de maneira extrema nos EUA. agora com Trump propondo cortar um terço no orçamento da ciência. O Congresso não permitiu, mas é visível sua falta de compreensão do que leva ao progresso.

Você disse que Trump é como reaganismo, mas com esteroides.

(risos) É. Reagan em seu orçamento de 1981 não se preocupou com o déficit fiscal, que foi o início de grandes déficits. Em 1986, ele tentou corrigi-lo, porque estava claro que a redução de impostos não aumentara a renda como ele acreditava. Em vez disso, a irresponsabilidade de Trump em seu corte de impostos em 2017 foi que ele já sabia o que ia acontecer. E se Reagan reduziu os impostos corporativos, Trump fez muito mais. No que Reagan tentou ser razoável, embora errado em seguir a economia do lado da oferta do neoliberalismo, Trump não estava ciente de nenhum limite. Também existem diferenças importantes. O reaganismo, o republicano padrão, acredita no livre mercado. Trump, em protecionismo. E Reagan não tentou a desinformação que parece o centro da política de Trump. É por isso que estou falando sobre esteroides: é pegar todos os princípios do padrão neoliberal, exacerbá-los e adicionar ingredientes muito piores que os republicanos tradicionais.

Reagan foi melhor?

Com ele, pessoas como Eisenhower parecem santas. Até Reagan parece muito melhor, não tínhamos percebido o quanto as coisas poderiam ficar ruins. Até Nixon criou leis ambientais, como água limpa. Trump nega as mudanças climáticas e tenta piorar o meio ambiente a qualquer custo. Mesmo quando empresas como Ford dizem que poderiam e gostariam de assumir padrões ambientais mais altos, ele diz que não deveriam. É fenomenal. Não sei se houve um caso assim.

Mais do que um conservador, ele diz, Trump é um revolucionário.

Está derrubando muitas normas básicas da sociedade. O funcionamento da economia e da política baseia-se em regras e convenções como a de que o presidente é civilizado. Baseia-se no funcionamento das leis, separação de poderes, burocracia independente. Ele está minando as instituições que ajudamos a criar durante mais de 200 anos para dar estabilidade à sociedade e dar voz às pessoas e contribuir para a eficiência econômica.

Qual é o seu objetivo?

Em parte, ele não tem estrutura intelectual e é incapaz de trabalhar com conselheiros: os razoáveis são demitidos ou vão embora. E todo presidente precisa de pessoas com experiência no governo e na execução de projetos produtivos e criativos. Mas ele vem do setor imobiliário, um setor que não é exatamente criativo ou líder, e era conhecido por seu mau comportamento e falências, por tirar proveito de fornecedores e trabalhadores, por ser basicamente desonesto. Ele não é o empresário com quem você negociaria, e é por isso que os bancos dos EUA o rejeitaram e daí seu relacionamento com o Deutsche Bank e com os russos. Ele tem muito pouco entendimento e um narcisismo que dificulta sua orientação. Ninguém esperava que ele fosse melhor do que ele é, mas ele seria controlado pelo partido republicano. Esse foi o grande engodo. Isso o transformou em um partido pelo nativismo populista extremo que divide os americanos. Trump não apenas não entende o que é necessário para fazer a democracia funcionar, nem que a maioria dos líderes tenta criar coesão social. Em vez disso, sua vontade é governar dividindo o país.

O impeachment foi justo?

Sem dúvida. O impeachment é que o Congresso o acuse de crimes e ofensas graves. Outra questão é sua destituição. Ele deveria ter sido destituído, o que ele fez é inadmissível, mas a mesma liderança republicana que se rendeu a ele disse que não haveria um julgamento justo e decidiu absolvê-lo sem sequer ouvir evidências não disponíveis antes.

Os democratas podem derrotá-lo?

Ainda é possível. Há ruido nas divisões do Partido Democrata, mas em seus objetivos elas são muito pequenas, existe um grande consenso no controle de armas, nos direitos reprodutivos das mulheres, no salário mínimo, na saúde para todos e na educação. Existem diferenças na melhor maneira de alcançá-las. E, acima de tudo, Trump não cumpriu, é outra mentira. A economia criou menos empregos mensais do que no segundo mandato de Obama. Ele não superou seu rival.

Vivemos um crescimento surpreendentemente lento em uma economia tão inovadora. Por quê?

Tem a ver com desigualdade. Investimos bem abaixo do necessário em pesquisa, educação e infraestrutura, porque aqueles que estão da faixa 1% mais rica não querem um governo que impõe impostos mais altos. E também, quando você redistribui o dinheiro da base para o topo e dá mais dinheiro aos ricos, eles gastam menos de sua renda, o que diminui o crescimento.

A classe média se apaixona pelo neoliberalismo ou pela tecnologia?

O problema básico é o neoliberalismo, o mercado irrestrito. A falta de uma política adequada contribuiu para moldar a tecnologia. Qualquer um que olhe o desejável em termos de nossos investimentos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) diria que precisamos fazer coisas que ajudem contra as mudanças climáticas, não precisamos de inovação que tente criar mais desemprego, como agora.

Peça um papel maior do governo. Qual?

Precisamos de melhores regulamentações para proteger o meio ambiente e contra a exploração, contra o poder de mercado em uma série de áreas onde [a competição] não funciona. Depois, mais investimento público em educação, infraestrutura e tecnologia. Precisamos mudar as regras da economia, que agora minam os direitos dos trabalhadores, aumentam o poder das corporações, permitem a poluição excessiva e os gerentes extraem muito dinheiro das empresas. Precisamos de mais ação coletiva.

A globalização como foi feita foi um erro?

Nossos acordos comerciais são feitos principalmente de maneira tendenciosa em favor das corporações e muitos precisam mudar. Por outro lado, há áreas em que são necessários mais acordos, como a tributação das multinacionais. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que a globalização ajudou muitos países em desenvolvimento, como China e Índia, embora tenha prejudicado alguns dos mais pobres da África.

Que responsabilidade os economistas têm no que aconteceu?

Muitos jovens economistas estão convencidos de que o caminho da profissão estava errado, havia muita fé nos mercados, mais baseada na ideologia do que na ciência econômica. É por isso que eles exploram novas áreas, como economia comportamental. Para pessoas que dedicaram 40 anos de vida ao neoliberalismo, é mais difícil mudar.

O mercado não será mais rei?

Há uma desilusão real com os mercados. Como as empresas se comportam: a indústria farmacêutica e a crise dos opioides, a indústria de alimentos e a crise do diabetes infantil, os bancos e a crise financeira. E que o capitalismo não funcionou para uma grande faixa da sociedade, que a expectativa de vida nos EUA caiu, a decepção aumenta. A ideia de que o mercado é rei não é mais verdadeira, principalmente entre os jovens. Eles procuram outra forma de economia. Por isso escrevi este livro.

Nada se compara ao parasita brasileiro, por Ladislau Dowbor.

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A economia está parada. Há 50 milhões de desempregados e precários. A fome voltou e os sem-teto estiram-se nas calçadas. Duzentos homens engordam suas imensas fortunas, sem nada produzir. Coincidência? Como nos livraremos deles?

Primeiro, a coisa óbvia: nosso problema não é falta de dinheiro. Com um PIB de 6,8 trilhões de reais e uma população de 210 milhões, o que produzimos hoje representa 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Com o que produzimos hoje, mesmo sem procurar uma igualdade opressiva, apenas uma desigualdade menos obscena, dá para todos viverem de maneira digna e confortável. Nosso problema não é pobreza, e sim desgoverno. Ou, para dizê-lo de maneira hoje atualizada, é falta de governança, de fazer o conjunto funcionar.

Na minha modesta aritmética econômica – sou avesso à econometria – faço as contas, follow the money por assim dizer, apresentando o fluxo financeiro integrado. Calculando o quanto se tira da capacidade de compra das famílias por meio do absurdo nível de juros sobre o cheque especial, do rotativo do cartão, dos crediários e do empréstimo bancário, somando os juros sobre os créditos concedidos às empresas, chegamos a 1 trilhão de reais. Dado que coincide com os cálculos das financeiras, apresentados na manchete dominical do Estadão de 18 de dezembro de 2016: “Crise de crédito tira R$1 tri da economia e piora recessão”. São 15% do PIB esterilizados, transformados em lucros financeiros. Acrescentem a isso os R$ 300 a R$ 400 bilhões transferidos para os que aplicam as suas fortunas em títulos da dívida pública, e chegamos a 20% do PIB, alimentando fortunas. A taxa Selic baixou, realmente, mas é cobrada sobre um estoque da dívida muito maior. Em 2018 o Estado foi desfalcado em R$ 320 bilhões. São lucros e dividendos que, uma vez distribuídos, desde 1995 sequer pagam impostos. É um dreno poderoso.

Thomas Piketty abriu a caixa do capitalismo moderno para constatar que no século XXI rende mais fazer aplicações financeiras do que investir na produção. E o dinheiro segue naturalmente para onde rende mais. O capitalismo do século passado, que tanto criticávamos por explorar os trabalhadores, pelo menos investia, produzia bens e serviços de razoável utilidade, gerava empregos e pagava impostos. O do século XXI não investe, não produz e sequer paga impostos. David Harvey diz corretamente que não se trata de “capital no século XXI” e sim de patrimônio, porque não retorna ao processo produtivo senão marginalmente.

Sem entrar em excessivos detalhes, lembremos que a tributação no Brasil não só não corrige os desequilíbrios, como os agrava, pela estrutura regressiva na cobrança dos impostos e favorecimento dos mais ricos na alocação. E também que, segundo o Tax Justice Network, o Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, mais de 2 trilhões de reais que nem produzem nem pagam impostos. Acrescentem o vazamento que representam as seguradoras, as pensões complementares e os planos de saúde – fundos que “aplicam” em vez de investir, e temos aqui mais uma obviedade: a nossa economia está vazando por todos os lados. Apresentamos esses dados, com detalhes e fontes, no nosso A Era do Capital Improdutivo, em texto impresso, online, em vídeos e em plataformas de discussão. É aritmética, só não vê quem não quer. Aliás, a capacidade de não ver pode ser impressionante.

Os americanos nos ajudam a ver. A revista Forbes, em edição especial de 2019, traz em detalhe quem são os 206 bilionários brasileiros. A importância deste levantamento é óbvia. Primeiro, porque é confiável, a revista é americana e entende de bilionário, a imprensa brasileira não faz levantamentos deste tipo. Segundo, é um artigo em que os donos das fortunas, felizes em aparecer na Forbes, em vez de se esconder e de esconder como chegam às fortunas, aparecem sorridentes e orgulhosos. Afinal, é uma a revista que já explicita para quem é escrita: acima das manchetes, recomenda-se aderir à “Forbeslife – carros, jatos e iates: chegou a hora de escolher o seu”. Sim, caro leitor, o artigo que aqui analiso não foi escrito para você, foi escrito para eles mesmos, os bilionários. A nós interessa muito, pois este grupinho de bilionários constitui o lastro do poder real, o deep power do país. E representa um poder impressionante de sucção dos recursos financeiros.

Tomemos o número 2 da lista, Joseph Safra. Hoje, Joseph “tem um império bancário que leva seu nome: é dono do Banco Safra (Brasil), do J. Safra Sarasin (Suíça) e do Safra National Bank (EUA). É dono, ao lado do bilionário José Cutrale, da gigante Chiquita Brands, maior produtora de bananas do mundo”. Ter um pé na Suíça é ótimo para um banco, todos eles hoje têm pés em paraísos fiscais. Outro pé nos Estados Unidos ajuda, faz parte da articulação com a nossa economia. E Chiquita é o nome simpático hoje adotado pela antiga United Fruit, que de tantos crimes, golpes e mortes – é a empresa de bananas que aparece em Cem Anos de Solidão – decidiu mudar de nome. Mas o essencial para nós é que o patrimônio do Joseph Safra é de R$ 95,04 bilhões, e que nos meses entre março de 2018 e março de 2019 aumentou em R$ 19,31 bilhões. Sem precisar produzir nada, apenas amealhando dividendos. É o que Marjorie Kelly (e tantos outros) hoje chamam de “capitalismo extrativo”. São 19 bilhões, dois terços do Bolsa Família, em 12 meses, para uma pessoa.

O artigo apresenta a imagem de conjunto: em 2012, tínhamos no Brasil 74 bilionários, que dispunham de uma fortuna total de 346 bilhões de reais. Em 2019, são 206 bilionários, com uma fortuna total de R$ 1.205,8 bilhões (17,7% do PIB brasileiro). Como se acelerou de maneira tão dramática o enriquecimento dos bilionários no Brasil? Implicaria, imaginamos, um crescimento dinâmico da economia? Sabemos, na realidade, que desde 2013, que é quando, com manifestações e boicote, começa o ataque generalizado ao modelo distributivo, o PIB do Brasil não só não cresceu como, depois de dois anos de recessão em 2015 e 2016, continua paralisado.

Estão, para dizê-lo claramente, se entupindo de dinheiro. Não ver a relação entre o enriquecimento dos mais ricos e a paralisia da economia sugere analfabetismo econômico. O dinheiro não pode simultaneamente alimentar ganhos especulativos e evasão fiscal e financiar investimentos produtivos. Entre março 2018 e março 2019, os bilionários brasileiros aumentaram a sua fortuna em R$ 230,2 bilhões, 8 vezes o Bolsa Família. A economia brasileira cresce menos de 1%, sequer acompanha a progressão demográfica, implicando uma queda do PIB per capita do país. Há seis anos disseram que estariam “consertando” a economia. Na realidade, estão drenando.

Analisando um por um os bilionários, é impressionante a dificuldade de se encontrar alguém que produza algo. Seguindo as classificações do próprio artigo, basicamente, trata se de donos de bancos, de holdings financeiras, de acionistas e controladores acionários, de fundos de investimento (no sentido virtual de “investimento”, naturalmente), de donos de cotas acionárias, de holdings familiares, de “investidores”, e aparece até um “proprietário de terras cultivadas” (fortuna 118). Naturalmente não se trata de Jorge Luiz Silva Logemann, dono desta fortuna de R$ 2,68 bilhões, efetivamente se aproximar das terras cultivadas…

Já vimos acima como em 12 meses Joseph Safra aumentou a sua fortuna em R$ 19 bilhões. Mas a instituição de Roberto Balls Sallouti, a BTG Pactual Holding, “só no segundo trimestre de 2019, anunciou um salto de 56% no lucro líquido, para R$ 971 milhões. Sallouti é membro do conselho de administração do Mercado Livre” (fortuna 116). Associar este pequeno clube de magnatas financeiros que drenam as capacidades produtivas do país ao conceito de “mercado livre” é de causar arrepios a quem já leu Adam Smith. Aliás, vários bilionários aumentaram as suas fortunas na esfera do BTG Pactual. É bom lembrar que o banco tem 38 filiais em paraísos fiscais, e tem como atividade principal gestão de fortunas, tecnicamente asset management.

A análise detalhada das 206 fichas que este dossiê da Forbes apresenta é muito produtiva, pois constatamos que não só se trata de gigantes de intermediação, na realidade atravessadores das atividades produtivas, como estão intensamente interligados. Vamos encontrar, no imenso dreno econômico que representa o Itaú, pelo menos 13 das grandes fortunas apresentadas no relatório. No conjunto, são poucas famílias, muito interligadas, e constituindo um poderoso cluster de poder financeiro e político. Drenam as capacidades econômicas da população, das empresas produtivas e do próprio Estado. A leitura deixa claro por que este país com tantos ricos está paralisado.

Frente ao dreno geral deste capital improdutivo, atribuir os nossos problemas aos velhinhos que envelhecem demais e criariam problemas no orçamento é francamente um insulto à inteligência elementar. Lembrando que temos apenas 33 milhões de pessoas formalmente empregadas no país, para uma força de trabalho de 105 milhões – ou seja, só 31% do total. E temos 37 milhões em atividades informais, o que somado aos 13 milhões de desempregados, significa que 50 milhões de trabalhadores estão fora do sistema. A solução não está no apertar o cinto, austeridade para os que já estão na austeridade, mas cobrar os impostos devidos dos que ganham sem produzir, pois talvez, ao ver as suas fortunas tributadas, se interessem por fazer algo de útil. No essencial, o que precisamos é produzir. O empresário efetivamente produtor não precisa de discurso ideológico ou de “confiança”: precisa de famílias com poder de compra, para ter para quem vender, e de juros baixos para poder investir. Neste Brasil de grandes parasitas, ele não tem nem uma coisa nem outra.

 

 

Agenda liberal deste governo é tropicalizada, não vale para empresário, diz Edmar Bacha

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Para economista, é preciso dar uma chacoalhada no setor privado para aumentar a produtividade, a partir da abertura comercial

Joana Cunha

Folha de SÃO PAULO – 25/02.2020

Com o diagnóstico de que “a máquina quebrou” no Brasil, o economista Edmar Bacha vê um caminho difícil pela frente. Segundo sua avaliação, é preciso chacoalhar o empresariado para elevar a produtividade, mas o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes (Economia) parecem postergar a solução.

“Dependemos, basicamente, de dar uma chacoalhada no setor privado brasileiro. O passo fundamental é a abertura comercial, que foi para as calendas, tanto do ponto de vista da percepção de Guedes, que diz que só vai fazer isso depois que resolver a reforma tributária e reduzir o custo Brasil, quanto do ponto de vista de Bolsonaro, que está se aliando a Paulo Skaf [presidente da Fiesp].”

Para Bacha, um dos formuladores do Plano Real, a agenda liberal do governo é tropicalizada, ou seja, vale para trabalhadores e aposentados, mas poupa os empresários.

Na reforma tributária Bacha considera que Guedes “tem culpa no cartório” pelo avanço da defesa da CMPF por grupos específicos, bandeira levantada pelo setor de serviços contra a proposta da Câmara. “Sempre foi fixação dele.”

Como o sr. avalia a economia hoje?

Está se comportando de uma forma com poucas experiências históricas anteriores comparáveis. Quando houve recessão mais profunda, a recuperação em geral foi quase em forma de V. Hoje, estamos patinando em L e não conseguimos sair.

Acho que é cedo para ter diagnóstico preciso, mas eu imagino que tenha algo como: a máquina quebrou e tem que trocar. Nesse processo de substituir uma máquina estatizada por uma privatizada, não estamos conseguindo achar o caminho. E este governo não ajuda.

Como não ajuda?

Por um lado, tem toda essa atitude. O pessoal antigamente dizia que o governo era de coalizão no tempo do Fernando Henrique e o Lula transformou em governo de cooptação. Agora o Bolsonaro está fazendo governo de colisão. Está batendo de frente com todos, Câmara, Senado, governadores. Bolsonaro dá muita insegurança.

Essa insegurança é só por Bolsonaro? E o perfil combativo de Guedes?

Paulo Guedes fala demais. Ele sempre foi assim e nunca teve experiência no setor público. Acho que até agora não sentou na cadeira direito. E o fato de ter alguém como Bolsonaro como presidente dele não ajuda muito em termos de estilo. Além disso, tem uma questão da agenda, porque é uma agenda liberal tropicalizada.

Como o sr. avalia essa agenda liberal?

Acho que vale para os trabalhadores, para os aposentados, para os funcionários, mas não vale para os empresários. Para aumentar a produtividade, dependemos, basicamente, é de dar uma chacoalhada no setor privado.

E o passo fundamental é a abertura comercial, que foi para as calendas, tanto do ponto de vista da percepção do Guedes, que diz que só vai fazer isso depois que resolver a reforma tributária e reduzir o custo Brasil, quanto do ponto de vista do Bolsonaro, que está se aliando a Paulo Skaf.

Há uma agenda complexa de reformas de que o Brasil precisa e que depende fundamentalmente da boa vontade do Rodrigo Maia e do Senado.

Na declaração sobre dólar alto e domésticas na DisneyGuedes fala de substituir importação. Soou protecionista?

Tirando a grosseria, substituir proteção tarifária por cambial é um avanço. Na hora em que a gente baixar as tarifas, em vez de ter a proteção tarifária, tem o câmbio para poder compensar o aumento das importações com o aumento das exportações. Nesse sentido não é protecionista, porque é um protecionismo cambial.

Não é protecionismo no sentido de que distorce a alocação de recursos, porque vale para todo o mundo.

Algumas pessoas dizem que Guedes acerta no conteúdo, mas erra na forma como fala as coisas.

Acho que isso era nos bons tempos. Ultimamente ele anda extravasando.

E os juros?

Ainda não vimos o efeito total do juro baixo.

E a reforma tributária? O setor de serviços questiona a proposta da Câmara. Como fica?

Aí eu acho que o Guedes tem culpa no cartório porque esse negócio de CPMF sempre foi uma fixação dele. Não era só do Marcos Cintra [ex-secretário da Receita].

Há uma dificuldade de aceitar que a proposta relevante é a do Bernard Appy [que tramita na Câmara]. Tem um problema sério porque o setor de serviços está reagindo com força. Na hora em que você passa de uma tributação tão variada por setores para uma uniforme, quem era menos tributado antes vai chiar.

A proposta do Appy é muito avançada, usa o princípio básico da uniformidade da taxação independentemente de setor e faz efeito distributivo com isenção para os pobres. Tudo o que afeta empresário…

Fazem choradeira?

E o governo não tem, aparentemente, disposição de enfrentar.

O setor de serviços fala em desonerar a folha com CPMF. Qual é a alternativa e como explicar para o leigo?

Desonerar a folha é outro assunto. Desonerar com imposto sobre movimentação financeira é fazer o bem com o mal. Não sei qual é o resultado líquido disso porque você está tributando atividade econômica.

A CPMF tributa sem existir renda, valor adicionado, tributa tudo indiscriminadamente e, portanto, tende a travar a economia. Não é um bom meio de financiar a eventual desoneração da folha. Talvez se consiga fazer isso quando mexer com a tributação do IR.

Em 2020 tem eleição, é pouco tempo para reforma administrativa, tributária e privatizar. Como o governo deveria escolher prioridades?

Tem tempo. Pelas experiências anteriores de eleições municipais, se consegue fazer o Congresso trabalhar até agosto.

Mas 2019 ficou todo na Previdência.

Fizeram a reforma da Previdência e não entraram com a tributária logo em seguida porque não conseguiram se entender. Deixaram passar o fim do ano passado e o começo deste. A tal da comissão que ia discutir o assunto ficou para as calendas.

Neste governo, há um problema de articulação política e de uma ideia clara sobre as prioridades e a sequência de ações, além de bate-cabeça no BNDES e na Secretaria de Privatização. Eles não conseguem formular o modelo adequado.

E o Banco Central (BC)?

É um oásis, porque nessa questão do confronto com os empresários, em que a Economia está tímida na questão da abertura, o BC enfrenta os banqueiros de uma maneira audaz para forçar o aumento da concorrência e com medidas muito substantivas.

Está reagindo à revolução do setor?

Ele está permitindo que essa revolução aconteça, porque ele precisa abrir o caminho para as fintechs entrarem. E os bancos reclamam porque dizem que é concorrência desleal, porque eles são regulados, e as fintechs, não. Mas acho que, na medida em que elas crescerem, terão de ter as mesmas regras.

Para economista, é preciso dar uma chacoalhada no setor privado para aumentar a produtividade, a partir da abertura comercial