Senhores da guerra

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A sociedade internacional vive um momento de grandes conflitos militares que opõem nações, grupos sociais e segmentos culturais, buscando o aumento de seus interesses materiais e ganhos imediatos, visando a acumulação de recursos econômicos, políticos e sociais, se cegando para valores transitórios e deixando de lado valores centrais para a construção da civilização, de convivência humana e da solidariedade, com isso, percebemos o crescimento das violências, das degradações e da desesperança em toda a humanidade.

Embora saibamos que as guerras, as violências e os conflitos entre povos e nações sejam situações degradantes, que geram destruições, medos e desesperanças, percebemos que existem na sociedade global, indivíduos, instituições e grupos sociais que ganham com estas destruições, espalhando a instabilidade, as incertezas e as turbulências, angariando fortunas, acumulando riquezas, ganhando espaços na mídia e nas redes sociais.

Na contemporaneidade os conflitos militares cresceram de forma acelerada, nações são destruídas, milhares de pessoas são mortas, famílias são esfaceladas e seus sonhos ficam pelo caminho, gerando horrores e brutalidades, aumentando as fortunas dos senhores da guerra, especialistas em destruição em massa, que se comprazem com o estímulo dos conflitos militares, acumulando recursos com a venda de armas, de tecnologias militares, de equipamentos de espionagem e de treinamentos variados.

Neste momento, a comunidade internacional sente na pele os impactos sobre a guerra entre ucranianos e russos, que podem trazer desfechos preocupantes e assustadores. De um lado, percebemos os senhores da guerra estimulando o incremento do conflito militar, vendendo armas e tecnologias militares, além da venda de aviões de combate e alterando as estratégias militares de muitas nações, canalizando maiores recursos para a defesa; de outro lado, percebemos os clamores silenciosos da destruição e da devastação gerada pelo conflito, onde as mortes e os desesperos não mais sensibilizam a comunidade internacional.

O conflito na Ucrânia está mostrando os valores que dominam a comunidade internacional, governos se armam militarmente buscando uma suposta segurança, omitem informações relevantes, estimulam discursos inflamados e ofensivos que espalham rastros de ódio e ressentimento. Neste cenário, percebemos que os mais afetados são os mais pobres e fragilizados, que passam fome diuturnamente, perdem seus empregos e se percebem sem perspectivas, sem rendas e sem esperanças.

Na pós-pandemia, o mundo precisa reconstruir novos espaços de convivência pacífica entre os povos, compartilhando ideais que contribuam para a construção da humanidade, deixando de fomentar as guerras e os ganhos materiais num ambiente de destruição, degradação e de incivilidade.

Na contemporaneidade, precisamos reconstruir os Estados Nacionais, aumentando os investimentos em saúde pública, melhorando a comunicação entre as nações, aumentando os investimentos na educação e na formação dos cidadãos, além de garantir que as nações busquem espaços de convivência, garantindo que as políticas públicas melhorem as condições das pessoas e, evitem que estas políticas se concentrem nos mesmos grupos que vivem e sobrevivem parasitando os recursos públicos.

A sociedade internacional vem vivendo um momento de crescimento dos preços e da inflação, que se espalha para todas as regiões do mundo, fruto das guerras fratricidas que estão degradando as comunidades, gerando incertezas e instabilidades, mas, em contrapartida, garantem grandes lucros para poucos e a miséria para uma maioria dos indivíduos das nações.

Precisamos desestimular as escaladas armamentista que ecoam dos senhores das guerras e precisamos estimular as discussões diplomáticas e civilizadas, reduzindo os conflitos e estimulando as integrações comercial e produtiva, sem estes acordos, a sociedade internacional sentirá, rapidamente, que o crescimento das guerras e dos conflitos militares tendem a acelerar a destruição da civilização humana.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 13/07/2022.

Janine Ribeiro analisa a resistência científica no Brasil

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Cortes brutais solapam a pesquisa no país. Os impactos do Teto de Gastos. As chances desperdiçadas de diplomacia sanitária. Por que educação científica é crucial. Como a comunidade acadêmica impediu que a tragédia fosse pior

Outras Mídias – 11/07/2022

Renato Janine Ribeiro, em entrevista a ESPJV/Fiocruz

Nesta entrevista, o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Renato Janine Ribeiro, alerta, no Dia Nacional da Ciência – que marca a data da fundação da entidade, em 1948 – para o cenário precário da ciência no Brasil, em meio ao anúncio pelo governo federal de um bloqueio de R$ 2,5 bilhões no orçamento desse ano do Ministério da Ciência e Tecnologia. “Nós estamos em uma situação bastante crítica”, diz Ribeiro.

O Dia Nacional da Ciência esse ano acontece em meio a um contingenciamento anunciado pelo governo federal no orçamento de 2022 da ordem de R$ 2,5 bilhões na área de ciência e tecnologia. Em seguida vem a área de educação, com um bloqueio de R$ 1,6 bilhão e a saúde, com R$ 1,253 bi que não serão repassados. Como a SBPC vêm enfrentando esse cenário?

Essa data foi escolhida justamente porque foi a fundação da SBPC, em 1948. Nesses últimos 74 anos, a SBPC mudou muito, evoluiu, incorporou gente que não fazia parte dela, ajudou muitas sociedades científicas a nascerem. Hoje temos 170 sociedades científicas afiliadas à SBPC. O dia 8 é um grande dia de mobilização, um dia para fazermos atos públicos. Vamos reunir as principais entidades científicas do Brasil para discutir a situação da ciência, seus problemas. Em várias cidades vai haver a Marcha pela Ciência. Então nós pretendemos fazer deste um dia de luta mesmo em prol da ciência, como mobilização para nossa reunião anual, que acontece na Universidade de Brasília, com o tema: independência, ciência e soberania nacional. Estamos pontuando isso o ano todo, que você só pode ter independência de verdade se você tiver educação, ciência, cultura, saúde e preservação do meio ambiente.

Nós estamos diante de uma situação muito grave, de cortes de verbas. Não só para a ciência. O mesmo se dá na educação, na cultura, na saúde, no meio ambiente, nas políticas sociais. Em todas elas nós estamos diante de uma situação muito grave, de cortes de verbas e alocação delas sem critérios.

O bloqueio anunciado pelo governo na ciência e tecnologia afeta principalmente o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Em nota, a SBPC questionou a medida citando a Lei Complementar 177, de 2021, que supostamente protege as verbas do FNDCT de contingenciamento. Como isso se deu?

A lei complementar 177 foi votada no começo do ano passado, vetada pelo presidente e promulgada depois que o Congresso derrubou o veto. Ela determina que não pode ser cortada a verba do FNDCT, mas infelizmente esse assunto está numa lei complementar, que teoricamente é uma lei de hierarquia mais elevada, mas cujo próprio texto diz que partes da lei podem ser alteradas por lei ordinária, que requer um quórum menor. Então ficou uma fragilidade. E no ano passado, no dia 7 de outubro, o governo mandou ao Congresso um projeto de lei que tirava R$ 690 milhões do Fundo que deveriam ir para o CNPq, e pulverizava para outras destinações. Com muita luta a gente conseguiu recuperar R$ 150 milhões, de modo a poder pagar o edital Universal que o CNPq tinha lançado, e o pessoal do CNPq teve que correr contra o relógio para conseguir liberar o dinheiro a tempo para os que tinham sido contemplados com o edital. E agora nós temos isso de novo. Mais uma vez o governo suspende as normas da lei complementar 177. Nós estamos em uma situação bastante crítica.

Estamos completando cinco anos da entrada em vigor da emenda do teto de gastos (EC 95), que vem tirando recursos de inúmeras políticas, inclusive educação e ciência e tecnologia. Quais têm sido os efeitos dessa cronificação do subfinanciamento para a ciência?

É difícil você separar a área de ciência e tecnologia e a pós-graduação, apesar dela ser atribuição do MEC, como é o caso da Capes, e a ciência e tecnologia a gente associar mais ao MCTI, ao CNPq e outras agências de fomento. Mas é difícil separar porque a maior parte da pesquisa feita no Brasil é feita na pós-graduação, e portanto é orientada pela Capes. Quando nós temos uma queda no número de bolsas e uma redução brutal do valor real das bolsas de 2013 para cá, nós temos um desestímulo muito grande à opção por pesquisar. Então a renovação está ficando difícil, você tem pessoas que já tem doutorado, que estão participando de congressos importantes, publicando em revistas destacadas e que não conseguem uma vaga numa universidade. Consegue quando muito uma bolsa de pós-doutorado, que não conta para aposentadoria. São pessoas com mais de 30 anos, formadas, produzindo cientificamente, e que não estão contando o tempo de serviço. Com 15 anos um aluno de escola militar já está contando o tempo de serviço, tanto que você tem generais reformados, com menos de 50 anos de idade. Enquanto isso temos um país que desestimula a pesquisa científica, porque você vai ganhar um bolsa de doutorado, sem direitos trabalhistas. Então esse é um problema que está ferindo gravemente a pesquisa no Brasil.

Com todas as ressalvas que precisam ser feitas ao falarmos de uma pandemia que já vitimou quase 700 mil pessoas no Brasil, mas tendo em vista o papel central que as instituições públicas de pesquisa científica desempenharam no enfrentamento à pandemia, o senhor vislumbra um legado para a ciência a ser preservado daqui para a frente?

Esse papel da ciência foi absolutamente notável, porque permitiu salvar vidas. O Brasil teve uma taxa de mortalidade cinco vezes superior à média mundial. Nós teríamos muito menos mortos se tivéssemos tido uma política melhor de enfrentamento. Mas a ciência ajudou a reduzir esse impacto. Uma pena que o Brasil não tenha investido em uma vacina própria para valer. Houve esforços, mas praticamente sem apoio do governo federal. O caso da UFMG [Universidade da Federal de Minas Gerais], que inaugurou uma pesquisa nisso, mas o apoio foi muito aquém do necessário. Então com isso nós gastamos mais dinheiro porque tivemos que comprar. Fora isso nós perdemos a chance que também teria sido importante de fazermos uma espécie de diplomacia sanitária. Se o Brasil tivesse vacina própria poderia ter fornecido a países mais pobres do que nós, e dessa maneira teria fortalecido seu poder político internacional. Mas não houve interesse nisso.

O que eu acho importante e positivo é que a comunidade acadêmica e científica manteve a luta. Um grande número de cientistas, de pesquisadores, professores mantêm de pé a mobilização. E acho que o papel das sociedades científicas e da SBPC, como seu braço político, é justamente manter acesa essa luta da qual depende o futuro do Brasil.

Conseguimos também criar alianças, o apoio de uma fração razoável da opinião pública, sermos escutados pela mídia.

Tudo isso eu acho que tem um papel importante. Mas evidentemente nós estamos numa situação de míngua. O Brasil está à míngua. Nós temos uma quantidade grande de focos de pesquisa que estão minguados, com risco grande ou de estagnarem, ou até alguns deles de morrerem. No conjunto, eu acredito que nós estamos conseguindo manter a comunidade com uma disposição à luta. Isso é o que neste momento eu acho mais importante.

Um dos grandes desafios em nível global para a ciência tem sido o chamado o negacionismo. Na pandemia isso se expressou pelos movimentos antivacina, por exemplo. Como a SBPC vê esse problema? Quais as estratégias para combatê-lo e o papel do Estado?

Nós temos que fortalecer não apenas a divulgação científica, mas a educação científica também. Temos que fortalecer o espírito científico, que não é apenas o espírito de quem está num laboratório e quem está fazendo uma tese, é o espírito de quem acredita em evidências e em argumentos. Temos que fazer com que acabe esse espaço enorme das fake news. Temos que ser capazes de convencer as pessoas a não acreditarem em mentiras, esse é um ponto crucial.

O agronegócio e o futuro do Brasil, por José Reinaldo Lopes.

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Sucesso econômico do agronegócio não pode justificar dilapidação do patrimônio ambiental do Brasil

José Reinaldo Lopes, Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”.

Folha de São Paulo, 10/07/2022.

Um espectro ronda o futuro do Brasil: o espectro do agronegócio.

É, eu sei que vai ter gente querendo me enfiar numa camisa de força por escrever um negócio desses. Para usar o arremedo de inglês aportuguesado que hoje é a língua franca do mundo do marketing, o agronegócio é o popular “case (pronuncia-se ‘kêize’) de sucesso”. Conseguiu enfiar na cabeça de muita gente a ideia de que é o pilar da saúde econômica do país; que respeita o meio ambiente; que alimenta o Brasil, o mundo, quiçá até os famélicos da galáxia de Andrômeda.

Bem, mais ou menos. Seria mais intelectualmente honesto definir boa parte do agronegócio brasileiro não como “produtor de alimentos”, mas como produtor de insumos para a indústria alimentícia (e também para outros setores da indústria).

Ué, mas não é a mesma coisa? Não quando se considera, por exemplo, que apenas a soja corresponde a cerca de metade da safra anual de grãos do país nos últimos anos (o milho ocupa um distante segundo lugar). Caso o leitor não tenha reparado, quase ninguém come soja no Brasil, e nem uma dieta baseada exclusivamente em pastéis de feira para metade da população seria capaz de consumir tanto óleo de soja assim. Quanto ao milho, também seria impossível usar como alimento as quantidades astronômicas do grão que saem dos nossos campos.

A conta só fecha graças à demanda para a exportação desses cultivos, e ao fato de que eles são particularmente fáceis de transformar em insumos para a indústria, basicamente se metamorfoseando em porcari… Digo, em “alimentos industrializados” (capriche nas aspas) e aditivos de todo tipo. Comida mesmo, comida de verdade —arroz, feijão, frutas, legumes, verduras— é um negócio que ocupa escalões muito mais baixos no ranking do que produzimos.

Frequentemente vem de pequenas propriedades, e não das fazendas industriais geridas com suposta eficiência e modernidade pelos capitães do agronegócio.

Tudo isso ajuda a explicar por que “o país que alimenta o mundo” tem tanta gente passando fome neste momento. Longe de mim querer culpar o agronegócio por fazer bem aquilo que ele foi criado para fazer, ou seja, dar lucro. Mas cabe à sociedade estabelecer limites quando a busca por lucro deixa de encher a barriga de quem precisa.

E isso se torna ainda mais urgente num cenário em que os recursos hídricos e o solo, sem os quais não há agronegócio que aguente no longo prazo, estão se tornando agudamente frágeis graças à crise climática.

As cenas distópicas do interior de São Paulo em 2021, com tempestades de terra engolindo municípios onde a agricultura industrial basicamente faz o que quer há décadas, deveriam ter desmontado de vez a quimera do “case de sucesso”. Se o agronegócio brasileiro quer mesmo mostrar seu apego à racionalidade e à missão de alimentar as pessoas, precisa começar a ouvir a ciência e abandonar a ilusão de que pode se expandir indefinidamente com boi e soja em cima dos escombros da biodiversidade.

É preciso achar outro caminho, tanto em solo caipira quanto na Amazônia. Do contrário, o ciclo que combina o enriquecimento de poucos com a fome de muitos não será quebrado.

Viagem ao mundo do empreendedorismo popular, com Henrique Costa.

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Henrique Costa estudou as periferias de São Paulo por semanas, durante a pandemia. Agora, conta o que viu sobre a revalorização dos “bicos”, a difusão do discurso do “empresário de si mesmo” e as atitudes contraditórias diante dos R$ 600

OUTRASMÍDIAS – TRABALHO E PRECARIADO – 09/10/2020

Segundo ele, o empreendedorismo nessas regiões começou a crescer a partir da valorização dos “bicos” e da “viração” que caracterizavam o trabalho precarizado. “Nos últimos anos, a noção de ‘viração’, que era pejorativa – porque o trabalhador que não tinha emprego formal era visto de forma rebaixada – foi positivada. A partir do momento em que se passa a compreender o camelô como um empreendedor, já não se dá mais a carga negativa que se dava ao trabalho dele. Ao contrário, cresce o discurso de que ele está no caminho certo e isso virou um grande negócio”, afirma. Ao lado dessa transformação, a desvalorização do diploma universitário, o crescimento de cursos técnicos e universitários de curto prazo, a supervalorização da extensão universitária em detrimento da pesquisa e a expansão de cursos de empreendedorismo voltados para as classes populares levam os jovens a buscarem inovação incessantemente, com o objetivo de investirem em um negócio de sucesso.

Nesta entrevista, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Costa narra alguns exemplos de novos empreendedores nas periferias paulistas e também comenta a reação dos empresários populares ao auxílio emergencial, a percepção dos seus entrevistados sobre a atuação do presidente Bolsonaro durante a crise pandêmica e os elementos de distinção social que foram criados a partir de estereótipos.

Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. É autor do livro recém-lançado Entre o lulismo e o ceticismo. Um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo (São Paulo: Alameda, 2018), baseado na etnografia política com bolsistas do Prouni, tema de sua dissertação de mestrado. Ele concedeu a entrevista “A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora” à IHU On-Line em 2016, quando a pesquisa estava sendo realizada.

Confira a entrevista

Hoje se fala muito em empreendedorismo no Brasil. Quem são os empreendedores no país?
É preciso definir essa categoria porque é comum ver o empreendedor como alguém que cria coisas novas e leva seu negócio para frente. Essa é uma concepção de Schumpeter, um economista austríaco, que pensava o empreendedorismo como destruição criativa, ou seja, o empreendedor era aquele que não tinha medo de encerrar um produto para lançar um novo. Essa é a concepção que os mais jovens têm hoje, e Bill Gates é um exemplo disso, ou seja, são pessoas que estão sempre inovando e continuam nesta busca incessante por inovar. Inovação é uma palavra importante nesse contexto.

Empreendedorismo e a crise econômica
A ideia de empreendedorismo foi popularizada nos últimos anos como consequência da crise econômica que perdura desde 2015 e porque o desemprego estrutural não consegue mais prover empregos de boa qualidade para a população brasileira. Nesse contexto, o discurso do empreendedorismo acabou se tornando uma saída de emergência, uma pílula, para tentar responder a uma questão social muito mais ampla.

Hoje, 99% dos Cadastros Nacionais da Pessoa Jurídica – CNPJ das empresas brasileiras, segundo o Sebrae, são micro e pequenas empresas. Então, aquela ideia de empresário como alguém que tem 100, 200 funcionários, é uma minoria. A grande maioria dos empresários no país é formada de comerciários e comerciantes. Por isso, meu trabalho, nos últimos anos, tenta entender quem são essas pessoas, onde elas estão – elas estão nas periferias das grandes cidades e não necessariamente têm empreendimentos na periferia, mas moram na periferia –, por que elas aderem ao empreendedorismo e por que essa tem sido uma escolha entre os jovens. Venho pesquisando esse tema desde o meu mestrado, quando pesquisei bolsistas do ProUni e percebi que o discurso do empreendedorismo era muito constante na fala dos entrevistados.

Em artigo recente, você menciona que o empreendedorismo popular está em ascensão. Esse tipo de empreendedorismo sempre esteve presente no Brasil ou é uma novidade? Ele está em ascensão somente por causa da crise econômica e social ou há outras razões?

Tem a ver com a crise econômica, mas também com a hegemonia do discurso neoliberal dos últimos anos, que veio se implementando nas classes populares brasileiras. O empreendedorismo não é novo e um dos argumentos que uso é o de que sempre existiu a categoria do “virador” no Brasil, principalmente nas periferias brasileiras. O “virador” é aquele cara que faz “bico”, não tem um emprego formal, precisa se virar e vai de um trabalho a outro. Essa ideia de “viração” sempre esteve presente no Brasil por causa das condições precárias de trabalho.

Nos últimos anos, essa noção de “viração”, que era pejorativa – porque o trabalhador que não tinha emprego formal era visto de forma rebaixada – foi positivada. A partir do momento em que se passa a compreender o camelô como um empreendedor, já não se dá mais a carga negativa que se dava ao trabalho dele. Ao contrário, cresce o discurso de que ele está no caminho certo e isso virou um grande negócio.

Cursos de empreendedorismo e a busca pela inovação
Tenho acompanhado, durante os últimos anos, alguns cursos de empreendedorismo voltados para as classes populares e para pessoas mais velhas, que não têm outra opção de trabalho e resolvem vender artesanato ou abrir algum negócio ligado a culinária. Por exemplo, alguns nordestinos que vivem em São Paulo trabalham como pedreiros e, no tempo livre, fazem acarajé para vender. Eles têm esperança de viverem da venda de acarajé, mas para isso, não basta fazerem o que sempre fazem, como vender marmita para os vizinhos localmente. Esses cursos vendem para as pessoas uma esperança de que elas vão conseguir ter um negócio maior e vão conseguir se sustentar a partir disso. As dificuldades, contudo, são evidentes, porque mesmo antes da pandemia o brasileiro já tinha perdido muita renda.

A pandemia acelerou a busca por inovação e muitas pessoas passaram a usar as ferramentas da internet para venderem seus produtos. Muitas não sabiam fazer isso, mas foram forçadas a aprender. De outro lado, muitos dos empreendedores sociais que entrevisto fecharam as portas porque trabalhavam a partir de um contato muito estreito com a classe média. Com a quarentena e o isolamento social, eles tiveram que se manter endogenamente na periferia e o que segurou as pontas foi o auxílio emergencial.

Essas experiências empreendedoras se inserem em uma mudança cultural, econômica e de discurso hegemônico que se está implementando desde os anos 1970 e que agora chegou às periferias – e chegou num momento muito conveniente por causa da crise econômica. As pessoas que já não têm mais a oportunidade de conseguir um emprego estável se valorizam como empreendedoras. Isso é uma falácia, mas é o que está colocado.

No artigo, você menciona o relato de um trabalhador que trocou um emprego estável pelo empreendedorismo porque não se sentia valorizado pela empresa e tampouco tinha novas oportunidades, apesar de ter concluído a graduação e cursado uma especialização. Que questões motivam as pessoas a apostarem no empreendedorismo?

No artigo, tentei criar um jogo de espelhos para entender como ocorre essa transformação. Os comerciantes mais velhos – que se chamam de comerciantes e, inclusive, o linguajar do empreendedorismo não faz parte do vocabulário deles – valorizam o reconhecimento no trabalho, ou seja, estar fixo num lugar, ser reconhecido pelas pessoas, ter uma relação comunitária e ser um ponto de referência. Nesses casos, o reconhecimento social é até mais importante do que ter o emprego estável, porque eles trabalham mais cuidando do seu negócio do que se estivessem em outro emprego – eles trabalham sete dias por semana.

Os mais jovens, ao contrário, têm uma ambição “neoliberal”; eles querem crescer. Este rapaz que você mencionou abriu um novo negócio no meio da pandemia. Eles têm uma ansiedade, muito característica dessa geração, de fazer as coisas acontecerem.

Os comerciantes mais velhos estão satisfeitos: eles têm seu comércio, que é uma referência local, e alguns trabalham há 15 anos sem tirar férias, mas possuem um negócio razoavelmente sustentável. Muitos alegam que se estabeleceram e se acomodaram nesse perfil porque não têm estudo. Eles são muito diferentes da nova geração, que fez faculdade.

Tiago, o rapaz que você mencionou, tem dois comércios de objetos supérfluos no Jardim Ângela e abriu mais um em Santo Amaro. Ele deu um depoimento interessante, contando como aumentou o consumo dessas coisas nos últimos meses porque as pessoas estão ficando mais tempo em casa. Ele não se sentia valorizado no emprego, tinha um contrato de trabalho confortável, mas como estudou, queria que o seu estudo desse algum retorno. Sentia que poderia fazer mais do que estava fazendo no antigo trabalho e não pensou duas vezes em abrir mão do emprego para se tornar empreendedor. E, neste caso, podemos chamá-lo de empreendedor, porque ele se vê nessa condição e assimila um conjunto de ideias e visões de mundo que estão dentro deste pacote que é o “neoliberalismo”; entende o seu curso de psicologia como algo útil para o seu trabalho e quer abrir outra loja, assim que for possível. Ele também trabalha demais – a exaustão do trabalho é algo muito visível nestes casos. Além disso, tem três filhos e não se importa de estar pouco tempo presente em casa. Este é um retrato muito acurado e exemplar desse empreendedorismo popular que surgiu, ganhou força e passou a ser notado nos últimos anos.

Você já esperava ouvir o discurso empreendedor dos mais jovens?
Estudo essa temática há algum tempo, mas estava estudando outro perfil de empreendedor: o empreendedorismo de impacto social. Existem muitos cursos universitários sobre esse tema e as universidades vêm investindo nisso, seja em faculdades de administração, seja em cursos de ciências sociais aplicadas ou em gestão de políticas públicas, a partir de um discurso de transformação social. Este tipo de empreendedor quer ter um negócio que gere renda e tenha um impacto social na sua comunidade; essa é uma característica desses negócios de impacto social.

Antes da pandemia, eu participei de eventos de empreendedorismo social na periferia para entender como esse discurso é falado e recebido. Agências de impacto social agenciam negócios e têm algum capital por trás delas, a partir de parcerias com fundações, como a Fundação Casas Bahia, que financiam essas redes. Quando iniciou a pandemia, minha ideia era contrastar o impacto do empreendedorismo social – que identifico como ideológico – com o outro empreendedorismo, aquele por necessidade, em que o sujeito entende seu negócio sobretudo como geração de renda e não tem pretensões de transformar a sociedade, mas sustentar sua família e ter um reconhecimento social na sua região.

Em função da pandemia, visitei duas periferias em São Paulo e tinha a expectativa de entender como as pessoas estavam reagindo ao auxílio emergencial, se elas tinham tido perda de renda e como viam o futuro. O que eu vi foi justamente os personagens que entrevistei e descrevi no artigo: os comerciantes e os novos empreendedores.

Como eles reagiram ao auxílio e reagem à proposta do governo de instituir a Renda Cidadã?
Este tema é muito controverso e isto me surpreendeu. Nós da academia esperamos que as pessoas sejam coerentes, mas elas não são, e mais contradições aparecem. O auxílio emergencial é sintomático disso. Diante do que vi, é razoável afirmar que as pessoas têm sentimentos ambíguos sobre o auxílio porque são contra a ideia de que o governo deve ajudar. Elas querem que as pessoas trabalhem porque o que traz dignidade para a pessoa é a renda fruto do trabalho.

Eu passei uma tarde numa loja de um comerciante e ele não vendeu nada, mas ele trabalha sete dias por semana. Aí você pergunta se é preciso trabalhar tanto, mas a pessoa se sente completa quando está trabalhando. É justamente isto que a pandemia nos mostrou: a importância do trabalho para a vida das pessoas. Claro que o trabalho não é tudo na vida e na identidade de uma pessoa, mas não podemos ignorar que se alguém passa sete dias por semana, dez horas por dia num lugar, é porque ele se vê como um trabalhador e se reconhece ao estar trabalhando. Isso não quer dizer que isso seja toda a vida dele, mas é algo que não dá para ignorar.

Distinção social
Um dos entrevistados recebeu o auxílio, mesmo tendo um comércio essencial, e fez uma distinção social entre o sujeito que não trabalha – que é vagabundo ou noia (usuário de drogas) – e o que trabalha. Existe essa pretensão de distinção social também na periferia e ela se dá pelo trabalho. Quanto mais as pessoas trabalham, mais dignidade elas têm. Na cabeça de muitos deles, quem recebe auxílio é noia e não trabalha. Essa visão se encaixa com o discurso de Bolsonaro na pandemia. Ele captou esse sentimento do trabalhador brasileiro que quer trabalhar e se sente digno ao trabalhar.

Alguns comerciantes reconhecem o fato de o auxílio ter permitido que as pessoas pudessem comprar no comércio, ou seja, percebem que o auxílio dinamiza a economia. Mas é difícil para as pessoas admitirem essa verdade porque isso vai de encontro à ideologia na qual elas acreditam, de que o sujeito digno é o que trabalha. Vários colegas quiseram manter uma rede de solidariedade durante a pandemia, pagando as diaristas, mas muitas mulheres não aceitaram porque, para elas, é inconcebível a ideia de receber sem trabalhar. Não é cômodo e confortável para as pessoas receber sem trabalhar.

A ideologia contemporânea
Não é por acaso que Bolsonaro fez aquele discurso durante a pandemia. Não é só por ele não querer ver a economia desabar; ele tem uma característica de se comunicar com esse perfil que vai desde o comerciante apegado à ética do trabalho até aquele que se vê como empreendedor, que também é apegado ao trabalho. Para eles, ficar em casa, mesmo ganhando renda do governo, implica em não crescer e estagnar.

A ideologia contemporânea gera esse sentimento, inclusive, em nós pesquisadores. Não é à toa que estamos sempre preocupados em produzir, em escrever artigos, em participar de eventos, porque não se pode ficar parado. O grande pecado contemporâneo é a estagnação, é ficar parado. Mesmo num emprego estável, você é cobrado por se qualificar o tempo todo. Inclusive, nesta pandemia vimos a quantidade de webinars disponíveis – as pessoas estão em casa e não podem ficar sem fazer nada.

Além disso, houve uma intensificação do trabalho no home office. Parece que o home office é um privilégio – e, do ponto de vista da contaminação, é um privilégio porque as pessoas se mantêm seguras do vírus, mas não se mantêm seguras da intensificação do trabalho.

Na sua avaliação, o discurso do empreendedorismo, mas também o do teletrabalho, ocultam, de outro lado, a essência da precarização do trabalho. Como a precarização do trabalho tem afetado a vida afetiva das pessoas e suas relações, especialmente neste período de pandemia?

Esta é uma das questões interessantes de se analisar neste período. À primeira vista, os trabalhadores ditos “essenciais” ficaram muito visíveis por causa da natureza do seu trabalho. Por outro lado, isso gerou, curiosamente, algumas consequências subjetivas e psicológicas naqueles que estão trabalhando em casa.

Estereótipos
Tenho notado que se criou uma oposição entre essas categorias. Os trabalhadores não essenciais olham para os outros trabalhadores como irresponsáveis porque eles não fazem isolamento social e caem no discurso de Bolsonaro. Ou seja, há uma estereotipização de algumas categorias de trabalhadores, mas esta não é uma questão política. As pessoas não saem porque Bolsonaro mandou; é exatamente o contrário. Ele está dizendo o que elas querem: uma legitimação para fazer o que elas já fazem ou fariam. Essa é uma percepção inteligente de Bolsonaro na medida em que ele percebe qual é o sentimento que está colocado para esses trabalhadores. Tanto é assim que ele diz que, para fazer o Renda Cidadã, não quer tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Ou seja, ele está falando para os pobres que têm renda familiar de dois a cinco salários mínimos: os precários, humildes e que têm uma ideia de trabalho que se sobrepõem à política. Aqueles que estão trabalhando em casa olham para esses trabalhadores com preconceito e julgam que são irresponsáveis e bolsonaristas. Eles sentem que estão fazendo a sua parte, se sacrificando com as crianças em casa, sem diarista, para conter o vírus, enquanto outras pessoas não estão fazendo o mesmo.

Consequências psicológicas
A pandemia criou mais um elemento de distinção social, fazendo com que a classe média olhasse para si mesma como melhor diante de outras classes que não são responsáveis, não entendem o valor da vida e que, portanto, saem de casa e, para piorar, votam em Bolsonaro. O teletrabalho gerou, por exemplo, esse tipo de comportamento. Mas o fato é que todo mundo precisa sair de casa. Por mais que as pessoas se sintam valorizadas por estarem em casa – em tese, ajudando a conter o vírus, porque na cultura do narcisismo contemporâneo elas acham que sozinhas estão fazendo muita coisa para resolver os problemas sociais, quando na verdade os indivíduos não resolvem problemas dessa dimensão –, elas acabam sofrendo consequências psicológicas que não são irrelevantes, principalmente para quem tem filho em casa.

Quando os pais tinham a escola para deixar os filhos, tinha alguém olhando por eles, mas hoje o filho se tornou mais uma demanda de tempo integral. Não é uma demanda de somente dar a janta à noite e colocar para dormir. As consequências psicológicas entre os trabalhadores do teletrabalho são mais profundas do que para as classes populares que estão, como diz Bolsonaro, “tocando a vida”.

Os seus entrevistados, via de regra, aprovam o modo como o presidente tem conduzido a crise. O que eles relatam?
O rapaz mais empreendedor tem apreço por Bolsonaro, mas fora ele, as pessoas não sentem um amor incondicional pelo presidente. O fato é que Bolsonaro tem uma sensibilidade grande para entender essas pessoas. Contudo, elas não o amam justamente por causa da ética do trabalho. Numa entrevista, um homem me disse que era errado o presidente xingar os repórteres, porque eles estão trabalhando. A reprimenda é em relação ao comportamento dele com outros trabalhadores e não ao que nós, universitários, entendemos como sendo grave: o fato de ele ser violento e elogiar a tortura. Não é este o problema. As pessoas não gostam de xingamentos, de esporro. Gostaria de enfatizar o papel do trabalho aqui: essas pessoas veem o trabalhador de outra maneira e este é o núcleo de uma constelação de valores.

Se a pessoa trabalha, merece respeito, mas se não trabalha, merece desprezo.

Talvez Bolsonaro não tenha essa sintonia fina de perceber que o comportamento dele é visto como imoral quando ofende os trabalhadores. Esse é um traço curioso que notei nessas entrevistas e merece mais aprofundamento.
No artigo, você também menciona que essas pessoas não veem o presidente como responsável pelas mortes de covid-19. O que elas dizem?

Em relação ao vírus em si, a maioria das pessoas não vê Bolsonaro como o maior responsável pelas mortes de covid-
19. A pandemia é vista como um evento da natureza e as pessoas avaliam que ele fez o que pôde.

Nós gostamos de debochar do discurso dele acerca da cloroquina, mas o que passa pelo raciocínio das pessoas não é se o remédio fez efeito ou não, mas sim que o presidente está fazendo alguma coisa, porque ninguém sabe o que funciona até o momento. Então, elas leem os discursos dele como boa intenção de fazer algo. Além disso, veem Bolsonaro como uma pessoa comum que está trabalhando e tentando fazer algo. Nesse sentido, ele pode errar e falar num tom equivocado às vezes ou se expressar mal, porque ele não peca pela omissão. Do mesmo modo, embora saibamos que não era uma proposta do governo conceder o auxílio emergencial, no fim, quem deu a canetada que colocou R$ 600 na conta das pessoas foi ele.

Nas universidades também cresce o discurso do empreendedorismo. Como vê esse movimento no horizonte para o futuro econômico e social do país?

A universidade está num momento de redefinição dos seus rumos – e a pandemia acelerou esse processo – e há algum tempo está mudando o seu perfil. Existe uma desvalorização do diploma e ele não é mais o que foi antigamente do ponto de vista social – mas é claro que ter o diploma ainda é melhor do que não ter do ponto de vista de remuneração, mas ele não é mais um passaporte para uma vida melhor; ele é um visto temporário.

As universidades, principalmente as de pior qualidade, veem nisso um problema e, ao mesmo tempo, uma solução. Em função disso, começam a se proliferar aqueles cursos de curto prazo, de dois anos, e a ideia de que as pessoas precisam fazer cada vez mais. Ou seja, não basta fazer um curso só; é preciso fazer vários e, portanto, as pessoas precisam pagar por vários. O discurso do empreendedorismo penetra em diversos poros da sociedade, e na universidade isso acontece quando se percebe que o diploma não é mais tão necessário.

A situação fica ainda mais complicada quando essa visão penetra nas instituições públicas que, em tese, por terem financiamento público, estariam preservadas, mas não estão. Elas investem cada vez mais na ideia de inovação, e isso penetra em lugares que não geram valor econômico, como nos cursos de história, pedagogia, sociologia, ou seja, em disciplinas que não servem para gerar valor econômico. Por que alguém tem que ser produtivista numa faculdade de filosofia? Se o professor publicar um ou dez artigos por ano, isso não lhe dará mais dinheiro. Então, de onde vem essa gana por produzir como se fosse uma empresa? Este é o núcleo do neoliberalismo como ideologia e como ele penetra na nossa subjetividade.

Como ele penetra em todos os poros, vai desde o indivíduo até o Estado, que cria editais e mecanismos que empurram a universidade para este lado. Então, a extensão universitária, que tem o seu valor como um tripé universitário, acabou virando uma muleta. A universidade, para se sentir valorizada perante a sociedade, precisa investir em extensão universitária, porque a pesquisa não é vista como algo de valor. A própria universidade e o Estado não veem a pesquisa como valor.

A universidade está em crise, sem saber exatamente qual é o seu papel na sociedade?
Exatamente. Ao invés de a universidade enfrentar a difamação de ser um lugar de pessoas que não trabalham, e valorizar o que ela tem de melhor, que é a pesquisa, isso não é valorizado pela própria universidade. Ela se vê acuada por esses ataques e responde do jeito errado, ou seja, dizendo que tem um projeto de extensão social e trabalha em parcerias com ONGs. Ou seja, isso vira uma muleta para ela se legitimar. Mas aí entra o papel dos dirigentes universitários.

Se nós, enquanto pesquisadores, nos vemos como empreendedores acadêmicos que precisam produzir cada vez mais e trazer sempre coisas novas, se estamos fazendo isso no nosso cotidiano, como temos condições de cobrar que a universidade seja diferente? Nós reproduzimos a mesma lógica, mesmo quem é crítico.

É um momento difícil e não saberia dar uma receita, mas a universidade deveria enfrentar os ataques. Já tivemos um AI-5 para mostrar que a universidade consegue sobreviver a ataques mais violentos, mas por que não conseguimos resistir ao neoliberalismo – que não é um decreto – no nosso próprio cotidiano, na nossa rotina de trabalho? Por que estamos nos dispondo a trabalhar cada vez mais, incessantemente, tendo inúmeros problemas de saúde mental? Os problemas de saúde mental no ambiente acadêmico são inúmeros, com depressão, casos de suicídio por conta da pressão por produção. Escrever uma boa tese de doutorado é muito melhor do que escrever vinte artigos por ano falando sobre a mesma coisa. No dia a dia, as pessoas se veem incapacitadas de enfrentar esta lógica.

‘Falar sobre suicídio e morte ainda é um grande tabu’, diz Walcyr Carrasco

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Autor lança, na Bienal do Livro, duas obras que tratam de drogas e suicídio de jovens: ‘Êxtase’ e ‘Meu Lugar no Mundo’

Ubiratan Brasil, O Estado de S. Paulo – 08/07/2022

Walcyr Carrasco é mais conhecido como autor de telenovelas de sucesso – títulos como O Cravo e a Rosa e Chocolate com Pimenta, além da minissérie Verdades Secretas, já figuram entre os grandes nomes da TV brasileira. Mas Walcyr ostenta também uma consolidada obra literária, especialmente a dedicada ao público infantojuvenil, com mais de 50 livros publicados. E é justamente o lançamento de duas novas obras que levará o escritor de 70 anos à Bienal do Livro de São Paulo, neste sábado, 9.

A partir das 16h, Walcyr estará no estande da Santillana Educação para o lançamento oficial de Meu Lugar no Mundo, seu mais recente livro voltado ao público jovem e que trata de questões espinhosas, como saúde mental e suicídio na adolescência. Ele também assina Êxtase (Assírio & Alvim Brasil), volume que traz o texto da peça teatral que foi encenada em 2002 e que lança um olhar objetivo sobre a realidade dos dependentes químicos.

São dois livros que tratam de momentos delicados da fase juvenil, quando a situação parece fugir do controle e as soluções escolhidas muitas vezes são drásticas demais. A peça Êxtase traz dois jovens: Felipe, usuário de drogas, e Raul, cujas atitudes revelam alguém já perto de virar traficante. Há ainda Tânia, mãe de Felipe, que não percebe as falcatruas do filho para conseguir dinheiro e sustentar o vício. Walcyr pesquisou entre pessoas envolvidas nesse problema para conseguir mais fidelidade.

Já Meu Lugar no Mundo foi inspirado em um episódio da juventude de Walcyr, quando descobriu o suicídio de um amigo. Assim, o autor conta a história de Aleph, adolescente que é constantemente submetido a comparações com seu irmão Ariel, considerado por seus pais um exemplo. O drama se agrava quando uma amiga de Aleph sofre bullying e, não suportando a pressão, comete suicídio. Walcyr trata de um tema delicado e comum entre jovens, quando são questionados a respeito de seu lugar no mundo. Sobre o assunto, o escritor conversou por telefone com o Estadão.
Os dois livros relatam momentos problemáticos vividos por jovens, quando se encontram em situação-limite. Como foi isso?

Há algumas diferenças. Êxtase é uma peça escrita há 20 anos e sobre um tema que me tocava – escrevi com base em depoimento de dependentes químicos em recuperação, visitas a clínicas e leituras. Mas eu não tinha um público-alvo com esse texto. Já Meu Lugar no Mundo, que concluí no ano passado, tem a vocação, a ambição de ser lido por estudantes, como leitura paralela ao currículo escolar. E trata de temas próximos a esse público, com questões sobre o que vou ser e como vou ser. Aleph é um personagem positivo. Já em Êxtase, os jovens não têm saída, cada um tenta cuidar de si e não se importa com o outro. Ao contrário de Aleph e outros personagens, que concluem que não precisam seguir o caminho que é apontado por eles por pais ou professores.

Aliás, o tema do bullying sempre é incômodo, não?

É muito forte. Nos dias atuais, trabalhar e educar um jovem ficou muito difícil em relação ao que era anos atrás, pois há uma grande quantidade de estímulos que os cercam e, às vezes, não é fácil identificar esses estímulos. Antes, era mais fácil para um pai estabelecer um contato com seu filho, mas hoje ele não sabe jogar os brinquedos eletrônicos favoritos dos jovens, o que o afasta dos adolescentes. Claro que há filhos que buscam estabelecer um diálogo, mas há também aqueles que não se interessam. Sei que não é fácil acompanhar a evolução dos tempos. Há 20 anos, fui ao Japão fazer uma pesquisa para uma novela que estava preparando e passei a entender tudo sobre robótica. Hoje, eu não conseguiria assistir a uma aula online, algo que os jovens fazem com naturalidade.
A sociedade ainda tem vergonha de falar sobre certos assuntos.

Sim, suicídio é um deles, é um tabu enorme. Na verdade, falar sobre morte é o tabu. Tenho 70 anos e sei que não viverei mais tanto tempo. Mas, quando falo isso, as pessoas ficam horrorizadas, me preconizam uma vida muito longa, como se eu pudesse chegar aos 140 anos. Sabemos que não somos eternos. Mas o suicídio é um assunto muito delicado, pois representa a decisão da pessoa de abandonar todos os seus sonhos e suas esperanças.

Como foi seu trabalho com esse tema?

Muito antes de escrever meu livro, li uma obra espantosa, O Demônio do Meio-Dia, em que o americano Andrew Solomon, ao narrar sua própria batalha contra a depressão, conta o caso de um amigo que era o rei das festas e, de repente, comete suicídio. Foi uma surpresa pois, aparentemente, ele não deu indícios de que faria isso. Provavelmente, ele deu, mas não perceberam. O potencial suicida nem sempre dá sinal claro de que vai se matar. É um ato que implica um valor moral que só é bem compreendido pelas pessoas que têm uma moral semelhante – não podemos nos esquecer que nossa sociedade estabelece valores religiosos que interferem diretamente nessa moral.

E como foi tratar desse assunto para os jovens?

Parto do princípio de que tudo que é explicitamente educativo é chato. Um livro que coloca a moral da história no final não é nada atraente. Temos de oferecer argumentos para que o leitor tire suas conclusões. Assim, em livro como Meu Lugar no Mundo, procuro abrir caminho para a discussão. Não se pode determinar nada inflexível. Considero terrível o fato de os jovens de 15, 16 anos serem obrigados a escolher uma profissão. É difícil saber a resposta com tão pouca idade.

E como é escrever para um público jovem?

Sou um autor muito intuitivo. Se tenho de escrever um texto para crianças de 7 anos, a ideia sai formatada para essa idade. O mesmo acontece se é uma novela de época. Minha única preocupação é com o público, uma sociedade plural.

A quem interessa o armamento da população?, por Carlos Alberto Vilhena,

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Armar civis é levar a morte a suicidas, pela tristeza; às mulheres, pelos homens furiosos; e aos Durvais, pelos Aurélios amedrontados.

Carlos Alberto Vilhena, PROCURADOR FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO

O Estado de S. Paulo – 09/07/2022

Durval Teófilo Filho era negro e tinha 38 anos. Pai de Letícia e marido de Luziane, trabalhava num supermercado. Morava com a família num condomínio em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Na noite de 2 de fevereiro, ele voltava a pé para casa enquanto mexia em sua mochila. Sem aviso, recebeu três tiros na barriga. Aurélio Alves Bezerra, militar da Marinha e seu vizinho, efetuara os disparos. Ele havia confundido Durval com um bandido e pensou que fosse ser assaltado. Durval morreu. Até maio, Aurélio seguia preso.

Aurélio provavelmente queria se sentir protegido, por isso a pistola. Essa tem sido a base do discurso armamentista. Nessa linha, com uma arma, uma pessoa será capaz de se defender de qualquer ameaça, num país de violência extrema como o Brasil.

O lema “mais armas significam mais segurança” permeou a campanha do atual presidente da República. Seu programa de governo previa a alteração do Estatuto do Desarmamento para garantir ao cidadão a legítima defesa, ou seja, armar os civis.

O governo tenta cumprir seu compromisso eleitoral. Sua intenção é facilitar o acesso a armas e munições pela população civil. Publicou, até março deste ano, 36 normativos infralegais com esse fim.

Os Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CAC) foram especialmente contemplados: segundo o texto do Decreto n.º 9.846/2019, questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), um atirador pode ter até 60 armas, 30 delas de uso restrito, e adquirir até 180 mil balas por ano.

Coincidentemente, os registros de CACs aumentaram 474% entre 2018 e 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Há mais de 673 mil CACs no Brasil, um número superior ao de todos os policiais civis e militares somados, cujo efetivo era, segundo o site da revista Piauí, de 499 mil agentes em 2021.

Contudo, armar a população não produz os efeitos apregoados pelo governo. O próprio presidente foi assaltado quando era deputado federal em 1995. Dois rapazes roubaram sua moto e sua pistola. Na ocasião, ele disse: “Mesmo armado, me senti indefeso”.

O fato é que as armas contribuem para a insegurança da sociedade. Das mais de 47 mil mortes violentas ocorridas em 2021 no Brasil, 76% foram causadas por armas de fogo. Ressalte-se que 78% das vítimas de assassinatos eram pessoas negras, como Durval.

O mesmo ocorre nos feminicídios. Entre 1999 e 2019, 51% das vítimas desse crime foram mortas a tiros. E mais de 70% delas eram mulheres negras.

Quanto a enfrentar assaltantes, um estudo da Secretaria de Segurança de São Paulo, realizado em 1998, mostrou que uma pessoa armada tinha 56% mais chance de morrer em um latrocínio do que uma desarmada.

Além disso, as taxas de suicídio crescem nos lugares onde há mais armas. Estudo conduzido nos Estados Unidos indicou que cada incremento de 10 pontos porcentuais na taxa estadual de lares com armas eleva o suicídio de jovens em quase 27%.

Ressalte-se que muitas armas usadas em crimes têm origem legal. Estudo do Instituto Sou da Paz mostrou que 33 mil armas legais foram parar nas mãos de criminosos entre 2011 e 2020.

Uma recente pesquisa do instituto Datafolha indicou que 72% de nossa população discordam da ideia de que mais armas trarão mais segurança à sociedade, enquanto 70% das pessoas discordam da facilitação do acesso a armas. Ou seja, o governo age em desacordo com a vontade popular.

Com tantas objeções de peso e com mais gente contra do que a favor, por que insistir no armamento da população?
A principal razão talvez seja econômica: segundo a revista Tecnologia & Defesa, Taurus e CBC, as duas principais empresas de armas de fogo e munições do Brasil, geram 60 mil empregos diretos e indiretos, com faturamento de R$ 5 bilhões.

É preciso refletir sobre um gestor público que propõe o armamento de civis como política de segurança. Ao fazê-lo, diante de tantas evidências contrárias a essa ideia, ele confessa sua incapacidade de proteger a população.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) entende que as medidas adotadas para armar civis contrariam o espírito de nossa Constituição. Se a segurança pública é dever do Estado, e há ampla comprovação de que mais armas significam mais mortes, tais medidas não podem ser legítimas.

Some-se a isso o uso de meios infralegais para burlar o Estatuto do Desarmamento, aumentando a circulação de armas no País. É inadmissível que o Executivo extrapole suas competências regulamentares, visando a alterar normas aprovadas pelo Legislativo.

A PFDC também repudia ato em defesa da liberação das armas convocado por grupos armamentistas para este 9 de julho, Dia Mundial pelo Desarmamento.

Armar civis é levar a morte aos suicidas, pela tristeza; às mulheres, pelos homens furiosos; e aos Durvais, pelos Aurélios amedrontados.

Arma é lucro, arma é violência, arma é morte. Arma não é segurança. Quem vende essa ideia está com o dedo no gatilho, apontando e apostando contra mim, contra você e contra milhões de brasileiros que não desejam matar, mas apenas viver.

Possível recessão global

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O século XXI está nos trazendo grandes instabilidades e incertezas que desestruturam a sociedade, espalhando medos e ansiedades que crescem em todas as regiões, intensificando os conflitos sociais, políticos e econômicos, exigindo dos Estados Nacionais mais consistência e a busca de novos consensos e buscando políticas públicas mais ousadas e que reduzam o crescimento da desigualdade que crassa na sociedade global.

Depois da crise internacional de 2008 que desestruturou os sistemas financeiros nacionais e internacionais e exigiram dos governos a adoção de políticas efetivas de socialização dos custos como forma de proteger os grandes conglomerados e evitar, que muitas organizações fossem a bancarrota. Nos últimos anos, a pandemia contribuiu negativamente para desagregar acordos internacionais e trouxe grandes custos físicos e humanos e, com milhões de mortes e desequilíbrios gritantes. Somando aos fenômenos anteriores que contribuem para degradar os cenários econômicos, o conflito militar entre ucranianos e russos tendem a elevar a temperatura internacional, prejudicando os investimentos, aumentando o protecionismo e reduzindo os fluxos de comércio internacional, além de contribuir para a elevação dos preços globais e reduzindo a renda das populações, degradando as condições sociais da população, aumentando o xenofobismo e os conflitos culturais e religiosos.

Depois de uma severa crise gerada pela pandemia, que está reorientando as nações, criando novos desafios e abrindo espaços para novas oportunidades, a sociedade global precisa construir novos consensos, criando instrumentos de solidariedade e empatia, estimulando a tão combalida democracia e a construção de uma agenda que proteja os grupos sociais mais fragilizados, respeitando suas manifestações culturais e aprofundando todos os canais de participação social, política e econômica.

A guerra na Ucrânia está fragilizando as estruturas de poder global, criando novos embates entre as nações, revivendo rivalidades históricas, espalhando desagregações e estimulando o crescimento de políticas protecionistas, priorizando seus interesses imediatos e deixando de lado a solidariedade que contribuiu, anteriormente, para a construção de um ambiente centrado no progresso social, no crescimento econômico e na estabilidade política no pós-segunda guerra mundial.

Neste ambiente percebemos perspectivas crescentes de recessão global nos próximos meses, com baixo investimento produtivo, redução dos empregos, aumento do endividamento dos governos e das famílias, com isso, postergamos a recuperação da renda da população e o crescimento da fome. Destacamos ainda a elevação dos custos energéticos, o incremento dos preços dos combustíveis e dos alimentos que impactam diretamente sobre as sociedades, num ambiente de grandes incertezas que reduzem os investimentos produtivos e passam a exigir das nações políticas públicas e sociais mais consistentes.

Internamente, percebemos grandes incertezas na condução da política econômica, o cenário fiscal é preocupante e marcado por grandes instabilidades, contribuindo negativamente para a chegada dos investimentos estrangeiros, além disso, destacamos que as taxas elevadas de juros, que visam o controle dos preços e impedir a escalada inflacionária, reduzindo os investimentos governamentais, aumentando a insegurança alimentar, fomentando a fome e a exclusão social. Neste cenário de degradação econômica, a atuação do governo é premente e imprescindível, retomando os investimentos produtivos, aumentando a progressividade tributária, investindo em pesquisas científicas, aumentando os dispêndios em educação, aumentando a transparência da coisa pública, melhorando os recursos para a saúde e reestruturando políticas públicas.

A comunidade internacional já percebeu a necessidade de novos estímulos fiscais e investimentos governamentais como forma de reativar o sistema econômico e produtivo e, infelizmente, ainda estamos discutindo questões secundárias, ultrapassadas e rudimentares, degradando as instituições de regulação do Estado Nacional, devastando as riquezas naturais e nos esforçando para sermos um verdadeiro pária internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/07/2022.

Racismo e desigualdade marcam educação pós-Independência, por Paulo Saldaña.

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Processo histórico que afastou negros e pobres da escola levou país a imenso atraso civilizacional

Paulo Saldaña, Repórter de educação da Folha de S.Paulo em Brasília. É fundador e um diretores da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação).

Folha de São Paulo, 03/07/2022

[RESUMO] A educação pública nos 200 anos do Brasil independente teve como barreiras o racismo, a desigualdade e o subfinanciamento, fatores ainda não totalmente superados que marginalizaram a população negra e pobre e legaram ao país um imenso atraso civilizacional. Após avanços nas últimas décadas, ensino segue sem rumo no governo Bolsonaro, cujo Ministério da Educação virou até caso de polícia.

Olhar para o filme da educação pública ao longo desses 200 anos pós-independência é entender, por um lado, a arquitetura do nosso atraso em relação a outros países e, sobretudo, entre nossa população. Por outro, vê-se uma tardia, mas bem-vinda, reação em busca de uma democratização da escola.

O Brasil ter vivenciado uma independência com a manutenção da e escravidão é, na opinião de estudiosos, ponto de
partida obrigatório para uma reflexão que reconheça o papel essencial da educação na socialização dos indivíduos, no preparo para a cidadania, na formação de capital humano e na garantia de igualdade de oportunidades.

A persistência de estruturas racistas e excludentes faz com que a discussão sobre independência e autonomia esteja permeada por um questionamento: como o país aceitou que, ano após ano, parcelas significativas da população, especialmente negra e pobre, fossem alijadas do acesso a algo tão fundamental para uma vida digna, como é a educação?

“Não se passa impunemente pelo fato de o Brasil ter sido o último a abolir a escravidão, depois de receber quase metade dos negros escravizados e ter vivenciado a escravidão em todo o território”, diz a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. O Brasil foi a última nação da América Latina a acaba com a escravidão, fato considerado derradeiro no mundo ocidental.

“A escravidão criou uma linguagem da desigualdade no país que se inscreveu na educação.”

Estima-se que o Brasil recebeu 4,8 milhões de negros escravizados, segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos. Isso representaria 46% dos escravizados embarcados, segundo análise de pesquisadores.
Todos os indicadores educacionais atuais mostram a população negra mais prejudicada, assim como os pobres em geral, indígenas e crianças e jovens com deficiência —seja no acesso, na permanência ou no aprendizado.

Quase 4 em cada 10 jovens negros de 19 anos não conseguiram terminar o ensino médio, segundo dados de 2020, os mais atualizados com esse recorte. A proporção é semelhante quando se olha para dados segregados dos 25% mais pobres.
Entre os jovens brancos, os indicadores inspiram preocupação, mas a relação cai para 2 de cada 10. Já o quartil da população de maior renda está perto da universalização, com 93% de conclusão da educação básica, que vai da creche ao ensino médio.

A escolaridade avançou com alguma rapidez no país só mais recentemente. Há dez anos, em 2012, quase metade de todos os jovens de 19 anos ainda não havia concluído o ensino médio. Hoje, o montante de jovens dessa faixa etária sem ensino médio concluído é, na média, de 30,6% (dados de 2020).

O acesso à educação tem impactos que superam a esfera acadêmica. A remuneração ao longo da vida de uma pessoa com ensino médio pode ser, por exemplo, entre 17% e 48% maior que a daquela com o mesmo perfil, mas escolarizada até o ensino fundamental. Outros índices de qualidade de vida, como saúde e planejamento familiar, também são desfavoráveis, segundo estudo recente do professor Ricardo Paes de Barros, do Inper.

Para cada 1% a mais de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas, há uma diminuição de 2% na taxa de assassinatos nos municípios, indica pesquisa de 2016 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A ideia de uma oferta escolar no Brasil tem um pontapé inicial após 1822, de maneira mais simbólica que prática. Encontram-se a partir dali, no entanto, raízes de alguns dos grandes desafios da evolução educacional brasileira, como racismo, exclusão, desigualdade, subfinanciamento e o empura-empurra de atribuições.

Se o Brasil começou a vivenciar certas institucionalidades a partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa, foi somente na Constituição de 1824 que surgiria a menção à gratuidade da “instrução primária”. Isso, porém, valeria apenas para uma elite bastante restrita —ficou de fora a imensa maioria da população, como os escravizados e praticamente todos os não proprietários de terras.

Como comparação, a oferta de escola como obrigação aparece pela primeira vez no mundo em 1612, na Prússia (que se tornaria parte da Alemanha). Vários países passam a incluir a educação dentro de políticas incentivadas a partir do século 19, como ocorreu nos Estados Unidos, país que conseguiu ainda nessa época grande expansão na escolaridade, embora com marcas persistentes de segregação racial.

Ainda no Brasil imperial, a Lei de Instrução Pública de 1827 fez um movimento em direção a alguma organização nesse sentido. Transferiu para as províncias (denominados de estados após a República) o encargo da oferta da educação primária, ficando a superior a cargo do poder central.

Esse desenho institucional, em que sobram responsabilidades para governos locais e falta dinheiro de impostos, explica, segundo vasta bibliografia, um dos grandes obstáculos para uma expansão. Mesmo hoje, tal organização guarda desequilíbrios.

Fato é que o crescimento da escolarização foi inexpressivo no império. Após a Proclamação da República, alguns estados registraram iniciativas de criação de escolas, inclusive as chamadas escolas normais, para formação docente.

Essa ação descoordenada desencadearia parte das profundas desigualdades regionais que vemos hoje, com desvantagens substanciais para o Norte e o Nordeste.

Na transição do Império para a República, foram se consolidando certas estruturas significativas da nossa história, como a zona cinzenta entre público e privado do patrimonialismo brasileiro e as marcas de um mandonismo local.
“O grande senhor acabou por ser o senhor da educação”, diz Schwarcz, que é professora da USP. “Quanto mais mandonismo associado a um grande patrimonialismo, mais há contaminação dessas esferas e o favorecimento de certas elites que tendem a se perpetuar no poder.”

Também esteve ausente qualquer movimento de reparação aos anos de escravidão, embora seja consenso entre historiadores e estudiosos a existência de movimentos reivindicatórios pelo acesso à educação.

“O Brasil foi forjado na compreensão de uma nação com direitos para poucos”, diz Suelaine Carneiro, coordenadora de Educação e Pesquisa do Geledés Instituto da Mulher Negra. “A educação nasce desse jeito, as universidades, sempre para aqueles que eram considerados merecedores.”

Em 1830, a pioneira Prússia já tinha 70% das crianças de 5 a 14 anos na escola. Já o Brasil chega a 1900, por exemplo, com apenas 10% da população entre 5 a 14 anos nos bancos escolares, segundo estimativas elaboradas por Peter Lindert, no livro “Growing Public”.

O percentual nos Estados Unidos nessa época era de 94%. Em Cuba, 37%; na Argentina, 32%; e a Bolívia chegava a 14%. Alguns países europeus, como Inglaterra, Holanda e França, conseguiram diminuir significativamente, ou zerar, o analfabetismo por volta de 1900.

Por aqui, altas taxas de analfabetismo perduraram até o fim do século 20. Quase 30% da população era analfabeta em 1970 —até 1985, o analfabeto não tinha direito a voto no Brasil.

A partir da democratização, esses índices começam a melhorar. Estima-se, entretanto, que hoje 11 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever (6,6% da população com mais de 15 anos).

A situação educacional no Brasil estava longe de uma organização mesmo após o primeiro centenário da Independência. Foi somente a partir da década de 1930 que um sistema educacional começou a ganhar corpo, sobretudo na ditadura do Estado Novo (1937-1945).

Data dessa época o empenho de intelectuais em torno do tema. Iniciativa emblemática é o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que uniu nomes como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, e versava sobre a universalização da escola pública, laica e gratuita, e a necessidade de tornar a educação uma prioridade nacional.
Até quando houve esse certo otimismo com a educação, o sistema foi sendo estruturado distante de uma visão democrática.

Na educação básica, a reforma promovida por Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas, institucionalizou uma lógica excludente e dualista: a instrução primária seria para todos e “às classes menos favorecidas”, como ressalta a Constituição de 1937, deveria haver o pré-vocacional (profissionalizante).

Já a educação secundária teria a finalidade de “formar as individualidades condutoras”, como é descrito em decreto de 1942. Assim, essa etapa, que hoje compreenderia do 6º ano do fundamental ao ensino médio, estaria destinada à elite, preparada para chegar à universidade —o que, de fato, pouco ocorria.

Essa dualidade ainda tem ecos em discursos recentes. O pastor Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Jair Bolsonaro (PL), causou polêmica no ano passado ao dizer que universidade deveria ser para poucos, e a massa que ficasse com o ensino técnico —cuja oferta é muito baixa.

Na reforma de Capanema, consolida-se um caráter seletivo do sistema, com exames de admissão, aliado a altos índices de reprovação. Em 1960, a cada mil estudantes que começavam a educação básica, nem 60 chegavam ao ensino superior.
O professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Carlos Roberto Jamil Cury explica que há um marco em 1934: surge pela primeira vez a vinculação específica de impostos para a educação.

Um instrumento que persevera no país, apesar de interrupções. “Cada vez que tivemos regimes ditatoriais, como em 1937 e 1964, houve a desvinculação”, diz Cury. O governo Bolsonaro aventou mais uma vez eliminar essa vinculação, que hoje preconiza a aplicação mínima na educação de 18% das receitas para a União e 25% para municípios e estados.

Na ditadura militar, mais uma vez um contrassenso. A desvinculação de recursos surgiu na Constituição de 1967, concomitantemente à ampliação da obrigatoriedade de matrícula para 8 anos. Assim, impunha-se um passivo enorme para construção de escolas, garantia da permanência, formação e contratação de professores, em um país continental e desescolarizado, sem que houvesse fontes consistentes de recursos.

Segundo Cury, intensificou-se ali o processo de uma expansão sucateada, acompanhada de desvalorização docente. Uma desvalorização profissional que recai sobre a mulher, predominante na carreira até hoje.

Em 1985, na redemocratização, o investimento em educação no país não chegava a 3% do PIB (Produto Interno Bruto). A escolaridade média do brasileiro não passava de quatro anos nessa época; na Argentina e no Chile, estava em torno de sete.

Os dados mais recentes mostram que a escolaridade média do brasileiro com mais de 25 anos é de 9,4 anos, segundo o IBGE. Quando considerada a população entre 18 e 29 anos, são 11,8 anos de estudo, o que cai para 10,8 entre os 25% mais pobres.

“A partir dos anos 1980, a escola começa se tornar mais pública, mas a classe média começa a sair, com o processo de privatização e o estabelecimento da educação como um negócio”, diz a historiadora e educadora Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação).

“A escola pública acabou relegada para os pobres. Nunca se construiu no país uma escola pública no sentido literal, aquela que, nas palavras de Anísio Teixeira, seria a verdadeira fábrica da democracia”.

O ensino superior, com mais verbas da União, viu avanços durante a ditadura militar. Houve a criação de universidades e fortalecimento de instituições de fomento à pesquisa e pós-graduação, como o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Hoje, as universidades públicas brasileiras concentram a maior parte da pesquisa científica e da inovação no país, um papel que a indústria não conseguiu realizar a contento.

É com a Constituição de 1988 que a educação se cristaliza como um direito de todos. Ainda diante de um cenário em que a União concentra a arrecadação e sobram para estados e municípios os maiores gastos, a criação do Fundef, em 1998, dá um importante impulso para um avanço substancial das matrículas.

O Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) é uma sub-vinculação de recursos destinados à educação com lastro no número de matrículas por redes de ensino. Como o nome deixa claro, a base do cálculo levava em conta só o ciclo fundamental.

Em 2007, esse fundo foi substituído pelo Fundeb, que passou a contemplar a creche, a pré-escola e o ensino médio. Surge assim, pela primeira vez, um mecanismo que olha para o tipo de aluno. Matrículas indígenas, quilombolas e de educação especial, por exemplo, têm ponderação diferenciada na hora da divisão do bolo.

Somente em 2008, duas décadas após a Constituição Cidadã, o país alcançou uma taxa líquida de matrículas no ensino fundamental de 95%. O índice era de 84% em 1991. “Temos, sim, o que celebrar por ser um país que passou de uma minoria branca, masculina e proprietária nas escolas para um cenário de universalização do ensino fundamental”, diz Pilar Lacerda.

Também apenas em 2008 o Brasil supera a marca de ter metade dos jovens de 15 a 17 anos no ensino médio. Essa taxa ficava em 18% em 1991, segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).

Na Coreia do Sul, país com população de 52 milhões e cujo sucesso educacional é muitas vezes citado como exemplo, o ensino primário (equivalente aos primeiros anos do fundamental) foi universalizado no final dos anos 1960, com avanços nas décadas seguintes da escolarização nas outras etapas.

O Brasil concentra atualmente 36 milhões de matrículas na educação básica pública. Um contingente que representa quase duas vezes a população do Chile.

Em 2020, o Fundeb foi renovado, incluído na Constituição, com a previsão de maior complementação da União no financiamento. Houve uma inovação com recursos direcionados à educação infantil, cuja importância para o desenvolvimento tem sido reforçada por estudos científicos.

Ao passo que os mais pobres passaram a ser incluídos, entrou pela porta da escola a realidade socioeconômica do grosso da sociedade. Evidências mostram como o perfil dos alunos, como a escolaridade da mãe, é fator de grande relevância para o alcance do sucesso educacional —o que configura um desafio extra na busca de melhoria educacional.

Até antes da pandemia, os dados de aprendizagem mostram uma curva de melhoria nos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano). A tendência enfraquece nos anos finais (do 6º ao 9º), e o cenário é mais preocupante no ensino médio.

Dados da avaliação federal de 2019 indicam que somente 10% dos concluintes do ensino médio aprenderam o considerado adequado em matemática, segundo tabulação do Todos Pela Educação. Essa marca fica abaixo de 5% entre pretos e mais pobres, e é somente 3% na zona rural.

A melhoria de aprendizado provoca reflexos sociais amplos. Uma pesquisa de março de 2022 mostrou que avanços na qualidade do ensino podem estar associados à diminuição de 25% nos homicídios e no aumento de 200% na geração de empregos entre jovens de 22 e 23 anos.

Já no ensino superior, políticas recentes como bolsas em faculdades privadas, com o ProUni, o Fies (Financiamento Estudantil), a expansão para o interior das universidades federais e a Lei de Cotas contribuíram para diversificar o retrato que por décadas foi dominado pelas classes abastadas.

Estudo do pesquisador do Inep Adriano Senkevics apontou que apenas 16% dos jovens de 18 a 24 anos que acessam o ensino superior estão entre os 40% mais pobres da população. Em 1995, esse percentual era de 3%.

O Brasil tem uma das piores taxas de pessoas com ensino superior completo entre os países e territórios avaliados em 2019 pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos têm diploma universitário, índice inferior ao de países como México (23%), Costa Rica (28%) e Colômbia (29%). A média da OCDE é de 44%.

INICIATIVAS DO GOVERNO BOLSONARO NÃO DIALOGAM COM PRIORIDADES DA ÁREA
Ao comentar o cenário educacional nesses 200 anos da Independência, o professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Carlos Roberto Jamil Cury pondera que sua análise vai até 2018, no fim do governo Michel Temer (MDB).

Para ele, as iniciativas do governo Jair Bolsonaro (PL) não dialogam com as prioridades da área. “As prioridades foram exatamente desqualificadoras da escola pública, como a expansão de unidades cívico-militares e o ensino domiciliar”, diz Cury.

Até 2018, avalia, os esforços nos sucessivos governos democráticos se debruçaram, mesmo que com falhas e questionamentos, às questões de avanço da matrícula, monitoramento do aprendizado, ampliação de creche, definições curriculares, com a Base Nacional Comum Curricular, e reforma do ensino médio.

“Agora, o que vemos é discussão de ideologia de gênero [termo nunca usado por educadores], marxismo cultural, e todo um discurso de desqualificação do professor e da própria escola, como se fossem antros de esquerdismo.”

Sob o governo Bolsonaro, o orçamento de educação cai a cada ano, e o MEC viveu entre trocas de equipe, disputas ideológicas e uma ausência de políticas públicas estruturadas, inclusive na pandemia.

Como se não bastasse o cenário, o terceiro ministro da Educação de Bolsonaro, o pastor Milton Ribeiro, foi preso em 22 de junho em operação da Polícia Federal que investiga um balcão de negócios operado com pastores aliados do presidente.

Milton Ribeiro havia deixado o cargo em março, uma semana depois de a Folha revela áudio em que ele dizia privilegiar solicitações de pastores para liberação de recursos da pasta. Essa priorização seria um pedido de Bolsonaro, diz Ribeiro na gravação.

Para Suelaine Carneiro, do Geledes, a busca por direitos é um processo permanente. “O nível de otimismo tem que estar alto sempre”, diz. “A gente sabe que a luta é digna e que contempla toda população.”

Auxílio Brasil não é ágil o suficiente para mitigar perdas recorrentes de renda, por S. Firpo.

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Aumento do benefício para R$ 600 pode amplificar ineficiência da distribuição de recursos para transferência de renda

Sérgio Firpo, Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper

Folha de São Paulo, 01/07/2022

O governo conseguiu ampliar o valor dos benefícios do Auxílio Brasil para R$ 600 por família. A despeito de parecer evidente oportunismo eleitoral, essa é uma ótima notícia para os beneficiários do programa. Mas vale notar que, para além do custo fiscal óbvio de tal medida, o aumento amplifica um potencial custo de ineficiência, que é o da má distribuição do Auxílio Brasil entre as famílias vulneráveis.

Para que o maior número possível de famílias seja retirada da pobreza com uma dada quantidade de recursos, distribuição focalizada é fundamental. Há duas principais razões, como já foi apontado por Ricardo Henriques em artigo recente, para a redução na focalização do Auxílio Brasil, quando comparada àquela do Bolsa Família.
Primeiro, os critérios de alocação dos valores por família usados no Bolsa Família e baseados em estrutura demográfica e de geração de renda foram solapados com a distribuição uniforme de R$ 400 (e agora, R$ 600). Em seguida, há um contexto de baixíssima taxa de atualização cadastral das famílias em situação vulnerável. Os dados de várias famílias têm permanecido sem atualização por anos, fazendo com que o critério de elegibilidade não seja prontamente verificado.

Há, contudo, um ponto relevante que deve ser levado em conta na discussão sobre custos de ineficiência associados à falta de atualização cadastral. Famílias vulneráveis estão expostas à alta volatilidade da renda do trabalho. Atualizações cadastrais muito espaçadas não captam variações da renda, sobretudo de quem não tem vínculo formal de emprego, amplificando, portanto, erros de inclusão indevida no programa.

Os dados longitudinais do IBGE permitem uma dimensão da variação da renda individual entre cinco trimestres. Com foco nos anos de 2018 e 2019, ou seja, antes da pandemia, e na renda familiar per capita, que inclui todas as rendas, inclusive transferências, de todos os membros da família, alguns padrões emergem.

Em 2018, 75% da população tinha renda familiar per capita mensal superior a R$ 412 (em reais de janeiro de 2019). Em 2019, um indivíduo que em 2018 teve renda igual a R$ 412 por mês tinha 90% de chance de ganhar menos do que metade da população e os mesmos 90% de chance de ter renda superior a 9% da população.

Ou seja, indivíduos em famílias com renda inferior a meio salário mínimo per capita enfrentam uma grande oscilação da sua posição relativa na distribuição de renda. Vistos por um outro ângulo, eles têm 80% de chance de no ano seguinte ganharem entre R$ 200 e R$ 825, ou seja, entre menos da metade e o dobro do que ganhavam no ano anterior.
O custo de monitoramento dessas oscilações via cadastro é muito alto. Atualizações mais frequentes são importantes, mas elas não serão suficientes para evitar o erro de exclusão indevida de quem, em um bom momento, conseguiu sair da pobreza via mercado de trabalho.

Para reduzir esse erro, pode-se pensar em relaxar o critério de elegibilidade. Com isso, quem esteve circunstancialmente “não pobre”, mas é estruturalmente pobre, não seria punido. O custo seria uma eventual redução da focalização. De toda sorte, há que se pensar em um novo sistema de transferências de renda que leve em conta, explicitamente, a volatilidade do trabalho no país.

A crise mundial e a desglobalização, por Alexandre Nigri.

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A crise mundial e a desglobalização

Cresce o temor de um distúrbio financeiro nos EUA

Alexandre Nigri, Economista e administrador de empresas com especialização no mercado imobiliário, é CEO do Grupo Maxinvest e ex-professor do curso de finance & real estate da pós-graduação do Ibmec

Folha de São Paulo, 03/07/2022

A maioria dos analistas de Wall Street tem a percepção de que algo muito errado está prestes a acontecer na economia norte-americana.

Jamie Dimon, CEO do JPMorgan Chase, o maior banco dos Estados Unidos, veio a público há algumas semanas dizer que “um furacão está chegando” naquele mercado. O mítico gestor de “hedge funds” (fundos de investimento de alto risco) e investidor Jeremy Grantham, que previu duas das últimas bolhas, também vem professando um distúrbio financeiro.
Dimon e Grantham, além de outros importantes nomes, como Larry Summers (ex-secretário do Tesouro americano) e o lendário bilionário e investidor Ray Dalio, formam uma corrente uníssona que bate bumbo ao defender o fato de que uma abrupta correção nos preços de ativos, como ações e títulos, pode acontecer a qualquer momento —e inclusive se estender para o mercado imobiliário. Tudo isso em razão de um processo que entendemos como “desglobalização”.

Sabemos que a bonança mundial, logo após a revolução chinesa de Mao Tse Tung, entre 1949 e 1976, veio das altas taxas de industrialização dos tigres asiáticos a custo de mão de obra barata e êxodo rural. Algumas décadas mais tarde, entre 2005 e 2016, os salários por hora na indústria da China triplicariam.

A ascensão de classe do trabalhador asiático, combinada à política compulsória de fertilidade chinesa, levou a uma diminuição da oferta de trabalho não especializada. Recentemente, ainda como agravante, tivemos o incremento do custo do frete diante da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Mas tais eventos ainda não resultam por si só no fator desglobalização, que vinha despercebidamente tomando a economia global como um novo paradigma de comércio internacional e que culminou com a pandemia e a guerra na quebra das cadeias de produção, reposicionando assim a nova lógica industrial e do protecionismo.

Nos últimos anos, é fundamental observar o excesso de liquidez pelo expansionismo fiscal dos governos e dos bancos centrais enquanto agentes econômicos, principalmente pelos americanos e europeus, considerando o pandemônio vivido na crise do subprime, em 2008.

Grantham, em entrevistas recentes, tem sido enfático ao dizer que, nos últimos quatro anos, nenhum presidente do Fed (o banco central dos EUA), incluindo o atual, Jerome Powell, foi suficientemente cauteloso em sua política de contenção monetária. O megainvestidor demonstra que, por essa razão, o índice de mercado Russel 2000, que mede as 2.000 maiores empresas americanas, já apresentava queda de 25% do pico de suas cotações em novembro de 2021, o que denota uma defasagem real dos ativos em relação a Standard & Poor’s e ao Dow Jones.

Em fevereiro de 2019, em um artigo que escrevi e cujo título era “A iminente crise econômica americana”, mencionei sobre esse mesmo expansionismo fiscal, do exagerado corte de impostos no sistema e das barreiras migratórias que trariam escassez e inflação de mão de obra. Já em abril de 2020, no ápice da pandemia que começara em janeiro, o governo americano envidaria em um processo jamais visto de injeção de trilhões de dólares na economia
(flexibilização quantitativa) —que até arrefeceu a crise naquele momento, mas que procrastinaria o problema, hoje agravado por incremento de inflação e desvalorização cambial.

Importante dizer que até pouco tempo atrás os juros eram menores que o 0,25%, o que produziria um impacto pequeno sobre a dívida do governo norte-americano.

Por último, vale refletir que, enquanto analistas falam de alta esperada da FFR (a selic americana) de até 3%, é importante que nós, brasileiros, sejamos cuidadosos com nossas perspectivas. Há exatos 40 anos, o então presidente do Fed, Paul Volcker, elevou o FFR a 20%. O efeito foi desastroso para países do terceiro mundo e levou Brasil e México, por exemplo, a uma crise econômica e consequente moratória.

Não se espera, desta vez, tal furacão por aqui. Somos hoje uma economia mais forte e mais estruturada do que éramos no passado —mas, definitivamente, são tempos desafiadores.