Por que Bolsonaro ainda pode crescer

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Eugênio Bucci

A Terra é Redonda – 06/05/2022

Com a nossa pasmaceira hesitante e paralisante, estamos pagando para ver o pior acontecer

Até pouco tempo atrás, as passeatas de esquerda encenavam uma predisposição para o embate físico. A característica se fazia presente na coreografia de todos os comícios anticapitalistas, e não apenas no Brasil. Punhos erguidos socando o espaço sinalizavam a vontade de esmurrar o oponente. As palavras de ordem jorravam carregadas de agressividade quase bélica. Com frequência, lá vinham os black blocs atirando pedras nas vitrines e coquetéis molotov nos policiais. Naqueles tempos idos, embora tão recentes, a voz e o corpo da esquerda se opunham à ordem estabelecida, e sua linguagem eram as jornadas teatrais contra o establishment, a autoridade, as regras de trânsito e as boas maneiras.

Agora é o oposto. A velha gramática dos protestos virou de ponta-cabeça. Ano passado, nos Estados Unidos, quem promoveu arruaças foi a extrema-direita trumpista, que chegou ao cúmulo de promover a invasão do Capitólio. O símbolo mais icônico do atentado foi aquele sujeito enrolado num cobertor que parecia pele de urso e coroado, usando um capacete com dois chifres hediondos. O tipo ganhou o apelido midiático de “viking” e ficou famoso (no Brasil, um imitador do tal “viking” tem animado os convescotes golpistas do bolsonarismo).

A esquerda seguiu por outra via. Nos Estados Unidos, por exemplo, andou mais preocupada em filiar eleitores na Georgia para garantir a vitória do Partido Democrata. Enquanto a extrema direita tomou para si o gestual, a coreografia e a torpeza dos vândalos, a esquerda se reagrupou na defesa da legalidade e do Estado de Direito. Em Paris, foi a mesma coisa. Agora mesmo, tão logo foi anunciada a derrota de Le Pen no segundo turno, seus cabos eleitorais (neonazistas e congêneres) saíram pelos logradouros públicos chutando portas e latas de lixo; os personagens da esquerda, de sua parte, preferiram ritualizar o congraçamento entre as classes. Num mundo em que ninguém tem mais endereço certo e sabido, a pancadaria mudou de lado, espetacularmente.

Essa inversão dá ao presidente da República, Jair Bolsonaro, uma oportunidade eleitoral explosiva. Não obstante seja o incumbente da vez, encarregado de cuidar da máquina pública, ele bombardeia a máquina pública todos os dias, sem tréguas. Seu lema é destruir a institucionalidade. Seu método é empregar o aparelho de Estado para demolir o aparelho de Estado. Com a aproximação das eleições, não rivaliza com os adversários ou com a oposição: sua guerra preferencial é contra as urnas eletrônicas e contra a Justiça Eleitoral. Ele não quer derrotar seus rivais, ele quer derrotar todo o sistema eleitoral.

Bolsonaro está em cruzada permanente. Na falta de um inimigo externo, elegeu o Supremo, a imprensa e os ecologistas, além de artistas, cientistas e intelectuais, como alvos prioritários. Ele não tem apenas uma “narrativa”, palavra mágica que seus apoiadores se comprazem em repetir: sua estratégia de comunicação consiste em convocar seus fanáticos para assumir o papel de protagonistas anônimos nas batalhas campais contra a lei e a ordem. Bolsonaro entrega às suas falanges, além das certezas feitas exclusivamente de mentiras (certezas que lhes acalentam a alma ressentida), a emoção de agir diretamente no combate discursivo, corporal e armado contra os inimigos da Pátria e de Deus. Esse combate não passa de um delírio, mas isso também não importa a mínima.

O que está vindo aí é uma onda, e essa onda pode crescer. Com sua lógica colada na dinâmica das redes sociais, o presidente aposta suas fichas na conflagração e no convulsionamento. O resultado não importa; o que lhe rende pontos é o movimento. Ele não tem nem precisa ter compromisso com a coerência ou com os fatos, pois sua fonte de energia política é a barulheira incendiária. Quanto ao mais, seus seguidores também não ligam para os fatos.

Estamos aprendendo, tarde demais, que não é por desinformação que muita gente o idolatra, mas por ódio a tudo o que seja informação. As multidões obcecadas pelo presidente abominam a verdade factual e, mais ainda, repudiam os que falam em nome da verdade factual. Para as massas ensandecidas e sedentas de tirania, a onda bolsonarista oferece uma paixão violenta e irresistível, que combina paixão e certezas irracionais, mais ou menos como se deu com o fascismo no século XX. O desastre quica na área.

“O trabalhador se sentirá autorizado a descontar no corpo de sua esposa toda a opressão vivida na cidade”, antecipa o cientista político Miguel Lago, um dos pouquíssimos que enxergam, ouvem e sentem o que está para desabar sobre a Nação. O alerta está no ensaio “Como explicar a resiliência de Bolsonaro?”, que faz parte do livro Linguagem da destruição (Companhia das Letras), que tem Heloisa Starling e Newton Bignotto como coautores. “O homofóbico se sentirá autorizado a espancar uma pessoa por sua orientação sexual”, prossegue Miguel Lago, desfiando a longa lista de “guardas da esquina”. Com a nossa pasmaceira hesitante e paralisante, nós estamos pagando para ver o pior acontecer.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

SUS: uma reforma revolucionária, por Paulo Capel Narvai

PAULO CAPEL NARVAI – A Terra é redonda – 01/05/2022

Apresentação do autor ao livro recém-lançado

Este livro foi escrito para quem quer saber um pouco mais sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e entender por que necessitamos de um sistema universal de saúde no Brasil. É dirigido a qualquer pessoa que se interesse pelo assunto, desde profissionais de saúde de qualquer nível de formação, conselheiros de saúde, estudantes de graduação e pós-graduação, gestores de políticas públicas, secretários de saúde, autoridades públicas e dirigentes políticos até especialistas familiarizados com as dezenas de temas relacionados com saúde, saúde pública e os problemas cotidianos derivados da ousadia de criar e manter, num país como o Brasil, um sistema público de saúde com a missão de assegurar o direito à saúde para mais de 212 milhões de pessoas.

Esta é uma obra cientificamente rigorosa quanto à fidelidade aos fatos, dados e fontes, mas não é um livro estritamente acadêmico, cujo texto só é compreensível a iniciados. Ao contrário, foi escrito com a intenção de ser acessível a leitores com diferentes formações. Almejo que cada leitor possa extrair, de cada um de seus vinte capítulos, significados e conclusões de acordo com seus próprios conhecimentos sobre os temas tratados.

Os conteúdos podem ser consultados separadamente, por capítulo, como se faz com um manual. Mas eu recomendo que a primeira leitura seja sequencial, pois há um fio condutor no livro que leva o leitor ao longo do texto e que marca a originalidade da obra. Este não é, portanto, apenas mais um livro sobre o SUS, mas contém a minha visão sobre ele.

Em vários momentos, desde que o SUS foi criado naquela terça-feira, 17 de maio de 1988, interlocutores me perguntaram sobre diferentes aspectos do SUS ou relacionados com ele. Algo como “Por que saúde tem de ser um direito assegurado pelo Estado? Não é melhor que cada um tenha um plano de saúde e deixar o Estado fora disso?” ou “De onde veio essa ideia de criar um sistema público de saúde no Brasil?” ou, ainda, “O que você pensa do SUS? Não academicamente, mas na prática? Você acredita mesmo, pra valer, que o SUS é viável?”.

Eu nunca deixei de responder a cada uma dessas pessoas, mas o que me deixava perplexo – e segue deixando – é que, por vezes, essas perguntas vinham e vêm de pessoas bem-informadas, as quais, eu supunha, compreenderiam o que o SUS significa e até poderiam dar boas respostas para as perguntas que me faziam. Porém, a cada experiência desse tipo, aumentava em mim a vontade de escrever um livro sobre o SUS. Mas escrevê-lo em linguagem coloquial, como quem conversa informalmente sobre os diferentes assuntos relacionados ao SUS. Nunca pensei, nunca quis escrever um tratado acadêmico, cheio de citações e com um linguajar hermético. É possível, eu creio, tratar de temas aparentemente áridos e próprios de especialistas de modo acessível, mas rigoroso, para que qualquer pessoa os compreenda. Por isso, deliberadamente evitei a inserção no texto de tabelas, gráficos, quadros, fotografias e ilustrações. Ficaram apenas as palavras, suficientes, a meu ver, para que se compreenda o valor do nosso sistema universal de saúde, suas conquistas, fragilidades, fortalezas e os desafios com os quais se depara todos os dias.

Foi sob esta perspectiva que escrevi este livro, atendendo ao convite da editora Autêntica, que partiu do professor Ricardo Musse, meu colega na Universidade de São Paulo (USP) que orientou, generosamente, o desenvolvimento deste trabalho. Aproveito para tornar meu público o meu profundo agradecimento a ele.

Mas eu quis atender, também, o leitor mais exigente, que encontrará aqui muitos fundamentos teóricos e aspectos conceituais que estão no jargão de profissionais da saúde pública e do SUS e que, embora muito utilizados, nem sempre são bem compreendidos por todos – inclusive por muitos que os utilizam. Apresento, também, alguns choques entre ciência e senso comum decorrentes de explicações baseadas no bom senso sobre saúde e saúde pública, mostrando ao leitor os fundamentos científicos subjacentes a muitas decisões nessa área, mas que nem sempre são aceitos pelas pessoas, pois contrariam esse senso comum.

É provável que, para muitas pessoas, não seja coerente a abordagem populacional ao invés do enfoque de alto risco para decidir onde e como investir recursos públicos. Frequentemente, o conflito entre universalizar ou focalizar intervenções de saúde pública é resolvido optando-se por focalizar as ações em indivíduos e grupos de alto risco.

Mas isto pode agravar, ao invés de resolver, a situação que se pretende solucionar. Muitas pessoas, inclusive profissionais de saúde, têm dificuldades para compreender como e por que isso acontece, pois desconhecem os fundamentos de alguns paradoxos da saúde, como os da profilaxia, da prevenção e do cuidado inverso.

Outros me perguntam, também com grande frequência, sobre qual a diferença entre atenção básica e atenção primária em saúde, ou entre saúde pública e saúde coletiva, assistência e atenção à saúde, necessidades de saúde e necessidades em saúde, isolamento e quarentena, gestão, gerência e governança da saúde, municipalização e “prefeiturização” da saúde. O que é um problema de saúde pública e como eleger prioridades em saúde pública? O que significam as siglas INAMPS, CONASP, AIS, SUDS? Há também quem considere o SUS uma experiência revolucionária e se desaponte quando ouve ou lê a expressão “reforma sanitária”. O que você diria sobre a expressão “controle social”?

Pois saiba que há, no contexto brasileiro, diferentes conotações para ela.

O que Hipócrates diria sobre uma pajelança? O que foram a Revolta da Vacina e o Massacre de Manguinhos? Como Cortés e Pizarro se valeram não apenas de pólvora e espada, mas do que hoje denominamos de guerra biológica para enfrentar e vencer astecas e incas? Entre Iaras e Sacis, Anhanguera fazia rios arderem em chamas em busca de esmeraldas, mas o que ele e Borba Gato deixaram nos sertões para os nativos além de vilas e sífilis? O que a revolução chinesa tem a ver com o programa brasileiro de agentes comunitários de saúde? O que são higienismo e campanhismo? Por que, quarenta anos depois, a Declaração de Astana-2018, da Organização Mundial da Saúde (OMS), é um retrocesso quando comparada à Declaração de Alma-Ata-1978? Por que Fidel Castro e Barack Obama não se entenderiam se fossem convidados a opinar sobre o SUS? O que o capitalismo e a democracia têm a ver com a saúde e o SUS? Por que o símbolo do SUS é ocultado nas unidades de saúde, nos hospitais e nas ambulâncias do SUS? O que você sabe sobre o símbolo do SUS? Por que os chamados “planos de saúde” não dizem respeito nem a planos nem, muito menos, à saúde?

O leitor encontrará neste livro não a “explicação correta” sobre esses, dentre outros, temas, mas a minha visão sobre eles. É por esse motivo que este não é apenas mais um livro sobre o SUS, quando há tantos e de boa qualidade em nosso meio. Convido o leitor e me acompanhar pelas páginas a seguir para conhecer essa visão – que é a minha, mas, como não estou só, é também a visão de muitos sobre o nosso SUS, essa reforma revolucionária que estamos empreendendo nesta parte do mundo em defesa da vida.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.

Solidariedade Global

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O mundo contemporâneo nos traz inúmeros desafios e oportunidades, a economia carece de investimentos produtivos, o mundo do trabalho se transforma com grande dinamismo exigindo dos trabalhadores uma constante reinvenção, que pressupõem grandes investimentos na formação e na qualificação constantes, ao mesmo tempo, a pandemia nos mostra a necessidade premente de estimularmos a solidariedade, a cooperação e o compartilhamento do progresso e o desenvolvimento de sentimentos mais fraternos entre todos da comunidade.

Vivemos momentos de grandes inquietações, as guerras crescem em variadas regiões, a pandemia gerou milhões de mortos em todas as nações, a inflação acelera em todas as regiões, os preços dos alimentos e dos combustíveis estão em forte ascensão, levando os governos a aumentarem as taxas de juros que degradam a maior parte da sociedade, aumentando os custos financeiros, degradando a renda da comunidade, elevando o endividamento das famílias, das empresas e dos governos, além de postergar os investimentos produtivos e reduzindo a geração de emprego, ao mesmo tempo, que impacta na informalidade da mão de obra, precarizando o emprego e a degradação social.

Neste momento, a comunidade internacional vive momentos de grandes desafios. A pandemia levou os governos mais desenvolvidos a investirem recursos públicos e privados em pesquisas científicas com o intuito de construir novas vacinas, mostrando que neste ambiente centrado na concorrência e na competição, existem esperanças de que a solidariedade pode sobrepor os interesses imediatos do capital e da acumulação. Mas, infelizmente, a solidariedade tão sonhada nos parece tímida e limitada, a pandemia deveria elevar os padrões morais da sociedade, deixando exemplo de solidariedade entre povos, nações e comunidades.

Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) nos mostra que grande parte das nações ainda não receberam as doses de vacinas que tendem a reduzir a mortalidade gerada pelo covid-19, embora existam doses disponíveis nos países desenvolvidos as vacinas não foram enviadas para muitas nações da comunidade internacional, países miseráveis cuja mortalidade da população é elevada, que não possuem pesquisa científica e, principalmente, pela ausência de solidariedade que deveria crescer na sociedade global.

Para superarmos os momentos de tensão da sociedade contemporânea, precisamos construir instrumentos coletivos para resolvermos as dificuldades que foram construídas durante décadas de descaso. Segundo a Organização das Nações Unidas quase 9% da população mundial passa fome, milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária para sobreviver. Os recursos para reverter esta situação não existem para os humildes, mas sobram para os donos do poder, com subsídios e isenções tributárias.

Outro dado alarmante é o crescimento dos preços de alimentos que tendem a colocar na marginalidade e na exclusão social milhões de indivíduos, segundo a ONU a inflação de alimentos chegou a 66%, levando os governos a aumentarem os juros e degradar mais as condições econômicas, levando nações a insolvência fiscal e ao risco de uma nova crise da dívida, piorando as perspectivas econômicas e degradando a economia global.

Numa sociedade integrada e interdependente, as crises econômicas nas nações periféricas aumentam os fluxos de imigração que impactam negativamente sobre países desenvolvidos, aumentando o caos social, as instabilidades políticas e a degradação econômica.

Os momentos atuais são tensos e preocupantes, guerras, pestes, conflitos políticos, intolerância, racismo estrutural e violências generalizadas, os desafios são elevados e os perdedores devem aumentar assustadoramente, com isso, percebemos ainda que, neste instante, estamos presenciando os ecos da contemporaneidade que caminham a passos largos para a barbárie coletiva e nos afastando rapidamente para a civilização e ainda, percebemos pessoas que acreditam que somos seres racionais….

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia (Unesp) e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 04/05/2022.

Mais democracia para proteger o interesse público dos interesses privados

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Captura política das nossas instituições nunca foi tão grave

Josué Medeiros, É cientista politico, professor da UFRJ e da UFRRJ e integrante do Vigência, grupo de estudos e ação política com foco na captura dos foros democráticos por atores privados

Daniel Angelim, É doutorando em economia política mundial pela UFABC e integrante do Vigência

Folha de São Paulo – 03/05/2022

O aumento das desigualdades e a regressão democrática no Brasil saltam aos olhos de qualquer pessoa que caminhe pelas ruas de qualquer cidade grande do país e seja minimamente sensível e solidário às dores alheias. A crise econômica e social se manifesta, por exemplo, no crescente número de pessoas em situação de rua. A violência interpessoal explode tanto em situações cotidianas quanto na ação de agentes estatais. O funcionalismo público vive em um barril de pólvora. O retrocesso nos direitos é vertiginoso. Casos de racismo, machismo e homofobia se multiplicam. A natureza e os povos indígenas são violentados como se estivéssemos em tempos coloniais. O ar está cada vez mais irrespirável.

As soluções para esse quadro são variadas e complexas, como mostram os diversos textos já publicados neste espaço. Há, porém, uma questão que tem o potencial de amarrar tais explicações e propostas em uma grande e coletiva mobilização pela reconstrução nacional: a democracia. Mais democracia.

As eleições de 2022 serão um primeiro e fundamental momento dessa mobilização. As pesquisas mostram uma polarização crescente, e a possibilidade de resolver o pleito presidencial no primeiro turno é real. Eleger um novo mandatário comprometido com a democracia e com a justiça social é crucial para iniciarmos a redemocratização do Brasil. É preciso, porém, dar atenção especial à disputa parlamentar e aos Executivos estaduais. Eleger lideranças populares, mulheres e negros para o Congresso e para as assembleias legislativas estaduais será decisivo para enraizar a reconstrução da nossa democracia. Conquistar o governo de alguns Estados-chave vai no mesmo sentido. Como, por exemplo, ter democracia no Brasil sem repactuar o Rio de Janeiro, que, além de berço do bolsonarismo e palco do brutal assassinato de Marielle Franco, vê o controle territorial por milícias se expandir cada vez mais?

É imperativo, entretanto, que a eleição seja o ponto de partida, e não o de chegada. Ter mais democracia equivale a reduzir a desigualdade entre governantes e governados —ou seja, ampliar a igualdade política.

É esse o espírito da nossa Constituição de 1988, que precisamos recuperar, além de revogar as reformas neoliberais do golpista Temer e do genocida Bolsonaro. A Carta Magna brasileira afirma a igualdade política em múltiplas dimensões, a começar pela eleitoral, com a expansão definitiva do sufrágio no Brasil, permitindo, por exemplo, que os analfabetos passassem a ter o direito de votar. Naquele contexto de saída de duas décadas de autoritarismo militar, nossa sociedade, pulsante, exigia mais nas ruas, e os legisladores consagraram a igualdade política para além do voto: a cidadania ganhou o direito de se organizar e se manifestar, referendar ou não decisões, ocupar espaços no Estado para fiscalizar os governos e decidir sobre políticas públicas em conselhos e conferências.

Mas a dinâmica política atual vai no sentido oposto. Testemunhamos o mergulho das instituições no abismo da captura do Estado pelos poderes privados. Os exemplos são incontáveis.

No Ministério da Saúde, as necessárias e esperadas vacinas contra a Covid foram objeto de uma abjeta negociação de bastidores. Já no Ministério da Educação, dois líderes religiosos montaram um balcão de negócios sem qualquer escrúpulo; na área ambiental, madeireiros e garimpeiros em terras indígenas são autorizados por agentes estatais a pilhar florestas e rios.

No Congresso, as emendas parlamentares via orçamento secreto inviabilizam qualquer política pública democrática e recriam o coronelismo no século 21. Não é por acaso que um dos símbolos desse perverso mecanismo de transferência de renda para políticos governistas seja a compra de tratores superfaturados.

O Judiciário, de Norte a Sul, mantém pobres e pretos presos enquanto pressiona por aumento de seus salários e privilégios.

As portas giratórias estão escancaradas, a começar pelo ministro da fazenda, Paulo Guedes, cuja grande qualidade curricular é ser um especulador financeiro. E nem mesmo na ditadura militar tivemos tantos militares ocupando cargos de confiança no Governo Federal.

Em resumo, desde que os civis voltaram ao poder, nunca vivemos um quadro de tamanha distância entre governantes e governados.

Pior, as respostas das elites políticas, jurídicas e econômicas vão sempre no sentido de institucionalizar essa desigualdade política. O STF (Supremo Tribunal Federal) pactua com o orçamento secreto. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considera a regulamentação do lobby uma agenda prioritária, sem nem mesmo se preocupar em justificar essa medida com base em legislações internacionais que, ao menos, se baseiam na necessidade de formalizar a exposição pública (transparência) e o monitoramento (accountability) da atividade, o que ajuda a minimizar o desequilíbrio na relação com o poder público.

Essa captura política reflete e reforça a distância entre governantes e governados, agravando o esgarçamento do tecido social, com violência e miséria —a experiência histórica recente mostra que é impossível diminuir as desigualdades econômicas e sociais sem diminuir a desigualdade política.

Uma reconstrução democrática do Brasil é possível. Nossa população continua dando mostras de vitalidade nas soluções que emergem da prática e da sabedoria popular e dos laços de solidariedade que ativismos dos mais variados reforçaram durante a pandemia. Mas, para que essa reconstrução se concretize, a frente ampla e democrática eleitoral precisa se constituir em um movimento por um novo pacto coletivo, mobilizador das nossas melhores energias na direção de uma institucionalidade mais aberta e transparente. É urgente que todos os setores democráticos se comprometam com uma ordem política menos desigual para que sejamos capazes de diminuir a distância entre governantes e governados.

Sem perspectivas de crescer, por Mendonça de Barros.

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O Brasil empobreceu nos últimos quatro anos, e não há populismo que seja capaz de alterar esse fato

José Roberto Mendonça de Barros, O Estado de S. Paulo – 01/05/2022

A pré-campanha eleitoral segue numa polarização cada vez mais raivosa e, tudo indica, assim vai continuar.

Lamentavelmente, do ponto de vista econômico só não se discute o principal: estamos sem crescer há muito tempo e sem perspectivas à frente.

O debate de conjuntura está focado nos próximos meses. Discute-se, furiosamente, se o crescimento deste ano será de 0,5% ou 1%, sem atentar que essas diferenças pouco significam. Considerando os anos de 2019 a 2022, o crescimento médio será de 0,55% ao ano se o PIB corrente crescer 0,5%, ou de 0,68% se crescermos 1%, como prevê o Banco Central (a projeção do Focus está em 0,65%).

Como o crescimento médio da população é de 0,74% ao ano, a evolução do PIB per capita, nos quatro anos deste governo, será negativa. O ponto central é que o País empobreceu nesses anos e não há populismo que consiga alterar esse fato.

As autoridades estão animadíssimas porque os analistas vêm revendo para mais suas projeções para 2022, resultado de desempenho algo melhor no início deste ano. Como vimos, isso significou muito pouco no desempenho desse período.

Entretanto, o oficialismo não diz que, junto com esta melhora, houve um significativo rebaixamento dos números para 2023, resultando na projeção de apenas 1% no mais recente Boletim Focus – muito abaixo da projeção de 2,5% feita em setembro.

Se o Brasil parou, o mundo continuou andando. Entre 2014 e 2021, enquanto o PIB global cresceu 20,5%, o brasileiro caiu 0,09%! Naturalmente, com este resultado, não pode surpreender que o número de desocupados e de pobres em nosso País não pare de aumentar.

Os leitores devem se lembrar que, junto com a lei que autorizou a privatização da Eletrobrás, aprovou-se um “jabuti” gigante. Um absurdo sem tamanho para beneficiar um grupo pequeno de empresários conhecidos, pois a lei obriga a contratação de algo como 8 mil MW de novas usinas a serem construídas em regiões como o Norte e o Nordeste, que não têm gás, gasodutos, nem demanda firme de energia que justifique os projetos.

Agora, a Empresa de Pesquisa Energética publicou um trabalho calculando o custo do projeto em R$ 52 bilhões até 2036, a serem transferidos aos consumidores.

Calcula-se que a energia brasileira no mercado regulado seja a segunda mais cara do mundo, apenas atrás da alemã.

Isso é fruto dos desarranjos do setor desde a edição da famigerada MP 579, que vêm sendo resolvidos pela solução simples de passar todos os custos das ineficiências para as tarifas.

O atual jabuti vai dar uma grande contribuição para a estagnação do crescimento brasileiro.

ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS

Empresa precisa entender a transformação digital para seguir competitiva

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Para professor da FGV, planejamento evita atrito na experiência online do consumidor

FLÁVIO G. PINHO

FOLHA DE SÃO PAULO – 01/05/2022

Foi na base do susto que o varejo reagiu à pandemia varejo reagiu à pandemia —diante de uma realidade inédita, apostar na tecnologia foi o caminho mais lógico para chegar aos clientes que estavam trancados em casa. E o setor ficou bem na briga no país, na avaliação de Maurício Morgado, coordenador do Centro de Excelência em Varejo da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).

Para ele, porém, ainda é preciso investir em planejamento para evitar atritos na experiência do consumidor nas operações digitais.

Quais mudanças a pandemia provocou no varejo? A transformação digital foi acelerada. De forma muito apressada, percorremos cinco anos em alguns meses. Empresas que já tinham operações digitais lançaram novas ferramentas, enquanto aquelas que testavam tecnologias de maneira modesta foram obrigadas a correr para acompanhar, nem que fosse implantando vendas pelo WhatsApp. Todos aproveitaram que o consumidor brasileiro, que não embarcava tanto nessas tecnologias, se acostumou a usá-las por necessidade —e duvido que volte atrás.

Até 2019, as redes brasileiras estavam atrasadas em relação à transformação digital no resto do mundo?
Estávamos ligeiramente atrás, mas acompanhando bem. Estive em janeiro na NRF 2022 [considerado o maior encontro sobre varejo do mundo], em Nova York, e notei que o Brasil está bem adiantado. Quem quiser continuar no jogo, hoje, precisa entender o consumidor e o processo de transformação digital.

A estratégia de múltiplos canais já é realidade no Brasil?
Algumas empresas já trabalham isso bem, pois reconhecem que o consumidor é único, independentemente do canal de compra. O maior desafio para ser omnichannel não é o investimento em tecnologia, que está cada vez mais barata, mas a logística da estrutura física.

O futuro é só tecnológico ou há espaço para a humanização?
Veja o exemplo da Amazon: eles não têm um 0800 para reclamações. Está tudo tão planejado que, pelos botões, você chega sozinho à solução. Aqui, as operações digitais não são tão bem desenhadas. Quando dá problema, não é tão claro como resolver, e a devolução ou a troca não são tarefas simples. Falta planejamento para evitar atritos com o consumidor.

O metaverso vai mesmo mudar o varejo? Por enquanto, essa não é uma realidade, nem no Brasil nem no mundo. Para funcionar como preveem, todo mundo precisaria ter óculos de realidade virtual. Mas já é possível fazer coisas legais de realidade aumentada, principalmente empresas que têm produtos digitalizáveis. Se essa tecnologia se estabelecer, prevejo impacto similar ao que a internet provocou lá em 1995.

Enquanto elite compra jatinhos, maioria vive tragédia sob Bolsonaro, por Itamar Vieira Júnior.

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Drama social do governo é percebido de maneira distinta por nossa sociedade, profundamente desigual

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 29/09/2022.

A tragédia do governo Bolsonaro é percebida de maneira distinta por nossa sociedade, profundamente desigual.

Para milionários e bilionários, corre tudo bem. No momento, o único problema são as filas para a compre de jatinhos. O Brasil é o segundo país com a maior frota de aeronaves particulares do mundo, atrás apenas dos EUA. A espera por esse tipo de veículo pode adentrar o ano de 2025. Entre o início de 2021 e o início de 2022, a frota teve 8,5% de aumento.

Certamente, essa elite econômica que continua a apoiar o atual governo concorda com o ministro Paulo Guedes com a ideia de que, agora sim, o país está no eixo. Antes era “empregada doméstica viajando para a Disney” e filho de porteiro querendo estudar na universidade.

No país que não é o da fantasia do senhor ministro, há um grande contingente de desempregados, pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar, sem direito à terra e à moradia digna.

Durante os mais de três anos do atual governo, o desmonte das políticas sociais foi permanente e efetivo. Programas de habitação popular, políticas de demarcação de terras indígenas, criação de assentamentos e regularização de territórios quilombolas foram praticamente abandonados ou reduzidos a quase nada.

Basta pesquisar por informações nos órgãos responsáveis pelas políticas públicas. Segundo o Relatório de Conflitos no Campo, divulgado pela Comissão Pastoral da Terra, o ano de 2021 foi marcado pelo aumento do já alarmante índice de violência no campo: foram 109 mortes decorrentes de conflitos fundiários, alta de mais de 1.000%.

Das 109 mortes, 101 foram no Território Yanomami, graças às ações de garimpeiros que contam com incentivo do governo para explorar em áreas antes proibidas. Os yanomamis pedem socorro. E nós, o que temos feito?

Sem contar a catástrofe ambiental e as denúncias de corrupção envolvendo a pasta da Educação e da Saúde. O ex-ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiros, parece nem sequer saber manusear uma arma.

Aliás, facilitar o acesso da população às armas foi política de primeira do atual governo. Glorificar a violência foi uma das motivações do cristianismo ao longo da história, e o ex-ministro parece não ter acompanhado nenhum dos avanços civilizatórios dos últimos séculos, incluindo o da educação, mas este é um assunto para outro momento.

E como não recordar os mais de dois anos de pandemia e todo o ultraje com que o presidente e sua claque trataram o mais grave evento sanitário em um século? A permanente sabotagem às medidas sanitárias e o imperdoável atraso na vacinação da população nos deixou o saldo de mais de 660 mil mortos. Fez do Brasil um dos países com a mais alta taxa de letalidade.

A vacinação, ainda que tardia, e a própria evolução do vírus, aparentemente menos letal, foram capazes de nos dar novas perspectivas, mas a devastação da pandemia é muito recente e os cemitérios continuam apinhados de corpos que eram mais que corpos, eram pessoas. Essas pessoas eram mais que números, para as evidências da má gestão caírem no mais absoluto esquecimento.

Muitos estão fatigados com tudo o que aconteceu, do luto à crise econômica, passando pelos ataques à democracia. É natural que não queiram mais ler ou falar sobre o tema. Esse esquecimento se deve em grande medida ao procurador-geral da República e sua inércia em nos dar respostas sobre os indícios levantados pela CPI da Covid.

Tudo isso reverbera na impressionante recuperação dos índices de aprovação do governo. Assusta imaginar que o presidente da República não está sozinho: cerca de 25% da população, segundo as últimas pesquisas, apoia suas decisões durante o mandato.

Independentemente da continuidade do atual governo ou não, teremos que conviver com a indiferença dos que apoiam esse projeto político de segregação e violência. As eleições na França, nos EUA e em várias partes do mundo demonstram claramente que a direita liberal foi substituída por um projeto extremista.

A insatisfação de grande parte da população não foi levada a sério por liberais e progressistas, e a extrema direita ganhou relevância ao “apontar” supostos culpados pelos dramas sociais urgentes, ainda que não tenha a capacidade de oferecer respostas.

É preciso refletir sobre as necessidades do mundo contemporâneo e propor soluções para os desafios de nosso tempo, que não são os mesmos de duas décadas atrás. Mas, antes, é necessário compreender as engrenagens que nos levaram a este estado trágico. Para uns, o céu engarrafado de jatinhos; para a maioria, restará pedra sobre pedra.

Ecossistema econômico

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Num momento marcado por grandes alterações estruturais da sociedade contemporânea, os agentes econômicos, sociais e políticos devem buscar novos espaços de acumulação e de reorganização produtiva, setores fundamentais da antiga estrutura econômica perderam espaço na nova sociedade, empregos sólidos e consistentes perderam a centralidade e, as perspectivas centradas na linearidade foram transformadas e, com isso, percebemos a necessidade da reconstrução dos paradigmas, renovando as estratégias e desenvolvendo modelos de integração e planejamento entre os atores público e privado.

Os desafios são imensos e não podemos postergar as escolhas do mundo do negócio, a sociedade está se movimentando rapidamente, os setores econômicos devem se reinventar numa sociedade marcada por grandes incertezas e instabilidades, com isso, percebemos que as comunidades estão alterando movimentos e comportamentos. Neste momento, precisamos unir esforços para compreender os desafios e auxiliarmos na construção de um verdadeiro projeto nacional para compreender o que queremos nas próximas décadas, sem entendermos os desafios da sociedade contemporânea, amargaremos a perpetuação das iniquidades sociais que caracterizam a sociedade nacional.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de conceitos caros para o mundo dos negócios como empreendedorismo, liderança e inovação. Estes conceitos estão atrelados ao economista austríaco Joseph Schumpeter que destacou a importância das inovações como instrumento da chamada destruição criadora, retratando novas ideias e pensamentos com potencial de impulsionar o capitalismo, dinamizando os setores produtivos, criando novas formas de acumulação, novos modelos de negócio, que movimentam os mercados e compreendem as novas formas de comportamento. Neste momento, de profundas transformações, surgem conceitos como o de Economia Verde, novas formas de energias alternativas, além de conceitos ligados a economia circular e da sustentabilidade que exigem a grande capacidade de reinventar a sociedade, modificando empresas, indivíduos e os governos nacionais.

O mundo contemporâneo exige a construção de um ecossistema econômico dinâmico e empreendedor, que começa nos bancos escolares, desde as escolas fundamentais até o ensino superior, exigindo das faculdades e universidades padrões de qualidade constante, estimulando os investimentos públicos e privados, fortalecendo os centros de pesquisa e de inovação, além de ambientes centrados na cooperação e no compartilhamento de teorias, pensamentos e discussões científicas e tecnológicas.

É fundamental a construção de um ambiente macroeconômico propício para o crescimento da produção, com taxas de juros reduzidas para impulsionarem a produção e a geração de emprego e, ao mesmo tempo, desestimulando a especulação financeira que predomina na sociedade brasileira, além de reduzir a burocracia, estimulando a competição externa e construindo novos acordos comerciais com outras nações e grupos de países. Outro ponto central para a construção de um ecossistema econômico é a garantia de taxas de câmbio competitivas para fortalecer o crescimento produtivo, evitando a instabilidade cambial que garante grandes ganhos para os especuladores em detrimento da produção, do emprego e da renda da população.

O discurso dominante estimula o empreendedorismo e a inovação como forma de desenvolvimento econômico, acreditando que o processo de crescimento motivado pelo setor privado tende a melhorar as condições sociais da população. Esta visão me parece bastante limitada e inconsistente, sem uma visão global e planejada pelos agentes econômicos público e privado, como acontece nas economias mais desenvolvidas do mundo, o crescimento econômico tende a garantir grandes ganhos para uma pequena parte da comunidade, garantindo recursos financeiros ilimitados, isenções fiscais e tributárias crescentes em detrimento da perpetuação da pobreza, da indignidade e da exclusão social. A construção de um ambiente centrado num ecossistema econômico integrado e diversificado é parte central para encontrarmos o tão sonhado desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 27/04/2022.

Como o aumento dos gastos militares impacta a economia global

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Investimento excessivo em defesa pode impactar áreas fundamentais, como a educação e saúde, e comprometer crescimento econômico

The Economist, O Estado de São Paulo – 23/04/2022

Após o início da guerra na Ucrânia os orçamentos militares em todo o mundo estão prestes a aumentar. Isso é mais perceptível na Europa, onde a ameaça de um ataque russo parece maior. Alemanha, Itália e Noruega, entre outros, já decidiram gastar mais com a defesa. Estados Unidos e China, os países com as maiores despesas militares do mundo, também estão aumentando suas alocações.

A pressão sobre os países menores para fazerem o mesmo parece inevitável. Quais são as consequências econômicas desse impulso? Quando os governos gastam mais com soldados e armas, ficam com menos disponível para outras despesas. Uma suposição comum, portanto, é que os gastos extras com exércitos são prejudiciais ao crescimento e ao desenvolvimento. Mas a relação não é tão direta. Em alguns casos, maiores orçamentos para a defesa podem, na verdade, render vantagens econômicas consideráveis.

A lição de que há um conflito entre as despesas com o exército e, digamos, estradas ou hospitais é internalizada desde cedo pelos estudantes de economia. O exemplo clássico para demonstrar o conceito de custos de oportunidade é armas versus manteiga: quanto mais você produz de um, menos pode produzir do outro. Em qualquer ano, esse exemplo simples permanece verdadeiro. Os governos têm orçamentos finitos que precisam ser gastos em diferentes áreas.

Consequentemente, é fácil ver como os gastos com a defesa, levados ao extremo, podem ser corrosivos para uma economia. Se um governo repassa menos dinheiro para a educação a fim de poder comprar armas novinhas em folha, o impacto de longo prazo na produtividade e, em última análise, no crescimento, seria ameaçador. Alguns economistas acham que os EUA estão se aproximando dessa zona de perigo.

Riscos
A RAND Corporation, influente think-tank apoiado pela Força Aérea americana e que não é conhecido exatamente como um grupo pacifista, publicou um relatório em 2021 expondo dois riscos.

Primeiro, quando o governo aloca dinheiro para a defesa em detrimento da infraestrutura, isso pode prejudicar as perspectivas de crescimento de longo prazo, já que os EUA têm uma necessidade urgente de melhores estradas, portos, entre outras coisas. Em segundo lugar, as despesas com a defesa contribuem para a pressão sobre a dívida pública.

Em ambos os casos, concluem os analistas, qualquer coisa que desgaste a força da economia americana acabará por prejudicar as forças armadas.

Talvez exista algo objetivo para esses conflitos de escolhas no orçamento serem prejudiciais à economia nos níveis dos EUA. Na última década, o orçamento militar do país foi em média superior a 4% do PIB, o segundo maior do grupo de países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Mas uma complicação surge ao examinar as tendências ao longo do tempo. O país da OCDE que mais gasta com a defesa, cerca de 6% do PIB, é Israel. Ele também costuma apresentar uma das economias com crescimento mais rápido no grupo.

Em contrapartida, o Japão é um dos países da entidade com menor parcela do PIB destinada a gastos militares e tem um dos crescimentos mais lentos.

Na verdade, é quase impossível identificar um padrão nos dados: também há países como a Irlanda, cujos orçamentos militares são semelhantes ao do Japão e têm registros de crescimento semelhantes ao de Israel. Uma análise retroativa básica revela que não há relação consistente entre o crescimento do PIB e as despesas militares para os
38 países da OCDE.

Um conjunto de pesquisas em expansão chegou a uma conclusão semelhante, embora com diferenças sutis. Em um artigo de revisão bibliográfica da Universidade Monash publicado em 2014, Sefa Awaworyi Churchill e Siew Ling Yew analisaram 42 estudos diferentes. Os efeitos são geralmente muito pequenos, mas eles encontraram duas categorias distintas: as despesas militares em países mais pobres costumam ser prejudiciais ao crescimento, enquanto em países mais ricos é mais provável que sejam benéficas.

Os pesquisadores sugerem que uma possível razão para isso é a governança mais fraca nos países em desenvolvimento; um grande orçamento militar é um alvo tentador para autoridades corruptas. Outra possibilidade está relacionada com o exemplo de arma versus manteiga. Os possíveis retornos dos investimentos civis, da saúde à educação, são tão grandes nos países pobres que os gastos militares têm um custo de oportunidade particularmente alto. Em países ricos com boas escolas e hospitais, os custos de oportunidade provavelmente são menores.

Uma maneira pela qual os gastos com a defesa talvez impulsionem a economia é como um programa de empregos. Se as forças armadas fossem uma empresa, seriam o maior empregador dos EUA, com 2 milhões de trabalhadores (contando profissionais na ativa e civis), superando o Walmart e a Amazon. Entretanto, seria um esquema de empregos extremamente caro, custando aproximadamente US$ 400 mil por funcionário anualmente.

Os gastos com a defesa talvez gerem melhores retornos como uma forma de política industrial não declarada. Em artigo publicado no ano passado, Enrico Moretti, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e dois colegas analisaram as verbas governamentais para pesquisa e desenvolvimento, prestando atenção nas despesas com a defesa, dos países da OCDE. Em média, eles descobriram que um aumento de 10% nas verbas do governo para pesquisa e desenvolvimento leva a um aumento de 5% do financiamento privado para pesquisa e desenvolvimento na empresa ou setor alvo.

Além disso, há efeitos indiretos para a produtividade. Se França e Alemanha aumentassem suas despesas com a defesa para quase o mesmo nível dos EUA, Moretti calcula que as taxas de crescimento de produtividade desses países seriam um pouco maiores como consequência.

Dividendos de dissuasão
Uma objeção óbvia é que o governo poderia alcançar os mesmos resultados apoiando a pesquisa e o desenvolvimento em geral, sem injetar dinheiro nas forças armadas. Do ponto de vista econômico isso talvez seja verdade. Mas há uma limitação política – isto é, como reunir apoio para pesquisas científicas que podem falhar. O financiamento público à defesa é menos suscetível a variações de humor. Sem ter que se preocupar com sua próxima solicitação de subsídio, as forças armadas dos EUA não têm hesitado em produzir inovações em série, desde a fita adesiva à Internet, sem as quais quase não seria possível de se imaginar a vida moderna.

Por mais importante que seja identificar o impacto dos gastos militares no crescimento ou na inovação, tais práticas correm o risco de ignorar o contexto mais amplo, conforme demonstrado pela invasão da Ucrânia pela Rússia.

Um elemento fundamental para qualquer economia bem-sucedida é ter paz e estabilidade, dando às empresas a confiança para investir e às pessoas o espaço para prosperar. Os livros didáticos talvez falem de armas ou manteiga. Mas em um mundo abalado por forças revanchistas, a verdade é que tanto armas como manteiga são necessárias. Uma defesa forte é, lamentavelmente, uma necessidade para uma economia forte. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Guerra dos brancos aumenta ainda mais a fome dos pretos, por Vinícius T. Freire.

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ONU quer US$ 43 bi para evitar fome e mortes; Musk quer dar US$ 46 bi no Twitter

Vinícius Torres Freire, Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Folha de São Paulo, 23/04/2022

A ONU diz que precisa de US$ 43 bilhões para dar de comer ou proteger de violências 194 milhões de pessoas, ora sob ameaça imediata de perder a vida. É “ajuda humanitária” de urgência. No total, 296 milhões estão sob risco terminal, diz a ONU. Quase 9% da humanidade passa fome braba.

Na semana passada, Elon Musk disse que teria juntado US$ 46 bilhões para comprar o Twitter.

A guerra na Ucrânia aumentou o risco de “agitação social” (“social unrest”), “especialmente preocupante” em “mercados emergentes” e “economias em desenvolvimento” com pouco dinheiro público para gastar e muito dependentes de importação de energia e alimentos, agora mais inflacionados. É o que diz um trecho pouco citado do relatório do FMI que acaba de sair, o “Perspectiva da Economia Mundial”.

“Se você acha que agora é o inferno na Terra, se prepare. Se a gente não ligar para o Norte da África, o Norte da África vai para a Europa. Se a gente não ligar para o Oriente Médio, o Oriente Médio vai para a Europa”. É o que disse David Beasley em entrevista ao site Político, em março —ele é o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU.

Não são, claro, opiniões de esquerda, embora pessoas sob efeito de drogas ideológicas bolsonaristas achem que a ONU é “comunista”. Beasley é um político do Partido Republicano dos EUA, ex-governador da Carolina do Sul. O FMI dispensa apresentações, como diz o clichê.

A situação não deve melhorar tão cedo, prevê também o FMI. A inflação geral pode diminuir um pouco em 2023, mas não a da comida. Desde a explosão de preços que começou no trimestre final do ano passado até março deste 2022, a inflação dos alimentos foi de 66% (segundo índice da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). A carestia dos cereais foi de mais de 71%.
Não se trata apenas de fome.

Na revisão de março do seu “Panorama Humanitário Global 2022”, a ONU registrou que 296 milhões de pessoas precisavam de “assistência humanitária e proteção”, 1 de cada 27 pessoas no mundo, em 69 países. A necessidade extrema afetava 1 pessoa de cada 95 em 2015. Em torno de 1 em 56 de 2016 a 2019.
Pouco?

Eles estão falando de ajuda para gente à beira da inanição ou morte violenta em países destruídos por guerra, miséria e surtos de ebola como a República Democrática do Congo, por guerras crônicas, como a Síria ou o Iêmen, por guerras recorrentes, como na Etiópia ou no Sudão do Sul, por ruína variada e histórica, como o Haiti ou o Afeganistão —a Venezuela também está no pacote.

Claro que há muito mais gente em situação terrível. Estamos tratando aqui dos casos de pessoas sob risco iminente e que chegam ao conhecimento da ONU, graças a pedidos desesperados de ajuda.

O efeito da inflação deve bater no mundo pobre também por meio da alta de juros no mundo rico e da baixa do crescimento mundial, o que piora a situação de países pobres já prejudicados por fugas de capitais na epidemia, do desastre social da Covid, de renda menor com comércio, turismo e remessas de emigrados etc.

Segundo o FMI, “cerca de 60%” dos governos de países de renda baixa correm o risco de uma crise da dívida (“debt distress”, calote) ou já estão inadimplentes. Trata-se dos 40 países mais pobres do mundo (24 deles africanos), entre os quais a dívida mediana praticamente dobrou desde 2013.

Peste, fome, dívida impagável e tem mais, para concluir, mas longe de acabar: “O número de pessoas vivendo em zonas de conflito [guerra] quase dobrou entre 2007 e 2020”, discursou David Malpass, presidente do Banco Mundial, na semana passada.