Leniência com inflação produziu resultado fiscal positivo em 2021, diz economista

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Felipe Salto, diretor-executivo da IFI, afirma que alta dos juros vai corroer ganhos em 2022

Eduardo Cucolo, Folha de São Paulo, 16/01/2022

As contas do setor público devem registrar o primeiro resultado positivo desde 2013, segundo dados do Banco Central para 2021 que serão divulgados no final deste mês. Essa suposta melhora comemorada por alguns analistas, no entanto, é uma ilusão provocada pela disparada da inflação no ano passado, afirma o diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), Felipe Salto.

Para 2022, a expectativa da instituição ligada ao Senado Federal é que a alta dos juros comece a corroer esse ganho, colocando a dívida pública novamente em trajetória de crescimento e deixando para o próximo governo a tarefa de recuperar a credibilidade da política fiscal.

Em entrevista à Folha, Salto afirma que a sociedade e os políticos já mostraram que não querem fazer um ajuste fiscal apenas pelo lado da despesa. Por isso, será difícil escapar de um aumento da carga tributária para garantir a estabilidade da dívida e recursos para mais investimentos e gastos sociais.

A IFI e grande parte dos analistas estimam que as contas do setor público devem ter fechado 2021 no azul, algo que não estava previsto no começo do ano passado. Você disse recentemente que essa suposta melhora é uma ilusão. O que explica esse resultado positivo? O que houve foi a ajuda camarada da inflação, que apareceu de novo, ainda que em menor proporção do que acontecia nos anos 1980. Na época, não tinha déficit no Orçamento. A receita evoluía com a inflação, e a despesa estava fixada desde o ano anterior. Tinha um Orçamento que não refletia a realidade das contas públicas. Tem um paper de 1993 do Edmar Bacha alertando que, quando fosse feita a estabilização, iria aparecer um déficit enorme. O que aconteceu no ano passado, guardadas as proporções, foi a mesma coisa.

A inflação turbinou a receita. Você produziu artificialmente um resultado primário que não vai durar. Tanto que em 2022 ele piora novamente. A dívida vai ficar pelo menos dois pontos percentuais do PIB [Produto Interno Bruto] mais alta até o final do ano, vai ter déficit primário em torno de 1,5% do PIB.

Não é o fim do mundo, mas é uma situação muito delicada. Não dá para simplesmente dizer que houve melhora na situação fiscal. Não houve melhora estrutural. O que houve foi uma leniência com a inflação que produziu efeitos fiscais positivos que são conhecidos na literatura. O fato é que a inflação ajudou.

A relação dívida/PIB caiu de 89% em fevereiro para 81% em novembro de 2021. Isso também foi resultado da inflação mais alta? O fator preponderante foi a inflação elevada. Primeiro porque ajudou a elevar a arrecadação em termos nominais. O resultado primário (receita menos despesa) melhorou muito. Estados e municípios também foram beneficiados por essa questão e devem terminar o ano com superávit [a projeção da IFI para o governo central ainda é de déficit].

O aumento da inflação afetou o PIB nominal mais do que se esperava. Isso também ajudou a reduzir a relação dívida/PIB.

Ninguém projeta dívida a 83% do PIB [expectativa da IFI para dezembro], até que, em julho, quando se começou a perceber que a inflação ficaria elevada até o fim do ano e que aquilo já tinha tido um efeito expressivo no PIB nominal, todo mundo ajustou as projeções.

Claro que houve também dois outros fatores importantes, que foram a reforma da Previdência e o congelamento dos salários dos servidores civis, porque os militares tiveram reajuste. Mas o que foi preponderante na melhora fiscal foi a inflação.

Mesmo que temporária, essa ajuda da inflação poderia ser avaliada como bem-vinda? É bom que a dívida fique em 83% e não acima de 95%, como muitos projetavam, inclusive nós. É positivo, mas a taxa de juros está muito mais alta. A Selic está em 9,25% ao ano, e a inflação esperada para 2022 é de 5,05% [na pesquisa Focus]. Estamos falando de uma
taxa real de juros de 4% a 4,2%.

Isso significa que, para estabilizar uma dívida de 83% do PIB, se o país crescer 1% em 2022, precisamos de um superávit primário de 2,5% do PIB. O déficit projetado para 2022 é em torno de 1,5%.

O tamanho do desafio fiscal continua enorme. O juro vai corroer todo esse ganho e vai exigir um superávit muito alto para estabilizar a dívida. Por isso que, nas nossas projeções, a dívida ainda cresce nos próximos anos.

É possível conviver com esse endividamento elevado? Não é uma trajetória insustentável. A gente projeta que o resultado primário vai melhorar no médio prazo, mas o nível de endividamento do Brasil é cerca de 30 pontos percentuais do PIB maior do que a média em países em desenvolvimento. É uma situação fiscal ainda bastante delicada.

Preocupa inclusive que você veja por aí alguns analistas enaltecendo essa melhora em 2021, quando ela foi quase totalmente explicada pela inflação e ainda há esse desafio fiscal enorme para os próximos anos. Com a inflação estabilizando em 2022 e 2023, o juro volta a diminuir. Por isso o cenário base da IFI não é explosivo para a dívida/PIB.

Temos o cenário pessimista. Por exemplo, se em 2023 quem assumir a Presidência não conseguir restabelecer o mínimo de credibilidade.

Quem assumir vai ter de partir do zero. O teto de gastos simplesmente foi abolido. Ele continua valendo na letra da Constituição, mas na prática não existe mais. Quem ganhar em 2022 vai ter de dar um direcionamento novo para a política fiscal e que tenha como norte a sustentabilidade da dívida no horizonte de quatro ou cinco anos.

Esse desafio não é impossível, mas também não é uma coisa simples, como alguns estão dizendo por aí. Se a taxa real de juros ficar em 4% e o crescimento econômico voltar para 2% em 2023 e 2024, você ainda vai precisar de um esforço fiscal primário de até 2% do PIB para estabilizar essa dívida. Se vamos sair de um déficit de 1,5%, temos de 3,5 pontos a 4 pontos do PIB de esforço fiscal, o que dá quase R$ 400 bilhões de ajuste.

Representante de pré-candidato à Presidência têm apontado, em sua maioria, a necessidade de rever ou até acabar de vez com o teto. Qual poderia ser a nova âncora fiscal? O grande medo que os agentes econômicos tinham era que a eleição de 2022 levasse à escolha de um grupo político que abandonasse o teto de gastos. Isso já se materializou agora, porque o próprio governo Bolsonaro resolveu abandonar o teto. É uma mudança tão expressiva, pela nossa conta de R$ 112,6 bilhões de espaço aberto para 2022, que na prática significa a invalidação do teto como concebido em 2016.

A literatura nessa matéria diz que não basta ter normas, tem de ter compromisso político em torno das regras.

O teto de gastos foi positivo enquanto durou. Ajudou a derrubar a dívida, melhorar as escolhas alocativas, aprovar a Previdência, mas ele tinha problemas desde a sua concepção. Foi mal desenhado. A única válvula de escape é o crédito extraordinário. E também preconizava um ajuste muito duro a partir de um certo momento e nenhum nos anos iniciais. Por isso ficou impossível de cumprir na ausência de mudanças estruturais do lado da despesa.

Para 2023, há um cardápio de regras que podem ser adotadas, mas o fundamental é que precisa haver compromisso político em torno do ajuste fiscal. Se não houver isso, não tem regra que resolva.

Há espaço para fazer ajuste fiscal e, ao mesmo tempo, atender à maior necessidade de gastos sociais e investimentos? A discussão mais importante para 2023 vai ser como resgatar a responsabilidade fiscal, mas também garantir o espaço necessário para os gastos que vão aumentar. Por exemplo, o gasto com saúde e o gasto social tendem a aumentar na próxima década. Os países da OCDE, até 2050, vão aumentar o gasto com saúde em oito pontos percentuais do PIB, por conta do envelhecimento. No Brasil, ainda não há estudo nesse sentido. Isso vai ter de entrar na discussão da nova regra fiscal em 2023. Você vai ter de dar conta também de aumentar o investimento público, que vai ter um papel importante no resgate de investimento privado.

Vai ser difícil. Acho que não vamos escapar de um ajuste também pelo aumento da carga tributária. Só pelo lado da despesa, já vimos que o Congresso, a sociedade e o próprio governo não estão dispostos a isso. Tanto que agora que o teto ia exercer sua função houve uma virada de mesa, para gastar R$ 112,6 bilhões a mais em 2022. E não é pelo gasto social, que vai custar de R$ 50 bilhões a R$ 55 bilhões. É para fazer os gastos aprovados no final do ano, emendas de relator e tudo isso.

É preciso colocar as forças políticas na mesa e decidir qual vai ser a forma da responsabilidade fiscal, se vai ser mais pelo lado da receita ou da despesa e que tipo de gastos estamos dispostos a cortar. É preciso uma revisão ampla das despesas orçamentárias. Há gastos, inclusive tributários, que vêm sendo carregados por décadas sem uma revisão adequada a partir de uma avaliação técnica isenta. As renúncias tributárias deixam na mesa 4% do PIB, algo como R$ 300 bilhões.

O Mauro Benevides está certo na entrevista que ele deu [para a Folha]. É o investimento que está pagando o pato [com o teto de gastos]. E porque está pagando? Porque ninguém quer enfrentar os gastos obrigatórios.

RAIO-X
Felipe Scudeler Salto, 34, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) desde 2016 e responsável por sua implantação. Economista pela FGV/EESP e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP. Foi consultor econômico na Tendências Consultoria. Trabalhou na assessoria do senador José Serra (PSDB-SP). É professor de Finanças Públicas no mestrado profissional em Economia do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Vencedor do Prêmio Jabuti de Economia em 2017 com o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Record, 2016). Também organizou o livro “Contas públicas no Brasil”, com Josué Pellegrini (Saraiva, 2020).

O que segura entregador de app em casa é preço da gasolina e não ômicron, diz especialista

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Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, participou da comissão que estudou a nova classe média

Folha de São Paulo, 16/01/2022.

A explosão da ômicron, que provocou o afastamento de funcionários contaminados e atrapalhou a operação em diversos setores, atingiu também os entregadores de aplicativos.

Nesta parcela da população, entretanto, o ficar em casa é forçado por outros motivos, segundo Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.

“Esse cara não se dá ao luxo de não trabalhar por causa da contaminação. Só que ele não tem dinheiro para pagar a gasolina”, afirma Meirelles.

Falou-se muito sobre o impacto da falta de mão de obra para as empresas nessa onda de contaminação da ômicron, mas e os trabalhadores autônomos? Qual é o impacto para eles? Não dá para entender a questão dos trabalhadores autônomos, os trabalhadores por aplicativo, só pelo contexto da pandemia. Temos que entender o contexto econômico como um todo.

Tem o impacto do aumento do desemprego, que não é um detalhe. Em especial o desemprego entre os jovens, que formam a maior parcela, em especial dos aplicativos. E não é à toa que, no último ano, nós temos 11,7 milhões de brasileiros que passaram a trabalhar por aplicativo. E não estou falando só de Uber e iFood. Estou falando daquela pessoa que é a manicure que passou a ter cliente direto por meio do GetNinjas, do boteco que perdeu cliente na pandemia e passou a vender pelo iFood, daquele que estampa camiseta e passou a vender no Mercado Livre.

Temos no Brasil hoje 34 milhões de brasileiros que ganham uma parte do seu dinheiro por aplicativo. Destes, 62% recebem metade, ou mais, de sua renda por aplicativo. Estamos falando, talvez, do maior setor profissional do país.

E essas pessoas estão sofrendo, em especial os que trabalham com transporte, porque o preço da gasolina está lá em cima.

Historicamente, nós pensávamos o preço da gasolina em duas vertentes: a do custo para a logística e a da classe média que abastece seu carro. A pandemia nos fez ver o aumento da gasolina pela lógica do insumo fundamental para os trabalhadores de aplicativo e de entrega.

E quando vem uma onda de contaminação como essa atual? Essas pessoas ficam em casa? Sim e não. Essas pessoas não se dão ao luxo de ter o isolamento social. São trabalhadores que, na grande maioria, têm que vender o almoço para comprar a janta. Apesar dos riscos e da contaminação, não se podem dar ao luxo de não trabalhar.

E tem uma parcela que trabalha em casa, seja estampando boné, seja fazendo bolo para vender. Mas isso tem muito mais a ver com a crise econômica do que com o vírus.

E os entregadores? Têm ficado em casa porque se contaminaram com essa nova variante? Ficam em casa não porque se contaminaram. Ficam porque não têm dinheiro para gasolina. Ele já não tinha alternativa quando estávamos nas outras variantes, que tinham um grau de letalidade maior e a gente não tinha vacina. Hoje, ele não tem ainda mais, por causa de grana.

Cada setor responde de um jeito. Como reage a economia das favelas a isso? Na favela, crise não é exceção. É regra. Essas pessoas cresceram na crise, seja de saúde, segurança, econômica. O que eu chamo de “se virômetro” da favela é muito maior do que na média da população brasileira.

Na favela tem também um nível de solidariedade 35% maior do que na média do Brasil. Esse dado é medido por doações. Por outro lado, essas pessoas têm menor nível de proteção social. E não só pela questão econômica, mas pela própria moradia, têm mais dificuldade em fazer o isolamento.

São as pessoas que mais sofreram com os atrasos do auxílio emergencial do início do ano passado e com a incerteza do que será agora. E são pessoas que, muitas vezes, trabalham na rua.
Essa pessoa se vira indo para a internet e o aplicativo. E são trabalhadores que, na prática, foram os responsáveis pelo Brasil não parar.

Não foi por causa da classe média que o Brasil continuou andando. Foi por causa dos trabalhadores do ônibus, da limpeza, dos caixas de supermercado, de farmácia.

Foram eles que tiveram mais risco com a pandemia e que menos foram protegidos. E, na hora de virar público prioritário para serem vacinados, foram esquecidos em detrimento de quem tinha nível superior.

Não é à toa que o índice de contaminação da periferia é quase o dobro do índice de contaminação do resto do Brasil.

Qual á a sua avaliação sobre a reação dos governos e o que deve ser feito? Como avalia a posição dos que têm retomado restrições? Infelizmente, o que pauta o governo federal e alguns estaduais é a lógica eleitoral e não a lógica do que é melhor para a vida das pessoas. E eles sustentam essa lógica através de falsas polêmicas. Uma delas é a que contrapõe saúde à retomada da economia.

Se o grupo de risco fica doente, não consegue trabalhar, para de consumir, a economia quebra. Só que boa parte dos governantes se ocupam transformando uma questão básica, civilizatória, que é o valor da vida, em uma disputa política.

E não existe retomada da economia que não passe por distribuição de renda. E não é mudar nome de Bolsa Família para Auxílio Brasil por causa de eleição. Distribuição de renda se dá é no aumento do salário mínimo acima da inflação.

E isso a gente não viu.

Raio-X
Presidente do Instituto Locomotiva e membro do conselho de professores do IBMEC, onde é titular da cadeira de ciências do consumo. Foi fundador e presidente do Data Favela e participou da comissão que estudou a nova classe média, na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República em 2012

Mundo do trabalho e as reformas civilizatórias: os ventos da Espanha, vários autores.

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Não resta dúvida sobre a incapacidade de a reforma trabalhista em cumprir sua principal promessa

Tereza Campello, Economista, titular da Cátedra Josué de Castro/USP. Foi ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016)

Miguel Rossetto, Sociólogo, mestre em Políticas Públicas. Foi ministro do Trabalho e da Previdência Social (2015/2016)

André Calixtre, Economista, doutorando em economia pela UnB. Foi Diretor de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2015/2016)

Folha de São Paulo, 15/01/2022

A Espanha resolveu finalmente encerrar seu longo ciclo neoliberal de desestruturação do mercado de trabalho, onde o governo Pedro Sánchez, do PSOE (Partido Socialista Obrero Español), aprovou em dezembro de 2021 (na forma de Decreto Real a ser referendado pelo Congresso) uma reforma trabalhista civilizatória, após intensa participação social via negociação tripartite ao longo de todo o ano passado, envolvendo, portanto, trabalhadores, governo e empresários. O alto desemprego espanhol, especialmente entre jovens, uma das maiores desigualdades da Europa e a precarização das condições de trabalho motivaram essa virada.

No caso do Brasil, a reforma trabalhista é a última joia da coroa instituída pelo governo Temer em 2017 com a promessa, feita pelo então ministro da Fazenda Henrique Meirelles, de que ela traria 6 milhões de novos empregos.

Além de ampliar o problema do emprego, cuja massa de desempregados está girando em 14 milhões de brasileiros, 1,5 milhões a mais do que no ano de aprovação da reforma, a dita “reforma modernizadora” ampliou a informalidade no mercado de trabalho, chegando hoje a incríveis 45 milhões de trabalhadores, quase metade da população ocupada, um ganho de mais de 3 milhões desde 2017 e ainda houve redução de um pouco mais de 1 milhão de trabalhadores formais, todos esses dados registrados pela Pnad Contínua, do IBGE.

Após a revisão dos dados revisão dos dados do novo Caged em 2020, mostrando que a alardeada criação de empregos formais durante o governo Bolsonaro era na verdade uma subestimação brutal de demissões provocada pela mudança metodológica na base de dados, não resta dúvida sobre a incapacidade de a reforma trabalhista em cumprir sua principal promessa.

Isso sem mencionar os efeitos mais profundos da dita reforma para o mundo do trabalho, ao impedir o acesso à Justiça do Trabalho, igualar patrão e empregado quando todos sabemos que essa relação é assimétrica, e destruir as fontes de financiamento sindical, impedindo o fortalecimento das estruturas de negociação pela parte dos trabalhadores. A reforma de Temer foi aprovada sem negociação com os trabalhadores, sem discussão técnica adequada e por um governo que não discutiu seu programa nas urnas, ascendeu ao poder golpeando a presidenta eleita

legitimamente pelo voto popular e destruiu as principais instituições reguladoras do trabalho, no Executivo e no Judiciário.

Governos democráticos não revogam autoritariamente leis. Ademais, a realidade é que precisamos pensar um futuro mais digno para os trabalhadores brasileiros, e esse novo mundo do trabalho –responsável sozinho por quase 50% da redução da desigualdade de renda que tivemos no último ciclo de desenvolvimento, segundo pesquisa do Ipea– deve incorporar e estruturar as novas condições de ocupação trazidas pelo avanço tecnológico. Os impactos da informalização do trabalho são graves e profundos.

Segundo pesquisa da Rede Penssan, é quatro vezes maior o risco de insegurança alimentar grave, leia-se fome, em famílias chefiadas por trabalhador informal que por assalariado, atingindo 15,7% desse grupo em 2020, contra 3,7% dos trabalhadores formais. O aumento da informalidade tem reduzido a massa salarial, retirando a classe trabalhadora do acesso à renda gerada pela economia. O que temos assistido é uma crise civilizatória no mercado de trabalho brasileiro, acelerada pelo desastre econômico do bolsonarismo, cujas consequências podem se tornar irreversíveis.

Sobre o exemplo da reforma civilizatória espanhola, esta consiste em três eixos principais: o fortalecimento dos gastos sociais em educação e saúde e criação de um programa de renda mínima de mesma inspiração do Bolsa Família brasileiro; o aumento real do salário mínimo, hoje fixado em 1.125,00 euros e cuja meta é atingir 60% da média de salários até 2023 (atualmente, esse nível já chegou a 57% da média); e atacar o desemprego e a precarização do trabalho, limitando o uso dos contratos de curta duração e estimulando os contratos por tempo indefinido, taxando em 27 euros os contratos inferiores a 30 dias de duração, diminuindo as demissões como variável de ajuste no mercado de trabalho, investindo pesadamente em um programa de qualificação profissional, em especial as médias ocupações (nível técnico), e ampliando o acesso aos programas de preservação de emprego especificamente criados para o combate à pandemia.

A experiência espanhola mostra que a negociação tripartite pode ser um caminho viável, mas, para isso funcionar no Brasil, é preciso um novo modelo de desenvolvimento e o resgate das instituições democráticas de negociação tripartite e participação social, depredadas por sucessivos movimentos autoritários. Evidentemente, a realidade brasileira é muito mais desafiadora, temos uma sociedade desigual, dualizada entre mercados de trabalho formal e informal e cujo Estado está capturado por inconfessáveis desejos de autodestruição.

É possível, no entanto, apontar novos caminhos. Com a retomada de políticas públicas para o crescimento econômico, a atuação do Estado é fundamental, reativando o motor de geração e distribuição de renda do mundo do trabalho e aprimorando o desenho do Estado de bem-estar para as profundas mudanças tecnológicas, ambientais e demográficas que se avizinham, garantindo renda mínima a uma parcela maior da população que agora ficou desassistida com a desestruturação provocada pelos erros do governo Bolsonaro no combate à pandemia e na introdução do Auxílio Brasil.

No mercado de trabalho, o Estado precisa agir direta e ativamente na gestão da massa de desempregados, garantindo empregos sociais temporários em setores estratégicos, como cuidados pessoais, melhorias da infraestrutura pública e cultural, e redirecionando a capacitação técnica dos trabalhadores atingidos pela intensa reestruturação produtiva acelerada pela pandemia.

É preciso ousar uma nova política de valorização do salário mínimo e um novo contrato social centrado em um estatuto único do trabalhador, seja ele formal ou informal, que permita acesso a direitos trabalhistas mínimos a toda a população economicamente ativa. Recuperar direitos perdidos, reduzir as profundas disparidades de gênero e raça no mercado de trabalho, que restabeleça as condições de acesso à Justiça do Trabalho e que retome a primazia da organização sindical sobre a individual no mercado de trabalho.

No entanto, a nossa reforma civilizatória precisa atuar como um poderoso instrumento de inclusão do mundo informal, reconhecendo direitos de trabalhadores por aplicativo e atuando fortemente na regulação dos contas-próprias, que é a categoria informal que mais cresce atualmente, incluindo com acesso aos fundos públicos tradicionalmente constituídos pelo setor formal da economia como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e ampliando o seguro-desemprego para o mundo informal.

A Espanha não é um caso isolado no mundo, diversos países têm revisto suas normas trabalhistas após o duro enfrentamento da pandemia e seus efeitos sobre o emprego, dentre eles os Estados Unidos e a Coréia do Sul, esta até reduziu sua jornada de trabalho, pauta hoje considerada utópica para o Brasil. A disputa política maior é sobre o padrão do ciclo de recuperação econômica que virá após a imunização produzida pela vacinação em massa e a aguardada mudança de comportamento do vírus para uma doença endêmica.

Os efeitos da pandemia já são comparáveis a uma grande guerra mundial, mas os caminhos para uma recuperação mais ou menos civilizada continuam plenamente abertos para as nações. O Brasil precisa definir se escolhe permanecer nesse estranho lugar de negacionismo, autoritarismo e precarização do trabalho ou se prefere investir em um projeto econômico-social e ambientalmente sustentável.


Autoritarismo ou reacionarismo? por Oscar Vilhena Vieira.

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Presidente buscou impor seus objetivos abusando de suas prerrogativas

Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 14/01/2022

Como distinguir uma ação autoritária implementada pelo governo de uma ação meramente conservadora ou reacionária?

Essa difícil questão me foi colocada pela professora Maria Herminia Tavares de Almeida, em reação à série de reportagens publicadas pela excelente jornalista da Folha Renata Galf, sobre um projeto de pesquisa voltado a compreender o modo como os novos líderes populistas empregam o direito e suas instituições para concretizar seus objetivos.

A questão é relevante porque um dos pressupostos fundamentais dos regimes democráticos é que o eleitor possa, pelo voto, determinar mudanças na orientação das políticas governamentais. Nesse sentido, é tão legítimo a um presidente conservador buscar implementar políticas conservadoras, como a uma presidente progressista ou liberal cumprir suas promessas de campanha. A democracia serve para isso mesmo; para poder mudar.

Ações autoritárias constituem uma coisa distinta. Numa primeira categoria encontram-se aquelas ações que ameaçam os próprios pressupostos do Estado democrático de direito, como a integridade do processo eleitoral ou a independência dos poderes que têm a responsabilidade de elaborar ou garantir as regras do jogo; ou seja, o Legislativo e o Judiciário. Nesta mesma categoria também estão ações que violem direitos fundamentais, prejudicando o livre e igualitário exercício da cidadania, ou a dignidade das pessoas.

Uma segunda categoria de ações autoritárias, no entanto, está associada mais à forma pela qual são veiculadas do que propriamente o mérito. Desde Rousseau, ficou claro que um regime democrático não se resume à mera vontade da maioria. Para que a decisão dos cidadãos possa se impor a toda comunidade é fundamental que ela seja veiculada por lei. Pela sua natureza, assim como pelo seu processo de adoção parlamentar, em que as minorias têm participação, a lei é um poderoso antidoto contra o exercício arbitrário do poder. Nesse sentido, impor conduta sem fundamento na lei é, por definição, autoritário.

Assim, mesmo objetivos políticos legítimos, almejados pela maioria —não importa se reacionários ou progressistas—, apenas poderão se transformar em ação governamental após se submeterem ao devido processo legal, seja ele legislativo, administrativo, e, em muitos casos, judiciário.

O que nossa pesquisa detectou é que, por indisposição ou incapacidade de construir uma ampla coalizão de governo, o presidente buscou impor seus objetivos abusando de suas prerrogativas. Daí falamos em “infralegalismo autoritário”; pois baseado no emprego sistêmico de prerrogativas administrativas, em contraposição ao que determinam as leis e a Constituição.

O deputado federal Eduardo Cury, outro perspicaz leitor dos resultados da pesquisa, salientou, no entanto, que a incapacidade do governo de aprovar certas medidas autoritárias pode ter se dado menos em função de eventuais virtudes de nosso parlamento pluripartidário e bicameral, do que da própria incompetência dos operadores políticos do governo. O Centrão, preocupado em não descontentar o Supremo, preferiu se concentrar na defesa apenas de seus próprios interesses.

O deputado nota com moderado otimismo, por outro lado, que por não terem conseguido impor alterações legais ou constitucionais nas estruturas de nossa democracia, será mais fácil ao próximo governo, caso haja disposição e competência, reverter parte dos estragos institucionais provocados pelo infralegalismo autoritário.

A falsa polêmica da carne, por Ilona Szabó

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Pensar que em 2022 ainda não temos informações completas sobre a origem de produtos de base animal e vegetal é, no mínimo, frustrante

Ilona Szabó de Carvalho Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 12/01/2022.

Independentemente de consumir ou não carne bovina, é do interesse de todos saber a procedência exata da proteína. Mundo afora a decisão de comer ou não carne animal passa pelo preço, por crenças religiosas e espirituais, por convicções sobre bem-estar animal, e cada vez mais pela preocupação sobre sua procedência e relação com o clima do planeta.

E isto está mais do que correto. Pensar que em pleno ano de 2022 ainda não temos informações completas sobre a origem de produtos de base animal e vegetal, prestadas de forma transparente por todos os produtores e indústrias é, no mínimo, frustrante.

No caso específico da carne bovina produzida no Brasil, parte da cadeia produtiva está relacionada a áreas desmatadas e griladas. A falta de rastreabilidade e transparência total dessa cadeia impede que possamos diferenciar os produtores que cometem ilegalidades, dos que cumprem as leis. Da mesma forma, dificulta a identificação dos que adotam boas práticas de manejo de pasto, alimentação e abate, reduzindo as emissões de metano — um dos gases geradores do efeito estufa e das mudanças climáticas.

Apesar de ainda não ser um debate muito difundido no Brasil, a discussão já é realidade pulsante em algumas faixas etárias, em especial nas gerações Z e millennials. Esse fato traz oportunidades que não podem ser desperdiçadas, seja pelo governo à luz de compromissos internacionais de desmatamento-zero recém-assumidos pelo país na COP 26, seja por empresas e investidores para garantir mercado e investimentos em inovações da área.

Ignorar a relevância desse debate é um equívoco, seja da parte de pecuaristas, de investidores ou das gerações de consumidores que ainda não escolhem os produtos que compram com base nas condutas éticas das empresas.

Pecuaristas que não se adequarem às boas práticas de produção sustentável, e à estrita conformidade legal, podem perder tanto o mercado externo como o interno, além de eventualmente verem-se responsabilizados por práticas ilícitas que nunca foram parte de seus objetivos de negócio.

Investidores, por sua vez, não só deixam de cumprir métricas ESG, como podem deixar escapar oportunidades de investimento em produtores carbono-neutros e em inovações de empresas que produzem carne de base vegetal, e que desenvolvem carnes em laboratórios.

E os consumidores, por fim, deixam de exercer seu poder de incentivar a produção eficiente de proteína animal, de baixo impacto ambiental e climático, e de valorizar os produtores alinhados com a proteção da natureza.

A boa notícia é que não faltam bons exemplos. O Brasil já exporta carne rastreável e livre de desmatamento para a União Europeia e outros mercados que assim exigem, e já conta com produtores de vanguarda que desenvolvem um modelo de pecuária sustentável, mas que ainda competem de forma desigual por mercado com seus pares que não cumprem a lei.

O ano de 2021 foi repleto de posicionamentos públicos de grandes bancos e fundos de investimento sobre o assunto, bem como de compromissos dos grandes frigoríficos com o maior controle sobre seus fornecedores, e de anúncios sobre seus novos investimentos no mercado de carne vegetal.

Em meio a falsas polêmicas, há uma oportunidade real de impulsionar a capacidade de inovação do agronegócio brasileiro. Com compromissos e exemplos práticos, todos os elos das cadeias produtivas —desde o financiador, a agroindústria, até o pequeno produtor, podem direcionar investimento para práticas e tecnologias sustentáveis, transparentes e alinhadas com as regulações ambientais.

Prioridades equivocadas

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A pandemia está gerando novos desafios para a sociedade internacional, percebemos um crescimento da concorrência entre os atores econômicos e produtivos, centrados na busca crescente de ganhos monetários, lucros e retornos financeiros e, em contrapartida, um incremento da desigualdade da renda, da redução do emprego e uma piora considerável das condições de vida, da pobreza e da miséria.

Vivemos num mundo marcado por contradições crescentes, a riqueza aumenta, os donos do poder se tornam cada vez mais ricos e poderosos e, em contrapartida, grande parte da sociedade internacional sobrevive com recursos cada vez mais escassos, gerando um forte incremento de rancores e ressentimentos. Neste ambiente, os conflitos crescem e as esperanças se reduzem, criando tensões e violências generalizadas.

O sistema capitalista é o melhor sistema produtivo para a geração de riqueza na sociedade global, nenhum sistema econômico e político consegue gerar mais riquezas do que o modelo capitalista, mas apresenta um grande defeito, o sistema se concentra nas mãos de poucos grupos sociais, controla o Estado Nacional e define a agenda de acordo com seus interesses, nem sempre seus interesses são os melhores para a coletividade, gerando tensões e constrangimentos.

O mal-estar crescente na sociedade contemporânea é generalizado, o desemprego cresce, a pobreza aumenta, a riqueza se concentra nas mãos de poucos e a esperança de dias melhores se esvaem todos os dias, gerando novos confrontos e desilusões, abrindo espaço para doenças emocionais, depressões, ansiedades, desesperanças, transtornos e suicídios.

As escolhas econômicas das últimas décadas estavam atreladas aos interesses dos grandes donos do dinheiro, dos detentores de setores atrelados aos interesses políticos imediatos e individualizados garantiram o crescimento de seus interesses patrimoniais, deixando de lado, os interesses de parcelas crescentes da comunidade que ralam todos os dias, recebem salários degradantes, trabalham em escalas crescentes de trabalhos precarizados, sem benefícios adicionais e sem perspectivas de médio e longo prazos.

Neste cenário, nem precisa ser um gênio com PhD do conhecimento para compreender a situação que vivemos na sociedade internacional, caminhamos a passos largos para uma degradação mais acentuada, com destruição do Meio Ambiente e degradação das condições de vida da coletividade, onde uma pequena parte dessa coletividade se tornam cada vez mais bilionários e se comprazem com viagens e excursões interespaciais.

A economia enquanto ciência perdeu sua relevância para a sociedade contemporânea, os interesses dessa ciência se transformaram nos interesses dos donos do dinheiro, os consultores econômicos se restringiram a referendar teses que degradam os interesses da comunidade e, com isso, garantem altos recursos monetários e se transformam em sócios menores, contribuindo para eternizar a degradação da sociedade global.

Nos debates econômicos contemporâneos encontramos discussões superficiais sobre indicadores macroeconômicos e se esquecem dos interesses imediatos da comunidade, dos grupos mais fragilizados economicamente, omitem reflexões sobre desemprego, diminuição da renda e da degradação das condições de vida da comunidade. O ambiente de pandemia deveria nos remeter as reflexões sobre as escolhas das sociedades, revendo as prioridades equivocadas das últimas décadas e retomando as escolhas dos grupos mais fragilizados.

A verdadeira Economia precisa ser reconstruída e totalmente reestruturada, retomando as bases da Economia Política, analisando os interesses da sociedade, priorizando todos os atores econômicos e políticos da comunidade, analisando os interesses dos trabalhadores, dos empresários e do Estado Nacional, desta forma, destacando que os interesses individuais devem ser condicionados aos ganhos de toda a comunidade.

A pandemia está transformando a sociedade, a Economia está se transformando, as prioridades devem ser transformadas e os seres humanos devem estar no centro das prioridades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/01/2022.

Esperamos compaixão de líderes, mas Bolsonaro prefere a insensibilidade, por Itamar Vieira Júnior

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Enquanto chuvas levavam calamidade à Bahia, presidente dava cavalo de pau em jet ski e visitava parque temático

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo – 09/01/2022

Todo ano o rito se repete: retrospectivas, balanços e confraternizações por toda parte. Constato, contudo, que o tempo não é mais o mesmo. Atravessamos um ano —não qualquer um, mas um ano difícil— e quase não o vivemos por inteiro.

Entre as atividades do cotidiano, as pequenas conquistas e as dores, que abundaram como nunca, não conseguimos nos dar conta de que os dias passavam velozes.

Mas este é um tempo diferente dos demais que já atravessei. É possível que não quiséssemos mais os dias de volta e eles escoaram como um rio que não retorna.

Na Bahia, as chuvas levaram calamidade a uma grande área do estado. Foram as mais volumosas para o período, se considerarmos as áreas onde há medição. Quase 1 milhão de pessoas foram afetadas e cerca de um terço dos municípios decretaram emergência.

Reflexo de nossas ações predatórias, que começaram há muitos e muitos anos, mas se acentuaram neste tempo de uma maneira incontrolável e desafiadora. Eis uma palavra que cada vez mais fará parte de nosso cotidiano: injustiça climática.

Isso porque as alterações ambientais afetam as pessoas de maneira distinta. A interseção injustiça climática e desigualdade social é a crise anunciada atingindo de forma desigual os desiguais.

Quem dispõe de infraestrutura e saneamento e quem pode se deslocar e promover melhorias em suas habitações é menos impactado. Quem apenas sobrevive será testado em outro limite.

E como fez falta a mão que o senhor presidente da República poderia ter nos estendido em solidariedade. Ele preferiu permanecer de férias onde não chovia, dando cavalo de pau em jet ski e visitando parques temáticos sem transmitir nenhuma palavra de conforto.

Não surpreende, claro, mas sou incorrigível quando se trata de esperança na humanidade. Até porque, se olharmos por uma perspectiva histórica, demos significativos passos para uma convivência mais justa entre nós mesmos e o planeta.

Se pensarmos que há pouco mais de um século escravizar outros seres humanos era aceitável, sim; ou que mulheres não podiam votar e precisavam da autorização dos maridos em muitas situações de sua vida social. Ainda há muito por fazer, mas os primeiros passos foram dados muito antes de nós. Cada um à sua maneira foi desafiando o sistema.

Por isso, não posso perder a esperança de que qualquer ser humano seja capaz de transformar a si e seu entorno.

A pandemia do coronavírus deu ao presidente uma grande chance, talvez a mais importante de sua vida, de demonstrar que se importa com alguém, mas ele preferiu sabotar as medidas sanitárias e a vacinação da população no tempo necessário. Ensaiou fazer o mesmo com as crianças.

Sua insensibilidade nos levou a registrar perdas humanas em proporções nunca vistas em nossa história. Era um momento para deixar de lado as diferenças e ter unido o país em torno de um bem comum, mas o resto da história já sabemos como se deu.

Ao longo do mandato, Bolsonaro perdeu grandes chances de demonstrar empatia pelo outro. O slogan de seu governo, “Pátria amada, Brasil”, evoca a palavra pátria, comunidade imaginada onde estamos reunidos virtualmente, de forma desigual, mas ainda assim unidos.

Evocar a palavra pátria é evocar sentimentos que podem nos unir como uma comunidade, e, para que essa comunidade exista, é preciso que ela seja reconhecida por meio de nossas subjetividades. Esperamos dos líderes sentimentos de compaixão por sua família, seu grupo ou sua comunidade.

Digo isso porque, ao longo do tempo, conheci inúmeros agrupamentos humanos onde essa premissa se confirmou. Não que fossem comunidades perfeitas: havia divergências, desigualdades, disputa por poder, mas ainda assim as dores eram compartilhadas de maneira coletiva.

Daí a minha modesta militância pela literatura. Em “Comunidades Imaginadas”, o cientista político Benedict Anderson escreveu sobre o papel de jornais e romances, ainda que circulassem apenas entre a elite letrada, na construção do ideal de uma comunidade imaginada.

Em “A Invenção dos Direitos Humanos”, Lynn Hunt fala em “empatia imaginada”, fruto da fruição de uma obra literária. “É imaginada não no sentido de inventada, mas no sentido de que a empatia requer um salto de fé, de imaginar que alguma outra pessoa é como você”, escreveu a autora.

Talvez seja isso —precisamos de mais educação, mais leituras para dar esse salto de fé. Continuo a acreditar.

Quando as diferenças aparecem, por Silvio Almeida.

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Será em debates como a reforma trabalhista que as diferenças entre os presidenciáveis começarão a aparecer

Silvio Almeida Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo – 07/01/2022

Até o presente momento, o desastroso governo de Bolsonaro tem permitido alguma unidade, ainda que superficial, entre diferentes setores da política brasileira. As possíveis práticas criminosas e a incapacidade do governo de gerir questões cotidianas têm produzido um certo consenso sobre a necessidade de derrotar o atual presidente nas próximas eleições.

Entretanto, à medida que se aproximam as eleições, as alternativas ao atual governo se veem forçadas a se apresentar com mais nitidez, e é então que as diferenças aparecem. Não se reergue um país arrasado apenas com o slogan “Fora Bolsonaro”. Começa a não ser mais possível aos presidenciáveis se esconder no amaranhado de frases feitas como “pacificar o Brasil”, “desenvolver a economia”, “modernizar o país”, “respeitar os direitos humanos”, “valorizar a democracia”.

Aproxima-se a hora de dizer o que seria um país pós-Bolsonaro para além da falação. E só quando as diferenças se apresentarem é que ficará evidente quem quer de fato romper com as mazelas que levaram ao bolsonarismo ou quem quer simplesmente dar sequencia à destruição que o atual governo não conseguiu ultimar, seja pela força da contingência histórica, seja por pura incompetência.

Um exemplo de como estas diferenças estão aparecendo no debate público pré-eleitoral é na discussão sobre a reforma trabalhista, esta iniciada no governo Temer e aprofundada pelo governo Bolsonaro. Sejamos diretos: a reforma trabalhista é uma tragédia. Não criou empregos, não modernizou o país (seja lá o que for isso) e só fez prejudicar trabalhadores, sindicatos e pequenos empresários; deprimiu ainda mais a economia, fragilizou o sistema de proteção social, criou medo e insegurança, além de ter aumentado a desigualdade, quesito no qual tradicionalmente estamos entre os campeões mundiais.

Nesta semana, quando os pré-candidatos se viram instados a tratar de questões econômicas de modo mais objetivo, o tema da reforma trabalhista voltou à baila. Em entrevista a esta Folha, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia criticou a sinalização dada pelo Partido dos Trabalhadores de que iria seguir os rumos da Espanha e propor a revogação da reforma trabalhista. Para Maia, o resultado da revogação seria o “engessamento” do mercado de trabalho.

Assim, a solução para o desemprego, nas palavras do deputado, estaria em “uma melhor qualificação dos trabalhadores”. E ao final diz que o foco deveria ser a igualdade de gênero no mercado de trabalho e a qualificação formal da população negra, de tal sorte que o problema do Brasil não está no que ele considera a “boa reforma” trabalhista, mas “na questão estrutural”.

Maia, um opositor ao governo Bolsonaro é, ao mesmo tempo, um defensor de uma das reformas mais caras ao núcleo que dá suporte ao atual governo. Sua defesa da reforma tenta driblar dados de pesquisa que demonstram uma progressiva degradação das condições de trabalho e emprego no Brasil, e ainda apela a termos retoricamente vazios como “engessamento” e “falta de qualificação”, este último usado estrategicamente para colocar na conta do trabalhador o seu próprio desemprego. Porém, a parte mais curiosa da fala do deputado é a que propõe um olhar atento às minorias a fim de resolver o problema do desemprego.

Se de fato negros e mulheres forem levados em consideração no campo econômico, a fala do deputado Rodrigo Maia perde totalmente o sentido. A inegável dimensão racial e de gênero da economia política não é um problema que se resolve com compaixão. O que mais dificulta a vida de negros e mulheres no mercado de trabalho é justamente a precarização, a informalidade e o desemprego, tudo que a reforma potencializou.

Negros e mulheres formam o grande contingente de trabalhadores desempregados, informais, terceirizados e sem proteção social neste país. Se há de fato uma preocupação com a situação “estrutural” da economia, como disse o deputado, este grande monumento ao fracasso nacional denominado reforma trabalhista precisa ser revisto. É por aí que será possível ver quem de fato quer se diferenciar da arquitetura da destruição bolsonarista não apenas na aparência, mas especialmente no conteúdo.

Por jovens com direito a futuro, por Claudia Costin.

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Contar apenas com ensino médio não será suficiente para ter acesso a trabalhos dignos

Claudia Costin Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

Folha de São Paulo – 07/01/2022

Pesquisa recente da consultoria Idados mostra que o Brasil conta com 12,3 milhões de jovens entre 18 e 29 anos que nem estudam nem trabalham, um número que aumentou depois do advento da Covid-19 em 2020. Mesmo com a reabertura das escolas e a busca ativa dos alunos que não voltaram às aulas, ou ainda, no mesmo sentido, com a incipiente recuperação econômica, o número dos chamados “nem-nem” se mantém superior ao do primeiro semestre de 2019.

Alguns motivos para essa situação estão estreitamente ligados à pandemia. “Se não há oferta de aprendizagem remota na educação básica, como ocorreu em 18% dos municípios e ainda em várias universidades pelo país, a tendência entre os jovens é A de perder o vínculo e se desengajar dos estudos.” e ainda em várias universidades pelo país, a tendência entre os jovens é de perder o vínculo e se desengajar dos estudos. Além disso, se o discurso de autoridades públicas é o de que universidades são para poucos —e diante da ausência de conectividade, livros ou equipamentos—, por que se empenhar para prosseguir estudando?

Outro elemento importante foi a crise econômica associada à Covid, que explica a elevada evasão no ensino superior privado e que tornou necessário o trabalho precarizado de muitos jovens.

Mas, dirão alguns, com a plena retomada das atividades produtivas, os que estão excluídos das escolas e dos postos de trabalho logo estarão de volta. Sim, a expectativa é que assim seja, mas há uma mudança no mundo do trabalho que precisa ser levada em conta para construir um futuro mais sustentável e inclusivo. Com o advento da inteligência artificial e de uma automação acelerada, entre outras transformações na economia, contar apenas com ensino médio, como bem mostra Michelle Weise em seu interessante livro de 2021 “Long Life Learning” (aprendizado por toda a vida, em tradução livre), não será suficiente para oferecer aos jovens trabalhos dignos.

Com a rápida substituição de gente por máquinas, mesmo que novos postos laborais sejam criados, eles demandarão outras competências, o que obrigará novas gerações de profissionais não apenas a concluir uma educação pós secundária, como constantemente se recapacitar. Afinal, os postos de trabalho serão extintos e criados em ondas sucessivas, não de uma vez só. E não me refiro aqui só a atualizações dentro da mesma profissão, mas eventualmente a “reinvenções” profissionais.

Neste sentido, precisamos nos assegurar que os jovens continuem estudando, não apenas até o final do ensino médio. Além disso, será necessário que a qualidade da formação oferecida os conecte novamente com a aprendizagem e lhes ensine a navegar num mundo ainda incerto e imprevisível. Afinal, o Brasil só será melhor se eles tiverem direito a um futuro!

Ventos externos

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A pandemia está gerando grandes transformações na sociedade mundial, deixando claro as deficiências das nações desenvolvidas, mostrando fraturas sociais elevadas, desigualdades obscuras, elevada concentração de renda, fragilidades institucionais, pobrezas generalizadas, conflitos sociais crescentes e a necessidade de construirmos uma nova agenda econômica.

Neste ambiente de instabilidades e incertezas, percebemos a chegada de novas variantes do vírus, com impactos variados para a economia global, exigindo a construção de estratégias conjuntas para combater esse inimigo externo. Não podemos aceitar que numa região do mundo, grande parte da população esteja vacinada e, numa outra, poucos indivíduos estejam imunizados. Neste cenário, as desigualdades se mostram mais nítidas e colocam em risco toda a comunidade global, podendo surgir variações do vírus, mais letais, mais preocupantes e mais assustadoras.

Neste ambiente, percebemos o surgimento de novos ventos econômicos nos países desenvolvidos, com impactos generalizados para toda a comunidade internacional. Instituições multilaterais que sempre pregaram a contração de gastos públicos, a redução das intervenções estatais e as desestatizações, estão defendendo novos preceitos econômicos, incentivando os gastos públicos e novas formas de intervenções públicas na economia, uma verdadeira revolução no pensamento econômico.

A pandemia está gerando novos consensos nos países desenvolvidos, a Europa está injetando trilhões de euros para estimular suas estruturas produtivas, alavancando os investimentos em ciência e tecnologia e retomando proteção de setores considerados estratégicos para o futuro da Europa. Nos Estados Unidos, vistos por muitos como um dos centros do liberalismo econômico, o Estado Nacional está despejando trilhões de dólares na economia para investimentos em variadas áreas, desde gastos em infraestrutura, segurança, educação, ciência, tecnologia, pesquisas científicas, dentre outras, visando recuperar o terreno perdido pela concorrência dos países asiáticos que passaram a dominar setores estratégicos e ganharam espaços de empresas norte-americana, gerando conflitos e ressentimentos geopolíticos.

Os ventos intervencionistas cresceram rapidamente nos países asiáticos e contribuíram para reconfigurar as economias da região, auxiliando na transformação das estruturas produtivas, passando de países importadores de tecnologias e exportadores de produtos de baixo valor agregado e, na atualidade, a região se tornou exportadora de produtos de alta tecnologia, com fortes investimentos em ciência e tecnologia, liderança em setores estratégicos, investimentos sólidos em educação que garantiram espaços na economia internacional, gerando constrangimentos com as economias ocidentais e conflitos abertos pela busca da hegemonia global.

Neste momento, percebemos que um dos setores mais estratégicos da economia do século XXI é aquela vinculada à indústria dos chamados semicondutores, ou popularmente chamada indústria dos chips, cuja liderança é exercida pelos Estados Unidos e seguida por países asiáticos, como Taiwan, China e Coréia do Sul. Estes países investem trilhões de dólares liderados pelos seus Estados Nacionais para ganhar a concorrência nestes setores de alta tecnologia, são investimentos de altíssimo risco e grandes incertezas, demandam riscos que prescindem dos investimentos governamentais.

Depois que os investimentos forem maturados, as incertezas e os riscos forem reduzidos, as empresas privadas passam a fazer novos investimentos, angariando novos lucros e retornos crescentes e, desde então, passam a esquecer a centralidade e a importância do Estado.

Neste ambiente, percebemos conflitos crescentes entre os Estados Nacionais para defenderem suas estruturas produtivas, a geração de novos empregos qualificados, fortalecendo suas vendas externas/internas e maiores retornos para sua sociedade, gerando riqueza e bem-estar social. O enriquecimento das nações só foi possível graças a uma estratégia conjunta entre Estados e Mercados na reconfiguração da estrutura produtiva, enquanto isso, no Brasil, o governo está fechando a Ceitec, a única empresa brasileira produtora de chips na América Latina. Que pena, aqui os ventos externos demoram para chegar!

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/01/2022.