Democracias entre vidas, mortos e caminhos tortos, por Mônica Sodré.

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Nossa crise vai além da corrosão institucional; banalizamos a violência

Mônica Sodré Cientista política e diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps)

Folha de São Paulo, 06/11/2021

São tempos difíceis para as democracias em vários lugares do mundo. A ascensão de governos autoritários e populistas, aqui e lá fora, é atribuída à capacidade de algumas figuras capturarem o mal-estar causado pela falha das democracias em produzir prosperidade e socialização coletiva dos ganhos econômicos, pela atual desestruturação do mundo do trabalho e pelo sistemático enfraquecimento dos Estados nacionais e da representação política e dos partidos. São lideranças que se apoiam na ideia de que seriam capazes de mudar o estado das coisas. Trata-se de narrativa, mas com alto poder de convencimento.

No Brasil, a discussão sobre democracia costuma estar frequentemente focada nos aspectos eleitorais. Por razões óbvias, esse tema ganhou destaque em virtude das declarações e ações do atual chefe do executivo federal, para quem os ataques às instituições já se tornaram prática permanente. Se a crise passa (e certamente passa) pelas nossas instituições e elementos eleitorais, não se resume, no entanto, a eles. Aqui, a noção de equidade que a lei institui não veio acompanhada de condições reais para a participação dos cidadãos na vida política e cívica, ou de possibilidade em interferir nos rumos do país —exceto, na maioria das vezes, no momento do voto.

Nossa democracia está em crise porque banalizamos a violência, característica constituinte do nosso povo, que foi o último do mundo a abolir a escravidão. Está em crise porque normalizamos que existam vidas “não merecedoras de luto, nem proteção”. Porque aceitamos que mais de 75% das mortes violentas sejam de pessoas negras. Porque temos mais de 14 milhões de pessoas desempregadas. Porque metade da população vive com apenas R$ 400 por mês. Porque cabe a nós, mulheres, boa parte dos trabalhos não remunerados e salários de apenas dois terços do rendimento dos homens.

Porque hoje mais de 117 milhões de brasileiros —mais de 50% daqueles que aqui nasceram e vivem— comem menos, não comem ou não sabem se vão comer.

Participar da vida política acaba se tornando um luxo, incompatível com as preocupações de quem hoje não sabe se vai jantar ou se vai sobreviver à próxima batida policial.

Olhar a nossa democracia exclusivamente a partir da ótica das eleições e das instituições é escolher fechar os olhos para o tamanho do problema sobre o qual estamos sentados há muitos anos, e que continuará diante de nós: estamos destruindo a base material de nossa existência. As desigualdades históricas, agora agravadas pela pandemia deixarão sequelas por muitos anos, da fome à sobrecarga de um sistema de saúde que terá que lidar com as sequelas dos sobreviventes, aos órfãos e ao atraso da aprendizagem de nossas crianças.

Nossa incapacidade de tornar o Estado elemento corretor das desigualdades e de prover proteção a quem mais precisa nos remete aos Buarque de Holanda —Sérgio, o pai, e Chico, o filho. Não só revela que há, sim, pecados ao sul do Equador como demanda um imenso esforço para não reforçarmos o argumento de “Raízes do Brasil” de que a democracia, do lado de cá, sempre foi um lamentável mal-entendido.

Precisamos de um novo pacto “pelo social”. Educar nossas crianças e adolescentes para um novo mundo, colocarmos a primeira infância como prioridade, fortalecer o nosso sistema de saúde, revisar o nosso sistema tributário que pesa desproporcionalmente sobre os mais pobres. Precisamos mudar a maneira com que nos inserimos no conjunto das nações, que nos relacionamos com o meio ambiente e com a finitude dos nossos recursos naturais, com a ciência, com o valor do diálogo para a reconstrução da confiança na política, com as periferias, com os povos indígenas e as comunidades tradicionais.

Precisamos, com urgência, realizar a transição para uma economia de baixo carbono, da qual depende a nossa sobrevivência como espécie, sem que os custos disso recaiam, novamente e como sempre, nos mais vulneráveis.

A crise da nossa democracia vai muito além da sua corrosão institucional e dos elementos eleitorais. É a desigualdade, além de marca constituidora do nosso povo, o que impede a sustentação e fragiliza a estabilidade da democracia inteira.

Como já dizia Caetano: “Gente é pra brilhar. Não pra morrer de fome”.

Como fabricar uma crise e ganhar muito dinheiro com ela, por Paulo Feldman.

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Conversa de banqueiro com presidente do BC indica quem serão os vencedores

Paulo Feldman Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas), foi diretor e presidente no Brasil de multinacionais como Microsoft, Ernst & Young e Sharp

Folha de São Paulo, 04/11/2021

Há três meses se discute o Orçamento do governo federal para 2022. Entre o R$ 1,7 trilhão que o governo terá para gastar já se incluiu de tudo, como por exemplo alguns bilhões para os deputados atenderem seus redutos eleitorais ou o aumento salarial dado aos militares. Até mesmo a quitação da dívida gigantesca com os precatórios foi facilmente absorvida.

No entanto, quando o governo apresentou o Auxílio Brasil, que acarretava gasto adicional de menos de 2,5% do total que terá em 2022, uma crise apareceu. O mercado mobilizou-se com veemência, assessores do ministro da Economia, Paulo Guedes, pediram demissão e a mídia não tem assunto mais importante nos últimos dias. Inúmeros editoriais foram publicados, expondo o desastre que seria o rompimento do teto. Até o ex-presidente Michel Temer (MDB), o inventor do teto, escreveu um artigo nesta Folha (“Teto é tudo”, 24/10) e mostrou-se apavorado com as consequências de se romper o limite da sua cria.

O que ninguém comentou é que, neste momento, 20 milhões de brasileiros não tem o que comer, e os R$ 400 que receberiam mensalmente talvez atenuassem sua fome. Na verdade, 55% da população vivem sob insegurança alimentar e não sabem se conseguirão comprar os mantimentos mínimos para sobreviver nos próximos dias. O fato é que agora temos que colocar quase R$ 6 para comprar um dólar e, dessa forma, a inflação virá com força nas próximas semanas. Isso sim será inevitável, pois quase tudo o que é produto industrial manufaturado é importado no nosso país. Lembrando que, no começo da pandemia, ficou evidente que nem máscaras já não sabíamos mais fabricar.

O mercado —leia-se a Faria Lima — argumenta que o risco Brasil subiu muito e não teremos mais investimentos vindos de fora. Pelo contrário: os investidores estrangeiros estão retirando seus dólares e, por isso, o preço da moeda sobe. Dizem também que sem os investimentos entraremos em recessão, e a previsão para 2022, de repente, caiu para um crescimento abaixo de zero.

Com inflação e mais recessão, chegaremos à chamada estagflação. Os grandes especialistas que trabalham na Faria Lima, com sua brilhante criatividade, não hesitam em recomendar: temos que subir as taxas de juros, e a Selic precisa ser superior a 10% ao ano. Provavelmente é isso que vai acontecer. Mas ouso perguntar: com a subida da taxa de juros, quem será o grande vencedor?

Sim, claro, esse mesmo mercado formado por bancos, rentistas e investidores que, felizmente para eles, estão fora da insegurança alimentar.

Aliás, recentemente vazou uma gravação para a imprensa e ficamos sabendo que o presidente de um dos maiores bancos brasileiros costuma conversar com o presidente do Banco Central para falar, entre outras coisas, de taxas de juros.

Deu para entender quem ganha com as crises fabricadas?

A Amazônia é a nossa salvação, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Sem mudar modelo de desenvolvimento e padrões destrutivos de uso da terra, o sofrimento humano e as perdas econômicas que vimos até aqui serão só o começo

Ilona Szabó de Carvalho Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 03/11/2021.

Você já parou para pensar que, da perspectiva climática, 2021 é provavelmente o melhor ano dos próximos cem? No Brasil e mundo afora, eventos climáticos extremos —como secas, ondas de calor, tempestades de poeira, degelos, inundações, entre outros, já são realidade. A má notícia é que, de acordo com os cientistas do clima, se não mudarmos o modelo de desenvolvimento baseado no uso de combustíveis fósseis e em padrões destrutivos de uso da terra, o sofrimento humano e as perdas econômicas que vimos até aqui são só o começo.

Desde domingo (31), líderes mundiais discutem como frear as mudanças climáticas na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – COP 26, em Glasgow, na Escócia. Nesse encontro, cada um dos países signatários da Convenção de 1992 e do Acordo de Paris de 2015 deve apresentar sua contribuição nacional para limitar o aumento da temperatura da terra em até 1,5° C acima do registrado antes da Revolução Industrial, e assim garantir a sobrevivência de nossa espécie.

Em suma, temos que aumentar a ambição para reduzir, até 2030, mais de 50% das emissões de gases do efeito estufa que causam esse aquecimento, e zerá-las até 2050. Para o Brasil, salvar a Amazônia —zerando o desmatamento—, é a única forma de cumprir os compromissos assumidos no Acordo de Paris e, por consequência, garantir o bem-estar das próximas gerações. E, por hora, as promessas feitas e os compromissos já firmados em Glasgow estão aquém das metas necessárias, ou ainda vagos demais.

A floresta amazônica —maior floresta tropical do planeta— abarca oito países sul-americanos e a Guiana Francesa, 20% da água fresca e cerca de 10% da biodiversidade. Temos a boa fortuna de abrigar a maior parte dessa inestimável riqueza em nosso território. Porém, quase 20% da floresta já foi destruída, o que faz com que a Amazônia esteja se aproximando de um ponto de inflexão que pode resultar em um processo de savanização irreversível.

Motivações econômicas advindas da especulação com terras que alimentam a grilagem e de uma crescente demanda nacional e global por carne bovina, soja, ouro e outras commodities, têm levado ao aumento desenfreado do desmatamento. Mas hoje não é necessário desmatar para produzir. Há tanto métodos de produção sustentáveis como áreas já desmatadas em quantidade suficiente para garantir a segurança alimentar do Brasil e de outras partes do mundo.

O que se observa é que parte importante dessas cadeias produtivas se alimentam de crimes ambientais, como o desmatamento e o garimpo ilegal, e a grilagem de terras. De acordo com o MapBiomas, quase a totalidade do desmatamento verificado na Amazônia e em outros biomas brasileiros em 2020 tem indício de ilegalidade.

Para além dos danos ao meio ambiente, em geral crimes ambientais também têm relação com outros crimes como tráfico de drogas, de armas e de pessoas e causam graves consequências sociais como corrupção, trabalho escravo e violência contra povos originários e defensores da floresta. Precisamos dar um basta e zerar o desmatamento já.

A boa notícia é que há um potencial extraordinário de riqueza na preservação da biodiversidade que a floresta oferece. E a melhor maneira de proteger esse recurso é estimular o surgimento de uma economia sustentável de base florestal que contemple a inclusão das populações originárias e os centros urbanos da Amazônia.

Zerar o desmatamento na Amazônia, e garantir a mudança de um modelo de desenvolvimento predatório para um regenerativo, dependerá dos esforços combinados dos governos subnacionais e federal, do setor privado, da sociedade civil e da cooperação regional e internacional. Mas, sobretudo, salvar a floresta passa pela genuína compreensão de que ela é a nossa única salvação.

Moratória para as dívidas das famílias, não para os precatórios, por Carlos Vainer.

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Credores privilegiados nunca deixam de receber a ‘bolsa banqueiro’

Folha de São Paulo, 03/11/2021

Carlos Vainer Professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ

Está nos dicionários: prorrogação, adiamento ou parcelamento de uma dívida se chama moratória, seja decretada unilateralmente ou de acordo entre credores e devedores. Logo, a PEC dos precatórios tem nome: moratória.

Esta moratória pública viria se juntar a uma infinidade de dívidas não honradas pelo Estado brasileiro —em primeiro lugar, a dívida social, que torna fictícios os direitos constitucionais à saúde, educação, assistência social, moradia, meio ambiente equilibrado; em segundo lugar, a dívida com as universidades, a ciência e a cultura. As moratórias dessas dívidas foram decretadas unilateralmente pelos governos.

O calote social tem valores incalculáveis, mas suas consequências são mensuráveis: avanço da miséria, 100 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, redução da expectativa de vida, recuo da vacinação infantil, degradação da escola pública…

O calote universitário, científico, tecnológico e cultural se expressa na degradação de nossos laboratórios e universidades, no sucateamento de nossos equipamentos culturais e na desmontagem de políticas de apoio aos agentes que promovem a cultura enquanto bem público.

Há, porém, uma dívida privilegiada, a única que os analistas designam pomposa e respeitosamente de dívida pública, sempre honrada de maneira escrupulosa: aquela de que são credores os detentores de Títulos do Tesouro. Apenas em 2020, o montante executado com os juros da dívida pública federal foi de R$ 347 bilhões (R$ 515 bilhões, segundo cálculos da Auditoria Cidadã da Dívida), quase 10% (ou mais) do dispêndio total da União (R$ 3,535 trilhões).

Comparados a estes valores, tanto os R$ 600 milhões surrupiados do CNPq quanto os R$ 90 bilhões dos precatórios são ninharia.

Quem são estes privilegiados credores que nunca deixam de receber? Mais de 50% são instituições financeiras, fundos de investimento e seguradoras; 25% são fundos de previdência e 12% são estrangeiros. É a “bolsa banqueiro”.

Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada pela Confederação Nacional do Comércio, informa o que acontece do outro lado da sociedade: em setembro de 2021, foi alcançado o recorde de famílias endividadas.

São hoje 74%. O número de famílias com pagamentos atrasados atingiu 25% do total. A situação é pior para as famílias mais pobres, com renda de até 10 salários mínimos: são 75% as endividadas e 28% as inadimplentes.

Enfrentando desemprego e subemprego, redução da renda e inflação crescente, muitas famílias comprometem 30% de tudo o que ganham com o pagamento de dívidas.

A decantada democratização dos cartões de crédito, do crédito ao consumidor e do crédito consignado mostra sua face perversa: a submissão de cidadãos e cidadãs a uma verdadeira escravidão por dívida, já que trabalham para pagar dívidas. E nem interessa aos credores que paguem a dívida, mas que se endividem e paguem os juros —pelo resto de suas vidas.

No momento em que a dupla. Guedes-Bolsonaro vai ao Congresso para validar a moratória dos precatórios, é chegada a hora de que este mesmo Congresso alivie a carga da dívida que submete dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras.

Uma medida bastante simples seria a moratória, pelo prazo de 24 meses, de todas as dívidas inferiores a R$ 50 mil e, no caso das dívidas contraídas para aquisição de imóvel, de todas aquelas inferiores a R$ 150 mil. Seria um ônus pequeno para aqueles rentistas que acumulam muitas dezenas de milhões de reais com juros da dívida pública. Por outro lado, teria impacto muito positivo sobre as condições de vida de milhões, e, como efeito derivado, provocaria aumento da demanda, favorecendo a retomada da economia produtiva em detrimento da economia dos rentistas financeiros. Nada mais justo.

Pandemia, Desigualdade e Concentração de Renda: Consideração sobre Brasil e o Mundo Contemporâneo

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O artigo foi escrito pelo professor Ary Ramos da Silva Júnior, em quatro mãos com a professora Deise Marques da Silva Ramos, foi escrito para o segundo volume do livro “Tecnologias Aplicadas ao Agronegócio” (no prelo), organizado pelos professores da Faculdade de Tecnologia de Rio Preto.

O abraço do dragão: As relações comerciais entre Brasil e China num ambiente de competição e interdependência na economia globalizada.

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O artigo foi escrito pelo economista e Professor Universitário Ary Ramos da Silva Júnior tem por objetivo analisar o crescimento do comércio internacional entre Brasil e China, num período de quarenta anos a China se transformou no grande parceiro comercial brasileiro, aumentando as exportações de produtos primários para o país asiático e aumentando a dependência das importações de produtos industrializados… Este artigo faz parte do livro “Tecnologia Aplicada ao Agronegócio – Volume I, Editora Virtual Books, 2020.

Globalização, Trabalho, Emprego e Tecnologia: As Transformações no mundo do Trabalho e os impactos sobre a sociedade contemporânea

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O Artigo do professor Ary Ramos da Silva Júnior, foi publicado a quatro mãos com a professor Amilton do Prado, em homenagem aos 50 anos do curso de Administração do Centro Universitário de Rio Preto (Unirp), na coletânea “Administração e Contemporaneidade: Desafios Atuais e Possibilidades Futuras”, Editora Virtual Books, 2021.

Identidade e Formação Profissional: Revisitando Competências Essenciais e o Currículo do Administrador.

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O Artigo do professor Ary Ramos da Silva Júnior, foi publicado a quatro mãos com a professora Rosa Maria Furlani, em homenagem aos 50 anos do curso de Administração do Centro Universitário de Rio Preto (Unirp), na coletânea “Administração e Contemporaneidade: Desafios Atuais e Possibilidades Futuras”, Editora Virtual Books, 2021.

‘Desenvolvimento’ predatório na Amazônia, por Márcia Castro.

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Historicamente, a região passou por ciclos econômicos de exploração de recursos

Marcia Castro Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 01/11/2021

A 26ª conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, COP26, acontece entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro. O Brasil, que criou um Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e Crescimento Verde dias antes do início da COP 26, participa do evento sem a presença do presidente Bolsonaro.

Apresentará a meta de reduzir emissões de gases poluentes em 37% até 2025, em 43% até 2030 e atingir neutralidade de carbono em 2050. A forma como essa meta será cumprida não foi detalhada. E defendê-la como crível na COP26 será impossível, tendo em vista o acelerado aumento nas taxas de desmatamento e emissão de gases poluentes.

Ou seja, a proposta a ser apresentada não condiz com ações e desempenhos recentes, nem tão pouco com o discurso de “passar a boiada”.

Esse cenário atual não é novo. É, de fato, uma continuidade de um modelo de desenvolvimento para a Amazônia, que se baseia na exploração de recursos naturais, sem levar em conta a população local, suas necessidades, sua cultura, seu conhecimento de como viver na floresta sem a destruir.

Historicamente, a Amazônia passou por ciclos econômicos de exploração de recursos. Dois ciclos da borracha foram importantes: entre 1879 e 1912, quando cerca de 120 mil nordestinos migraram para a Amazônia após a grande seca de 1877-79, e durante a Segunda Guerra Mundial, quando os “soldados da borracha” migraram para a Amazônia para trabalhar na extração da seringa.

Em ambos, as condições sanitárias não eram adequadas, e a assistência pós-ciclo praticamente inexistente.
Entretanto, um dos mais perversos ciclos econômicos ocorreu durante a ditadura militar. A linguagem da estratégia do governo deixava claro o objetivo de exploração de recursos naturais e o total descaso com a população local. Mensagens como “integrar para não entregar”, “terra sem homens para homens sem terra” e “chega de lendas, vamos faturar” surgem nessa época.

Esse modelo distorcido de desenvolvimento deixou um rastro de destruição ambiental, violação de direitos humanos, exploração ilegal em terras indígenas e áreas de reserva florestal, e aumento expressivo da transmissão de malária.

Além disso, a riqueza que saiu da Amazônia não beneficiou a população local, e a região concentra os piores índices nacionais de desigualdade de renda, de acesso a infraestrutura (água e esgoto), e de distribuição de serviços e recursos humanos de saúde, dentre outros.

A perpetuação de um modelo predatório de desenvolvimento cria profundas cicatrizes na estrutura social e ambiental da Amazônia. Acima de tudo, esse modelo ignora que a maior riqueza da Amazônia está na floresta preservada e nos conhecimentos locais.

A floresta preservada é fundamental para o equilíbrio climático, e a continuidade do desmatamento em larga escala pode reduzir as chuvas e resultar em condições de calor extremo no Brasil.

Já o conhecimento local é a chave de um desenvolvimento sustentável, e práticas locais de extração de recursos sem agressão a floresta que já existem precisam ser reconhecidas, apoiadas e expandidas, assim como novas práticas devem ser incentivadas.

A mudança desse modelo predatório requer comprometimento político com uma agenda ambiental construtiva e inclusiva; um comprometimento com a verdade, a ciência, a história, a cultura, e com o povo.

Se em 1992 o Brasil sediou a Rio 92 e assumiu um protagonismo internacional no debate ambiental, em 2021, lamentavelmente, o país chega desacreditado na COP 26.

Pátria (dif)amada Brasil.

O vírus capitalista do cansaço incessante, por Byung-Chul Han.

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Depressão e esgotamento, que transbordam na pandemia, são sintomas de profunda crise de liberdade. Encontros, que revigoram a vida, sucumbem. Descarnados, somos reduzidos a nós mesmos — bem ao gosto neoliberal

Byung-Chul Han – OUTRASPALAVRAS – 13/05/2021

A covid-19 é um espelho que reflete em nós as crises da nossa sociedade. Ela torna os sintomas patológicos — que já existiam antes da pandemia — mais visíveis. Um desses sintomas é o cansaço. Todos nós, de um jeito ou de outro, nos sentimos muito cansados. É um cansaço fundamental que nos acompanha o tempo todo e em todo lugar, como nossas próprias sombras. Durante a pandemia, temos nos sentido ainda mais cansados. A ociosidade, que o lockdown nos impõe, nos faz ficar mais cansados. Algumas pessoas afirmam que é possível descobrirmos a beleza do lazer, e que a vida pode desacelerar. Na verdade, o tempo durante a pandemia não é governado por lazer ou desaceleração, mas por cansaço e depressão.

Por que nos sentimos tão cansados? Hoje, o cansaço parece ser um fenômeno global. Dez anos atrás, publiquei um livro, A Sociedade do Cansaço, no qual eu descrevia o cansaço como uma doença que aflige a sociedade neoliberal das realizações. O cansaço que experimentamos durante a pandemia me fez pensar no assunto novamente. O trabalho, por mais difícil que seja, não provoca um cansaço fundamental. Podemos estar exaustos depois do trabalho, mas esse cansaço não é o mesmo que o cansaço fundamental. O trabalho, em determinado ponto, acaba. A compulsão de realização à qual nos sujeitamos vai para além desse ponto. Está conosco nas horas de lazer, nos atormenta até durante o sono e, muitas vezes, nos faz passar noites sem dormir. Não é possível recuperar-se da compulsão de realização. É essa pressão interna, especificamente, que nos cansa. Portanto, há uma diferença entre cansaço e exaustão. O tipo certo de exaustão pode até nos livrar do cansaço.

Distúrbios psicológicos como a depressão ou o esgotamento (burnout) são sintomas de uma profunda crise de liberdade. São um sinal patológico, e indicam que a liberdade de hoje muitas vezes acaba virando compulsão. Achamos que somos livres. Mas, na verdade, nós nos exploramos intensamente até colapsar. Nos realizamos e nos otimizamos até a morte. A lógica traiçoeira da conquista nos obriga a nos anteciparmos permanentemente. Sempre que conquistamos algo, na sequência, já queremos conquistar mais, ou seja, queremos estar mais uma vez à frente de nós mesmos. Mas, obviamente, é impossível você mesmo se ultrapassar. Essa lógica absurda acaba levando a um colapso. O sujeito realizador acredita que é livre, quando na verdade é um escravo. É um escravo absoluto na medida em que se explora voluntariamente, mesmo sem a presença de um senhor.

A sociedade neoliberal da realização torna essa exploração possível mesmo quando não há dominação. A sociedade disciplinar, com seus mandamentos e proibições, que Michel Foucault expôs em seu livro Vigiar e Punir, não descreve essa sociedade da realização atual. A sociedade da realização explora a própria liberdade. E a auto exploração é mais eficiente do que a exploração comandada por outros, porque ela anda de mãos dadas com um sentimento de liberdade. Kafka expressou com grande clareza o paradoxo da liberdade do escravo que acredita ser o senhor. Em um de seus aforismos, ele escreve: “O animal arranca o chicote de seu dono e se chicoteia para tornar-se seu próprio amo, sem saber que isso não passa de uma fantasia produzida por um novo nó na chicotada do amo”. Essa autoflagelação permanente nos deixa cansados e, em última análise, deprimidos. Em certo aspecto, o neoliberalismo se baseia na autoflagelação.

O mais sinistro sobre a covid-19 é que aqueles que pegam a doença sofrem exatamente de cansaço e esgotamento extremos. A doença parece simular um cansaço fundamental. E há cada vez mais relatos de pacientes que se recuperaram, mas que continuam sofrendo de sintomas graves a longo prazo, entre eles, a “síndrome da fadiga crônica”. Uma expressão que descreve isso muito bem é: “as baterias não carregam mais”. As pessoas afetadas não são mais capazes de trabalhar e ter algum desempenho. Elas precisam fazer um esforço até para servir-se de um copo d’água. Ao caminhar, precisam fazer paradas frequentes para recuperar o fôlego. Sentem-se mortos-vivos. Um paciente relata: “A sensação é como se você tivesse o celular com apenas 4% de bateria, e você realmente só tem esse 4% para o dia inteiro e não pode recarregá-lo”.

Mas o vírus não cansa apenas as pessoas que têm ou tiveram covid. Agora, ele gera cansaço até nas pessoas saudáveis. Em seu livro Pandemic! Covid-19 Shakes the World (“Pandemia! A covid-19 sacode o mundo”), Slavoj Žižek dedica um capítulo inteiro à pergunta: “Por que estamos cansados o tempo todo?” Claramente, Žižek também sente que a pandemia nos deixou cansados. Neste capítulo, o autor discorda da ideia do meu livro, A Sociedade do Cansaço, argumentando que a exploração por terceiros não foi substituída pela auto exploração, foi apenas transferida para países do Terceiro Mundo. Concordo com Žižek que esta transferência ocorreu. A Sociedade do Cansaço refere-se principalmente às sociedades neoliberais ocidentais e não à situação do operário chinês. Mas, com ajuda das mídias sociais, a forma de vida neoliberal também vem se expandindo pelo Terceiro Mundo. A ascensão do egoísmo, da atomização e do narcisismo na sociedade é um fenômeno global. As mídias sociais fazem de todos nós produtores, empreendedores cujas vidas são o negócio. Globalizam a cultura do ego que corrói a comunidade, corrói tudo o que é social. Nós nos produzimos e nos colocamos em exposição permanente. Essa autoprodução, essa contínua “exibição em vitrine” do ego, nos deixa cansados e deprimidos. Žižek não aborda este cansaço fundamental, que é característico dos nossos tempos e que foi agravado pela pandemia.

Žižek surge numa passagem de seu livro pandêmico para aquecer a tese da auto exploração, escrevendo: “Elas [pessoas que trabalham em casa] poderão ter ainda mais tempo para ‘explorar a nós mesmos’ [sic]”. Durante a pandemia, o campo de trabalho neoliberal ganhou um novo nome: home office. Trabalhar em casa é mais cansativo do que trabalhar no escritório.

No entanto, isso não pode ser explicado em termos de aumento da auto exploração. O que é cansativo é a solidão envolvida, o interminável sentar-se de pijama na frente do computador. Somos confrontados com nós mesmos, compelidos constantemente a meditar e especular sobre nós mesmos. Em conclusão, o cansaço fundamental é um tipo de cansaço do ego. O escritório doméstico intensifica isso, envolvendo-nos ainda mais profundamente conosco. Fazem falta outras pessoas, que poderiam distrair-nos do nosso ego. Cansamos por falta de contato social, de abraços, de toque corporal. Em condições de quarentena, começamos a perceber que talvez as outras pessoas não sejam o “inferno”, como escreveu Sartre em Sem Saída, mas a cura. O vírus também acelera o desaparecimento do outro, como descrevi em A Expulsão do Outro.

A ausência do ritual é outra razão para o cansaço induzido pelo home office. Em nome da flexibilidade, estamos perdendo as estruturas e arquiteturas temporais fixas que estabilizam e revigoram a vida. A ausência de ritmo, em particular, intensifica a depressão. O ritual gera comunidade mesmo sem necessidade de comunicação, enquanto que hoje prevalece a comunicação sem comunidade. Mesmo aqueles rituais que ainda mantínhamos, como jogos de futebol, shows e idas a restaurantes, ao teatro ou ao cinema, foram cancelados. Sem rituais de encontro ou comemoração, somos jogados às profundezas de nós mesmos. Ser capazes de cumprimentar pessoas cordialmente é que nos torna seres, e não um simples peso. O distanciamento social desmonta a vida social. Isso nos cansa. As outras pessoas são reduzidas a potenciais portadoras do vírus, das quais devemos manter uma distância física. O vírus amplifica nossas crises atuais. Está destruindo a comunidade, que já estava em crise. Isso afasta uns dos outros. Isso nos torna ainda mais solitários do que já éramos nesta era de mídia social que reduz o social e nos isola.

A cultura foi a primeira coisa a ser abandonada durante o lockdown. O que é a cultura? Ela gera comunidade! Sem ela, não passamos de animais apenas querendo sobreviver. Não é a economia, mas sobretudo a cultura, a chamada vida comunitária, que precisa se recuperar desta crise o mais rápido possível.

As constantes reuniões de Zoom também nos deixam cansados. Elas nos transformam em zumbis do Zoom. Nos obrigam a nos olharmos permanentemente no espelho. Olhar para o próprio rosto na tela é cansativo. Somos continuamente confrontados com nossos próprios rostos. Ironicamente, o vírus apareceu justamente nos tempos da selfie, moda que pode ser explicada como decorrente do narcisismo de nossa sociedade. O vírus intensifica esse narcisismo. Durante a pandemia, todos nós somos constantemente confrontados com nossos próprios rostos; produzimos uma espécie de selfie sem fim na frente de nossas telas. Isso nos cansa.

O narcisismo do Zoom produz efeitos colaterais peculiares. Ele levou a um boom nas cirurgias estéticas. Imagens distorcidas ou borradas na tela levam as pessoas ao desespero, enquanto se a resolução da tela for boa, de repente detectamos rugas, calvície, manchas hepáticas, bolsas nos olhos e outras imperfeições da pele pouco atraentes.

Desde o início da pandemia, as pesquisas no Google por cirurgia estética dispararam. Durante o bloqueio, os cirurgiões plásticos foram inundados com perguntas de clientes que buscavam melhorar sua aparência cansada. Fala-se até de uma “dismorfia do Zoom”. O espelho digital incentiva essa dismorfia (a preocupação exagerada com supostas falhas na aparência física). O vírus leva ao limite o frenesi de otimização, que já nos dominava antes da pandemia.

Também, aqui, o vírus é um espelho da nossa sociedade. E no caso da dismorfia do Zoom, o espelho é real! Cresce em nós o puro desespero com nossa aparência. A dismorfia do Zoom, essa preocupação patológica com nossos egos, também nos cansa.

A pandemia também revelou os efeitos colaterais negativos da digitalização. A comunicação digital é muito unilateral e atenuada: não há olhares, não há corpos. Falta a presença física do outro. A pandemia faz com que essa forma de comunicação, essencialmente desumana, se torne a norma. A comunicação digital nos deixa muito, muito cansados. É uma comunicação sem ressonância, uma comunicação sem felicidade. Em uma reunião do Zoom, não podemos, por razões técnicas, nos olhar nos olhos. Tudo o que fazemos é olhar para a tela. A ausência do olhar do outro nos cansa. Esperançosamente, a pandemia nos fará perceber que a presença física de outra pessoa é algo que traz felicidade, que a linguagem implica experiência física, que um diálogo bem-sucedido pressupõe corpos, que somos criaturas físicas. Os rituais que temos perdido durante a pandemia também implicam em experiência física. Eles representam formas de comunicação física que criam comunidade e, portanto, trazem felicidade. Acima de tudo, eles nos afastam de nossos egos. Na situação atual, o ritual seria um antídoto para o cansaço fundamental. O aspecto físico também é inerente à comunidade como tal. A digitalização enfraquece a coesão da comunidade na medida em que tem o efeito de desencarnar. O vírus nos afasta do corpo.

A obsessão com a saúde já era galopante antes da pandemia. Agora, estamos basicamente preocupados com a sobrevivência, como se estivéssemos em um estado de guerra permanente. Na batalha pela sobrevivência, a questão de uma vida boa não entra em jogo. Apelamos a todas as forças da vida, só para prolongar a vida a qualquer custo. Com a pandemia, esta batalha feroz pela sobrevivência sofre uma escalada viral. O vírus transforma o mundo em uma enfermaria de quarentena, na qual a vida é congelada para nossa sobrevivência.

Hoje, a saúde passou a ser o principal objetivo da humanidade. A sociedade de sobrevivência perdeu o sentido da boa vida. Até o prazer é sacrificado no altar da saúde, que se torna um fim em si. Nietzsche já a chamava de nova deusa. A proibição ao cigarro também expressa a mania pela sobrevivência. O prazer tem que dar lugar à sobrevivência. O prolongamento da vida torna-se o valor mais alto. No interesse da sobrevivência, sacrificamos voluntariamente tudo o que torna a vida digna de ser vivida.

A razão exige que, mesmo em pandemia, não sacrifiquemos todos os aspectos da vida. É tarefa da política garantir que a vida não se reduza a uma vida plana, nua e crua, à mera sobrevivência. Eu sou católico. Gosto de frequentar igrejas, especialmente nestes tempos estranhos. No ano passado, no Natal, participei de uma Missa do Galo que aconteceu apesar da pandemia. Isso me deixou feliz. Infelizmente, não havia incenso, coisa que eu amo muito. Eu me perguntei: será que há também uma proibição estrita dos incensos durante a pandemia? Por quê? Ao sair da igreja, estendi a mão para a bacia de água benta, como de costume, e tomei um susto ao perceber que ela estava vazia. Do lado dela, foi colocado um frasco de desinfetante.

Corona blues é o nome que os coreanos deram à depressão que se espalha durante a pandemia. Em quarentena e sem interação social, a depressão se aprofunda. A depressão é a verdadeira pandemia. A Sociedade do Cansaço partiu do seguinte diagnóstico:

Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão.

A depressão também é um sintoma da sociedade do burnout. O sujeito da realização sofre de burnout no momento em que ele não é mais capaz de “ser capaz”. Ele não consegue atender à sua demanda autoimposta para ser produtivo e realizar metas, propósitos. Não ser mais capaz de “ser capaz” leva à auto-recriminação destrutiva e à autoagressão.

O sujeito da realização trava uma guerra contra si mesmo e morre nela. A vitória nessa guerra contra si mesmo é chamada de esgotamento.

Vários milhares de pessoas cometem suicídio todos os anos na Coreia do Sul. A principal causa é a depressão. Em 2018, cerca de 700 crianças em idade escolar tentaram se suicidar. A mídia fala até em um “massacre silencioso”. Em contraste, até agora apenas 1.700 pessoas morreram de covid-19 na Coreia do Sul. A altíssima taxa de suicídio é simplesmente aceita como um efeito colateral da sociedade da realização. Nenhuma medida significativa foi adotada para reduzir essa taxa. A pandemia intensificou o problema do suicídio — na Coreia do Sul, a taxa de suicídio aumentou rapidamente desde seu início. O vírus, aparentemente, também agrava a depressão. Mas em todo o mundo não se presta atenção suficiente às consequências psicológicas da pandemia. As pessoas foram reduzidas à existência biológica. Todos ouvem apenas os virologistas, que assumiram autoridade absoluta na hora de interpretar a situação.

A maior crise causada pela pandemia é o fato de que a vida, sozinha, tenha virado um valor absoluto.

O vírus da covid-19 desgasta nossa sociedade já esgotada, aprofundando as linhas das falhas sociais patológicas.

Isso nos leva a um cansaço coletivo. O coronavírus também poderia ser chamado de vírus do cansaço. Mas o vírus também é uma crise no sentido grego de krisis, o que significa um ponto de inflexão. Pois também pode nos permitir reverter nosso destino e fugir de nossa angústia. Ela apela, com urgência: mude de vida! Mas só conseguiremos fazer isso se revisarmos radicalmente nossa sociedade, se conseguirmos encontrar uma nova forma de vida imune ao vírus do cansaço.