Bolsonaro, escute: não há frases como ‘quem manda aqui sou eu’ na democracia, por Luís F. Ponde.

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A gangue do presidente é boçal como um churrasco de varanda.

Folha de São Paulo/ 11.mai.2020

Se as Forças Armadas caíssem na tentação de apoiar o golpismo bolsonarista, embarcariam num dos seus priores momentos da história. Não teriam nem a desculpa da Guerra Fria dos anos 1960. Seria pura e simplesmente se transformar numa gangue de farda, como o Exército da Venezuela, que junto com Chávez e Maduro, transformaram a Venezuela num pária geopolítico, matando a esmo sua população.

Ao longo dos últimos anos, as Forças Armadas (que incluem Exército, Aeronáutica e Marinha) conseguiram um respeitável reconhecimento por parte da população, afastando-se do horror da ditadura.

Já a gangue de ethos miliciano dos Bolsonaros é candidata à lata de lixo da história. Traço dessa gangue é achar que governo (eleito) e Estado são a mesma coisa. E, no seu ethos de churrasco de varanda, Bolsonaro entende que ambos são dele.

Bolsonaro quer se passar por militar, mas não é. Sua participação no Exército foi medíocre e curta em comparação a sua vida no centrão. ​

Bolsonaro é uma criatura do pântano, o centrão no período da Revolução Francesa, local onde crescem serpentes venenosas.

Para a excelente formação dos generais brasileiros fica claro que a única coisa a fazer agora é apoiar as instituições da democracia e dizer um grande “não” a Bolsonaro e sua gangue, mostrando a esses ignorantes que na democracia não existe frases como “quem manda aqui sou eu”.

Não, o senhor não manda em nada aqui, senhor Bolsonaro. Quem manda são as instituições.

É bom explicar a esse equivocado e seus seguidores ignorantes que a democracia é um regime institucional cujo primeiro objetivo de todos é controlar o poder pelo próprio poder.

Esses ignorantes que portam a camisa da seleção brasileira para agredir a imprensa são a vergonha do país.

Enquanto esses idiotas berram frases a favor da ditadura, nós nos afogamos na pandemia.

Esses ignorantes não entendem patavina do que é que seja uma democracia.

Aliás, acho que o Ministério Público deveria processar a administração Bolsonaro e sua gangue por genocídio em massa de brasileiros. Seria de bom tom. Todo e qualquer esforço institucional para barrar essa nova gangue será bem-vindo.

Aqui vai um apelo às Forças Armadas: vocês estão tendo um momento histórico para mostrar que merecem a confiança depositada em vocês pela imensa maioria de gente decente que carrega o Brasil nas costas. Não deixem a delinquência falar mais alto. Apoiem o STF em suas decisões, o Legislativo em sua função, que assim como o STF, deve servir de contrapeso aos abusos do Executivo.

Um dos traços de profunda ignorância política é achar que alguém seja perfeito na representação do bem comum ou que alguma instituição seja plena em sua função.

Bolsonaro e seus idiotas se oferecem como salvadores da pátria. Ninguém ou nenhuma instituição merece confiança absoluta, por isso elas limitam umas as outras. Os idiotas da política não sabem disso.

Sob o olhar da filósofa Hannah Arendt (1905-1975), assistimos em cada fala de Bolsonaro e seus asseclas, à agonia da vida do espírito (a vida da inteligência, grosso modo) e ao risco da instalação de uma nova banalidade do mal: a banalidade do mal é a estupidez, a inapetência ao pensamento, a recusa de um entendimento da realidade, na sua complexidade e precariedade, e a empatia para com esta.

E como diria Lionel Trilling (1905-1975), crítico literário, nunca foi tão importante a obrigação de ser inteligente. Que a inteligência seja um antídoto à estupidez reinante. Que esmaguemos essa estupidez elevando o nível do debate.

A virtude política máxima agora é a vigília. A atenção diante do risco. Não vivemos um momento geopolítico dado a ditaduras, como na Guerra Fria, mas nem por isso podemos descartar o risco do oportunismo mau caráter dessa gangue.

O interesse individual e o bem comum, por Affonso Celso Pastore.

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Para um presidente populista de direita, um número enorme de mortes é apenas estatística.

O Estado de S. Paulo – 10 de maio de 2020

Em visita ao CDPP em 2018, o professor Robert Pindik do MIT deu uma palestra sobre o custo social do carbono. Emissões de carbono levam ao aquecimento global, e um aumento de 2 graus na temperatura do planeta acarreta custos gigantescos: regiões férteis tornam-se desertos e o aumento do nível do mar alaga cidades litorâneas.

A forma de evitar tal ocorrência é obrigar todos os países a cobrarem um imposto sobre as emissões. Por que tem de ser cobrado de todos os países? Se apenas um deles tributasse as indústrias que queimam carvão, cairia nesse país o retorno privado dos investimentos nos produtos que utilizam o carvão, as fábricas mudariam para outro país que não tributa as emissões, e a poluição mundial continuaria aumentando.

No primeiro capítulo do seu livro Economics for the Common Good, Jan Tirole, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2014, começa discutindo as relações entre a economia e a sociedade, entre o benefício privado e o “bem comum”, usando o exemplo do custo social do carbono. Seu tema é a diferença de motivação na busca do lucro privado e na busca do bem-estar de todos.

Nas decisões sobre políticas públicas esta última é que deve predominar, e além de considerar o efeito de externalidades, como ocorre nas emissões de carbono, é preciso entender a diferença entre retornos sociais e retornos privados. Os investimentos em saneamento básico – esgoto e tratamento da água – têm um retorno privado dado pela diferença entre os custos e as receitas cobradas de quem utiliza tais serviços, que é internalizado pela empresa que produz o serviço. Para chegar ao retorno social é preciso somar a ele os ganhos vindos da melhoria das condições de saúde. O interesse da empresa é maximizar o lucro privado, mas o interesse da sociedade é maximizar o bem-estar social, o que justifica a cobrança de um preço mais baixo por parte da empresa, com o governo cobrindo a diferença através de um subsídio.

Como avaliar o custo social do carbono? Como avaliar o benefício social de um investimento em saneamento básico? Os economistas dispõem dos modelos apropriados, mas para encaminhar a resposta tenho de voltar ao tema de meu último artigo discutindo o papel da taxa de desconto, cujo valor difere entre governos populistas e altruístas.

Governos populistas preferem ganhos imediatos de popularidade e, por isso, suas taxas de desconto são muito altas, o que reduz o valor presente dos benefícios auferidos por gerações futuras. Tais governos não se interessam por investimentos em saneamento, e esta é uma das razões pelo desprezo que o governo populista de Donald Trump tem sobre o custo social do carbono.

Tirole também argumenta que todos nós somos vítimas de falhas de percepção. Os empresários dão maior peso às condições que afetam o seu lucro, o que é importante, mas a maximização do lucro não pode ser o único critério utilizado nas decisões sobre políticas públicas. É compreensível que quem trabalhou por décadas a fio para construir uma empresa se revolte contra uma medida do governo que em uma pandemia impõe restrições que derrubam sua receita e colocam em risco a sobrevivência da empresa. Cabe ao governo deixar claro por que impôs aquela restrição, e garantir que na medida do possível compensará a empresa através de transferências de renda. A percepção de um empresário é obtida pela história de construção de sua empresa, enquanto a percepção do governo tem de ser motivada pela busca do bem comum que, neste caso, justifica a transferência.

Falando sobre percepções Tirole usa o exemplo da fotografia de Ailan Kurdy, um menino sírio de 4 anos encontrado morto em uma praia turca em 2015, que simboliza a tragédia dos que migram para a Europa em condições precárias. O impacto da foto excedeu o da informação sobre as centenas de mortes na travessia do Mediterrâneo. Cita uma frase atribuída a Stalin: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de 100 mil pessoas é uma estatística”. Stalin nunca se preocupou com as mortes dos prisioneiros nos Gulags. Ao insistir em sua campanha contra o isolamento social, Bolsonaro revela desprezo pelo número de mortes, atuando para que tudo volte ao normal, ignorando a pandemia. Sem surpresas. Afinal, para um ditador comunista e para um presidente populista de direita, que não respeita as instituições e os valores democráticos, um número enorme de mortes é apenas uma estatística.

‘Ajuda estatal não pode criar parasitas’ segundo Mariana Mazzucato.

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Para ela, governos precisam criar critérios e contrapartidas antes de socorrer empresas, o que não foi feito em 2008

Entrevista com Mariana Mazzucato, economista

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo 

04 de maio de 2020

Fundadora e diretora do Instituto de Inovação e Finalidade Pública da University College London, a economista Mariana Mazzucato está trabalhando no projeto para reconstruir a Itália após a pandemia da covid-19, em um comitê criado pelo primeiro-ministro, Giuseppe Conte, e comandado pelo ex-diretor executivo da Vodafone Vittorio Colao. Nesse projeto, deve focar no desenvolvimento de condicionalidades para empresas que o governo deverá socorrer, assunto que já vinha estudando.

“A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita”. Segundo Mariana, a pandemia expôs fraquezas do capitalismo e, agora, há uma oportunidade para corrigi-las.

Em artigos recentes, a sra. afirmou que a crise expôs problemas do capitalismo, como o trabalho precário. Como resolvê-los?

A crise expõe uma fraqueza no modo que organizamos o sistema capitalista. Há modos diferentes para organizá-lo. Agora, as empresas estão pedindo ajuda dos governos. Então é também o momento para criar parcerias público-privadas simbióticas, cooperações reais, o que chamo de ‘stakeholder’ (parte interessada), e não ‘shareholder’ (acionista). Há uma oportunidade de repensar o papel do governo e de como podemos trabalhar juntos (setores público e privado) para resolver grandes problemas. Hoje, tendemos a socializar o risco e privatizar a recompensa. Podemos criar estratégias que admitam que valor e riqueza são criados coletivamente.

Na crise de 2008, empresas também pediram socorro e, depois, não houve grandes mudanças na relação público-privada. Como isso pode mudar agora?

Não será diferente se não fizermos o que estou falando. Em 2008, os governos encheram o sistema com liquidez. O Goldman Sachs foi resgatado pelo contribuinte americano, mas não houve condicionalidades. Esta é uma oportunidade para redesenhar contratos. É preciso financiar capacidade produtiva, inovações sociais e soluções para problemas, sejam eles de energia ou de desigualdade. É para isso que o dinheiro público deve servir. As empresas aéreas, você pode resgatá-las, mas precisa condicionar isso à redução de emissão de carbono, por exemplo.

A sra. vê algum governo pensando nessa reestruturação?

Na Dinamarca, o governo decidiu não ajudar empresas que usam paraísos fiscais. É assim que os governos devem operar. Por outro lado, deve-se recompensar e ajudar os negócios bons. Escrevi um livro que chama O Estado Empreendedor. Esse Estado não é apenas um que gasta e investe, é também um que sabe negociar. Qualquer capitalista ou empreendedor vai negociar e estabelecer essa relação de recompensa de risco. A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita.

Vários governos estão investindo em pesquisas para uma vacina contra o coronavírus. Esse trabalho com o setor privado está sendo desenvolvido de modo mais simbiótico?

Não. Não há garantias de que esses investimentos públicos para vacinas estejam sendo estruturados de modo que elas sejam acessíveis e gratuitas.

Após essa crise, os Estados continuarão tendo uma participação maior na economia?

Talvez, daqui a um ano, digam que precisamos apertar os cintos. Aí teremos mais dez anos de austeridade. Esse seria o maior erro, porque hoje os sistemas de saúde estão de joelhos, em parte, devido a cortes nos orçamentos. Outra coisa é que sempre dizem que não há dinheiro, mas, quando vamos para a guerra, ninguém diz: ‘não tem dinheiro’. Precisamos ver as crises do clima e da desigualdade com a mesma urgência que vemos um cenário de guerra. Você pode causar inflação se criar dinheiro e não expandir a capacidade produtiva necessária para crescer. Mas precisamos perceber que podemos criar dinheiro para fazer qualquer coisa se fizermos isso de modo estratégico.

Um país endividado como o Brasil também deve imprimir dinheiro para investir?

O problema nunca é a dívida, é o que acontece no país. Na Itália, antes da covid, tínhamos um déficit baixo, mas uma alta relação dívida/PIB. O motivo é que o PIB não cresce a uma boa taxa há 20 anos, porque o crescimento da produtividade é zero. Setores público e privado não investem bem. Se você tiver investimento público, mas não investir nas coisas certas – educação, saúde e pesquisa –, não vai crescer. Aí, mesmo se o déficit for baixo, a relação dívida/PIB se deteriora. A lição para o Brasil é que o País deve perguntar que tipo de crescimento quer. Se quer um crescimento conduzido pelo investimento, precisa investir em áreas importantes, em economia verde, por exemplo. O papel do governo não deve ser simplesmente aumentar os lucros da indústria, dando incentivo fiscal. Deve desenhar políticas que catalisem novos investimentos no setor privado.

Como a sra. vê o Brasil hoje?

A situação do Brasil é trágica, como a dos EUA. O País tem grandes desafios sociais e econômicos e um presidente que talvez esteja mais interessado em seu pequeno círculo. Se falta liderança preocupada com o bem comum em um país, o que acho que é o caso do Brasil, e há (na presidência) alguém que nega a ciência – quando a ciência está no centro da crise na saúde –, você vai ter um grande problema.

O que o comitê de reconstrução da Itália está fazendo e qual seu papel nele?

Acabamos de terminar a primeira fase, de estabelecer critérios para reabrir a economia. Muito disso vem da OMC, mas adaptamos para questões específicas da Itália. Comecei a trabalhar na questão de condicionalidades: como trazer objetivos ambiciosos à mesa agora que os setores estão recebendo ajuda do governo e como usar isso para que a Itália não volte ao seu normal, que é o de uma economia estagnada, com alta taxa de desemprego entre jovens e de diferenças regionais gigantes. A ideia é usar esse momento para conduzir investimentos para a inovação.

Flexibilizar o teto, já. Por Monica De Bolle.

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A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

O Estado de S. Paulo/29 de abril de 2020.

Na semana passada, o governo apresentou o plano Pró-Brasil. Tratava-se do anúncio de uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura para o País. O plano foi duramente criticado por razões acertadas e outras não tão acertadas assim. Entre as justificadas críticas estava o fato de o plano consistir em não mais do que meia dúzia de slides sem qualquer detalhamento sobre as áreas prioritárias para obras públicas. Foi citada a cifra de R$ 30 bilhões em investimentos públicos, que muitos sabemos ser insuficiente para cobrir as inúmeras carências e os variados gargalos do Brasil. Mesmo assim, houve quem tenha resolvido chamar o plano de Segundo PND de Bolsonaro, ou de PAC do seu governo, numa clara tentativa de demonizar o investimento público.

O anúncio deu margem a respostas histriônicas da equipe econômica, verdadeiros chiliques, por exemplo quando alguns de seus membros disseram à jornalista Miriam Leitão que o plano era uma ameaça ao teto de gastos e que, fosse o teto flexibilizado, muitos deixariam o governo. Talvez seja a hora mesmo de buscarem a porta de saída. Afinal, a responsabilidade desses indivíduos deveria ser com o País, e não com uma medida que sofre de diversas falhas desde seu desenho original.

Em 2016, quando se iniciou a discussão sobre o teto, fui favorável à ideia, mas não ao desenho. Nesse espaço e em outros veículos discuti por que a formulação do teto brasileiro estava em completo desalinho com a boa prática internacional e afirmei que mais cedo ou mais tarde pagaríamos por isso. Minha visão à época, como agora, era a de que o teto era excessivamente rígido, não permitindo ao governo qualquer margem de manobra para a adoção de medidas contracíclicas, quando necessárias. Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de 1% ao ano. Há quem argumente que a sua adoção acabou retirando financiamento do SUS, na contramão do que se falava em 2016. No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes sobre o qual tenho falado.

No início de março, após a epidemia ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e começar a derrubar mercados e economias, disse em entrevista à Globonews que o teto precisaria ser flexibilizado para acomodar o investimento público, fundamental não para o enfrentamento da crise de saúde pública, mas para o que dela sobreviria. Alguns reputaram estapafúrdia a ideia, embora naquele momento eu já enxergasse não apenas o drama que hoje atravessamos, como também a crise crônica que haverá de seguir à atual, mais aguda. Mas, para além disso, a inclusão do investimento público no teto de gastos é anacrônica do ponto da vista da experiência internacional. Estudo publicado pelo FMI em 2015 mostra que há alguma variância entre os diferentes tipos de tetos de gastos, mas todos tendem a excluir o investimento público e/ou ter cláusulas de escape para a adoção de medidas econômicas, quando necessárias.

Queiram os técnicos do governo ou não, o teto é profundamente inadequado tanto para a fase aguda da crise de saúde e da crise econômica quanto para a fase crônica que lhe seguirá. Teremos de continuar a conviver com o vírus, e, por essa razão, tenho insistido que a recuperação será volátil e lenta. Assim seria mesmo que não tivéssemos acrescentado aos nossos problemas a atual crise política e institucional com a saída de Sergio Moro. Dada a conjunção de crises e a dinâmica da economia brasileira, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado não retornará tão cedo em situação de volatilidade. Para tanto é preciso pensar simultaneamente em três linhas de frente: as prioridades para o investimento; o detalhamento dos projetos, para que não tenhamos os fracassos vistos em governos anteriores; e a necessária flexibilização do teto. A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Estado forte, por Delfim Netto

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Economia de mercado separou os homens em duas classes

A economia política é um conhecimento que desde tempos imemoriais acumula observações para tentar entender os estímulos que levam os homens a se comportarem na sua atividade diária e como organizam a divisão do trabalho para produzir, no território que ocupam (como “seu”!), a sua subsistência material, ou seja, o total de bens e serviços produzidos coletivamente e quanto cada um receberá como “quota” pela sua cooperação no que foi produzido.

Nela, os problemas são sempre os mesmos: 1º) o que e como produzir, que depende das necessidades da sociedade e das “técnicas” para atendê-las, e 2º) como se distribuirá o produzido, se pela força de uma autoridade ou pelo consenso obtido numa negociação política. O que muda são as tentativas de resolvê-los.

Ao longo de sua história, o homem vivenciou múltiplas alternativas organizacionais, num processo de seleção quase biológico para encontrar qual lhe daria maior “liberdade” junto com maior “segurança”. Foi assim que chegou à concepção de um Estado forte, controlado por uma Constituição consensualmente construída que imponha —pela Lei— uma estrutura de poder republicano e garanta o Estado democrático de Direito, como já temos no Brasil.

Dito isso, é preciso lembrar que o que chamamos de “economia de mercado” foi descoberto (não inventado) pelos economistas nas feiras da antiguidade quando o poder local lhes dava proteção e garantia a propriedade privada. Talvez a contribuição mais importante dos economistas à civilização tenha sido dar àquele instrumento – o mercado — cada vez mais eficiência no uso dos fatores de produção disponíveis, mas sempre escassos para atender à demanda de todos.

O custo disso foi a separação dos homens em duas classes: a dos que comandam o processo (os que detêm o capital) e a dos que não têm outra alternativa a não ser servi-los, o que gera uma disparidade de poder insuportável.

Desde a autópsia de Marx (e da contribuição de Stuart Mill, o liberal), ficou claro que a “economia de mercado” tem três graves problemas: 1º) é incapaz de eliminar a pobreza dos menos favorecidos pela sorte; 2º) produz imensas desigualdades de renda, que são corrosivas para a coesão social, além de criar dúvidas sobre o processo democrático; 3º) as flutuações que lhe são ínsitas e promovem a “insegurança” dos trabalhadores pela variação do emprego, que inspirou as políticas keynesianas, vítimas, como Marx, de “vulgatas” da economia de “cordel”.

Foram esses fatos que levaram à necessidade de um Estado forte, que, nas crises agudas, se transforma, provisoriamente, no “garante” de última instância de nossa “segurança”.

‘O trauma da pandemia não vai nos redimir’, diz filósofo Mario Sergio Cortella.

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Para o filósofo, educador e escritor best-seller, apesar de coronavírus gerar temor coletivo comparável ao das bombas atômicas, muitos só vão querer voltar à vida normal

Jairo Marques

SÃO PAULO

Completando 45 dias de isolamento social nesta segunda-feira (27), o filósofo, escritor e educador Mario Sergio Cortella, 66, afirma não ter grandes desafios pessoais a serem enfrentados com a quarentena. Isso porque ele, na juventude, passou cerca de três anos enclausurado: pertencia à ordem católica dos carmelitas descalços.

Um dos palestrantes mais disputados do Brasil na atualidade, Cortella, que lançou recentemente, em coautoria com o historiador Leandro Karnal, o profético —estava pronto desde o ano passado— “Viver, a que se Destina?” (Papirus 7 Mares, R$ 39,90, 128 págs.) está se dedicando agora à releitura de “Criação”, de Gore Vidal, e “O Físico”, de Noah Gordon.

“Temos vivido tempos de silêncios internos. Quando me vem algum, recorro ao meu inventário de memórias construídas ao longo da vida para pensar sobre os passos que dei, que dou e que darei. Cada um de nós precisa buscar maneiras de não deixar um oco dentro de si neste momento, para evitar que a situação, que é difícil, se torne assustadora”, diz.

Cortella, autor de cerca de 40 obras e conhecido por arrastar uma multidão de fãs com suas falas relativas à valorização da vida, das diferenças humanas e de preceitos éticos, não é um entusiasta da ideia de que as pessoas serão transformadas positivamente após o fim da pandemia.

“Não creio numa redenção. Creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas, quando se olha a humanidade, ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, vai nos redimir.”

Há amigos, parentes, gente próxima morrendo com a Covid-19. Como lidar com o medo de a fatalidade chegar cada vez mais perto de casa?

A natureza colocou em nós dois mecanismos de proteção: medo e dor. Quando perdemos qualquer um dos dois, ficamos num estado de vulnerabilidade muito extenso. O risco maior, neste momento, é não ter medo de nada, porque isso nos deixaria desatentos. À nossa volta estão rondando coisas com um nível de fatalidade e de desconhecimento que não pode ser desprezível. O maior perigo hoje é achar que não há perigo.

Um ser que, do ponto de vista da ciência, é chamado de não vivo, um vírus, ainda assim, consegue nos produzir um dano fortíssimo. Ele se aproxima da ideia, um pouco infantil, do medo de fantasma: aquilo que a gente não vê, mas nos ameaça.

Como lidar com a angústia da incerteza? Não se sabe se o confinamento vai durar mais algumas semanas ou se estenderá por anos, por exemplo.

Fomos desentronizados como humanidade, especialmente as camadas mais intelectualizadas, mais escolarizadas, mais marcadas por algum tipo de poder político ou econômico. Desabamos do pedestal no qual nos houvéramos colocado. Imaginávamos que, com o triunfo, no final do século 19, da ciência nas formas de progresso, que começou a se expandir, chegando ao final do século 20 com o mundo cheio de invenções e tecnologias inéditas, com novas formas de contato e comunicação, estávamos no controle.

Bastaram duas décadas do século 21 para que entrássemos num estado de entorpecimento e surpresa, provavelmente com nossa petulância anterior, de supormos que o triunfo de Prometeu —da mitologia grega— estava colocado em campo, que a racionalidade nos garantiria uma visão nítida dos próximos passos da vida.

De repente, chega uma circunstância inédita, em relação a seu modo de ação, sem indicativo de solução rápida em um mundo de instantaneidade e simultaneidade. Estamos habituados hoje a satisfazer nossos desejos de maneira quase imediata. Estamos surpresos agora com esse retardo das soluções. O tempo todo aguardamos o passo imediato da cura, da vacina, da saída, do pico da doença, como num passe de mágica.

Informações científicas nunca circularam com tanta rapidez e para um público tão amplo. Mas isso também gera insegurança. Ora aparece um medicamento salvador, ora se divulga que não há certeza sobre a imunidade contra o vírus. O que pensar?

A ciência não é infalível, mas é menos falível que a não ciência. Ninguém pode colocar na ciência uma fé inabalável. Ela também se equivoca, tem seus descaminhos históricos, mas eles são menores que seus acertos e sua capacidade de nos orientar. O esforço coletivo hoje, no campo científico, em todo o planeta, para encontrar uma solução que preserve a vida humana é inédito.

Temos dois momentos históricos de um grande temor da morte coletiva —desconsiderando as grandes pestes, que foram mais localizadas. A explosão das bombas nucleares, que trouxeram para nós um pensamento muito concreto de fim da humanidade, é o primeiro. O segundo é este que estamos vivendo, da pandemia do coronavírus, que, 75 anos depois, nos coloca em alerta máximo novamente.

O mundo do ataque nuclear, da Guerra Fria, que poderia acabar com a vida na Terra, era um efeito da ação da ciência. Agora, estamos lidando com o inverso, a ciência unida para enfrentar aquilo que não foi criado por nós, que não está sob o nosso controle, tentando nos salvar.

Como a ética e a filosofia abraçariam os profissionais essenciais que vivem o conflito de servir ao público nesta batalha e, ao mesmo tempo, têm de proteger a si mesmos e a suas famílias?

Pessoas diferentes fazem arranjos diferentes para o que entendem como seu propósito de vida, para que possam ir adiante. Não me estranha que alguém que esteja na linha de frente dessa batalha tema contaminar os seus e recue. E recuar não significa fugir. Às vezes, é uma proteção diante de uma outra condição.

Por outro lado, há os trabalhadores essenciais que reorganizaram a própria vida para cuidar dos outros, para darem conta de seus serviços que entendem como fundamentais. E muitos fazem isso sem se achar heróis, mesmo uma grande parte de nós não tendo o mesmo desprendimento.

Falar sobre isso sem estar diretamente envolvido na questão é sempre mais fácil. Mas não tenho dúvidas de que, se um dos meus ficar doente, se alguém do meu círculo de amizades precisar de mim para cuidar dele, eu o farei, mesmo sabendo que há risco. Tomarei todos os cuidados, mas o farei, porque eu ficaria envergonhado se, de alguma maneira, me acovardasse diante daquilo que, podendo fazer, não fiz. Mas insisto que não é um juízo moral imaginar que quem teme recue porque quer preservar a si ou a outros.

A questão ética é entre o poder e o dever. Aquele que deve, pode e não faz furta-se à tarefa que tem. O que deve, mas não pode, tem uma diminuição do conflito ético. Aquele que pode, mas não deve, está fazendo a escolha em ser contributivo.

A Covid-19 impõe o isolamento do paciente no hospital, que é apartado de todo tipo de contato com familiares. Dá para alentar quem está na solidão?

Tenho visto muita gente tentando romper a ausência de pontes, buscando conexão com quem precisa. Quando Guimarães Rosa criou o título “Grande Sertão: Veredas”, ele acertou em cheio a ideia de que a vida é grande sertão e nele a sua percepção é de abandono, que você está sozinho, mas também há veredas. Muita gente, pelo mundo afora, está se colocando como vereda de outras pessoas, mesmo que de forma limitada.

As ameaças do vírus também estão fazendo com que corpos sejam enterrados quase sem despedidas da família, sem cerimônias. Qual a consequência disso?

É uma situação inédita para uma geração que nasceu depois de 1945 e não viveu em realidades de guerras, em que não há tempo de enlutar. Ainda não tivemos tempo de avaliar o impacto que essa condição atual irá ter, até porque estamos tendo de lidar também com a sobrevivência.

Nossas grandes marcas de humanidade, quase sempre, estão ligadas a rituais que nos conectam com nossos mortos, sinais de túmulos, de fogueiras, de cinzas, paredes gravadas.

As cerimônias, como os velórios e sepultamentos, são para nos confortar, para ganharmos força. Neste momento, muita gente está tendo de encontrar força sozinho. É muito mais doloroso, não há nem o tempo de se dar conta da perda. Infelizmente, acho que o impacto dessas perdas não compartilhadas será conhecido dentro de alguns meses.

Muita gente tem dito que todos sairemos dessa pandemia transformados em algum sentido. Você crê nisso? O efeito pode ser coletivo?

Não creio nisso. Não acho que a humanidade irá se converter à solidariedade. Este tipo de perspectiva é muito mais marcada por um desejo de que isso tenha seu lugar no mundo. Também não acho que ficaremos do mesmo modo, que olharemos as coisas da mesma forma.

Foi impactante ver as pessoas transformarem algo que deveria ser comum, como o pôr do sol espetáculo que tivemos em São Paulo na terça-feira (14), que foi até manchete de jornal, em um momento de alegria, de satisfação.

Mas acontece que, quando vemos o arco-íris muitas vezes seguidas, ele vai deixando de ser deslumbrante para ser comum. O olhar habitual sobre as coisas nos amortece um pouco. Não há dúvida de que, quando essa penumbra se dissipar, não vamos olhar do mesmo modo algumas coisas, mas não será um modo inédito de olhar.

Não creio numa redenção, creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas, quando se olha a humanidade ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, nos redime. As lições são aprendidas por uma parte, mas há uma outra parte que só quer voltar ao normal.

Antes da pandemia, o Brasil estava em uma polarização profunda na política, nas relações sociais. A crise pode restabelecer laços?

A crise, que deixou a vida em geral entre parênteses e nos deixou perplexos com a nossa tibieza de reação e nossa indigência de proposição, pode reduzir um pouco a extensão e frequência das polarizações, mas não as inserirá em trilhas de convergência, dada a agudização que tiveram na retórica furiosa sobre responsabilidades e alternativas durante a própria crise. Contudo as urgências para a regeneração das estruturas e fundamentos da sobrevivência econômica nos deixarão tão atarefados que pode ser que várias das contendas inúteis sejam colocadas como aquilo que são: inúteis.

 

Corremos o risco de repetir o erro de 2008, diz economista eleito um dos grandes pensadores.

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Mohamed El-Erian afirma que coordenação contra o vírus está menor do que na crise financeira global

19.abr.2020 –Folha de São Paulo

O maior risco econômico atual não é a recessão que será causada pela pandemia da Covid-19, mas a repetição de antigos erros na coordenação de políticas globais, que podem evitar uma retomada inclusiva do crescimento após a crise.

A opinião é de uma das vozes mais respeitadas do mercado financeiro global, a de Mohamed El-Erian, conselheiro econômico-chefe da seguradora Allianz e presidente da Queens College, uma das faculdades da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

“Até agora, o nível de coordenação das políticas tem sido menor do que vimos em 2008 e 2009 [na crise financeira global]”, diz El-Erian.
“Várias políticas, em alguns países, têm sido, explicitamente, inclinadas contra o resto do mundo”, afirma ele.

A falha dos formadores de políticas públicas em dar uma resposta conjunta às consequências da crise de saúde, diz, tende a exacerbar o sentimento antiglobalização, que já vinha aumentando nos últimos anos.

“Isso nos leva à possibilidade desconfortável de que terminemos repetindo o grande erro de 2008/2009. Ou seja, ganharmos a guerra contra a depressão global, mas falharmos em garantir um ritmo de crescimento rápido, inclusivo e sustentável.”

El-Erian concordou em falar com a reportagem da Folha na semana passada, desde que fosse por email, pois se descreveu “inundado de trabalho” nestes dias.

Antes de assumir o cargo na Allianz, ele foi presidente-executivo da Pimco, uma das maiores empresas de gestão de investimentos do mundo, com foco, principalmente, em mercados emergentes.

O economista liderou também o Conselho de Desenvolvimento Global do ex-presidente americano Barack Obama. Além disso, foi eleito pela revista Foreign Policy um dos grandes pensadores do mundo por quatro anos seguidos, entre 2009 e 2012.

Há algumas semanas, o sr. mostrou preocupação com a falta de coordenação de políticas globais para combater os efeitos desta pandemia. Isso melhorou? 
Infelizmente, não o suficiente, e isso é um problema real. Ninguém pode negar que esta é uma crise global que requer uma resposta globalmente coordenada.

Também está se tornando claro que o mundo está enfrentando um golpe econômico maior do que o da crise financeira global. Ainda assim, pelo menos até agora, o nível de coordenação das políticas tem sido menor do que vimos em 2008 e 2009. Além disso, várias políticas, em alguns países individuais, têm sido muito voltadas para dentro e, explicitamente, inclinadas contra o resto do mundo.

De forma mais geral, em termos das interações econômicas globais e da coordenação de políticas, esse é o terceiro golpe a todo o conceito de globalização. Os outros dois foram a forte reação contrária à globalização devido à marginalização de segmentos da população e a guerra comercial. Em cima deles, esse terceiro golpe pode alimentar um processo de “desglobalização” ao longo de muitos anos.

Tudo isso nos leva à possibilidade desconfortável de que terminemos repetindo o grande erro de 2008/2009. Ou seja, ganharmos a guerra contra a depressão global, mas falharmos em garantir um ritmo de crescimento rápido, inclusivo e sustentável.

Países com restrições fiscais e dívidas elevadas sofrem mais em recessões globais. Isso voltará a ocorrer? 

Infelizmente, sim. Esses dois problemas limitam a capacidade dos governos de conter a dor e o sofrimento reais ligados à economia por causa do confinamento.

Que países estão condenados a sofrer mais e que problemas deverão enfrentar? 
Aqueles com flexibilidade fiscal e monetária limitados, baixas reservas internacionais, alto endividamento, dinâmica de crescimento pobre, grandes descasamentos de moedas e muita dívida de curto prazo.

E estou me referindo apenas aos problemas econômicos e financeiros, deixando de fora questões políticas, institucionais e sociais. Se não forem ajudados por apoio estrangeiro por meio de concessões grandes e rápidas, esses países enfrentam um risco alto de uma “trifecta” [situação em que um apostador acerta a ordem dos três primeiros ganhadores em uma corrida] envolvendo uma crise de saúde, um colapso econômico e disrupções financeiras.

É possível que haja um aumento de calotes de dívidas soberanas e financeiras? 
Sim, por esses motivos que já citei. Muito dependerá da vontade dos credores de conceder alívio às dívidas e aumentar os financiamentos concessionais. Infelizmente, não podemos esperar que os fluxos de investimento financeiro direto aumentem no curto prazo.

Como o sr. vê a situação econômica do Brasil, que já não era boa, no contexto desta pandemia? 

Como todos os países, o Brasil enfrenta o risco de sair desta crise com alto endividamento, menos reserva monetária e um golpe em sua produtividade. É crucial para todos os países ter isso em mente e centrar seu radar na tela de políticas para conter o estrago às suas perspectivas de crescimento.

Líderes têm reagido de formas diferentes à pandemia. Alguns aderiram rapidamente ao isolamento social severo. Outros, como o presidente Jair Bolsonaro, minimizam os riscos de saúde, preferindo isolamentos menos radicais. O mercado deve reagir de forma distinta a essas posições diversas? 

As circunstâncias dos países variam, assim como variam seus julgamentos em relação ao balanço entre os riscos de saúde e os riscos econômicos. Isso é conhecido no mercado como o balanço entre vida e subsistência.

O atual impacto generalizado nos mercados vindo do que os economistas chamam de “fator global comum” tende a abrir lugar para mais diferenciações dos países ao longo do tempo.

Depois desta crise, muitos países estarão em uma situação fiscal muito pior. Como os mercados devem digerir isso? 
​É difícil generalizar, já que muito dependerá da capacidade e do desejo de cada país tanto de sustentar altos pagamentos de dívidas como de reduzir seu elevado endividamento

A educação de elite, a educação sucateada e o fosso social no Brasil, por Dora Incontri.

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Essa semana saiu a notícia de uma escola no Rio, para a elite da elite – 3.800,00 reais por mês – inspirada nos badalados métodos de educação da Finlândia. O principal acionista da escola é Paulo Lemann, dono do Burger King.

Dora Incontri

Para quem milita por uma educação de qualidade e inovadora para todos os brasileiros e brasileiras, essa notícia tem um sabor amargo, num momento em que a escola pública está sofrendo o seu último desmonte. Fechamento de escolas em Estados e municípios, anúncios de terceirização da educação em escolas estaduais, bloqueio federal de investimentos na Saúde e Educação por 20 anos, mexida reducionista e autoritária no currículo, extirpando-se ou diminuindo-se significativamente as matérias que ensinam a pensar e a entender o mundo, como História, Geografia, Filosofia e Sociologia… – são alguns dos retrocessos lamentáveis do momento em que vivemos no Brasil. Retrocessos acompanhados de outros, referentes aos direitos da classe trabalhadora. Ou seja, é o avanço para o achatamento cultural da população e da sua escravização no trabalho. Tudo combinando: menos escola, menos matérias que ensinam a pensar, menos ou quase nenhum direito no trabalho. Os poderes econômicos nacionais e internacionais querem todos escravos, ignorantes e submissos.

Mas a elite… a elite tem colégios como esses do Rio, como tantos em SP, alguns onde se aprende até mandarim (talvez já se pensando na aliança com o próximo Império, quando o Império americano ruir, afinal as elites sempre fazem alianças vantajosas para si com os que dominam o mundo e traem a população de seu pais – lembremos por exemplo de Herodes, aliado dos romanos dominadores, para recuarmos na história antiga). Mas esses, cujos filhos estudam até mandarim, pagam o preço de uma faculdade para crianças em pré-escola.

Elite muitíssimo instruída, plugada internacionalmente e o povão com escola sucateada, com ensino medíocre (de preferência numa Escola sem Partido, que, ao invés do que se pensa, não é a escola neutra – que aliás não existe – mas a escola em que não se pode pensar e discutir e entender as estruturas históricas e sociais que nos condicionam).

A classe média fica espremida entre os dois extremos, na maioria das vezes, sem se incomodar com o sucateamento da escola pública, porque ela dá a vida para pagar uma escola razoável para os filhos.

O método de ensino na Finlândia é promovido pelo Estado, para todos os cidadãos. Aí que está a graça da escola. É um projeto pedagógico pensado a partir da realidade local e uma oportunidade igualitária de desenvolvimento humano da população e não uma moda importada para servir de marqueting para uma escola para pouquíssimos privilegiados.

A diminuição das funções do Estado é algo que está se dando no mundo inteiro, pelo sistema hegemônico do neoliberalismo, que prega o Estado mínimo, o que menos gasta – ou não gasta nada – com benefícios sociais. É o modelo norte-americano, é o cada um por si. Se você consegue emprego (sem férias e nenhuma garantia), você paga a escola do seu filho, o convênio médico, a casa própria e tudo o mais. Se você não consegue… azar seu! Você não se esforçou o bastante. Se perde o emprego, azar, e se não consegue mais pagar o convênio, morra; se não consegue mais pagar a casa, vá para a rua (como tantos vivem em treilers nos EUA).

Se você já veio de uma situação de desvantagem – cresceu numa favela, ou é de uma etnia que foi historicamente marginalizada, como os afrodescendentes no Brasil e nos Estados Unidos, é deficiente físico ou ficou órfão de pai e mãe, você tem que esforçar mais. Se não conseguir, azar seu. Afinal, todo um continente – a África, que foi roubada, violentada, escravizada, durante séculos, está abaixo da linha da pobreza… azar dos africanos. É a lei do mais forte. É a chamada meritocracia – que na verdade é o mérito dos que já têm privilégios, mais dinheiro e mais poder.

Assim é o sistema capitalista no seu auge neoliberal. É a expulsão cada vez maior do Estado de todo benefício social, que vinha no último século tentado corrigir minimamente o desbalanceamento econômico nos países e proteger os mais fracos, os mais em desvantagem, os mais historicamente desmerecidos e conter os abusos das corporações.

O Estado está de joelhos diante do capital. As chamadas democracias são comandadas por políticos corruptos – não só no Brasil e não só de um partido!! – porque vendidos aos interesses das grandes corporações. O Estado sempre esteve comprometido com os ricos e os poderosos. Mas, durante um século, com o chamado Estado do bem-estar social, houve uma honesta tentativa de consertar um tanto as injustiças do sistema. Em alguns países essa tentativa foi bem sucedida e por isso ainda restam Estados, como a Finlândia ou a Alemanha que, embora tenham diminuído seus benefícios, ainda conservam muito do que foi construído, porque está solidamente assentado. No Brasil, havíamos conquistado muito – o SUS, por exemplo, por mais críticas que tenhamos, é um sistema que salva muitas vidas e atende à população, os EUA não tem SUS. A escola pública, por pior que fosse, ainda é uma possível porta de acesso a uma faculdade. A CLT, uma proteção aos trabalhadores dos abusos dos empregadores.

Por pior que tenham sido as tão criticadas últimas gestões, programas como bolsa-família (que aliás era condicionada às crianças irem à escola, o que colocou milhões de crianças dentro do processo de escolarização), a cota por pobreza ou etnia, os financiamentos para o estudo superior, o incentivo à casa própria… foram ajustes sociais que possibilitaram maior equalização de oportunidades.

Agora, está tudo ruindo. Estamos caminhando para um período de privação de direitos básicos e de aprofundamento do fosso social no país.

E o que fazer?

Tenho minhas dúvidas, como anarquista que sou, que possamos recuperar esse Estado de bem-estar social. Forças econômicas e militares poderosíssimas estão por trás desse desmonte mundial de Estados de Direito, dessa escravidão generalizada – basta ver as crianças trabalhando pelas indústrias de chocolate na África, basta saber que quase todos os produtos que usamos vêm de uma China, onde o trabalhador não tem praticamente nenhum direito…

Mas penso que há o que se fazer!

Temos que começar a nos organizarmos em sistemas de troca, de ajuda mútua, de cooperativas – e isso serve para escolas, sistemas de produção, bancos de crédito… Ou seja, temos que dispensar o Estado e resistir ao capital. Utópico? Nem tanto, porque esse sistema não se sustenta. Afinal, se grande parte da população mundial for sendo progressivamente escravizada e empobrecida, quem vai consumir? O sistema é autofágico. Então, temos que nos preparar para quando ele ruir. Estarmos solidariamente organizados para isso.

Castells debate pandemia, Público e Educação

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Para o pensador catalão, agora ministro espanhol das Universidades, o eurocentrismo e o projeto liberal entram em crise profunda. Mas a quarentena ajuda a refletir sobre o Comum – e o aspecto libertador da internet pode ressurgir

Entrevista a Álex Rodríguez e Carina Farreras, em La Vanguardia | Tradução: Antonio Martins

Sua vida é um laboratório. Analisa e conclui. Sociólogo honoris causa por inúmeras universidades, prêmio Holberg, considerado por alguns o Nobel das Ciências Sociais, Manuel Castells, aos 78 anos, é agora ministro das Universidades da Espanha. Nesta entrevista, defende uma governação global e lamenta que nos deparemos a covid-19 divididos.

Um vírus colocou o mundo em xeque. Por que acredita que não estávamos preparados para enfrentá-lo? Que lição é possível tirar, para o futuro?

Subjetivamente, por arrogância, por acreditar que nossa tecnologia pode tudo. Objetivamente, pelos cortes substanciais nos orçamentos dos sistemas de Saúde, durante as políticas suicidas de “austeridade” após a crise de 2008. A principal lição é que a Saúde é nossa infraestrutura de vida e requer cooperação global.

A pandemia pilhou o Ocidente e o mundo sem liderança clara, já que os EUA de Trump recusaram-se a exercê-la.

Trump é um nacionalista norte-americano. Pretende liderar o mundo mas para proveito exclusivo dos Estados Unidos, de modo que perde a condição de ser um líder mundial.

A China, onde nasceu o novo coronavírus e onde não há praticamente um momento da vida cotidiana que escape à vigilância digital, parece ter sob controle a situação. Será a nova superpotência?

A China não foi capaz de superar, mas sim de controlar a pandemia. Ainda assim, pode crescer 2% este ano. E tem capacidade para produzir, exportar e até doar material de Saúde ao resto do mundo. É preciso reconhecer isso. Já é uma superpotência, mas não a única – porque não pode comparar-se militarmente aos Estados Unidos.

Os cidadãos da Coreia do Sul e de Taiwan aceitaram ser monitorados, através do uso da tecnologia e da inteligência artificial, para combater a pandemia. Perderam liberdades e privacidade? O mesmo ocorrerá no Ocidente? Estas concessões perdurarão? É preciso perder liberdades para estar seguros?

Historicamente, em todas as situações de emergência, os Estados restringem os direitos das pessoas, por necessidade e, em alguns casos, aproveitando-se da situação. E os cidadãos aceitam por convicção ou por medo. Mas até um certo limite, que é perigoso ultrapassar.
Ninguém no Ocidente pareceu intuir o perigo que representava a covid-19, até que ele entrou na sala de suas casas. Por que?

Porque a paralisação da economia e da vida social é algo que muda tudo e não se pensava necessário, até que uma boa parte da população foi infectada. Dizia-se: “não somos a China”. Mas não se avisou ao vírus.

A Itália enfrenta a situação de uma maneira, a Alemanha e a França, de outra. Também a Espanha, o Reino Unido, os Estados Unidos, o Brasil. O vírus é o mesmo, mas as políticas contra ele diferem muito em cada país. Seria necessária uma governação global?

Sim – nisso como em tudo. Um sistema global interdependente requer governação global – não necessariamente um governo global. Mas os Estados-Nação resistem a perder seu poder e cada um utiliza mecanismos de governança supostamente globais para defender seus interesses nacionais.

Na Europa, reabre-se a brecha norte-sul. Que lhe parece a maneira de agir da União Europeia diante da crise? Será que ela não alimenta o desencanto entre os cidadãos, que veem como se dilui o princípio de solidariedade, um dos que supostamente fundou o projeto europeus?

Estamos outra vez no mesmo debate colocado na crise financeira de 2008, o que demonstra a ausência de identidade europeia, exceto em alguns setores sociais, mais escolarizados e jovens.

Algo que estudo e sobre o que publico há muito tempo. Desta vez, ao menos, o Banco Central Europeu e a Comissão europeia adotaram uma postura mais solidária – mas o Reino Unido está fora e a Alemanha e seus aliados mais próximos querem intervir nas políticas econômicas de todos os países que resgatam. Obviamente, a Europa do sul e a França não aceitam e, portanto, enfrentamos desunidos a ameaça mais grave com que a humanidade se depara desde a II Guerra Mundial.

Você acredita que seria possível fazer algo para que situações com a que estamos atravessando não voltassem a ocorrer, ou para que ao menos estivéssemos melhor preparados?

Levar a sério os aplausos das sacadas, ao pessoal da Saúde, e traduzi-los em políticas de financiamento, de formação, de equipamento, de investigação científica e de prevenção. É nosso salva-vidas no mundo em que entramos. Qualquer que seja o custo, é mais barato que a morte e o colapso econômico.

A covid-19 emergiu como pandemia num momento de auge da ultradireita e das democracias liberais. Você que pensa que isso vai se aprofundar, ou que um dos grandes perdedores desta crise será a democracia liberal?

Publiquei um livro recente sobre a crise da democracia liberal, que foi perdendo legitimidade entre a cidadania por razões profundas, comuns a todas as sociedades. A extensão da pandemia em intensidade e tempo pode colocar ainda mais em xeque um sistema político que havia trazido relativa civilidade a nossa vida institucional.

Não houve revoltas na crise de 2008, porque os aposentados e a família ajudaram a suportar situações desesperadas. Agora, recomenda-se que não se coloque em respiradores os pacientes com mais de 80 anos. Que reflexões isto suscita?

Miséria da espécie humana que, se for de fato assim, talvez não mereça sobreviver. Em alguns setores, há pouca solidariedade com as gerações futuras, como mostra a indiferença diante da mudança climática. E agora há indícios, minoritários, de que começa a faltar solidariedade com os velhos. Por sorte, a maioria das pessoas mostra generosidade e empatia. Ainda apoiam as famílias, mas protegendo sobretudo aos seus.

Como você acredita que o mundo mudará?

Já mudou, e nunca voltará a ser como aquele em que vivemos. O que não sabemos é como será. Talvez o melhor seria que o decidíssemos e o construíssemos, em vez de nos resignarmos ao destino

As universidades a distância cresceram nos últimos anos e você foi professor de uma delas, na Catalunha. Acredita que a covid-19 ampliará os estudos online, e que eles substituirão progressivamente os estudos presenciais?

A pandemia mostrou a extraordinária utilidade da internet em todos os âmbitos. E particularmente nas universidades, que completarão seus cursos, principalmente, por meio do ensino online de qualidade. Houve um processo acelerado de formação prática de estudantes e professorado neste sentido, em poucas semanas, e sobre isso podermos construir coisas novas no futuro. Não apenas para emergências, mas para um sistema em que ambas modalidades se complementem em todas as universidades. O ensino presencial nunca desaparecerá, porque sua largura de banda é muito maior que a da rede de fibra ótica. Esta articulação deve ser um projeto de futuro imediato, quando acabe a guerra.

Muitas universidades tiveram de se adaptar da noite para o dia para dar aulas não presenciais, com dificuldades tecnológicas e de preparação dos professores. É possível garantir um mínimo de qualidade às titulações neste contexto?

Na Espanha, isso será controlado e garantido, de modo coordenado, pelas agências de qualidade de cada região autônoma, e pela Aneca, a agência do Estado espanhol. Não tenho a menor inquietude sobre este assunto, que sigo de perto.

Você acredita que, nesta situação, todos os universitários tenham igualdade de oportunidades? Não há alunos que enfrentam carências tecnológicas?

Há desigualdade tecnológica como há desigualdade social em todos os âmbitos. E portanto, as universidades terão de levar em conta estas situações particulares e ajudar os estudantes desfavorecidos. Porém a difusão da internet é muito ampla, assim como o uso de computadores. E, algo em que não se pensa, a imensa maioria dos estudantes tem um computador no bolso, que chamamos de telefone celular. A questão é desenvolver protocolos de ensino que possam ser adaptados ao uso destes aparelhos como terminais. O que chamamos m-learning. Neste processo estão várias universidades – por exemplo, segundo minha informação, a de Barcelona.

Que rastros a covid-19 deixará nas universidades?

A capacidade de liberar o potencial de ensino virtual, que estava injustamente menosprezada, e a exigência de uma digitalização mais avançada do conjunto do sistema universitário. Uma grande fronteira de inovação pedagógica e de investimento em ensino.

Nível de coordenação do Estado brasileiro contra o coronavírus é zero, diz Sérgio Lazzarini

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Professor do Insper diz que, com estratégia, poderia haver incentivo para a fabricação de máscaras e aumento da infraestrutura de leitos

ÉRICA FRAGA – FSP – 12/04/2020 – SÃO PAULO

A redução dos danos que a Covid-19 causará à saúde pública e à economia demanda uma estratégia de expansão rápida e muito bem planejada do Estado, incluindo critérios para a reversão futura das medidas adotadas.
O nível de coordenação do governo brasileiro nessa direção, até agora, é zero, segundo o pesquisador Sérgio Lazzarini, do Insper, que estuda esse tema.

Em trabalhos como o livro “Capitalismo de Laços”, Lazzarini tem demonstrado que conexões entre os setores público e privado, forjadas algumas vezes em momentos de crise como o atual, podem gerar custos altos e desnecessários para a sociedade.

Em co-autoria com o economista mexicano Aldo Musacchio, ele acaba de escrever um artigo que alerta para o risco de repetição desse cenário caso governos não reajam adequadamente à pandemia.

Intitulado “Leviathan as a Partial Cure? Opportunities and Pitfalls of Using the State-Owned Apparatus to Respond to the Covid-19 Crisis”, o texto será publicado, em breve, pela Revista de Administração Pública, da FGV.

O setor privado conseguiria oferecer, sozinho, as respostas para a crise atual?
Não. Precisamos de uma infraestrutura de crise, como lugares em hospitais e produção de máscaras, respiradores. A pergunta é: o mercado dá conta disso? Os mais liberais dirão que precisamos criar regulamentações nesta direção. Isso, realmente, é necessário. Melhor deixar o setor produtivo produzir em caráter de urgência emergencial, sem restrições sobre poder ou não produzir máscara, por exemplo. Essa é uma discussão mundial. Nos Estados Unidos, foram afrouxadas uma série de regras.

Mas isso é suficiente? Não, porque é necessário um esforço de coordenação. Estamos vendo empresários se comprometendo a produzir determinadas coisas, expandir os hospitais privados. Mas, no fim do dia, os governos estão precisando ir atrás de hotéis para conseguir leitos. As ações não precisam ser, exclusivamente, estatais. Podem ocorrer parcerias público-privadas.

O que deverá sobreviver dessa nova atuação estatal?
A gente vai se perguntar se temos uma estrutura mínima de proteção para esses eventos mais relevantes e difíceis de prever. A incerteza na economia aumentou a tal ponto que evidenciou o risco já existente desses eventos. Qual a probabilidade de haver outra pandemia dessas? Vai ficar claro que não sabemos.

A gente vinha em uma linha de “surgiu o Uber, um monte de profissionais autônomos, deixa eles, deixa o mercado funcionar”. Agora estamos pensando: “calma, que rede de proteção esse pessoal tem contra esses eventos extremos?”

E podemos falar de eventos extremos de forma bem ampla, incluindo crises políticas e de outras naturezas. Isso nos levará a pensar em estrutura de segurança que incluirá o Estado porque, de novo, o setor privado não tem interesse nisso. Mas precisamos também considerar que isso terá custos, que muitos dos investimentos serão ineficientes.
Como reduzir esses custos?

O que aprendemos com eventos anteriores, como a crise financeira global em 2008, é que há momentos em que a expansão do Estado é inevitável, mas precisamos definir estratégias de saída e de acompanhamento contínuos.
Por que vocês se opõem ao resgate de setores afetados inteiros?

Se você falar que precisa resgatar o setor aéreo, virá o de hotéis, e teremos de considerar: por que não hotéis? Aí virá o de restaurantes, o de shows. Vamos fazer uma discussão interminável. O BNDES anunciou discussões com o setor aéreo e está uma briga sobre qual será o preço. Eu não faria esse tipo de discussão setorial, eu faria uma discussão horizontal. Firmas com necessidades serão avaliadas de acordo com determinados critérios preestabelecidos.

Quem fez algo nessa linha foi o KfW [banco de desenvolvimento alemão]. Criou uma linha para empresas com dificuldades financeiras. Elas podem pegar empréstimo, expandir atividade, rolar sua dívida. Empresas grandes, de forma geral, não deveriam ser prioritárias, apenas as de médio porte para baixo.

Vocês ressaltam que é importante considerar também que ocorrerão mudanças de hábitos. Por quê?
O setor aéreo passará por uma queda de demanda, as pessoas vão mudar seus estilos de vida, de forma talvez permanente. Na China, os restaurantes reabriram, mas as pessoas estão reticentes, o formato de vendas está migrando para entregas, com detalhamento sobre a forma de preparo e de higienização da comida, sobre as credenciais do produtor, e assim por diante. Novos formatos de negócios serão testados.

A gente pode querer tentar salvar o setor aéreo, mas ele será diferente. Então, certas discussões serão inócuas e há um risco de que terminem favorecendo os setores mais organizados e, não necessariamente, os negócios mais eficientes.
Esse é outro motivo para termos critérios mais horizontais.

Por que é importante que o governo aja rápido?
Os modelos estão nos indicando que para controlar essa pandemia precisamos agir o quanto antes. A melhor estratégia parece ser o isolamento social rápido e, ao mesmo tempo, expandir a estrutura de suporte, criar uma estrutura de proteção para que as pessoas tenham renda neste período.

Se você demorar muito, vai estender a crise e as dificuldades financeiras das empresas, aumentando a chance de precisar resgatá-las, dar mais crédito, dar mais renda, no futuro.

Se você não usar o Estado agora inteligentemente, terá de usá-lo mais no futuro, com um custo elevadíssimo lá para a frente.

Mas também precisamos estabelecer as condições de saída. O que são elas? Se o governo precisar assumir o capital de uma empresa, tem de deixar claro quanto tempo isso vai durar, assim como monitorar indicadores preestabelecidos de seu progresso.

As ações de transferência de renda têm de ser condicionais à evolução dos programas de isolamento e as próprias curvas de contaminação. Depois, terão de ser suspensas. Senão, teremos pedidos intermináveis. Isso precisa estar claro desde o início.

Depois da crise de 2008, expandimos o Estado. Fizemos com que o BNDES ampliasse suas operações, mas ele continuou se expandindo porque foi criada uma mentalidade de que o Estado resolve tudo, sempre. Essas condições de saída, com cláusulas de término, são essenciais para a gente evitar que isso se repita.

Essa tendência brasileira de apego a um Estado grande pode dificultar a reversão futura da expansão atual?
Sim. Nosso arranjo institucional ainda é muito permeável a interesses, mesmo sem considerar corrupção. Há setores e grupos mais organizados que exercem maior poder de influência sobre governos, que vão dizer que a vida está ruim, difícil. Não precisam ser grandes empresas. Podem ser, por exemplo, os caminhoneiros.

Imagine um cenário em que acabou a crise e grupos venham dizer que sofreram muito e precisam de compensações. Por isso, o estabelecimento de métricas, indicadores, prazos, condições é, absolutamente, fundamental. É uma forma de, agora, você se comprometer a cumprir os objetivos necessários para amenizar os efeitos da crise, mas evitando que a expansão do Estado seja indefinida. Mas, para que esse processo seja bem sucedido, é necessária uma grande coordenação de política pública.

Que nível de coordenação o Estado brasileiro tem demonstrado?
Zero. A gente tem conflitos entre governos, na esfera federal e estadual, sobre a estratégia de achatar a curva. Não estamos em um uníssono na direção de achatar a curva agora, ter uma estrutura de proteção de renda e recuperar a economia mais para a frente.

Estamos batendo cabeça, o que é muito ruim. Há algumas iniciativas inteligentes. O BNDES e o Banco Central anunciaram uma linha de crédito para a folha de pagamento das empresas, garantida pelo Tesouro [Nacional]. É uma iniciativa engenhosa, de liquidez e garantia de emprego. Mas esse tipo de iniciativa ainda é isolado.

A partir do momento em que temos claro que a estratégia nacional é o isolamento social e medidas preventivas, damos um norte para a produção. Isso cria incentivo para a fabricação de máscaras, produtos de higiene e o aumento da infraestrutura de leitos. Aí poderíamos criar, de forma mais acelerada, mais linhas de crédito especificas.

Em que estágio de reação à crise o Brasil está?
Estamos em um processo grave, uma briga do governo federal com os governos estaduais e municipais. Não se pode nem falar em coordenação. Vamos coordenar o que? Para qual direção? Não sabemos nem se o ministro da Saúde vai continuar no cargo até amanhã.

Caminhamos, então, para arcar com custos maiores dessa crise no futuro?
Acho que não estamos no cenário ideal de tomada de iniciativas mais rápidas. Na verdade, estamos nos distanciando disso. Se a gente continuar batendo cabeça, descoordenados, vamos reduzir bastante a chance de ser um processo curto.