Reconstrução Nacional

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O mundo contemporâneo está vivendo grandes transformações em todos os setores, desde questões comportamentais, dos relacionamentos, das estruturas produtivas, das bases sociais, das relações políticas e das culturais. Dentre as grandes mudanças da sociedade, os grupos sociais estão em confrontos abertos, gerando desequilíbrios e constrangimentos variados, uns buscando seus interesses imediatos, lutando por maiores benefícios monetários e financeiros, garantindo seus poderes econômicos e a manutenção de seus ganhos políticos. Nesta situação, percebemos que estamos caminhando a passos largos a um grande conflito social, com claros desequilíbrios econômicos e políticos, que podem culminar em grandes rupturas institucionais e impactos sobre a democracia.

Vivemos num momento de reconstrução nacional, os impactos da pandemia se disseminam para todos os setores econômicos e sociais, com graves preocupações políticas, diante disso, precisamos de um sólido projeto de reconstrução nacional, onde todos os grupos sociais precisam contribuir, de forma democrática e transparente, em prol da reconstrução nacional, onde o cidadão volte a ter orgulho deste país. Neste momento, precisamos reconstruir a economia brasileira, melhorando os ambientes de atuação dos setores mais empreendedores, garantindo empregos dignos e bem remunerados, estimulando um mercado consumidor consolidado, impulsionando o espírito inovador do setor privado, aumentando os investimentos produtivos e a melhoria das condições de vida da população. Nesta reconstrução precisamos reduzir os ganhos do rentismo e garantindo a construção de um pacto nacional em prol dos setores econômicos e produtivos, para isso, precisamos de uma união entre todos os grupos sociais, econômicos e políticos.

A pandemia nos trouxe grandes prejuízos, milhares de pessoas morreram, uma parcela substancial da população perdeu renda, os empregos foram reduzidos e a pobreza cresce de forma acelerada. Além dos impactos da pandemia, percebemos ainda os impactos das grandes transformações do capitalismo contemporâneo, que estão gerando o incremento da tecnologia, a redução dos postos de trabalhos formais e grandes preocupações em setores inteiros, gerando medos e desesperanças, levando os trabalhadores a buscarem requalificação profissional e investimentos na capacitação. Neste momento de transição na economia global, a atuação dos Estados Nacionais é fundamental, receita recomendada por todos as grandes instituições multilaterais, mostrando o nascimento de uma nova agenda econômica que, infelizmente, ainda não se faz presente nos gestores da política econômica, que insistem no discurso de austeridade e da redução dos gastos públicos, receituário abandonado pelo próprio Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pela Secretária do Tesouro, que recentemente destacou a importância dos gastos públicos na reconstrução da economia, ainda mais num momento marcado por incertezas e instabilidades gerados pela pandemia.

Neste momento, precisamos modernizar nosso discurso econômico, abandonando o excesso de ortodoxia e reduzindo a austeridade fiscal, cujos impactos são negativos, com a destruição das relações sociais e o aumento das desigualdades. Neste novo consenso econômico, precisamos de uma visão mais sistêmica dos problemas sociais, atuando conjuntamente para reconstruir a sociedade nacional, colocando no centro das decisões econômicas, os investimentos em capital humano, em pesquisas científicas e tecnológicas, na melhoria dos setores da saúde e da educação, setores muitos fragilizados na pandemia. Estes investimentos podem alavancar a economia nacional, construindo aspirações audaciosas na comunidade internacional, mostrando que a riqueza nacional não se restringe a uma economia exportadora de produtos primários, como no período colonial, mostrando para a comunidade internacional que, além de um setor primário pujante e empreendedor, somos uma nação industrializada e dotada de um setor de serviços modernos e capacitados para superar os desafios do mundo contemporâneo, marcados pela concorrência e pelas instabilidades produtivas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/02/2021.

‘Será muito difícil a economia não piorar’, diz pesquisadora da FGV.

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Segundo Laura Karpuska, falta de foco do governo, tanto na luta contra a covid quanto na agenda econômica, dificultam uma recuperação

Luciana Dyniewicz, O Estado de S. Paulo – 14/02/2021

Pesquisadora na Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, a economista Laura Karpuska acha improvável não haver uma deterioração ainda maior na economia neste ano. A falta de foco do governo para lidar com a pandemia e avançar em uma agenda econômica travam a atividade no País, segundo Laura, que é doutora pela Universidade de Stony Brook. “Para pensarmos em retomada, tem de haver confiança no ambiente político, mas, nesse ambiente, faltam prioridades e um plano de ação. Isso tem impacto na economia”, diz ela. A seguir, trechos da entrevista.

As previsões para o PIB têm recuado com a lentidão da vacinação. Qual cenário você enxerga para a economia neste ano?

A pandemia deixou claro que, quando a gente sofre um choque dessa magnitude, o papel do governo é fundamental. O mercado vem revisando para baixo suas expectativas de PIB e acho que isso é coerente com o fato de que vemos um governo com dificuldade de organizar prioridades, não só orçamentárias, mas de forma ampla, de estabelecer um plano de ação. A gente passou, no começo da pandemia, por uma dificuldade de criar um plano de testes e de rastreamento.

Isso agora culminou no fato de que não temos um plano de vacinação claro. O governo não fez um debate aberto e não houve uma busca organizada pela vacina. Tem também a questão do discurso do governo. A gente viu a importância do discurso de líderes em tempos de crise para coordenar as expectativas dos agentes, para se ter um equilíbrio. Um equilíbrio de respeito à ciência, de uso de máscara, de pressão coletiva por vacina. Para pensarmos numa retomada sustentável, tem de haver confiança no ambiente político, mas, no ambiente, faltam prioridades e um plano de ação. Isso tem impacto na economia.

Dado esse cenário, o que podemos esperar para a economia até o fim do ano?

No curto prazo, acho muito difícil não piorar. É difícil pensar que o fim do auxílio emergencial não vai dificultar primeiro a vida dos brasileiros e, depois, a atividade econômica. Pensando de uma forma mais ampla, o Brasil saiu de uma depressão com crescimentos pífios. Ainda não retomamos o nível de atividade que tínhamos antes da última recessão. Com a volta do auxílio emergencial, essa questão do curto prazo pode ser resolvida. Mas ser resolvida sem uma agenda de governo só dificulta ainda mais o nosso crescimento de longo prazo, nos deixando ainda numa situação desfavorável.

Está na mesa a possibilidade de se retomar o auxílio e deixá-lo de fora do teto de gastos. Como avalia isso?

Acho positiva a retomada de um auxílio. A gente viu que o auxílio de R$ 600 foi custoso. A redução foi importante para diminuir o aumento dos gastos. Hoje a gente precisaria de um auxílio mais focalizado. Não concordo com a ideia de o tirar do teto de gastos, porque acaba virando remendo em cima de remendo. Uma distorção leva a outra distorção e, quando você vê, não sabe nem qual é a que está te atingindo. O teto de gastos foi muito importante para a convergência das expectativas dos agentes no momento de crise fiscal no Brasil, mas ele é um bom exemplo de que, se você tem uma regra, mas não regulamenta os mecanismos e os gatilhos de forma adequada, a regra pode ser difícil de ser mantida no longo prazo. Criar mais um apêndice negativo para essa regra é não usá-la para o que deveria, que é para a saúde das contas públicas.

Como resolver isso?

O teto foi muito importante para manter as expectativas dos agentes alinhadas com o compromisso do governo de longo prazo, mas também para termos alguma regra que incentive os governantes a mostrarem as escolhas que fazem no Orçamento. O Orçamento público escancara as escolhas sociais que a gente faz. O teto mostrou que, se você não quiser ter despesas crescentes e se já tem um grande número de despesas obrigatórias, ou você arrecada mais fazendo uma reforma tributária ou corta outras coisas. O teto foi excelente por isso, mas ele não foi feito de uma forma que os gatilhos que garantem a saúde das contas públicas funcionem. Vejo como inevitável uma discussão do teto no sentido de que, sem gatilhos de corte de despesas obrigatórias, ele é uma bomba relógio, principalmente em um ambiente recessivo.

A chegada do Centrão à presidência da Câmara dos Deputados interfere no projeto do ministro da Economia?

Esses partidos (do Centrão) costumam ter um certo pragmatismo, são mais maleáveis e pouco firmados com ideologias.

Se tivermos uma confirmação dessa característica, caberá ao Executivo encabeçar a agenda que deseja e saber barganhar. Mas voltamos ao problema da falta de foco do governo, principalmente na agenda econômica. No entanto, ainda não está claro se esse Centro que compõe as mesas do Congresso é pragmático. Ano que vem o foco do governo ficará nas eleições. Temos um ano para discutir as reformas administrativa e tributária e a PEC emergencial, sem falar no auxílio emergencial e na pandemia, que imporiam, ao menos idealmente, outras prioridades ao governo.

Portanto, eu diria que, até o momento, essa coalização entre o Executivo e os partidos de centro não trouxe otimismo quanto a uma agenda econômica saudável. A falta de foco numa agenda específica e a convergência de interesses em assuntos não econômicos, por ora, parecem prevalecer.

Racismo precisa ser tratado como tema fundamental da economia

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Há uma relação estrutural entre pobreza, raça e gênero, reforçada e naturalizada pelo funcionamento do sistema tributário

Folha de São Paulo, 16/08/2020.

Silvio Almeida, Professor da Fundação Getulio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Pedro Rossi, Professor do Instituto de Economia da Unicamp

Racismo e economia são temas intrinsecamente ligados. A economia é uma condicionante do racismo, e o racismo, por sua vez, impacta na organização econômica.

No debate econômico, há duas posições distintas sobre o racismo: a primeira é a abordagem predominante, presente
nos principais manuais e na maioria das escolas de economia, que vê o racismo como um problema comportamental, atinente ao indivíduo.

Do ponto de vista político, a economia ortodoxa reforça a ideia do racismo como um problema individual que pode ser resolvido por meio de um sistema penal “eficiente” que puna condutas desviantes, com projetos educacionais que reformem o indivíduo moralmente e, no limite, com algumas políticas de ação afirmativa. Gary Becker e Milton Friedman, ganhadores de Prêmio Nobel de Economia, são referências para essa abordagem.

Para Becker, a discriminação racial se manifesta, por exemplo, quando um empregador não contrata um negro, seja por ignorância ou preconceito.

Segundo essa visão, as atitudes discriminatórias são exógenas ao sistema econômico e, a longo prazo, a busca pelo autointeresse econômico em um ambiente de livre mercado eliminaria comportamentos preconceituosos: os indivíduos discriminados que têm salários menores seriam contratados até o ponto em que a discriminação salarial fosse zero.

Consoante essa concepção, o racismo –sintomaticamente tratado como “preconceito”– é uma “falha de mercado”, uma “desutilidade”.

Na mesma linha, Friedman reduz o fenômeno a uma questão de gosto ou preferência pessoal que implica custo para quem o pratica. Para ele, o capitalismo traz fortes incentivos para a não discriminação racial e, a partir dessa visão idealizada, o autor nega a alternativa da intervenção estatal para tratar do tema, uma vez que essas interfeririam na liberdade dos indivíduos.

Já a segunda abordagem parte de concepções teóricas que não se limitam às lentes da economia neoclássica e entende o racismo como um problema sistêmico, ou seja, como uma consequência do funcionamento “normal” e regular das instituições e das estruturas sociais que conformam a ação dos indivíduos.

Por exemplo, autores como Gunnar Myrdal e Arthur Lewis –também Prêmios Nobel– apontam que o racismo não está restrito a comportamentos individuais e nem pode ser tido como uma distorção passível de ser corrigida pelo mercado.

O racismo é constitutivo do sistema, está enraizado nas estruturas da sociedade e normalizado pelo próprio funcionamento das instituições. Nesse contexto, os economistas brasileiros –em sua esmagadora maioria brancos– poderiam refletir sobre como o racismo está presente nas instituições econômicas e na forma como a política econômica é pensada.

A carga tributária, por exemplo, pune mulheres negras, que pagam proporcionalmente mais impostos do que homens brancos, como mostra o estudo de Evilásio Salvador.

Há, portanto, uma relação estrutural entre pobreza, raça e gênero, que é reforçada pelo funcionamento regular do sistema tributário e é naturalizada –assim como naturalizamos a violência direta contra pessoas negras nas periferias– a ponto de o Congresso Nacional discutir uma reforma tributária com foco na eficiência, deixando de lado o problema da desigualdade.

Da mesma forma, a emenda constitucional nº 95 reforça o racismo estrutural ao constranger gastos públicos que beneficiam proporcionalmente mais a população negra e indígena, como os gastos com saúde, educação e assistência social.

Além disso, como aponta o estudo de Bova, Kinda e Woo, os ajustes fiscais, especialmente aqueles baseados nos cortes de gastos, tendem a aumentar a desigualdade e o desemprego, que afeta proporcionalmente mais a população negra. Tais políticas têm sido implementadas no Brasil a partir de diagnósticos e objetivos macroeconômicos sem uma avaliação prévia dos impactos sobre desigualdades e direitos sociais.

Dessa forma, dada a sua relevância para o Brasil, o tema do racismo em sua dimensão estrutural precisa ser tratado como um dos temas fundamentais da economia.

Redes Sociais

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O filósofo digital Jaron Lanier explica porque as mídias sociais se tornaram um parasita que tomou conta de seu hospedeiro – a própria internet.

Por Alexandre Matias*

Se os tempos parecem deprimentes, a vida, inútil, as perspectivas, péssimas, e o fim, iminente, o cientista da computação e filósofo digital Jaron Lanier tem a resposta exata para essa perturbação sem fim: as redes sociais. Um dos pioneiros da realidade virtual e um dos principais críticos da produtização do usuário na internet por meio do uso gratuito de serviços cujos termos de uso todos concordamos sem ler, Lanier entende que a busca por atenção que movimenta financeiramente todos os sites da chamada web 2.0 pode, de fato, destruir a sociedade como a conhecemos.

Autor de livros como Gadget: Você não é um aplicativo!, de 2010, e Who Owns the Future? (Quem é o dono do futuro?), de 2013, ele agora Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, cujo título resume suas intenções. E se o alerta urgente não o deixa cabreiro, talvez o título de alguns capítulos o façam: “Você está perdendo seu livre-arbítrio”, “As redes sociais estão tornando você um babaca” e “As redes sociais deixam você infeliz”. Tudo é bem argumentado e defendido por Lanier, que entende os serviços on-line como a forma mais avançada de vício digital, comparada a um parasita que toma conta de seu hospedeiro. Veja mais na entrevista feita com exclusividade para a Intrínseca.

Antes de falarmos sobre seu livro, queria que você comentasse a influência das redes sociais nas eleições brasileiras.

Jaron Lanier – Isso tem acontecido em todo o mundo. Estamos vendo a ascensão de candidatos descritos como populistas de direita ou como novos fascistas, mas não considero essa uma descrição adequada. Acho que o melhor jeito de descrever esses candidatos é tratá-los como pessoas apoiadas por pessoas mal-humoradas, paranoicas, irritáveis, invejosas, nervosas e de personalidade insegura que estão associadas às mídias sociais modernas.
Vemos essas pessoas ganhando poder no mundo inteiro, em países bem diferentes uns dos outros. Podemos arrumar todo o tipo de explicação para o que está acontecendo no Brasil, mas o Brasil é muito diferente, em vários aspectos, dos Estados Unidos, que por sua vez é diferente da Suécia, que é diferente da Hungria. Mas o que estes países têm em comum é o novo problema tecnológico. Acredito que entramos em uma corrida para ver se conseguimos mudar os padrões das tecnologias on-line antes que elas destruam a nossa sociedade.

No passado, era possível dizer que a ascensão de um fascista ou de um populista talvez tivesse relação com a situação do país, talvez fosse resultado de uma guerra ou de um terrível problema econômico. Por exemplo, podemos dizer que a Alemanha dos anos 1930 tinha um sério problema econômico, como a hiperinflação. Mas, quando vemos [a ascensão de fascistas] acontecendo em diferentes lugares, isso significa que não diz mais respeito apenas às circunstâncias específicas desses países, mas à tecnologia. O que significa em último caso que o problema pode continuar se repetindo. E não acho que o mundo é capaz de sobreviver a isso.

Uma das coisas que sei sobre o presidente recém-eleito no Brasil é que ele poderia tornar o país o segundo no mundo, depois dos Estados Unidos, a negar completamente a mudança climática no planeta e a sair dos acordos internacionais destinados a conter o problema. Dessa forma, teríamos dois dos maiores países do mundo contribuindo para um risco que envolve não apenas a civilização, mas toda a espécie. É extremamente sério. Estive no Brasil há pouco tempo, conversei com alguns jornalistas brasileiros e muitos deles acreditavam que o problema não era só o WhatsApp, mas que era necessário regular melhor o Facebook e o Twitter. O problema é que essas tecnologias são tão sorrateiras que as pessoas não percebem ou acham muito difícil perceber que estão sendo manipuladas, não notam como a sociedade está sendo envenenada. É realmente muito sério.

Mas como sair das redes sociais uma vez que elas entraram de vez em nossas vidas?

Jaron Lanier – Escrevi esse livro pensando no contexto norte-americano — e em algum nível no contexto europeu. O contexto brasileiro é muito diferente porque, em muitos casos, as pessoas são viciadas no WhatsApp. Ele praticamente monopoliza a atenção de muitas pessoas. E eu reconheço essas diferenças. Mas acho que há coisas que precisam ser ditas. Primeiro, mesmo nos Estados Unidos ou na Europa, fazer com que as pessoas saiam dessas plataformas de uma vez só é impossível. Mas, quando lidamos com esse vício em massa, um bom começo seria fazer com que algumas pessoas, e depois mais pessoas, começassem a se reconhecer como viciadas.

É consenso a diminuição dos espaços para fumantes em todo o mundo, mesmo que o cigarro seja um produto altamente viciante que gera muito dinheiro para algumas empresas. O aumento de regulação dos espaços reservados a fumantes e da propaganda de cigarro aconteceu porque houve um número suficientemente grande de pessoas viciadas em nicotina que se dispôs a conversar sobre isso e ser racional. Então as coisas começaram a mudar: é possível ser cool sem ter um cigarro na boca, é possível ser criativo sem ter um cigarro na boca. Da mesma forma, precisamos ter um número grande de pessoas que queira abandonar o vício nas redes sociais para podermos falar sobre ele.

No caso do Brasil, me parece que a situação é um pouco diferente, porque, no geral, não há alternativas. Nos Estados Unidos é possível mandar mensagens de texto de um telefone para outro sem pagar, ou seja, você consegue entrar em contato com outras pessoas sem necessariamente usar plataformas de empresas, e, além disso, as pessoas ainda usam muito e-mail. Mas isso não significa que os brasileiros precisam considerar isso uma falha tecnológica do país, porque é uma sabotagem: uma empresa veio de fora e fez tudo isso. É como se uma empresa de fora roubasse recursos ou fizesse algo terrível com o país.

Eu realmente não tenho uma resposta definitiva para o problema, mas, de certa forma, acredito que os brasileiros devem impedir o WhatsApp de prejudicar ainda mais o país. É possível que o Brasil volte a ser como na época da ditadura militar e depois de um tempo a população se sinta incomodada a ponto de permitir que forças democráticas e progressistas retomem o poder e tratem essa tecnologia de forma mais humana e racional, sem a manipulação, as teorias da conspiração e as mentiras. Mas, como nos Estados Unidos, e talvez de forma pior, não será fácil.

Há também o fato de as pessoas acreditarem que as redes sociais são a própria internet, que não existe internet fora desses domínios.

Jaron Lanier – É muito triste que no Brasil um aplicativo como o WhatsApp seja considerado fundamental. Claro que não é. É mais um invasor que tomou conta da internet do que a internet em si. É muito fácil ter algo similar ao WhatsApp que não venha com toda a manipulação, todo o veneno. Um outro aplicativo poderia existir — e por si só, não ser algo ruim —, só não existe porque as corporações tomaram conta da internet. Todas as coisas boas do WhatsApp — a possibilidade de mandar mensagens, por exemplo — podem ser alcançadas, tecnologicamente falando, sem a necessidade de que haja manipulação. Isso é um plug-in criado por essas empresas, não tem nenhum motivo de estar lá.

Podemos dizer que o Facebook é a pior rede social por ser a mais presente?

Jaron Lanier – Por enquanto me parece que as redes sociais que são propriedades do Facebook, enquanto corporação, são as que fazem mais mal ao mundo, em particular Instagram, Messenger, WhatsApp e o próprio Facebook. O Facebook propriamente dito talvez tenha mais influência nos Estados Unidos, enquanto Instagram, WhatsApp e Messenger são piores no resto do mundo. As redes sociais do Google, como o YouTube, também têm sido problemáticas de certa forma.

Não sei se faz sentido dizer qual delas é a pior, pois todas usam o mesmo plano de negócios corrupto e horrível e funcionam mais ou menos da mesma forma. Todas precisam mudar.

Você vê alguma possibilidade de o Facebook ser ultrapassado, como aconteceu no passado com outras redes sociais?

Jaron Lanier – Acho difícil, porque essas antigas redes sociais, como Friendster e MySpace, pertenceram a outro tempo, um em que menos gente tinha acesso a internet e se vivia menos tempo conectado; e as pessoas não estavam tão presas a essas redes. O Facebook tem sido muito paranoico e preocupado com a possibilidade de que outras redes tomem seu lugar, por isso a corporação comprou empresas novas, que já tivessem algum poder, ou tentou destruir quem pudesse crescer. Como sabemos, WhatsApp e Instagram foram compradas exatamente por medo de que alguma delas chegasse a ter um momentum. Não foram muitas empresas que conseguiram aproveitar o embalo de crescimento e se dar bem, e é até surpreendente que agências reguladoras tenham permitido que isso acontecesse. É claro que ainda há outras empresas por aí, como o Twitter, mas elas são muito pequenas e vulneráveis.

Um dos criadores do The Pirate Bay, Peter Sunde, escreveu artigos dizendo que a guerra da internet foi perdida e que as corporações venceram. O que você acha disso?

Jaron Lanier – Li vários comentários e análises recentes que chegavam a essas conclusões derrotistas. “Nós perdemos”, “não há nada mais a ser feito”, “agora vai ser sempre assim ou pior”, “não conseguimos fazer mais nada”, “acabou”. Talvez isso seja verdade, mas acho que sou um maluco e não acredito que seja hora de dizer isso. Insisto em trabalhar continuamente em alternativas, continuo a acreditar que encontraremos uma saída e que vale a pena imaginar soluções melhores e inventar novas opções que permitam que o trabalho seja melhor. Desistir é meio que um paradoxo filosófico: se você chegar à conclusão que não vale mais a pena fazer nada, nada será feito — é uma profecia que se cumpre automaticamente.

É claro que não há garantias de que seja possível fazer isso, mas eu realmente acredito que precisamos buscar alternativas. Acho que a resposta correta tem a ver com a mudança do modelo de negócio, de forma que essas empresas não precisem negociar nossa busca por atenção.

Realmente acho que não devemos entrar em pânico ou ficar desesperados, especialmente agora. Estamos entrando em uma era em que o mundo será comandado por esses caras mal-humorados e paranoicos e ela pode durar muito tempo; talvez seja uma época em que não tenhamos democracia. E a única coisa que podemos fazer de verdade por ora é tentar nos preparar para a próxima época, quando as coisas talvez melhorem. Esse é um projeto meu. É o que estamos tentando fazer aqui nos Estados Unidos e vocês precisam fazer no Brasil e os europeus na Europa. Todos temos que tentar atravessar este período e não podemos perder a fé nem nossa imaginação para encontrar o caminho para a nova era.

Você está escrevendo um novo livro?

Jaron Lanier – Não me decidi ainda. Queria escrever sobre instrumentos musicais. Mas estou em conflito. Se estivéssemos em outra época, mais comum, acho que eu escreveria menos sobre política e mais sobre algo de que gosto, porque acho que é importante deixar espaço para essas coisas. Ainda estou decidindo sobre isso.

Obrigado, Jaron, foi uma boa conversa.
Jaron Lanier – Boa sorte para vocês. Esperamos o melhor para o Brasil.

Alexandre Matias é jornalista e cobre cultura e tecnologia há vinte anos, com base em seu site, o Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br).

A Sibéria já não tem mais fronteiras, por Paulo Nogueira Batista Jr.

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‘Ortodoxia de galinheiro’ rege o debate econômico

Folha de São Paulo, 07/02/2021.

O debate econômico nos principais órgãos de comunicação brasileiros quase desapareceu nos anos recentes. Com poucas exceções, lê-se e ouve-se um único ponto de vista.

Só recebe grande veiculação o que eu costumo chamar de “ortodoxia de galinheiro”, uma versão empobrecida da ortodoxia econômica ensinada (mas nem sempre praticada) nos EUA. Em geral, repete-se por aqui o que os ortodoxos de lá consideraram verdadeiro em décadas passadas.

Um debate pobre e unilateral, como o que temos, tem consequências perigosas para um país, pois é da contraposição de ideias que surge o progresso. Sem esse debate livre e aberto, sem as fricções que ele produz, não há avanços, e nem se pode falar propriamente em democracia.

A estagnação ou semiestagnação da economia nos últimos 40 anos é, em parte, resultado da estagnação do debate de ideias entre nós. Com um debate livre, dificilmente teriam prosperado políticas econômicas antinacionais, inconsistentes com os interesses da maioria da população. Dificilmente o Brasil teria importado “consensos” que nos levaram a seguir políticas temerárias em diversos períodos, tais como o excessivo de endividamento em moeda estrangeira, a liberalização prematura dos movimentos de capital, a apreciação exagerada do câmbio e o abandono do

investimento público em infraestrutura.

A pregação de “reformas” é sempre muito seletiva. Quase nunca são lembradas reformas fundamentais como a do sistema financeiro, a “estagnação” do Banco Central a (para torná-lo independente de interesses privados) e a redistribuição ampla da renda, inclusive da tributação, para que ela possa ser socialmente justa.

Nos anos 1980 e 1990, vigorava um sistema de censura na Rede Globo, conduzido por um diretor de jornalismo chamado Evandro Carlos de Andrade. Quando um político, economista ou algum outro profissional atuava de forma, digamos, pouco construtiva do ponto de vista do establishment, caia nas más graças do tal Evandro e passava a ser sistematicamente excluído do noticiário. Não podia ser ouvido, entrevistado ou mesmo mencionado.

Uma curiosidade é que o responsável pela lista dos excluídos era um ex-stalinista, que reproduziu comportamento encontradiço em pessoas com esse passado político: usava, na defesa dos interesses do capital, os métodos e vícios aprendidos na escola do venerável Joseph Stalin, grande especialista em apagar o presente e o passado. O mais destacado dos integrantes da lista era Leonel Brizola, que foi quem lançou o mote que estou recuperando agora. Em entrevista à época, Brizola ironizou: “Mandaram-me para a Sibéria”. A alusão era ao passado stalinista do executivo da Globo.

Hoje, o quadro é pior. Na mídia brasileira, a Sibéria quase não tem mais fronteiras. As suas imensas e lívidas paisagens se alastraram por toda a parte —televisão, rádio, jornais, revistas e canais de internet. Além disso, a lista dos exilados inchou e passou a incluir, com exceções ocasionais, a centro-esquerda e a esquerda inteiras. A Sibéria está ficando “crowdeada”.

Fora da mídia alternativa —basicamente sites, canais e blogs independentes—, quase não há mais espaço para visões críticas ao “consenso do mercado”. Esta Folha, com limitações, é uma das poucas exceções. O brasileiro desavisado haverá de pensar que não existem mais dúvidas sobre os pilares da ortodoxia de galinheiro.

É espantoso, leitor, o que passa por sabedoria econômica no Brasil! Um estágio de curta duração no FMI já faria bem aos economistas do mercado tupiniquim. É que o Fundo, desde a crise de 2008, empreendeu considerável revisão da sua macroeconomia. Hoje, por exemplo, é difícil encontrar na instituição uma defesa radical da austeridade fiscal, que não leve em conta seus efeitos sobre a atividade, o emprego e a distribuição da renda. É verdade que o braço operacional, mais conservador, ainda se mostra relutante em abandonar a abordagem fiscalista. Mas é difícil encontrar algum economista do FMI que elogie, com sinceridade, um teto que congela em termos reais a maior parte do gasto público primário por 20 anos —e ainda por cima inscrito na Constituição.

Como é sintomático do nosso atraso que se possa invocar até o FMI, velho de guerra, para criticar a ortodoxia brasileira!

Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelos Brics em Xangai), ex-diretor-executivo no FMI em Washington e autor de ‘O Brasil não cabe no quintal de ninguém’ (editora LeYa)

O mito do progresso

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A pandemia está desnudando as condições sociais da sociedade internacional, mostrando as negatividades que foram construídas nas últimas décadas, deixando uma sociedade refém das desigualdades e da desesperança, criando medos e instabilidades que levam os seres humanos a preocupações crescentes, ansiedades, depressões e o incremento do suicídio em todas as regiões do mundo. De outro lado, neste momento percebemos que o sistema econômico dominante garante a um reduzido grupo, mas forte econômica e politicamente, o poder e o controle dos recursos monetários, os instrumentos de comunicação, os valores que transitam nas Bolsas globais, os costumes e os comportamentos.

A pandemia está trazendo novos instrumentos de reflexão, o caos gerado pelo vírus mostra como somos frágeis, nos mostra ainda que não estamos capacitados por uma grande degradação econômica e sanitária, os consensos são frágeis e os recursos são concentrados, onde uma pequena parte, algo em torno de 1% da sociedade global, concentrava, em 2018, mais de 85% das riquezas geradas no mundo, perpetuando as desigualdades sociais, levando-nos a indagarmos se o mundo contemporâneo está progredindo ou estamos caminhando a passos largos para uma convulsão social, cujos impactos são impossíveis de serem mensurados.

O desenvolvimento da tecnologia foi assustador nos últimos anos, o crescimento das áreas da saúde, como percebemos neste momento de pandemia, cujas pesquisas culminaram em várias vacinas num período recorde, criando possibilidades e esperanças. O crescimento nas áreas da comunicação e das finanças estão contribuindo para incluir milhões de pessoas, levando a todos os continentes informações e recursos financeiros, dinamizando as regiões e impulsionando novos espaços de produção e de empreendedorismo, com impactos positivos.

Os benefícios da tecnologia são inquestionáveis, doenças que facilmente poderiam levar o ser humano ao óbito, na atualidade, podem ser facilmente tratadas, melhorando a qualidade de vida e o bem-estar social, levando os indivíduos a transformarem suas vidas, abrindo novos mercados de consumo e novas oportunidades para os trabalhadores, com incremento da expectativa de vida. Ao mesmo tempo, temos que refletir sobre os grandes ganhadores deste progresso, onde uma parte da população está desprovido destes benefícios. Neste momento, percebemos um grande contingente de trabalhadores, estimados em 2 bilhões de pessoas, que vivem em residências sem saneamento básico, sem o mínimo acesso à internet, sem serviços de saúde, inexistência de proteção social, sem escolas decentes e perspectivas degradantes, nesta situação, percebemos que a desigualdade está crescendo de forma acelerada, perpetuando pobrezas e indignidades.

Neste ambiente, percebemos discursos centrados na meritocracia, numa sociedade tão marcada por iniquidade, onde as oportunidades inexistem para uma grande parte das pessoas, o discurso do mérito perde a efetividade e a legitimidade, contribuindo para aumentar as frustrações e as desesperanças que permeiam a sociedade contemporânea.

O verdadeiro progresso da humanidade deve melhorar a qualidade de vida e o bem-estar da grande parte da sociedade, garantindo novas oportunidades, melhorias educacionais, incremento dos serviços de saúde dos indivíduos, empregos dignos e bem remunerados. O sonho do progresso é possível desde que os desafios sejam enfrentados de frente, na sociedade global as discussões sobre a desigualdade crescem de forma acelerada, instituições mais ortodoxas e conservadoras estão advogando políticas públicas mais efetivas para combater esta desigualdade, percebendo que dentre os maiores desafios do capitalismo mundial é criar novos espaços de sobrevivências digna e decente, evitando que a sociedade caminhe para a barbárie, a convulsão social e a degradação dos seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/02/2021.

A economista que defende uma mudança radical do capitalismo para o mundo pós-pandemia

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Margarita Rodriguez, BBC News Mundo – 08/08/2020

Mariana Mazzucato é considerada uma das economistas mais influentes dos últimos anos. E existe algo que ela quer ajudar a consertar: a economia global.

“Admirada por Bill Gates, consultada por governos, Mariana Mazzucato é a especialista com quem outras pessoas discutem por sua conta e risco”, escreveu a jornalista Helen Rumbelow no jornal britânico The Times, em um artigo de 2017 intitulado “Não mexa com Mariana Mazzucato, a mais assustadora economista do mundo”.

Para Eshe Nelson, da publicação especializada Quartz, a economista ítalo-americana não é assustadora, mas “franca e direta, a serviço de uma missão que poderia salvar o capitalismo de si mesmo”.

O jornal The New York Times a definiu como “a economista de esquerda com uma nova história sobre o capitalismo”, em 2019. Em maio deste ano, a revista Forbes a incluiu no relatório: “5 economistas que estão redefinindo tudo. Ah, sim, e elas são mulheres”.

“Ela quer fazer com que a economia sirva às pessoas, em vez de focar em sua servidão”, escreveu o colunista Avivah Wittenberg-Cox.

Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação na University College London, na Inglaterra, onde também é diretora-fundadora de um instituto de inovação na mesma universidade. Também é autora do livro O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado

O trabalho de Mazzucato teve inclusive um impacto fora dos círculos dos economistas. “No futuro econômico, a visão da economista Mariana Mazzucato, professora da University College London, é interessante. Acho que ela ajuda para pensar no futuro”, escreveu o papa Francisco, em março, em uma carta dirigida a Roberto Andrés Gallardo, presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Humanos.

Mazzucato acredita que o capitalismo pode ser orientado para um “futuro inovador e sustentável que funcione para todos nós”, diz a organização Ted, que promoveu três palestras com ela.

De fato, Mazzucato considera que a crise desencadeada pela pandemia de covid-19 é uma oportunidade de “fazer um capitalismo diferente”. Ela fala há anos sobre a importância dos investimentos do Estado nos processos de inovação.

Um de seus objetivos é acabar com o mito de que o Estado é uma entidade burocrática que simplesmente promove a lentidão. Outro é demonstrar que na economia “o valor não é apenas o preço”.

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrevistou Mariana Mazzucato. Confira a seguir os principais trechos.

BBC News Mundo – Você já chegou a declarar: ‘Não podemos voltar à normalidade. O normal é o que nos levou não apenas a este caos, mas também à crise financeira e à crise climática’. Essas palavras têm um significado especial para a América Latina, uma região com alto nível de desigualdade e pobreza, que luta contra as mudanças climáticas e com muitas de suas comunidades atingidas pela pandemia de coronavírus. Como podemos evitar voltar à normalidade pré-pandemia? Por que as pessoas não deveriam querer voltar a isso?
Mariana Mazzucato – A crise nos mostrou as deficiências na capacidade dos Estados e também que a maneira como vemos o papel do Estado no último meio século foi completamente inadequada.

Desde a década de 1980, os governos foram instruídos a se sentarem no banco traseiro para permitir que as empresas administrem (a economia) e criem riqueza. O Estado só poderia intervir para resolver problemas eventuais. O resultado é que os governos nem sempre estão adequadamente preparados e equipados para lidar com crises como a pandemia de covid-19 ou a emergência climática. Ao se presumir que os governos precisam esperar até que ocorra um grande choque sistêmico para agir, são tomadas medidas insuficientes.

Nesse processo, as instituições essenciais que fornecem bens e serviços públicos de maneira mais ampla (como o Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido, que teve cortes de verbas de US$ 1 bilhão desde 2015) ficam enfraquecidas. As medidas de austeridade impostas após a crise financeira de 2008 foram o oposto do investimento necessário para aumentar a capacidade do setor público e, assim, prepará-lo para o próximo choque do sistema.

Na América Latina, é fundamental que a agenda se concentre na criação e na redistribuição de valor.

Altos níveis de desigualdade e pobreza significam que existem populações vulneráveis com potencial para enfrentar enormes dificuldades econômicas no contexto de uma crise como a que estamos enfrentando agora. E, para agravar ainda mais as coisas, as economias latino-americanas são caracterizadas por enormes setores informais. Em todo o mundo, incluindo a América Latina, Estados despreparados gastam menos recursos para financiar serviços públicos. Além disso, eles também têm menos opções para ajudar o setor informal, o que é desastroso para as populações vulneráveis.

Portanto, os Estados devem criar valor investindo e inovando para encontrar novas maneiras de fornecer serviços públicos a populações vulneráveis na economia informal. Quando os Estados ficam em segundo plano e não se preparam para crises (o que aconteceu em muitos países, não apenas na América Latina), sua capacidade de oferecer serviços públicos é severamente prejudicada.

Mas esses serviços públicos devem fazer parte de um sistema de inovação: cidades verdes e crescimento inclusivo exigem inovação social e tecnológica. As tendências de desindustrialização na região criam dificuldades adicionais. Os Estados não têm capacidade para exigir que os produtores locais aumentem a criação de bens necessários para enfrentar a crise (por exemplo: suprimentos hospitalares), o que os obriga a depender do mercado internacional em colapso para acessar esses bens.

BBC News Mundo – Você disse que ‘a crise da covid-19 é uma oportunidade de criar um capitalismo diferente’. O que isso quer dizer? O que esta crise está nos dizendo sobre o sistema atual que outras crises não nos disseram?
Mazzucato – Há uma “tripla crise do capitalismo” acontecendo. Uma crise de saúde: a pandemia global confinou a maioria da população mundial, e está claro que somos tão vulneráveis quanto nossos vizinhos, local, nacional e internacionalmente.

Uma crise econômica: a desigualdade é uma causa e uma consequência da pandemia. A crise da covid-19 está expondo ainda mais falhas em nossas estruturas econômicas. A crescente precariedade do trabalho é uma delas. Pior ainda, os governos estão agora emprestando para empresas em um momento em que a dívida privada é historicamente alta, enquanto a dívida pública tem sido vista como um problema na última década de austeridade. Além disso, um setor de negócios excessivamente ‘financeirizado’ tem desviado o valor da economia.

A terceira crise é climática: não podemos voltar aos ‘negócios de sempre’. No início deste ano, antes da pandemia, a mídia estava cheia de imagens aterrorizantes de bombeiros sobrecarregados (tentando apagar incêndios), e não de profissionais de saúde.

BBC News Mundo – O capitalismo como o conhecemos pode sobreviver? Ele deve ser salvo?
Mazzucato – Essa crise e a recuperação de que precisamos nos dão a oportunidade de entender e explorar como fazer o capitalismo de maneira diferente. Isso justifica repensar para que servem os governos: em vez de simplesmente corrigir as falhas de mercado quando elas surgirem, elas devem avançar ativamente para moldar e criar mercados para enfrentar os desafios mais prementes da sociedade.

Eles também devem garantir que as parcerias estabelecidas com empresas, envolvendo fundos governamentais, sejam motivadas pelo interesse público, e não pelo lucro. Quando empresas privadas pedem resgates para os governos, devemos pensar no mundo que queremos construir para o futuro e na direção da inovação que precisamos alcançá-lo, e, com base nisso, adicionar condições que beneficiem o interesse público, não apenas o privado. Isso garantirá a direção da viagem que queremos: verde, sustentável e equitativa.

Quando as condicionalidades são bem-sucedidas, elas alinham o comportamento corporativo às necessidades da sociedade. No curto prazo, isso se concentra na preservação das relações de trabalho durante a crise e na manutenção da capacidade produtiva da economia, evitando a extração de fundos para os mercados financeiros e a remuneração de executivos. A longo prazo, trata-se de garantir que os modelos de negócios levem a um crescimento mais inclusivo e sustentável.

Em 31 de março, em sua conta no Twitter, Mazzucato reagiu às palavras do papa Francisco sobre seu livro: “Estou profundamente honrada pelo papa ter lido meu livro O valor de tudo: criar e absorver a economia global e por concordar que o futuro — especialmente pós-covid-19 — tem a ver com uma repriorização de ‘valor ‘acima’ preço'”.

A especialista disse à BBC News Mundo que ela foi convidada a participar de uma comissão do Vaticano focada na economia no âmbito da pandemia da covid-19 e nos contou sobre essa experiência: “Fornecemos relatórios semanais ao papa e à Diretoria do Vaticano, antes dos discursos semanais do papa, sobre aspectos-chave da resposta econômica à covid-19. É uma grande honra”.

“Nosso instituto de pesquisa e inovação se junta ao grupo de trabalho de outras universidades, incluindo a Georgetown, nos Estados Unidos, e do World Resources Institute. Esses relatórios variam da economia política do alívio da dívida à reestruturação das relações econômicas público-privadas”, prossegue.

“Nosso principal interesse é trabalhar com o Vaticano sobre como seu conceito de ‘bem comum’, do qual falamos em termos de ‘valor público’, pode ser usado para estruturar a forma de investimento e colaboração públicos e privados. Sem isso, corremos o risco de fazer o mesmo que aconteceu com a crise financeira de 2008: bilhões foram injetados sem afetar a economia real. A maior parte disso voltou ao setor financeiro e a crise seguinte começou a crescer”, diz ela.

“Para construir um crescimento inclusivo e sustentável, precisamos de investimento público impulsionado pelo conceito de bem comum e novos tipos de relações público-privadas que são estruturadas sob condições que criam um ecossistema mais simbiótico e não-parasitário. E temos que trazer grupos de cidadãos e sindicatos para a mesa de discussão, para garantir que não apenas tenhamos uma transição mais justa, mas que também haja vozes diferentes para definir que tipo de sociedade queremos. Acredito que a energia renovada por trás dos movimentos sociais, como o Black Lives Matter, é um bom sinal de que haverá uma forte pressão para que nossas sociedades evoluam progressivamente. Se não o fizermos, perderemos.”
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O Brasil não é só uma grande fazenda, por Marcus V. Rodrigues.

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Folha de São Paulo, 08/02/2021.

Desconhecer este fato é grave erro para alguns e ‘crime’ para outros

Em tempos de fake news, não acreditei, num primeiro momento, na veracidade das declarações recentes do sr. Carlos von Doellinger, dirigente maior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), defendendo a desindustrialização do Brasil nas atividades não vinculadas à agricultura e à mineração.

Um jovem assistente meu chegou a dizer, de forma humorada, que ele deve ter um doutorado em economia em Chicago, como muitos dos geniais burocratas da atual equipe de economistas do Ministério da Economia, que não são favoráveis e não entendem do tema desenvolvimento industrial.

Logo depois, também com o humor brasileiro, levantou a hipótese de que ele tinha tomado a vacina, e isso poderia ter alterado seu DNA, fazendo com que perdesse o bom senso ou esquecesse os ensinamentos básicos de uma especialização que fez em engenharia de produção e fabricação na PUC-RJ.

Mas nada disso! O atual presidente do Ipea, uma instituição que abriga os mais bem formados doutores em economia do país, possui somente um mestrado. E, pelas informações a que se teve acesso, ainda não tomou a vacina contra a Covid 19.

O Ipea é uma das instituições de referência e excelência, herança bendita dos governos militares, com o legado de “pensar o Brasil” e que ajudou a forjar o milagre econômico dos anos 1970. Historicamente, ele tem a função de dar suporte técnico ao governo para a formulação de políticas públicas destinadas aos programas de desenvolvimento.

Portanto, seu dirigente maior deveria ter uma visão macro e atualizada do contexto atual e ser independente do órgão responsável pelos programas de desenvolvimento, hoje o Ministério da Economia. Mas o atual presidente do Ipea foi indicação pessoal, segundo informações da imprensa, do titular do citado ministério, Paulo Guedes.

Assim, tudo foi explicado. Nem fake news, nem os efeitos da vacina, nem Chicago. O que pode ter ocorrido foi um saudosismo no retorno aos debates da “política do café com leite” da República Velha, quando se discutia o que era mais importante: a industrialização ou vender commodities. Posições míopes e desatualizadas quanto ao desenvolvimento, com foco apenas nos aspectos macroeconômicos, desprezando conhecimentos atuais e experiências de nações que cresceram e empregaram seus cidadãos a partir do setor industrial.

Hoje não existe nação forte, independente e soberana sem um parque industrial moderno, abrangente, diversificado e ativo, que fabrique de alfinetes a aviões. O exemplo disso é a recente pandemia que explicitou o erro estratégico das nações ocidentais ao terceirizar suas produções industriais, passando a administrar apenas marcas, marketing e fumaça. O desespero de muitas para comprar respiradores, e agora os insumos para a vacina, despertou o Ocidente para o erro cometido. Mas, diante das recentes declarações do titular do Ipea, o instituto que “pensa o Brasil”, o posicionamento brasileiro deveria ser o oposto.

É inconsequente e irresponsável que se defenda a desindustrialização de atividades não vinculadas à agricultura e à mineração. Isso poderia ser um crime de traição à pátria? Não tenho conhecimento jurídico para responder.

E tudo isso durante a quarta fase da Revolução Industrial, que tem como foco a inteligência artificial e que bate às nossas portas. No Brasil, a produção primária e a manufatura de seus produtos se fazem imperiosas sim. Mas só isso é pouco! Seria como planejar o fim dos sonhos de um país independente e autossuficiente.

Mas o Brasil é forte, grande e inovador. E o empresário brasileiro tem garra, é empreendedor e pensa grande —não vai se adequar somente à produção ou manufatura das commodities como foi sugerido, de forma limitada e infeliz, por um frentista do posto Ipiranga.

Pense mais, Ipea. Faça o seu papel e ajude a acordar o Brasil!

Marcus Vinicius Rodrigues
Doutor em engenharia da produção e autor de livros na temática qualidade e produtividade, é membro do Conselho Editorial do Instituto General Villas Bôas e da Academia Brasileira de Ciências da Administração e ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)

O desafio dos sem-escola, por Renata Cafardo.

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Problema da evasão escolar, que já era sério antes, passa longe da atenção do governo

Renata Cafardo, O Estado de S. Paulo – 06/02/2021

Entre os prejuízos já tão enumerados da falta de escola durante o ano passado, há um que permanece invisível aos olhos da sociedade que ainda briga para abrir ou não a escola. Há meninos e meninas, de todas as idades, que deixaram a escola em 2020 e nunca mais vão voltar se ninguém correr atrás deles. Claro, isso infelizmente já acontecia antes da pandemia, mas os primeiros indicadores mostram que, como se previa, piorou.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad feita durante a pandemia, indicam o número assustador de 1,3 milhão de crianças e adolescentes que não estavam frequentando a escola – presencial ou remota – em outubro.

Isso representa 3,8% da população entre 6 e 17 anos. Pré-pandemia, era quase a metade, 2%. Além deles, outros 4 milhões não tiveram acesso a nenhuma atividade escolar. Com isso, 5,5 milhões de brasileiros de 6 a 17 anos não têm seu direito à educação preservado. Ou seja, não têm escola.

Para eles, a discussão sobre abrir ou não escola importa apenas se, quando aberta, alguém estiver disposto a procurá-lo e levá-lo de volta. Porque está claro que, enquanto fechada, nada foi feito para isso em muitos lugares. Os maiores índices são no Norte e Nordeste do País. O Estado mais crítico é Roraima, com 15% das crianças e adolescentes nessa situação. Em São Paulo, são 4%.

Esses dados estão em relatório recente do Unicef, organização que há tempos se dedica a ir atrás dessas crianças, com um programa da chamada busca ativa. Municípios e Estados inscritos podem acessar uma plataforma onde são colocados os dados das crianças fora da escola. Técnicos batem de porta em porta, sobem na bicicleta ou no jegue, atrás de quem não apareceu mais para estudar. Em 2020, conseguiram que 80 mil fossem rematriculados, 35 mil durante a pandemia.

O Unicef ensina que o trabalho não é apenas da educação. Isso porque os motivos de deixar a escola não têm necessariamente a ver com uma educação de má qualidade. O que leva crianças e adolescentes são o trabalho infantil, o abuso sexual, a violência dentro de casa ou na própria escola, a falta de transporte, a gravidez precoce. Por isso, cidades dispostas a não deixar seus pequenos cidadãos para trás precisam unir Saúde, Educação e Assistência Social para buscá-los e convencê-los a voltar.

Gestores precisam olhar para o problema como prioridade. As matrículas para 2021 já foram feitas, muitas escolas já estão reabrindo, todos devem se preocupar com cada um que não apareceu. Como já era esperado, não há qualquer olhar federal para o problema. O Ministério da Educação não fala em evasão escolar na pandemia.

Mas, mesmo em meio à confusão de pós-eleição do presidente da Câmara, deputados da bancada da educação – Tábata Amaral (PDT-SP), Idilvan Alencar (PDT-CE), Professor Israel Batista (PV-DF), Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), entre outros – apresentaram semana passada um projeto de lei que prevê uma bolsa para adolescentes pobres que continuarem estudando.

A ideia é pagar R$ 500 a quem concluir o 1.º ano do ensino médio, R$ 600 para o que terminar o 2.º e R$ 700 no fim do 3.º. Os que tivessem nota acima na média no Enem ganhariam um pouco mais. Segundo Tábata, o foco é no adolescente porque os índices de evasão já são altíssimos nessa etapa. O benefício seria incorporado ao Bolsa Família e atingiria 4 milhões de jovens.

Como diz a deputada, a auto estima do adolescente não anda bem. Ele não acredita que a educação vai levá-lo a algum lugar. Mas, com certeza, há um destino melhor para quem não deixa a escola. Com mais dinheiro, melhor emprego, mais saúde, mais anos de vida. É preciso repetir isso sempre, para que excluídos não continuem cada vez mais excluídos.

É REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADO E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)

‘Brasil ainda vive mundo pré-Revolução Francesa’, diz Eduardo Giannetti

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Para o economista, que publicou em novembro o livro ‘O Anel de Giges’, elite brasileira ainda acredita poder transgredir leis impunemente

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 05/02/2021

Ética é o tema central do último livro do economista Eduardo Giannetti O Anel de Giges, publicado em novembro.

Nele, o autor conta como diferentes correntes de pensamento abordam as respostas do homem para a certeza de impunidade. A obra é uma reflexão sobre “elementos universais da psicologia moral dos seres humanos”. “Embora esse livro não fale de Brasil, ele parte de uma experiência de um cidadão brasileiro, que percebe como a ética é talvez o fulcro maior das nossas dificuldades”, diz o economista.
Giannetti não trata de brasileiros nem de nenhuma sociedade específica, mas, quando questionado sobre os padrões éticos locais e atuais, afirma que o País está no século 18. “O Brasil vive o Antigo Regime, aquele mundo pré-revolução francesa, em que uma classe de pessoas ricas, poderosas e famosas se sente acima dos demais e acredita que pode, impunemente, transgredir normas e leis que regem a vida em sociedade.”

O economista diz também que acreditava que esse cenário poderia mudar com a Lava Jato, mas que o País acabou retrocedendo nos últimos anos. “(A Lava Jato) não teve sequência, não mudou as práticas políticas. Não construímos um regime que torne muito mais onerosa e custosa uma prática corrupta.”

Em Anel de Giges, o autor parte da fábula de Giges – relatada no livro República, de Platão -, em que um camponês encontra um anel que lhe dá o poder da invisibilidade. Sem censuras sociais e podendo violar a lei sem ser punido, Giges seduz a rainha, mata o rei e se apossa do trono. Giannetti questiona o que cada um de nós faria no lugar de Giges. Seríamos o “Giges-sem-lei”? Isto é, um Giges que age como “a fera da ambição desmedida”. Ou o “Giges-cristão”? Ou seja, um Giges que se abstém de usar o anel por ser livre de tentações. Giannetti, novamente, trata do homem de forma universal, mas, nesta entrevista ao Estadão, admite que o brasileiro pode ser um “Giges-sem-lei afetuoso”, mais passional e menos calculista.

No livro, o sr. afirma que ética e virtude não são mais frágeis que desonestidade e má-fé. Isso é válido para todas as sociedades independentemente dos períodos? Às vezes é difícil acreditar nisso quando vivemos momentos trágicos como o atual e vemos pessoas e governantes tirando vantagem sem nem mesmo precisar de um anel de Giges.

Esse livro não é referido a um contexto histórico. A palavra Brasil sequer ocorre no livro inteiro. Estou tentando pensar elementos universais da psicologia moral dos seres humanos. Aquela corrente do Giges-sem-lei, que começa com o Gláucon (irmão mais velho de Platão, que conta a história de Giges), em República, passa na filosofia moderna, entre outros, por Hobbes e Rousseau e reaparece na obra do Freud, toma a parte pelo todo. Ela se foca muito nos elementos antissociais da psicologia humana: agressividade, sexualidade abusiva, desejo de tirar proveito sem nenhuma preocupação com o outro. Ela não leva em conta que o ser humano tem um princípio de sociabilidade muito profundo. Nós buscamos construir vínculos densos de afetividade com pessoas que importam para nós. Isso foi completamente subestimado. O Giges-sem-lei que trata os outros de forma puramente instrumental e calculista termina solitário. Criando um deserto à sua volta. Ele está permanentemente em uma postura de manipulador. Procuro mostrar que essa concepção de felicidade é limitada. Ela não dá conta dos anseios constitutivos do ser humano. Adam Smith e David Hume colocam um contraponto. Hume fala de uma pessoa que tem todos os poderes do universo, mas que, enquanto não tiver uma pessoa com quem possa compartilhar isso de maneira sincera e espontânea, é o mais miserável dos homens. Adam Smith diz que o maior charlatão tem algum princípio na sua constituição psicológica que o leva a ter algum grau de empatia com os demais. (O homem) não é totalmente isolado dos sentimentos morais da comunidade.

Por outro lado, o sr. também coloca críticas ao Giges de Platão e ao Giges-cristão.

Eles colocam demandas sobre-humanas para que alcancemos um ideal de perfeição ética completamente irreal, dada a nossa psicologia moral e dado o nosso psiquismo arcaico, que é herdado do ambiente evolucionário. Assim como nosso corpo é uma relíquia de tempos ancestrais – ele foi moldado ao longo de um processo evolutivo de centenas de milhares de anos -, algo semelhante ocorre em relação à psique humana. Ela foi moldada ao longo de um processo evolutivo. Nós somos herdeiros de um psiquismo arcaico, que não escolhemos ter. Essas duas correntes filosóficas e Kant também ignoram por completo esse psiquismo arcaico do qual nós somos herdeiros independentemente da nossa vontade. São partes constitutivas do nosso ser. Não são visíveis a olho nu como é o nosso corpo, mas pertencem a nós e são parte da nossa interioridade. Muitas das pulsões antissociais que temos são fruto dessa herança evolutiva.

Apesar de o livro não tratar de uma sociedade específica, é possível relacioná-lo à nossa sociedade?

Tem dois vínculos que dá para fazer entre os temas do livro e a realidade brasileira. O primeiro é que o Brasil ainda parece ser um país que vive o Antigo Regime, aquele mundo pré-revolução francesa, em que uma classe de pessoas ricas, poderosas e famosas se sente acima dos demais e acredita que pode, impunemente, transgredir normas e leis que regem a vida em sociedade. A palavra privilégio, a etimologia dela, vem daí. Privilégio é uma lei privada que não se aplica a todos. Muitas autoridades e pessoas poderosas acreditam que sua condição lhes dá o privilégio de fazer impunemente ações que agridem os direitos dos demais. Tem tantos exemplos, de foro privilegiado, de supersalários, autoridades que afrontam a polícia, que abusam de todas as prerrogativas para exercer os seus desmandos. Vou ler um trecho de um romance do Marquês de Sade que cito no livro. O Marquês de Sade está descrevendo o que era o mundo do Antigo Regime francês e coloca na boca de um de seus personagens, Verneuil, a presunção de quase irrestrita impunidade da elite aristocrática, dos ricos, poderosos e famosos daquela época. Ele diz: ‘É impossível que as leis sejam igualmente aplicáveis a todos os homens. Esses remédios morais não são diferentes dos remédios físicos: não nos riríamos de um curandeiro que, possuindo apenas um remédio para todos os fregueses, tratasse um estivador da mesma forma que a uma solteirona frívola? Claro que sim! As leis são feitas somente para gente comum, os que necessitam de restrições e que nada tem a ver com o homem poderoso, a quem elas não dizem respeito. Em qualquer governo, o essencial é que o povo jamais invada a autoridade dos poderosos.” Isso é a presunção de impunidade e a condição de privilégio da elite do Antigo Regime. Eu acredito que o Brasil ainda vive isso em grande medida. Boa parte da nossa elite acredita que a lei é para os outros, para o povão. Aproveita qualquer situação para abusar da condição de privilégio que têm.

O livro traz um experimento de impunidade real, em que foram analisados diplomatas que podiam estacionar em locais proibidos em Nova York sem serem multados. O sr. não cita como os brasileiros se comportaram, mas, pelo experimento, eles tiveram uma média de 29,9 infrações por diplomata e ficaram na 29ª posição no ranking dos mais corruptos, entre 146 nacionalidades. O sr. afirma que a adesão às normas, mesmo quando se tem impunidade, depende da existência de uma rede de crenças morais compartilhadas pelas pessoas. Isso significa que no Brasil haveria um menor compartilhamento?

Outro tema que liga (o livro) com o Brasil é um fenômeno que chamei de “paradoxo do brasileiro”. Cada brasileiro, individualmente, acredita ser muito distinto de tudo o que vê ao seu redor. Ele vê um mundo de corrupção, de abuso de autoridade, de desmandos, de incompetência. Mas todos nós nos achamos, de alguma maneira, diferentes e superiores a tudo isso. No entanto, todos nós juntos somos exatamente tudo isso que aí está. Isso é um paradoxo.

Temos um ponto cego em relação a nós mesmos e um olho de lince em relação às falhas dos demais. Eu posso te dar depoimento como professor, por 30 anos, do que eu vi em sala de aula, mas tem mil outras situações. Os alunos vão às ruas, protestam contra corrupção, exigem ética na política, querem mudar o modo como se governa o Brasil. Tem de fazer isso mesmo. Essa indignação é o que pode mudar as coisas. No entanto, esses mesmos alunos, quando termina o ano e eu vou dar a prova, começam a colar e não percebem que essas duas coisas são incompatíveis. Você não pode estar um dia na rua pedindo ética na política e, quando chega o momento de dar o exemplo mais comezinho de comportamento ético, pisa na bola. Será que esses jovens não ligam as pontas? Não percebem que esse exercício de racionalização do seu próprio caso individual é que vai levando a essa situação que é tudo isso que aí está? Quem começa colocando na faculdade daqui a pouco está roubando no Congresso, fraudando Orçamento. E vai racionalizando o seu próprio caso com enorme criatividade: ‘é um pecadilho, está todo mundo fazendo’. O Brasil sempre foi assim.

Quem é o mestre na descrição disso é o Machado de Assis. Por isso, eu dediquei um capítulo a ele, que mostra no detalhe, até com certo sadismo, a nossa riquíssima vocação para a desonestidade criativa. Nós nos justificamos aos nossos próprios olhos naquilo que nós fazemos de errado. As pessoas não se percebem como parte do todo e não percebem que o que aí está é o resultado de todos nós juntos. Eu não me excluo desse paradoxo. Sou parte dele.
Mas isso não significa que compartilhamos menos uma rede de crenças morais.

Aí é uma coisa delicada. Tem um filósofo inglês do século 18, Joseph Butlin, que tem uma colocação que não está no livro, mas vai muito nessa pergunta. Ele questiona o seguinte: qual é o padrão de moral vigente em uma sociedade?

Ele fala: se você quer saber qual é o padrão das crenças compartilhadas em um determinado agrupamento humano, basta observar o que estão todos se esforçando em parecer que são: honestos, competentes, cumpridores do dever, atenciosos. O hipócrita e o corrupto sabem melhor do que ninguém quais são as crenças morais compartilhadas socialmente, mesmo que não as pratique. A prova disso é que eles são hiper cuidadosos quando se trata de ocultá-las e de não se traírem aos olhos dos demais. Isso é a demonstração de que eles sabem e compartilham, embora não pratiquem. Os brasileiros sabem o que é certo e o que é errado. Por isso que os hipócritas e corruptos se dão tanto ao trabalho de ocultar as práticas que cometem. A Lava Jato foi um exemplo monumental disso. Quantos de nós no Brasil poderíamos supor que, ao longo de tantos anos, a Petrobrás tinha se tornado o que ela mostrou ter se tornado. Foi preciso um trabalho de investigação para que aquilo aflorasse. As pessoas que estavam ocultando sabiam perfeitamente quão errado era aquilo. Acho que uma característica histórica e de origem da formação social e cultural brasileira é um individualismo exacerbado. As pessoas pensam em si e nas suas famílias. Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei. É um fenômeno chamado de familismo amoral. É desse individualismo anárquico que resulta nossa dificuldade em ter instituições, em ter comportamentos que nos permitam nos reconhecermos como coletividade. Não é um problema original do Brasil. O Sólon, legislador e poeta ateniense, responsável pela primeira constituição democrática do Ocidente, tem um verso que acredito que se encaixe como uma luva para a experiência brasileira. Ele está falando dos atenienses no século 6 AC: “Cada um de vós em separado tem a alma astuta da raposa, mas, todos juntos, sois como um tolo de cabeça oca”.

Isso significa que, no Brasil, o Giges-sem-lei tem uma certa predominância?

Há uma sensação de impunidade por parte de um contingente fundamental da sociedade, principalmente na elite. Ao mesmo tempo, há uma outra característica da cultura brasileira que é a cordialidade, no sentido em que o Sérgio Buarque de Holanda definia, que não é ser afetuoso ou bonzinho. É a prevalência das emoções e dos impulsos no comportamento acima de qualquer consideração sobre regras impessoais e sobre princípios universais. Isso não é bem o Giges-sem-lei. O Giges-sem-lei é um manipulador, um calculista, uma pessoa muito ciosa de uma certa racionalidade instrumental, que procura o benefício individual sem se importar com as leis e com o direito alheio. O brasileiro é um Giges-sem-lei afetuoso, passional.

O sr. citou a Lava Jato, que talvez tenha sido a primeira vez em que os brasileiros viram ricos e poderosos sendo condenados. Antes, era como se eles fossem impunes, usassem o anel de Giges. Como vê isso após a operação?

Retrocedemos na política e na Justiça. Fui muito esperançoso em relação à Lava Jato como um divisor de águas, como foi a redemocratização e o Plano Real. Infelizmente, não foi o caso. Não teve sequência, não mudou as práticas políticas, não construímos um regime que torne muito mais onerosa e custosa uma prática corrupta. Há um abafamento e até um retrocesso em relação às punições. A coisa foi se perdendo ao longo do caminho e ficou muito mais complicada por conta da eleição de 2018 e toda a polarização raivosa que tomou conta da política brasileira. Agora, eu insisto: tenho muitas vezes a clara percepção de que o Brasil, em grande medida, vive ainda uma situação de Antigo Regime pré-Revolução Francesa. E vejo que ondas de insatisfação vem se sucedendo na vida brasileira. Nós tivemos junho de 2013. Depois, a onda anti-establishment político que quase elegeu a Marina Silva em 2014. Tivemos a onda que gerou o impeachment da Dilma. A greve dos caminhoneiros. Por fim, a eleição do Bolsonaro, que foi uma onda violentíssima também anti-establishment político, antipetismo, mas que manifestou de maneira eloquente o descontentamento e a insatisfação de um segmento majoritário e amplo da sociedade brasileira. Será que essas ondas terminaram? Tendo a crer que não. Tendo a crer que essas ondas são movimentos sucessivos e que estão levando a uma situação de ruptura. É um movimento característico de sociedades que caminham para um fim de antigo regime, que está sendo colocado em cheque. Como é que o Estado brasileiro arrecada 33% do PIB em impostos e, em pleno século 21, quase a metade dos domicílios não tem coleta de esgoto? Eu não estou manifestando um desejo por isso. Estou observando friamente um movimento. O Estado brasileiro não representa os anseios e as demandas legítimas da sociedade brasileira. Nós tivemos esquerda, direita, democracia, autoritarismo. Tivemos tudo, e os problemas fundamentais não foram atendidos. Ensino fundamental de qualidade universal, saneamento básico, segurança pública, transporte coletivo. É uma situação que não se sustenta indefinidamente.