Auto-obsessão: quando somos os nossos próprios algozes.

A Doutrina dos Espíritos nos trouxe grandes instrumentos de reflexão e melhorias íntimas, mostrando-nos os equívocos que cometendo e nos auxiliando na construção de uma estrada mais consistente e estruturada para alcançarmos nosso progresso interior, somos frutos de nossas escolhas e de nossas experiências, nestas caminhadas caímos e nos levantamos sempre em busca de um progresso que, mesmo nos parecendo distante, será alcançado por todos num determinado momento, uns mais rapidamente enquanto outros demandarão mais tempo, mas todos vamos encontrá-lo.

O Espiritismo nos trouxe informações preciosas da vida e da existência de um mundo depois da morte física, mostrou-nos ainda, que a morte não existe e que estamos, neste mundo e no outro, num grande processo evolutivo, a evolução não dá saltos, quando deixamos o mundo material não nos tornamos melhores e mais conscientes, alguns espíritos mais conscientes e maduros até conseguem enxergar mais nitidamente, mas a grande maioria dos indivíduos mourejam na obscuridade e na ignorância.

A Doutrina dos espíritos nos revelou ainda, a existência de obsessores e perseguições espirituais, entidades que muitas vezes se deixam dominar pelos rancores e ressentimentos, cultivando sentimentos inferiores e os deixando se transformar em ódio, diante destes sentimentos, muitas entidades perseguem outros irmãos, buscando vinganças e revanches, deixando que estes sentimentos menores os transformem em vingadores dominados pela maldade. As lições codificadas por Allan Kardec, que se manifestaram através de O Livro dos Espíritos, foram importantes para acabar com as crenças católicas de demônio e de exorcismo, além de condenar muitas das técnicas e dos tratamentos dos hospitais psiquiátricos, que se utilizavam de choques e de violência para reprimir uma suposta loucura dos indivíduos, gerando dores e aumentando as angústias internas.

Com as informações trazidas e com o crescimento de seus adeptos, surgem casas espíritas, seminários, congressos e locais onde as teses espíritas passam a ser discutidas e prosperando rapidamente, autores importantes e intelectuais renomados abraçam as causas doutrinários, dentre eles podemos destacar vultos da intelectualidade européia, desde Camille Flamarion, León Denis, Ernesto Bozzano, Charles Richet, entre outros nomes de destaque.

Um dos temas mais fascinantes da doutrina espírita é a questão da obsessão, o fenômeno sempre esteve muito presente nas sociedades, incomodando e gerando constrangimentos variados para as famílias, desde a de nobres e abastados industriais da época até de trabalhadores mal remunerados e pessoas que viviam na indigência social e econômica. Neste ambiente, as teses que defendiam técnicas de exorcismo eram as mais comuns, embora agressivas e marcadas por certo exibicionismo, davam um grande poder aos membros da Igreja católica e se mostravam frágeis e insuficientes para resolver as questões ligadas as obsessões.

A nova doutrina trazia formas diferentes de lidar com esta questão, entendia o processo de forma diferente e via uma ausência de loucura, mas uma perseguição espiritual, onde o espírito ora obsessor buscava ressarcir suas perdas com o encarnado, cobrando-lhe aquilo que acreditava ser seu de direito ou queria impingir no obsidiado dores e moléstias para se vingar de atitudes e gestos cometidos anteriormente, tudo isto gerava graves constrangimentos ao perseguido e aos seus familiares que estavam intimamente ligados.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que as entidades, perseguidor e perseguido são, na verdade, indivíduos que possuem vínculos sólidos e antigos, estes vínculos tem as suas origens em experiências anteriores, muitos deles estão interligados a muitos anos, décadas ou até mesmo séculos, nestes períodos estes espíritos cultivaram alguns conflitos, confrontos ou brigas que acabaram gerando desequilíbrios na relação, sendo cobrados nesta experiência física.

A nova profilaxia estava centrada na conversa e no esclarecimento do obsessor, muitos deles não são maus ou violentos, apenas estão dominados pela busca constante de vingança, esta visão acaba com a ideia de que, nesta relação, existem mocinhos e bandidos, a doutrina espírita nos mostra que somos todos culpados por erros cometidos anteriormente, o obsessor que hoje se coloca como vítima pode ter sido, em outras oportunidades, o grande algoz, o responsável pelo crime ou pelos deslizes cometidos, mesmo assim, este espírito prefere cobrar de outros a assumir suas responsabilidades de equívocos anteriores.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra claramente que não existem vítimas, por mais que nos emocionemos com as dores e as dificuldades dos outros indivíduos, todos somos algozes, todos cometemos erros e equívocos variados e devemos responder por estas nossas atitudes. Mesmo nos emocionando com as dores alheias, devemos reconhecer que temos um passado marcado por desequilíbrios, cometemos os mais intensos desatinos e devemos compreender que as leis são educativas e não punitivas, as dificuldades servem para nos elevar e nos fazer crescer e não para nos maltratar e nos humilhar, gerando mais constrangimentos e desequilíbrios.

Dentre os vários tipos de obsessão, destacamos a auto-obsessão, que acontecem aos milhares na sociedade, todos passamos por situações parecidas, quantas vezes nós ficamos remoendo coisas antigas, pensamentos e situações vividas a muitos anos, situações que nos trouxeram momentos de prazer e alegria, mas que já ficaram para trás e deveria ter sido superadas, se continuamos a remoer esta situação é porque alguma coisa ficou mal resolvida na nossa história, remoer esta situação apenas nos fará mal e tende a gerar graves desequilíbrios interiores, gerando constrangimentos e ressentimentos.

Quando falamos e refletimos sobre a auto-obsessão, estamos desviando o olhar do obsessor/exterior e concentrando no indivíduo/interior, sendo o indivíduo o grande obsessor de si mesmo, aquele que precisa, urgentemente, compreender seus ingredientes, tais quais: culpa, remorso, causas diversas a fim de que possa superar o problema, superando os momentos difíceis e construindo cenários e perspectivas mais saudáveis.

A culpa e os remorsos podem gerar nos indivíduos graves desajustes, que quando não são resolvidos por completo podem ocasionar graves desequilíbrios emocionais e espirituais, levando muitos indivíduos a uma auto-obsessão que pode gerar uma sabotagem completa, criando ressentimentos, rancores e mágoas intermináveis.

Muitas pessoas viveram relacionamentos intensos, marcados por uma paixão alucinante, esta situação ainda não foi superada para um dos envolvidos e este a remove com constância, revive uma situação que a muito não mais existe, faz planos e inventa situações não vividas, mas imaginadas e, com isso, sua mente e seu pensamento plasmam imagens e prazeres constantes. O resultado imediato desta situação é que o indivíduo cria um processo obsessivo e o cultiva no cotidiano, gerando graves desequilíbrios que podem levá-lo a loucura e a insanidade, com graves constrangimentos para o espírito imortal.

A auto-obsessão é fenômeno muito mais comum do que as pessoas imaginam, na contemporaneidade muitos indivíduos sonham com situações que dificilmente se tornarão uma realidade num futuro próximo, muitos se veem em situação de desfrute financeiro e material muito além de suas posses, se estes pensamentos crescerem e sair do controle dos indivíduos, podem se tornar fonte de graves desajustes emocionais, levando-os a terapias em clínicas de psicologia ou, em casos mais intensos, em clínicas psiquiátricas.

Os seres humanos tem sido orientados desde os tenros anos de vida e olhar para o ambiente externo, crescemos e nos desenvolvemos, iniciamos nossas atividades profissionais, nos relacionamos e depois casamos, constituímos famílias e nos envolvemos tão intensamente com as atividades do cotidiano e nos esquecemos de olhar para nosso íntimo, diante disso, não aprendemos a lidar com nossos sentimentos, nossos desejos e vontades muitas vezes estão descontrolados e quando paramos para refletir estamos envolvidos em uma teia de desequilíbrio que pouco sabemos como lidar e compreender, diante disso, faz-se fundamental seguirmos a máxima de Sócrates quando nos disse Conheça-te a si mesmo.

            Acrescentamos ainda, que numa sociedade marcada pela concorrência crescente entre os agentes econômicos, onde as pessoas se entregam, cada vez mais, ao trabalho profissional e a sobrevivência material, deixando de lado valores mais íntimos, sentimentos mais internos e emoções mais aceleradas, acreditando que estas dores e sentimentos internos serão preenchidos com bens e valores materiais, ledo engano destes indivíduos e desta sociedade, que observa atônita um crescimento acelerado no suicídio, na depressão, na ansiedade e nos transtornos emocionais e espirituais.

Sem se conhecer, sem refletir sobre seu papel no mundo e sem buscar um equilíbrio emocional e espiritual, o indivíduo tende a se deixar levar por vontades e desejos hedonistas, prazeres imediatos e gozos abundantes, nesta trilha os prazeres materiais são imensos, mas os vazios existenciais criados pela ausência de uma espiritualização são cada vez maiores, deixando um grande hiato nos valores do indivíduo.

O tema obsessão sempre esteve na berlinda na literatura espírita, muitas são as obras que analisam a temática e nos trazem grandes ensinamentos sobre questão, tão complexa e empolgante, o tema auto-obsessão, embora fundamental, ainda é estudado com menor ênfase, alguns autores de destaque, como Yvonne do Amaral Pereira e André Luiz, além de obras relevantes de Suely Caldas Schubert e Divaldo Pereira Franco, refletiram fortemente sobre a auto-obsessão, nos trazendo importantes contribuições para a sociedade e desnudando um tema que está presente muito fortemente no cotidiano das pessoas, gerando graves constrangimentos individuais e traumas generalizados para todos os entes queridos e familiares.

Quando, nos trabalhos mediúnicos, nos deparamos com a obsessão e temos a oportunidade de conversar com o obsessor, encontramos dramas e histórias marcadas por ressentimentos e angústias constantes, nesta situação encontramos situação que remetem a outras encarnações que estão vivas na mente do espírito ora agressor. Ao analisar os casos de auto-obsessão, percebemos a ausência de agentes exteriores, todo o processo acontece intimamente, o obsessor é a mesma pessoa do obsidiado, nestes casos, as soluções são deveras complexas e, muitas vezes demoradas, isto porque envolve dramas da alma, conflitos internos e profundos e dores que perpassam a encarnação presente e tem suas raízes na parte mais íntima do ser humano, se encontram nas profundezas da alma, num local onde o adentrar só é permitido àquele que, além de conhecer a senha e possuir as chaves, seja dotado de sentimentos nobres, puros  e mais conscientes, a reflexão íntima e a oração são fundamentais, mas a reforma íntima e a atitude no bem fazem a diferença e auxilia no crescimento e na consolidação do progresso e no rechaço de pensamentos negativos e sentimentos inferiores.

Muitas pessoas buscam informações sobre o que foram em encarnações anteriores, se assustam quando ficam sabendo e, muitas delas, se desesperam, criando situações negativas e altamente perturbadoras. O medo dos erros cometidos no passado gera no indivíduo grande desesperança com relação ao futuro, preocupações inexistentes podem aparecer depois de descobertas de equívocos em vidas anteriores, sem equilíbrio e consciência desenvolvidos, a descoberta pode gerar graves transtornos e auto-obsessão, somos todos marcados por graves desequilíbrios, os erros anteriores não podem ser reparados, mas as melhoras individuais devem ser construídas no futuro e isto só será possível com trabalho, oração e muita disciplina, com estas três atitudes nenhuma obsessão ou auto-obsessão se perpetuará por muito tempo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

‘Os Bolsonaros têm relações com a esgotosfera do crime’, diz Padilha

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Em segunda temporada da série ‘O Mecanismo’, diretor volta a atacar corrupção sistêmica no país 

Ivan Finotti – Folha de São Paulo, 10 de maio de 2019.

Em 16 de abril, o cineasta José Padilha escreveu um artigo na Folha no qual reconhecia “o erro” que cometeu. Referia-se a Sergio Moro, que, segundo o diretor, perdeu a independência política, “finge não saber o que é milícia e hoje trabalha para a família Bolsonaro.

Essa nova visão do ministro da Justiça e Segurança Pública não afetou o juiz Paulo Rigo, personagem da série “O Mecanismo” inspirado em Sergio Moro. “Estou contando uma história na qual, quando aconteceu, Moro tinha coisas positivas, independente de possíveis mudanças posteriores”, diz Padilha, criador da série.

A estreia da segunda temporada acontece nesta sexta (10), e Padilha se diz preparado para as críticas: “Sou antipetista, antipeessedebista e antipeemedebista. Mas só me criticam por ser antipetista. Acho que a Dilma sofreu um golpe, mas sempre achei que o PT roubou. E essas coisas são compatíveis, sim”.

​Leia abaixo os melhores trechos da entrevista que aconteceu na terça (7).

Você disse que não pensou em mudar a representação do juiz Sérgio Moro na segunda temporada de “O Mecanismo”. Mas haverá uma terceira, quarta, quinta temporada para mostrar isso? O que você planejou?

Eu não estou fazendo uma série sobre o Sergio Moro. Estou fazendo uma série sobre o mecanismo, que ele é real e opera independente do partido político. Serra foi denunciado, Temer foi preso, Lula está na cadeia. O mecanismo não tem ideologia, ele é a forma pela qual a política se estruturou no Brasil desde o primeiro governo democrático. Agora, eu não sei quem mais é o Moro. Eu vejo duas possibilidades: ele não olhou direito onde estava entrando e, como o Fernando Henrique, é muito vaidoso. Não se deu ao trabalho de olhar o histórico dos Bolsonaros. Os bolsonaros tem ralações com a esgotosfera do crime organizado carioca. Ele é de Curitiba, talvez não saiba. A outra possibilidade é que ele sabia o que estava fazendo e ele fez. Aí o Moro é totalmente diferente de quem eu pensei que ele fosse.

Mas há uma terceira temporada planejada?

A gente não pode falar sobre isso. O Netflix me proíbe. Eu estou censurado, como se fosse o Toffoli [risos]. Mas é uma questão econômica. A nossa série é muito mais cara do que todas as outras séries do Netflix no Brasil. Então temos que olhar o resultado versus o custo.

Quanto custa cada episódio?

Eu não posso te dizer…

E a abertura dessa temporada, que mostra políticos como FHC, Lula, Temer e muitos outros enquanto toca a canção “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”?

 
Essa é a abertura que eu tinha proposto para a primeira temporada. Mas tinha aquele pensamento com a série: “será que a gente vai ser processado por alguém? Por todos?”. Aí resolvemos fazer uma abertura inócua, que foi ao ar na primeira temporada. E então começou a ser todo mundo preso, acusado, e não houve processos contra nós. Aí eu quis de novo usar a abertura e dessa vez deu certo.

 

Será que justamente essa nova abertura não vai dar processo?

Não sei. Estou mostrando a história do Brasil, do presidencialismo democrático. Eu me dei ao trabalho de separar o refrão de forma que quando diz “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão” só aparecem imagens de quem foi condenado. No resto da música aparecem os outros.

Os atores que representam políticos reais usam outro nome na série. Lula é Gino, Sérgio Moro é Paulo Rigo e por aí vai. Você pediu a eles que se inspirassem nos personagens ou, ao contrário, que não se inspirassem?

Não precisei fazer isso, foi automático. Esses atores são todos faixa preta, não tem nenhum de primeira viagem. Não precisei falar nada.

No final de “Tropa de Elite” (2010) tem aquela fala em Brasília…

“Quem diria que a milícia iria parar em Brasília?” Fui uma bola de cristal desgraçada, mas eu nunca imaginei que isso fosse acontecer. Mas aconteceu. Na verdade, estava falando de deputados eleitos com votos de milícia. Não estava falando do Jair e do Flávio Bolsonaro, mas aconteceu.

Você acha que a transformação do capitão Nascimento em um herói contribuiu para tornar a direita menos envergonhada de se assumir?

No “Ônibus 174” (2002), eu mostro como o estado produz criminosos violentos na figura do Sandro Nascimento [ex-menino de rua que sequestrou o ônibus]. Aí eu quis fazer o outro lado da moeda, como o Estado forma policiais violentos.

O “Tropa de Elite” (2007), certo?

Sim. Aí eu vou dar o mesmo nome para o personagem, Nascimento. Ao fazer seu sucessor, porque ele vai ter um filho e não quer morrer, ele vai fazer um cara igual a ele. Vai pegar um cara legal e transformar nele.

Para mim, é claro que o Nascimento é um cara que tortura, eu mostro ele torturando. Para meu espanto, um número razoável de brasileiros achou aquilo ótimo. Mais ou menos o que o Scorsese disse quando viu seu “Taxi Driver” no cinema: “Caralho, os caras estão aplaudindo o cara!”. Me disseram mesmo isso: “Tem muita gente de direita que saiu do armário por causa desse filme e agora a gente está vendo eles”.

O jornalista viajou a convite da Netflix

Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil?

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País tem características que dificultam mudanças

Marcos Mendes – Folha de São Paulo, 05 de maio de 2019.

Para voltar a crescer e diminuir a desigualdade de renda, o Brasil precisa fazer um conjunto amplo de reformas. Previdência, tributos, mercado de crédito, ambiente de negócios, segurança jurídica, abertura comercial, privatização, políticas sociais e educação.

Não é fácil fazer reformas em nenhum lugar do mundo. Reformar significa tirar privilégios de alguns grupos, que obviamente resistem. Os custos são concentrados em poucos, e os benefícios são difusos. Os prejudicados se organizam e resistem, enquanto os beneficiários muitas vezes nem sequer sabem que estão ganhando com aquela medida.

Reformas também provocam incerteza: ainda que todos saibam que o país ficará melhor no futuro, cada indivíduo enfrenta a incerteza de qual será a sua situação particular após a reforma. Afinal, empregos menos eficientes tendem a ser destruídos e outros são criados, requerendo novas habilidades. Muitas pessoas temem não se adaptar à nova realidade, em especial os mais velhos.

Os resultados das reformas também demoram a aparecer. No Chile, por exemplo, em 1985, dez anos após o início das reformas, a renda per capita ainda era a mesma de 1969. Somente nos anos 1990 a renda começou a subir de forma consistente.

No Chile, a renda per capita demorou 15 anos para refletir os efeitos das reformas

Na Nova Zelândia, uma reforma radical, que transformou o país em uma das sociedades mais prósperas do mundo, gerou, inicialmente, uma taxa de desemprego de 14%, que só voltou ao padrão pré-reforma depois de dez anos.

A Nova Zelândia, antes de sentir os efeitos positivos da reforma, sofreu com a alta na taxa de desemprego

O calendário das eleições é mais curto que o prazo para o efeito das reformas. O próximo pleito acontece antes de as reformas elevarem a popularidade do governante reformista.

Apesar dessas dificuldades, ao longo dos últimos 50 anos, muitos países fizeram reformas abrangentes. Estudando essas experiências, podemos observar características desses países que ajudaram a quebrar resistências. Infelizmente, o Brasil não possui nenhuma dessas características “facilitadoras” de reformas.

Em primeiro lugar, é mais fácil reformar economias de países pequenos. Estes não têm mercado interno significativo e precisam se abrir para o mundo. Com economia aberta, são mais vulneráveis a oscilações da economia internacional e, por isso, precisam manter a macroeconomia saudável. Para atrair capitais externos, precisam de uma Justiça rápida e segura.

Além disso, têm uma elite menos numerosa, o que diminui o custo de transação para realizar acordos. Também têm governo unitário, não sofrendo os conflitos e bloqueios gerados nos sistemas federativos. Singapura, Malta, Hong Kong, Estônia, Nova Zelândia e Irlanda seriam exemplos nesse grupo.

O Brasil, grande, fechado e com uma Federação conflituosa, está longe desse perfil.

Outra característica importante está na transição de ditaduras para democracias. Países que fizeram reformas econômicas antes da abertura política geraram uma economia dinâmica, capaz de elevar a renda, ampliar a classe média, criar ambiente de mercado estável e consolidar o liberalismo econômico, conduzindo a mais investimentos e crescimento. Com o tempo, a melhoria das condições de vida induz a transição para regime democrático, como ocorreu na Coreia do Sul, no Chile, na Malásia e na Indonésia, por exemplo.

Por outro lado, redemocratizar antes de reformar a economia pode levar ao populismo e a mecanismos de apropriação de renda por grupos de interesse.

Em uma economia fechada e estatizada, há grande espaço para a inscrição de privilégios e políticas inconsistentes na legislação. Esse parece ter sido o caso de Brasil, Argentina e Filipinas. Fazer reformas nesses países é muito mais difícil agora, pois significa desmontar benefícios a grupos organizados, cristalizados na Constituição e nas leis.

Também facilitam as reformas os sistemas político-eleitorais que induzem a geração de maioria no Legislativo, dando maior governabilidade ao Poder Executivo.

No Reino Unido, por exemplo, as eleições para o Parlamento seguem o modelo distrital, com voto majoritário, que induz a disputa entre dois grandes partidos, com o vencedor quase sempre sendo majoritário no Legislativo e, portanto, capaz de aprovar reformas sem precisar contar com o apoio de outros partidos.

Além disso, é mais fácil fazer reformas em Parlamentos unicamerais, onde uma medida não precisa passar pelo referendo de Câmara e Senado. Também facilita o fato de cada um dos três Poderes ter claramente delimitado o seu raio de ação, não havendo espaço para o Judiciário interferir em decisões do Legislativo.

Mais uma vez o Brasil não tem tais características. Nosso sistema eleitoral gera grande fragmentação partidária no Parlamento, temos sistema bicameral e frequente judicialização das decisões legislativas e das políticas públicas.

A literatura também mostra que sociedades mais coesas são mais capazes de gerar os acordos sociais necessários para realizar reformas. Essas são sociedades em que a classe média tem uma parcela grande da renda (e, portanto, a desigualdade geral é baixa) e na qual há baixo grau de violência.

Em geral, são sociedades em que as pessoas têm padrões de vida similares, não temem agressões físicas ou aos seus direitos. Por isso têm maior confiança umas nas outras e nas instituições públicas.

Confiança é essencial para o sucesso de reformas. Afinal, estas nada mais são que um acordo em que todos fazem sacrifícios no curto prazo com vistas a ter um futuro melhor. Se há baixa coesão e desconfiança, cada grupo de interesse tentará empurrar os custos da reforma para o outro, e a negociação emperra ou a reforma tem seus custos colocados nas costas dos mais fracos.

No Brasil, a falta de confiança é um fator que emperra reformas

O grau de coesão social no Brasil é extremamente baixo. No eixo horizontal, temos a participação da classe média na renda (percentual da renda total que vai para os 60% dos indivíduos no centro da distribuição de renda). Somente África do Sul, Namíbia, Zimbábue, Moçambique e Guiné-Bissau têm classe média “mais magra” que a brasileira, ficando mais à esquerda no gráfico.

No eixo vertical temos um índice de violência e confiança mútua. Nesse quesito, o Brasil só supera Camarões e Costa do Marfim. E fica um pouco abaixo de Quênia, El Salvador e Libéria.

A localização do país na parte inferior esquerda do gráfico é uma imagem clara da nossa baixa coesão social. Somos inequivocamente um país desigual, violento, em que as pessoas não confiam umas nas outras. No canto superior direito do gráfico estão os países mais coesos.

A importância da coesão social como fator de estabilidade tem ficado clara nos recentes episódios de radicalização política vividos em diversos países. O encolhimento da participação da classe média na renda tem gerado desconforto com a representação política tradicional, e novos partidos extremistas têm ganhado espaço em vários países. Há crescente fragmentação partidária, levando a governos minoritários, como na Espanha e na Itália.

O brexit surgiu de movimento de descontentamento de uma classe trabalhadora ameaçada pela abertura comercial. Donald Trump e sua política externa mercantilista têm origem semelhante.

No Brasil, o baixo consenso social alimenta um ambiente antirreformas por uma combinação de populismo, conflito distributivo em torno de rendas intermediadas pelo Estado, fragmentação política e protecionismo comercial e regulatório.

Não obstante todas essas dificuldades “estruturais” para fazer reformas no Brasil, sempre surgem algumas janelas de oportunidade. Em geral, elas são criadas por crises, que evidenciam a necessidade de mudanças e enfraquecem a defesa de interesses corporativos específicos.

Também abre espaço para reformas o “efeito lua de mel”, que existe nos primeiros meses de gestão de um governante recém-eleito.

Desde os anos 1980, o Brasil aproveitou essas situações para fazer reformas. Assim, por exemplo, a crise de balanço de pagamentos de 1982-83 gerou reformas fiscais e monetárias. A hiperinflação criou condições para o sucesso do Plano Real.

O efeito lua de mel no governo Collor permitiu um movimento de abertura comercial, e nos governos FHC e Lula viabilizaram-se duas reformas da Previdência.

Da crise de balanço de pagamentos de 1998 vieram o sistema de metas de inflação, o câmbio flutuante e o regime de metas fiscais.

Porém, recentemente o Brasil andou na direção contrária. De 2005 a 2015 vivemos um período de reversão de reformas. A crise política do mensalão levou à expansão do gasto público como forma de sustentar politicamente o governo. Uma expansão no preço internacional de commodities deu impulso ao crescimento e criou a ilusão de que os desequilíbrios fiscais estruturais estavam resolvidos.

Relaxou-se o equilíbrio fiscal e praticou-se política pública na direção oposta das reformas de que o país necessita: aumentou a interferência estatal nas decisões privadas, a exploração do petróleo foi praticamente reestatizada, houve generalizada interferência do governo nos preços de energia e combustíveis, proteção setorial e fechamento da economia, grande desperdício de recursos públicos e privados em investimentos inviáveis.

A crise daí decorrente abriu nova oportunidade de reformas, e o governo Temer avançou nessa agenda, criando um teto de gastos, fazendo reformas relevantes no mercado de crédito, revertendo a estatização do setor de petróleo, retomando o controle dos gastos públicos e as privatizações e concessões, desmontando equivocadas políticas de créditos subsidiadas.

Porém, as reformas necessárias ainda são muitas. O que fazer para continuar avançando?

Em primeiro lugar, temos de reconhecer que, no ambiente adverso em que vivemos, elas levarão décadas para se concretizar. A Nova Zelândia, que fez reformas radicais em tempo recorde, com condições políticas e institucionais favoráveis, consumiu dez anos. Na Austrália foram 20 anos. No Brasil será muito mais.

As reformas serão um tema presente por muitas décadas. Não é uma corrida de 100 m, em que se faz reforma durante um mandato e o país passa a crescer aceleradamente. É uma maratona, que requer persistência. Se não for possível aprovar reforma ampla hoje, aprove-se algo mais restrito, mas na direção correta, e retome-se mais adiante.

Não podemos desperdiçar oportunidades: as propostas de reforma precisam estar prontas, na prateleira. Se a condição política para uma reforma ficar difícil, muda-se a agenda e parte-se para outra. Foi o que ocorreu no governo Temer, quando a reforma da Previdência se inviabilizou e, rapidamente, a agenda mudou para a reforma do mercado de crédito.

Mais importante que não perder oportunidades é não dar espaço para retrocessos. O Brasil não pode ter outro período nefasto de contrarreformas como o do passado recente.

Para que as reformas ganhem crescente apoio social, é preciso que elas sejam capazes de reduzir a desigualdade e ampliar a classe média.

Felizmente temos espaço para isso. O Estado brasileiro é concentrador de renda, e as reformas podem fazer o país mais igualitário, gerando clima favorável a novas rodadas de modernização. O desenho das diversas reformas sempre precisará ter essa preocupação redistributiva e de criação de empregos para os mais pobres.

Como esse processo de redistribuição e aumento de coesão é lento, é essencial uma convincente política de comunicação, para já no curto prazo induzir a cooperação e apoio.

É preciso olhar, também, a dimensão da violência e da baixa confiança. Já passou da hora de o Brasil ter um plano sério e consistente de redução da violência, que deve ser conduzido simultaneamente às reformas econômicas.

Em relação à confiança, é preciso investir em sistemas eletrônicos de certificação e garantias nos negócios, em agilização e maior previsibilidade da Justiça. A digitalização dos serviços públicos aumenta a confiança no governo e o controle a fraudes nos programas sociais.

O combate à corrupção, tão demandado pela sociedade, precisa ser usado como argumento a favor da reforma. Privatizar reduz espaço para o uso corrupto de empresas públicas. Também reduzem a corrupção: o fortalecimento das agências regulatórias, a melhoria da governança dos fundos de pensão das estatais ou o aperfeiçoamento e transparência das contas públicas.

No âmbito do Legislativo, dada a alta resistência política às reformas, deve-se preferir sempre a tramitação mais curta, para diminuir as chances de uma crise política paralisar o processo, como ocorreu com a reforma da Previdência no governo Temer. Uma vitória parcial em um tema abre a agenda para que se trate de outra reforma.

As relações entre os três Poderes precisam evoluir, para que haja clara delimitação das fronteiras dos poderes de decisão, para evitar tanto a judicialização da política quanto a politização do Judiciário.

Na arena política, a experiência de reformas econômicas bem-sucedidas na Austrália, na Índia, na Coreia e na Nova Zelândia indicam que um ingrediente essencial é a liderança do processo pelo presidente da República (ou primeiro-ministro). A terceirização da responsabilidade enfraquece e mutila as reformas.

Também é preciso reconhecer que formar governo de coalizão não é crime. Em qualquer lugar do mundo onde o Parlamento é importante na aprovação de reformas, um Poder Executivo minoritário compartilha o poder para poder ter maioria e aprovar seus projetos.

Se há atos criminosos por parte de algum ministro indicado por partido aliado, demite-se o ministro, entrega-se o caso à Justiça, e o partido responsável por aquele ministro indica substituto.

O atual momento de crise e de lua de mel é propício para reformas. Mas não há automatismos, e o ambiente continua hostil. Será preciso muita arte e habilidade política para que não se perca essa oportunidade histórica para avançar em direção a um país mais rico e civilizado.

Marcos Mendes

Doutor em economia pela USP, consultor legislativo do Senado e ex-chefe da assessoria econômica do ministro da Fazenda (2016-2018)

 

Alimentos industrializados estão acabando com culturas locais, diz médico

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Um dos mais relevantes pesquisadores brasileiros, Carlos Monteiro critica malefícios da indústria e dos ultraprocessados

Gabriel Alves – Folha de São Paulo 04 demais de 2019

SÃO PAULO 

Se alguma vez você ouviu que deve evitar os alimentos ultraprocessados pelo bem da sua saúde, agradeça ao médico Carlos Augusto Monteiro.

Cunhado por ele, o termo ultraprocessado se refere a alimentos que são feitos essencialmente a partir de matéria-prima barata (farinha, óleo e açúcar, por exemplo) e aditivos que dão cor, sabor, textura e outras características para tornar o alimento mais atraente. Macarrão instantâneo, salgadinhos e refrigerantes fazem parte da lista.

Monteiro, que é professor titular da USP e um dos mais relevantes pesquisadores brasileiros segundo o relatório Highly Cited Researchers, da consultoria Clarivate Analytics, afirma que o mundo está se alimentando de uma forma cada vez mais padronizada e, por isso, a cultura gastronômica está de perdendo. Obesidade, diabetes, hipertensão, câncer e outras doenças associadas ao consumo de alimentos de baixa qualidade nutricional estão aumentando.

E, para ele, a indústria que produz os ultraprocessados tem culpa no cartório.

Apesar de o consumo desses alimentos ter aumentado nas últimas décadas no Brasil, seu nível não se compara ao de países como EUA e Inglaterra, onde mais da metade das calorias diárias ingeridas vem de alimentos processados. Mas ainda há tempo de reverter a tendência no Brasil, diz o professor.

“Em outros países as pessoas não cozinham, têm só um micro-ondas e geladeira em casa. Tudo é pronto, o café é instantâneo. Aqui as pessoas se sentam à mesa para comer. A gente ainda não passou do limite em que recuperar a alimentação tradicional significa voltar a ter um fogão em casa”.

Monteiro participa de discussões na ONU, coordenou a elaboração do “Guia alimentar para a população brasileira” e idealizou o Vigitel, sistema que, por meio de contato telefônico, estima os fatores de risco para doenças crônicas presentes no Brasil. Aos 71 anos, apesar do cenário desfavorável que descreve, ele se diz otimista.

“A nossa relação com a comida é algo bonito, intangível, e está mais perto da que franceses e italianos têm do que a dos americanos. Talvez isso explique o sucesso dos programas de culinária.”

Processamento de alimentos
Nos anos 1980 e 1990, o alimento sai do campo para as fábricas. Da soja, tira-se o óleo, do milho e do trigo, o carboidrato; da cana, o açúcar.

Os alimentos ultraprocessados são feitos juntando um ou mais desses elementos com muita tecnologia e aditivos cosméticos, como corantes, saborizantes, texturizantes.

Hoje já são mais de 2000 aditivos aprovados. Eles permitem que você pegue farinha de trigo e açúcar, coloque uma gota de um saborizante de amêndoa e crie um biscoito que parece ter usado 10% de amêndoas na receita. O lucro é enorme.

Uma fábrica dos EUA pode comprar soja do Brasil, milho do México e açúcar da Jamaica pelo preço mais barato, juntar tudo numa fábrica de alta tecnologia usando esses aditivos e produzir uma linha de produtos de baixíssimo custo e que competem com o que chamamos de alimento de verdade, que não passou por uma reengenharia.

O DNA do queijo é o leite; do pão, o trigo. E no alimento ultraprocessado? Você não sabe. Você olha na lista de ingredientes e não consegue nem entender o que tem ali. Milhares de produtos processados são lançados a cada ano: refrigerantes, snacks, doces, miojo, maionese, caldo de carne.

Riscos à saúde
Se você coloca no seu organismo todo dia 15 ou 20 moléculas estranhas, a chance de todas serem ruins para a saúde é pequena, mas a chance de pelo menos uma criar problemas é grande.  Quem contrata os testes de segurança para liberar os aditivos é a própria indústria.

Ela usa modelos experimentais para saber se esses aditivos causam câncer em algumas semanas ou meses, mas há muitas outras doenças que eles podem gerar. Existe uma preocupação toxicológica. Imagina se eles estão avaliando inflamação crônica? Não há segurança nessa questão.

Gigantismo das indústrias
Em vez de dez indústrias, deveria haver 10 mil e uma lei antitruste — a partir de um número determinado de funcionários, a empresa teria de se dividir ou vender uma parte. Antes não havia esse oligopólio. Um problema desse gigantismo é que essas grandes empresas compram até a ONU.

A ONU é subfinanciada, não há recursos suficientes para as atividades. Quando vão fazer um encontro com especialistas, uma empresa paga por tudo, aluga o local. Isso põe em risco a independência.

No futuro os problemas causados pela indústria de alimentos, como aqueles causados pelo aquecimento global, vão ficar mais evidentes. A economia vai sofrer. Essas dez empresas ganham dinheiro, mas e o restante?

Empresas de seguro saúde podem se tornar inviáveis. Outros setores que não lucram com alimentos estão pagando a conta.

Financiamento de pesquisas
A indústria de alimentos não está preocupada em financiar a pesquisa, mas em cooptar o pesquisador. Isso é péssimo.

O fato de existir uma Fapesp aqui no estado de São Paulo, o CNPq, a Finep, e o Ministério da Saúde, que financiam pesquisas, permite que meu grupo de pesquisa [que tem cerca 30 pessoas] tenha só dinheiro público, o que é uma coisa impagável. A gente não existiria sem esse apoio.

Não temos tido tanta dificuldade para obter financiamento. O difícil é obter recursos humanos. Diferentemente das universidades estrangeiras, aqui ou a pessoa é o professor —vitalício— ou estudante.

Não há posições intermediárias, não se pode contratar uma pessoa para atuar num projeto específico, por dois, três anos, nem com dinheiro da Fapesp.

Ricos X pobres
A teoria que formulamos é que os grandes problemas da alimentação no Brasil e em outros lugares do mundo estão ligados ao consumo de muito açúcar, muito sódio, muita gordura saturada, muita gordura trans, pouca proteína, pouca fibra, poucas vitaminas e minerais. E isso está relacionado à quantidade de ultraprocessados que as pessoas consomem.

Hoje, pessoas ricas se alimentam pior do que as mais pobres do ponto de vista do risco de adquirir doenças crônicas. Curiosamente, no Brasil os produtos ultraprocessados ainda são caros. O agricultor ganha muito pouco, vende barato na feira. Em países como os EUA é tudo mais caro.

As pessoas acham que uma pessoa é gorda porque ela come muita fritura e muito doce feito em casa.

Mas quando você olha as estatísticas, essas pessoas não estão comprando mais óleo, mais açúcar… O que entrou no lugar? Biscoito, guloseimas em geral, salgadinhos, refrigerantes, bebidas lácteas, miojo.

Quantidades
Muita gente se convenceu de que o alimento ultraprocessado não é bom, mas acha que não há muito o que fazer e que temos que nos acostumar. Isso implica em aumentar as cadeiras dos aviões e achar remédios melhores para diabetes, como se fosse um novo padrão. Seria algo semelhante à adaptação às mudanças climáticas que já estão por aí.

A ideia não é fazer as pessoas voltarem a plantar seu próprio alimento. A discussão de política pública não é essa. Na América Latina, o consumo de ultraprocessados não é tão alto. Se a pessoa almoça e janta comida de verdade, a ingestão de ultraprocessados não passa de 20%. Mas se ela troca o almoço por fast food e come uma lasanha congelada no jantar, esse valor passa de 50%.

Aqui a gente ainda está no refrigerante, no salgadinho um dia ou no outro. Nos EUA, quase não se acha quem coma menos de 30%.

Marketing da indústria
As multinacionais sabem que é preciso destruir a cultura alimentar para vender o produto deles. E fazem bons truques de marketing. As misturas para bolos, por exemplo, pedem para colocar ovo, um copo de leite… Não precisaria, mas assim a pessoa tem a sensação de que está realmente fazendo o bolo.

A pessoa diz que é mais prático, que não tem que lavar louça… O cara começa a enunciar o que está ganhando, mas se esquece de que alimentação não é como escolher a gasolina do carro pelo preço e pela rapidez do serviço. Alimentação é muito mais do que isso.

OUTRO LADO

Para João Dornellas, presidente executivo da Abia (Associação Brasileira de Indústria de Alimentos), que congrega gigantes como Nestlé, Pepsico, Ambev, Coca-Cola, Unilever, entre outras, não há respaldo científico para a classificação de um alimento como ultraprocessado.

“Um mesmo tipo de alimento pode ser produzido de diferentes formas, assim como variam as receitas culinárias. É possível fazer um salgadinho em casa, do tipo batata chips, com os mesmos ingredientes que a feita pela indústria: batata, óleo e sal. Por que a industrializada seria “ultraprocessada” e a caseira não?

Os aditivos alimentares, explica, são aprovados pelo JECFA, um comitê conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

“Nos primórdios da civilização, os caçadores já salgavam a carne para que ela durasse mais. É o mesmo sódio que hoje é usado pela indústria para diminuir a umidade, que propicia a proliferação de bactérias”, diz Dornellas.

“Os aditivos evoluíram para atender a processos produtivos muito mais complexos, mas isso não os transforma em ingredientes nocivos. Pelo contrário: continuam sendo sistematicamente testados e utilizados para cumprir funções tecnológicas desejadas, tais como conservantes, estabilizantes, gelificantes, espessantes e fermentos químicos.”

Com relação ao aumento de obesidade e de outras doenças crônicas, Dornellas diz que a indústria se vê como parte da solução do problema “no que diz respeito ao papel dos alimentos para a promoção da saúde”. Além de fornecer alimentos de qualidade e saudáveis, diz ele, a indústria está informando melhor os consumidores para que eles consigam de forma consciente equilibrar a dieta de acordo com os alimentos disponíveis.

Entre as iniciativas está a redução de teores de gorduras trans, sódio e açucares em alimentos industrializados. Algumas das vantagens de alimentos processados, diz ele, são a praticidade e a possibilidade de fortificá-los com vitaminas das quais a população necessita ou enriquecê-los com fibras e proteína. Também é possível permitir a adequação a dietas especiais, como as sem lactose ou glúten.

“O alimento industrializado não tem o objetivo de substituir a alimentação tradicional porque faz parte dela. Muitos pratos da culinária brasileira incluem, em sua preparação, ingredientes industrializados. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, comer bem é comer de tudo. As comidas tradicionais ou típicas continuam na mesa dos brasileiros. Isso é uma das riquezas do Brasil, que a indústria reconhece e valoriza”, diz.

Para ele, enxergar a indústria como inimiga da população é um equívoco. O setor emprega 1,6 milhão de pessoas no país e processa quase 60% de tudo que é produzido no campo no país.

 

“Convergência de crises explica deterioração venezuelana” Entrevista com Carolina Pedroso

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Núcleo de Estudos e Análises Internacionais – Marcel Artioli – 02 de maio de 2019

A situação política na Venezuela conheceu forte inflexão nos últimos dias, com uma nova investida da oposição contra o governo de Nicolás Maduro. O autoproclamado presidente Juan Guaidó convocou a população para uma ação destinada a forçar Maduro à renúncia. Houve choques nas ruas, que causaram 1 morto, 95 feridos e 119 pessoas detidas. A tensão cresceu, turbinada por ameaças de golpe de Estado e intervenção militar de outros países. O chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, informou ao seu homólogo norte-americano Mike Pompeo que a “interferência dos EUA nos assuntos internos da Venezuela” seria uma violação do direito internacional e pediu diálogo a todas as partes.

Maduro resiste, com o apoio das Forças Armadas. A oposição continua a marcar protestos em todo o país. As ruas estão convulsionadas. Ainda parece distante uma saída negociada para a crise, que se arrasta há meses.

Para analisar os desdobramentos complexos que envolvem a crise venezuelana, o NEAI (Núcleo de Estudos e Análises Internacionais) ouviu a especialista Carolina Silva Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/Unicamp/PUC-SP). 

Marcel Artioli|NEAI: O que está acontecendo na Venezuela?

Carolina Pedroso: A Venezuela vive hoje uma disputa acirrada pelo controle do petróleo, isso porque desde os anos 1970 esse bem é nacionalizado e está fortemente concentrado no Estado. O grupo que estava no poder antes de Chávez, por exemplo, foi responsável por graves escândalos de corrupção envolvendo essa relação promíscua entre Estado e setor petroleiro. Quando Chávez surgiu na cena nacional, uma de suas ações como governante foi justamente retomar o controle cidadão sobre esse recurso. Com a reprodução do chavismo, esse novo bloco no poder caiu na mesma tentação do anterior e também se apossou desse bem [Essa semana saíram várias denúncias de contas no exterior rastreadas pelos Estados Unidos por parte da cúpula chavista que indicam desvios bilionários de dinheiro]. Com isso, é possível verificar o quanto o petróleo é um elemento-chave para se compreender o que está acontecendo.

Ademais da disputa de poder/controle do petróleo, que é o que define a crise política, há uma crise econômica que, por sua vez, desencadeou uma crise social, ambas também relacionadas ao “ouro negro”.

A crise econômica tem suas origens mais remotas nos anos de 1930 a 1940, quando a economia venezuelana se tornou altamente dependente do petróleo, o que fez com que os outros setores produtivos atrofiassem [sobretudo a agricultura – o que pode explicar a situação atual de falta completa de soberania alimentar, ou seja, o país é incapaz de produzir alimentos para o consumo interno e depende inteiramente das importações]. Essa condição é chamada na economia de “Doença Holandesa”.

As condições para a crise atual estão dadas há décadas, o que faz com que todos os governos que vieram a partir de então, especialmente os do Pacto de Punto Fijo (1958-1998), que precederam o chavismo e promoveram um revezamento de dois partidos no poder durante 40 anos, sejam responsáveis pela incapacidade e/ou falta de vontade política de investir em outros aparatos produtivos que não ligados ao setor petroleiro.

A primeira mostra da gravidade da crise econômica atual veio na década de 1980, quando, após o choque do petróleo (de 1973) e a consequente bonança que o país viveu, a crise da dívida externa fez com que a miséria e a inflação se tornassem uma realidade dura e difícil de ser superada.

Isso fez com que o Punto Fijo caíssse em 1998, sendo sucedido pelo chavismo. A promessa de Chávez era reverter a crise social decorrente da crise econômica dos anos 1980, o que, num primeiro momento, foi possível graças a um novo boom do petróleo nos anos 2000. Portanto, é nítido como a flutuação do preço do petróleo determina se o país viverá um período de prosperidade (preços em alta) ou de crise (preços em baixa).

Assim como lá atrás, quando o preço começa a cair em 2013 e despenca em 2015, os benefícios sociais da era Chávez passaram a “derreter” e a crise social que vemos hoje ganha corpo.

Em suma, o que está acontecendo na Venezuela é uma convergência de, pelo menos, três crises: política (pela disputa do controle do petróleo), econômica (relacionada com a estrutura econômica) e social (decorrente da deterioração econômica), que combinadas levam a uma situação de crise migratória.

Marcel Artioli|NEAI: O que está em jogo para o povo venezuelano?  E para o Brasil e a América Latina?

Carolina Pedroso: Para o povo venezuelano, o que está em jogo é sua própria sobrevivência, de maneira mais literal, por conta da deterioração das condições de vida, e mais “simbólica”, porque o “projeto” alternativo [aspas porque ele não é exatamente um projeto bem estruturado] envolve um “entreguismo” dos recursos naturais às forças externas, sobretudo os Estados Unidos de Trump. Quer dizer, se ficar o bicho come e se correr o bicho pega.

Maduro tem sido incapaz de resolver os problemas diários, seja porque não tem competência para isso, seja porque tem lidado com uma situação de restrição externa cada vez mais estranguladora [vide as sanções internacionais]. Por outro lado, em quase duas décadas de chavismo a oposição não foi capaz de consolidar uma base sólida e unificada; seu projeto de país passa basicamente pela entrega do recurso petroleiro para empresas privadas.

Para a América Latina, a crise da Venezuela pode abrir uma situação muito perigosa para a estabilidade regional, porque estamos vivenciando não só uma crise política aguda, que é permeada por graves violações aos Direitos Humanos, mas principalmente por conta do peso geopolítico da Venezuela, que detém as maiores reservas de petróleo do mundo.

Ainda que sejam regiões diferentes e com suas devidas peculiaridades, hoje a América Latina pode estar correndo o risco de se tornar para as potências mundiais (entenda-se aqui sobretudo as que compõem o Conselho de Segurança da ONU com cadeira permanente) o que o Oriente Médio vem sendo nas últimas décadas, em termos de conflitos de interesses geopolíticos, disfarçados de defesa de soberania e Direitos Humanos.

Um dos riscos é que a situação venezuelana descambe para algo semelhante ao que ocorreu na Síria, em termos de guerra civil patrocinada por forças estrangeiras, ou o cenário da Líbia, em que uma convulsão interna levou a uma intervenção militar estrangeira, cujos resultados são ainda mais penosos do que os que haviam antes.

Em resumo, para a América Latina, a crise da Venezuela envolve a possibilidade de nos tornarmos uma região instável no sistema internacional, que desperta o anseio de intervenção por parte das potências mundiais.

Mais especificamente para o Brasil, a crise na Venezuela é um péssimo negócio, inclusive em termos comerciais, pois tínhamos um superávit comercial bastante acentuado na época em que o país vizinho viveu o boom petroleiro, além do que a situação de instabilidade tem repercussões diretas, como a vinda de imigrantes para uma das nossas regiões mais carentes, o norte do país. Isso acaba expondo a nossa incapacidade não só de assisti-los, mas de prover o básico para aquela população local, fazendo com que os venezuelanos se tornem um “bode expiatório”, estimulando um sentimento de xenofobia que não condiz com as nossas origens multiétnicas.

Marcel Artioli|NEAI: Qual a extensão da disputa geopolítica e geoeconômica na crise venezuelana?

Carolina Pedroso: É enorme! Temos que considerar a importância do petróleo venezuelano para a economia norte-americana, pois logisticamente é muito mais interessante importar do país caribenho do que do Oriente Médio. Com isso o lobby do setor energético norte-americano é enorme para que as sanções não atinjam o coração desse comércio bilateral [oque explica porque mesmo em momentos de maior tensão entre Venezuela e Estados Unidos o comércio petroleiro seguiu fluindo, o que só começou a mudar um pouco mais recentemente com Trump]. Porque se temos essa questão de um lado, do outro há também o lobby latino, especialmente na Flórida, que tem ganhado cada vez mais espaço junto ao governo de Trump e que há anos deseja que haja uma intervenção militar estrangeira na Venezuela, para tirar Chávez e agora Maduro do poder. Ou seja, são interesses conflitantes, uma vez que a comunidade venezuelano-americana, em conluio com os cubano-americanos, tem pressionado sistematicamente o Congresso e o Executivo nos Estados Unidos para que aumentem as sanções econômicas e comerciais – o que envolve, portanto, a compra de petróleo venezuelano. Além disso, estimulam o desejo de parte dos Republicanos e dos Democratas em intervir na Venezuela, sob a justificativa de retomar a democracia.

Marcel Artioli|NEAI: E quanto aos demais países?

Além dos Estados Unidos, outras peças importantes nesse xadrez geopolítico são China, Rússia e, em menor medida, Turquia e Índia. Os dois primeiros têm uma relevância óbvia por conta da presença no Conselho de Segurança e porque são parceiros comerciais de peso da Venezuela. A China pagou por mais de 30 anos de petróleo adiantado e quer ter a certeza de que essa compra não vai virar “água”, então ainda não confia na oposição para garantir esses acordos firmados durante o chavismo. Contudo, o pragmatismo chinês, a depender de como as negociações com a oposição estão sendo orientadas, pode fazer com que esse país mude de posição, ainda que isso traga prejuízos para a sua defesa da “não ingerência em assuntos internos”.

A Rússia, por sua vez, é a principal fornecedora de material bélico para a Venezuela, especialmente a partir de 2006, quando os Estados Unidos de Bush impuseram uma sanção comercial nesse setor ao governo venezuelano. Desde então, eles se tornaram parceiros estratégicos e tem realizado exercícios militares em conjunto no Caribe, até como forma de dissuasão de uma possível intervenção americana.

Já a Turquia tem aparecido mais recentemente não só por compor o que se chama de eixo “iliberal” (junto com a Rússia), em oposição aos Estados Unidos na arena internacional, mas também por conta da compra de ouro venezuelano para sua indústria de joias. A Índia, por sua vez, tem se tornado outra importante compradora do petróleo venezuelano, no afã que a Venezuela tem por diminuir a alta dependência que do comércio com os Estados Unidos

Marcel Artioli|NEAI: Por que Maduro perdeu as condições de governabilidade e governança? Qual o peso e o papel das Forças Armadas?

Carolina Pedroso: Maduro talvez nunca tenha tido condições de governar, porque era inexperiente em cargos como esse [sua experiência mais longeva no chavismo tinha sido como chanceler, o que, por sinal, foi bem sucedido à época] e assumiu o poder em um momento conturbado. Ele foi eleito um mês depois da morte de Chávez, do qual era vice na eleição vencida em dezembro de 2012, e se tornou o candidato natural, porém contestado internamente pelo chavismo. Isso porque havia outro nome cogitado para assumir o lugar de Chávez, que era Diosdado Cabello. Diferentemente de Maduro, que tem origens no sindicalismo civil, Cabello foi militar, é altamente nacionalista e truculento no trato com os opositores, foi presidente do parlamento por muitos anos e, portanto, é mais experiente no que tange às negociações políticas internas. Paralelamente à ascensão de Maduro, a economia já dava mostras de debilidade, fazendo com que ele tivesse um duplo desafio: convencer o chavismo de que era capaz da tarefa que lhe fora conferida, apesar da nítida falta de carisma que foi essencial para a permanência de Chávez no poder, e ainda lidar com uma situação econômica cada vez mais alarmante. Mesmo sem um projeto definido, a oposição fez o que melhor soube desenvolver no decorrer do chavismo, que foram ações de boicote e pressão nas ruas. Isso nos leva a 2014, quando os primeiros protestos contra ele tiveram lugar, e foram caracterizados por uma ampla participação popular e por ter expressões mais ou menos pacíficas. Isto é, alguns protestos realmente foram pacíficos e tiveram uma repressão policial desproporcional, porém outros foram bastante violentos e tiveram, portanto,uma resposta à altura. É daí que surgem as primeiras prisões políticas [ou prisões de políticos, se preferir] e os primeiros relatos de torturas nas prisões. Nesse período, Cabello passou a comandar a inteligência da polícia, a SEBIN, e diante da pressão popular deixou a rixa com o Maduro de lado, pois houve o entendimento de que era preciso uma reunificação do chavismo para lidar com uma oposição cada vez mais disposta a atos desestabilizadores.

Por ser militar, Cabello tem mais entrada nas Forças Armadas, que historicamente é o fiel da balança no poder venezuelano. Minha interpretação é que Maduro está refém dessas forças que hoje são lideradas por Cabello [tanto que hoje foi ele quem convocou a população para expressar seu apoio ao regime em frente ao palácio presidencial].

As forças militares ganharam um poder político sem igual durante o madurismo. Nem com Chávez ocuparam tantos postos e cargos estratégicos. Na minha visão, talvez justamente pela sua origem civil (diferente de Chávez e Cabello), Maduro tenha tido que ceder no sentido de colocar os militares para exercer não só as funções que lhe são tradicionais, como o controle das fronteiras [por onde passam muitos produtos contrabandeados, como gasolina, alimentos e remédios], mas também a distribuição de comida e outros bens de primeira necessidade. Isso faz com que os militares tenham acesso privilegiado a tudo aquilo que a população custa a conseguir. Há muitos indícios [até agora, nenhuma prova concreta] de que eles estejam envolvidos também em atividades ilícitas, sobretudo com o tráfico de drogas, armas e pessoas.

Digamos que, para sobreviver politicamente, Maduro depende das Forças Armadas, que hoje são vistas como extremamente corruptas.

Mas, além disso, há outro fator: no primeiro momento de boom petroleiro, nos anos 1970, os militares passaram a ter uma formação muito forte em Ciências Humanas e Sociais [isso porque sobrava tanto dinheiro que o governo investiu em bolsas de estudo no exterior e eles buscavam os cursos “mais fáceis”, que garantissem a aprovação e que não tivessem que devolver o dinheiro ao governo].

Com isso, a Venezuela passou a ter uma estrutura militar bem diferenciada na América Latina, com muitos militares com títulos de mestres e doutores em História, Ciência Política, etc. O pensamento mais crítico, presente nas Ciências Sociais, fez com que boa parte deles tenha total aversão aos Estados Unidos e à possibilidade de entrega dos bens naturais do país aos estrangeiros, o que parece explicar a lealdade da alta cúpula a Maduro, não por estarem contentes com o governo dele, mas por entenderem que sem ele seria pior.

Marcel Artioli|NEAI: Como a crise poderá ser solucionada? Eleições? Guerra Civil? Intervenções? Negociação?

Carolina Pedroso: Todas essas possibilidades estão na mesa, porém me parece que a saída mais sensata, ainda que seja a menos provável, seria pela via do diálogo mediado por atores externos, como as Nações Unidas, o Vaticano e/ou entidades civis, que encaminhem as negociações para uma saída pactuada de ambos os lados, envolvendo uma eleição livre e democrática de novos representantes em todas as esferas possíveis. Embora esse tipo de diálogo já tenha sido tentado anteriormente, a falta de acompanhamento dos compromissos assumidos (que foram sistematicamente desrespeitados pelos dois lados) fez com que as tentativas anteriores fracassassem. Ademais, elas também não envolveram a oposição como um todo, que é composta por distintos setores sociais e políticos, motivo pelo qual sua fragmentação tem sido um empecilho tanto para o objetivo de chegar ao poder, quanto para as negociações com o governo.

Por ora, o cenário que se vislumbra é mais sombrio. Além das questões geopolíticas e dos entraves internos ao diálogo, a falta de uma estrutura regional considerada “neutra”, no sentido de promover uma negociação em um ambiente confiável para todos os lados, explica também as dificuldades para que surja uma saída pacífica e pactuada. Não à toa a debacle venezuelana coincide com o ocaso da UNASUL, plataforma que poderia ter servido a esse propósito se não tivesse sido debilitada a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff, até chegar a sua praticamente extinção sob Bolsonaro.

Inflação, Câmbio e concentração de renda na sociedade brasileira

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             Durante muitas décadas a inflação teve um papel devastador na sociedade brasileira, chegando a mais de 2000% ao ano, gerando impactos econômicos, sociais e políticos, concentrando renda e condenando milhões de brasileiros a uma condição de indignidade crescente, pobreza e exclusão social e contribuindo para o surgimento de um grupo considerável de novos ricos e milionários, cujos recursos eram multiplicados num curto período de tempo.

Podemos definir o processo inflacionário como o aumento generalizado de preços na economia, este desequilíbrio de preços acaba gerando graves desajustes nas economias quando percebemos seu crescimento, abalando a credibilidade da economia, concentrando renda e fazendo uma política de Robin Hood às avessas, tirando dos pobres e repassando para os ricos, neste processo, os pobres se degradam mais e os ricos se veem cada vez mais ricos e poderosos.

Os pobres são os mais afetados pelo processo inflacionário, isto acontece porque estes trabalhadores não tem acesso a contas indexadas, seus recursos não possuem seguros em aplicações financeiras, sua renda não consegue se defender do processo inflacionário, com isso, seus recursos são corroídos cotidianamente pelo descontrole de preços, mesmo aqueles que possuem contas em bancos e, teoricamente, teriam instrumentos de defesa contra a corrosão monetária, não possuem informações sobre estes instrumentos de defesa e acabam sucumbindo a perdas consideráveis de suas rendas, sem informação os instrumentos perdem a importância e a efetividade.

Se analisarmos as raízes do processo inflacionário brasileiro, vamos descobrir suas origens no descontrole fiscal e financeiro do Estado Nacional, este desequilíbrio se mostrou mais efetivo no período de industrialização, entre os anos 1930 e 1990, quando o governo tomou a frente deste processo industrializante e construiu as bases da indústria nacional, investindo somas consideráveis de recursos, mobilizando mão de obra, infraestrutura, matéria prima, criando instituições e conseguiu transformar a economia do país, neste período saímos de uma estrutura fortemente centrada na produção agrícola, para uma economia centrada na produção de produtos industrializados, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1980 o Brasil tinha a indústria mais sofisticada dos países em desenvolvimento, mostrando que a estratégia adotada, apesar dos riscos, apresentou um resultado fortemente favorável, nestes trinta anos, o crescimento per capita do país ficou na casa dos 4,5%, um número extraordinário, que garantiu ao país um local no panteão das economias industrializadas. Em contrapartida, depois de 1980, o crescimento do produto interno bruto per capita caiu para algo em torno de 0,9% ao ano, levando a economia brasileira a um processo nítido e bastante evidente de estagnação.

Todos estes investimentos exigiram grandes somas do governo federal, que recorreu a instrumentos clássicos de financiamento, desde os recursos oriundos dos impostos, taxas e contribuições, até a atração de investimentos nacionais e estrangeiros, não sendo suficientes estes recursos, o governo se utilizou da emissão monetária, que ao depreciar a moeda garantia ao Estado Nacional somas consideráreis de recursos mas, desequilibrava o sistema de preço, gerava inflação e hipotecava o país no longo prazo.

Devemos entender a inflação como um conflito distributivo entre grupos que se digladiavam em prol de mais ganhos do orçamento, deste conflito alguns apresentam um poder político e instrumentos econômicos maiores e mais sólidos, garantindo benesses e lucros mais consistentes para seus grupos políticos, em contrapartida, os grupos perdedores desta contenda, perdem partes consideráveis destes recursos, tendo que se contentar com o seu quinhão.

Depois de décadas de crescimento econômico, que colocou o país em uma posição de destaque no cenário internacional, na década de 80, o país se viu em uma situação de graves desequilíbrios financeiros e monetários, inflação desequilibrada e dívida externa crescente, levando o país a uma década de baixo crescimento econômico, período conhecido como década perdida.

            Com a redemocratização, o país passa a buscar instrumentos de estabilização monetária, os altos índices inflacionários e o desequilíbrio no sistema de preços relativos levam a economia a uma década de estagnação, neste momento, o governo inicia o Plano Cruzado, uma política de estabilização centrada no congelamento dos preços, na emissão monetária para honrar a dívida interna, na troca de moedas e na redução da taxa de juros visando um choque de oferta e um aumento no nível de emprego. Estas medidas serviram para aguçar, na sociedade, a urgência de se combater a inflação, condição sine qua non para que o país voltasse a crescer e galgasse uma posição de destaque na comunidade internacional.

Com a incapacidade do plano em conter os desequilíbrios inflacionários, outros planos econômicos foram construídos e arquitetados pelo governo federal, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor, sendo que, todos eles fracassaram em seu intento maior, até que, em 1994, o governo cria o exitoso Plano Real, cujo sucesso catapultou o Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, para o cargo de Presidente da República, e abriu espaço para a abertura de uma agenda econômica que se concentrava na austeridade e em políticas pró-mercado, a esquerda brasileira as chamava de política neoliberal, enquanto a direita as via como muito esquerdista, criticando-as constantemente.

Embora exitoso no combate a inflação, o Plano Real trouxe efeitos colaterais bastante negativos e generalizados, o mais deletério para a economia brasileira no médio e no longo prazo foi a política cambial, neste momento o governo valoriza a moeda nacional visando um aumento da oferta interna de produtos e, com isso, aumentando a competição e garantindo uma redução nos preços e na inflação. Câmbio valorizado auxilia no combate a inflação, mas, ao mesmo tempo, reduz as exportações e compromete um dos setores mais dinâmicos e importantes para a economia do país, o setor exportador, que vê seus rendimentos se reduzirem de forma acelerada, levando-o a colocar seus produtos no mercado interno, gerando uma maior oferta interna e contribuindo para uma redução nos preços.

De outro lado, a política de estabilização gera impactos negativos no setor externo da economia e na balança comercial, obrigando o governo a adotar uma política agressiva de juros elevados que aumentaram a divída interna pública e comprometeram a capacidade de pagamento do setor público, obrigando-o a contenções constantes nos gastos públicos e levando a economia a constantes recessões e desequilíbrios estruturais.

Numa economia fortemente dependente do Estado, todas as vezes que este diminui seus investimentos e seus gastos, os impactos são imensos, preocupantes e generalizados, levando muitos setores a verem seus recursos serem contingenciados, principalmente em áreas sociais, como saúde, educação e segurança pública, cujos indicadores destas áreas se degradaram rapidamente, incrementando uma piora na desigualdade e na exclusão social.

O discurso do governo era de implementação de políticas de estímulo a concorrência e a competição, a adoção de um discurso de abertura econômica e de privatização levou os investidores internacionais a fazerem boas previsões para o Brasil, como o estrategista Jim O’Neil, da Goldman Sachs, que colocou o país no bloco dos grandes, promissores e futuros países desenvolvidos, junto com a Rússia, a China e a Índia, os chamados BRICs.

De outro lado, as condições sociais não eram tão favoráveis, o desemprego crescia de forma acelerada em decorrência da quebra e da reestruturação de empresas nacionais, que não aguentaram a concorrência com similares internacionais, umas acabaram sendo vendidas para grupos estrangeiros e outras iniciaram um forte processo de reestruturação, reduzindo mão de obra e investindo fortemente em máquinas e tecnologias, visando um incremento da produtividade e uma redução dos custos relativos.

Neste ambiente de incremento no desemprego e câmbio valorizado, a inflação se reduz rapidamente, o plano contribuiu para reduzir os preços e estabilizar a economia, mas gerou graves consequências para toda estrutura produtiva, a industrialização se acentuou e a pauta de exportações do país caminha a passos acelerados para uma hegemonia dos produtos agrícolas, piorando os termos de troca da economia brasileira e condenando o país a uma condição de subserviência na sociedade internacional, dominado pelos grandes conglomerados de tecnologia.

O câmbio valorizado, embora tenha contribuído diretamente para a redução do desequilíbrio inflacionário, trouxe graves constrangimentos para a economia brasileira, incrementou as importações e desestimulou as exportações, o país passou a acumular graves desequilíbrios no balanço comercial e, posteriormente, estes desequilíbrios se disseminaram para todo o balanço de pagamentos, levando o país a pedir recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar uma situação de possível insolvência do país. A entrada de recursos oriundos do organismo internacional impediu uma possível bancarrota do país, mas acarretou graves constrangimentos para o governo, gerando dificuldades políticas no curto prazo, levando a perda de legitimidade e dificuldades perante a opinião pública.

Delfim Neto definiu o Plano Real como uma pequena jóia, extremamente exitoso no combate a inflação, um plano econômico tecnicamente brilhante que ficou incompleto, faltando um ajuste fiscal mais sólido e consistente, que leve a economia a encontrar seu equilíbrio fiscal e financeiro, sem este equilíbrio macroeconômico muitos problemas voltaram num curto período de tempo.

O Brasil precisa vencer suas ineficiências fiscais, de tempo em tempo o país se volta com problemas de desajustes em suas contas, na atualidade nos encontramos em situação perigosa, onde a Reforma da Previdência é vista como a panaceia do desequilíbrio financeiro do Estado Brasileiro, se resolver as questões fiscais, dificilmente conseguiremos galgar posições saudáveis no longo prazo.

A inflação sempre foi um grande problema para a economia brasileira, no período de alta inflacionária os bancos ganharam grandes somas de recursos com o desequilíbrio dos preços, levando muitos deles a deixar de lado seu papel como intermediador de recursos monetários, seu papel central na economia, e se especializando no ganho com a inflação, levando-os a acumular grandes somas sem fazer os esforços necessários e com riscos reduzidos. Com a queda imediata da inflação, muitas das instituições financeiras que se especializaram no floating inflacionário, deixaram de ganhar com os recursos gerados via inflação e foram obrigadas a competir no mercado, como perderam esta expertise foram facilmente superadas pelas instituições mais eficientes, perderam mercados e foram vendidas para instituições estrangeiras ou fundidas com instituições nacionais maiores, neste momento o setor bancário inicia um processo forte de concentração bancária, onde as mais eficientes adquirem as instituições mais atrasadas e ineficientes.

A inflação é um dos grandes preços da economia, junto com a taxa de câmbio e a taxa de juros, se estes indicadores estiverem em equilíbrio e em consonância com a teoria econômica, o país tem grandes chances de acelerar seu crescimento econômico, nos últimos quarenta anos, o Brasil apresentou graves desajustes nestes preço e, com isso, perdemos grandes oportunidades de desenvolvimento econômico e nos distanciamos dos grupos mais desenvolvidos, encontrar este equilíbrio é uma condição sine qua non para atingirmos o tão esperado desenvolvimento econômico, com melhoria na produtividade e um crescimento no bem-esta social para todos os grupos e camadas da população.

Vencer a inflação foi um grande desafio para a sociedade brasileira, nesta trajetória o país conviveu com ciclos inflacionários crônicos de mais de 2000% ao ano, um desatino macroeconômico que impactou sobre todo o planejamento do país e até sobre o conceito de longo e de curto prazo, levando a população a se concentrar em políticas imediatistas. Nestas condições de desequilíbrios estruturais, a inflação contribuiu, de forma decisiva, para uma intensa desagregação social e uma concentração de renda que colocou o Brasil nas últimas colocações em indicadores sociais, consolidando uma elite predatória, uma classe média medíocre e despolitizada e uma classe pobre subalterna e submissa.

Yascha Mounk: ‘Temo que possa ser o início de uma era populista’

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Cientista político analisa o fenômeno político em novo livro e diz que discurso de Jair Bolsonaro é ‘preocupante’

Entrevista com

Yascha Mounk, cientista político alemão e autor do livro ‘O Povo Contra a Democracia’

Paulo Beraldo e Vitor Marques, O Estado de S.Paulo

28 de abril de 2019

O cientista político e professor da Universidade Johns Hopkins (EUA) Yascha Mounk afirma, em entrevista ao Estado, que o mundo vive hoje uma onda de ascensão de populistas e que “teme” que esse movimento não seja passageiro. Autor do recém-lançado O Povo contra a Democracia (Companhia das Letras), Mounk, que é alemão, alerta que hoje as quatro maiores democracias do mundo são governadas por populistas. Para ele, essa ascensão se baseia em três motivos: descontentamento com a estagnação econômica, medo e incertezas em relação ao futuro e o uso de redes sociais. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como o sr. definiria populismo e quais as diferenças entre populismo de esquerda e de direita?

O que todos eles dizem é que a única razão real pela qual temos problemas é porque os líderes políticos são corruptos e eu, o populista, represento as pessoas verdadeiras, “o povo de verdade”. Então, o que precisamos para resolver os problemas é que eu assuma o poder e coloque ordem em tudo. Esse elemento é interessante: eles clamam por serem os únicos que representam de verdade as pessoas. Os populistas, seja Jair Bolsonaro ou Hugo Chávez, atacam a liberdade de imprensa, as instituições independentes como as Cortes e tentam mostrar que a oposição é composta por traidores.

Em relação às diferenças, em geral, os de direita dizem que vão obter crescimento econômico com práticas liberais na economia e reduzindo o tamanho do Estado. Já os de esquerda falam que vão cortar privilégios das grandes empresas. Também há diferenças nos grupos de “inimigos específicos” que eles imaginam. Isso varia de país para país.

No prefácio da edição brasileira de seu livro O Povo contra a Democracia, o senhor afirma que Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia. Por quê?

Quando você olha para Jair Bolsonaro, o discurso claramente combina com o de pessoas como Recep Erdogan, da Turquia, ou Viktor Orban, da Hungria. Ele desacredita as instituições democráticas, glorifica um passado de ditadura militar e não aceita como legítimo quem o critica. Isso é muito preocupante. Mas uma boa notícia é que ele não tem o controle total do governo. Ele não tem maioria no Congresso e isso pode reduzir seu poder de uma maneira significativa.

A ascensão do populismo pode perdurar por mais de uma década e se transformar em uma era populista?

Temo que possa ser o início de uma era populista. Primeiro porque os populistas não são mais periféricos. Eles talvez sejam a força política mais dominante no mundo hoje. Quando as pessoas percebem que as promessas (dos populistas) são falsas, que (eles) são tão corruptos ou mais corruptos que os políticos que vieram antes deles, muitas vezes não voltamos a (eleger) um político mais moderado. As pessoas colocam sua esperança na segunda, na terceira geração de populistas.

Por que populistas de direita têm obtido mais vitórias nas urnas do que populistas de esquerda?

Na Europa existe uma divisão real dos países. Há países em que a principal preocupação é a economia ou a imigração. Na Suécia ou na Alemanha, onde a economia está muito bem e a imigração é um problema, a direita é mais forte. Depende da experiência particular desses países e dos medos que as pessoas têm.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, viajou à Europa e se encontrou com líderes de extrema-direita. O senhor vê algum tipo de aproximação entre a direita mundial?

Há definitivamente a ascensão internacional de nacionalistas e populistas da extrema-direita. Eles desdenham de certos grupos minoritários, têm certa impaciência com normas democráticas e instituições e se tornam bastante efetivos ao ajudar uns aos outros e atacar governos de oposição. Mas agora muitos deles (da extrema-direita) estão no governo.

As quatro grandes democracias do mundo (em termos de população) – Índia, Indonésia, Brasil e Estados Unidos – são governadas por populistas. Nos próximos anos, veremos até que ponto eles poderão cooperar quando tiverem de tomar decisões reais, quando o interesse de uma nação possa entrar em conflito com o interesse de outra.

No livro, ao analisar a ascensão de líderes autoritários, o senhor também cita as redes sociais como parte desse processo. Qual o impacto que as redes sociais têm na eleição de populistas?

A mídia social desempenha um papel muito grande. É o que permite a disseminação de vozes radicais, porque os jornais não funcionam mais como mediadores. As mídias sociais também tornaram mais fácil para que partidos e candidatos extremistas encontrem um grande público, se organizem e realizem campanhas políticas. Ao mesmo tempo, tudo isso apenas mobiliza a raiva existente. Por que essa raiva é tão eficaz? Por que é tão profunda? Porque há medos reais, medos de mudanças culturais e frustração econômica.

Redes sociais também disseminam notícias falsas. Como combatê-las sem que sejam tomadas decisões que imponham a censura?

Em muitos países existem tentativas de censura no momento. Isso é um grande erro. Eu não confio em nenhum conjunto específico de indivíduos ou instituições para tomar uma decisão de permitir o que eu sou capaz de ouvir ou não. As pessoas estão mais dispostas a ouvir as teorias da conspiração, mais dispostas a culpar fora do que está errado.

Elas acham que as coisas não estão indo muito bem e então alguém está conspirando contra elas. Uma das coisas que precisamos fazer é mostrar que o sistema tem interesses de trabalhar para elas e mostrar que o futuro será melhor que o passado.

Como a oposição deveria reagir para enfrentar os populistas no poder?

Há algumas coisas que os partidários da democracia liberal têm de fazer para salvar os valores mais fundamentais. A primeira é construir uma ampla coalizão para se opor às pessoas que tentam atacar a democracia liberal. Eles devem proteger um sistema que celebre as diferenças e lutar por seus próprios ideais políticos. A segunda ação é enfrentar qualquer tentativa de concentrar o poder nas mãos de líderes populistas, defender a liberdade de imprensa e garantir que eles (populistas) não possam expandir o Poder Executivo.

Em terceiro, devem formular uma visão de como o país seria se esses partidos estivessem liderando e não Bolsonaro. Para isso, é preciso se reinventar e garantir que as pessoas possam acreditar que a oposição não será corrupta como os governos predecessores.

 

Autoridade do STF depende, em última instância, só dele

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Cortes constitucionais estão sob forte ataque em diversas partes do mundo

Oscar Vilhena Vieira

As cortes constitucionais estão sob forte ataque em muitas partes do mundo. Até mesmo tribunais internacionais, criados a partir da ação voluntária dos Estados, têm sido ameaçados nos últimos tempos.

A ascensão de forças populistas e autocráticas, de direita ou esquerda, toma tribunais dispostos a garantir direitos e a institucionalidade constitucional como alvos preferenciais, tal como ocorreu na Rússia de Putin, África do Sul de Zuma, Venezuela de Chaves, Colômbia de Uribe, Hungria de Orbán ou Turquia de Erdogan.

Assim, a sugestão de que basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal, feita por um filho de Bolsonaro, os inúmeros pedidos de impeachment de membros do Tribunal já protocolados no Senado, além de uma sórdida campanha nas redes sociais contra distintos ministros, não chegam a surpreender.

É da natureza do pensamento autocrático se insurgir contra os limites traçados pelo Estado de Direito, assim como em relação às instituições responsáveis pela sua defesa. Não é mera coincidência que tanto Vargas, em 1931, quanto os militares, em 1969, suspenderam as garantias da magistratura e determinaram a aposentadoria compulsória de ministros do Supremo Tribunal Federal do calibre de Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

Embora os ataques mais torpes ao Supremo Tribunal Federal possam ser compreendidos como parte do processo de regressão democrática em que imergimos nos últimos anos, é essencial que se busque compreender os fatores institucionais e dinâmicas específicas do caso brasileiro, que deixaram nossa Suprema Corte numa posição de enorme vulnerabilidade.

Do lado institucional, a fragilidade do Supremo decorre, paradoxalmente, dos “tremendos poderes”, tomando emprestado o termo de João Mangabeira, que recebeu da Constituição de 1988.

Dada a ampla desconfiança entre os atores políticos e corporativos que marcou nosso processo de transição, a estratégia que prevaleceu durante a Constituinte foi a de entrincheirar o máximo de direitos, interesses, prerrogativas e privilégios no corpo da Constituição. Ao Supremo Tribunal Federal foi delegado o papel de zelar pelo cumprimento dos compromissos assumidos na Constituição.

Para cumprir essa função de grande guardião do pacto de 1988 foram ampliadas a suas atribuições e fortalecidas as suas prerrogativas. A ele foram conferidas a função de tribunal de recursal de última instância, responsável por decidir centenas de milhares de casos todos os anos sobre os mais distintos assuntos.

Como tudo se tornou matéria constitucional, todo conflito passou a ter o potencial de chegar ao Supremo. O tribunal também recebeu a função de corte constitucional, podendo ser acionado por partidos, governadores, confederações sindicais toda vez que vissem seus interesses derrotados na arena política, tendo, inclusive o poder de anular emendas à Constituição.

Dessa forma passou, na prática, a agir como uma casa revisora do sistema político, podendo eventualmente proferir a última palavra em temas de máxima importância nos campos político, econômico e moral.

Por fim, o Supremo recebeu a função de tribunal de primeira instância para julgar atos políticos e administrativos das mais altas autoridades do país e a responsabilidade de julgar criminalmente a classe política, com assento no Congresso Nacional e na explanada. Dada a alta taxa de criminalidade de nossa classe política, isso se demonstrou uma tarefa espinhosíssima.

Dessa forma, é importante dizer que o Supremo não usurpou poderes políticos. Foram os próprios políticos, desconfiados de sua incapacidade de coordenar suas disputas no campo democrático, que delegaram ao tribunal esse papel “supremocrático”.

O tribunal, no entanto, não deve ficar isento de responsabilidade pelo infortúnio que agora vive. Com o passar dos anos, diversos membros do tribunal foram assumindo uma postura mais ativista, ou seja, passaram a tomar decisões cada vez mais descoladas do texto legal, se afastando da função propriamente jurisdicional (ordenada) para assumir um papel político (ordenador).

No mesmo sentido, por intermédio da doutrina jurisdição objetiva, muitos ministros passaram a decidir sobre questões que não estavam colocadas nos processos, exercendo pro-ativamente uma atividade política.

Essa função ficou reforçada pela capacidade dos ministros de escolher o que querem e quando querem julgar um determinado caso. Dadas a enorme quantidade de casos e a falta de critério ou transparência na formação da agenda do tribunal, os ministros passaram a ter um grande controle sobre a agenda política nacional.

Há um componente, no entanto, que vem contribuindo de forma decisiva para ampliar o esgarçamento da autoridade da corte, que está associado à apropriação de sua jurisdição pelos ministros.

Esse fenômeno começou a chamar a atenção dos analistas em meados dos anos 2000. Na última década houve um crescimento significativo das decisões monocráticas, o que levou Diego Argules e Leandro Ribeiro a forjar o conceito de “ministrocracia”. Esse fenômeno não apenas potencializa a insegurança jurídica como também politiza a jurisdição constitucional e aumenta a vulnerabilidade do tribunal e de cada um de seus membros.

É neste contexto que o imbróglio criado pelos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Morais deve ser analisado. Enquanto determinados setores afetados pela Lava Jato atacam alas do Supremo, grupos hostis ao constitucionalismo democrático estabelecido em 1988, com seu largo programa de progressismo moral e social, buscam destruir sua autoridade para avançar os seus objetivos.

É por isso que os ataques vêm de todos os lados, ora contra ministros que tomam decisões progressistas no campo moral, ora contra ministros que tomam decisões garantistas no campo penal. No caso do inquérito aberto pelo presidente do tribunal para apurar os ataques à corte nas redes sociais, as críticas foram quase unânimes.

Certamente o Supremo Tribunal Federal não será capaz de reestabelecer o equilíbrio do sistema político que emergiu numa nefasta e interminável batalha de poderes nos últimos tempos. Nem é essa a sua função. Ao Supremo, no entanto, cabe o relevantíssimo papel de garantir a Constituição e, assim, dar sua parcela de contribuição para a saúde de nossa democracia.

Por maiores que sejam seus problemas, o Supremo ainda pode desempenhar um papel fundamental para que nosso sistema político readquira sua capacidade de coordenar os seus conflitos e disputas dentro do campo democrático, sem colocar em risco os direitos dos grupos mais vulneráveis.

Para isso é necessário que reforce a sua colegialidade e assuma uma postura cada vez mais técnica, discreta e arraigadamente apegada ao que foi estabelecido pela lei. É importante lembrar que a autoridade do Supremo depende, em última instância, apenas dele.

Oscar Vilhena Vieira é professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP; autor de “A Batalha dos Poderes”

Proposta de esvaziamento das humanas é equivocada e fere a Constituição Federal

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Proposta de esvaziamento das humanas é equivocada e fere a Constituição Federal

Universidades brasileiras têm autonomia didática garantida e regulamentada por lei de 1996

Sabine Righetti Nina Stocco Ranieri

SÃO PAULO

A proposta de redução de investimentos do MEC em sociologia e em filosofia para priorizar áreas como engenharias e veterinária mostra, de novo, que o governo parece desconhecer as leis e a realidade do ensino superior brasileiro.

As universidades brasileiras têm autonomia didática garantida pela Constituição de 1988 e regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. De acordo com o marco legal, a decisão sobre criação, expansão, modificação e extinção de cursos de graduação no Brasil é prerrogativa exclusiva das universidades.

Isso significa que legalmente não cabe ao MEC decidir quais graduações devem receber mais ou menos recursos e nem o que deve ser extinto. Isso já havia sido discutido em 2018 no caso da oferta de uma disciplina sobre o “golpe de 2016” na UnB.

O governo erra se a proposta de esvaziar sociologia e filosofia for, de fato, redução de custos. Esses cursos têm operação relativamente barata se comparados às ciências da saúde, por exemplo, que muitas vezes têm laboratórios requintados e equipamentos importados que podem valer alguns milhões.

Sociologia e filosofia precisam de bons professores, salas de aula e bibliotecas.

Se acha que as humanas têm mais gente do que o país precisa, o governo também está equivocado. De acordo com dados do próprio MEC, apenas 0,6% dos ingressantes no ensino superior se matricularam em sociologia ou filosofia em 2017. Foram pouco mais de 10 mil alunos entrando nessas duas carreiras naquele ano —cursos de direito receberam 215,6 mil novos alunos no mesmo ano.

A quantidade de alunos em filosofia e em sociologia é tão baixa no Brasil que, neste ano, os dois cursos ficarão de fora da avaliação de carreiras do RUF – Ranking Universitário Folha. O RUF olha para as 40 carreiras com maior demanda no país de acordo com dados do último Censo da Educação Superior disponível (no caso, de 2017). Moda e zootecnia passaram sociologia e filosofia em número de ingressantes e, por isso, entrarão na avaliação no RUF 2019.

A LDB exige o ensino de filosofia e sociologia na educação básica. Sem os cursos das universidades públicas, como preencher os cargos de professor nas escolas? Além disso, fixar o número de vagas em qualquer curso, de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio, também é prerrogativa da autonomia universitária.

O Brasil tem problemas sociais gravíssimos. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas mortas de forma violenta no país é semelhante ao de regiões em guerra. No caso das mulheres, a situação é mais grave.

Como a Folha mostrou recentemente, ao menos 119 mulheres foram mortas no Brasil em janeiro deste ano por causa de seu gênero —o que é chamado de feminicídio. Há uma média de 164 casos de estupros por dia no país. Somos o país que mais mata a população LGBT no mundo, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU).

São justamente os sociólogos e profissionais de áreas correlatas que precisam estudar, entender e propor soluções para esses fenômenos –e as universidades públicas não podem deixar de responder a essas necessidades sociais. Erra o governo ao achar que essas áreas não geram “retorno imediato ao contribuinte”, como afirmou Jair Bolsonaro (PSL) em redes sociais.

O governo pode priorizar áreas em políticas públicas específicas. Caso do Ciências sem Fronteiras, programa de intercâmbio carro-chefe da gestão Dilma Rousseff (PT) —tão criticada pelo atual governo. O programa enviou de 2011 a 2017 cerca de 100 mil alunos de graduação e pós-graduação para universidades estrangeiras em áreas sobretudo de engenharias e ciências da saúde. As humanas ficaram de fora.

O governo não pode, no entanto, anunciar intervenções nas universidades que, além de inconstitucionais e ilegais, não têm embasamento em dados, em estudos e nenhuma proposta clara.

Cabe ao MEC assegurar, anualmente, recursos para a manutenção e o desenvolvimento das instituições de educação superior federais, como determina a lei, sem qualquer condicionamento. E, no mínimo, manter diálogo com as universidades —o que não vem fazendo.

Sabine é pesquisadora-docente da Unicamp e coordenadora acadêmica do RUF; Nina é coordenadora da Cátedra Unesco de direito à Educação da FDUSP

Ilona Szabó: “A direita fala em renovação para chegar ao autoritarismo”

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A especialista em segurança pública fala em razão e empatia para lidar com o ódio e a polarização da sociedade 

“Num momento de discurso da aniquilação do inimigo”, em que prevalece “a lógica de quem pensa diferente precisa ser calado”, a cientista política e especialista em segurança pública, Ilona Szabó, propõe “muita inteligência emocional e racional” e “um diálogo franco com a restante da sociedade civil”, para romper a polarização e o ódio nas redes sociais. “Se a gente recuar em todos os espaços de participação, ganha a parte autoritária”, diz.

Alvo de ataques e difamações há quinze anos por encabeçar discussões sobre temas que dividem a sociedade – como regulação de armas de fogo, a reforma da política de drogas e modernização da polícia –, Ilona foi secretária-executiva da Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia e também da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Em 2011, fundou o Instituto Igarapé, organização que elabora pesquisas e propõe políticas sobre segurança, justiça e desenvolvimento.

A mais recente onda de ataques contra a cientista política se deu em fevereiro deste ano durante a campanha #IlonaNão, promovida pela direita contra a sua nomeação como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, a convite do ministro da Justiça Sérgio Moro. A hashtag alcançou os Trending Topics do Twitter e resultou na exoneração de Ilona apenas dois dias após a nomeação. À imprensa, o presidente Jair Bolsonaro justificou que a posição da pesquisadora sobre a legalização do aborto e outros temas são “incompatíveis com o governo”.

O episódio trouxe consequências: Ilona diz estar se sentindo insegura, evitando dar entrevistas ou falar publicamente sobre temas polêmicos. “Estou me sentindo tolhida. Pela primeira vez [no Instituto Igarapé] estamos fazendo uma autocensura para evitar riscos. Eu trabalho com esses temas há 15 anos e eu nunca pensei que a gente pudesse enfrentar esse tipo de risco.”

Em entrevista à Pública, Ilona Szabó também falou sobre o pacote anticrime proposto por Sérgio Moro e a escalada da violência policial, que para ela está ligada a atitudes do presidente Bolsonaro e de seus seguidores, e criticou a proposta do ministro Moro pelo fim da punição de policiais que matam “em legítima defesa”. “Você jamais pode dar autorização para que a polícia, força de segurança, qualquer cidadão, exceda o uso da violência. Isso é cruzamento de linha total. A gente está escolhendo se vai viver numa democracia ou num estado autoritário onde a próxima vítima pode ser você.”

Agência Pública: Quais foram as consequências da campanha #IlonaNão?

Ilona Szabó: Num momento de um discurso de aniquilação do inimigo, onde se trabalha com a lógica de que quem pensa diferente precisa ser calado, isso deixa a gente bastante vulnerável principalmente porque eu trabalho com a formação de opinião pública. Tem eu, a minha equipe, majoritariamente de mulheres, numa exposição pública muito grande. E a gente começou a se sentir mais insegura. Não tem problema discordar, o problema é quando entra desonestidade no debate. Ataque, mentira, difamação. Essa é a linha [que separa] com quem eu aceito debater em público ou não.

Infelizmente, a gente sabe que a violência, quando incitada, é muito difícil fazer a gestão de risco se ela irá vazar ou não para a vida real. É a primeira vez que a gente está pensando sobre isso de verdade no Instituto Igarapé. É uma crescente – estou deixando de dar entrevista sobre alguns temas, não estou me sentindo segura para falar. É escolher o tipo de briga que a gente compra ou não porque estamos sem capacidade de análise de risco, e não somos só nós – temos conversado com outras organizações da sociedade civil.

Antes tínhamos um cenário mais claro da institucionalidade que protegia a liberdade de expressão, a gente poder ter opinião [diferente] e ainda sentar à mesa. A gente nunca atacou as pessoas que pensavam diferente de nós, sempre conseguimos ser críticos construtivos e sentar com pessoas que pensam diferente. Essa questão está mais difícil agora, bem mais difícil, e isso traz muitos desafios ao nosso trabalho. Eu não posso dizer com quem eu encontro, com quem não encontro, tudo pode gerar uma crise. E não posso falar na imprensa sobre alguns assuntos. Estou me sentindo tolhida. Estamos fazendo uma autocensura para evitar maior exposição a riscos que a gente não está conseguindo medir. Eu trabalho com esses temas há 15 anos e nunca pensei que a gente pudesse enfrentar esse tipo de risco.

AP: O que virou a chave para que os ataques contra você atingissem essa proporção?

IS: O que acontece no Brasil, e a gente demorou para ver porque infelizmente estamos numa bolha, é que existe uma arquitetura de grupos bastante radicais que têm essa ideia não-democrática de aniquilar o outro. Não digo fazer alguma coisa física, mas nas redes sociais eles querem calar, não deixar que aquela opinião ganhe destaque ou seja discutida. Isso não é de hoje, mas o que potencializou nas eleições foi que essa máquina invisível do uso de robôs e outras táticas, foi impulsionada pelas redes fortalecidas com o processo eleitoral. A eleição é a consequência disso.

Meses depois da eleição ainda vemos essa ideia de que ou você apoia ou você é contra, e quem está contra precisa ser aniquilado porque está a favor dessa maluca conspiração comunista-globalista-nacionalista-tudo mais “ista” que todos nós estamos tentando descobrir o que significa.

AP: Quais outros ataques você sofreu ao longo da sua trajetória?

IS: Sofro linchamento virtual há muito tempo; há 15 anos eu falo sobre controle de armas e há 15 anos eu sofro ataques. Mas no final de 2017 e começo de 2018 teve um pico e foi o primeiro grande ataque que eu sofri, por conta do meu envolvimento com movimentos cívicos e de renovação política como o Movimento Agora!, do qual sou co-fundadora. Foi uma série de vídeos do MBL [Movimento Brasil Livre] dentro da temática controle de armas com uma retórica “globalista-comunista-braço do George Soros-quer liberar droga-quer defender bandido”. Esse grupo pegou a bandeira de uma turma pró-armas e começou a bater também em outras questões na arena da renovação política.

Os vídeos foram para canais com milhões de usuários, para o WhatsApp, e circulavam nessas redes que a gente depois viu serem multiplicadas ao longo da campanha presidencial. Chegaram às redes de policiais militares, de pessoas que estavam já construindo o que a gente viu nas eleições, e explodiram em perfis do Facebook, inclusive em perfis de autoridades. Aqui eu tenho que ter muito cuidado porque essa prática não acontece mais e por orientação jurídica eu resolvi não processar, mas os ataques vinham de membros do Ministério Público também. Pessoas que são pagas com o nosso dinheiro postavam as mesmas coisas que esse grupo [MBL] postava. Pegavam meus artigos e falavam barbaridades, chamavam o Instituto Igarapé de “Instituto Igarapó”.

AP: Dentro do Igarapé, quais foram as consequências dos ataques do MBL?

IS: Posso dizer com todas as letras que me causou um monte de problemas. Para o Igarapé foi muito difícil, eu nunca fui filiada a nenhum partido e as pessoas achavam que de fato eu estava planejando isso. Nossa missão é avançar políticas públicas baseadas em evidências para reduzir violência letal, no Brasil e no mundo. Eu tenho como mandato fazer pontes, tentar dialogar com quem pensa diferente, criar agendas mínimas. Poucas organizações da sociedade civil têm uma estratégia como a nossa. Quando usam isso para dizer que o Igarapé não é neutro, que está servindo a esse ou outro governo, me traz problemas, como se tivessem agendas escondidas no trabalho que a gente sempre fez. Eu tive que fazer uma mega redução de danos. O impacto maior foi no Rio de Janeiro, onde a gente estava começando a construir parcerias maiores com as lideranças políticas.

AP: Foi o MBL que começou a campanha difamatória pela sua exoneração?

IS: Tanto esses grupos de pró-armas quanto o MBL estiveram envolvidos no episódio #IlonaNão, mas se juntaram a uma rede muito mais poderosa: a máquina dos apoiadores do governo. O grupo pró-armas tem um nicho muito fiel e muito barulhento, mas ele não é gigante nas redes. Teve muita interação orgânica, mas também muito robô. Eu estava em Brasília quando começou a campanha no Twitter. Vi o post quando saí do avião, um amigo mandou. Estou acostumada a ler esse tipo de coisa, mas eu nem imaginava a dimensão que ia tomar.

AP: Alguns desses grupos que foram contra a sua nomeação e participaram da campanha difamatória contra você se auto-intitulam “anti-establishment”. Ao mesmo tempo, criticam vozes como a sua, que participam desse movimento por renovação política. É um paradoxo?

IS: Eu defendo um movimento por renovação política com base no estado democrático de direito. Essas pessoas estão usando o conceito da renovação política para caminhar para o autoritarismo. Infelizmente o nome foi apropriado. Para mim está muito clara essa diferença, entre grupos democráticos e grupos não-democráticos. A “nova política” não é o que a gente está vendo, não no sentido democrático. A pluralidade, a diversidade, o diálogo, a construção, a negociação que faz parte do jogo político – desde que aberta, transparente e baseada no interesse público –, tudo isso está muito ligado aos princípios da democracia. Esses grupos que são minoritários não têm esses mesmos princípios. Não são pela renovação política, até porque as práticas políticas que vêm sendo usadas não tem nada de novas, são práticas ultrapassadas, que enfraquecem a democracia.

AP: Quando o governo retirou sua nomeação ele foi conivente com os ataques que você sofreu?

IS: Sinceramente, o Ministério da Justiça ainda é um lugar que dá para divergir e conversar. Eles não foram desonestos comigo. Porém, a base de apoiadores do núcleo do presidente não tolerou alguém com ideias diferentes tendo algum tipo de voz, mesmo que não tivesse voto, pois não era um conselho deliberativo, apenas consultivo, voluntário. É essa base que quer aniquilar a diferença, mas ela não é o governo como um todo. Isso precisa ficar claro, até porque querem que você veja dessa forma porque isso acaba jogando um lado contra o outro e acredito que, na democracia, você precisa achar esses pontos de contato, e mesmo nessa situação eles existem. Eu continuo nesse diálogo com pessoas que estão dispostas a dialogar sobre agendas comuns, mesmo com divergências dentro desse governo.

AP: Há essa abertura, mas na prática parece não haver abertura, tanto é que você foi exonerada por pensar diferente.

IS: O governo não é uníssono, tem grupos disputando poder e influência. E alguns deles são contrários à aniquilação do inimigo, são grupos que podem pensar diferente mas que respeitam o jogo democrático. Outros, não. O fato de que um dos núcleos do governo, o núcleo com mais poder pois está ligado ao presidente, não aceita que eu esteja em uma posição formal, não quer dizer que os outros núcleos tenham se fechado. Eu tive diálogos com outros núcleos desse governo, há 15 anos eu dialogo com o Ministério da Justiça. Não vou deixar de falar, caso haja real disposição ao diálogo, o que não quer dizer que eu tenha capacidade de dialogar com o núcleo do presidente. Eu espero que eles mudem de opinião ao longo do mandato porque nenhum governo se sustenta dessa forma, não numa democracia. E a gente vai lutar para que esse país continue democrático. Eles precisam dialogar com a sociedade civil porque eles vão ter muitas questões que precisam de apoio da opinião pública.

AP: Como o terceiro setor poderá fazer a diferença dentro desse contexto em que há resistência ao diálogo?

IS: Na segurança pública há algumas organizações como o Instituto Igarapé que estão em um diálogo construtivo com essa parte do governo federal, que é uma parte mais técnica, digamos assim. Não somos os únicos, tem o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, vamos juntos nesse diálogo. Estivemos há pouco tempo em uma reunião em Brasília onde discutimos indicadores, dados, sistema nacional de informação sobre segurança pública.

Quando você vai para o que de fato importa, que é como a gente vai melhorar a qualidade de entrega da segurança pública, existem organizações e acadêmicos que, independente de em quem votaram ou deixaram de votar, estão dispostos a sentar juntos e contribuir. O núcleo do Ministério da Justiça não está necessariamente ligado ao núcleo ideológico do presidente, no sentido de não querer dialogar.

AP: E como é ser mulher e com um olhar progressista atuando na segurança pública, à frente de um instituto, no Rio de Janeiro?

S: Óbvio que tem dificuldades, mas a gente conseguiu se colocar. Eu formei muitas equipes com mulheres que se tornaram referência em seus temas, que se provaram profissionais extremamente qualificadas. É importante formar uma rede de apoio, porque temos a obrigação de trazer outras conosco. A gente é muito mais cobrada, tem que estar mais preparada, a gente não vai ser, na maioria dos casos, ouvidas, então temos que nos colocar. E quando você tem argumentos técnicos, sabe o que está falando, facilita o jogo. Eu sou ouvida, mas ninguém me oferece a palavra, eu tomo a palavra. Eu protagonizei e presenciei a atitude de mulheres que mudaram o curso de diversas decisões, e é um olhar mais completo, faz toda diferença ter mulheres à mesa quando estamos falando de vida ou morte.

AP: Especialistas e pesquisas apontam que o caminho para a redução da violência está em pautas majoritariamente defendidas por progressistas, como encarcerar menos e educar mais, descriminalizar as drogas. Por que essas medidas não pegam?

IS: Como lado positivo do episódio da minha exoneração, teve muita gente que parou para olhar as pautas que o Instituto Igarapé trabalha. Eu não defendo pauta que não esteja embasada. As pessoas dizem que eu trabalho com temas polêmicos. Eu trabalho com temas difíceis para a sociedade, mas que para mim não tem absolutamente nada de polêmico, porque eu posso defender de A a Z o que eu estou falando aqui com o melhor embasamento científico que existe.

Quando você vai nas pesquisas – e a pesquisa do Datafolha pegou propostas super técnicas, como excludente de ilicitude, e disse, na prática, o que isso significa –, as pessoas são contra. A maioria das pessoas é contra que todo mundo tenha uma arma e possa andar armado, as pessoas são contra que um policial possa matar sem ser julgado, contra que um cidadão possa se exceder por medo, isso é uma excelente notícia. A população precisa de informação.

Eu me preocupo com a questão do linchamento virtual porque a incitação do ódio tem implicações práticas. Por isso o momento é tão delicado, mas é um momento em que as pessoas estão buscando um contraponto, onde a minoria vocal parece que detém a opinião pública, mas não é bem assim.

Com a criminalização dos movimentos sociais, com toda essa difamação e tentativa de tirar importância de participação social, a gente pode, se deixarmos, virar um país da não-verdade, onde as narrativas oficiais não são baseadas em fatos. Porém, eu acredito que estamos em um momento de disputar essas narrativas, a gente ainda tem uma imprensa capaz de disseminar, que ainda tem eco nas redes sociais, e tem muita gente que já acordou para o fato de que ninguém ganha com bangue-bangue, que o policial não pode fazer o que quiser sem cumprir a lei.

AP: Qual seria a saída, o diálogo?

IS: Eu não sou ingênua. Há partes do governo que não estão abertas ao diálogo. Quando não há essa abertura, o papel da sociedade precisa ser fiscalizar, monitorar, disseminar, colocar na imprensa, fazer pressão nacional, internacional. Nós não podemos aceitar retrocessos, decisões baseada em ideologia. O que estou dizendo é que há alguns espaços de interlocução e eles são preciosos. Na divergência a gente consegue construir as convergências. Aliados em uma pauta não são aliados em outra pauta. É assim mesmo quando você trabalha com temas que a sociedade vê como polêmicos.

Também é preciso uma grande discussão sobre as redes sociais. Hoje não é possível vencer um debate nas redes sociais porque nós não vamos usar das mesmas ferramentas que são usadas pelos polos. E não é só o polo da extrema direita; a difamação está mais forte do lado da extrema direita mas já foi usada pela extrema esquerda. Os dois polos usam ferramentas que não permitem que as pessoas que estão tentando de fato levar informações honestas, ganhem o debate. Isso é uma discussão muito de fundo sobre o papel das redes sociais e que eu, de fato, acho que estão impactando as instituições democráticas mundo afora. É um debate profundo que precisa ser feito com essas empresas na mesa.

AP: Um dos pontos mais polêmicos do pacote anticrime é sobre legítima defesa, que especialistas defendem ser “carta branca” para o policial matar. Essa já é uma questão na segurança pública. Com o pacote, vai piorar?

IS: Não tenho dúvida, o discurso já começou. Quando a gente olha para as mortes por policiais, é assustador o aumento. De 2017 para 2018 é 18% de aumento, alguns estados como Pará, Rio de Janeiro, Minas Gerais, aumentos muito expressivos. Pará chega a 64%; Rio e Ceará, 36%. Algumas das estratégias que foram colocadas e que acabam dando uma trégua nas mortes violentas no geral, elas trazem, com esse discurso da incitação à violência, efeitos colaterais, como maior uso da violência pela polícia. Se você não tem autoridades que coíbam isso e, pelo contrário, incentivam, é uma tragédia.

A gente precisa cobrar dos governantes, sejam nacionais, sejam estaduais, que isso seja freado. Já está muito claro com as ocorrências que estão surgindo, como os indícios de execução no morro do Fallet, no Rio de Janeiro; depois o caso do músico Evaldo Rosa, que é um absurdo. É inexplicável o que aconteceu a não ser que você de fato pense no contexto. Que outra explicação você tem para o fato de que militares treinados desobedeceram totalmente as regras de abordagem, de uso da força, e acharam que podiam, na dúvida, atirar, sendo que o procedimento é: na dúvida, nunca atire. Há um impacto tenebroso do discurso de incitação à violência, da aceitação da violência policial, na prática. Coloca todo mundo em risco, pessoas comuns, pessoas que cometeram crimes, policiais. Essa medida [do pacote anticrime] é uma das mais graves. Você jamais pode dar autorização para que a polícia, força de segurança, qualquer cidadão, exceda o uso da violência. Isso é cruzamento de linha total. A gente está escolhendo se vai viver numa democracia ou num estado autoritário onde a próxima vítima pode ser você.

Eu não diria que o pacote não presta como um todo. Há medidas que são boas, como as que ajudam a investigação policial e a desvendar crimes violentos. Mas precisamos de debates amplos envolvendo toda a cadeia de segurança pública para poder formar uma opinião.

AP: Figuras como Jair Bolsonaro têm como bandeira principal a segurança pública, mas defendem medidas como facilitar a posse de armas e o encarceramento, que pesquisas e especialistas apontam não ser caminho mais eficaz. Na sua análise, por que existe essa contradição

IS: A maneira como as pessoas pró-armas, que defendem o porte mesmo, isto é, o direito de andar armado, ter armas de calibre restrito, essa é uma posição ideológica, não está baseada em fatos, pelo contrário. Ela é uma posição que tem sido usada no Brasil e mundo afora, em especial no Estados Unidos, para inflamar certas ideologias políticas. São temas que podem ser usados para fortalecer e manipular massas eleitorais.

Se você for olhar para o que certo perfil de homem defende, é uma questão cultural, estamos trabalhando com questões de masculinidade, certamente é muito mais profundo que não respeitar direitos humanos. Até porque, na cabeça de quem segue essas ideologias, eles são os guardiões das famílias, da tradição da propriedade. É muito mais complexo. Se a gente não tiver uma escuta do que eles estão falando, não tem como trazer para uma posição mais razoável.

O que eu posso dizer a partir da minha experiência, do que eu já conversei e converso com muita gente, é que quando você consegue uma conexão pessoal, é muito possível uma mudança para uma posição muito mais moderada. Já tive inúmeras situações onde eu mudei a posição das pessoas em relação a esse tema.
Quem propaga essas ideias, no campo político-ideológico, faz isso porque está mexendo com o medo das pessoas. A gente tem que entender isso e conversar com as pessoas para que elas entendam que isso é uma manipulação e há maneiras muito mais eficazes e responsáveis de estar direcionando o medo. Se a gente não quiser acentuar essa maluquice da polarização, o exercício da empatia e do diálogo é fundamental para virar o jogo.

AP: Imagino que seja difícil o exercício da empatia quando os ataques são muitos, como é o seu caso.

IS: Quando você entende que algumas pessoas estão sendo manipuladas e se coloca numa posição de escuta, o que é muito difícil, é transformador. Você entende que dá para mudar, há pontos de sinergia mesmo com essas pessoas. Ao serem confrontadas de uma maneira não agressiva, elas baixam a guarda. É possível desmontar essa maluquice.

Eu não sou a Madre Teresa, é difícil. Mas tenho aprendido muito com essa tentativa de entender e de dialogar. Faz parte do nosso processo de aprendizado também, porque nós, especialistas, ativistas, achamos que somos donos da razão. A gente pode ter boas informações mas o mundo se move por outras motivações. Temos problemas muito complexos e estamos trabalhando contra forças que não são democráticas e a gente tem que usar de uma inteligência emocional e racional absolutamente diferente do que fez até hoje. Se a gente achar que é nós contra eles, está todo mundo lascado. Os polos não são a maioria. Se a gente não trabalhar as divergências, vai ganhar a gritaria, e a gritaria não traz nada de bom para o que a gente quer construir. Está nas nossas mãos essa decisão.

ATUALIZAÇÃO às 19h20 de 23.04.2019 – A assessoria de comunicação de Ilona Szabó esclarece que, na entrevista à Agência Pública, quis referir-se à extrema direita, e não à direita como acabou declarando na conversa com a repórter Nyle Ferrari e que motivou o título “A direita está falando em renovação política para chegar ao autoritarismo”. Segundo Ilona, tanto a pressão contra a sua nomeação como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, quanto os radicalismos identificados especialmente nas redes sociais vêm da extrema direita – como no passado já esteve presente na extrema esquerda. Ilona Szabó e o Instituto Igarapé têm se preocupado em dialogar com a esquerda e com a direita justamente para evitar a polarização e a radicalização promovidas por esses extremos que levam ao autoritarismo.