Punir mais só piora crime e agrava a insegurança

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FSP – 31/08/2009.
Autor: Massimo Pavarini – Professor da Universidade de Bolonha/Itália.

“É um pecado , uma ideia louca” a noção de que penas maiores de prisão aumentem a segurança. “Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança”, diz o italiano Massimo Pavarini, 62, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da Europa. Ele dá um exemplo: “Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime”.

Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80, e difundiu-se pelo mundo “como uma doença”. A eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou, acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a seguinte entrevista:

FOLHA – O sr. diz que o direito penal está em crise porque o discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não funciona. O que fazer?
MASSIMO PAVARINI – O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo.

FOLHA – O que fazer, então?
PAVARINI – As prisões já não produzem suficientemente medo para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos econômicos diferentes.

FOLHA – Numa conferência, o sr. disse que o Estado neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de recuperar o preso?
PAVARINI – Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada “Nothing Works” [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald] Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final escreveram “nothing works”. A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes.

FOLHA – Ele cumpre esse papel?
PAVARINI – Pode cumprir. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos. Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes.

FOLHA – Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se converteram em um sistema de controle social.
PAVARINI – Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito. Prendiam menos do que a Inglaterra.

FOLHA – O senso comum diz que os presos crescem exponencialmente porque aumentou a violência.
PAVARINI – Isso é muito complicado. Se a pergunta é “existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da população presa?”, qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não. Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.

FOLHA – Por que prendem tanto?
PAVARINI – Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.

FOLHA – Eliminar é o papel principal das prisões, então?
PAVARINI – É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais duro, as sentenças são mais longas, “life sentence” [prisão perpétua] é mais frequente, aplica-se a pena de morte.

FOLHA – Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita exclusão?
PAVARINI – Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais, grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França, que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.

FOLHA – É por essa razão que cresce o número de presos no mundo?
PAVARINI – Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.

FOLHA – O que há de errado com esse tipo de negócio?
PAVARINI – Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro, e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro contra o crime, eles perdem votos.

FOLHA – No Brasil, os políticos e a população defendem o aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?
PAVARINI – Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz “vamos buscar trabalho para esse garoto”, ele não ganha nada.

FOLHA – No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam 55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado rico tem presídios tão ruins?
PAVARINI – Há uma regra econômica que diz que a prisão, em qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O presídio ruim tem função simbólica.

FOLHA – Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de 6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?
PAVARINI – Mais cárceres significam mais presos. Se você tem mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias, decidem não construir mais presídios.

FOLHA – Políticos dizem que mais presídios melhoram a segurança.
PAVARINI – A única coisa que você pode dizer é que mais presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para qualquer criminoso.

Nós não vamos pagar nada?

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Autor: Chris Anderson – Editor da revista Wired –

Consumidoras correm para aproveitar promoção em loja nos EUA

Chris Anderson, editor da revista de tecnologia e novas tendências “Wired” e um dos pensadores da internet, é o promotor de dois conceitos muito caros a esse meio. O primeiro é a “teoria da cauda longa”, estratégia de negócio segundo a qual a meta é vender poucas unidades de muitos e variados itens, o que substituiria o popular modelo dos “best-sellers”.

O segundo é o que ele chama de “freeconomics” ou a economia das coisas de graça, alicerçada no fato de que o custo de armazenamento e transmissão de conteúdo digital baixa cada vez mais. De onde vem o dinheiro? Do conceito “freemium”, junção das palavras “free” e “premium”: a maioria consome de graça (“free”), bancada por uma minoria que paga por uma versão de mais qualidade (“premium”).

Ambos os conceitos foram desenvolvidos em artigos, viraram palestras e livros.

O segundo surgiu recentemente em livro nos EUA e chegou neste mês ao Brasil. É “Free – O Futuro dos Preços” (Free – The Future of a Radical Price, no original). Nele, e na entrevista que deu à Folha por telefone, Anderson defende que, sim, diferentemente do que popularizou o economista Milton Friedman (1912-2006), existe almoço de graça -desde que a sobremesa seja bem paga por alguém.

Nos EUA, a versão eletrônica do livro ficou disponível gratuitamente por alguns dias. Agora é vendida por US$ 26,99 [R$ 50], em papel, e US$ 9,99, versão eletrônica -o “audiobook” em inglês continua de graça e pode ser baixado do site do autor, www.thelongtail.com.

No Brasil, só papel e só a dinheiro: R$ 59,90 por 88 páginas. A editora Elsevier já vendeu a primeira tiragem, de 10 mil cópias, prepara a segunda e colocou os três primeiros capítulos de graça em www.elsevier.com.br.

FOLHA – Se a informação quer ser livre/de graça, por que tenho de pagar R$ 59,90 para ler seu livro?
CHRIS ANDERSON – Não tem. Poderia ir ao site e baixar o “audiobook” gratuitamente.

FOLHA – Sim, mas quem quer ler em português, caso da maioria dos leitores brasileiros, tem de desembolsar.
ANDERSON – Cada região tem um editor diferente, cada um tem um enfoque diferente para isso, uma estratégia própria.
Nos EUA, era de graça. No Reino Unido, na Bélgica. A única parte que eu controlo é o “audiobook”. Eu encorajei todos os editores a dar o livro, alguns aceitaram, outros não.

FOLHA – Por que um editor pagaria milhares de dólares pelos direitos de seu livro, outro tanto para traduzir, mais ainda para imprimir e distribuir e finalmente daria de graça aos leitores brasileiros? Faz sentido economicamente?
ANDERSON – O livro trata disso extensivamente, mas sim, eu acredito que, se feita corretamente, essa ação vai levar a mais vendas do livro, não a menos. Você não precisa dar a versão física, pode dar a digital.
E, se você acredita que a versão física é a “premium”, que as pessoas ainda preferem ler em papel por todas as razões óbvias, para manter, fazer anotações, ler na praia, então não precisa temer dar a versão digital de graça, pois será uma forma de marketing, de amostra que vai promover a física.

FOLHA – Em seu livro, o sr. defende que sim, há almoço de graça, no sentido de que há toda uma economia florescendo baseada em dar os produtos, e não vender. Como isso funciona no caso específico da indústria de conteúdo?
ANDERSON – Em primeiro lugar, não há nada de novo aí. O que está mudando é o conceito, que evoluiu de um truque de mercado para um modelo econômico. Essa mudança é impulsionada pela indústria tecnológica. A ideia de conteúdo livre tem cem anos: rádio é de graça, TV aberta é gratuita. O problema é que agora anúncios não são mais suficientes para sustentar o modelo. Daí o que chamo de “freemium”, onde você dá a maior parte de seu conteúdo de graça, mas reserva parte dele, geralmente a melhor parte, para os que pagam.

FOLHA – O sr. cita Brasil e China como a nova fronteira da “freeconomics” e a forte presença de pirataria nos dois países como algo positivo. Como a pirataria pode ser benéfica para uma economia?
ANDERSON – Pirataria é uma palavra mal compreendida. Nem todo o conteúdo distribuído dessa maneira é pirata. Alguns são, outros são “pirateados”, entre aspas, por vontade dos autores, que valorizam a distribuição gratuita. Um dos exemplos que dou é o tecnobrega brasileiro. Não é pirataria, porque os autores autorizam os camelôs a reproduzir e vender os CDs sem lhes pagar nada.
Meu ponto é: conteúdo digital pode ser copiado e distribuído a um custo cada vez mais próximo de zero e, de uma maneira ou de outra, vai ser distribuído. Usar os mesmos canais de distribuição dos piratas será uma decisão de cada artista.
Mas o fato é que essas são as forças motoras da atual economia, são intrínsecas à internet e à era digital e impossíveis de serem contidas. A pirataria não é boa para a economia, mas a distribuição gratuita sim, e os piratas são os primeiros a usá-la.

FOLHA – O sr. diz ter problemas com as palavras “mídia”, “jornalismo” e “noticiário”. Por quê?
ANDERSON – Eu sei o que “mídia profissional”, “jornalismo profissional” e “noticiário profissional” significam. Mas como chamar quando isso é produzido por amadores? A maior parte do que eu leio hoje em dia está on-line e não vem desses canais. Está no Facebook, no MySpace, no Twitter, em blogs. Leio sobre amigos, família, hobbies. O que é isso? Eu não acho que a palavra “jornalismo” descreve o que está acontecendo. Acho que precisamos de novas palavras.

FOLHA – Ao mesmo tempo uma breve visita a sua conta no Twitter revela que o sr. segue o “New York Times”, a revista “New Yorker” e várias outras contas da chamada mídia tradicional. Além disso, seu trabalho principal vem de editar uma revista de papel, a “Wired”. Como o sr. concilia isso?
ANDERSON – Nós vivemos num mundo de hipermídia, onde não temos mais o monopólio sobre a atenção do leitor. Acho que há um papel para a mídia tradicional, mas há também um papel crescente para todo o resto. Nós vivemos em ambos os mundos. Você não vive em ambos os mundos?

FOLHA – Mas o sr. é o evangelista desse novo mundo e edita uma revista do velho mundo. Como concilia os dois?
ANDERSON – Nós usamos o modelo “freemium”. O que está na wired.com é de graça, faturamos um pouco com a publicidade on-line, e isso levanta assinaturas para a revista, que é o nosso “premium”.

FOLHA – Se o sr. me dá o conteúdo de graça on-line, por que eu pagarei por ele na revista?
ANDERSON – Porque não é o mesmo conteúdo, as palavras podem ser as mesmas, mas a revista é mais que palavras, é um pacote visual, com fotos, arte e um conceito de edição. De graça, você não tem o pacote.

Comunidades falsificadas

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Autor: Filósofo espanhol Jesús Martín-Barbero – FSP – 23/08/2009

Com a emergência de gigantescas redes sociais virtuais, como o Facebook, a internet configura a sua utopia máxima: todos somos iguais. E, se somos todos iguais, não precisamos mais de eleições, pois não precisamos ser representados. Todos nos representamos no espaço democrático da internet.

O raciocínio é tentador, mas, para o filósofo espanhol Jesús Martín-Barbero, é mentiroso -e temerário. “Nunca fomos nem seremos iguais”, ele diz, e na vida cotidiana continuaremos dependendo de mediações para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação de partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet como um dos fatores de desestabilização do mundo hoje, que não pode ser pensado por disciplinas estanques. Mundo, aliás, tomado pela incerteza e pelo medo, que nos faz sonhar com a relação não mediada das comunidades pré-modernas. O filósofo conversou com a Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.

FOLHA – Desde 1987, quando o sr. lançou sua obra de maior repercussão [“Dos Meios às Mediações”, ed. UFRJ], até hoje, o que mudou na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO – Estamos em um momento de pensar o conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza intelectual dos modernos se vê hoje atravessada por outra sensação: o medo. A sociedade vive uma espécie de volta ao medo dos pré-modernos, que era o medo da natureza, da insegurança, de uma tormenta, um terremoto. Agora vivemos em uma espécie de mundo que nos atemoriza e desconcerta.
O medo vem, por exemplo, da ecologia: o que vai acontecer com o planeta, o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema hoje, como aos pré-modernos. Depois vem o tema da violência urbana, a insegurança urbana. Por toda cidade que passo, de 20 mil a 20 milhões de habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança, que nos afeta cada vez mais, aparece a vida laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande instituição moderna que deu segurança às pessoas, vamos para um mundo em que o sistema necessita cada vez menos de mão de obra. O mundo do trabalho se desconfigurou como mundo de produção do sentido da vida.

FOLHA – Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de comunidade? Como ela aparece em redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO – Acho que ainda não temos palavras para nomear esse fenômeno. Falamos em rede social, mas o que significa social aí? Apenas uma rede de muita gente. Não necessariamente em sociedade. Há diferenças entre o que foi a comunidade pré-moderna e o que foi o conceito de sociedade moderna.
A comunidade era orgânica, havia muitas ligações entre os seus membros, religiosas, laborais. Renato Ortiz [sociólogo e professor na Universidade Estadual de Campinas] faz uma crítica muito bem feita a um livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é como uma comunidade imaginada [“Comunidades Imaginadas”, ed. Companhia das Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais para a criação da ideia de nação. Mas Renato Ortiz diz que há muito de verdade e muito de mentira nisso. O que acontece é que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a comunidade. Era uma comunidade imaginada no sentido de querer ter algo de comunidade, e não só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se romperam todos os laços da comunidade pré-moderna. Eu diria que há aí um ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial. Essa é um pouco a utopia da internet.

FOLHA – Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO – A utopia da internet é que já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos iguais. E portanto a democracia de todos é mentira. Seguimos necessitando de mediações de representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.

FOLHA – As comunidades virtuais da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO – Quando começamos a falar de comunidades de leitores, de espectadores de novela, estamos falando de algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que gosta do mesmo em um mesmo momento. Se a energia elétrica acaba, toda essa gente cai.
É uma comunidade invisível, mas é real, tão real que é sondável, podemos pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade. Nesse sentido é muito difícil proibir o uso da expressão “comunidade” para o Facebook. Mas o que me ocorre ao usarmos o termo “comunidade” para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que eram uma forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do outro. Outra chave: o parentesco. A família extensa sumiu. Hoje, uma família é um casal. O que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos numa situação em que o velho morreu e o novo não tem figura ainda, que é a ideia de crise de [Antonio] Gramsci.

FOLHA – A proposta de sites como o Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO – Creio que há pessoas no Facebook que, pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade. É uma questão importante, mas não podemos esquecer da maneira como nos relacionamos com o Facebook.
Um inglês que passa boa parte de sua vida só, em um pub, com sua grande cerveja, desfruta muito desse modo de vida. Nós, latinos, desfrutamos mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real, mas a maneira como nos relacionamos, como o usamos, é muito distinta. O Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, mas nada mais.

FOLHA – De que maneira essas questões devem transformar os meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO – Não sei para onde vamos, mas em muito poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos hoje. A televisão por programação horária é herdeira do rádio, que foi o primeiro meio que começou a nos organizar a vida cotidiana. Na Idade Média, o campanário era que dizia qual era a hora de levantar, de comer, de trabalhar, de dormir. A rádio foi isso.
A rádio nos foi pautando a vida cotidiana. O noticiário, a radionovela, os espaços de publicidade… Essa relação que os meios tiveram com a vida cotidiana, organizada em função do tempo, a manhã, a tarde, a noite, o fim de semana, as férias, isso vai acabar. Teremos uma oferta de conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da rádio, a rádio imitadora da imprensa escrita… Creio que vamos para uma mudança muito profunda, porque o que entra em crise é o papel de organização da temporalidade.

FOLHA – A ascensão da internet e da oferta de informação por conteúdos suscita outra questão, ligada à formação do cidadão. Não corremos o risco de que um fã de séries de TV, por exemplo, só busque notícias sobre o tema, alienando-se do que acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO – Antigamente, todos líamos, escutávamos e víamos o mesmo. Isso para mim era muito importante. De certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres -sempre defendi isso como um aspecto de formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me que isso era uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um entorno comunicativo, as mudanças não são pontuais como antes. A questão não é se eu abro ou não abro o correio. Não quero ser catastrofista, mas o tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto que sou visto. Em quanto mais páginas entro, mais gente me vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas e tantas línguas que já não sabemos o que queremos. Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o que fará o sistema educacional para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras desse entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado. Há muitas coisas a repensar radicalmente.

Modo de consumo norte-americano foi destruído, diz Stiglitz

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Autor: Economista Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia – FSP 23/08/2009.

Mesmo que a recessão técnica esteja perto do fim, ainda há um longo caminho rumo à recuperação econômica -é o atraso entre os instrumentos de medição econômica que temos (como o PIB) e o bem-estar da população, que precisa de emprego e renda para sentir que, de fato, a recessão acabou.
Após a melhora do setor financeiro e do ajuste de estoques, a economia encara seu problema fundamental: a destruição do motor global, o modelo de consumo dos EUA, disse o economista Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia, em entrevista por telefone de sua casa em Nova York.

FOLHA – Economistas e analistas dizem que a recessão americana deve ter terminado em julho, e o BC dos EUA afirmou que a atividade econômica do país já se normaliza. Houve exagero, no ano passado, sobre a extensão que a crise teria ou agora há otimismo excessivo?
JOSEPH STIGLITZ – O termo recessão é normalmente usado para crescimento negativo. Se a economia está se normalizando e o crescimento não é mais negativo, muitos economistas iriam dizer que a recessão acabou.
Mas, para a maioria das pessoas e mesmo para muitos economistas, a definição de recessão tem a ver com a restauração da economia, o que significa você conseguir trabalho. O desemprego, na verdade, ainda deve crescer e talvez significativamente. Há vários riscos rondando o setor financeiro.
Então, mesmo que temporariamente a economia se normalize ou até mesmo cresça, a recuperação ainda é muito frágil e vai levar muito tempo para o mercado de trabalho se recuperar. Os EUA tiveram uma bolha no mercado imobiliário que apoiou um boom de consumo.
No estouro da bolha, o consumo que apoiava a economia americana -e a do resto do mundo- teve de diminuir, com os índices de poupança indo de zero para 5%, 6%. As pessoas poupavam muito pouco porque esperavam o aumento da renda por meio da valorização do preço das casas. Isso não mais existe. Parte considerável dos americanos agora perde dinheiro com suas casas. Mesmo que os bancos estivessem totalmente recuperados -e não estão-, eles estariam poupando mais. O modelo de consumo americano foi destruído.
Isso tudo significa que em médio prazo a economia americana tem problemas fundamentais. Além disso, temos o total derretimento do setor financeiro pós-15 de setembro [quebra do Lehman Brothers], e nós tivemos um ajuste de estoques como resultado da consequente desaceleração da economia. O pior aspecto do congelamento do setor financeiro e do ajuste de estoques talvez tenha se encerrado. Mas isso significa que estamos de volta ao problema fundamental de fundo: o que sustentou a economia americana antes da crise era o consumo, por meio de uma bolha no mercado imobiliário que agora foi destruída.
FOLHA – A hipótese da autossuficiência dos mercados guiou, por décadas, a maioria dos modelos financeiros. Após esta crise, o que muda?
STIGLITZ – Creio que essa hipótese foi uma bolha que também se estourou com essa crise. Mesmo antes havia provas contundentes contra essa hipótese, mas era mais uma ideologia, usada para apoiar interesses específicos no setor financeiro. Por exemplo, em 1989, o mercado de ações sofreu queda de 25%. Não havia evento possível que pudesse corresponder ao desaparecimento de um quarto do capital acionário do mundo. E mesmo assim houve muita gente que continuou acreditando nela.
FOLHA – O sr. avalia que a crise vai ajudar a “fazer a globalização funcionar”, expressão que sugere em um de seus livros, ou o xadrez geopolítico deve apenas sofrer correções cosméticas, com um G20 pouco incisivo para fazer mudanças?
STIGLITZ – Essa pergunta ainda está solta no ar. No início da crise, esperava que houvesse reformas fundamentais nas estruturas regulatórias dos EUA e na maneira com a qual a globalização é gerenciada, o que levaria a uma economia mundial mais estável e à maior equidade, tanto interna como entre países. Agora estou mais cético. Principalmente porque assisti ao resgate financeiro nos EUA: na verdade, os problemas foram reforçados, com os grandes bancos ficando ainda maiores, com o fracasso em fazer algo para sanar os problemas de fundo mais importantes, com muitas das reformas sendo mais “cosméticas”.
FOLHA – Na reunião mais recente do G20, em abril, a avaliação foi de que “um grande passo” havia sido dado rumo à regulação financeira. O senhor mesmo afirmou isso à época. Quatro meses depois, o que foi revelado como mera retórica?
STIGLITZ – É um passo rumo à direção certa, mas claramente não o suficiente. O ponto crítico é que os bancos estão se tornando não só grandes demais para quebrar mas também grandes demais para serem financeiramente solucionáveis.
Há uma apreciação insuficiente até mesmo da natureza do problema, que é não apenas tamanho, mas interdependência.
E isso significa que firmas como AIG e Goldman Sachs podem fazer a economia americana de refém. Nós sabemos disso agora, mas não fizemos absolutamente nada, ou quase nada, para impedir que continuemos reféns no futuro.
FOLHA – Pode-se dizer então que, como democrata e apoiador de Obama ao menos desde 2007, o sr. está decepcionado com o governo?
STIGLITZ – Na maioria das áreas ele está bem, bem melhor do que a administração Bush. Por exemplo, fizeram um pacote de estímulo; a administração Bush não teve nenhum. Eles fizeram algo em relação às hipotecas; o governo Bush, quase nada. Mas o plano de estímulo não foi tão grande quando deveria ter sido e não é bem desenhado. Fizeram muitos cortes de impostos, o que é relativamente inútil. Relativamente poucas hipotecas foram refinanciadas. Os resgates aos bancos foram totalmente injustos e custaram, aos contribuintes americanos, centenas de trilhões de dólares. Obviamente, com esses exemplos, estou decepcionado. Mas também estou satisfeito porque houve, por exemplo, progresso significativo em relação ao Iraque.

Economista do MIT, defende o monitoramento do sistema financeiro.

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Autor: Daron Acemoglu

Há quatro anos, quando o turco-americano Daron Acemoglu recebeu a Medalha Clark, prestigiado prêmio concedido a economistas com menos de 40 anos, foi aberta a porta de entrada para o clube da elite acadêmica dos EUA. Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), ele é hoje o oitavo economista mais citado em artigos do mundo econômico, de acordo com a Research Papers in Economics, e tem sido frequentemente lembrado nas listas de apostas para o Prêmio Nobel. Faz todo o sentido: 65% dos agraciados com a medalha mais tarde também levaram o Nobel para casa. Nomes como Milton Friedman, Paul Samuelson e Paul Krugman são alguns exemplos.
Com a eclosão da crise financeira, a zona de influência deste professor de 41 anos ampliou-se ainda mais e Acemoglu transformou-se numa voz importante na defesa de mais regulamentação do mercado para mitigar desastres econômicos. Durante a entrevista de 30 minutos concedida ao Valor, ele repetiu 14 vezes a palavra regulação, afirmou que a turbulência desafia os limites do capitalismo e advertiu: é preciso ter cuidado com a economia política envolvida na monitoração das finanças. “Nos últimos 15 anos, a regulação financeira foi guiada e decidida pela indústria financeira, que se tornou economicamente muito grande nos Estados Unidos, politicamente muito poderosa em Washington, e esses lugares foram os principais determinantes da própria regulação”, criticou.
Filho único de um casal de classe média, Acemoglu cresceu numa Turquia tumultuada pela hiperinflação e pelo caos político, antes de mudar-se para o Reino Unido. A ponte entre esses dois mundos, de certa maneira, foi estabelecida em suas pesquisas, que mostram as relações entre tecnologia e desigualdade de renda em nações ricas e pobres. Sua conclusão é que as instituições políticas e sociais têm peso considerável para o desenvolvimento dos países. “Um sistema capitalista bem-sucedido requer base boa e sólida, em termos de instituições, e algum tipo de contrato social. Acho que o povo brasileiro tem certo grau de confiança em seu governo”, disse Acemoglu.
Leia, a seguir, trechos da entrevista:
Valor: A crise pode acabar sem gerar problemas que desafiem os limites do capitalismo?
Daron Acemoglu: Alguns desafios importantes se apresentam. Pensar a regulação é um deles. Também é preciso pensar o controle dos problemas da economia política nos países desenvolvidos, pensar o controle do setor financeiro e, mais do que isso, acho que a economia, enquanto ciência, está diante de um desafio importante. É hora de voltar ao quadro-negro e criar modelos macroeconômicos de curto prazo que tenham maior possibilidade de nos ajudar a entender como a economia chegou até esse ponto e como, de agora em diante, podemos usar a política econômica e outros instrumentos para direcionar a economia. Precisamos de um modelo macroeconômico melhor, principalmente para análise de curto prazo, definição de preços de ativos, desemprego, para entender o que acontece. Há muitos desafios.
Valor: Após os escândalos na Enron e em outras corporações, o sr. disse que sua fé nas grandes empresas estava abalada, mas de pé. Como está seu grau de fé depois do que ocorreu com o Lehman Brothers, o Bear Sterns, o Merrill Lynch?
Acemoglu: É preciso que as grandes companhias prestem contas ao público de alguma forma, principalmente se elas começam a perder dinheiro. É uma questão de regulação. Há dois problemas com as grandes corporações. Elas não são imunes aos problemas que as pequenas companhias enfrentam, mas não vão se monitorar. Precisam que seus acionistas as monitorem, que seu conselho de diretores as monitorem e, em certos casos, precisam que o governo faça a regulação. O segundo aspecto é como lidar com as empresas se elas falirem.
Valor: Nesse aspecto, há um argumento comum que é o de que algumas companhias são “grandes demais para falir”. O Bank of America é grande demais para falir?
Acemoglu: A economia dos EUA não tem estrutura para suportar a falência do Bank of America. O mesmo vale para a General Motors. É aí que entra a regulação. É preciso intervir antes que o problema comece. É necessário que haja um sistema de procedimentos de falência, venda de ativos, mudança administrativa, para que, quando uma determinada companhia enfrente problemas, o governo não tenha que ajudar, o dinheiro do contribuinte não seja gasto, mas que haja um processo de reestruturação. Um dos problemas enfrentados pela economia dos EUA depois dessa crise foi que não havia equivalente ao capítulo 11 [lei de falências dos EUA]. E isso é particularmente importante para as empresas financeiras, porque elas estão envolvidas em inúmeras relações com contrapartes, não se pode simplesmente fechá-las, baixar suas portas e ir para casa. É preciso que haja regulação. Antes que enfrentem problemas, as companhias precisam aderir a uma série de procedimentos acerca de como vão se comportar se tiverem problemas de liquidez ou insolvência.
Valor: O sr. acha que o movimento atual pela regulação do mercado está no caminho certo?
Acemoglu: É preciso entrar em detalhes e definir exatamente como deve ser essa regulação. A maioria das pessoas reconhece que algum tipo de regulação é necessário, mas há pouco consenso sobre que tipo seria, em parte porque elas ainda não se recuperaram do choque da crise financeira e não se sentaram para pensar.
Valor: Como a regulação deve ser pensada?
Acemoglu: Em primeiro lugar, grande parte da teoria da regulação ignora questões relativas a “tail risks” [cataclismo financeiro cuja chance de ocorrer é pequena], eventos de grande porte que não são tão raros quanto gostamos de acreditar. Em segundo lugar, precisamos nos empenhar em entender as implicações do risco sistêmico, principalmente a interação entre risco moral e risco sistêmico. Em terceiro lugar, e mais importante, acho que precisamos ter cuidado com a economia política envolvida na regulação financeira. Quer dizer, em sua essência, a regulação financeira nos últimos 15 anos foi guiada e decidida pela indústria financeira, que se tornou economicamente muito grande nos EUA, politicamente muito poderosa em Washington, e esses lugares foram os principais determinantes da própria regulação. Isso obviamente causou enormes problemas de economia política, e acho que esses problemas ainda persistem. O sistema de regulação precisa enfrentar de uma vez por todas esses problemas de economia política também.
Valor: Milton Friedman e Alan Greenspan estão fora de moda, mas os economistas da Universidade de Chicago dizem que estimular a economia para sair da recessão só vai gerar problemas maiores no futuro.
Acemoglu: Concordo que Greenspan está fora de moda. Acho que ele não estava muito bem informado sobre a economia e agiu com base em preconceitos ideológicos, não com base em análises econômicas. Não diria o mesmo de Friedman, que defendeu diversos princípios. A importância da liberdade de mercado e da permissão para o funcionamento dos mercados são alguns exemplos. O fato de eu questionar os mercados financeiros sem regulação não deve ser interpretado como se eu estivesse dizendo que questiono o poder do mercado como a melhor maneira de decidir o destino dos recursos. O que Friedman não previu, infelizmente – e isso não é surpresa, porque não era tão importante na época -, é que, quando se lida com mercados financeiros, principalmente com firmas muito grandes e oligárquicas, é preciso levar a regulação a sério e é preciso levar as instituições de apoio aos mercados financeiros muito a sério. Alan Greenspan está desacreditado. Milton Friedman, não.
Valor: Mas o sr. compartilha da preocupação de alguns economistas com os gastos governamentais, considerados por eles excessivos, para inibir a crise?
Acemoglu: Concordo com o governo Obama no sentido de que algo precisava ser feito, acima de tudo para evitar a falta de expectativas. Roosevelt disse: “A única coisa da qual devemos ter medo é do próprio medo”. Isso é o que se tentou evitar, e acho que o pacote de incentivos conseguiu isso até certo ponto, bem como outras políticas que Barack Obama adotou. Obama é um estadista maravilhoso, majestoso, impõe autoridade, transmite confiança, e esse é um elemento importante para que a economia dos Estados Unidos lide com a crise e, consequentemente, a economia do mundo está começando a se recuperar. Para mim, no entanto, isso não significa que o pacote de incentivos foi criado de forma correta. Os economistas de Chicago, com base em Milton Friedman e outros, têm muitas preocupações que são procedentes acerca dos pacotes. Em algum momento, eles vão se transformar em um problema econômico, e não só um problema político, porque as dívidas terão de ser pagas. Quando o governo concede mais empréstimos, isso implica mais impostos sobre capital, mais impostos trabalhistas, efeitos inflacionários e, mais importante, uma recuperação mais lenta.
Valor: Alguns economistas como Paul Krugman dizem que nos EUA e em países da Europa, onde as taxas de juros reais estão próximas de zero, a política macroeconômica à qual estávamos acostumados não funciona mais.
Acemoglu: As taxas de juro estão em zero porque as políticas monetárias estão sendo usadas de forma agressiva. O Fed usa uma combinação de política monetária e política fiscal. Em linhas gerais, o Fed de Ben Bernanke adota políticas mais agressivas que qualquer outro banco central que eu conheça, porque fornece garantias reais e seguro a empresas financeiras, portanto sai do âmbito da política monetária pura e entra no âmbito da política fiscal. Uma interpretação possível seria, “a política monetária não está dando certo, por isso eles também estão usando política fiscal”, mas acho que o que eles estão tentando fazer é adotar uma postura agressiva com relação aos problemas que a economia enfrenta. Por enquanto, apesar da gravidade da recessão inicial, a economia não vai tão mal. Não atribuo isso ao Fed. Acho que a economia dos Estados Unidos é fundamentalmente forte. A força de trabalho tem um alto grau de instrução, a economia é muito dinâmica e empreendedora, há muitas oportunidades de inovação e oportunidades geradas por novas tecnologias.
Valor: Nas últimas décadas, o mundo teve grande prosperidade em virtude da velocidade dessas inovações, independentemente de bolhas ou de problemas financeiros. As inovações serão o segredo para a retomada do crescimento econômico após esta crise?
Acemoglu: Não tenho dúvidas. Foi assim que a economia mundial e a dos EUA conseguiram crescer nos últimos 200 anos. E foi assim que essas economias se expandiram nos últimos 25 anos. As melhorias em tecnologia da informação, hardware, software, biotecnologia, tecnologia farmacêutica e tecnologia em saúde tiveram papel determinante. Também houve avanços grandes no setor de serviços. Ocorreram fenômenos como o do Wal-Mart, que desenvolveu um sistema muito melhor para controle de estoques. Mas muitas dessas inovações ainda não estão amplamente difundidas na economia mundial. À medida que elas se espalharem, a produtividade aumentará. Além disso, há muitas plataformas novas. Um exemplo é o da fonte alternativa de energia, que é uma plataforma incrível na qual empresas ligadas à tecnologia podem investir. É algo que vai exigir muito capital, mas trata-se de um conjunto de inovações que será utilizado em larga escala. Há muitas possibilidades de inovação também em biotecnologia. Portanto, há possibilidades com as quais a economia dos Estados Unidos pode beneficiar-se. Há muitas oportunidades de crescimento rápido.
Valor: Nesse contexto, o conceito de destruição criativa de Joseph Schumpeter (1883-1950) parece bem atual. Teremos de enfrentar um processo de destruição criativa para poder reconstruir uma nova economia?
Acemoglu: A destruição criativa é algo que vemos ocorrer o tempo todo. Vemos a destruição criativa no funcionamento cotidiano da economia, mas não prestamos atenção. Quando o restaurante da esquina fecha, uma floricultura é aberta no lugar dele e, dois meses depois, outro restaurante se estabelece em outro lugar. Isso é destruição criativa. Quando as indústrias protegidas pela substituição de importações no Brasil começaram a perder força, e o Brasil começou a investir em novas indústrias, foi um processo de destruição criativa. O mesmo ocorre nos EUA o tempo todo. O problema é que a destruição criativa provoca problemas políticos. Aqueles que são substituídos pelas forças de mercado fazem questão de pedir ajuda aos governos para prevenir que aquilo aconteça.
Valor: Como na indústria automobilística.
Acemoglu: Exatamente. Como na indústria automobilística e, muito mais importante, na indústria financeira. Veja o que aconteceu: a Chrysler passou por um processo de falência e saiu dele como uma empresa muito mais forte.
Valor: O sr. é contra o instrumento de socorro do governo?
Acemoglu: Não. Em alguns casos, de tempos em tempos, é necessário. No entanto, no caso das montadoras, a questão principal é que elas precisam mudar as práticas trabalhistas, fazer uma transição para novos modelos. A Chrysler está muito mais forte agora, mas a General Motors, não. O mesmo vale para a indústria financeira. Em algum momento, as pessoas que foram responsáveis por todos os desastres financeiros nos dois últimos anos deveriam perder o emprego, algumas dessas empresas ir à falência, e novas companhias deveriam tomar seu lugar. A liquidação no varejo dos grandes bancos não é desejável. Seria desastroso para a economia dos Estados Unidos se o Bank of America e o Citibank falissem. O que se quer é algum tipo de “downsizing” desses bancos e o desenvolvimento de novos modelos de negócios. Infelizmente, a indústria financeira tem poder político demais e recebe apoio governamental demais para que isso ocorra. Ou seja, a destruição criativa está sendo bloqueada por forças políticas.
Valor: A reputação internacional do Brasil está melhor hoje. Qual é a sua visão do país?
Acemoglu: Ao que parece, a economia brasileira está muito mais saudável que muitas outras. Certamente, a economia brasileira está muito mais saudável do que estava há 15 anos. Um sistema capitalista bem-sucedido requer base boa e sólida, em termos de instituições, e algum tipo de contrato social. Acho que o povo brasileiro tem certo grau de confiança no governo. O governo não é considerado populista e não é tido como representante de uma pequena elite. Isso facilita muito a resolução de problemas relativos à política econômica. O mesmo vale para a Índia. A Índia nem sempre é bem-sucedida do ponto de vista econômico, mas é bem-sucedida do ponto de visto político. Ela se tornou um país democrático, e as eleições recentes mostraram a força da democracia na Índia.

Martin Carnoy, Economista e professor da Universidade Stanford, especialista em educação.

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“POR QUE alunos cubanos vão tão melhor na escola do que brasileiros e chilenos, apesar da baixa renda per capita em Cuba?” A pergunta norteou estudo do economista Martin Carnoy, professor da Universidade Stanford, que filmou e mensurou diferenças entre atividades escolares nos três países. No Brasil, o professor encontrou despreparo para ensinar e atividades feitas pelos alunos sem controle. “Quase não há supervisão do que ocorre em classe no Brasil.”
Para ele, o problema também atinge a rede particular. “Pais de escolas de elite pensam que estão dando ótima instrução aos filhos, mas fariam melhor se os colocassem em uma escola pública de classe média do Canadá.” Carnoy sugere filmar o desempenho dos professores. “Não basta saber a matéria. É preciso saber como ensiná-la.” Ele esteve no Brasil na semana passada para lançar o livro “A Vantagem Acadêmica de Cuba”, patrocinado pela Fundação Lemann.

FOLHA – O que mais chamou a sua atenção nas aulas no Brasil?
MARTIN CARNOY – Professoras contratadas por indicação do secretário de Educação do município, que dirigem a escola e vão lá de vez em quando; 60% das crianças repetem o ano, e professoras pensam que isso é natural porque acham que as crianças simplesmente não conseguem aprender. Fiquei impressionado, o livro [didático usado na sala de aula] era difícil de ler. Precisaria ter alguém muito bom para ensinar aquelas crianças com ele. Ficaria surpreso se qualquer criança conseguisse passar [de ano]. Vi escolas na Bahia, em Mato Grosso do Sul, em São Paulo, no Rio… [entre outros].

FOLHA – Qual a metodologia do estudo?
CARNOY – Como economista, usei dados macro para explicar as diferenças entre os países nos testes de matemática e linguagem. Fizemos análises com visitas a escolas e filmamos classes de matemática e analisamos as diferenças entre as atividades em classe. Há uma grande diferença, pais cubanos têm renda baixa, mas são altamente educados, em comparação com os do Brasil. O estudo foi finalizado em 2003 e depois comparamos Costa Rica e Panamá. Na Costa Rica, há coisas engenhosas, aulas com duas horas, em que se pode realmente ensinar algo. Supervisionar a resolução de problemas de matemática e, principalmente, discutir resultados e erros. Os alunos cubanos têm aulas acadêmicas das 8h às 12h30. Depois, almoço. Voltam às 14h e ficam até as 16h30, quando têm uma sessão de TV por 40 minutos. A seguir, artes e esportes, mas com o mesmo professor.

FOLHA – Ter o mesmo professor durante quatro anos (como os cubanos) é uma vantagem?
CARNOY – Quatro anos, pelo menos. Mas os alunos não mudam de um ano para outro. No Brasil, se alunos e professores mudam muito de escola, como fazer isso? Se a ideia é tão boa, se funciona, deveríamos fazer algo para que pelo menos professores não mudassem tanto.

FOLHA – Qual a sua avaliação sobre a proposta da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo que vincula o aumento de salário à permanência do professor na mesma escola e à aprovação em testes?
CARNOY – Sugeri ao secretário Paulo Renato que acrescentasse um teste: filmar o professor, como no Chile. Professores de outra escola avaliam os videoteipes. Professores podem ser bons nos testes, mas péssimos para ensinar. Se você tiver um professor experiente que foi bem ensinado a ensinar e teve um bom desempenho com os alunos, a diferença é visível em relação a uma pessoa sem experiência, como eu. Profissionais que viram as fitas disseram que há grande diferença entre o professor cubano e o brasileiro.

FOLHA – A Secretaria da Educação pretende oferecer curso de treinamento de professores de quatro meses. Em Cuba, dura 18 meses, para o nível médio. O que é importante num treinamento?
CARNOY – [Em Cuba] São oito meses para a escola fundamental. Mas são para os professores que não foram à faculdade. Você deve se lembrar que houve escassez de professores, com o incremento do turismo, que atrai pelo pagamento em dólares. Tiveram de produzir muitos professores, muito rapidamente. Então, pegaram os melhores estudantes do ensino médio e lhes ofereceram cinco anos de universidade nos finais de semana. O que é importante nesses cursos de treinamento é ensinar como dar o currículo, como ensinar matemática. O Estado deve estabelecer padrões claros, como na Califórnia. Isso é o que tem de ser ensinado em matemática no terceiro ano. No Chile, há um currículo nacional, mas não ensinam aos estudantes de pedagogia como ensinar o currículo.

FOLHA – O sr. dá muita importância ao diretor…
CARNOY – E também à supervisora, que em muitas escolas no Brasil não fazem nada, não entram em sala. Em Cuba, diretores e vice-diretores ou supervisoras assistem às aulas. Nos primeiros três anos de serviços de um professor, eles entram muito, ao menos duas vezes por semana. São tutores que asseguraram que a instrução siga o método e o nível requeridos pelos padrões estabelecidos.

FOLHA – Os bônus a professores, como ocorre no Estado de São Paulo, são um bom caminho?
CARNOY – Não há boas evidências de que esse sistema de estímulo funciona. O modelo usado em São Paulo, em que todos os professores ganham mais dinheiro se a escola atingir a meta, pode funcionar. Tentaram isso na Carolina do Sul, no final dos anos 80. Foi um grande sucesso por poucos anos e, depois, deixou de sê-lo porque não houve mais melhora. Eles só atingiram um certo limite e não conseguiram mais progredir. Há o efeito inicial do esforço e depois, quando as pessoas têm que saber melhor como aprimorar o desempenho dos alunos, nada acontece. E não existe mais na Carolina do Sul. O que tem sido feito, em geral, nos EUA não é bônus, mas punição. Se a escola fracassa em atingir a sua meta em três anos, como na Flórida, os estudantes podem receber vouchers e frequentar escolas particulares, em vez de públicas. A forma como estão fazendo em São Paulo não é a melhor. Eles medem neste ano como a segunda série aprende e, no próximo, quanto a segunda série aprende. Mas não os mesmos alunos. Escolas pequenas têm mais chance de receber bônus do que grandes. Se a escola cai, não há punição. Só não recebe bônus. Não estou defendendo punição, só digo que eles [bônus] são mal mensurados. Você pode fazer como em São Paulo, mas não dar bônus todo ano, e sim a cada dois anos. E aí poderá ver o que se ganhou com os alunos que se mantiveram na escola e ter as médias, mas com as mesmas crianças através das séries. O problema da falta de professores é mais grave porque é sobretudo um absenteísmo autorizado, não é ilegal. Em Cuba, professores e alunos faltam pouco. É tudo controlado.

FOLHA – Melhorar o ensino público provocaria uma avanço na educação como um todo, inclusive nas escolas particulares?
CARNOY – Pais de escolas de elite pensam que estão dando ótima instrução aos filhos, mas fariam melhor se os colocassem em uma escola pública de classe média do Canadá. Mesmo os melhores docentes brasileiros são menos treinados do que os de Taiwan. Os melhores professores no Brasil têm em média desempenho abaixo da média do professorado de países desenvolvidos. Investir e melhorar a escola pública, que é a base de comparação dos pais, elevaria o resultado das melhores escolas particulares também. Professores são bons em pedagogia, mas não no conhecimento a ser ensinado. Não treinam muito matemática e não sabem como ensiná-la.

FOLHA – O que do modelo cubano não pode ser transposto considerando que Cuba vive sob ditadura?
CARNOY – Há, de fato, uma falta de criatividade [no ensino]. Não se pode questionar, ser contra a Revolução. Mas as crianças sabem que estão aprendendo o esperado. São bons em matemática, sabem ler bem e aprendem muita ciência, mesmo nas escolas rurais ou de bairros urbanos de baixa renda. O Brasil tem a capacidade de enfrentar esses problemas [ter crianças bem nutridas, com bom atendimento médico]. Por que em uma sociedade com uma renda per capita que não é tão baixa não se faz isso? Acho que tem de ser construído um sistema de supervisão, com pessoas capazes de ensinar e treinar novos professores a ensinar. Os professores no Brasil estudam muito linhas de pedagogia e menos como ensinar. Podem esquecer tudo aquilo de Paulo Freire, um amigo. Devem ler sua obra como exercício intelectual, mas queremos que professores saibam ensinar.

FOLHA – Não é possível conciliar na América Latina bom ensino com autonomia, democracia?
CARNOY – A melhor escola é a que tem professores com democracia. Mas temos de ter um acordo de quais são os nossos objetivos. Tony Alvarado é um supervisor em Manhatan que trocou metade dos professores e dos diretores para melhorar a qualidade das escolas. Ele disse aos professores: “Este é o programa. Vão implementá-lo comigo ou não? Têm uma semana para pensar. Se não quiserem, são livres para sair”.

FOLHA – No Brasil seria mais difícil…
CARNOY – Seria muito mais fácil! Um quarto do professorado muda de escola todo ano! Em Nova York, não se demitiu. Alvarado mandou-os para outros bairros. Precisa, no início, de um certo autoritarismo. Porque alguém tem de dizer o que fazer no início. E depois, sim, há uma democracia. Os diretores devem se preocupar com os direitos das crianças. Em Cuba, é o Estado. Aqui, os sindicatos de professores preocupam-se com os direitos dos associados – e estão em certos em fazê-lo. Mas e as pobres crianças que não têm sindicatos para defender seus direitos à educação?

Tania Bacelar de Araújo – Economista.

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Uma análise coerente e bastante original da Economia Brasileira e, principalmente suas peciliaridades regionais, seus desequilíbrios históricos e seus principais desafios no mundo contemporâneo. Uma viagem profunda a sociedade brasileira capitaneada por uma economista de grande projeção, leitura fundamental.

Desafios – Qual é a principal dificuldade do desenvolvimento brasileiro na atualidade?
Tania – No curto prazo, a preocupação com o endividamento do governo, a crise fiscal, se arrastando desde a década de 1980, então já temos duas décadas, quase três. O problema que eu vejo nisso para o desenvolvimento é que no caso do Brasil o governo ainda é um agente muito importante tanto para investimentos em infra-estrutura como em investimentos na educação e para investimentos na proteção social. E um governo endividado não tem dinheiro para investir. Hoje, quando se analisa as contas públicas, a principal despesa do governo é a conta de juros. Então, o dinheiro que ele teria para devolver à sociedade ele devolve a seus credores. Isso, no curto prazo, tem sido um entrave importante para um melhor desenvolvimento do país e não acredito em solução mágica para isso. A solução é gradual mesmo.

Desafios – A política econômica caminha a favor ou contra uma solução para esse problema?
Tania – A taxa de juros muito alta termina sendo um elemento impeditivo. Então, se teria de ter uma situação em que a taxa de juros pudesse ser mais baixa, a maior taxa de juros real do mundo é a nossa. E voltou a crescer. Aí, a inflação desacelera, mas o juro já subiu. Esta, no curto prazo, é a principal dificuldade, porque limita toda a capacidade de crescimento. Um país que ainda tem gargalos sérios de infra-estrutura em segmentos e projetos que o setor privado não vai suprir, que tem um investimento estratégico a fazer em educação, que também o setor privado sozinho não responde, e que ainda precisa de políticas sociais de peso. Mas o cenário hoje é melhor do que o que já tivemos. Com todo o problema, no começo do século XXI, o tamanho da dívida era 55% do Produto Interno Bruto (PIB) e hoje são 40%. Mas ainda é muito elevado. E, como a taxa de juros é alta, o pagamento de juros é o maior item de despesa do governo.

Desafios – E a médio prazo?
Tania – Para mim, o problema central a médio prazo é o da desigualdade – a desigualdade social e a desigualdade regional. Nós herdamos essas duas desigualdades e em todo o diagnóstico que se faz isso aparece com muita força. Eu faço parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) da Presidência da República. Ali, é um ambiente muito heterogêneo, são mais de 80 pessoas com perfil muito diferenciado, e foi feita uma pesquisa conosco. Foi quase unânime, mais de 90% das pessoas, quando perguntadas qual é o principal desafio do país, responderam: é reduzir a desigualdade, tanto social quanto regional, em todas as escalas.

Desafios – Quais progressos estamos fazendo quanto à desigualdade de renda?
Tania – Eu diria que a renda do trabalho melhorou. A renda total, não, por conta dos juros. A taxa de juros não afeta só o governo. Os rentistas, os aplicadores, quem é superavitário no Brasil e empresta ao governo, ganha muito bem. É muito melhor remunerado do que se aplicasse em qualquer país do mundo. Então, isso transfere renda da sociedade para um pequeno pedaço da sociedade que são os aplicadores, as empresas ou pessoas físicas que são superavitários. A maioria da nossa população não tem a cultura de poupar, ao contrário, a nossa cultura é de consumir, se endividar, e portanto pagar mais caro. Então, na renda total, não se tem uma mudança significativa, mas na renda do trabalho há uma mudança importante neste começo de século XXI, que eu considero positiva, tirando gente da classe E para botar na classe C. É uma pirâmide com uma base muito alargada, com muita gente nas classes C, D e E, e o que se fez foi tirar gente das camadas de menor renda para uma camada intermediária. Todas as pesquisas mostram isso.

Desafios – A redução da inflação foi fundamental para que isso ocorresse?
Tania – Eu acho que foi. A inflação alta corrói o poder de compra de quem ganha pouco e não tem mecanismos de defesa. Então, inegavelmente, uma inflação baixa é favorável exatamente à base da pirâmide. E, junto, houve três outros fatores. Primeiro, o Bolsa Família. Não é desprezível pelo volume de recursos: passa do patamar de R$ 2 bilhões para R$ 10 bilhões anuais, o que no Brasil é muito dinheiro. E afeta mais o Norte e o Nordeste, e nem se sente em São Paulo. E nos pequenos municípios se sente com mais força ainda. O tamanho da transferência foi significativo em locais onde a base produtiva é pequena e portanto o volume de renda gerado localmente é muito pequeno. O que era um programa assistencial acabou se transformando em estímulo ao dinamismo daquela economia local muito pequena. A bodega da esquina, a feira, a padaria, a farmácia, tudo envolve um fluxo de renda que não era gerado ali, mas que é transferido de outros lugares. O Nordeste tem 28% da população brasileira e 50% da população pobre do Brasil. Então, dos R$ 10 bilhões que o governo paga, R$ 5 bilhões vão para lá. Por isso, nas pequenas cidades do Nordeste se sente um impacto importante no estímulo ao consumo. Gente que não consumia passou a consumir. Do ponto de vista macro, não foi só o pequeno negócio que lucrou. Porque, como é muita gente, também as grandes empresas se beneficiam: os supermercados e empresas de produção de alimentos e de confecções. Por exemplo, a Bauducco fez uma fábrica na Bahia e está fazendo outra. A Nestlé está investindo lá. A Perdigão e a Sadia foram agora para Pernambuco. Vão produzir iogurte e embutidos, porque esse padrão de renda consome muito em embutidos. Então, isso atraiu também grandes corporações para fazer investimentos para atender a essa demanda. E tem um efeito indireto sobre o emprego.

Desafios – Qual é o segundo fator?
Tania – É o salário mínimo. Desde o final da década passada ele vem tendo variação real e acima da correção média dos salários. Também todos os estudos mostram isso. No ano passado, a inflação média, o melhor índice, foi 5,2%, digamos, e o salário mínimo este ano foi corrigido em 9,2%. Então, não é uma diferençazinha, é uma diferença significativa. De novo, bate lá na base da pirâmide, e bate mais nas regiões mais pobres. Tem um impacto social e um impacto regional. De novo, para dar o exemplo do Nordeste, que tem metade dos trabalhadores brasileiros que ganham salário mínimo, o impacto é maior no Nordeste do que em São Paulo.

Desafios – E por fim, qual é o terceiro fator?
Tania – O terceiro é o crédito. Sem dúvida o crédito estimula o consumo. E o crédito não só aumentou em volume como ele trabalhou muito com o que é da cultura brasileira, que é o tempo. O brasileiro não faz conta da taxa de juro, mas faz conta do tempo do empréstimo, e, portanto, da parcela mensal que ele vai pagar. Ele não sabe quanto está pagando de juro. Ele faz a conta: cabe no meu salário, na minha renda mensal? Cabe. Então, compra. Alongou o prazo. Já se vende hoje carros, motos, eletrodomésticos a prazos muito grandes.

Desafios – Esses prazos são exagerados?
Tania – Eu acho que sim. No caso do automóvel, estamos na contramão das tendências mundiais, financiando automóvel a 70 meses, quando precisamos investir é em transporte público coletivo de qualidade. Esse padrão de cada pessoa se deslocar de automóvel é um padrão do século XX, não do século XXI. A crise energética sinaliza noutra direção. E estamos no modelo antigo. O Brasil do século XX cresceu concentrando renda. Essa herança da desigualdade tem a ver com esse padrão de crescimento que estruturamos no século XX, que, do ponto de vista econômico, foi muito exitoso. O Brasil é um exemplo no século XX, na literatura, de um país que deu um salto quantitativo e qualitativo na sua economia fantástico. Inegavelmente, o Brasil montou uma estrutura industrial que produz desde os bens mais simples até aviões e armamentos, bens básicos, bens sofisticados. Estruturou um parque produtivo, em seis décadas, que é exemplo no mundo, de sucesso, de capacidade de realização. Só que foi feito concentrando renda, olhando para a camada de cima da pirâmide. A novidade é que agora estamos descobrindo um dos potenciais do Brasil, que é o consumo insatisfeito da grande maioria da população. É um mercado muito grande. E este ciclo está mostrando isso, como já vimos isso em outros momentos em que rompemos com a inflação – o Plano Cruzado e o Plano Real. A sociedade sentiu isso com muita clareza. Cai a inflação, aumenta o poder de compra e o país explode, porque há um consumo insatisfeito numa massa muito grande.

Desafios – É possível o consumo alcançar já as fatias da população que sempre ficaram à margem?
Tania – A tragédia brasileira, sempre se diz, é que se um terço desses que ficaram à margem fossem colocados dentro do consumo já seríamos um grande mercado, quase a população da França. Esta era a nossa tragédia. Dava para desenvolver a economia com um terço da população dentro e dois terços fora. O que fica para resolver é o problema social. E gargalo é educação. É aí onde como sociedade – não estou falando de governo, que também tem papel importante -, do mesmo jeito em que ela não poupa, ela não valoriza o investimento em educação. Conheço muita gente de classe média que, na hora do aperto, em vez de cortar a cervejinha, corta a aula de inglês do filho. Isso significa que é uma decisão da família. Imaginem os filhos de pais que não estudaram e não vêem no conhecimento uma possibilidade de uma inserção melhor. Então, tem um lado que é da sociedade, é cultural.

Desafios – E também da educação?
Tania – Aí o governo tem culpa. A oferta do ensino era muito restrita. Agora, ampliamos a oferta, mas a qualidade é trágica. Eu não acredito que seja uma questão de dinheiro. Vejo países como a Coréia, que tem uma economia muito menor do que a do Brasil, e pôs todos os jovens na escola de manhã e de tarde. É isso que temos de fazer no Brasil para dar uma educação que não seja só ensinar a ler e a escrever. É preciso dar cultura, dar esporte, é preciso ter uma visão completa da formação de uma pessoa. Todos os países desenvolvidos têm suas crianças de manhã e de tarde na escola. É requisito básico. Nem se discute. E eu não vejo ninguém sequer discutindo isso, passamos pelas campanhas eleitorais e não se vê ninguém cobrando. Só vozes isoladas, que não repercutem. Então, a minha hipótese é a de que não é só o governo, é a sociedade que não valoriza isso. E, quando se diz que devemos descentralizar para os municípios… espera aí, nem todo município é município com capacidade de dar educação nesse padrão. Ao contrário, acho que aí a responsabilidade é do governo central. Nós não estamos na Alepúblico manha, onde dois terços da receita pública são geridos na base. Estamos no Brasil, e aqui a maior parte da receita pública está na mão do governo federal. Todos os municípios do Brasil, inclusive os ricos, somados, depois que recebem todas as distribuições a que têm direito, ficam com 20% da receita pública. Então, um investimento estratégico desse não pode ser descentralizado. A execução poderia ser até descentralizada, mas o financiamento, não. E aí eu acho que caminhamos muito pouco. Mas a preocupação do Ministério da Educação (MEC) hoje com o ensino médio é correta. O Brasil cresceu um pouquinho e já está faltando mão-de-obra intermediária. Nosso ensino médio é um gargalo.

O Brasil estruturou em seis décadas um parque
produtivo que é exemplo de sucesso, só que foi feito
olhando para a camada de cima da pirâmide social

Desafios – O programa de escolas profissionais está no caminho correto?
Tania – Essa ênfase que o MEC está dando hoje a escolas profissionais é o que o Brasil precisa. Eu fui a Petrolina (PE) para uma palestra em uma escola de 2º grau do Senai, e é uma escola com equipamento e salas de aula decentes, biblioteca, laboratório, internet para os alunos. É desse ensino médio que eu estou falando. Eu perguntei ao diretor o quanto investiram. Foram R$ 15 milhões. Isso não é dinheiro para o Brasil, para um país como o nosso, que tem uma carga tributária de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que já é um dos PIBs maiores do mundo. Eu não vejo que o problema seja dinheiro. O problema é que a expansão das escolas técnicas é amplamente insuficiente. E tem que ser ensino de manhã e de tarde, estudar na sala de aula de manhã e ir para o laboratório de tarde, fazer esporte e para isso tem que ter uma quadra decente. Aí, vai diminuir a violência. E eu defendo que o ensino profissional tem que dar o ensino médio junto. Não é só dizer que vamos preparar para o mercado, mas para o mercado e para, se ele quiser, a universidade, que tenha o diploma de ensino médio e faça o vestibular. Esse é o grande investimento estratégico que o Brasil não fez, e eu infelizmente acho que a discussão está muito aquém da relevância disso, em um mundo onde, sem conhecimento, vai-se fazer o quê?

Desafios – Em compensação, nosso povo é bastante criativo…
Tania – Criativo e com capacidade de iniciativa. Mas a capacidade de iniciativa, sem conhecimento, se reduz. Imagine nossa capacidade de iniciativa com conhecimento. Já fazemos milagres sem conhecimento. Eu acho que é um atributo importante a nossa capacidade crítica. No exterior, se sente que o pessoal tem uma formação mais bitolada. Então, para criar é mais difícil, porque criar significa contestar o que está estabelecido para poder propor outra coisa. Esse lado o Brasil tem, é um atributo positivo da nossa sociedade. Aparentemente, levamos tudo na brincadeira, mas não é brincadeira, é espírito crítico, e disso nasce coisa nova. É desmontando que também se constrói. Mas esse investimento não é questão de dinheiro, mas também não é solução de curto prazo. Vai dar frutos em 15 anos, mas dá. No Nordeste, não havia universidades há 40 anos, e hoje há. Esse prazo, em termos de desenvolvimento, não é muito tempo. Então, não se faz em cinco anos, mas se faz em 40.

A inserção soberana é muito difícil em um país
como o Brasil, mas a China está se reinserindo
agora de uma forma soberana

Desafios – Os desequilíbrios regionais estão agora se reduzindo?
Tania – Essa é outra herança que tivemos, mas acho que aí estamos melhorando. Ao decidir que queríamos ser um país industrial, em 60 anos o país montou uma base produtiva e industrial complexa e quase completa, mas concentrou muito principalmente no Sudeste. Chegamos a colocar 80% da produção industrial no Sudeste e 44% na Grande São Paulo. Um padrão de concentração fantástico. Mas os estudos de que dispomos mostram que o auge da concentração foi nos anos 1970 e de lá para cá há uma modesta desconcentração. Pelo menos a concentração não continuou e isso já é um fato importante. Hoje, há uma tendência a desconcentrar, primeiro da Grande São Paulo para o interior do Estado, as cidades médias mais próximas, o Sul de Minas, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná. Isso tudo se beneficia de uma espécie de transbordamento. São locais próximos, mas não estão no foco das deseconomias. São Paulo terminou concentrando tanto que às vezes as deseconomias externas passaram a ser maiores do que as economias. Há também, por exemplo, Manaus, é claro que com muito incentivo. As informações que nós dispomos hoje sinalizam que, do ponto de vista dessa macrotendência à concentração, a hipótese é de que escapamos dela. A macrotendência não se acentua, mas reflui, por várias razões. O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) foi desconcentrador, a crise bateu mais forte em São Paulo nos anos 1980, e dos anos 1990 para cá temos a abertura comercial, a redefinição do crescimento e nesta fase mais recente o crescimento do consumo da base da pirâmide social está puxando as atividades desconcentradoras. Então, em cada momento tem um fator, mas o conjunto deles está dando uma desconcentração. A minha leitura, nesse ponto, é positiva.

Desafios – Sua tese sobre a diversidade…
Tania – Eu gostava de dizer que a principal potencial do Brasil é a diversidade regional brasileira. É um dos nossos patrimônios, do mesmo jeito que a criatividade do povo brasileiro é um dos nossos patrimônios. Continuo acreditando nisso. Dificilmente se encontra outro país no mundo com tanto potencial como o nosso. A natureza diferenciada, seis biomas dentro do mesmo país, bases produtivas que fomos estruturando historicamente, cada uma diferenciada da outra, e a sociedade brasileira é diferenciada. Nós nos consideramos um povo miscigenado, e somos, mas a miscigenação não é a mesma em cada parte. A influência indígena é muito mais forte no Norte, a influência africana é muito forte no Nordeste, a influência européia é muito forte no Sudeste, a influência japonesa é muito forte em São Paulo. Eu não encontro em outro lugar do Brasil onde a influência japonesa tenha essa força. O mix foi sendo diferente, o que faz a sociedade ter traços de união importantes – uma visão de mundo que se unifica, e a língua também, com a ajuda da televisão e dos meios de comunicação -, e ter diferenciações também importantes. As diferenciações são de uma riqueza muito grande, que nos permite tirar partido disso. Eu acho que no século XX o país apostou na concentração, e a concentração empanou a diversidade. Nós, economistas, gostamos dos grandes números, mas é preciso ver que as médias no Brasil são muito influenciadas por São Paulo e pelo Sudeste, porque a concentração foi tão forte que a média parecia explicar o Brasil, mas estava explicando apenas São Paulo ou o Sudeste. Só que os 20% ou 30% que não estavam explicados ali são de uma riqueza e de uma diferenciação maravilhosas. Hoje, começamos a descobrir isso. Não digo ainda que esteja forte, não tem a força que teve a concentração no século XX. Mas eu acho que hoje essa modesta desconcentração está dando esse resultado. A sociedade brasileira olha para essa multiplicidade de tecidos sociais e econômicos com um olhar de que ali também tem potencial. Todo lugar tem um potencial, como toda pessoa tem um potencial. Ninguém é desprovido de tudo. Portanto, também não tem uma região desprovida de tudo. Mesmo a região que não tem água, tem sol. Aí, é só levar água – estou falando do semi-árido, que não tem água, mas tem sol, e tem fruticultura de padrão mundial, porque o sol é um elemento importante. Então, desse ponto de vista eu sou mais otimista do que no lado da educação. Acho que devagarzinho estamos percebendo que a diversidade brasileira é um dos nossos potenciais.

Desafios – Isto vai melhorar a inserção do Brasil no atual contexto internacional?
Tania – Eu acho que a inserção soberana é muito difícil em um país como o Brasil. Primeiro, há o elemento cultural. A sociedade brasileira é herdeira da colonização e um pedaço da elite não tem um projeto de Brasil-nação, mas só um projeto de sua própria inserção no mundo. O Brasil é um país que não dá para se realizar só dentro dele. Engatou no resto do mundo e não vai desengatar. Vamos ter que conviver com a globalização. O Brasil interessa aos agentes globais pelo nosso potencial produtivo e de consumo. É um país que conta na mesa do jogo mundial, não é um país qualquer. Mas a história mostra países onde a elite tem outra visão, a visão do seu país primeiro, antes do resto. Quando falo que um pedaço da elite brasileira é colonizado, falo dos empresários, mas falo da academia também, para falar de mim mesmo, da área onde atuo. É uma inteligência que vai para o exterior e volta e não consegue adequar aquelas teorias que aprendeu lá fora à realidade do seu país. Ou não quer fazer esse esforço. O importante para essas pessoas é ter um paper aprovado em um seminário internacional, e os problemas que temos aqui no país não lhes afetam. Então, inserção soberana de um país que tem uma elite com essa característica não é tarefa simples. Segundo, é que grande parte da sociedade brasileira já nem discute isso. Ela está tão à margem – e esta é outra característica do Brasil – que nem discute.

Desafios – Com a China é diferente?
Tania – A China já foi uma grande potência no passado, depois virou país ocupado, todo mundo mandava na China, e veio a revolução socialista e isolou a China do resto do mundo. Eles estão se reinserindo agora, na minha leitura, de uma forma soberana. Eu acho que a China é um exemplo de país médio como o Brasil, que tem potencial como o Brasil e que consegue uma inserção soberana. A China faz o que eles acham que é importante para a China. Tem um projeto de país. Pode-se até discordar do projeto deles, mas fica evidente que têm um. O Brasil, não. O Brasil tem uma cultura de submissão, eu acho. E essa cultura da elite passa para a sociedade brasileira, que valoriza mais o que não é dela do que o que é dela. Às vezes, vemos pessoas comprando uma porcaria só porque é produto importado. Lá fora se vê uma leitura de que este é um país que tem potencial para uma inserção soberana. E quando se vem para dentro, se vê que a sociedade brasileira não tem essa consciência, não tem a consciência do nosso potencial. Ao contrário, tem uma leitura mais submissa.

O Economista Nouriel Roubini – Professor da New York University.

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Desde que a crise financeira mundial se aprofundou, o economista Nouriel Roubini virou um oráculo. Professor da New York University, Roubini vinha há tempos alertando para os efeitos desvastadores da bolha imobiliária que se formava nos Estados Unidos.

Não faz muitos meses, suas previsões pessimistas eram vistas com desdém. O prestigiado The New York Times, em perfil recente, disse que Roubini era visto como Doctor Doom (ou doutor Catástrofe). O derretimento dos mercados financeiros globais provam que o analista não só tinha razão como, de certa maneira, era até otimista.

Os leitores de CartaCapital sabem bem quem é Roubini. O economista ingressou no time de colaboradores fixos da revista em janeiro deste ano (leia abaixo todas as colunas), após ter concedido inúmeras entrevistas em reportagens que informaram com precisão os potenciais efeitos da crise.

Relembre abaixo a primeira entrevista de Nouriel Roubini concedida a CartaCapital, em fevereiro de 2008, que mostra o quão certeiras eram as avaliações do economista sobre a dimensão da catástrofe.

CartaCapital: O senhor considera real a chance de o mundo viver um processo de estagflação em 2008?
Nouriel Roubini: A recessão nos Estados Unidos será inevitável, o que causará uma significativa desaceleração econômica global. O fenômeno da estagflação, no entanto, implica dois acontecimentos simultâneos. O crescimento tem de ser negativo e a inflação, subir para dois dígitos, por exemplo. Muitos economistas hoje estão preocupados com o aumento dos preços do petróleo e das commodities, principalmente agrícolas. Considero uma visão equivocada, porque só seria preocupante se houvesse um choque negativo do lado da oferta. Quando se pensa em petróleo, tais choques sempre foram provocados por eventos geopolíticos, como entre 1973 e 1981, com a invasão do Kuwait pelo Iraque. Hoje, isso só aconteceria se os Estados Unidos invadissem o Irã, com a alegação de risco mundial com a proliferação de armas nucleares. A possibilidade de isso acontecer agora é muito menor.

CC: O barril de petróleo a 100 dólares não representa um choque de oferta?
NR: Não, porque a desaceleração global provocará uma redução na demanda. Por essa razão, o que pode soar paradoxal, as forças inflacionárias perderão importância. Principalmente porque já há sinais de recessão nos Estados Unidos, com o desemprego elevado (5% em dezembro, a maior taxa em dois anos) e a conseqüente queda do consumo. Como reflexo, o mundo inteiro consumirá menos e assistiremos a uma redução bastante forte dos preços das commodities, incluindo o petróleo. Se minha análise estiver correta, haverá uma repetição do que ocorreu entre 2001 e 2003. Então, o Federal Reserve estava preocupado demais com a inflação e, no entanto, os preços caíram.

CC: O senhor considera que os bancos centrais deveriam direcionar seus esforços na solução da escassez do crédito?
NR: Sim. Deveriam se concentrar na liquidez e no fato de que já existe uma desaceleração da demanda, visível nos Estados Unidos, mas também presente na Europa, com a redução das vendas no varejo. Também continua o processo de estouro das bolhas imobiliárias no Reino Unido, Espanha e Irlanda, para citar três exemplos. Os principais índices que medem os preços das commodities agrícolas já estão 20% abaixo dos picos.

CC: Como o cenário global vai afetar o Brasil?
NR: Claramente, o Brasil está mais sólido do que nas crises econômicas do passado. Não haverá o mesmo impacto negativo de 1999 e 2002. Mas também é verdade que parte do sucesso do País se deveu à sorte, com o mundo todo em crescimento e a elevação dos preços, além dos juros internacionais baixos, que atraíram os investidores em busca de maior rentabilidade. O efeito para o País, com a recessão americana, virá primeiro pelo canal do comércio exterior, em razão da queda dos preços das commodities. Poderá haver ainda maior aversão ao risco, sempre associado aos mercados emergentes. Parte da melhora da situação fiscal e das contas externas brasileiras vai se perder. O Brasil terá certamente um déficit em conta corrente e uma piora no perfil fiscal.

CC: O pior ainda está por acontecer nos Estados Unidos?
NR: Sim. A recessão formal acontecerá neste ano, como produto da crise de crédito gerada pela bolha imobiliária. Haverá menos investimentos por parte das empresas, os cidadãos pouparão menos e consumirão ainda menos. Certamente, crescerá o nível de inadimplência de forma generalizada, e não só no segmento imobiliário. O risco se tornará mais evidente, pois muitas corporações emitiram títulos podres (junk bonds), sem qualidade. O dinheiro fácil e barato sumiu, resultado de alavancagem excessiva das instituições financeiras e do boom de crédito. Os balanços já começaram a mostrar prejuízos.

CC: É possível prever quanto esse novo ciclo, de crise, vai durar?
NR: Nos Estados Unidos, será mais longo do que as crises de 1991 e 2001, que duraram seis meses. Considero que a recessão será uma realidade nos quatro trimestres deste ano. A desaceleração no restante do mundo, pelas próprias características de contágio, deve se estender até a metade de 2009. Só se pode pensar em recuperação a partir de meados do próximo ano.

Momentos desinteressantes

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Vivemos um momento bastante estranho na sociedade brasileira, onde seus paradoxos se mostram cada vez mais intensos e evidentes, de um lado, encontramos um governo que quer vendar a sensação de que esta tudo bem, que todos os problemas estão sendo resolvidos e que as críticas são injustas, eleitoreiras e marcadas por um sentimento intenso de revanchismo e de pequenez política, todos os críticos são seres mal intencionados e que vivem querendo desestabilizar o governo e tirar o país dos trilhos do progresso e do primeiro mundo; e de outro encontramos uma oposição pouco inteligente, titubeante e marcada pela divisão e pela instabilidade, que vive criticando e, como proposta, pouco traz de novo, muitas vezes requentando coisas antigas e ultrapassadas embaladas em novas roupas para criar a sensação de novidade e de eficiência.

Estamos na segunda década do século XXI, trazemos na alma problemas originários do século XVIII, XIX e XX, e mais, somos, constantemente, impulsionados a tentar resolver os problemas do século XXI, um momento histórico único, cheio de desafios e de oportunidades, que exigem rapidez e eficiência, mas, antes de tudo, uma sociedade consciente e capacitada para compreender o momento histórico que estamos experimentando, uma sociedade coesa e altamente organizada para construir um futuro digno e decente para todos os cidadãos, um futuro onde os filhos nascidos em lares diferentes tenham a mesma oportunidade de competir no mercado de trabalho e no mercado da vida, ambos com condições de sobreviver e mais, de forma, cada vez mais digna e decente.

Quanto mais estudamos mais nos indignamos, quanto mais trabalhamos mais somos escorchados por impostos agressivos e desestimulantes, quanto mais falamos do charme e da eficiência da meritocracia, mais nos desenganamos com os modelos implantados na sociedade brasileira, onde encontramos pessoas despreparadas em altos cargos públicos, recebendo salários elevados e usufruindo de benefícios que a grande maioria da sociedade nem imagina existirem, benesses que aumentam mais as diferenças entre ricos e pobres, além de criarem uma nova casta, formada por sindicalistas, na maioria das vezes sem preparo intelectual e com grandes desajustes morais e éticos, todos indicados como representantes dos trabalhadores e atolados nas contribuições sindicais, recursos extraídos compulsoriamente da classe trabalhadora, que serve unicamente para encher a pança de muitos parasitas encrustados nestas instituições que nasceram para defender a classe trabalhadora, mas que, atualmente, luta para perpetuar suas benesses e privilégios.

Neste ambiente desinteressante internamente encontramos um mundo envolto em problemas financeiros, depressões crescentes, ameaças de guerras, desajustes culturais e intolerâncias constantes e conflitos generalizados, neste ambiente encontramos discursos que nos colocam em destaque na sociedade nacional, estamos bem cotados, somos membros atuante dos BRICs, fazemos parte de uma elite mundial e muitos acreditam que, num futuro muito próximo, seremos um dos maiores países da sociedade internacional, diante disso, fica a pergunta: será que melhoramos tanto assim ou será que foi o mundo que piorou?

Responder esta pergunta é algo bastante tentador, aceitar o axioma de que foi o mundo que regrediu de forma acelerada me atrai diretamente, mas desconversar e não reconhecer que avançamos é algo que não faz parte de minha consciência intelectual, seria muito fácil e equivocado acreditar e defender a tese que pioramos, na verdade o Brasil melhorou muito, somos um país melhor hoje do que éramos a vinte anos atrás, todas estas transformações começaram na estabilização da economia, iniciada em 1994, até o mais ferrenho opositor dos tucanos reconhecem, na intimidade, que avançamos neste período e, nos posteriores, ganhamos em outros campos, principalmente, social, somos um país que avança, mas como nossas heranças negativas são muito grandes, temos que avançar mais rapidamente, temos que ajustar nossa economia as exigências contemporâneas e trabalhar para que nossas conquistas sejam mais estruturadas e intensas, temos avançado claramente, mas nos preocupa o ritmo e a questão fiscal, como avançaremos num ambiente onde o Estado perde as condições para fomentar a economia, alguns podem argumentar que o Estado tem boas condições fiscais atualmente, esta tese é controversa, mas sabemos que mesmo equilibrados na atualidade, os gastos atuais preocupam muito mais num futuro próximo do que no momento atual, as incertezas futuras inibem investimentos e aumentam a instabilidade, afugentando novos investidores e reduzindo as perspectivas de crescimento sustentável para o país.

Vivemos num momento estranho, querelas políticas crescentes se disseminam por todos os cantos, confrontos entre poderes crescem e preocupam, propostas casuísticas de alterações constitucionais visando diminuição do poder do Supremo geram instabilidades e podem abrir precedentes preocupantes, discussões muito mais importantes e prementes são deixadas de lado, propostas para limitar investigações do Ministério Público caminham no Poder Legislativo, camufladas em leis, mas que, no fundo, objetivam aumentar a impunidade, principalmente dos grupos mais poderosos que atuam, feito quadrilhas organizadas, no seio do Estado Nacional, neste ambiente os gastos publicitários crescem de forma acelerada enquanto recursos em setores estratégicos são contingenciados e, muitas vezes, esquecidos pelos gestores públicos, e para piorar ainda mais a situação, encontramos na Comissão dos Direitos Humanos um deputado que repudia veementemente a diversidade e se mostra cheio de preconceitos com homossexuais e bissexuais, uma atitude intolerante e preconceituosa, ainda mais de um representante eleito pelo voto da população.

No campo econômico encontramos um conjunto de medidas fiscais sendo adotadas para evitar que a economia se estagne, no ano passado o país cresceu 0,9%, segundo o governo a culpa é da crise internacional que desacelerou nossa economia, uma justificativa frágil quando analisamos os outros países da região que, mesmo assolados pela crise, conseguiram crescer mais do que a economia brasileira, a justificativa para o baixo crescimento é outra, e passa pela excessiva intervenção do Estado na economia, todos os dias encontramos medidas novas, políticas novas visando incrementar algum setor, recentemente encontramos o governo arquitetando uma forma de salvar as empresas Xs, do bilionário Eike Batista, até recentemente o homem mais rico do Brasil que, de uma hora para a outra perdeu o posto para Jorge Paulo Lehmann (Grupo 3 G, donos da AB Inbev, Lojas Americanas, Burger King, Heinz, etc…), um socorro em curso que, com certeza, custará bilhões de recursos públicos repassados pelo BNDES, um verdadeiro capitalismo sem riscos, muito bem descrito por Lazzarini no livro Capitalismo de Laços, mas nada novo quando analisamos a história do país, Raimundo Faoro, destacou esta relação promíscuas entre Estado e as elites econômicas e políticas, na brilhante obra Os donos do poder, escrita nos anos 50 e considerada um dos mais importantes livros para se compreender o país, justificando a máxima de que o Brasil não é para principiantes.

O governo adota posturas interessantes, de um lado, estuda medidas para socorrer grupos econômicos em dificuldades e, de outro, seguindo as pegadas Chavistas, estuda complementar o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), com subsídios para a compra de móveis e eletrodomésticos, uma política que, se adotada, vai gerar um grande incremento nestes setores, receberá o beneplácito dos empresários dos setores envolvidos e garantirá uma maior perpetuação deste governo no poder por muitas e muitas décadas, eternizando uma política com traços fortes de populismo, modelo muito caro aos governantes da América Latina, o resultado disso tudo não precisa ser nenhum gênio político ou expert econômico para identificar, problemas fiscais crescentes que, posteriormente, pode gerar graves constrangimentos para os setores econômicos, podendo causar fortes pressões sobre o nível de preços e aumento inflacionário.

Outro ponto importante a se destacar, este relacionado à chamada nova classe média, um setor que, nos últimos anos, cresceu em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, um grupo social que vive com uma renda ridícula de R$ 2.000,00 mensais, um valor tão reduzido que retrata, claramente, nossa estrutura salarial, composta de salários extremamente baixos e mais, estes denotam nossa baixíssima produtividade, que sendo baixas condenam o país a comemorar o surgimento de uma classe média formada por indivíduos que ganham pouco e pior, para manter esta renda precisa trabalhar em condições escorchantes e deprimentes, muitos deles em condições indignas, pois, são condenados a uma alta carga horária e ganhos ridículos, para acompanhar o crescimento desta classe média mundial somos obrigados a reduzir os valores e redefinir o que chamamos de classe média.

Nesta semana, assistindo a palestra do banqueiro André Esteves, do Banco BTG Pactual, confesso que fiquei assustado, sua fala evoca os mais intensos otimismos pelos rumos do Brasil contemporâneo, adjetivos intensos e grandiloquentes chamaram a atenção de todos que puderam assistir a apresentação, ao mesmo tempo, outros palestrantes traçaram um horizonte mais cinza e nebuloso para o país, estamos num momento interessante e, ao mesmo tempo, preocupante, somos a oitava economia do mundo, mas acumulamos problemas de simples resolução, faltando apenas vontade política e convicção intensas, se não nos debruçarmos sobre tais problemas, colheremos num futuro muito próximo, gravíssimos equívocos estruturais que podem nos comprometer enquanto país.

No campo do comércio internacional colhemos dados assustadores, não nos embrenhamos em nenhum acordo comercial relevante, o Mercosul, visto anteriormente como um bloco econômico em franco crescimento e com boas perspectivas futuras, na atualidade, se transformou num refugo caracterizado por governos protecionistas e politicas equivocadas e desnecessárias, que nos condena e ficarmos presos a um bloco insignificante enquanto, outros países, se inserem em outros acordos econômicos e comerciais a acabam ganhando espaço do Brasil nos acordos internacionais, assim como na experiência dos anos 90, quando da adesão do México ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), que reduziu nossa entrada nos mercados norte-americanos, gerando graves constrangimentos para variados setores exportadores nacionais.

Vivemos momentos pouco interessantes internamente, o Brasil caminha muito lentamente, nossa economia cresce de forma reduzida, o emprego cresceu e se transformou no grande ativo do governo federal, o pleno emprego pressiona os preços e constrangem os setores assalariados, principalmente, os de baixa renda, reduzindo o poder de compra da economia e exigindo que o Estado adote políticas monetárias mais restritivas, elevando juros para conter a demanda e segurar a inflação que ameaça voltar e piorar o ambiente macroeconômico, inibindo investimentos e afugentando o chamado espírito animal da classe empresarial.

Mesmo vivendo momentos pouco interessantes ainda acreditamos no futuro do Brasil, gostamos da visão social deste governo, somos muito favoráveis a inclusão proposta nestas políticas, mas temos receio de onde estão saindo os recursos para incrementar a economia, as isenções fiscais, os subsídios crescentes, sabemos que os recursos estatais são limitados, a divida interna é baixa quando comparada com países desenvolvidos, mas mesmo assim, acreditamos que temos bons motivos para continuarmos otimistas, mesmo que com um otimismo moderado, pois enxergamos todos estes problemas econômicos como espaço integrado para novos negócios, novas oportunidades e uma nova forma de mostrarmos ao mundo todo o nosso potencial de país, lembrando que nos anos 40 fomos chamados de o país do futuro, agora devemos demonstrar a toda a comunidade internacional que este futuro chegou, é agora e veio para ficar.

Invisível cidadania brasileira

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Uma sociedade desenvolvida se faz com seres humanos dotados de cidadania e compreensão de seu papel social, a construção desta conscientização é algo complexo e demorado, exigindo do Estado e da sociedade civil um compromisso claro com o ser humano, investimentos voltados para o indivíduo, sua melhoria e capacitação constantes, tudo com o intuito de garantir melhorias econômicas e sociais para toda a coletividade.

Vivemos num país paradoxal, de um lado, encontramos indivíduos que vivem num suposto paraíso material, esbanjando recursos escassos e vestindo um papel social que, para os desconhecidos, levam a crer que vivem no céu, comem do bom e do melhor e posam da mais fina flor da sociedade; de outro, encontramos um outro grupo social, vivem na miséria, conhecem todo tipo de infortúnio, são marcados pela mais sangrenta desigualdade social e, constantemente são colocadas como vítimas de uma sociedade indefesa, no meio deste grupo social encontramos uma classe média que perdeu sua relevância social e sua presença se torna cada vez mais desnecessária nesta sociedade, quanta desigualdade, este é o nosso Brasil, e alguns acreditam que podemos chegar logo ao primeiro mundo, será?

A sociedade brasileira, com seus paroxismos, vive momentos interessantes e conflitantes todos os dias, de um lado encontramos uma violência generalizada e uma justiça burocrática e ineficiente, que condenam os seres humanos a viverem marcados pelo medo contínuo e por incertezas generalizadas, afugentando investimentos e assustando todos os seus membros, gerando um caos generalizado por todos os poros da sociedade, nesta impotência social encontramos propostas mirabolantes que prometem resolver o problema rapidamente, mas para isso, muitos defendem medidas ousadas e urgentes, tais como a pena de morte, a prisão perpétua, a redução da maioridade penal. Propostas antigas colocadas em novo formato, que nos parece a panaceia da sociedade contemporânea, a solução definitiva para todos os problemas do país, adotadas a partir da assinatura de um papel, a criação de uma lei, que, será responsável pela resolução de problemas maiores e com características antigas e estruturais, é o velho Brasil se perpetuando, respostas rápidas e equivocadas para problemas maiores, de cunho social e com graves impactos na estrutura econômica e produtiva.

Diante deste retrato social, encontramos grandes desafios para os gestores modernos da sociedade, mudar o perfil social, agregar recursos sociais escassos e transformá-los em prol da coletividade, e mais, para uma sociedade mais democrática e moderna que, mesmo sendo mais democrática não tem noção clara de que direção deve tomar, qual caminho deve seguir e, principalmente, quais recursos devem investir para melhorar as perspectivas para esta coletividade, que, na contemporaneidade, sente claramente as ameaças da concorrência constante e inexorável entre pessoas, empresas e países.

A cidadania inexistente no Brasil se faz presente no cotidiano, não precisamos procurar muito para nos depararmos com esta falta de cidadania e civilidade, ao sairmos de nossas casas encontramos um trânsito caótico e degradado, onde todos os dias, as cidades recebem uma quantidade maior de veículos circulando, carros novos e vias públicas antigas, pouco sinalizadas e muito mal constituídas, nelas os acidentes se repetem com grande intensidade, todos os dias morrem milhares de brasileiros vítimas desta insanidade, motoristas trafegam pelas vias sem respeitar a sinalização, sinalizar as atitudes cotidianas como uma simples seta é algo difícil de encontrar, ultrapassagem em locais proibidos, alta velocidade, motoristas dirigindo embriagados são atitudes corriqueiras em um país onde os indivíduos tem na ponta da língua seus direitos, sabem e comentam a boca pequena, mas não se preocupam com seus deveres, neste ambiente encontramos uma cidadania limitada e canhestra, onde nos interessamos por aquilo que nos da retorno imediato e nos esquecemos das nossas obrigações imediatas, fundamentais para a formação de nossa identificação social e na construção de uma sociedade civilizada e próspera, e mais, capacitada e consciente dos desafios do século XXI.

Nos anos 90, o mundo foi inundado por um pensamento e por uma ideologia brutal, o neoliberalismo, que se interessava apenas pela construção de consumidores, pessoas empregadas e com este voltavam ao mercado como consumidores, estas teorias deixavam de lado o cidadão, sua formação e sua construção social, um projeto maior e mais sólido na formação de uma sociedade soberana e autônoma, responsável pelos seus rumos e consciente de suas necessidades mais prementes e imediatas.

O resultado imediato disso tudo estamos vendo claramente no Brasil e na sociedade mundial, pessoas sedentas por seus direitos e sem nenhuma preocupação com seus deveres, pessoas que querem consumir e pouco consciente dos excessos do consumo desenfreado, que degrada o meio ambiente, destrói o clima e geram graves desajustes para as gerações futuras, uma sociedade que busca nas escolas e nas universidades uma formação rápida e de qualidade, sem compreender que esta formação exige dedicação constante e esforço imediato, formar consumidores é algo muito mais fácil, educar para o emprego e para o mercado é algo simples e imediato, agora, educar para a vida e para a cidadania é muito diferente e demorado, exige dedicação e esforço concentrado dos governos, das famílias e das escolas e universidades, um trabalho hercúleo e intenso, que exige um esforço concentrado de todos os atores sociais, deixar a educação e a capacitação profissional apenas para a escola é uma atitude covarde e fadada ao insucesso, outros agentes sociais devem assumir suas respectivas responsabilidades, cumprir com seus compromissos e deixar de exigir dos outros que cumpram responsabilidades que lhes competem.

As empresas exigem das escolas e das universidades, que estas façam a formação completa do aluno, querem que se transfira aos alunos informações técnicas e científicas, além de estágios e uma bagagem superficial de cidadania, mas se possível com aulas dinâmicas e superficiais, nada de leitura mais profunda e direcionada, e ainda exige-se que cobre mensalidades acessíveis sobre pena de perder os alunos em caso de mensalidades mais caras, a escola deve fazer todo o trabalho de formação de seus supostos colaboradores, esquecem-se de que nenhuma consegue atingir este patamar de formação, as que formam para o mercado e conseguem um resultado positivo em conteúdos, não conseguem cobrar mensalidade mais acessíveis e estão restritas aos poucos privilegiados do sistema que tem condições financeiras de pagar por tal educação.

Em décadas anteriores, as empresas eram o lócus da formação prática dos estudantes, abriam espaços em suas fileiras para todos aqueles jovens interessados em estagiar, aprender e se qualificar, muitos eram absorvidos por estas companhias e lá mesmo começavam sua vida profissional, agora tudo ficou por conta das faculdades e das escolas que, cheia de cobranças imediatas se encontram fragilizadas e em crise estrutural, vitimadas por uma sociedade imediatista e centradas na irresponsabilidade de variados grupos sociais, que acossados pelos excessos do mundo contemporâneo transferem aos outros, responsabilidades que são nitidamente suas, o resultado virá muito brevemente e terá impactos crescentes sobre todos os indivíduos e, principalmente, para a sociedade como um todo.

A forma como vivemos no mundo contemporâneo é a grande responsável pelos desajustes, o poder desenfreado do dinheiro e a luta constante por enriquecimento, levam os indivíduos a buscas desenfreadas, se capacitam para o trabalho com cursos rápidos, aprendem as novas tecnologias que surgem e vivem todos os instantes fazendo atualizações em pós-graduações que, na maioria das vezes são de qualidades duvidosas, mas não conseguem acompanhar o desenvolvimento das tecnologias, não estimulam o desenvolvimento do seu espírito crítico, não se habituam a estudar e a buscar informações salutares para sua formação enquanto seres humanos, seguem perseguindo conhecimentos que estão pululando no mundo, muito mais próximo do que imaginam, nos jornais, nas revistas e nas conversas edificantes que encontramos em alguns programas de televisão, raros, mas existentes em todos os canais, cabe a cada um se dispor a procurar e buscar tais conhecimentos, pois são eles os maiores patrimônios que nós, seres humanos, temos a condição de angariar para nossa vida e para nossos familiares.

Vivemos num país onde a cidadania é de papel, como dizia o jornalista Gilberto Dimenstein, vivemos e nos empanturramos de produtos desnecessários e de utilidade duvidosa, sabemos disso e somos conscientes de nossas limitações intelectuais e acreditamos, ainda, que o Estado vai nos salvar de nossas escolhas infelizes ou que Deus, na sua onipotência, vai se disponibilizar a vir pessoalmente para nos mostrar o caminho do progresso, compactuamos sempre com a mediocridade e sonhamos com um mundo de sonhos, utópico, que encontraremos em algum lugar, mesmo estando longe, mas que, infelizmente não movemos uma palha para auxiliar nesta construção, mas queremos usufruir de seus sabores e prazeres, como a cidadania, cheios de direitos e sem nenhum dever, ou melhor, uma cidadania invisível, o resultado é a nossa condição atual como país, ricos e cheios de perspectivas positivas mas, ao mesmo tempo, muito mal colocado nos principais rankings mundiais de qualidade de vida e desenvolvimento sustentável.

Numa sociedade onde a cidadania é algo transparente e invisível, cabe a cada um de nós, e, principalmente, a todos aqueles que podem ser chamados de cidadão, o compromisso coletivo para com todos seus concidadãos, orientar, falar e agir, sempre, como cidadãos verdadeiros, para que nosso conceito de cidadania saia de nosso umbigo e se espalhe para toda a sociedade, onde cada cidadão se comporte como um agente social de ganhos coletivos, onde todas as classes se unam para defender direitos coletivos, onde a educação, a saúde e a segurança pública sejam vistas como um bem coletivo e que, se houver deterioração, todos seremos imensamente prejudicados, porque aquele jovem que está preso no mundo das drogas é um problema para todos nós, é uma ameaça para toda a sociedade, pois este mesmo indivíduo num momento de insanidade e de desespero pode causar traumas terríveis a inúmeras famílias e grupos sociais, matando, roubando ou destruindo sonhos que poderiam se tornar realidade na vida de cada um de nós, a noção de solidariedade nos levaria a colaborar e a cooperar para a melhora deste indivíduo, agora, a visão de meros consumidores nos conduziria a entoar o discurso da prisão, da morte e do extermínio destes seres que, na verdade já foram imensamente maltratados pela sociedade e, mais uma vez, seriam condenados à inanição e ao mundo dos invisíveis, um mundo onde a cidadania não existe e a solidariedade faz com que os homens não vejam seus semelhantes e outros, mesmo olhando não os conseguem enxergar, perpetuando a máxima do filósofo francês Sartre O inferno são os outros.