O Brasil não é uma potência ambiental global, por Rodrigo Tavares.

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Declarações de Lula e bravata diplomática não refletem as capacidades do país

Folha de São Paulo, 01/06/2023

Rodrigo Tavares, Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Nas suas várias viagens internacionais, Lula tem destacado que o Brasil é uma “grande potência” na área ambiental e climática. Vários outros presidentes fizeram o mesmo. Até Bolsonaro exaltou os recursos brasileiros nessa área em seu discurso em Davos em 2019. A bravata diplomática tem sido recorrente.

Mas será mesmo o Brasil uma potência ambiental?

Desde os anos 50 que as várias teorias das relações internacionais têm dissecado o conceito de “potência global” sob todos os prismas possíveis. As diferenças entre “superpotências”, “grandes potências” e “potências regionais” ou a retratação do mundo como “unipolar”, “bipolar” ou “multipolar” já foram exploradas quantitativa e qualitativamente até as pálpebras pesarem. Ainda que falte um largo consenso sobre essa matéria, há entendimento em alguns pontos.

O primeiro é que as grandes potências usufruem de elementos congênitos que lhes garantem uma certa primazia natural, como um vasto território ou força populacional. Na área ambiental, certamente que o Brasil se destaca, como o país do cerrado, a savana com a maior biodiversidade arbórea do mundo, e da Amazônia, a maior floresta tropical do planeta. Também tem a maior reserva de água doce disponível. Mas estes são elementos passivos. Se fossem suficientes para outorgar a um país o estatuto de potência, o Canadá ou a Dinamarca (com a Groenlândia), com os seus vastos territórios, estariam no pelotão da frente.

O segundo elemento é material e corresponde à habilidade e experiência de um país para exercer sua influência em escala global. Não são características herdadas, mas criadas. Teóricos das relações internacionais, como Kenneth Waltz, John Mearsheimer ou Nuno Monteiro, destacam que, para ser uma potência global, um país precisa de força militar, capacidade econômica, estabilidade política, pujança tecnológica e educacional ou poder cultural, entre outros fatores tangíveis e intangíveis.

São eles que dão às grandes potências vantagens relacionais que lhes permitem exercer influência e mudar comportamentos de outros países a nível global. Se aplicarmos essa visão à área ambiental, a pujança brasileira já não é tão evidente.

Tem uma matriz energética de 43% de energia limpa e renovável. Tem o maior programa do mundo de produção de combustível extraído da biomassa. Tem inúmeras organizações da sociedade civil atuantes na área ambiental e uma quantidade significativa de quadros técnicos especializados que produzem reflexões organizadas sobre o tema, como a Estratégia Brasil 2045, do Observatório do Clima. A legislação ambiental é das mais densas do mundo. Mas titubeia na reindustrialização verde e na transição para uma economia de baixo carbono, um esforço colossal que ainda não angariou apoio político inequívoco. Desde a democratização, os líderes políticos com verdadeira vocação ambiental contam-se pelos dedos de poucas mãos. José Antônio Lutzenberger, Rubens Ricupero, José Goldemberg, Izabella Teixeira, Marina Silva. Quem mais?

O Brasil também está muito atrasado no aproveitamento dos mercados de carbono e não é referência em tecnologia climática. Praticamente não há presença brasileira entre os 350 fundos de venture capital dedicados a essa área. No país, 47% da população não tem acesso à rede de esgoto e as suas águas residuais são lançadas sem tratamento na rua ou em rios. As catástrofes de Mariana e Brumadinho geraram danos ambientais e lesões à imagem internacional do país. O índice de reciclagem é de apenas 4%, muito abaixo de países com o mesmo patamar de renda. O Brasil ocupa apenas o 81º lugar no Índice de Desempenho Ambiental da Universidade de Yale, atrás de países latino-americanos como o Chile, o Equador ou a Venezuela, que não se autodeclaram campeões ecológicos.

Para ser uma potência global ambiental, o Brasil precisaria também possuir capacidade ou interesse em resolver ou mitigar os mais graves problemas ambientais. O exercício de responsabilização, a ser exercido em nível global, é outro critério fundamental para ser considerado uma grande potência. Certamente que o Brasil tem organizado eventos internacionais (ECO-92, Rio+20 e a COP30, em 2025) e deixado as suas impressões digitais em acordos internacionais, mas não tem exercitado, de forma consistente, a sua eventual liderança na resolução de problemas climáticos e ambientais.

O Acordo de Paris de 2015 só foi possível porque em novembro de 2014 os EUA e a China assinaram um acordo bilateral. O Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, de 1987, foi imposto pelos EUA. A União Europeia, pela sua robustez regulatória, comercial e financeira, tem conseguido influenciar práticas de sustentabilidade corporativa em vários países do mundo, incluindo o Brasil.

Qual a influência do Brasil em discussões globais sobre pobreza energética, reciclagem de eletrônicos, poluição atmosférica ou produção de plásticos? O Brasil tem 7.400 kms de costa, mas qual a sua contribuição global para o tema da acidificação dos oceanos? Qual a opinião do Brasil sobre uma eventual reforma da Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados para proteger refugiados climáticos? E que papel exerceu para resolver problemas ambientais em nível regional ou global? Por que não ajudou o Peru (Callao), o Equador (MV Jessica) ou a Venezuela (El Palito) a superarem desastres ambientais causados por derramamentos de petróleo?

Uma potência global também tem de ser reconhecida pelos seus pares como tal. Infelizmente não existem normas ou arranjos institucionais que confiram o estatuto de grande potência na área ambiental. Não há um Conselho de Segurança da ONU ou um G7 aplicados à liderança climática. O reconhecimento do poder é, por isso, mais arbitrário e interpretativo. Ainda assim, é difícil encontrar exemplos materiais em que o Brasil tenha sido aceito como uma potência ambiental global.

Certamente que há reconhecimento dos seus elementos congênitos; o país da Amazônia tem naturalmente lugar cativo em qualquer discussão global. Mas e além disso?

O meio ambiente é o maior diferencial competitivo que o Brasil poderia ter. Só falta aproveitá-lo. Se o país já fosse uma potência ambiental, isso já se teria refletido no aumento da renda e da qualidade de vida dos brasileiros.

Relação conflituosa

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Vivemos momentos de grandes inquietações. Vivemos momentos de grandes transformações estruturais. Vivemos momentos de desesperanças e preocupações constantes. Vivemos momentos de grandes oportunidades e grandes desafios. Vivemos momentos de conflitos globais, mudanças geopolíticas e guerras devastadoras. Vivemos um momento de lembranças, memórias e saudades crescentes. Vivemos numa sociedade, marcada por poucas certezas e grandes incertezas, onde a economia se transforma, destrói modelos de negócios e, ao mesmo tempo, criam esperanças e realizações.

Neste ambiente, percebemos que os conflitos econômicos se alteram em momentos de cooperação intensa, as nações vivem num cenário de forte integração econômica e produtiva. Os modelos econômicos geram uma interdependência entre governos e sociedade, exigindo uma forte dose de sabedoria nas relações internacionais. Neste cenário, percebemos os conflitos econômicos entre os Estados Unidos e a China gerando impactos sobre toda a economia internacional, criando alianças pontuais, medos e alinhamentos, tudo isso, contribuindo para acirrar as rivalidades.

Nesta sociedade, percebemos que, embora essas nações almejem a hegemonia no mercado internacional, sabemos que são duas nações que estão totalmente integradas e interdependentes uma com a outra, levando os conflitos econômicos e os confrontos políticos para problemas muito além de seus territórios, impactando fortemente para outras regiões e seus parceiros comerciais. Os confrontos econômicos se transformam em conflitos culturais, motivando violências crescentes, xenofobias abertas e agressividades que prescindem de uma diplomacia mais amena e mais construtiva, rechaçando ressentimentos, agressões e ódios generalizados.

A globalização econômica contribuiu ativamente para essa integração produtiva. São nações que se tornaram interdependentes, levando a um aumento do superávit comercial a favor da economia chinesa. Com esse incremento comercial, a China acumula muitos recursos monetários investindo-os maciçamente sobre os títulos norte-americanos, desta forma, as duas economias estão totalmente integradas e interdependentes, uma dependência mútua que prescinde de uma convivência mais harmoniosa. Os Estados Unidos dependem da importação dos produtos industriais chineses e, em contrapartida, a China precisa fortemente do dinamismo do mercado interno norte-americano.

A China possui a maior estrutura industrial do mundo, responsável por mais de 34% da indústria globo, em contrapartida, a economia norte-americana perdeu espaço na indústria global, perdendo empresas e transferindo plantas industriais para as nações asiáticas, notadamente a China, investindo bilhões de dólares na economia chinesa e, para satisfazer as necessidades da sua população, absorvendo bilhões de dólares para garantir o consumo da população norte-americana, gerando uma dependência conjunta entre as duas nações.

Neste cenário, percebemos que os conflitos estão centrados nas questões ligadas à Taiwan, uma região pertencente ao gigante asiático, que almeja sua autonomia, gerando um grande imbróglio que poderia culminar em conflito militar com a entrada dos Estados Unidos neste conflito, defendendo seus interesses gerando instabilidades crescentes na região, uma verdadeira corrida armamentista na Ásia que traria graves constrangimentos para a economia internacional.

Por trás deste conflito, encontramos uma nação, Taiwan, que conseguiu se desenvolver economicamente com fortes investimentos em tecnologia, melhorando as condições de vida de sua população e, neste caminho, angariou uma posição central na economia internacional, desenvolvendo tecnologias avançadas e ultrassofisticadas na produção de microprocessadores, os chamados Chips, instrumento central no mundo contemporâneo, na chamada sociedade do conhecimento. Neste conflito, o domínio da tecnologia de Taiwan pode ser um diferencial para o incremento tecnológico chinês no setor de microprocessadores, reduzindo a distância entre as nações que buscam a hegemonia internacional.

Embora percebendo que as nações sejam interdependentes e integradas, os conflitos entre nações hegemônicas tendem a criar constrangimentos internacionais, aumentando instabilidades e incertezas. Será que não aprendemos nada com a pandemia?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/05/2023.

Agenda equivocada na indústria, por Samuel Pessoa.

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Programa para carros contraria agenda ambiental e ajuste das contas pública

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 28/05/2023

Nas últimas décadas, houve forte queda da participação da indústria no PIB brasileiro. Do pico de 34%, em 1985, para os atuais 10%. Parte significativa da queda deve-se a dois fatos não ligados diretamente ao desempenho do setor.

Primeiro, dado que o progresso tecnológico é maior na indústria, o preço dos bens industriais relativamente ao preço dos serviços reduz-se. O valor da participação cairá naturalmente.

O segundo motivo é que, nas séries antigas, não se mensurava bem o tamanho dos serviços, e, portanto, o produto total do país era subestimado.

Corrigindo esses dois fatores, meu saudoso colega do FGV Ibre Regis Bonelli mostrou que o pico nos anos 1980 foi de 24%, não de 34%. Mesmo assim, houve, de meados dos anos 1980 até hoje, forte queda de 14 pontos percentuais do PIB.

Assim, cabe uma reflexão sobre a queda da participação da indústria no PIB, para além dos fatores elencados nos parágrafos anteriores.

Um primeiro motivo é comum a todas as economias: o crescimento econômico reduz a demanda por bens relativamente à demanda por serviços. Em economês, diz-se que serviços apresentam elevada elasticidade-renda da demanda. Da mesma forma que, na primeira metade do século 20, houve a transição da agropecuária para a indústria, nas últimas décadas temos passado pela transição da indústria para os serviços.

Ou seja, em grande medida a queda da participação da indústria no PIB é um fenômeno normal e compartilhado por inúmeras economias.

No entanto, as economias asiáticas apresentam participação da indústria no PIB bem maior. Os economistas heterodoxos/desenvolvimentistas enfatizam a política industrial e a existência de subsídios concedidos por bancos de desenvolvimento. Há dois fatores que nossos colegas desenvolvimentistas esquecem.

O primeiro é a elevadíssima taxa de poupança das economias asiáticas. Há um efeito direto da elevada taxa de poupança sobre a indústria e um efeito indireto. O efeito indireto é mais simples: elevada poupança conduz a juros domésticos menores e, portanto, barateamento de um fator de produção, o capital, empregado intensamente pela indústria de transformação.

O efeito direto é sobre a composição da demanda. Se a poupança é elevada, o consumo é baixo. Se o consumo é baixo, o país irá apresentar superávit externo. Bens são mais transacionáveis internacionalmente do que serviços. Quem poupa muito exporta muito e, consequentemente, produzirá mais bens.

A elevada poupança dos países asiáticos deve-se ao baixíssimo Estado de bem-estar que vigora por lá. Para ter uma ideia, basta olhar para os gastos previdenciários. O Japão tem quatro vezes mais idosos, como proporção da população, do que o Brasil, e, no entanto, não gasta mais com aposentadorias do que nós.

O segundo fator que os economistas desenvolvimentistas esquecem é que os asiáticos construíram sistemas públicos de educação fundamental de elevadíssima qualidade. Há fartura de mão de obra qualificada.

Esses dois fatores —elevada poupança e elevada qualidade da qualificação da força de trabalho— explicam muito melhor a elevada participação da indústria no PIB do que o BNDES deles.

Por aqui, o governo anuncia programa para subsidiar carros a combustível fóssil para a classe média. Medida contra as agendas de meio ambiente nas cidades (qualidade do ar e congestionamento das vias públicas), de transição energética e de ajuste das contas públicas por meio de redução do gasto tributário (isenção tributária), que tem sido reiteradamente denunciado pelo ministro Haddad. Continuaremos na vanguarda do atraso.

G7 deve aceitar que não pode governar o mundo, por Martin Wolf

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Hegemonia americana e domínio econômico do grupo agora são história

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 24/05/2023

“Adeus G7, olá G20.” Esse foi o título de um artigo do The Economist sobre a primeira cúpula do Grupo dos 20 em Washington em 2008, argumentando que representava “uma mudança decisiva na velha ordem”. Hoje, as esperanças de uma ordem econômica global cooperativa, que atingiram seu ápice na cúpula do G20 em Londres em abril de 2009, evaporaram.

No entanto, dificilmente é um caso de “Adeus G20, olá G7”. O mundo anterior de dominação do G7 é ainda mais distante que o da cooperação do G20. Nem a cooperação global nem a dominação ocidental parecem viáveis. O que pode acontecer? Infelizmente, “divisão” pode ser uma resposta e “anarquia”, outra.

Não é o que sugere o comunicado do encontro dos chefes de governo do G7 em Hiroshima, no Japão, que é incrivelmente abrangente.

Inclui: Ucrânia; desarmamento e não proliferação; a região do Indo-Pacífico; a economia global; a mudança climática; o meio ambiente; energia, incluindo energia limpa; resiliência econômica e segurança econômica; comércio; segurança alimentar; saúde; trabalho; educação; digital; ciência e tecnologia; gênero; direitos humanos, refugiados, migração e democracia; terrorismo, extremismo violento e crime organizado transnacional; e relações com China, Afeganistão e Irã (entre outros países).

Com 19 mil palavras, parece um manifesto por um governo mundial. Em contraste, o comunicado da cúpula do G20 em Londres, em abril de 2009, tinha pouco mais de 3 mil palavras. Essa comparação é injusta, dado o foco na crise econômica naquele momento. Porém, uma lista de desejos sem foco não pode ser útil: quando tudo é prioridade, nada é.

Além disso, tanto o momento “unipolar” dos Estados Unidos quanto o domínio econômico do G7 são história.

É verdade que este último ainda é o bloco econômico mais poderoso e coeso do mundo. Continua, por exemplo, a produzir todas as principais moedas de reserva. No entanto, entre 2000 e 2023, sua participação na produção global (em poder de compra) terá caído de 44% para 30%, enquanto a de todos os países de alta renda terá caído de 57% para 41%. Enquanto isso, a participação da China terá subido de 7% para 19%.

A China é hoje uma superpotência econômica. Por meio de sua Belt and Road Initiative (BRI ou, Nova Rota da Seda), tornou-se um grande investidor em (e credor de) países em desenvolvimento, embora, previsivelmente, esteja tendo que lidar com as consequentes dívidas incobráveis tão familiares aos países do G7.

Para alguns países emergentes e em desenvolvimento, a China é um parceiro econômico mais importante do que o G7: o Brasil é um exemplo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ter participado do G7, mas não pode ignorar, sensatamente, o peso da China.

O G7 também está alcançando outros: sua reunião no Japão incluiu Índia, Brasil, Indonésia, Vietnã, Austrália e Coreia do Sul. Porém, 19 países, aparentemente, se inscreveram para ingressar no Brics, que já inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Quando Jim O’Neill inventou os Brics, em 2001, pensou que seria uma categoria economicamente relevante. Eu pensei que os Brics seriam apenas China e Índia. Economicamente, estava certo. Porém, os Brics agora parecem estar a caminho de ser um agrupamento mundial relevante.

Claramente, o que une seus membros é o desejo de não depender dos caprichos dos EUA e de seus aliados próximos, que dominaram o mundo nos últimos dois séculos. Por quanto tempo, afinal, pode (ou, aliás, deveria) o G7, com 10% da população mundial, continuar assim?

Às vezes, a pessoa simplesmente tem que se ajustar à realidade. Deixe de lado por enquanto os objetivos políticos dos membros do G7, que incluem justamente a necessidade de preservar a democracia em casa e defender suas fronteiras –hoje, sobretudo, na Ucrânia.

Esta é de fato a luta do Ocidente, mas é improvável que um dia seja a do mundo, cuja maior parte tem outros problemas e preocupações, mais prementes. Foi bom que o presidente Volodimir Zelensky tenha participado da cúpula. No entanto, só o Ocidente determinará a sobrevivência da Ucrânia.

Se nos voltarmos para a economia, também é bom que a noção de dissociação, um absurdo prejudicial, tenha se transformado em uma ideia de “eliminação de riscos”. Se esta puder ser transformada em formulação de políticas focada e racional, será ainda melhor, mas será muito mais difícil fazer isso do que muitos agora parecem imaginar.

É coerente diversificar os suprimentos de energia, matérias-primas e componentes vitais. Contudo, para usar um exemplo notável, apenas diversificar o fornecimento de chips avançados de Taiwan será realmente difícil.

Uma questão ainda maior é como a economia global deve ser administrada.

O FMI e o Banco Mundial serão bastiões do poder do G7 em um mundo cada vez mais dividido? Em caso afirmativo, como e quando eles obterão os novos recursos de que precisam para lidar com os desafios atuais?

Como também se coordenarão com as organizações que a China e seus aliados estão criando? Não seria melhor admitir a realidade e ajustar as cotas e participações, reconhecer as grandes mudanças de poder econômico no mundo?

A China não vai desaparecer. Por que não devemos permitir que ela tenha mais voz em troca de uma participação plena nas negociações de dívidas? De modo semelhante, por que não deveríamos reanimar a OMC (Organização Mundial do Comércio), em troca do reconhecimento do gigante asiático de que não pode mais esperar ser tratada como um país em desenvolvimento?

Além de tudo isso, devemos reconhecer que qualquer conversa sobre “reduzir o risco” que não se concentre nas duas maiores ameaças que enfrentamos –as da guerra e do clima– é coar mosquitos enquanto se engolem camelos.

Sim, o G7 deve defender seus valores e seus interesses, mas não pode governar o mundo, mesmo que o destino do mundo também seja o de seus membros. É preciso encontrar um caminho para a cooperação, mais uma vez.

Tradução de Luiz Roberto Gonçalves

A ascensão da extrema direita, por Alejandro Pérez Polo.

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A crise orgânica do capital forneceu o terreno para a irrupção da ultradireita

A Terra é Redonda – 23/05/2023

Alejandro Pérez Polo

O crash de 2008: aqui começou tudo

O ano era 2012. A crise económica resultante da Grande Recessão estava a grassar na Europa. As mobilizações populares em Espanha (15M e a greve geral de março de 2012) e os protestos violentos na Grécia tinham infetado todo o mundo ocidental. Chegaram ao coração do império: em Nova Iorque, os cidadãos manifestavam-se em Wall Street através de Occupy. Não havia quase vestígios da extrema direita em lado nenhum. Nem mesmo em França a estreante Marine Le Pen lograva chegar à segunda volta das eleições presidenciais, que haveriam ser decididas entre Sarkozy e Hollande, com uma vitória socialista.

Estava em curso uma fase de decomposição ideológica e orgânica do neoliberalismo. Os consensos econômicos da globalização, após a queda da U.R.S.S., tinham sido estilhaçados para sempre. A lua-de-mel que durou de 1991 a 2008, na qual o capitalismo desenfreado conseguiu incorporar na sua lógica todos os países da ex-União Soviética, terminou. Uma subsunção formal e material de todo o globo chegara ao seu fim.

Isto resultou numa grande crise de hegemonia que se alastrou a todos os estratos de poder. Assim, ninguém foi poupado ao desafio: crise de representação, que levou a uma crise dos partidos tradicionais e à possibilidade do surgimento de novas forças políticas. Crise dos meios de comunicação, que tentaram defender o indefensável e perderam a credibilidade pública. Isto preparou o caminho para as notícias falsas (fake news) que a extrema direita tanto explorará, e para o surgimento de novos meios de comunicação social. Houve também uma crise da instituição científica por se ter associado ao público e ao oficial, que mais tarde abriria o campo para a psicose conspiracionista que atingiria o seu auge com a pandemia da COVID-19.

A crise orgânica do capital forneceu o terreno para a irrupção da ultradireita, que exploraria ao máximo todos os derivados do colapso ideológico do edifício neoliberal. No entanto, foi
primeiro a esquerda popular que agarrou a oportunidade.

Em 2012, após duas décadas de inanição, digerindo a derrota histórica da U.R.S.S., a esquerda assumiu a liderança. Viu o momento e soube ligar-se tanto com o pulsar da rua como com a proposta constituinte subsequente. Foram aprendidas lições, renovados manuais e empreendido um período de reflexão profunda, que permitiu que o novo cenário fosse confrontado com garantias.

Assim, em 2015, Alexis Tsipras ganhou a presidência do governo grego, numa vitória eleitoral inimaginável, após décadas de bipartidarismo. Em Espanha, Pablo Iglesias e o Podemos obtiveram mais de cinco milhões de votos (20,2% dos votos) o que, somado ao milhão de votos da Izquierda Unida, posicionou pela primeira vez a esquerda ao PSOE acima da social-democracia (6 milhões de votos contra 5,5). Bernie Sanders abalou as fundações do Partido Democrático dos EUA: Hillary Clinton teve de servir-se de todos os recursos do aparelho para o deter. Em Itália e França, tanto o Movimento Cinco Estrelas como Mélenchon estavam a começar a subir nas sondagens. Houve um impulso popular liderado pela esquerda em todo o mundo ocidental.

Dois anos mais tarde, no entanto, tudo tinha mudado. A fragilidade da dinâmica popular de esquerda abalou alguns apostadores corajosos, que voltaram às zonas de conforto clássicas, talvez impressionados ou intimidados pela sua própria força eleitoral. Dos discursos que bebiam da hipótese nacional-popular latinoamericana (soberania popular, democratização da economia e disputa sobre a universalidade da nação), deslocaram-se para os eixos clássicos da esquerda ilustrada da classe média (ambientalismo, direitos das minorias, europeísmo). A derrota de Tsipras pela União Europeia, após o referendo contra as medidas draconianas de austeridade, foi um golpe do qual foi difícil recuperar.

Em 2017, Donald Trump tornou-se presidente dos Estados Unidos da América, depois de ter vencido Hillary Clinton. Marine Le Pen conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais francesas, num primeiro embate contra Emmanuel Macron que seria repetido em 2022. Em Itália, a Lega alcançou o seu melhor resultado de sempre (16%, a base do que mais tarde se tornaria Fratelli d’Italia) e, em Espanha, o fenómeno VOX começou a tomar forma, que despertaria com uma força poderosa em 2018 (nas eleições andaluzas). Restava a experiência italiana, com o Movimento Cinco Estrelas a liderar um executivo de coligação com o populismo da Lega, após uma importante vitória eleitoral, construída sobre o desafio às velhas elites económicas e políticas.

O mapa já tinha mudado. Agora, mal estreado o novo ano de 2023, a extrema direita governa em Itália, após uma vitória eleitoral esmagadora, revalidou a presidência húngara com Orban, bem como a da Polónia, com o partido Direito e Justiça, VOX detém cerca de 15% dos votos em Espanha, Le Pen conseguiu ultrapassar 41% em França e prepara-se para um assalto ao Eliseu em 2027, tal como Trump se prepara para a Casa Branca em 2024.

Mais uma vez, como na década de 2000-2010, apenas a América Latina se apresenta como o novo farol da esquerda no mundo. Como nessa altura, vários líderes populares ganharam a presidência dos seus respetivos países, sob uma clara aposta de esquerda, não alinhada com qualquer grande potência ocidental, mesmo que sejam agora um pouco mais defensivos e acompanhados de um poderoso rearmamento das suas respetivas direitas nacionais.

O que aconteceu para que a extrema direita assumisse a liderança da direita no Ocidente?

O medo é a emoção dominante na recessão

A crise de 2008 mudou tudo. O colapso do sistema financeiro norte-americano arrastou todas as potências alinhadas com os Estados Unidos da América, enquanto a periferia do mundo (China, Rússia, Brasil, Índia) avançou, tirando partido da fragilidade ocidental para continuar a crescer e a ocupar mercados. Um realinhamento global começou a tomar forma devido à fraqueza dos Estados Unidos da América e à força dos países emergentes. Uma nova arquitetura estava em construção, na qual novos poderes assumiriam um papel de liderança, capaz de conceber o seu modelo com uma grande capacidade de negociação.

Os declínios civilizacionais nunca acontecem da noite para o dia. Demoram décadas a materializar-se. O fim do consenso neoliberal significou, na realidade, o fim da própria crença na superioridade do sistema ocidental em relação a outros sistemas económicos do globo. A esquerda ocidental foi capaz de o ler corretamente na altura e, por essa razão, surgiu a aposta radical num sistema mais justo, que distribuísse riqueza e alterasse as regras do jogo, em conexão com aquele momento destituinte. Havia ainda esperança em poder tomar o poder para transformar as relações de dominação.

Contudo, os velhos fantasmas surgem frequentemente quando tudo parece estar no bom caminho. Foi o cientista político Dominique Moïsi que propôs uma nova forma de compreender a geopolítica para além das relações económicas entre países. Segundo esta forma de pensar, para além dos valores coletivos, há narrativas que moldam os grandes estados de espírito das nações. Assim, Dominique Moïsi propõe-se a falar de uma “geopolítica das emoções”, em que diversas potências atuam sob a influência de diferentes sentimentos: o medo seria a emoção dominante no Ocidente, a humilhação no mundo islâmico e a esperança na Ásia.

Esta forma de olhar para os principais estados anímicos que motivam diferentes governos é bastante explicativa da forma como lidamos com as questões globais. O medo no Ocidente empurra-o na direção de políticas mais centradas na segurança e leva-o a estar constantemente na defensiva no plano ideológico. Se compararmos isto com a atitude do governo chinês, por exemplo, eles são movidos pela confiança num futuro promissor. Eles estão na ofensiva, movidos pela esperança nos seus próprios valores, no seu próprio sistema e na sua própria liderança.

No Ocidente há medo: medo dos refugiados e de um mundo exterior que assoma tragicamente todos os dias nas águas do Mediterrâneo. Medo da Rússia e das novas potências emergentes. Medo das alterações climáticas, medo de protestos sociais que já não podem ser geridos eficientemente, medo de notícias falsas e do populismo. Medo, em suma, do futuro. Este medo é o principal ingrediente de que se alimenta a extrema-direita, que oferece discursos mais tranquilizadores, estruturados em torno do regresso de valores e estados fortes, prontos a lutar face às turbulências do nosso século.

A extrema direita já não é futurista como o velho fascismo italiano ou o nazismo alemão, que prometia a glória de um Terceiro Reich. A extrema direita é reativa e procura, acima de tudo, atenuar os medos decorrentes das ansiedades existenciais que atravessam o Ocidente como um todo. Sem uma esquerda capaz de assumir estas ansiedades existenciais, o terreno será fértil para os seus sucessivos triunfos eleitorais.

A extrema direita não emergiu contra a democracia “burguesa” ou liberal. Eles não estão a abandonar nenhum navio, mas a tomar os seus comandos. A compatibilidade de Giulia Meloni com a União Europeia e a OTAN mostra que a extrema-direita não se opõe às elites europeias, mas que são, isso sim, a sua expressão mais sobreaquecida. Aspiram a assumir os receios que a velha direita liberal já não consegue enfrentar. Aspiram a refundar a Europa numa chave cristã e civilizadora, para a proteger das ameaças que a assolariam.

É neste ponto que eles encontram grande apelo entre o eleitorado e uma grande força em suas hipóteses. Ao contrário de muitos esquerdistas populistas, as expressões de extrema direita dificilmente regrediram eleitoralmente desde que rebentaram na cena política, porque estão inscritas num zeitgeist: são a expressão mais clara do colapso civilizacional resultante da crise de 2008 e da perda de posições do Ocidente no mundo.

O primeiro grande nó para desvendar a força política e discursiva da extrema direita reside nestes elementos geopolíticos, emocionais e políticos. Mas não é o único nó. Há outro nó que precisa de ser tratado como prioritário: a expressão das classes trabalhadoras excluídas do discurso público.

A distância sentimental da esquerda em relação ao povo

Quando em França surgiram os coletes amarelos, um protesto social de uma enorme envergadura, muitas pessoas à esquerda tinham uma desconfiança intuitiva destes “homens” das “províncias”, que se mobilizavam contra o imposto sobre o gasóleo. A mesma desconfiança foi sentida quando, em março de 2022, os camionistas espanhóis encenaram uma marcha atrás contra o governo de coligação por causa do aumento dos preços da gasolina. Foram acusados de serem instrumentalizados pela extrema direita, em vez de receberem ligação emocional às suas exigências (uma justa reivindicação contra uma escalada impossível de aumentos de preços).

Durante a última década, um ódio crescente às classes trabalhadoras foi inoculado em Espanha e no resto do Ocidente. Esta estigmatização, perfeitamente descrita no fenomenal livro Chavs de Owen Jones, tem vindo a derivar para uma completa demonização. Os trabalhadores são retratados como um bando de sexistas e racistas. Longe de combater estes arquétipos, a maior parte da esquerda assumiu estes clichés como seus. Muitas expressões populares são suspeitas. De facto, os ataques ao que tem sido chamado vermelho-pardismo (“rojipardismo“) estão estruturados em torno destes preconceitos. O vermelho-pardismo seria qualquer “esquerda obsoleta”, que não assumisse como seus, entre outros, os avanços do feminismo ou da luta contra o racismo (multiculturalismo).

Na tentativa de alinhar a esquerda com as elites realmente existentes, o disciplinamento discursivo veio do lado da suposta sofisticação dos postulados verdes, liberais e da tolerância para com o diferente. Estas ideias políticas, apresentadas como o auge da cultura, são postuladas como representando um estádio mais avançada do ser humano. Não existe uma análise dos preconceitos de classe destas ideias urbanitas, mas eles operam fortemente nos discursos mainstream.

A globalização criou vencedores e perdedores. Hoje, estamos numa fase que Esteban Hernández descreve como de desglobalização, acentuada pela guerra na Ucrânia, mas há uma parte das elites e das classes médias que continuam a apostar na dissolução das soberanias nacionais, convencidas de que a União Europeia é o melhor horizonte possível. Assim, uma fação esclarecida da classe média (jornalistas, académicos, pessoas das profissões liberais e parte da função pública) acredita numa aliança com as elites globalistas. Olha para cima devido à vertigem que sente quando olha para baixo, para o abismo da precariedade e da pobreza, de que faz parte mais de 35% do nosso país. Essa fação da classe média em desaparição confia em ser incluída no mel do progresso das elites e tem muito medo de ser deixada de fora, na periferia do progresso.

Quem assume os desconfortos, os anseios e as vozes dos que estão na base, se a classe média iluminada se recusa a aliar-se a eles? Pois bem, é a ultradireita que tira partido do flanco. A ultradireita consegue unificar os excluídos de cima (essas elites nacionais que foram excluídas do globalismo) e os excluídos de baixo (os perdedores da globalização) sob um único eixo.

Como explica o geógrafo e ensaísta francês Christophe Guilluy, as classes dominantes são postuladas como sendo a força positiva do progresso, os únicos herdeiros da melhor tradição da cultura ocidental (pureza) e as classes populares deixam de ser uma referência cultural positiva, como eram antes dos anos 1980, tornando-se os perdedores e fracassados do sistema, culpados da sua própria miséria e atraso político-moral. O desaparecimento da classe média, para este autor francês, inaugura uma nova era em que os que se encontram no topo se desentenderão com os que se encontram na base, que serão condenados ao ostracismo cultural e moral. Desta forma, as classes populares são excluídas como sujeitos ativos com uma voz própria.

Esta ruptura entre o mundo de acima e o mundo de abaixo provoca, ao mesmo tempo, que os expulsos da sociedade (as classes populares) construam as suas próprias narrativas que são impermeáveis às narrativas das classes dominantes. Daqui surge o populismo, como um regresso ao povo, uma tentativa de reconstruir a sociedade quebrada pela cisão das elites. No entanto, este populismo pode oscilar entre a crispação autoritária (ultradireita) e uma abertura democrática (republicana).

Para que a expressão popular não seja monopolizada pela extrema direita e não seja redirecionada para lugares escuros, é necessário colocar o bem comum e a ideia de povo de novo no centro das políticas e do discurso. Recuperando a linguagem popular e colocando os valores da comunidade sob uma luz positiva. Uma tarefa importante é afastar-se dos jogos moralistas que as elites utilizam para estigmatizar as classes populares, para reposicionar de novo a referência cultural nas expressões que vêm de baixo. Afirmando o seu próprio projeto, que não está subordinado nem às velhas elites nacionais, nem às novas elites globais, mas que assume o comando das alianças interclassistas.

A ultradireita é uma expressão do colapso do Ocidente. Hoje em dia, é necessário tomar em conta este colapso, para que haja uma solução democrática e popular para as crises que lhe sucederão.

Da mesma forma, é necessário tomar conta das ansiedades existenciais que este colapso está a provocar entre as maiorias sociais (medos e desconfortos profundos), assumindo positivamente uma nova expressividade que aspira a refundar a ideia de povo, face à fragmentação e dissolução do social, propostas pelas elites. Caso contrário, a ultradireita continuará a conquistar espaços políticos, sociais e culturais, acumulando mais vitórias eleitorais. Está nas nossas mãos não permitir que isto aconteça.

*Alejandro Pérez Polo é jornalista e mestre em filosofia pela Universidade de Paris VIII.

Pressões do mercado

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Os movimentos econômicos da sociedade contemporânea são interessantes e nos auxiliam a compreender as movimentações da economia brasileira. Neste ambiente, percebemos os conflitos entre a política econômica do governo e os anseios dos agentes dos mercados, que prezam pelos grandes lucros imediatos, pela desestatização, a desregulamentação e a compra de ativos governamentais, levando o governo a diminuir seus anseios de alterações econômicas, gerando uma verdadeira quebra de braço entre atores fundamentais para a retomada do crescimento econômico, um anseio urgente de uma economia que cresce pouco desde os anos 1980, perde oportunidades estratégicas e se apequena nos grandes desafios contemporâneos, gerando instabilidades e incertezas crescentes.

Essas incertezas e instabilidades estão no cerne das dificuldades dos governos, alterando políticas públicas, mediando conflitos políticos e interesses econômicos, levando os governos a perderem legitimidade com a sociedade, postergando mudanças estruturais, buscando apoio em variados grupos políticos, fragilizando suas medidas e contribuindo para gerar fortes
constrangimentos na sociedade.

Neste cenário, percebemos duas agendas na sociedade brasileira que se enfrentam cotidianamente, uma mais centrada no Estado Nacional, mais intervencionistas, com incremento das políticas públicas, aumento dos investimentos governamentais e, de outro lado, uma agenda mais liberalizante, defendendo interesses privados, incentivando a privatização de empresas públicas e adotando políticas para que os agentes privados ganhem espaços em detrimento dos governos nacionais. Na verdade, estes conflitos existem a muitas décadas e fazem parte de discussões antigas da economia política, onde economistas e cientistas políticos importantes se digladiam para converter seus oponentes, defendendo seus interesses imediatos e usam suas retóricas para angariar novos públicos, novos seguidores e levando as influências para novas regiões.

Muitos dos contendores deste conflito defendem ideias e pensamentos ultrapassados, usando sua capacidade de convencimento para arregimentar multidões para aumentar seu público, defendendo modelos matemáticos ultrassofisticados que pouco auxiliam na compreensão das realidades da sociedade contemporânea. De outro lado, encontramos defensores de teorias antigas que são vistas como a resolução de nossos atrasos e dificuldades, defendendo modelos antigos e sem capacidade de compreenderem uma sociedade que se modificou por completo, exigindo uma atualização constante de seus pensamentos e de seus valores imediatos.

Neste ambiente, percebemos que muitos grupos econômicos e políticos estão defendendo teorias e comportamentos que não coadunam com a realidade contemporânea. Vivemos num mundo centrado por grandes transformações, nesta sociedade percebemos que todos os modelos e paradigmas que sustentaram a sociedade anterior estão em franca desintegração, os modelos econômicos foram alterados estruturalmente, os modelos de trabalho foram transformados pelo incremento da tecnologia, novos modelos de família estão surgindo e gerando transformações constantes, neste cenário, percebemos alterações nos comportamentos e relações sociais, destruindo paradigmas anteriores que embalaram as vivências sociais durante séculos, ou seja, vivemos num mundo em rápidas alterações, diferentemente dos modelos anteriores e marcadas pela rapidez, pelos grandes desafios e novas oportunidades.

A sociedade contemporânea prescinde de uma visão mais ampla dos agentes sociais e econômicos, deixando seus interesses mesquinhos e imediatistas, combatendo formas degradantes de acumulação, fortalecendo a governança das organizações, construindo valores de sustentabilidade, protegendo o meio ambiente, investindo em energias alternativas, canalizando recursos financeiros e monetários para os grupos que querem produzir, facilitando a geração de emprego e renda para que os indivíduos tenham acesso a crédito com taxas de juros condizentes com seus empreendimentos, limitando os grupos rentistas e financistas que limitam os recursos dos investimentos produtivos, além de construirmos um ambiente que garanta uma verdadeira justiça tributária. O caminho é tortuoso, nunca esqueçam, mas os maiores desafios estão no campo político.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/05/2023.

Operação Impeachment, de Fernando Limongi

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Uma leitura instigante para compreender um momento de grande relevância para a sociedade brasileira, “Operação Impeachment”, do cientista Político Fernando Limongi, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), faz um mergulho sobre os movimentos que levaram a queda da presidente Dilma Rousseff. No livro o cientista político destaca o papel da Operação Lava Jato na queda da presidente. Uma leitura memorável e imprescindível para compreendermos o Brasil contemporâneo

A nova cara da pobreza brasileira, por Laura Machado.

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Entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para uma de 29% em 2022

Laura Machado, Professora no Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo.

Folha de São Paulo, 20/05/2023

No início deste século, a pobreza no Brasil tinha um perfil: éramos um país onde a maioria da população vulnerável estava inserida no mercado de trabalho. O retrato da pobreza era o de trabalhadores pobres.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, em 2001, a taxa de ocupação dos brasileiros entre os 10% mais vulneráveis era de 54%. Dá-se o nome de taxa de ocupação à razão entre a população trabalhando e a população economicamente ativa.

Naquele momento, os mais vulneráveis trabalhavam mais de 40 horas por semana, na informalidade, em péssimas condições de trabalho, tinham baixa remuneração e pouca produtividade. Provavelmente as condições de saúde física desses trabalhadores, por conta da sobrecarga, não eram as melhores.

O desafio de política pública para diminuir a pobreza era tornar o trabalho digno: melhorar as condições de trabalho, combater a informalidade, aumentar a produtividade e a remuneração de um grupo de pessoas vulneráveis que majoritariamente estava inserido no mercado de trabalho.

Vinte anos depois, o retrato da pobreza no Brasil mudou. Entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para uma de 29% em 20 22, metade do que tínhamos há 21 anos. Em outras palavras, os mais pobres brasileiros estão fora do mercado de trabalho.

O novo perfil da pobreza é diferente. O retrato é de um grupo de pessoas em busca de trabalho e que não conseguem se inserir há alguns anos. Depois de anos em busca de trabalho voltando para casa sem sucesso, provavelmente as condições de saúde mental dessa população devem ter se agravado.

De acordo com o IBGE, entre os 10% mais pobres que querem trabalhar, 64% não estão plenamente ocupados. Os mais vulneráveis querem voltar ao trabalho e não estão conseguindo.

O desafio para política pública, agora, envolve buscar ativamente essas pessoas excluídas há algum tempo e incorporá-las de volta ao mercado de trabalho.

Concomitante a essa inclusão, a política pública precisa retomar a agenda anterior, de melhoria da condição de trabalho e da produtividade. Precisamos incluir e tornar o trabalho dos mais pobres um trabalho digno.

Muitas são as hipóteses, não testadas, sobre as causas do novo retrato de exclusão do mercado de trabalho. Aumento do salário reserva, aumento do salário mínimo e mudanças tecnológicas são as principais em estudo. Todas as três tiverem avanços importantes em 2023, o que provavelmente acentua a tendência de exclusão em curso.

O problema urge de uma resposta do tamanho da sua gravidade, e quanto mais ele se prolongar, mais difícil se torna a inclusão ao trabalho. De acordo com o artigo 6º da nossa Constituição, o trabalho digno é um direito social assim como saúde, educação, entre outros. A inclusão ao trabalho é um direito e, portanto, um fim em si mesmo.

A transferência de renda aos pobres por si só importa, mas longe de ser suficiente: os brasileiros mais pobres não só têm o direito, mas estão dizendo que querem trabalhar. Precisamos mudar esse retrato.

A culpa foi do impeachment de Dilma? por Celso Rocha de Barros

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Há muito a reconstruir no sistema político após uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 21/05/2023.

A editora Todavia acaba de publicar um livro muito bom: “Operação Impeachmet”, de Fernando Limongi. Trata-se de um dos maiores cientistas políticos brasileiros, autor, com Argelina Figueiredo, de um trabalho clássico que mostrou que o presidencialismo de coalizão funcionava bem melhor do que se acreditava.

Em “Operação Impeachment”, a proposta de Limongi é simples: com base exclusivamente em fatos noticiados pela imprensa (que eram, portanto, de conhecimento dos atores políticos quando tomaram suas decisões), Limongi conta a história que começa nos conflitos internos do primeiro mandato de Dilma e desemboca no impeachment.

Há, entretanto, um arcabouço teoricamente informado que conduz o texto.

Quando Limongi descreve as ações de Dilma ou de seus adversários, está sempre se perguntando: por que aqueles mecanismos que antes funcionavam no presidencialismo de coalizão não funcionaram em 2016? Limongi está conversando com sua própria obra e com 30 anos de ciência política brasileira.

Por outro lado, Limongi não está interessado nos grandes discursos sobre o impeachment. Não tem maior interesse em discutir se foi ou não foi golpe: o que lhe interessa é justamente o fato de que as instituições ainda estavam ali, mas deixaram de funcionar.

Tampouco tem paciência com a historinha “a gente pegou o PT roubando aí foi lá e derrubou a Dilma”. As delações da Lava Jato mostram um cartel de empreiteiras que funcionava havia décadas e financiava todo mundo, inclusive todo mundo que fez o impeachment.

A tese “o problema foi que a Dilma era inábil” é acolhida com bem mais ressalvas do que de hábito: mesmo que Dilma tenha falhado, jogou duro contra seus adversários, ganhou por muitos anos e esteve longe de ser a única que jogou errado.

Limongi também demonstra saudável ceticismo diante da ideia, comum entre alguns petistas, de que Lula no lugar de Dilma teria resolvido todas as crises políticas.

Mas se Dilma jogou, por que caiu? A explicação, segundo Limongi, é a Lava Jato.

Não porque as descobertas da operação tenham inspirado um movimento de massas que derrubou a presidente. Os políticos brasileiros fizeram o impeachment para se defender da Lava Jato, pois não acreditavam mais que Dilma seria capaz de pará-la.

Leitores antigos da coluna sabem que essa também é minha interpretação. No final, a Lava Jato foi mesmo desmontada pela rapaziada que estava do lado de Deltan Dallagnol no discurso da semana passada. Mas a centro-direita que fez o impeachment foi dizimada na eleição de 2018, com consequências terríveis para a democracia brasileira daí em diante.

O que o livro de Limongi nos obriga a perguntar é qual teria sido a reação produtiva do sistema político às revelações da Lava Jato. Do ponto de vista do interesse racional dos atores que fizeram o impeachment, que alternativa havia? Aceitar a prisão quando suas conexões com o cartel das empreiteiras fossem reveladas? Do ponto de vista do país, só havia as alternativas “acordão” e “cruzada fratricida”?

De qualquer forma, o livro de Limongi é importante para mostrar que há muito que vale a pena reconstruir no sistema político brasileiro depois de uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada.

A história do impeachment de Dilma, por Samuel Pessoa.

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Segundo Limongi, com erros e acertos, Dilma fez política, mas não silenciou a Lava Jato

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 21/05/2023

Fernando Limongi, professor titular de ciência política da FFLCH da USP e professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, lançou na sexta-feira (19), pela editora Todavia, “Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato”, com a narrativa dos fatos históricos que geraram o impeachment de Dilma, votado na Câmara em 17 de abril de 2016 e no Senado em 31 de agosto.

Limongi, quase que obsessivamente, nos presta um serviço público: por meio de uma narrativa fluente e enxuta em 168 páginas, acompanhamos em ritmo de thriller a sequência detalhada dos fatos. Todas as referências às notícias da imprensa da época que documentam a reconstituição histórica meticulosa de Limongi estão em 649 notas nas 100 páginas a elas dedicadas em letras pequenas no final do livro.

A edição cuidadosa contém referências bibliográficas e um índice remissivo, que facilita em muito a vida do leitor para recuperar fatos e personagens.

A tese principal do livro, sugerida pela reconstituição dos fatos, é que o impeachment de Dilma foi totalmente diferente do de Collor. Se neste o quarteto crise econômica, povo na rua, falta de articulação política e ocorrência de todos esses fatos no início do mandato explica o impeachment, não é o mesmo caso para Dilma.

Dilma conseguiu por pelo menos duas vezes recentralizar seu governo. Em setembro de 2015, após o MBL dispensar os serviços de Ives Granda Martins e “bater à porta de Hélio Bicudo” —que, assessorado pela também jurista Janaina Paschoal, preparou um novo pedido—, Dilma promoveu uma reforma ministerial. O PMDB recebeu duas pastas adicionais —Saúde, para o deputado do Piauí Marcelo Castro, e Ciência e Tecnologia, para o deputado do Rio de Janeiro Celso Pansera.

Como escreveu Limongi, “a reforma ministerial, portanto, marcou a reaproximação de Dilma e Lula, responsável direto pela reaproximação bem-sucedida com o grupo de Jorge Picciani”.

No segundo momento, no início de 2016, em seguida ao Supremo ter, em dezembro de 2015, derrubado o rito estabelecido pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, deixando o processo em suspenso até fevereiro de 2016, houve o afastamento das principais lideranças políticas do impeachment.

Como escreveu Limongi, “o clima político era outro. O impeachment havia saído da pauta. Tudo indicava que o calendário eleitoral seria seguido”.

Nesse momento, voltou-se a tratar da agenda econômica. O governo, por meio do ministro Nelson Barbosa, ensaiou uma reforma da Previdência e um teto de gastos.

Nesse momento de distensão, a Laca Jato contra-ataca. Primeiro com a Operação Acarajé, em 22 de fevereiro, com 51 mandados, entre eles o de prisão para o marqueteiro de Dilma, João Santana. E, em seguida, em 4 de março, com a Operação Aletheia, com o mandado de condução coercitiva de Lula.

Esses movimentos da Justiça deixaram claro para os políticos que a Operação Lava Jato não iria ficar somente nos executivos das empresas nem somente nos políticos petistas. Iria alcançar a todos eles. Em uma ação de salvamento desesperada, o impeachment foi a saída que os políticos encontraram para tentar “estancar a sangria” promovida por Curitiba e pela Procuradoria-Geral da República na pessoa do procurador Rodrigo Janot.

Se entendi corretamente, essa é a narrativa de Limongi. E é nesse sentido que o impeachment de Dilma seria intrinsicamente distinto do de Collor: com erros e acertos, Dilma fez política. O que ela não conseguiu entregar foi o silenciamento da Lava Jato, aliás, produto que Temer também não entregou.

Adicionalmente, o fato de que, após sete anos do impedimento de Dilma, os políticos não se movimentaram para alterar a lei de impeachment de 1950, uma simples lei ordinária, sinaliza que a classe política gosta de ter à mão esse “remédio amargo” de solução de crises políticas agudas.