Americanas, do eufemismo à fraude, por Thiago Amparo

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Falta aos nossos capitalistas o devido escrutínio sobre as entranhas da corrupção privada

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 15/06/2023

“Se vocês acham que o Brasil é um negócio que vai virar EUA, vocês estão no lugar errado. O Brasil não será EUA. Porque o Brasil é o país do coitadinho, do direito sem obrigação e é o país da impunidade. Isso é cultural. Não vai mudar.” As palavras são do bilionário Beto Sicupira, em entrevista de 2014.

Corta para 2023: o trio de acionistas de referência da Americanas —Lemann, Telles e o próprio Sicupira— podem ser convocados pela CPI para explicar a maior fraude corporativa da história.

No país em que a Justiça nega habeas corpus para um homem negro torturado por mera suspeita de furtar duas caixas de bombom, é estarrecedor que tenhamos usado por meses o eufemismo de “inconsistências contábeis” para descrever a fraude, agora admitida pelas Americanas na casa dos R$ 25 bilhões. Nos anais do capitalismo brasileiro, para usar o termo da revista Piauí, o que o jornalismo quer da gente é coragem de chamar as coisas pelo que elas são: tortura, chacina e fraude, para citar três exemplos. A Folha, neste ponto, tem produzido boas matérias a respeito.

Interessante, ademais, a comparação com os EUA na fala de Sicupira: foi justamente em 2014, mesmo ano da preleção do bilionário que ilustra a miopia do capital brasileiro, que um estudo de professores de Princeton e da Northwestern concluiu, a partir da análise de 1.779 decisões políticas, que os EUA deveriam ser melhor enquadrados como uma oligarquia de interesses econômicos, não uma democracia majoritária.

Em terras brasis, somente em maio deste ano que a Receita Federal começou a divulgar as empresas com Benefícios fiscais de diversas ordens, alguns justificáveis, outros muitos não. O valor é o dobro do avaliado até o momento na fraude da varejista. Sobra discurso moralista dos nossos capitalistas, falta mesmo é escrutínio sobre as profundas entranhas da corrupção privada.

Se vocês acham que o Brasil é um negócio que vai virar EUA, vocês estão no lugar certo.

Carta Mensal – Maio 2023

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A sociedade vem vivendo momentos de grandes expectativas, embora um novo governo tenha tomado posse no primeiro dia de janeiro de 2023, percebemos que vivemos em períodos de grandes conflagrações, desequilíbrios políticos e conflitos desnecessários, que limitam a capacidade de organização e de gestão do Estado, além de dificultar a reconstrução da economia nacional, atuando diretamente nas questões urgentes e prementes para a sociedade.

Neste ambiente, percebemos inúmeros confrontos econômicos, políticos e ideológicos, onde os atritos ainda prosperam, limitando as políticas públicas e postergando um cenário mais positivo, depois de um período de forte degradações institucional, econômica e política.
O governo do presidente Lula adota como uma estratégia de governabilidade bastante arriscada, de um lado não entra em conflitos abertos com outros grupos antagônicos, evitando brigas abertas com os grupos de direita e de extrema direita, que dominaram o ambiente político no governo anterior e, ao mesmo tempo, costura avanços econômicos para ganhar musculatura e garantir apoios maciços para impor seus ideais e formas de gestão.

A estratégia passa por alavancar a economia, tão degradada neste período anterior, retomando os investimentos públicos como forma de aumentar os investimentos privados, aumentando a geração de emprego, melhorando a renda agregada, reduzindo as taxas de juros e trazendo alívio para o sistema produtivo, criando um clima mais ameno para atrair investidores externos, melhorando o cenário interno e retomando o crescimento econômico.

Neste mais de cinco meses de governo, os saldos são controversos, de um lado, percebemos que os indicadores macroeconômicos estão melhorando sensivelmente, as perspectivas de redução da inflação estão melhorando, embora os juros ainda estejam muito elevados, os níveis de desemprego estão melhorando lentamente, a moeda local está se valorizando, as Bolsas de Valores estão apresentando crescimentos robustos e os ventos externos estão muito positivos, afastando uma visão negativa do Brasil criada no governo anterior, que afastava investimentos produtivos e eram vistos como uma nação pária do sistema internacional.

O arcabouço fiscal enviado pelo governo federal para o Congresso Nacional está avançando, na Câmara dos Deputados as votações foram aprovadas e, atualmente, estão sendo discutidas no Senado Federal, gerando um clima positivo para que as questões sejam equacionadas, embora percebamos que esse novo regime fiscal exige um grande esforço do Estado para aumentar as receitas do governo Nacional para cumprir as regras definidas neste modelo, reduzindo os subsídios e aumentando a arrecadação, trazendo para o centro dos debates econômicos uma agenda tão aguardada e, ao mesmo tempo, postergada para a comunidade nacional, a Reforma Tributária.

É importante destacar ainda, nos últimos dias, um novo assunto está voltando para as discussões cotidianas, a reindustrialização da economia brasileira, um país que se desindustrializou rapidamente, perdendo espaço na indústria internacional, perdendo força na nova configuração econômica global, perdendo empregos mais qualificados e um perda de renda agregada, tudo isso, contribuiu para visualizar um empobrecimento da população nacional em detrimento de um forte crescimento do poderio econômico e financeiro de poucos grupos social, aumentando as desigualdades e fragilizando os desequilíbrios estruturais da sociedade.

O novo governo está trazendo novos ventos para os setores industriais, retomando o crescimento industrial e melhorando as condições de vida da população. No começo do século XX, os industrializantes acreditavam que a indústria traria um forte desenvolvimento econômico para o Brasil, aumentando a renda interna e transformando a estrutura nacional. Apesar da importância do setor industrial, o crescimento industrial foi central para o incremento do produto interno, aumentando as riquezas nacionais, mas ao mesmo tempo não conseguiu elevar a nação ao tão sonhado desenvolvimento econômico.

Nesta trajetória de crescimento industrial, é importante destacar que o desenvolvimento da indústria exige grandes esforços de inovação, de pesquisa científica e tecnologia, com dispêndios crescentes e constantes, afinal a indústria não é um monolito, exige alterações constantes e imediatas.

Outro assunto importante e central nas discussões no mês de maio, foi o papel da mídia comercial e corporativa, seu papel de desestabilização do governo é gigantesco, defendendo um liberalismo atrasado e ultrapassado que não existe em nenhum lugar do mundo, até mesmo os países descritos como liberais, como os Estados Unidos e Europa, abandonaram as defesas constantes de seus ideários, trazendo medidas protecionistas e intervencionistas como forma de fortalecer seu setor produtivo e se capacitar para a concorrência com os países asiáticos, principalmente a China, a Coréia de Sul e Taiwan, países que ganharam espaço e relevância na estrutura global nas últimas décadas, defendendo políticas protecionistas, maciços investimentos em educação, fortes subsídios internos e a busca crescente de novos mercados internacionais.

Neste ambiente, percebemos que o atraso da mídia corporativa e comercial está ligado aos grupos econômicos que os controlam, uma elite atrasada, subserviente e altamente dependente dos centros internacionais sediados nos Estados Unidos e na Europa, um verdadeiro colonialismo cultural, ideológico e financeiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Economia Solidária

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Estamos vivendo momentos de grandes apreensões, o aumento da concorrência está reformulando as estruturas econômicas e produtivas globais, exigindo movimentações crescentes, estratégias claras e visões sistêmicas para conseguir sobreviver. Nesta nova sociedade, percebemos o crescimento da tecnologia todos os dias, falamos cotidianamente na Inteligência Artificial, na robótica, na Impressão 3D, na Internet das Coisas, além da nanotecnologia, da biotecnologia, as ciências dos materiais, todas impulsionadas pela Indústria 4.0.

Neste cenário, as transformações econômicas estão fomentando novos modelos de negócios, novas formas de organização social e política, estamos percebendo o fortalecimento do conceito de Economia Solidária, que podemos definir como uma forma de produção, consumo e distribuição de riquezas na sociedade, centradas na valorização do ser humano, não apenas do capital, uma verdadeira revolução numa sociedade marcada pelo imediatismo, na concorrência crescente e no imediatismo.

Nesta sociedade, percebemos que a concorrência é sempre algo salutar e nos traz grandes avanços na comunidade, impulsionando novos modelos de negócios e estimulando a geração de riquezas e melhorias no bem-estar da sociedade, mas imprescindível destacar, que esta concorrência é totalmente desigual, de um lado percebemos atores altamente capitalizados e dotados de grande poder financeiro e forças políticas e, de outros, atores fragilizados e com grandes dificuldades de competição, num mercado desigual, centrado nos monopólios ou oligopolizados, centrados no imediatismo e no individualismo, gerando desigualdades crescentes e fortes degradações do meio ambiente.

A ascensão da economia solidária deveria ser vista como um avanço na comunidade internacional, seu modelo de negócio coloca os seres humanos no centro das visões econômicas e produtivas, vislumbrando uma sociedade mais cooperativa, mais solidária e fortemente centradas de convivência harmoniosa, remontando os melhores valores da história das civilizações.

A sociedade internacional vem passado por grandes desafios no século XXI, depois de variadas crises financeiras e alimentares, além das alterações climáticas, percebemos o incremento da pobreza e da indigência, neste cenário, percebemos um profundo questionamento do modelo produtivo convencional em curso na sociedade e das estratégias de desenvolvimento econômico, que beneficia os ricos em detrimento dos grupos mais fragilizados. Há, cada vez mais, o reconhecimento de que o modelo de negócio adotado na economia internacional não pode resolver os principais desafios do desenvolvimento contemporâneo, sendo necessário construir modelos integrados e sustentáveis em todos os níveis, incorporando nestes cenários aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais, além de reconhecer as interligações entre os mais variados aspectos da sociedade.

A economia social e solidária tem como objetivo central a proteção do meio ambiente e o
fortalecimento econômico e político dos grupos sociais mais desfavorecidos e de outras pessoas e organizações que se preocupam com a justiça social e ambiental, trazendo para a sociedade instrumentos efetivos para as melhoras climáticas e de desenvolvimento sustentável. Neste ambiente, percebemos que a economia solidária deve ser vista como uma alternativa para o capitalismo contemporâneo, infelizmente centrados no imediatismo, na busca crescente dos lucros monetários e centrado no individualismo.

Destacamos ainda, que a economia solidária apresenta um papel diferenciado para as pessoas comuns, mais ativos e dinâmicos nas mais variadas dimensões da vida humana: econômico, social, cultural e ambiental. Neste novo modelo de negócio, a economia solidária existe em todos os setores da economia – produção, finanças, distribuição, câmbio, consumo e governança. Dessa forma, percebemos que a economia solidária está transformando estruturalmente a teoria econômica convencional.

Economia Solidária, Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente são desafios imensos para inaugurarmos um novo momento da sociedade internacional, para isso, precisamos de valores sólidos, ousadias, lideranças e solidariedades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/06/2023.

Junho de 2013 e a falência do sistema político, por Camila Rocha.

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Manifestantes protestavam, em sua larga maioria, por um aprofundamento de direitos previstos na Constituição

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Folha de São Paulo, 12/06/2023.

Ainda hoje, muita gente continua sem entender junho de 2013.
Na época, uma entrevista com o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, era anunciada com a seguinte manchete: “Ministro de Dilma diz que ainda não entendeu protestos pelo Brasil”.

Na entrevista, realizada no dia 18 de junho, quando teve lugar o sexto ato organizado pelo Movimento Passe Livre, Carvalho afirmava que os atos eram baseados em “novas formas de organização de mobilização que ainda não compreendemos”.

Acostumado a lidar com o que classificou como manifestações tradicionais, munidas de carros de som e lideranças claras, o ministro não conseguia entender como era possível que atos pudessem ocorrer de outra forma.

Apontou que todos no governo haviam sido pegos de surpresa e, ao procurar receber manifestantes que protestavam em Brasília, se deparou com a presença de apenas duas pessoas, uma estudante de 21 anos, que havia sido agredida por um policial, acompanhada pelo pai.

Para além da descentralização e da horizontalidade, a crescente ambiguidade ideológica dos manifestantes à medida que os protestos se alongaram no tempo dificultou ainda mais a tarefa de discernir o que se protestava afinal.

Os atos iniciados pelo Movimento Passe Livre no dia 6 de junho possuíam uma pauta bastante clara: tarifa zero no transporte público. No entanto, com o passar do tempo, demandas das mais diversas foram se avolumando nas ruas e nas redes digitais.

No dia 18, por exemplo, mesmo dia em que Carvalho concedeu sua entrevista, o grupo Anonymous Brasil divulgou nas redes sociais um vídeo intitulado “As cinco causas”.

O vídeo, que rapidamente alcançou 2 milhões de visualizações, demandava: “não à PEC 37”, “saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Congresso Nacional”; “imediata investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal”, “por uma lei que faça da corrupção crime hediondo” e “fim do foro privilegiado para políticos”.

No dia 20 de junho, quando mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em 388 cidades brasileiras, uma pesquisa de opinião pública conduzida pelo Ibope procurou mapear, afinal, o que queriam os manifestantes.

A sondagem revelou que a motivação principal de 37,6% estava relacionada ao transporte público, dentre os quais 27,8% se posicionavam a favor da redução da tarifa.

Em seguida, 29,9% dos respondentes afirmaram que estavam nas ruas por conta de demandas relacionadas ao sistema político, sobretudo contra a corrupção (24,2%).

Os demais protestavam por melhorias na saúde (12%), educação (5,3%), contra a PEC 37 (5%), contra os gastos com a Copa (4,5%) e contra a violência policial (1,3%), entre outros motivos.

Assim é possível concluir que, independentemente da coloração ideológica, os manifestantes reunidos em junho de 2013 protestavam, em sua larga maioria, por um aprofundamento de direitos previstos na Constituição de 1988.

Contudo, como aponta Dilma Rousseff no livro “Junho de 2013: A Rebelião Fantasma”, se depararam com um sistema político falido, pouco democrático e que “serve de contenção à soberania popular”.

Chutando a escada da periferia novamente, por André Roncaglia.

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É hora de o ocidente rico difundir ao plano internacional a democracia que defendem em seus países

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 09/06/2023

Há uma nova onda no ar: reabilitar o livre comércio como a escada para o desenvolvimento compartilhado das nações. Na semana passada, a diretora-executiva do FMI (Fundo Monetário Internacional), Kristalina Georgieva, criticou a formação de grupos regionais de comércio, baseados em proximidade geográfica (near-shoring), em valores comuns (friend-shoring) ou em políticas que internalizem setores que antes dependiam de importações (reshoring).

Georgieva foi cuidadosa em explicitar os benefícios do comércio, mas optou por ser telegráfica ao salientar seus limites. Defendeu “acordos sobre a redução de subsídios nocivos à pesca, remoção de barreiras à doação de alimentos e ao acesso à propriedade intelectual por trás das vacinas Covid”. Segundo ela, a oportunidade virá na próxima reunião ministerial da OMC em fevereiro de 2024.

O tom cuidadoso tem, pelo menos, três razões de ser. Primeira, a atual fragmentação geopolítica e comercial, bem como o bloqueio ao acesso às vacinas foram promovidos pelos maiores quotistas do FMI: EUA e Europa. O norte global também teve protagonismo nas sanções comerciais e tecnológicas contra a China, o avanço da Otan nas vizinhanças da Rússia e as tensões no estreito de Taiwan. Segunda, como relembrou o nobelista Joseph Stiglitz, é conversa para boi dormir o compromisso do governo Biden com os valores da OMC (Organização Mundial do Comércio) a saber: concorrência justa, abertura, transparência e o estado de direito. Afinal, desde os distópicos anos de Trump, os EUA ainda não permitiram a nomeação de novos juízes para a câmara de arbitragem da OMC. Segundo reportagem da Reuters, o órgão não poderá tomar medidas contra violações das regras do comércio internacional antes do final de 2024.

O terceiro motivo é que a violação dos valores liberais está vindo exatamente dos EUA, o país que escreveu as regras do comércio internacional que delimitaram a ordem neoliberal por 40 anos.

Como salienta Stiglitz, ao adotar políticas industriais, os EUA e a Europa estão reconhecendo abertamente que estas regras envelheceram. Cui bono? Os países em desenvolvimento poderiam ter ignorado as regras de propriedade intelectual de maneira igualmente explícita, salvando dezenas de milhares de vidas durante a pandemia. Não o fizeram por que sabem como a banda toca no contexto internacional. Mas se você, leitora, não sabe, vou lhe dar uma ilustração.

O artigo de Douglas Irwin, também publicado pelo FMI, revela os “dois pesos, duas medidas” que marcam a dinâmica centro-periferia no capitalismo. Diz Irwin que o futuro da globalização está em jogo. Países ricos estão se voltando para dentro para proteger setores-chave com subsídios industriais, controles comerciais focados em punir rivais geopolíticos, em preocupações ambientais e em garantir o abastecimento doméstico e a segurança nacional.

Mas ao refletir sobre como os países emergentes podem se beneficiar desta mudança, Irwin é taxativo: “subsídios industriais em larga escala parecem ser um luxo ao qual os países ricos podem se dar. Só porque os EUA, a China e a UE podem pagar subsídios não significa que outros devam copiá-los”. Só o livre comércio pode salvá-los. Será?

Esta estratégia é antiga. Em meados do século 19, Friedrich List, economista alemão, revelou o “expediente muito comum e inteligente de quem chegou ao topo da magnitude chutar a escada pela qual subiu a fim de impedir os outros de fazerem o mesmo. Não é outro o segredo da doutrina cosmopolita de Adam Smith…”.

Neste processo de redefinição das regras do comércio global, é fundamental que os países da periferia tenham mais voz. É hora de o ocidente rico difundir ao plano internacional a democracia que defendem em seus países.

2013: levante de muitos ninguéns, por Pimenta & Flores.

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Por Alexandre Marinho Pimenta & Paulo Henrique Flores

A Terra é redonda, 08/06/2023

O legado e o significado principal de 2013 continuam em disputa.

No dia 20 de junho de 2013, logo após o anúncio de revogação do aumento da tarifa de transporte de São Paulo, pelos já então parceiros Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, uma charge de Angeli foi publicada no jornal Folha de S. Paulo. Da maneira que apenas a arte pode realizar, trata-se de uma síntese impressionante daquele momento. De um lado, três homens minúsculos, todos de terno, fazem uma pergunta: “afinal, quem vocês pensam que são?”. De outro, pessoas enormes, cujos sapatos surrados são do tamanho dos homens. Não há resposta. A grandeza diz por si só.

A charge não capta os rostos dos gigantes. Não são identificáveis. E, além de seus tamanhos desproporcionais, são muitos. Amotinados, formando uma turba. Se pudessem falar, como nos lembra Vladimir Safatle, responderiam como um manifestante a uma jornalista em 2013: “anota aí, eu sou ninguém!”.

Junho de 2013 completa dez anos. Como todo grande evento histórico, mesmo diante de inúmeros esforços de análise, Junho continua a ser, em vários aspectos, uma incógnita. Seus manifestantes, grandes esfinges. Diante das inúmeras e conflituosas interpretações que voltam a circular por conta do decênio, vê-se também que o legado e o significado principal de 2013 continuam em disputa.

A despeito de todas as minúcias históricas, não se pode negar que 2013 foi um levante popular. Uma onda de protestos surgida contra a carestia, depois em repúdio à violência policial, e alimentada pela insatisfação que se difundia junto à desaceleração econômica.

Enquanto levante popular, também não foi nenhuma jabuticaba brasileira: de certa forma, o 2013 brasileiro fecha um ciclo de lutas globais do início da década anterior. As massas em vários cantos do mundo já estavam reagindo contra os efeitos da crise de 2008 e a opressão governamental.

Esse levante de vários ninguéns, das classes dominadas em suas diversas gradações, não foi também um raio em céu azul por aqui. Em 2012 já se registrava um aumento no número de greves no país, desde as revoltas operárias nas construções de usinas hidrelétricas até a histórica greve da rede pública federal de ensino. Em 2013, as greves explodiram e, juntamente com os protestos de rua, continuaram nos anos seguintes em alto patamar.

No entanto, “Junho talvez seja a primeira grande revolta popular na história brasileira a ter sido demonizada pela esquerda —por parte dela, pelo menos” (Marcos Nobre, Folha de S. Paulo, 03.06.2023). Ora, o mais atingido com a revolta foi o governo central do país, à época do PT. E, como de 2013 para frente, o arranjo petista sofreu duros golpes e uma nova extrema-direita se apresentou no país, junto a uma profunda crise econômica e política, a defesa de 2013 enquanto um “ovo da serpente” se tornou comum nos meios desta esquerda.

Na realidade, tal tese diz mais desta dita esquerda do que de 2013. Ao acusarem a óbvia e esperada disputa e infiltração da direita ao longo do levante e seus desdobramentos, ou, ainda mais absurdo, traçarem uma linha reta entre junho de 2013 e a marcha fascista de 08 de janeiro, enquanto expressões da “anti-política”, só podem apontar, ao fim, para sua própria imagem refletida.

É, no mínimo, sintomática a acusação de que no então (e ainda) atual estado de coisas qualquer movimento anti-institucional fosse antidemocrático ou um embrião do autoritarismo. Fazer essa acusação é acusar, na verdade, sua própria posição nos acontecimentos, porque pressupõe que se afirme que o sistema institucional da República de 1988 é o de uma democracia a ser mantida e defendida.

Mas um dos problemas mais importantes que os eventos de junho de 2013 permitiu recolocar foi justamente este: a República de 1988 é uma forma política adequada para a expressão dos interesses e desejos das classes trabalhadoras ou uma República da Propriedade, antipopular e oligárquica? O fato de que a estrutura econômica capitalista neocolonial e o mesmo aparelho repressivo do Estado se mantêm desde a ditadura empresarial-militar de 1964 são índices suficientes para dar uma resposta concreta ao problema.

Acusar os eventos de 2013 de terem produzido a nova direita brasileira é, para bom entendedor, acusar o PT e seus satélites enquanto “partido da ordem”, a temer aqueles que, com sua insatisfação, naquele ciclo de lutas, não se enquadraram na teia da institucionalidade vigente.

É perfeitamente legítimo, então, entender que o verdadeiro nome desta esquerda é o de “esquerda da ordem”. Os acontecimentos demonstram que, ao se tornar “sistema”, gestor desse regime de exploração, esse campo político já não pode mais ser bandeira de nenhum levante dos ninguéns – e, como os conservadores de todos os tempos, oferecem apenas repressão e difamação em resposta.

Que se tire a prova real: afinal, onde estavam as forças da direita teológico-política nos dez anos de “calmaria” que precederam 2013? E o latifúndio? Quem afiançou as aventuras dos militares no Haiti, em que assumidamente começaram a programar sua volta à cena política? Questões incômodas, é certo, mas importantes para indicar qual foi a esquerda que de fato alimentou os embriões do fascismo.

2013 marcou, a seu modo, como não poderia deixar de ser, a longa história das rebeliões do país. Àqueles que se colocam do lado dos dominados, cabe, é claro, fazer suas críticas às organizações, forças e movimentos que atravessaram o levante, mas visando sempre o avanço daquela resistência e em nome do direito de viver dignamente para a imensa maioria.

2013 demonstrou que quando os sem nome e sem rosto se levantam, desorganizam o jogo dos homens de terno. Que eles não são tão intocáveis quanto parecem, atrás de seus caveirões e escudos da tropa de choque. Que, como diz Paulo Arantes, podemos revidar.

Porém, sem dúvida, o levante encontrou falhas e foi derrotado. Não porque se ousou lutar mesmo contra aqueles que dizem ser nossos representantes e se perturbou o frágil equilíbrio que permitia uma democracia racionada – sendo o reforço da direita uma espécie de castigo divino por tamanho pecado. Mas porque não se encontrou à época as formas de manter o levante de pé, resistindo aos ataques cada vez mais duros dos homens de terno. E, como consequência de tal fracasso, nossa vida piorou desde então, sem conseguirmos reagir à altura.

Fomos incapazes de gerar saldos políticos e organizativos daquele levante e é exatamente isso o que nos falta ainda hoje. Organização: é o que faz toda diferença em enfrentar altas e baixas, avanços e reveses comuns a toda luta. Nos faltou e ainda nos falta uma institucionalidade outra, sob outra diretriz política – que não esteja amarrada nas mil armadilhas dos aparelhos estatais e privados dos dominantes, nem na fluidez cada vez mais manipulável das redes. Eis uma questão que merece o melhor de nossos esforços teóricos e práticos. A destituição dos dominantes e a constituição autônoma do poder dos dominados impõe a resolução deste problema que 2013 abriu, mas que ainda não resolvemos.

Diferente daqueles que gostariam que 2013 nunca tivesse existido, é preciso dizer, por fim, que não há ilusão mais perigosa do que o desejo por um tempo histórico enquanto uma passagem indolor, gradativa. Esse sim é um ovo que gera muitos monstros. Os acontecimentos de 2013 traçaram, entre nós à esquerda, uma verdadeira linha de demarcação, que a ascensão do fascismo só tornou mais grave. Trabalhar na resolução dos problemas que temos, dos problemas que são nossos, tem como pressuposto analisar e entender essa demarcação. Essa é, talvez, a condição de encontrarmos o fio que nos leva para a saída do labirinto infernal em que estamos.

*Alexandre Marinho Pimenta é doutorando em educação na UnB.
*Paulo Henrique Flores é doutor em filosofia pela PUC-Rio.

Brics: Assim o Sul global desafia o Ocidente, por Pablo Bustinduy.

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Bloco aposta em aliança com o Sul e visa forjar um mundo de poderes regionais autônomos, sem a tirania do dólar, do FMI e do Pentágono. A ordem hegemônica de EUA e Europa está em xeque. Uma nova poderá ser forjada, sob outros valores?

Pablo Bustinduy, Deputado do partido Podemos por Madri, Espanha, foi porta-voz do Grupo Parlamentar Unidos Podemos na Comissão de Relações Exteriores do Congresso dos Deputados.

Outras Palavras, 06/06/2023

Um sentimento de estranheza se espalha pela política euro-atlântica. Em um artigo publicado recentemente em El País, o historiador Luuk van Middelaar resumiu isso como um sinal dos tempos: a Europa e os Estados Unidos se sentem sozinhos em um mundo cada vez menos alinhado com seus interesses. É fato que vários parceiros estratégicos do bloco operam com crescente autonomia em relação às suas prioridades. Há meses esse sentimento se reflete no mapa das sanções contra a Rússia: os 45 países que as assinaram equivalem a 61% do PIB mundial, mas apenas 36% da população. A guerra na Ucrânia aprofundou ainda mais as fronteiras entre o Norte e o Sul globais. A recente viagem diplomática de Lula transformou esse distanciamento em uma ameaça potencial: uma vontade própria dos países do Sul, desvinculada de interesses atlânticos, como disposição para deslocar o eixo da resolução do conflito para fora do continente europeu.

No entanto, o que mais preocupava Van Middelaar (que não é um formador de opinião qualquer: Perry Anderson apresentou-o neste retrato ácido como um símbolo do poder político e intelectual de Bruxelas) não era essa proposta de mediação, mas um comentário informal no qual Lula se questionou por que “todos os países têm que fazer suas transações em dólares”. Ainda mais do que a ideia de uma solução para a guerra desalinhada com os tempos e a linguagem do eixo transatlântico, este questionamento do dólar como moeda global foi lido como um verdadeiro desafio. É o espírito que inspirou a construção dos BRICS – a ideia de um contrapoder ao domínio atlântico sobre a globalização, a ideia de um mundo em que os poderes regionais se organizam autonomamente – revivido no pior momento possível para esse domínio, já que se encontra sob pressão de várias frentes e carece de uma estratégia clara de médio prazo.

Em um artigo de grande lucidez, o jornalista Wolfgang Münchau explica em que consiste exatamente essa ameaça. Não é simplesmente uma questão de os países do Sul substituírem uma moeda operacional por outra; nem mesmo que avancem na construção de suas próprias instituições financeiras. Este é um processo muito mais longo e complexo que afeta as estruturas produtivas desses países, suas cadeias de valor e suprimentos e os fluxos comerciais entre eles, que devem ser reorganizados para orbitar em torno de um novo centro. E para isso, a primeira economia que deve ser profundamente transformada é a da China, que também deve desenvolver uma enorme capacidade de coordenação e gestão regional, tanto econômica quanto politicamente. Essa é a outra perspectiva dos debates sobre o reordenamento da globalização. É a visão do outro lado.

Estamos realmente caminhando para essa situação? Existem análises conflitantes sobre quais seriam as intenções da China a esse respeito. Por um lado, proliferam as tentativas de lançar uma sombra antagônica sobre a sua posição no conflito europeu: a China estaria pagando a sua aliança com a Rússia e a atitude cada vez mais agressiva dos seus parceiros, o que significa que cada aproximação a Pequim significa aumentar o risco de um confronto indireto com os Estados Unidos. Por sua vez, as ambições chinesas teriam desencadeado reações defensivas em toda a região do Pacífico, e o fortalecimento da aliança Quad (EUA, Índia, Japão, Austrália) como contrapeso regional a essas ambições. Os que apostam em Washington na estratégia aceleracionista se apoiam nesta leitura: o objetivo é deter a China antes que seja tarde demais.

Por outro lado, não há dúvida de que o salto diplomático de Xi Jinping acumulou importantes sucessos nos últimos meses. A influência da China como potência mediadora é crescente e já se estende ao Oriente Médio e à Europa, como atesta o histórico acordo entre o Irã e a Arábia Saudita e o lançamento de seu plano de paz para a Ucrânia, ignorado por Washington e pela União Europeia, mas não é assim para Zelensky. Nos últimos meses, até 19 novos países se inscreveram para ingressar no BRICS: uma lista que inclui Egito, Argélia ou Argentina, além dos governos de Riad e Teerã. Na confusão da globalização, à medida que a arquitetura de comércio e segurança que governava o mundo está enfraquecendo em vários aspectos, a perspectiva de uma aliança de potências regionais não alinhadas parece mais promissora do que o alinhamento com os mandatos do FMI e do Pentágono.

Qual é a posição da Europa em relação a esses processos? Nas últimas semanas, a política externa europeia deu origem a um verdadeiro caos. O presidente francês, Emmanuel Macron, deslocou-se a Pequim e saudou a iniciativa chinesa para a Ucrânia, numa viagem acompanhada por Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que manifestou uma posição muito diferente em nome das instituições europeias. A Alemanha, por sua vez, continua fazendo malabarismos para manter o mercado chinês aberto para suas exportações, enquanto tenta liderar o esforço de guerra europeu e a futura reconstrução da Ucrânia. Enquanto isso, a atlantista Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, ameaça tirar seu país da Rota da Seda e, ao mesmo tempo, se envolve em uma disputa diplomática com a França sobre as políticas de imigração de seu governo. O sociólogo Wolfgang Streeck leu nesta algaravia uma profunda divergência de interesses entre a França, inclinada a uma cessação das hostilidades que permita a reintegração da Rússia num espaço econômico e de segurança comum, e a posição alemã, ancorada num atlantismo que procura conter a ascensão política dos países do Leste, mas ao mesmo tempo temerosa de que Washington esteja preparando um salto para o Pacífico que acirraria ainda mais o conflito ucraniano e teria consequências gravíssimas para sua economia.

A essas diferenças internas somam-se as fissuras cada vez maiores na estratégia externa da coalizão transatlântica. A próxima cúpula do G7 nasce dividida, mais uma vez, por divergências sobre a estratégia a seguir com Moscou (desta vez é o Japão que se opõe a um bloqueio total das exportações para a Rússia). Mas também pela falta de solução para os conflitos regulatórios que o IRA trouxe: cada um se prepara por conta própria para uma grande reorganização tecnológica, industrial e comercial sem saber em que princípios assentam esses esforços nem para qual horizonte geral deveriam apontar. As gravíssimas emergências que hoje se acumulam não têm diagnóstico nem proposta conjunta de solução. A posição atlântica suspeita de um mundo dividido, cada vez mais distante de si e mais antagônico, mas sua principal fraqueza não vem de seus adversários, nem mesmo de sua falta de unidade interna: vem da ausência de uma visão geral do mundo por vir, e um projeto que ofereça segurança suficiente para poder ser compartilhado.

Cães de guarda da ordem social, por Luiz Marques.

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Luiz Marques, é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

A Terra é Redonda – 06/06/2023.

As crises políticas nascem e crescem na medida em que se esfarela a credibilidade dos valores de um dos polos da disputa, na opinião pública

A mídia corporativa, que não aceita posições dissonantes entre “colaboradores”, defende a liberdade de expressão somente fora de sua jurisdição. Era postiça a indignação manifesta com a recepção oficial ao presidente da Venezuela, vindo a Brasília para o encontro de lideranças das nações latino-americanas, no Itamaraty. Mandatários de esquerda e direita estiveram presentes, à exceção do Peru que destituiu o governante. O objetivo foi fortalecer o continente em um mundo hegemonizado pelo Consenso de Washington (1989), que não trouxe o prometido crescimento econômico sustentável, com geração de empregos e distribuição de renda.

Para não fugir à regra lesa-pátria, remanescente do período colonial-escravista, os “caranguejos” do jornalismo nacional preferiram agourar o evento, em vez de divulgar a articulação pluralista para o reerguimento da Unasul. A alegação beirou o cinismo: “Cada corrente tem seus ditadores de estimação”. Como se a formação de um bloco político regional tivesse por critério, para recordar as categorias deontológicas de Max Weber, a identidade fundada em uma “ética da convicção”, e não na “ética da responsabilidade” ao lidar com a globalização.

Beirou a hipocrisia, idem, pelo negacionismo sobre a condição de chefe de Estado de Nicolás Maduro: “A decisão de estender o tapete vermelho poderá trazer mais prejuízos do que lucro”. Aos Estados Unidos? Aos promotores da agenda neoliberal? À direita neofascista? Desnecessário catar pelo em ovo. Tratou-se simplesmente de buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina – sem o complexo de vira-lata.

Para uma noção do inescrupuloso jornalismo no Rio Grande do Sul, recomendo a leitura do relato de Carlos Águedo Paiva “A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS”, publicado na Rede Estação Democrática (31/05/2023). Uma ótima reflexão sobre a escalada neoliberal em terras sulinas, e a intervenção da imprensa na arquitetura desse processo político-ideológico. No redemoinho, a crítica afundou no fosso entre o povo e a nação, sem forjar a contra-hegemonia.

A contrarrevolução

Falta à mídia e setores da vanguarda do atraso um programa de empoderamento transnacional em um contexto histórico multipolar, para inserir as demandas dos plebeus (nosotros). Prevalece o olhar hipostasiado e submisso frente ao erodido imperialismo estadunidense. Não se faz o balanço do neoliberalismo pelas más consequências. A gramática do Homo economicus registra o lucro, o rendimento e a acumulação, não o sofrimento social. A distopia da rápida evolução conservadora contra as funções estatais é encoberta por salamaleques.

A opinião pública é manipulada. A mídia substituiu o uso público da razão pela expressão pública de sentimentos. “Os assuntos se equivalem, se reduzem à banalidade do ‘gosto’ ou ‘não gosto’, do ‘achei ótimo’ ou ‘achei horrível’”, denuncia a análise midiática de Marilena Chaui, no livro Poder e simulacro. Infantiliza-se os receptores, feitos de idiotas.

O neoliberalismo é o princípio teórico e a doxa de uma nova forma de ação do Estado, orientada para a manutenção da ordem pública, a unificação do mercado nacional, a consolidação do mercado mundial e a concorrência que aquele impõe. O fenômeno acenou para uma dominação inusitada na história contemporânea, ao penetrar a subjetividade dos seres humanos pelas ondas de rádio, pela televisão e pelas big techs. Um mesmo mundo é possível.

“Modernização” então tornou-se sinônimo de “realismo”, de “equilíbrio fiscal” e de um “sentido de decoro”. Think tanks propagaram a mitologia, num ritmo alucinado. Contabilizavam 5.465 núcleos, em 2008. Em 2019, eram 8.248. No Brasil, no mesmo intervalo, saltaram de 30 para 103 nas pegadas do livre comércio. Coube ao Instituto Mises Brasil (IMB) influenciar a famiglia Bolsonaro nas áreas de educação, saúde, economia, relações exteriores, etc. Por trás da sabotagem do Estado havia, na surdina, a opção da trupe pelo anarcoliberalismo.

O protesto na Gare

Em 12 de dezembro de 1995, Pierre Bourdieu proferiu um célebre discurso na Gare de Lyon, em apoio à greve do funcionalismo público francês contrariamente às reformas neoliberalizantes do governo: “A nobreza de Estado que prega a extinção do Estado e o reinado absoluto do mercado e do consumidor, substituto comercial do cidadão, assaltou o Estado: fez do bem público um bem privado, da coisa pública uma coisa sua. O que está em jogo é a reconquista da democracia contra a tecnocracia. É preciso acabar com a tirania dos ‘especialistas’, estilo Banco Mundial ou FMI, que impõem os vereditos do novo Leviatã, os ‘mercados financeiros’, e que não querem negociar mas ‘explicar’. É preciso romper com a fé na inevitabilidade histórica”.

Entre nós, a reconquista da democracia contra a tecnocracia refere-se aos valetes do Banco Central e aos juros estratosféricos a serviço da ciranda financeira (um assalto à luz do sol). Os próceres do Parlamento se incluem entre os pseudopatriotas ao avalizar o extermínio das etnias indígenas e da devastação da Amazônia. É o que significa o “marco temporal” aprovado na Câmara dos Deputados – triste representação. Se ratificado no Senado, calcula-se que os indígenas estejam em risco em 871 das 1.393 reservas do país, estipula o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Motivos sobram para barrar o criminoso genocídio dos habitantes originários.

Urge um “novo internacionalismo” para reatualizar o engajamento político e intelectual no combate ao status quo. Com ousadia pode-se galvanizar a sociedade civil e despertar a cidadania para agir na esfera pública, e modificar a ordem social. Há que enfrentar a hecatombe climática, a ameaça de uma guerra nuclear, a crise da democracia (o ovo da serpente do totalitarismo) e o capitalismo de vigilância, com tentáculos na Inteligência artificial (IA).

Não é fácil. Implica derrotar a lógica comunicativa e dissimuladora que obscurece e sufoca o bom senso, ao abrir as portas à ignorância que se autoproclama em patamar igual ao do conhecimento e da ciência. Na contramão dos filósofos iluministas que desconstruíam as crendices do povaréu, os tradicionalistas ressuscitam o pai do conservadorismo, Edmund Burke, para quem os preconceitos são úteis para organizar uma sociedade temente a Deus.

Cinismo e hipocrisia

Vale lembrar que a Inteligência Artificial é apenas uma extensão do sistema, com grande impacto no PIB mundial. A pergunta é: a solução reside na regulamentação do capitalismo (indômito, por natureza) ou em entregar os recursos, as pessoas e o trabalho para fomentar a economia no rumo do desequilíbrio ecológico, do irracionalismo bélico, dos suspiros da democracia politicista desvinculada do social e dos mecanismos controladores da vontade dos indivíduos. O capitalismo neoliberal é o gravíssimo problema a ser enfrentado, em tempos tão dramáticos.

Na derradeira fase do combo de opressão e exploração, a tarefa dos cães de guarda é faire l’opinion em favor das abissais desigualdades entre as classes sociais. Daí canalizarem a insatisfação contra os movimentos antissistêmicos, como o MST, ocultando o rentismo financeiro ao confundir a percepção das massas sobre o capitalismo realmente existente.

Para os bolsominions, a tragédia nacional se localiza com exclusividade na “superestrutura” – Superior Tribunal Federal/STF, Tribunal Superior Eleitoral/TSE, Congresso da República, Igreja Católica, Direitos Humanos, Universidades. Ligeiro cancelam as acusações que responsabilizam a “infraestrutura” econômica pelas mazelas que sacrificam o povo brasileiro, exemplificadas pelas commodities do agronegócio que não agregam valor e pela desindustrialização, que gera multidões de excluídos. O erro metodológico compromete o diagnóstico.

Não espanta a dependência de notícias falsas para minar a democracia e a verdade. As crises políticas nascem e crescem na medida em que se esfarela a credibilidade dos valores de um dos polos da disputa, na opinião pública. É o que os cães de guarda pretendem ao tatuar em Lula e, por extensão, na esquerda em geral a cumplicidade com “ditaduras”, deslocando as atitudes de cinismo e hipocrisia da burguesia para o espectro democrático-popular. Como no verso do poeta trotskista, Paulo Leminski: “nada como um dia indo atrás do outro vindo”.

Austeridade para quem? por Paulo Kliass

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Gasto com juros, que só alimenta o rentismo, nunca teve teto. É a segunda maior despesa do Estado, atrás apenas da Previdência, e só neste ano cresceu 50%. Insistir no arcabouço fiscal não nos livrará dessa herança maldita de Bolsonaro e Guedes

Paulo Kliass, Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Outras Palavras, 06/06/2023.

Desde que foram anunciados os resultados das eleições presidenciais em outubro passado, as elites vinculadas ao financismo em nossas terras passaram a colocar em movimento uma estratégia de sequestrar o terceiro mandato do presidente Lula. Uma vez derrotado o candidato que eles também haviam apoiado de forma quase unânime em 2018, esse pessoal põe em marcha seu plano B para minimizar a derrota e impedir que as ideias do programa econômico apresentado pelo candidato vencedor à sociedade permanecessem fora de qualquer possibilidade de implementação pelo futuro governo.

Entre a oficialização da vitória de Lula e a data de sua posse, os representantes da oligarquia financeira e os grandes meios de comunicação buscaram indicar nomes para compor a área econômica, com o intuito declarado de evitar uma descontinuidade em relação à gestão de Paulo Guedes e também de Henrique Meirelles. Assim foram meses de balões de ensaio semanais, apresentando e sugerindo figuras com perfil conservador, alinhados à ortodoxia e ao neoliberalismo. Tendo em vista a resistência do futuro presidente em aceitar tais ofertas, surge em cena um plano C. Como não conseguiram emplacar nomes, voltaram-se à tentativa de assegurar um programa que não significasse nenhuma ruptura com os anos de austeridade fiscal e arrocho monetário.

Uma parte dessa tarefa já havia sido cumprida em 2021, quando Paulo Guedes conseguiu convencer seu chefe a apoiar a proposta de conferir independência ao Banco Central (BC). Assim, por meio dos dispositivos da Lei Complementar 179, o presidente e demais diretores do BC passaram a contar com mandato fixo. Por meio de tal artimanha, Lula só poderá indicar o novo presidente da instituição e contar com maioria no colegiado de nove membros a partir de 2024. Em razão de tal golpe perpetrado contra nossa democracia, o novo governo não consegue ter a seu dispor ferramentas essenciais da política econômica, a saber, a política monetária e a política cambial.

Como a diretoria do BC são os próprios integrantes do Comitê de Política Monetária (COPOM), os indicados por Bolsonaro mantêm uma política de sabotagem das intenções desenvolvimentistas do novo governo. Ao longo das 4 reuniões do colegiado responsável pela definição da taxa oficial de juros realizadas desde que foi reconhecido o nome do futuro Chefe do Executivo, a Selic foi mantida nos estratosféricos níveis de 13,75% ao ano. O Brasil permanece como o país de maior taxa real de juros do mundo e esse patamar do custo financeiro inviabiliza a retomada dos investimentos necessários na economia, além de provocar um impacto significativo nas despesas financeiras do governo.

Em outra esfera de atuação, os representantes do financismo metralharam de forma incessante qualquer tipo de proposta de flexibilização mais efetiva da política fiscal. Ainda que Lula tivesse anunciado inúmeras vezes durante a campanha eleitoral o seu desejo e a necessidade de o Brasil revogar a regra do teto de gastos, a pressão vinha no sentido de colocar alguma outra medida de austeridade fiscal no seu lugar. Infelizmente, esse movimento acabou conquistando alguns corações e mentes no interior da própria equipe econômica. Assim o desenho da PEC da Transição, promulgada sob a forma da atual Emenda Constitucional nº 126, incluiu a necessidade de aprovação de uma lei complementar com um novo regime fiscal para que o teto de gastos seja efetivamente revogado.

Fernando Haddad priorizou a negociação e a interlocução com o presidente do BC e com representantes do sistema financeiro para a elaboração de tal medida. O relator Cláudio Cajado (PP/BA), colega de confiança do presidente da Câmara dos Deputados Artur Lira (PP/AL), conseguiu tornar a proposta ainda mais distante das necessidades de um programa nacional de desenvolvimento. Se a proposta enviada pelo Executivo já mantinha a essência de controlar elevação de despesas em relação ao crescimento das receitas e insistia na lógica de obtenção de superávit primário, as alterações aprovadas pela Câmara aprofundaram ainda mais o caráter pró-cíclico da medida e retiraram as possibilidades de o Estado atuar como protagonista na busca do crescimento e do desenvolvimento.

Arcabouço fiscal: austeridade remaquiada

Assim, corre-se o risco de o Congresso Nacional aprovar um texto que signifique a manutenção da estratégia de redução do peso do setor governamental na economia. A grande imprensa se encarrega de torpedear as propostas de flexibilização das regras da austeridade fiscal, ignorando que tal estratégia há anos já vem sendo implementado nos países do próprio centro do capitalismo, a exemplo dos Estados Unidos e da União Europeia. Como o arcabouço fiscal em tramitação determina que as despesas orçamentárias só poderão crescer a um ritmo de 70% do aumento observado nas despesas, a médio prazo isso terá o significado de um encolhimento relativo do Estado.

Além disso, a malandragem toda reside na manutenção do conceito de superávit primário como métrica de avaliação do sucesso da austeridade. Ao apelar para o economês, o povo da finança esconde sua verdadeira intenção. Trata-se de continuar oferecendo um tratamento VIP às despesas financeiras – leia-se, gastos com juros sobre a dívida pública. Sim, pois estas rubricas não são consideradas “primárias” na terminologia adotada. Isso significa que o modelo pressupõe um enorme esforço para comprimir as despesas como assistência social, saúde, educação, previdência social, salários e outros, para que haja um resultado positivo nas contas públicas não financeiras. E esse saldo credor vai se transformar automaticamente no volume de juros a serem pagos aos detentores dos títulos da dívida pública.

Esse tipo de despesa não era submetido a nenhum limite na política do teto de gastos e vai continuar assim no novo modelo a ser adotado após a aprovação da referida lei complementar. Assim, o que se depreende é que as regras de austeridade fiscal não valem para todos. Os números apresentados oficialmente há poucos dias pelo BC confirmam essa hipótese. Já são conhecidos os valores despendidos pelo governo federal a título de juros ao longo do primeiro quadrimestre do presente ano.

Entre janeiro e abril de 2023 o governo federal gastou R$ 228 bilhões para pagamento de juros da dívida pública. O valor é 48% mais alto do que o a soma relativa ao primeiro quadrimestre do ano passado, que havia registrado R$ 154 bi. Esse total, por sua vez, representou uma elevação de 36% em relação aos R$ 113 bi de 2021. Ora, esses números evidenciam que a herança maldita do governo Bolsonaro & Guedes foi mantida e aprofundada durante os primeiros meses do novo mandato de Lula. A austeridade fiscal não se aplica aos gastos com juros.

Caso o enfoque seja direcionado sobre os valores pagos a título de juros ao longo do ano todo, o cenário se mantém o mesmo, ainda que com índices de crescimento mais atenuados de um período para outro. Os últimos 12 meses encerrados em abril de 2023 indicam um total de R$ 660 bi na conta financeira. Trata-se da segunda maior despesa do governo federal, atrás apenas dos gastos com previdência social. No entanto, como a rubrica é classificada como “não primária”, sobre ela não cabe a imposição de nenhum teto e nem de limite algum.

Esse montante corresponde a um aumento de 13% sobre os R$ 586 bi gastos observados entre janeiro e dezembro de 2022 a título de pagamento de juros. Além disso, a comparação de 2022 com os R$ 448 bi relativos a 2021 representou um crescimento de 31%.

Esses números refletem de forma bastante cristalina a verdadeira natureza do chamado “esforço fiscal”, elemento tão divulgado e idolatrado pelos defensores do financismo e do ajuste conservador. A austeridade tão proclamada como suposta condição para garantia de estabilidade macroeconômica não se aplica de forma isonômica sobre todos os setores da sociedade. À medida em que se introduz de forma sorrateira a separação entre as despesas financeiras e todas as demais não-financeiras, a busca da tão venerada responsabilidade fiscal deixa explícita a característica intrínseca à austeridade: reprodução das desigualdades sociais e econômicas.
Teto do Temer e subteto do Haddad

Partindo de um modelo conceitualmente viesado em prol do capital financeiro, o equilíbrio fiscal não pode ser considerado como “neutro” ou “técnico”, como costumam qualificá-lo os defensores do regime. A austeridade tem rosto e endereço conhecidos. A exemplo de outros aspectos da política econômica, pouca coisa muda em termos essenciais na comparação entre o teto de gastos da herança Temer & Bolsonaro e o subteto proposto por Haddad. Trata-se de buscar o ajuste em cima de redução dos direitos dos setores de base da nossa pirâmide da desigualdade, ao mesmo tempo em que preserva e até amplia os benefícios concedidos às elites e ao capital, quer sejam os 1% ou os 0,1% do topo da nossa vergonhosa figura geométrica da concentração.

Nova industrialização

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As transformações recentes na sociedade internacional estão exigindo o retorno do planejamento e a reconstrução de um novo projeto nacional. Esses desafios estão envoltos em todas as nações, motivados pela pandemia que assolou a sociedade internacional matando mais de seis milhões de pessoas, pela guerra em curso entre Rússia e Ucrânia, impactando sobre as estruturas produtivas globais, pelos grandes desafios gerados pelo incremento tecnológico, onde a inteligência artificial está contribuindo para o aumento das preocupações e das ansiedades dos indivíduos, além das questões referentes ao meio ambiente, natureza e da sustentabilidade, onde muitos desafios prescindem de um grande esforço e participação da comunidade internacional.

Neste momento, nações como o Brasil estão costurando e estruturando um conjunto de políticas para reconstrução industrial, motivando os setores econômicos e produtivos para um desafio de grande relevância, ainda mais, numa sociedade marcada por forte desindustrialização, onde os setores industriais perderam relevância na economia nacional, com repercussões negativas para a estrutura produtiva, redução de empregos industriais e uma forte degradação da renda dos trabalhadores, que culminaram sobre uma fragilização do mercado interno, perda de dinamismo econômico e desagregação dos termos de troca no comércio internacional.

Recentemente, as nações desenvolvidas estão retomando seus projetos de reindustrialização, canalizando recursos para a pesquisa e para a inovação, aumentando a busca por maior autonomia econômica, evitando os efeitos geradas pela pandemia, que demonstraram claramente que muitas economias desenvolvidas perderam espaço na estrutura econômica industrial, se transformando em nações dependentes de outras regiões, neste percurso, os grandes ganhadores foram as economias asiáticas, notadamente a China, Coréia do Sul, Taiwan, dentre outras.

Internamente, os desafios são sempre muito custosos, os recursos dispendidos nesta estratégia devem ser investidos pelo governo nacional, visando uma reconstrução industrial no longo prazo, com recursos subsidiados e taxas de juros condizentes, evitando projetos megalomaníacos e buscando vantagens comparativas que nos dão condições de competir num cenário altamente concorrencial e marcado por grandes conglomerados produtivos, dotados de grandes somas de recursos materiais e forte acesso aos mercados de capital global, cujos custos monetários são reduzidos e seus investidores vislumbram o longo prazo.

Outro grande desafio para a nova industrialização brasileira está na mentalidade de muitos agentes econômicos e produtivos, setores que, muitas vezes, se acostumaram com seus lucros elevados, gerados nos mercados financeiros, remunerados por taxas de juros escorchantes e proibitivas, que contribuíram para pavimentar o crescimento da desigualdade da renda e das oportunidades, que caracterizam a sociedade brasileira e contribuíram para perpetuar as exclusões sociais e as violências generalizadas, características visíveis da sociedade brasileiras.

Neste desafio de reindustrialização da economia brasileira, faz-se necessário elencar setores estratégicos, onde destacamos o complexo econômico da saúde, cujo potencial de crescimento é gigantesco, ladeando outros setores produtivos que poderiam reduzir as importações da área da saúde, complementando as compras governamentais, impulsionado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujo potencial de emprego, de renda e de salário são elevados, gerando fortes impactos na economia nacional. Destacamos ainda, nos esforços da nova industrialização, setores como a indústria da Defesa, além dos setores de máquinas e equipamentos, que possuem, historicamente, capacidade interna instalada, dessa forma, possuem mais capacidade de absorver e internalizar tecnologias.

Vivemos num momento de grandes transformações digitais e de transição energética, todos os esforços da nova industrialização prescindem de estratégias de inclusão social, fortes investimentos em ciência e tecnologia, fomento da pesquisa científica e estímulos crescentes de concorrência internacional. O momento é de decisões estratégicas, combatendo visões entreguistas e subservientes que contribuem para perpetuar nosso atraso civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/06/2023.

O marco temporal é letal, por Márcia Castro

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Aprovação da medida no Senado seria duro golpe para a Amazônia e um vexame para o país que vai sediar a COP em 2025

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 05/06/2023.

No último dia 30, o projeto de lei que cria o marco temporal foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora depende de aprovação no Senado. O projeto propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal (5/11/1988).

Além disso, impossibilita a ampliação de áreas já demarcadas e propõe que estas possam ser retomadas pela União caso traços culturais do povo indígena tenham se alterado. Propõe, ainda, que projetos de infraestrutura (tais como estradas e hidrelétricas) possam ser implementados em áreas demarcadas sem consulta às comunidades indígenas que ali habitam.
Essa proposta é letal em várias dimensões.

É letal aos povos indígenas. É um absurdo usar a data da Constituição, ou qualquer outra data, para definir direito de posse de uma terra que sempre foi dos indígenas. Ao longo de séculos, povos indígenas sofreram com doenças trazidas pelos colonizadores, invasões e exploração predatória de recursos naturais, trabalho escravo e massacres cruéis como o ocorrido em 1963, em que cerca de 3.500 membros do povo indígena Cinta Larga foram assassinados e suas aldeias queimadas.

Se mesmo em áreas demarcadas, como a do povo Yanomami e dos povos isolados no Vale do Javari, as invasões ilegais, exploração, conflitos e violência se intensificaram durante o último governo, imagine nas áreas não demarcadas. Isso se agrava com a medida provisória (MP dos Ministérios) aprovada pelo Senado no último dia 1 que transferiu a atribuição de demarcar áreas indígenas do Ministério dos Povos Indígenas para o Ministério da Justiça.

O marco temporal é letal ao meio ambiente. Dados de desmatamento mostram que a demarcação de terras indígenas é um fator determinante para preservação da floresta, contribuindo para a manutenção da biodiversidade e a regulação do clima. Áreas mais desmatadas ao sul da Amazônia já recebem menos chuva.

O marco temporal é letal ao agronegócio. A ideia de que a mudança traria segurança jurídica aos proprietários rurais é enviesada e não considera as consequências de longo prazo, já que a redução das chuvas em áreas desmatadas afeta o agronegócio.

Uma análise de 2021 estimou que a produção de soja e gado pode ter uma perda de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,9 bilhões) anualmente devido ao desmatamento acelerado no sul da Amazônia.

Um relatório recente do Banco Mundial estima que o valor da Amazônia preservada, mais de US$ 317 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhões) ao ano, é cerca de sete vezes maior do que o valor estimado de exploração ligada à agricultura extensiva, madeira ou mineração.

O marco temporal é letal à visão do Brasil como um país que respeita os direitos humanos, comprometido com a preservação ambiental e dos povos originários. Depois do enfraquecimento dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas (MP dos Ministérios), a aprovação do marco temporal seria um golpe letal para o futuro da Amazônia e do Brasil e um vexame para o país que vai sediar a Conferência do Clima em 2025.

Hoje, um ano após a morte de Bruno Pereira e Dom Phillips, cruelmente assassinados por protegerem a floresta amazônica, o Brasil sofre um retrocesso na causa ambiental e indígena com a aprovação da MP dos Ministérios, que pode se agravar ainda mais caso o marco temporal seja aprovado.

A boiada continua passando, conduzida por parlamentares que ao invés de representar a vontade do povo brasileiro e prezar pelo futuro da nação, priorizam interesses gananciosos e predatórios.

Que os senadores tenham o bom senso e a sabedoria de vetar o marco temporal.

O Brasil não é uma potência ambiental global, por Rodrigo Tavares.

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Declarações de Lula e bravata diplomática não refletem as capacidades do país

Folha de São Paulo, 01/06/2023

Rodrigo Tavares, Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Nas suas várias viagens internacionais, Lula tem destacado que o Brasil é uma “grande potência” na área ambiental e climática. Vários outros presidentes fizeram o mesmo. Até Bolsonaro exaltou os recursos brasileiros nessa área em seu discurso em Davos em 2019. A bravata diplomática tem sido recorrente.

Mas será mesmo o Brasil uma potência ambiental?

Desde os anos 50 que as várias teorias das relações internacionais têm dissecado o conceito de “potência global” sob todos os prismas possíveis. As diferenças entre “superpotências”, “grandes potências” e “potências regionais” ou a retratação do mundo como “unipolar”, “bipolar” ou “multipolar” já foram exploradas quantitativa e qualitativamente até as pálpebras pesarem. Ainda que falte um largo consenso sobre essa matéria, há entendimento em alguns pontos.

O primeiro é que as grandes potências usufruem de elementos congênitos que lhes garantem uma certa primazia natural, como um vasto território ou força populacional. Na área ambiental, certamente que o Brasil se destaca, como o país do cerrado, a savana com a maior biodiversidade arbórea do mundo, e da Amazônia, a maior floresta tropical do planeta. Também tem a maior reserva de água doce disponível. Mas estes são elementos passivos. Se fossem suficientes para outorgar a um país o estatuto de potência, o Canadá ou a Dinamarca (com a Groenlândia), com os seus vastos territórios, estariam no pelotão da frente.

O segundo elemento é material e corresponde à habilidade e experiência de um país para exercer sua influência em escala global. Não são características herdadas, mas criadas. Teóricos das relações internacionais, como Kenneth Waltz, John Mearsheimer ou Nuno Monteiro, destacam que, para ser uma potência global, um país precisa de força militar, capacidade econômica, estabilidade política, pujança tecnológica e educacional ou poder cultural, entre outros fatores tangíveis e intangíveis.

São eles que dão às grandes potências vantagens relacionais que lhes permitem exercer influência e mudar comportamentos de outros países a nível global. Se aplicarmos essa visão à área ambiental, a pujança brasileira já não é tão evidente.

Tem uma matriz energética de 43% de energia limpa e renovável. Tem o maior programa do mundo de produção de combustível extraído da biomassa. Tem inúmeras organizações da sociedade civil atuantes na área ambiental e uma quantidade significativa de quadros técnicos especializados que produzem reflexões organizadas sobre o tema, como a Estratégia Brasil 2045, do Observatório do Clima. A legislação ambiental é das mais densas do mundo. Mas titubeia na reindustrialização verde e na transição para uma economia de baixo carbono, um esforço colossal que ainda não angariou apoio político inequívoco. Desde a democratização, os líderes políticos com verdadeira vocação ambiental contam-se pelos dedos de poucas mãos. José Antônio Lutzenberger, Rubens Ricupero, José Goldemberg, Izabella Teixeira, Marina Silva. Quem mais?

O Brasil também está muito atrasado no aproveitamento dos mercados de carbono e não é referência em tecnologia climática. Praticamente não há presença brasileira entre os 350 fundos de venture capital dedicados a essa área. No país, 47% da população não tem acesso à rede de esgoto e as suas águas residuais são lançadas sem tratamento na rua ou em rios. As catástrofes de Mariana e Brumadinho geraram danos ambientais e lesões à imagem internacional do país. O índice de reciclagem é de apenas 4%, muito abaixo de países com o mesmo patamar de renda. O Brasil ocupa apenas o 81º lugar no Índice de Desempenho Ambiental da Universidade de Yale, atrás de países latino-americanos como o Chile, o Equador ou a Venezuela, que não se autodeclaram campeões ecológicos.

Para ser uma potência global ambiental, o Brasil precisaria também possuir capacidade ou interesse em resolver ou mitigar os mais graves problemas ambientais. O exercício de responsabilização, a ser exercido em nível global, é outro critério fundamental para ser considerado uma grande potência. Certamente que o Brasil tem organizado eventos internacionais (ECO-92, Rio+20 e a COP30, em 2025) e deixado as suas impressões digitais em acordos internacionais, mas não tem exercitado, de forma consistente, a sua eventual liderança na resolução de problemas climáticos e ambientais.

O Acordo de Paris de 2015 só foi possível porque em novembro de 2014 os EUA e a China assinaram um acordo bilateral. O Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, de 1987, foi imposto pelos EUA. A União Europeia, pela sua robustez regulatória, comercial e financeira, tem conseguido influenciar práticas de sustentabilidade corporativa em vários países do mundo, incluindo o Brasil.

Qual a influência do Brasil em discussões globais sobre pobreza energética, reciclagem de eletrônicos, poluição atmosférica ou produção de plásticos? O Brasil tem 7.400 kms de costa, mas qual a sua contribuição global para o tema da acidificação dos oceanos? Qual a opinião do Brasil sobre uma eventual reforma da Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados para proteger refugiados climáticos? E que papel exerceu para resolver problemas ambientais em nível regional ou global? Por que não ajudou o Peru (Callao), o Equador (MV Jessica) ou a Venezuela (El Palito) a superarem desastres ambientais causados por derramamentos de petróleo?

Uma potência global também tem de ser reconhecida pelos seus pares como tal. Infelizmente não existem normas ou arranjos institucionais que confiram o estatuto de grande potência na área ambiental. Não há um Conselho de Segurança da ONU ou um G7 aplicados à liderança climática. O reconhecimento do poder é, por isso, mais arbitrário e interpretativo. Ainda assim, é difícil encontrar exemplos materiais em que o Brasil tenha sido aceito como uma potência ambiental global.

Certamente que há reconhecimento dos seus elementos congênitos; o país da Amazônia tem naturalmente lugar cativo em qualquer discussão global. Mas e além disso?

O meio ambiente é o maior diferencial competitivo que o Brasil poderia ter. Só falta aproveitá-lo. Se o país já fosse uma potência ambiental, isso já se teria refletido no aumento da renda e da qualidade de vida dos brasileiros.

Relação conflituosa

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Vivemos momentos de grandes inquietações. Vivemos momentos de grandes transformações estruturais. Vivemos momentos de desesperanças e preocupações constantes. Vivemos momentos de grandes oportunidades e grandes desafios. Vivemos momentos de conflitos globais, mudanças geopolíticas e guerras devastadoras. Vivemos um momento de lembranças, memórias e saudades crescentes. Vivemos numa sociedade, marcada por poucas certezas e grandes incertezas, onde a economia se transforma, destrói modelos de negócios e, ao mesmo tempo, criam esperanças e realizações.

Neste ambiente, percebemos que os conflitos econômicos se alteram em momentos de cooperação intensa, as nações vivem num cenário de forte integração econômica e produtiva. Os modelos econômicos geram uma interdependência entre governos e sociedade, exigindo uma forte dose de sabedoria nas relações internacionais. Neste cenário, percebemos os conflitos econômicos entre os Estados Unidos e a China gerando impactos sobre toda a economia internacional, criando alianças pontuais, medos e alinhamentos, tudo isso, contribuindo para acirrar as rivalidades.

Nesta sociedade, percebemos que, embora essas nações almejem a hegemonia no mercado internacional, sabemos que são duas nações que estão totalmente integradas e interdependentes uma com a outra, levando os conflitos econômicos e os confrontos políticos para problemas muito além de seus territórios, impactando fortemente para outras regiões e seus parceiros comerciais. Os confrontos econômicos se transformam em conflitos culturais, motivando violências crescentes, xenofobias abertas e agressividades que prescindem de uma diplomacia mais amena e mais construtiva, rechaçando ressentimentos, agressões e ódios generalizados.

A globalização econômica contribuiu ativamente para essa integração produtiva. São nações que se tornaram interdependentes, levando a um aumento do superávit comercial a favor da economia chinesa. Com esse incremento comercial, a China acumula muitos recursos monetários investindo-os maciçamente sobre os títulos norte-americanos, desta forma, as duas economias estão totalmente integradas e interdependentes, uma dependência mútua que prescinde de uma convivência mais harmoniosa. Os Estados Unidos dependem da importação dos produtos industriais chineses e, em contrapartida, a China precisa fortemente do dinamismo do mercado interno norte-americano.

A China possui a maior estrutura industrial do mundo, responsável por mais de 34% da indústria globo, em contrapartida, a economia norte-americana perdeu espaço na indústria global, perdendo empresas e transferindo plantas industriais para as nações asiáticas, notadamente a China, investindo bilhões de dólares na economia chinesa e, para satisfazer as necessidades da sua população, absorvendo bilhões de dólares para garantir o consumo da população norte-americana, gerando uma dependência conjunta entre as duas nações.

Neste cenário, percebemos que os conflitos estão centrados nas questões ligadas à Taiwan, uma região pertencente ao gigante asiático, que almeja sua autonomia, gerando um grande imbróglio que poderia culminar em conflito militar com a entrada dos Estados Unidos neste conflito, defendendo seus interesses gerando instabilidades crescentes na região, uma verdadeira corrida armamentista na Ásia que traria graves constrangimentos para a economia internacional.

Por trás deste conflito, encontramos uma nação, Taiwan, que conseguiu se desenvolver economicamente com fortes investimentos em tecnologia, melhorando as condições de vida de sua população e, neste caminho, angariou uma posição central na economia internacional, desenvolvendo tecnologias avançadas e ultrassofisticadas na produção de microprocessadores, os chamados Chips, instrumento central no mundo contemporâneo, na chamada sociedade do conhecimento. Neste conflito, o domínio da tecnologia de Taiwan pode ser um diferencial para o incremento tecnológico chinês no setor de microprocessadores, reduzindo a distância entre as nações que buscam a hegemonia internacional.

Embora percebendo que as nações sejam interdependentes e integradas, os conflitos entre nações hegemônicas tendem a criar constrangimentos internacionais, aumentando instabilidades e incertezas. Será que não aprendemos nada com a pandemia?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/05/2023.

Agenda equivocada na indústria, por Samuel Pessoa.

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Programa para carros contraria agenda ambiental e ajuste das contas pública

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 28/05/2023

Nas últimas décadas, houve forte queda da participação da indústria no PIB brasileiro. Do pico de 34%, em 1985, para os atuais 10%. Parte significativa da queda deve-se a dois fatos não ligados diretamente ao desempenho do setor.

Primeiro, dado que o progresso tecnológico é maior na indústria, o preço dos bens industriais relativamente ao preço dos serviços reduz-se. O valor da participação cairá naturalmente.

O segundo motivo é que, nas séries antigas, não se mensurava bem o tamanho dos serviços, e, portanto, o produto total do país era subestimado.

Corrigindo esses dois fatores, meu saudoso colega do FGV Ibre Regis Bonelli mostrou que o pico nos anos 1980 foi de 24%, não de 34%. Mesmo assim, houve, de meados dos anos 1980 até hoje, forte queda de 14 pontos percentuais do PIB.

Assim, cabe uma reflexão sobre a queda da participação da indústria no PIB, para além dos fatores elencados nos parágrafos anteriores.

Um primeiro motivo é comum a todas as economias: o crescimento econômico reduz a demanda por bens relativamente à demanda por serviços. Em economês, diz-se que serviços apresentam elevada elasticidade-renda da demanda. Da mesma forma que, na primeira metade do século 20, houve a transição da agropecuária para a indústria, nas últimas décadas temos passado pela transição da indústria para os serviços.

Ou seja, em grande medida a queda da participação da indústria no PIB é um fenômeno normal e compartilhado por inúmeras economias.

No entanto, as economias asiáticas apresentam participação da indústria no PIB bem maior. Os economistas heterodoxos/desenvolvimentistas enfatizam a política industrial e a existência de subsídios concedidos por bancos de desenvolvimento. Há dois fatores que nossos colegas desenvolvimentistas esquecem.

O primeiro é a elevadíssima taxa de poupança das economias asiáticas. Há um efeito direto da elevada taxa de poupança sobre a indústria e um efeito indireto. O efeito indireto é mais simples: elevada poupança conduz a juros domésticos menores e, portanto, barateamento de um fator de produção, o capital, empregado intensamente pela indústria de transformação.

O efeito direto é sobre a composição da demanda. Se a poupança é elevada, o consumo é baixo. Se o consumo é baixo, o país irá apresentar superávit externo. Bens são mais transacionáveis internacionalmente do que serviços. Quem poupa muito exporta muito e, consequentemente, produzirá mais bens.

A elevada poupança dos países asiáticos deve-se ao baixíssimo Estado de bem-estar que vigora por lá. Para ter uma ideia, basta olhar para os gastos previdenciários. O Japão tem quatro vezes mais idosos, como proporção da população, do que o Brasil, e, no entanto, não gasta mais com aposentadorias do que nós.

O segundo fator que os economistas desenvolvimentistas esquecem é que os asiáticos construíram sistemas públicos de educação fundamental de elevadíssima qualidade. Há fartura de mão de obra qualificada.

Esses dois fatores —elevada poupança e elevada qualidade da qualificação da força de trabalho— explicam muito melhor a elevada participação da indústria no PIB do que o BNDES deles.

Por aqui, o governo anuncia programa para subsidiar carros a combustível fóssil para a classe média. Medida contra as agendas de meio ambiente nas cidades (qualidade do ar e congestionamento das vias públicas), de transição energética e de ajuste das contas públicas por meio de redução do gasto tributário (isenção tributária), que tem sido reiteradamente denunciado pelo ministro Haddad. Continuaremos na vanguarda do atraso.

G7 deve aceitar que não pode governar o mundo, por Martin Wolf

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Hegemonia americana e domínio econômico do grupo agora são história

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 24/05/2023

“Adeus G7, olá G20.” Esse foi o título de um artigo do The Economist sobre a primeira cúpula do Grupo dos 20 em Washington em 2008, argumentando que representava “uma mudança decisiva na velha ordem”. Hoje, as esperanças de uma ordem econômica global cooperativa, que atingiram seu ápice na cúpula do G20 em Londres em abril de 2009, evaporaram.

No entanto, dificilmente é um caso de “Adeus G20, olá G7”. O mundo anterior de dominação do G7 é ainda mais distante que o da cooperação do G20. Nem a cooperação global nem a dominação ocidental parecem viáveis. O que pode acontecer? Infelizmente, “divisão” pode ser uma resposta e “anarquia”, outra.

Não é o que sugere o comunicado do encontro dos chefes de governo do G7 em Hiroshima, no Japão, que é incrivelmente abrangente.

Inclui: Ucrânia; desarmamento e não proliferação; a região do Indo-Pacífico; a economia global; a mudança climática; o meio ambiente; energia, incluindo energia limpa; resiliência econômica e segurança econômica; comércio; segurança alimentar; saúde; trabalho; educação; digital; ciência e tecnologia; gênero; direitos humanos, refugiados, migração e democracia; terrorismo, extremismo violento e crime organizado transnacional; e relações com China, Afeganistão e Irã (entre outros países).

Com 19 mil palavras, parece um manifesto por um governo mundial. Em contraste, o comunicado da cúpula do G20 em Londres, em abril de 2009, tinha pouco mais de 3 mil palavras. Essa comparação é injusta, dado o foco na crise econômica naquele momento. Porém, uma lista de desejos sem foco não pode ser útil: quando tudo é prioridade, nada é.

Além disso, tanto o momento “unipolar” dos Estados Unidos quanto o domínio econômico do G7 são história.

É verdade que este último ainda é o bloco econômico mais poderoso e coeso do mundo. Continua, por exemplo, a produzir todas as principais moedas de reserva. No entanto, entre 2000 e 2023, sua participação na produção global (em poder de compra) terá caído de 44% para 30%, enquanto a de todos os países de alta renda terá caído de 57% para 41%. Enquanto isso, a participação da China terá subido de 7% para 19%.

A China é hoje uma superpotência econômica. Por meio de sua Belt and Road Initiative (BRI ou, Nova Rota da Seda), tornou-se um grande investidor em (e credor de) países em desenvolvimento, embora, previsivelmente, esteja tendo que lidar com as consequentes dívidas incobráveis tão familiares aos países do G7.

Para alguns países emergentes e em desenvolvimento, a China é um parceiro econômico mais importante do que o G7: o Brasil é um exemplo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ter participado do G7, mas não pode ignorar, sensatamente, o peso da China.

O G7 também está alcançando outros: sua reunião no Japão incluiu Índia, Brasil, Indonésia, Vietnã, Austrália e Coreia do Sul. Porém, 19 países, aparentemente, se inscreveram para ingressar no Brics, que já inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Quando Jim O’Neill inventou os Brics, em 2001, pensou que seria uma categoria economicamente relevante. Eu pensei que os Brics seriam apenas China e Índia. Economicamente, estava certo. Porém, os Brics agora parecem estar a caminho de ser um agrupamento mundial relevante.

Claramente, o que une seus membros é o desejo de não depender dos caprichos dos EUA e de seus aliados próximos, que dominaram o mundo nos últimos dois séculos. Por quanto tempo, afinal, pode (ou, aliás, deveria) o G7, com 10% da população mundial, continuar assim?

Às vezes, a pessoa simplesmente tem que se ajustar à realidade. Deixe de lado por enquanto os objetivos políticos dos membros do G7, que incluem justamente a necessidade de preservar a democracia em casa e defender suas fronteiras –hoje, sobretudo, na Ucrânia.

Esta é de fato a luta do Ocidente, mas é improvável que um dia seja a do mundo, cuja maior parte tem outros problemas e preocupações, mais prementes. Foi bom que o presidente Volodimir Zelensky tenha participado da cúpula. No entanto, só o Ocidente determinará a sobrevivência da Ucrânia.

Se nos voltarmos para a economia, também é bom que a noção de dissociação, um absurdo prejudicial, tenha se transformado em uma ideia de “eliminação de riscos”. Se esta puder ser transformada em formulação de políticas focada e racional, será ainda melhor, mas será muito mais difícil fazer isso do que muitos agora parecem imaginar.

É coerente diversificar os suprimentos de energia, matérias-primas e componentes vitais. Contudo, para usar um exemplo notável, apenas diversificar o fornecimento de chips avançados de Taiwan será realmente difícil.

Uma questão ainda maior é como a economia global deve ser administrada.

O FMI e o Banco Mundial serão bastiões do poder do G7 em um mundo cada vez mais dividido? Em caso afirmativo, como e quando eles obterão os novos recursos de que precisam para lidar com os desafios atuais?

Como também se coordenarão com as organizações que a China e seus aliados estão criando? Não seria melhor admitir a realidade e ajustar as cotas e participações, reconhecer as grandes mudanças de poder econômico no mundo?

A China não vai desaparecer. Por que não devemos permitir que ela tenha mais voz em troca de uma participação plena nas negociações de dívidas? De modo semelhante, por que não deveríamos reanimar a OMC (Organização Mundial do Comércio), em troca do reconhecimento do gigante asiático de que não pode mais esperar ser tratada como um país em desenvolvimento?

Além de tudo isso, devemos reconhecer que qualquer conversa sobre “reduzir o risco” que não se concentre nas duas maiores ameaças que enfrentamos –as da guerra e do clima– é coar mosquitos enquanto se engolem camelos.

Sim, o G7 deve defender seus valores e seus interesses, mas não pode governar o mundo, mesmo que o destino do mundo também seja o de seus membros. É preciso encontrar um caminho para a cooperação, mais uma vez.

Tradução de Luiz Roberto Gonçalves

A ascensão da extrema direita, por Alejandro Pérez Polo.

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A crise orgânica do capital forneceu o terreno para a irrupção da ultradireita

A Terra é Redonda – 23/05/2023

Alejandro Pérez Polo

O crash de 2008: aqui começou tudo

O ano era 2012. A crise económica resultante da Grande Recessão estava a grassar na Europa. As mobilizações populares em Espanha (15M e a greve geral de março de 2012) e os protestos violentos na Grécia tinham infetado todo o mundo ocidental. Chegaram ao coração do império: em Nova Iorque, os cidadãos manifestavam-se em Wall Street através de Occupy. Não havia quase vestígios da extrema direita em lado nenhum. Nem mesmo em França a estreante Marine Le Pen lograva chegar à segunda volta das eleições presidenciais, que haveriam ser decididas entre Sarkozy e Hollande, com uma vitória socialista.

Estava em curso uma fase de decomposição ideológica e orgânica do neoliberalismo. Os consensos econômicos da globalização, após a queda da U.R.S.S., tinham sido estilhaçados para sempre. A lua-de-mel que durou de 1991 a 2008, na qual o capitalismo desenfreado conseguiu incorporar na sua lógica todos os países da ex-União Soviética, terminou. Uma subsunção formal e material de todo o globo chegara ao seu fim.

Isto resultou numa grande crise de hegemonia que se alastrou a todos os estratos de poder. Assim, ninguém foi poupado ao desafio: crise de representação, que levou a uma crise dos partidos tradicionais e à possibilidade do surgimento de novas forças políticas. Crise dos meios de comunicação, que tentaram defender o indefensável e perderam a credibilidade pública. Isto preparou o caminho para as notícias falsas (fake news) que a extrema direita tanto explorará, e para o surgimento de novos meios de comunicação social. Houve também uma crise da instituição científica por se ter associado ao público e ao oficial, que mais tarde abriria o campo para a psicose conspiracionista que atingiria o seu auge com a pandemia da COVID-19.

A crise orgânica do capital forneceu o terreno para a irrupção da ultradireita, que exploraria ao máximo todos os derivados do colapso ideológico do edifício neoliberal. No entanto, foi
primeiro a esquerda popular que agarrou a oportunidade.

Em 2012, após duas décadas de inanição, digerindo a derrota histórica da U.R.S.S., a esquerda assumiu a liderança. Viu o momento e soube ligar-se tanto com o pulsar da rua como com a proposta constituinte subsequente. Foram aprendidas lições, renovados manuais e empreendido um período de reflexão profunda, que permitiu que o novo cenário fosse confrontado com garantias.

Assim, em 2015, Alexis Tsipras ganhou a presidência do governo grego, numa vitória eleitoral inimaginável, após décadas de bipartidarismo. Em Espanha, Pablo Iglesias e o Podemos obtiveram mais de cinco milhões de votos (20,2% dos votos) o que, somado ao milhão de votos da Izquierda Unida, posicionou pela primeira vez a esquerda ao PSOE acima da social-democracia (6 milhões de votos contra 5,5). Bernie Sanders abalou as fundações do Partido Democrático dos EUA: Hillary Clinton teve de servir-se de todos os recursos do aparelho para o deter. Em Itália e França, tanto o Movimento Cinco Estrelas como Mélenchon estavam a começar a subir nas sondagens. Houve um impulso popular liderado pela esquerda em todo o mundo ocidental.

Dois anos mais tarde, no entanto, tudo tinha mudado. A fragilidade da dinâmica popular de esquerda abalou alguns apostadores corajosos, que voltaram às zonas de conforto clássicas, talvez impressionados ou intimidados pela sua própria força eleitoral. Dos discursos que bebiam da hipótese nacional-popular latinoamericana (soberania popular, democratização da economia e disputa sobre a universalidade da nação), deslocaram-se para os eixos clássicos da esquerda ilustrada da classe média (ambientalismo, direitos das minorias, europeísmo). A derrota de Tsipras pela União Europeia, após o referendo contra as medidas draconianas de austeridade, foi um golpe do qual foi difícil recuperar.

Em 2017, Donald Trump tornou-se presidente dos Estados Unidos da América, depois de ter vencido Hillary Clinton. Marine Le Pen conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais francesas, num primeiro embate contra Emmanuel Macron que seria repetido em 2022. Em Itália, a Lega alcançou o seu melhor resultado de sempre (16%, a base do que mais tarde se tornaria Fratelli d’Italia) e, em Espanha, o fenómeno VOX começou a tomar forma, que despertaria com uma força poderosa em 2018 (nas eleições andaluzas). Restava a experiência italiana, com o Movimento Cinco Estrelas a liderar um executivo de coligação com o populismo da Lega, após uma importante vitória eleitoral, construída sobre o desafio às velhas elites económicas e políticas.

O mapa já tinha mudado. Agora, mal estreado o novo ano de 2023, a extrema direita governa em Itália, após uma vitória eleitoral esmagadora, revalidou a presidência húngara com Orban, bem como a da Polónia, com o partido Direito e Justiça, VOX detém cerca de 15% dos votos em Espanha, Le Pen conseguiu ultrapassar 41% em França e prepara-se para um assalto ao Eliseu em 2027, tal como Trump se prepara para a Casa Branca em 2024.

Mais uma vez, como na década de 2000-2010, apenas a América Latina se apresenta como o novo farol da esquerda no mundo. Como nessa altura, vários líderes populares ganharam a presidência dos seus respetivos países, sob uma clara aposta de esquerda, não alinhada com qualquer grande potência ocidental, mesmo que sejam agora um pouco mais defensivos e acompanhados de um poderoso rearmamento das suas respetivas direitas nacionais.

O que aconteceu para que a extrema direita assumisse a liderança da direita no Ocidente?

O medo é a emoção dominante na recessão

A crise de 2008 mudou tudo. O colapso do sistema financeiro norte-americano arrastou todas as potências alinhadas com os Estados Unidos da América, enquanto a periferia do mundo (China, Rússia, Brasil, Índia) avançou, tirando partido da fragilidade ocidental para continuar a crescer e a ocupar mercados. Um realinhamento global começou a tomar forma devido à fraqueza dos Estados Unidos da América e à força dos países emergentes. Uma nova arquitetura estava em construção, na qual novos poderes assumiriam um papel de liderança, capaz de conceber o seu modelo com uma grande capacidade de negociação.

Os declínios civilizacionais nunca acontecem da noite para o dia. Demoram décadas a materializar-se. O fim do consenso neoliberal significou, na realidade, o fim da própria crença na superioridade do sistema ocidental em relação a outros sistemas económicos do globo. A esquerda ocidental foi capaz de o ler corretamente na altura e, por essa razão, surgiu a aposta radical num sistema mais justo, que distribuísse riqueza e alterasse as regras do jogo, em conexão com aquele momento destituinte. Havia ainda esperança em poder tomar o poder para transformar as relações de dominação.

Contudo, os velhos fantasmas surgem frequentemente quando tudo parece estar no bom caminho. Foi o cientista político Dominique Moïsi que propôs uma nova forma de compreender a geopolítica para além das relações económicas entre países. Segundo esta forma de pensar, para além dos valores coletivos, há narrativas que moldam os grandes estados de espírito das nações. Assim, Dominique Moïsi propõe-se a falar de uma “geopolítica das emoções”, em que diversas potências atuam sob a influência de diferentes sentimentos: o medo seria a emoção dominante no Ocidente, a humilhação no mundo islâmico e a esperança na Ásia.

Esta forma de olhar para os principais estados anímicos que motivam diferentes governos é bastante explicativa da forma como lidamos com as questões globais. O medo no Ocidente empurra-o na direção de políticas mais centradas na segurança e leva-o a estar constantemente na defensiva no plano ideológico. Se compararmos isto com a atitude do governo chinês, por exemplo, eles são movidos pela confiança num futuro promissor. Eles estão na ofensiva, movidos pela esperança nos seus próprios valores, no seu próprio sistema e na sua própria liderança.

No Ocidente há medo: medo dos refugiados e de um mundo exterior que assoma tragicamente todos os dias nas águas do Mediterrâneo. Medo da Rússia e das novas potências emergentes. Medo das alterações climáticas, medo de protestos sociais que já não podem ser geridos eficientemente, medo de notícias falsas e do populismo. Medo, em suma, do futuro. Este medo é o principal ingrediente de que se alimenta a extrema-direita, que oferece discursos mais tranquilizadores, estruturados em torno do regresso de valores e estados fortes, prontos a lutar face às turbulências do nosso século.

A extrema direita já não é futurista como o velho fascismo italiano ou o nazismo alemão, que prometia a glória de um Terceiro Reich. A extrema direita é reativa e procura, acima de tudo, atenuar os medos decorrentes das ansiedades existenciais que atravessam o Ocidente como um todo. Sem uma esquerda capaz de assumir estas ansiedades existenciais, o terreno será fértil para os seus sucessivos triunfos eleitorais.

A extrema direita não emergiu contra a democracia “burguesa” ou liberal. Eles não estão a abandonar nenhum navio, mas a tomar os seus comandos. A compatibilidade de Giulia Meloni com a União Europeia e a OTAN mostra que a extrema-direita não se opõe às elites europeias, mas que são, isso sim, a sua expressão mais sobreaquecida. Aspiram a assumir os receios que a velha direita liberal já não consegue enfrentar. Aspiram a refundar a Europa numa chave cristã e civilizadora, para a proteger das ameaças que a assolariam.

É neste ponto que eles encontram grande apelo entre o eleitorado e uma grande força em suas hipóteses. Ao contrário de muitos esquerdistas populistas, as expressões de extrema direita dificilmente regrediram eleitoralmente desde que rebentaram na cena política, porque estão inscritas num zeitgeist: são a expressão mais clara do colapso civilizacional resultante da crise de 2008 e da perda de posições do Ocidente no mundo.

O primeiro grande nó para desvendar a força política e discursiva da extrema direita reside nestes elementos geopolíticos, emocionais e políticos. Mas não é o único nó. Há outro nó que precisa de ser tratado como prioritário: a expressão das classes trabalhadoras excluídas do discurso público.

A distância sentimental da esquerda em relação ao povo

Quando em França surgiram os coletes amarelos, um protesto social de uma enorme envergadura, muitas pessoas à esquerda tinham uma desconfiança intuitiva destes “homens” das “províncias”, que se mobilizavam contra o imposto sobre o gasóleo. A mesma desconfiança foi sentida quando, em março de 2022, os camionistas espanhóis encenaram uma marcha atrás contra o governo de coligação por causa do aumento dos preços da gasolina. Foram acusados de serem instrumentalizados pela extrema direita, em vez de receberem ligação emocional às suas exigências (uma justa reivindicação contra uma escalada impossível de aumentos de preços).

Durante a última década, um ódio crescente às classes trabalhadoras foi inoculado em Espanha e no resto do Ocidente. Esta estigmatização, perfeitamente descrita no fenomenal livro Chavs de Owen Jones, tem vindo a derivar para uma completa demonização. Os trabalhadores são retratados como um bando de sexistas e racistas. Longe de combater estes arquétipos, a maior parte da esquerda assumiu estes clichés como seus. Muitas expressões populares são suspeitas. De facto, os ataques ao que tem sido chamado vermelho-pardismo (“rojipardismo“) estão estruturados em torno destes preconceitos. O vermelho-pardismo seria qualquer “esquerda obsoleta”, que não assumisse como seus, entre outros, os avanços do feminismo ou da luta contra o racismo (multiculturalismo).

Na tentativa de alinhar a esquerda com as elites realmente existentes, o disciplinamento discursivo veio do lado da suposta sofisticação dos postulados verdes, liberais e da tolerância para com o diferente. Estas ideias políticas, apresentadas como o auge da cultura, são postuladas como representando um estádio mais avançada do ser humano. Não existe uma análise dos preconceitos de classe destas ideias urbanitas, mas eles operam fortemente nos discursos mainstream.

A globalização criou vencedores e perdedores. Hoje, estamos numa fase que Esteban Hernández descreve como de desglobalização, acentuada pela guerra na Ucrânia, mas há uma parte das elites e das classes médias que continuam a apostar na dissolução das soberanias nacionais, convencidas de que a União Europeia é o melhor horizonte possível. Assim, uma fação esclarecida da classe média (jornalistas, académicos, pessoas das profissões liberais e parte da função pública) acredita numa aliança com as elites globalistas. Olha para cima devido à vertigem que sente quando olha para baixo, para o abismo da precariedade e da pobreza, de que faz parte mais de 35% do nosso país. Essa fação da classe média em desaparição confia em ser incluída no mel do progresso das elites e tem muito medo de ser deixada de fora, na periferia do progresso.

Quem assume os desconfortos, os anseios e as vozes dos que estão na base, se a classe média iluminada se recusa a aliar-se a eles? Pois bem, é a ultradireita que tira partido do flanco. A ultradireita consegue unificar os excluídos de cima (essas elites nacionais que foram excluídas do globalismo) e os excluídos de baixo (os perdedores da globalização) sob um único eixo.

Como explica o geógrafo e ensaísta francês Christophe Guilluy, as classes dominantes são postuladas como sendo a força positiva do progresso, os únicos herdeiros da melhor tradição da cultura ocidental (pureza) e as classes populares deixam de ser uma referência cultural positiva, como eram antes dos anos 1980, tornando-se os perdedores e fracassados do sistema, culpados da sua própria miséria e atraso político-moral. O desaparecimento da classe média, para este autor francês, inaugura uma nova era em que os que se encontram no topo se desentenderão com os que se encontram na base, que serão condenados ao ostracismo cultural e moral. Desta forma, as classes populares são excluídas como sujeitos ativos com uma voz própria.

Esta ruptura entre o mundo de acima e o mundo de abaixo provoca, ao mesmo tempo, que os expulsos da sociedade (as classes populares) construam as suas próprias narrativas que são impermeáveis às narrativas das classes dominantes. Daqui surge o populismo, como um regresso ao povo, uma tentativa de reconstruir a sociedade quebrada pela cisão das elites. No entanto, este populismo pode oscilar entre a crispação autoritária (ultradireita) e uma abertura democrática (republicana).

Para que a expressão popular não seja monopolizada pela extrema direita e não seja redirecionada para lugares escuros, é necessário colocar o bem comum e a ideia de povo de novo no centro das políticas e do discurso. Recuperando a linguagem popular e colocando os valores da comunidade sob uma luz positiva. Uma tarefa importante é afastar-se dos jogos moralistas que as elites utilizam para estigmatizar as classes populares, para reposicionar de novo a referência cultural nas expressões que vêm de baixo. Afirmando o seu próprio projeto, que não está subordinado nem às velhas elites nacionais, nem às novas elites globais, mas que assume o comando das alianças interclassistas.

A ultradireita é uma expressão do colapso do Ocidente. Hoje em dia, é necessário tomar em conta este colapso, para que haja uma solução democrática e popular para as crises que lhe sucederão.

Da mesma forma, é necessário tomar conta das ansiedades existenciais que este colapso está a provocar entre as maiorias sociais (medos e desconfortos profundos), assumindo positivamente uma nova expressividade que aspira a refundar a ideia de povo, face à fragmentação e dissolução do social, propostas pelas elites. Caso contrário, a ultradireita continuará a conquistar espaços políticos, sociais e culturais, acumulando mais vitórias eleitorais. Está nas nossas mãos não permitir que isto aconteça.

*Alejandro Pérez Polo é jornalista e mestre em filosofia pela Universidade de Paris VIII.

Pressões do mercado

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Os movimentos econômicos da sociedade contemporânea são interessantes e nos auxiliam a compreender as movimentações da economia brasileira. Neste ambiente, percebemos os conflitos entre a política econômica do governo e os anseios dos agentes dos mercados, que prezam pelos grandes lucros imediatos, pela desestatização, a desregulamentação e a compra de ativos governamentais, levando o governo a diminuir seus anseios de alterações econômicas, gerando uma verdadeira quebra de braço entre atores fundamentais para a retomada do crescimento econômico, um anseio urgente de uma economia que cresce pouco desde os anos 1980, perde oportunidades estratégicas e se apequena nos grandes desafios contemporâneos, gerando instabilidades e incertezas crescentes.

Essas incertezas e instabilidades estão no cerne das dificuldades dos governos, alterando políticas públicas, mediando conflitos políticos e interesses econômicos, levando os governos a perderem legitimidade com a sociedade, postergando mudanças estruturais, buscando apoio em variados grupos políticos, fragilizando suas medidas e contribuindo para gerar fortes
constrangimentos na sociedade.

Neste cenário, percebemos duas agendas na sociedade brasileira que se enfrentam cotidianamente, uma mais centrada no Estado Nacional, mais intervencionistas, com incremento das políticas públicas, aumento dos investimentos governamentais e, de outro lado, uma agenda mais liberalizante, defendendo interesses privados, incentivando a privatização de empresas públicas e adotando políticas para que os agentes privados ganhem espaços em detrimento dos governos nacionais. Na verdade, estes conflitos existem a muitas décadas e fazem parte de discussões antigas da economia política, onde economistas e cientistas políticos importantes se digladiam para converter seus oponentes, defendendo seus interesses imediatos e usam suas retóricas para angariar novos públicos, novos seguidores e levando as influências para novas regiões.

Muitos dos contendores deste conflito defendem ideias e pensamentos ultrapassados, usando sua capacidade de convencimento para arregimentar multidões para aumentar seu público, defendendo modelos matemáticos ultrassofisticados que pouco auxiliam na compreensão das realidades da sociedade contemporânea. De outro lado, encontramos defensores de teorias antigas que são vistas como a resolução de nossos atrasos e dificuldades, defendendo modelos antigos e sem capacidade de compreenderem uma sociedade que se modificou por completo, exigindo uma atualização constante de seus pensamentos e de seus valores imediatos.

Neste ambiente, percebemos que muitos grupos econômicos e políticos estão defendendo teorias e comportamentos que não coadunam com a realidade contemporânea. Vivemos num mundo centrado por grandes transformações, nesta sociedade percebemos que todos os modelos e paradigmas que sustentaram a sociedade anterior estão em franca desintegração, os modelos econômicos foram alterados estruturalmente, os modelos de trabalho foram transformados pelo incremento da tecnologia, novos modelos de família estão surgindo e gerando transformações constantes, neste cenário, percebemos alterações nos comportamentos e relações sociais, destruindo paradigmas anteriores que embalaram as vivências sociais durante séculos, ou seja, vivemos num mundo em rápidas alterações, diferentemente dos modelos anteriores e marcadas pela rapidez, pelos grandes desafios e novas oportunidades.

A sociedade contemporânea prescinde de uma visão mais ampla dos agentes sociais e econômicos, deixando seus interesses mesquinhos e imediatistas, combatendo formas degradantes de acumulação, fortalecendo a governança das organizações, construindo valores de sustentabilidade, protegendo o meio ambiente, investindo em energias alternativas, canalizando recursos financeiros e monetários para os grupos que querem produzir, facilitando a geração de emprego e renda para que os indivíduos tenham acesso a crédito com taxas de juros condizentes com seus empreendimentos, limitando os grupos rentistas e financistas que limitam os recursos dos investimentos produtivos, além de construirmos um ambiente que garanta uma verdadeira justiça tributária. O caminho é tortuoso, nunca esqueçam, mas os maiores desafios estão no campo político.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/05/2023.

Operação Impeachment, de Fernando Limongi

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Uma leitura instigante para compreender um momento de grande relevância para a sociedade brasileira, “Operação Impeachment”, do cientista Político Fernando Limongi, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), faz um mergulho sobre os movimentos que levaram a queda da presidente Dilma Rousseff. No livro o cientista político destaca o papel da Operação Lava Jato na queda da presidente. Uma leitura memorável e imprescindível para compreendermos o Brasil contemporâneo

A nova cara da pobreza brasileira, por Laura Machado.

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Entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para uma de 29% em 2022

Laura Machado, Professora no Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo.

Folha de São Paulo, 20/05/2023

No início deste século, a pobreza no Brasil tinha um perfil: éramos um país onde a maioria da população vulnerável estava inserida no mercado de trabalho. O retrato da pobreza era o de trabalhadores pobres.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, em 2001, a taxa de ocupação dos brasileiros entre os 10% mais vulneráveis era de 54%. Dá-se o nome de taxa de ocupação à razão entre a população trabalhando e a população economicamente ativa.

Naquele momento, os mais vulneráveis trabalhavam mais de 40 horas por semana, na informalidade, em péssimas condições de trabalho, tinham baixa remuneração e pouca produtividade. Provavelmente as condições de saúde física desses trabalhadores, por conta da sobrecarga, não eram as melhores.

O desafio de política pública para diminuir a pobreza era tornar o trabalho digno: melhorar as condições de trabalho, combater a informalidade, aumentar a produtividade e a remuneração de um grupo de pessoas vulneráveis que majoritariamente estava inserido no mercado de trabalho.

Vinte anos depois, o retrato da pobreza no Brasil mudou. Entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para uma de 29% em 20 22, metade do que tínhamos há 21 anos. Em outras palavras, os mais pobres brasileiros estão fora do mercado de trabalho.

O novo perfil da pobreza é diferente. O retrato é de um grupo de pessoas em busca de trabalho e que não conseguem se inserir há alguns anos. Depois de anos em busca de trabalho voltando para casa sem sucesso, provavelmente as condições de saúde mental dessa população devem ter se agravado.

De acordo com o IBGE, entre os 10% mais pobres que querem trabalhar, 64% não estão plenamente ocupados. Os mais vulneráveis querem voltar ao trabalho e não estão conseguindo.

O desafio para política pública, agora, envolve buscar ativamente essas pessoas excluídas há algum tempo e incorporá-las de volta ao mercado de trabalho.

Concomitante a essa inclusão, a política pública precisa retomar a agenda anterior, de melhoria da condição de trabalho e da produtividade. Precisamos incluir e tornar o trabalho dos mais pobres um trabalho digno.

Muitas são as hipóteses, não testadas, sobre as causas do novo retrato de exclusão do mercado de trabalho. Aumento do salário reserva, aumento do salário mínimo e mudanças tecnológicas são as principais em estudo. Todas as três tiverem avanços importantes em 2023, o que provavelmente acentua a tendência de exclusão em curso.

O problema urge de uma resposta do tamanho da sua gravidade, e quanto mais ele se prolongar, mais difícil se torna a inclusão ao trabalho. De acordo com o artigo 6º da nossa Constituição, o trabalho digno é um direito social assim como saúde, educação, entre outros. A inclusão ao trabalho é um direito e, portanto, um fim em si mesmo.

A transferência de renda aos pobres por si só importa, mas longe de ser suficiente: os brasileiros mais pobres não só têm o direito, mas estão dizendo que querem trabalhar. Precisamos mudar esse retrato.

A culpa foi do impeachment de Dilma? por Celso Rocha de Barros

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Há muito a reconstruir no sistema político após uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 21/05/2023.

A editora Todavia acaba de publicar um livro muito bom: “Operação Impeachmet”, de Fernando Limongi. Trata-se de um dos maiores cientistas políticos brasileiros, autor, com Argelina Figueiredo, de um trabalho clássico que mostrou que o presidencialismo de coalizão funcionava bem melhor do que se acreditava.

Em “Operação Impeachment”, a proposta de Limongi é simples: com base exclusivamente em fatos noticiados pela imprensa (que eram, portanto, de conhecimento dos atores políticos quando tomaram suas decisões), Limongi conta a história que começa nos conflitos internos do primeiro mandato de Dilma e desemboca no impeachment.

Há, entretanto, um arcabouço teoricamente informado que conduz o texto.

Quando Limongi descreve as ações de Dilma ou de seus adversários, está sempre se perguntando: por que aqueles mecanismos que antes funcionavam no presidencialismo de coalizão não funcionaram em 2016? Limongi está conversando com sua própria obra e com 30 anos de ciência política brasileira.

Por outro lado, Limongi não está interessado nos grandes discursos sobre o impeachment. Não tem maior interesse em discutir se foi ou não foi golpe: o que lhe interessa é justamente o fato de que as instituições ainda estavam ali, mas deixaram de funcionar.

Tampouco tem paciência com a historinha “a gente pegou o PT roubando aí foi lá e derrubou a Dilma”. As delações da Lava Jato mostram um cartel de empreiteiras que funcionava havia décadas e financiava todo mundo, inclusive todo mundo que fez o impeachment.

A tese “o problema foi que a Dilma era inábil” é acolhida com bem mais ressalvas do que de hábito: mesmo que Dilma tenha falhado, jogou duro contra seus adversários, ganhou por muitos anos e esteve longe de ser a única que jogou errado.

Limongi também demonstra saudável ceticismo diante da ideia, comum entre alguns petistas, de que Lula no lugar de Dilma teria resolvido todas as crises políticas.

Mas se Dilma jogou, por que caiu? A explicação, segundo Limongi, é a Lava Jato.

Não porque as descobertas da operação tenham inspirado um movimento de massas que derrubou a presidente. Os políticos brasileiros fizeram o impeachment para se defender da Lava Jato, pois não acreditavam mais que Dilma seria capaz de pará-la.

Leitores antigos da coluna sabem que essa também é minha interpretação. No final, a Lava Jato foi mesmo desmontada pela rapaziada que estava do lado de Deltan Dallagnol no discurso da semana passada. Mas a centro-direita que fez o impeachment foi dizimada na eleição de 2018, com consequências terríveis para a democracia brasileira daí em diante.

O que o livro de Limongi nos obriga a perguntar é qual teria sido a reação produtiva do sistema político às revelações da Lava Jato. Do ponto de vista do interesse racional dos atores que fizeram o impeachment, que alternativa havia? Aceitar a prisão quando suas conexões com o cartel das empreiteiras fossem reveladas? Do ponto de vista do país, só havia as alternativas “acordão” e “cruzada fratricida”?

De qualquer forma, o livro de Limongi é importante para mostrar que há muito que vale a pena reconstruir no sistema político brasileiro depois de uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada.