Convergências

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Vivemos momentos de grandes incertezas e volatilidades, com impactos generalizados para toda a sociedade brasileira, vivemos momentos de medos, preocupações e fortes desagregações sociais, instabilidades econômicas e grandes conflitos políticos, sem convergências e sem rumo para construirmos uma estratégia consistente para a reestruturação da economia nacional. Sem rumos consistentes, os desafios tendem a crescer, as perspectivas de melhora econômica diminuem rapidamente, oportunidades tendem a ser menores e perpetua o incremento da desigualdade, dos conflitos sociais e a degradação política, estamos vivendo momento de fortes degradações, exigindo decisões conjuntas e fortes convergências.

A economia brasileira perdeu a vocação do crescimento econômico, desde os anos 1980, depois de um período de forte crescimento econômico, a sociedade passou a viver instabilidades crescentes, alternando inflação alta, dificuldades externas, taxas de juros elevadas, desindustrialização, degradação das condições de trabalho e de emprego, além de arrocho salarial e redução do mercado interno de consumo, que contribuíram para a fragilização dos trabalhadores, seu endividamento crescente e uma forte degradação política que caminha para uma grande convulsão social.

Neste momento precisamos reconstruir os laços sociais, reestruturar as bases da economia nacional, investir fortemente em ciência e tecnologia, retomando o poder e a centralidade da educação como instrumento de ascensão social, rechaçando os discursos inconsistentes de empreendedorismo como instrumento de retomada do crescimento econômico. Precisamos atuar fortemente para reduzirmos o poder político e econômico dos grandes conglomerados que monopolizam os mercados e impedem a entrada de novos concorrentes, degradando os instrumentos de regulação governamental, impondo sua agenda e auferindo lucros extraordinários.

Nossa sociedade está envolta em grandes degradações políticas, discursos agressivos e ódios e de ressentimentos, vivemos momento de graves conflitos, onde as discussões políticas, fundamentais para a construção de consensos, passou a ser substituída por grandes violências, agressividades e, neste cenário, percebemos que estamos cultivando devastações crescentes, com atrasos institucionais, degradação do meio ambiente, estimulo de uma sociedade centrada da exploração e da insegurança. Neste ambiente, os investimentos produtivos se reduzem, os grandes conglomerados se afastam do país, somos relegados ao esquecimento e não participamos dos grandes fóruns internacionais, levando-nos a sermos vistos como um grande pária internacional.

A reconstrução nacional prescinde de um amplo consenso nacional, onde todos os grandes atores sociais, políticos e econômicos precisam ambicionar a reestruturação da nação, deixando seus interesses imediatos e a busca de um projeto nacional que coloque no centro a redução das desigualdades, reestruturações econômicas e produtivas e uma consolidação de um sistema de justiça que perpetuam as violências e as degradações que permeiam a sociedade e contribuem fortemente para que nossa estrutura social se fragiliza, mostrando a incapacidade de grupos privilegiados, rentista e gestores financeiros que ganham com essa condição social de indignidade e exploração.

No cenário de desintegração que vivemos, os grupos econômicos e políticos usam seus poderes para garantir vantagens e benefícios imediatos, deixam de pensar no longo prazo e se digladiam no agora, buscando ganhos e se esquecem que, muitas vezes, seus ganhos geram desagregações de outros setores, garantindo ganhos imediatos e destroem seus setores no longo prazo, abandonamos o planejamento, as estratégias e nos esquecemos que vivemos num mundo altamente concorrencial.

Em momentos de grandes polarizações políticas, incertezas econômicos e devastações sociais como este, precisamos reconstruir canais de negociações democráticas, arregimentar grupos sociais, fortalecer as instituições e consolidar políticas públicas, buscando consenso, punindo os focos de desequilíbrios e buscando a construção de um novo projeto nacional. Sem um verdadeiro projeto nacional, nosso destino é chafurdarmos na lama da desagregação social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/02/2023.

A Extrema Direita, por Dennis Lerrer Rosenfield

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A bolha de sua mentalidade furou; resta saber-se haverá uma força capaz de reunir os despojos ou se o Bolsonarismo ainda tentará se organizar

Dennis Lerrer Rosenfield, Professor de Filosofia da UFRGS

O Estado de São Paulo – 13/02/2023

A experiência dos últimos quatro anos foi rica em ensinamentos, em particular o da extrema direita no poder. Embora no início o desenho não estava nítido, ganhou no decurso do tempo contornos precisos. O antipetismo foi a sua bandeira primeira, num amálgama de valores conservadores e liberais, dando progressivamente lugar a pautas antidemocráticas e antiliberais. O estilo bronco e, às vezes, engraçado de Bolsonaro foi se mostrando grotesco e mesmo cruel em sua campanha contra a vacinação, literalmente gozando da morte alheia, expondo sua falta completa de compaixão – algo, aliás, contrário aos valores religiosos que dizia defender.

O “jogo dentro das quatro linhas da Constituição” foi uma mera encenação com o intuito de minar a ordem democrática, de preferência via eleições, como se a democracia pudesse ela própria ser subvertida, paradoxalmente, por instrumentos eleitorais. A campanha contra o sistema eleitoral, o combate insano de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas e a contestação das eleições puseram a nu um líder de perfil claramente autoritário. Quem com ele não estava se tornava um inimigo, inclusive seus amigos de ontem. Uma vez que o malogro de seu projeto reeleitoral se esboçava, a tentativa mais explícita de golpe foi se apresentando como uma alternativa real.

Fiou-se ele nas Forças Armadas e, em particular, no Exército, acreditando que elas o seguiriam em quaisquer circunstâncias, mesmo ao arrepio da disciplina militar. Ocorre que, no jogo do poder, a maior parte dos militares só aceitou jogar nas quatro linhas da Constituição, rechaçando qualquer arremedo de legalidade para o emprego da violência. Militares avançados se puseram na consolidação da ordem democrática, dizendo não a qualquer tentativa golpista. Os renitentes terminaram se alinhando, visto que sua formação os colocava na defesa da disciplina e contra qualquer tipo de quebra de hierarquia. Uma instituição hierarquicamente quebrada deixa de ser propriamente uma instituição de Estado. Ali fracassou o golpe.

O estertor deste processo foram as manifestações do dia 8 de janeiro, com a invasão e depredação dos centros do poder republicano: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O simbolismo foi forte. A máscara democrática caiu, entrando em seu lugar a violência própria da extrema direita, embora saibamos que não lhe é exclusiva, haja vista a experiência comunista. A horda bolsonarista agiu sem freios, ainda acreditando em seu líder, o “mito”, que viria a liderar presencialmente este processo, crendo, ademais, que os militares de extrema direita nele a seguiriam. A partida democrática, porém, já estava previamente ganha, seja pelo pleno funcionamento das instituições, seja pelo resultado eleitoral majoritariamente reconhecido, seja pela atuação decisiva dos militares constitucionalistas. E o “mito” sumiu!

O “mito” refugiou-se nos arredores da Disney, como se lá fosse mais divertido do que o seu próprio país, após as arruaças e instabilidades política e institucional aqui produzidas. Contudo, a extrema direita vive de seus líderes, pessoas resolutas em seu processo político, como bem demonstraram figuras como Hitler, Mussolini e Franco. Enfrentaram intempéries até chegarem ao poder e lá se consolidarem. O líder mantém a coesão de seus liderados, uma espécie de cola que a todos une. Sem esse fator agregador, seus apoiadores se dispersam. O que podem hoje bem pensar aqueles que, com chuva, calor e frio, se reuniram na frente dos quartéis, quando contrastam a sua experiência com a do “mito” no aconchego de um condomínio residencial em Orlando, com todas as comodidades materiais?

A questão que se coloca, portanto, é a de se essa experiência eu diria limite da extrema direita tem condições de perpetuar-se, não apenas por causa da derrota do “mito”, mas principalmente pelo seu sumiço. Provavelmente, os que nele acreditaram, num número impressionante de cerca de 50% do eleitorado, vão agora escolher novos caminhos, considerando que muitos que o seguiram o fizeram por rechaço à experiência petista. Agora, as posições se invertem, com Lula tendo sido, por sua vez, eleito por repúdio à experiência bolsonarista. O Brasil continua oscilando neste pêndulo.

A força do bolsonarismo estava em sua coesão sob o seu líder, em campanhas midiáticas baseadas na mentira e no ataque constante a inimigos reais e imaginários, em motociatas cujo perfil se assemelhava, num mundo digital, às milícias nazistas ou fascistas. No caso destas, com organizações próprias e firme apoio partidário. Aqui, seja por falta de tempo, seja por ausência de um projeto totalitário mais firme, a improvisação terminou se impondo.

Em suma, a bolha da mentalidade de extrema direita furou, com a realidade entrando por todos os seus furos, como águas num navio afundando. Resta, agora, saber se haverá uma força de centro, mais à direita ou mais à esquerda, capaz de reunir esses despojos ou se o bolsonarismo ainda tentará reorganizar as suas forças.

André Lara Resende: taxa de juros de 13,75% está errada.

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Por Jorge Barbosa – O Estado de São Paulo, 13/02/2023

O economista André Lara Resende afirmou que a manutenção da taxa Selic em 13,75% ao ano é um erro, pois desaquece a economia sem combater efetivamente a inflação. “A economia brasileira precisa ser desaquecida neste nível? Com a taxa de juros real mais cara do mundo hoje? Claramente não”, afirmou Resende, em entrevista ao programa Canal Livre, da Band, exibida na madrugada desta segunda-feira, 13.

“O fato é que tivemos uma quebra no varejo, no caso da Americanas e outras áreas deste setor enfrentam problemas, o que fez os bancos retraírem drasticamente o crédito. Quando temos uma contração como essa no crédito, se agrava o processo de desaquecimento da economia e embica numa recessão que pode ser muito séria”, disse o economista.

Lara Resende, que participou da equipe de transição do governo Lula na área econômica, afirmou ainda que o Banco Central tem como objetivos controlar a inflação, promover a estabilidade do sistema financeiro e garantir o mais próximo possível do pleno emprego. “Obviamente que essa taxa de juros de 13,75%, 8% real, é incompatível com esses objetivos. Ela está errada.”
Gastos públicos

O economista contestou a ideia de que um eventual cenário de aumento dos gastos públicos possa provocar uma onda inflacionária no País. “Estamos saindo de 1,3% de superávit primário no ano passado. Agora, este ano, o autorizado pela PEC (da Transição) é um gasto de mais 2%. A arrecadação vai surpreender positivamente. Se gastarmos o valor integral da PEC, ainda que a arrecadação ficasse onde estava, no mesmo nível, teríamos equilíbrio primário. O Orçamento, a previsão é que você possa ter um déficit primário de 1%. Isso é grave? Claro que não”, afirmou.

Lara Resende disse também que o fenômeno da inflação em todo o mundo foi provocado pela desorganização das cadeias produtivas, e que não houve relação com o aumento de gastos por parte dos governos. “A oferta se contraiu e houve uma reação inflacionária. Em cima dessa pressão veio a guerra da Ucrânia, que subiu o preço de energia e alimentos por causa, inclusive, dos fertilizantes. Então esta foi a inflação.”

O economista comentou ainda que “se a taxa de juros alta combatesse a inflação, nós não precisaríamos ter feito o Plano Real” – do qual foi um dos formuladores. “Quando eu assumi a diretoria do BC (nos anos 1980), nós tínhamos a maior taxa básica de juros da história e não havia sinal de que a inflação ia retroceder”, disse.

Reforma tributária

Lara Resende também demonstrou pessimismo com a possibilidade de aprovação da reforma tributária. “Eu não acho que seja uma boa ideia votar a reforma tributária. Todo mundo é a favor dessa reforma, a ideia dessa simplificação, a criação do Imposto sobre o Valor Agregado, isso é em princípio uma ideia muito boa. Só que ela provoca, como todo tema tributário, muitas reações, então há resistências por todos os lados. Não é à toa que ela nunca foi aprovada”, disse o economista, que recentemente assumiu um cargo na Comissão de Estudos Estratégicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Ele disse ainda que considera “muito difícil” a aprovação da reforma de maneira integral. “Você vai repartir essa proposta e a discussão dela vai tomar tempo.”

O economista também relativizou a importância da mudança no sistema tributário. “Não acho que a reforma tributária possa ser posta como o principal objetivo do País. O principal objetivo que precisamos definir é a recuperação do desenvolvimento. O Brasil deveria crescer, pelo menos, 5% até 7% nos próximos anos, como cresceram todas as economias asiáticas”, disse Lara Resende, que ressaltou a importância a importância da reforma, apesar das críticas que fez.

Crise na Terra Indígena Yanomami: saúde, meio ambiente, direitos humanos, por Márcia Castro

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Governo precisa não só responder à emergência, mas desfazer estragos dos últimos 4 anos

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 13/02/2023

Em 1984, foi proposto um modelo para o estudo dos determinantes da sobrevivência de crianças nos primeiros cinco anos de vida. Destaco três pontos importantes do modelo.
Primeiro, sob condições ideais, cerca de 97% das crianças deveriam sobreviver até os cinco anos de idade. A morte durante essa etapa da vida é, em sua maioria, uma consequência do efeito acumulado de fatores adversos que progressivamente deterioram a saúde.

Segundo, há cinco categorias de determinantes próximos que afetam diretamente a sobrevivência. Aqui estão incluídos fatores maternos (como idade da mãe), contaminação ambiental (ar, comida, água, insetos), deficiências nutricionais, acidentes e formas de controle de doenças.
Terceiro, variáveis socioeconômicas modificam os determinantes próximos e, através deles, afetam a sobrevivência de crianças. Essas variáveis estão relacionadas aos pais, ao domicílio e ao contexto ecológico, político e institucional no qual a criança está inserida.

A crise humanitária na terra Yanomami, a maior do país e localizada em Roraima, exemplifica esse modelo. A crise não é resultado de um evento único, imediato. O quadro severo de desnutrição das crianças, o pior já reportado entre comunidades indígenas nas Américas, não aconteceu da noite para o dia. A crise que ganhou a atenção do Brasil e do mundo em janeiro é reflexo de sucessivas ações de negligência, negação de direitos e mudanças na legislação ambiental.

Ressalto alguns eventos nesse processo cumulativo que contribuíram para a crise e que afetaram os determinantes próximos que mencionei anteriormente.

A partir da década de 80, quando ouro foi descoberto na terra indígena Yanomami, atividades ilegais de garimpo resultaram em epidemias de tuberculose e malária. Além disso, o uso do mercúrio nas atividades de garimpo contamina rios, peixes, plantas e o ar. As consequências são inúmeras e podem ser fatais (leucemia, atraso no desenvolvimento, complicações neurológicas etc.).

Após o desmonte do programa Mais Médicos, mais de 80% dos médicos que prestavam atendimento à população indígena perderam seus empregos e não foram totalmente substituídos. Isso afetou a capacidade de vigilância e controle de doenças.

Durante os últimos quatro anos, mudanças na legislação ambiental favoreceram o desmatamento e expansão do garimpo ilegal (extração o de ouro e cassiterita). A Terra Indígena Yanomami é a terceira em área garimpada, ficando atrás das terras Kayapó e Munduruku, ambas no Pará. Além disso, é a que possui o maior número de pistas de pouso, 75 ao todo, 34% localizadas a menos de 5 km de uma área de garimpo.

A malária nessa área aumentou drasticamente. Em 2021, cerca de 46% dos casos de malária em localidades indígenas foram observados na terra Yanomami. Em Roraima, do total de casos de malária reportados em 2017, 0,1% eram em localidade de garimpo e 22,6% em localidades indígenas. Em 2021 esses percentuais foram 26,4% e 54,9%, respectivamente.

A expansão desenfreada do garimpo também trouxe a violência (homicídios e estupros) e afetou a organização social do povo yanomami devido a cooptação de jovens indígenas para trabalhar no garimpo.

A crise humanitária na Terra Indígena Yanomami é uma tragédia anunciada. Não faltaram estudos, relatos e ofícios de alerta enviados ao Ministério Público Federal, à Funai e ao Exército. Todos vergonhosamente ignorados.

O atual governo não só precisa responder a essa emergência de saúde, humanitária e ambiental, como precisa reverter os estragos dos últimos quatros anos. Tarefa hercúlea de reconstrução, já em curso, fundamental para a sobrevivência da floresta e dos povos indígenas.

Regular redes é essencial para conter guerras civis, diz Barbara Walter

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Cientista social diz que Trump e Bolsonaro deixaram EUA e Brasil mais próximos de conflitos

Uirá Machado, Na Folha desde 2004, é formado em direito e em filosofia na USP, foi editor de Tendências / Debates, Opinião, Ilustríssima e Núcleo de Cidades, além de secretário-assistente de Redação.

Folha de São Paulo, 11/02/2023

[RESUMO] Em entrevista, a cientista política Barbara Walter debate o recuo da democracia e a expansão de guerras civis no mundo, aponta que a radicalização política é impulsionada pelo modelo de negócios de big techs e sustenta que a situação do Brasil e dos Estados Unidos, afligidos por ataques golpistas, é frágil. Republicanos e bolsonaristas, diz, estão a caminho de se tornarem facções, o que demanda força de instituições e de outros partidos políticos

Duas tendências identificadas nos últimos anos preocupam acadêmicos em diversas partes do mundo.
A primeira, já bem mapeada pela literatura recente da ciência política, é o declínio da democracia, com a ascensão de políticos autoritários que tomam o poder sem recorrer a um golpe de Estado tradicional.

A segunda ganhou notoriedade com a publicação, no ano passado, de “Como as Guerras Civis Começam e Como Impedi-las” (Zahar). Escrito pela cientista política Barbara F. Walter, da Universidade da Califórnia em San Diego, não demorou a se colocar entre os mais vendidos nos EUA.

O motivo é simples: Walter dá um novo passo na trilha aberta por obras que já se tornaram clássicos, a exemplo de “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e “Como a Democracia Chega ao Fim” (Todavia, 2018), de David Runciman.

Em seu livro, Walter mostra que as guerras civis costumam estourar não em democracias nem em ditaduras, mas em países que estão passando de um desses sistemas para o outro, e que esses conflitos se tornaram cada vez mais frequentes no século 21, a ponto de o pico histórico ter sido atingido em 2019.

O que explica essa tendência? “Não sabemos ao certo, mas temos uma suspeita forte: a ascensão das redes sociais”, afirma em entrevista à Folha.

Se ela diz, vale a pena prestar atenção, mesmo que se trate de uma suspeita. É que Walter acumula mais de 30 anos de estudos sobre guerras civis, incluindo a participação na Força-Tarefa sobre Instabilidade Política, criada pelo governo dos EUA nos anos 1990 para construir um modelo capaz de prever a erupção de conflitos em qualquer país.

Com base em sua experiência, Walter diz que Donal Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro (PL), no Brasil, aumentaram a chance de haver uma guerra civil nesses dois países.

A literatura recente sobre democracia tem apontado um novo padrão de golpe de Estado, e seu livro faz o mesmo em relação às guerras civis. Poderia explicar essas mudanças? São duas grandes tendências. Uma é a de declínio da democracia. As democracias vinham se expandindo pelo mundo a ponto de a gente pensar que todos os países adotariam esse sistema.

Isso mudou em 2010. Desde então, a cada ano há menos democracias e, pela primeira vez, isso tem afetado até as mais maduras e fortes, como Reino Unido, Estados Unidos, Suécia e Espanha.

No século 20, quando uma democracia desaparecia, geralmente era por meio de um golpe militar, mas essa não é mais a norma. Agora prevalece o que vou chamar de “modelo Viktor Orbán” [premiê da Hungria]. Ele tem sido o grande inovador nesse sentido.

Ele descobriu que não é necessário dar um golpe militar: você pode chegar ao poder por meio de uma eleição e, quando as pessoas não estiverem prestando atenção, você começa a desmontar os sistemas de controle sobre o Executivo; você faz isso lenta e metodicamente, de modo que, quando as pessoas perceberem que o poder está concentrado nas suas mãos, será tarde demais para reagir.

Trump observou esse método atentamente. Bolsonaro também. É quase como se Orbán tivesse mostrado a eles um manual de como fazer isso legalmente e sem envolvimento militar. Agora, esses aspirantes a ditador disputam eleições, controlam a mídia e moldam uma narrativa sobre si mesmos como líderes eficientes, fortes e necessários em um contexto de nacionalismo, medo e ameaças.

E com relação às guerras civis? Essa é a outra tendência: o aumento de guerras civis e da violência política. Do fim da Segunda Guerra Mundial até 1992, o número de guerras civis foi aumentando, com algumas oscilações. A partir de 1992, houve uma reversão desse padrão; pensamos que tínhamo s conseguido descobrir como resolver esses conflitos para viver em um período de paz.

A partir de 2002, porém, as guerras civis têm aumentado todos os anos em todo o mundo. Estamos agora em um nível mais alto que o de 1992.

Também vemos ao redor do mundo o aumento do nacionalismo étnico, o crescimento do número de partidos de extrema direita, de líderes do tipo lei e ordem. Vimos isso com [Rodrigo] Duterte nas Filipinas, com Bolsonaro no Brasil, com [Narendra] Modi na Índia, com [Recep Tayyip] Erdogan na Turquia, com Trump nos Estados Unidos.

Há também uma nova forma de violência política, que é descentralizada. As guerras civis de hoje envolvem mais grupos que no passado. Se você pensa na Síria, há centenas de facções de cada lado.

É uma mudança súbita: temos muito mais grupos, as guerras duram mais tempo e há mais intervenção externa.

O que explica isso? Não sabemos ao certo, mas temos uma suspeita forte: a ascensão das redes sociais. Elas permitem que forças antidemocráticas –seja Vladimir Putin, o governo chinês ou os Trumps do mundo— espalhem desinformação na internet, convencendo as pessoas a não confiar nas eleições e a não apoiar a democracia, argumentando que governos autocráticos são melhores. Essa maneira sub-reptícia de atacar a democracia não existia no passado.

As grandes empresas de tecnologia têm o mesmo modelo de negócios, que consiste em manter as pessoas tão ocupadas quanto possível com seus smartphones e computadores, e as informações que mantêm as pessoas conectadas por mais tempo são as que exploram o instinto de luta ou fuga, coisas que desencadeiam raiva, sensações de ameaça, de insegurança. O algoritmo oferece mensagens mais extremas.

Por exemplo, nos Estados Unidos, se você clicar em um link que mostra um policial salvando um filhote de gato em uma árvore, o algoritmo vai considerar que você é simpático à polícia. Começará então a te alimentar com mais informações a favor da polícia até que você esteja envolvido no debate a favor ou contra o Black Lives Matter.

Além disso, as redes sociais facilitam a mobilização de qualquer movimento. É uma mudança, porque antigamente era bastante difícil organizar uma milícia ou um grupo paramilitar. Isso tinha que ser feito com muito cuidado e de clandestinamente, e era difícil alcançar pessoas com as mesmas inclinações radicais.

A sra. afirma no livro que a maioria das pessoas não se dá conta de que uma guerra civil está a caminho até que a violência faça parte do cotidiano. Não existem sinais precoces? O governo dos Estados Unidos tem um manual chamado “Guia para a Insurgência”, que é usado pelos soldados americanos em outros países. O guia ensina o que procurar para saber se há uma insurgência ou não.

São três fases. A primeira etapa é a pré-insurgência, a segunda é insurgência incipiente, a terceira é insurgência aberta. Esse padrão se repetiu tantas vezes que é de fato possível identificá-los, mas, ao mesmo tempo, se você conhece os sinais, é perturbador ver populações ignorando os alertas.

Uma das coisas que acontecem, mesmo na primeira fase, é que, quando um grupo começa a se organizar, ele recruta membros, desenvolve uma ideologia, cria um conjunto de demandas.

Na segunda fase, o grupo adquire um braço militar e começa a realizar atos isolados de violência. Talvez esse seja o estágio em que os Estados Unidos e o Brasil estejam agora. Ocorrem ataques de terrorismo doméstico contra civis e líderes da oposição, talvez um candidato a presidente ou um juiz se torne alvo. Se houver elementos raciais, podem ocorrer massacres em bairros afro-americanos, igrejas, sinagogas.

Nessa fase incipiente, há uma tendência de rotular os ataques como isolados. Nos Estados Unidos, falamos em “lobo solitário”, como se fosse uma pessoa louca, sem conexão com um movimento maior.

O curioso é que o manual do governo americano fala especificamente sobre as pessoas não quererem acreditar que há um câncer crescendo na sociedade. É mais fácil descartar esses primeiros ataques e não ligar os pontos. Só quando esses ataques se tornam frequentes e já não se pode ignorá-los, as pessoas param para pensar se é algo maior. Mas, nesse momento, o movimento provavelmente já teve anos para crescer e se organizar.

A invasão do Capitólio nos EUA, e o ataque às sedes dos três Poderes, em Brasília, são eventos isolados ou indicam algo maior? Depende muito de como as coisas evoluem. Em ambos os casos, a ação foi contida. A invasão do Capitólio serviu de alerta para a sociedade e para o FBI. O FBI tem sido mais agressivo na identificação dos perpetradores e em levá-los a julgamento, e a pena de prisão deve enfraquecer o grupo de extrema direita por um tempo.

Porém, as coisas poderiam ter sido piores em ambos os casos. Por exemplo, os ataques poderiam ter sido bem-sucedidos nos EUA e Trump teria voltado ao poder. Além disso, eles poderiam ter se tornado mais violentos. A situação é frágil.

Sua pesquisa sugere que a transição, tanto da ditadura para a democracia como da democracia para a ditadura, é um fator relevante por trás da guerra civil. Por quê? Múltiplos estudos que analisaram fatores econômicos, políticos e geográficos perceberam que a transição era um dos dois mais importantes. Ou seja, se o governo do país é uma democracia parcial —nem totalmente autocrático nem totalmente democrático—, pode-se pensar em uma democracia fraca.

Se for uma autocracia que tenta se democratizar, o desmonte do aparelho repressivo cria uma oportunidade para que organizações ou pessoas se mobilizem para tentar capturar o governo. Foi o que vimos com o fim da Iugoslávia.

Mas também pode acontecer no sentido oposto, como vimos na Ucrânia. Quando o governo democrático entra em declínio, os cidadãos percebem que começa a se fechar uma janela para fazer suas reivindicações por meios não violentos. Isso cria um impulso para tentar evitar que se instale uma autocracia de fato.

Faz diferença a velocidade dessa mudança, seja para perto, seja para longe da democracia. Uma mudança rápida aumenta o risco. Não sabemos bem o motivo, mas suspeitamos que seja porque a mudança rápida indica um governo mais fraco, cercado de incertezas.

O outro fator que a sra. menciona no livro é a criação de facções. Como distinguir facções de grupos políticos? A faccionalização tem uma característica muito única. ela é racial, étnica ou religiosa. Nos Estados Unidos, os partidos estavam muito polarizados na década de 1960, mas um americano branco naquela época tinha tanta chance de ser democrata quanto republicano.

Isso não acontece mais hoje em dia. O Partido Republicano é quase 80% branco e, quase exclusivamente, cristão evangélico. Isso em um país multiétnico, multirracial e multirreligioso.

Ou seja, o partido fala apenas para um grupo racial e um grupo religioso. Essa é a diferença entre uma facção e uma simples polarização ideológica.

Além disso, quando Barack Obama foi eleito, a classe trabalhadora branca deixou de ser democrata para se tornar republicana. Se essas pessoas realmente se importassem com a ideologia, isso não faria sentido. O Partido Republicano quer desmontar a rede de segurança social e econômica que beneficia a classe trabalhadora.

A razão para a classe trabalhadora branca migrar para o Partido Republicano não tem a ver com ideologia; tem a ver com o fato de o Partido Republicano apelar ao nacionalismo étnico branco. Isso é uma facção.

Isso também se aplica ao Brasil? Pergunto porque os eleitores de Bolsonaro têm um certo perfil demográfico, mas o fator que mais parece agregá-los é o sentimento anti-PT. Eles são espertos.

Isso é apenas uma fachada para imigrantes, negros ou não brancos. Eu acho que há muitas semelhanças entre os Estados Unidos e o Brasil. Trump chegou ao poder, e seu partido se tornou cada vez mais nacionalista branco, pois demograficamente os brancos estão em declínio.

A parcela da população que tem formado milícias, que atacou o Capitólio e que nega eleições é formada de pessoas brancas que se sentem ameaçadas pelo fato de os brancos deixarem de ser maioria. Essas pessoas consideram um dever patriótico garantir que os cristãos brancos continuem no controle, mesmo que esse segmento se torne minoria, o que acontecerá por volta de 2045.

Isso já aconteceu no Brasil. Os brancos deixaram de ser maioria, e Bolsonaro entendeu o poder disso. Homens brancos ricos são os mais propensos a perder privilégios e poder.

Isso é uma facção? Ou está a caminho de se tornar uma facção. Quando um partido político passa esta mensagem: “Você é branco, deve votar em uma pessoa branca e, se eu for eleito, garantirei que as pessoas não brancas não tenham poder”, isso é muito diferente de “se você acredita no conservadorismo e deseja criar incentivos para as pessoas trabalharem duro, vote em mim porque essa é nossa visão de uma sociedade saudável”.

Em seu livro e nesta entrevista, a sra. cita Bolsonaro como exemplo de político que degradou a democracia e aumentou o risco de guerra civil. Poderia explicar melhor? Os estudos sobre guerra civil mostram que elas são mais prováveis em países com democracias parciais e com partidos baseados em uma identidade. O que Bolsonaro fez?

Ele quer enfraquecer a democracia do Brasil, apela cada vez mais para a raça. Ele não tem uma plataforma realmente baseada em ideologia. Ele está criando uma facção de brasileiros que cada vez mais acreditam que imigrantes são ruins, que brancos devem governar, que eles precisam tomar o país de volta.

Se ele tivesse sido reeleito, o risco aumentaria? Ele dobraria a aposta em sua estratégia, de modo que as duas condições para a guerra civil —democracia parcial e apelos à identidade— teriam continuado. Sabemos que, a cada ano que passa dentro dessas condições, o risco de guerra civil aumenta.

A derrota dele significa que não existe mais risco? Não. A situação não depende de uma pessoa específica, mas sim da força da democracia e dos tipos de partidos políticos existentes. Nos Estados Unidos, temos sorte de ter um presidente que acredita na democracia e não piora a situação, mas ele não conseguiu implementar reformas institucionais.

Que reformas precisam ser feitas? A coisa mais importante é regular as mídias sociais.
Como fazer isso sem ameaçar valores democráticos? Líderes de grandes empresas de tecnologia, como Mark Zuckerberg, se escondem atrás da primeira emenda da Constituição americana e dizem que regulamentar as mídias sociais representa um ataque à liberdade de expressão.

Isso é besteira. Todas as outras mídias são regulamentadas. Sabemos como fazê-lo.

Mas vamos aceitar o argumento. Vamos deixar as pessoas colocarem o que quiserem na internet. É só regular os algoritmos. É só não permitir que as empresas projetem algoritmos que divulguem as informações mais odiosas, assustadoras e negativas.

O que os algoritmos fazem é selecionar informações específicas e disseminá-las quase instantaneamente para milhões de pessoas. Isso não é um direito protegido pela Constituição. É aquela citação: “liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de alcance”.

BARBARA F. WALTER, 58
Professora de assuntos internacionais na Escola de Políticas e Estratégias Globais da Universidade da Califórnia em San Diego. Doutora pela Universidade de Chicago, com pós-doutorado pelas universidades Colúmbia e Harvard, é consultora dos departamentos de Defesa e Estado dos EUA e desenvolve pesquisas no campo da segurança internacional, com ênfase em extremismo, grupos rebeldes e guerras civis. Autora, entre outros livros, de “Como as Guerras Civis Começam e Como Impedi-las”.

Juros: os obstáculos diante de Lula e algumas saídas, por Paulo Kliass

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Duas medidas podem aliviar as imposições do financismo, que mantém Selic nas alturas. Uma delas é usar bancos públicos para oferecer crédito sem juros leoninos. Outra é recuperar a função do BNDES: financiar o desenvolvimento nacional

Paulo Kliass – Outras Palavras – 07/02/2023

Ao longo dos últimos dias, o presidente Lula tem subido o tom contra o patamar da taxa de juros em nosso país. Ele identificou corretamente o foco principal desse fenômeno que tem provocado graves danos à sociedade e à economia brasileiras ao longo das últimas décadas. Afinal, a definição da Selic é uma atribuição do Comitê de Política Monetária (Copom), um colegiado composto pelos mesmos nove integrantes da diretoria do Banco Central (BC), que se reúnem em um evento especial a cada 45 dias.

É importante lembrar que, nas duas últimas vezes em que o Copom se encontrou, o Brasil já conhecia seu novo presidente da República e o programa para o qual ele havia sido eleito. Na 251ª reunião realizada em 6 e 7 de dezembro e na 252ª, em 31 de janeiro e 1º de fevereiro, o colegiado optou por manter a Selic em 13,75%, tal como vinha ocorrendo durante a gestão de Bolsonaro e Paulo Guedes. Na primeira delas, o processo de transição entre os governos estava em curso e os membros da diretoria do BC sabiam muito bem da contradição que esse nível de juros apresentava com a intenção de retomar o caminho do crescimento e do desenvolvimento. Já na segunda reunião, o acinte de manter a SELIC na estratosfera foi ainda mais flagrante e caíram no ridículo as tentativas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de se mostrar simpático e compreensivo com o presidente do BC, Roberto Campos Neto.

Com a aprovação da Lei Complementar nº 179 em 2021, o superministro da economia atendeu ao desejo de seus parceiros do financismo. O governo de Bolsonaro fez uma enorme pressão para que o Congresso Nacional aprovasse a independência do BC. Assim, a diretoria do órgão com a qual Lula está obrigado a conviver no início de seu mandato foi toda indicada por Bolsonaro e Paulo Guedes.

O neto de Roberto Campos, economista monetarista e conservador que serviu ao regime militar desde o início e foi um dos idealizadores da própria criação do BC em 1964, encerra a saga da família com a missão de sabotar as tentativas de Lula levar à frente seu programa de governo. A política monetária é indissociável do conjunto da política econômica e o patamar de juros atual inviabiliza, na raiz, a retomada dos investimentos necessários para superar o quadriênio da destruição que se abateu sobre o Brasil.
BC independente sabota Lula.

Para obter alguma decisão favorável às necessidades de uma Selic compatível com um cenário de crescimento das atividades, Lula precisaria convencer a maioria do Copom daquilo que eles são contrários. Assim, ou Roberto Campos Neto e seus diretores renunciam aos seus cargos ou fica muito difícil termos uma política monetária harmonizada com os desejos do presidente da República. Não parece sensato assumir a avaliação ingênua e irrealista de que os membros da diretoria do BC possam em algum momento incorporar um lampejo de civilidade republicana e passem a acatar a sugestão de promover uma redução significativa na Selic. Apesar disso, talvez o caminho de se criar uma frente ampla contra os juros elevados possa surtir algum efeito. Afinal, na conjuntura pós-eleitoral, talvez sentindo a pressão vinda do Palácio do Planalto, até mesmo o presidente da Federação dos Bancos (FEBRABAN) tem afirmado publicamente que o nível de juros deveria ser reduzido.

Mas mesmo que o núcleo duro do governo não encontre soluções a curtíssimo prazo para reduzir a Selic, Lula tem a seu dispor um importante instrumento para baixar o custo do crédito e dos investimentos. Trata-se da possibilidade de recorrer aos bancos públicos para que ofereçam recursos para indivíduos, famílias e empresas com taxas de juros sem os astronômicos spreads cobrados pela banca. Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica Federal (CEF), por exemplo, podem passar imediatamente a operar com taxas muito mais baixas do que a concorrência privada. Não faz sentido algum prosseguir com esse processo de “bradesquização” dos bancos federais, que se inspiram na verdadeira prática de extorsão levada a cabo pelos poucos e mastodônticos integrantes do oligopólio financeiro privado. Não existe razão para que os bancos públicos continuem a registrar em seus resultados rubricas vergonhosas de lucros bilionários, obtidos às custas de diferencial abusivo entre as taxas de captação e as de empréstimo, sem mencionar as tarifas igualmente elevadas.

Banco público: missão social a cumprir

O ponto essencial é o governo assumir que banco público tem que servir, em primeiro lugar, à sua função social e não à busca desenfreada e antiética de ganhos a qualquer custo. Se a banca privada tanto clama pela concorrência, pois que se adaptem à nova realidade do setor, onde os bancos comandados pelo governo federal passem a se orientar pelo serviço prestado ao Brasil que produz e à maioria da população e não aos lucros insanos e exorbitantes do capital parasita. Para levar à frente esse programa de expansão de crédito a custos financeiros mais baixos, Lula não necessita de nenhuma alteração legal ou institucional. Basta discutir com a direção dos bancos públicos esta nova orientação e aguardar os efeitos imediatos que tais medidas deverão provocar na procura de recursos junto aos mesmos.

Outra linha de atuação é o BNDES. Lula foi à cerimônia de posse do novo presidente da instituição, Aloísio Mercadante e mais uma vez deixou marcada sua insatisfação com o nível dos juros e com os obstáculos impostos pela independência do BC. Mas também deixou um recado explícito ao recém-empossado, no sentido de recuperar a função precípua do banco: emprestar recursos para financiar o desenvolvimento e a reindustrialização do país. O banco, que chegou a superar a capacidade de financiamento do próprio Banco Mundial durante o segundo mandato de Lula em 2011, sofreu um processo criminoso de garrote e de esvaziamento a partir do golpe contra a presidente Dilma em 2016. Os interesses do financismo foram plenamente atendidos sob gestão Temer e Bolsonaro, de forma que o BNDES e os demais bancos públicos ficaram impedidos de cumprir com suas respectivas missões. Mais uma vez os dirigentes políticos de plantão impuseram ao Estado o lema de oferecer todo poder à banca privada.

Baixar a Selic e os juros cobrados pelos bancos federais

O atual presidente, em seu terceiro mandato, sabe que vai precisar dos bancos federais em sua tarefa de reconstruir a capacidade econômica brasileira. Cada um deles deverá contribuir à sua maneira, de acordo com as suas competências e sua própria história. Existe espaço para os bancos de desenvolvimento regional, como o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (BASA). Existe também espaço para o BB e a CEF, por suas experiências como bancos de varejo, mas também com a especialização na agricultura e o setor de habitação e construção civil. Finalmente, o BNDES poderá voltar a cumprir com seu papel fundamental de financiar o desenvolvimento econômico e social. Tudo isso em um ambiente de juros baixos, que permita ao Brasil reencontrar o caminho de superação de suas desigualdades estruturais.

A meta deve ser a de posicionar a Selic em níveis bem mais baixos e oferecer crédito mais barato e disponível. Esse binômio combinado a uma recuperação dos gastos sociais e dos investimentos públicos é uma estratégia segura para que a nossa economia possa voltar a crescer.

Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Escalada militar

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O século XXI se caracteriza por grandes transformações na sociedade internacional, depois da crise financeira que abalou a economia global, posteriormente presenciamos a morte de mais de 6 milhões de pessoas vitimadas pela pandemia do Coronavírus. Percebemos que estamos nos aproximando rapidamente de conflitos militares devastadores, com todo potencial de destruição e degradação e, como sempre, os grupos sociais mais fragilizados e desprotegidos são os mais afetados.

O século XX foi marcado por inúmeros conflitos militares, neste período, a sociedade presenciou duas grandes guerras mundiais com mais de 100 milhões de mortos, com fortes destruições de países, cidades e regiões. Neste momento, a geopolítica global foi reconfigurada rapidamente, nações fortes perderam espaço nos cenários econômico, geopolítico e outros países ganharam espaço na comunidade mundial, uma verdadeira revolução no ambiente global.

Os fortes investimentos na indústria bélica e militar foram fundamentais para o desenvolvimento da tecnologia civil, impactando fortemente nas grandes transformações que estamos vivenciando na sociedade contemporânea, impulsionando produtos, máquinas, equipamentos e gerando novos modelos de negócios, que alteram por completo o cenário internacional. Produtos como a internet, o Sistema de Posicionamento Global (GPS), os radares, os drones, os caças supersônicos, os equipamentos hospitalares, dentre outros, foram responsáveis por avanços na tecnologia da sociedade, sendo que os maiores investidores da indústria bélica são os Estados Unidos, a Rússia, a França e a China, sendo que os norte-americanos dispendem mais do que o dobro dos investimentos dos outros países descritos acima, com quase US$ 1 trilhão anual.

Os fortes investimentos na indústria bélica foram fundamentais para o desenvolvimento da chamada Terceira Revolução Industrial, que trouxeram para a comunidade internacional os grandes avanços na informática, na biotecnologia e na telecomunicação, setores que contribuíram para impulsionar as alterações que estamos vivendo na sociedade contemporânea, com fortes avanços em variadas áreas e setores, mas ao mesmo tempo, contribuindo para o incremento das incertezas e das instabilidades que estamos vivendo na contemporaneidade.

Neste momento, percebemos que os grandes movimentos geopolíticos, com as grandes potências se abrindo para conflitos militares duradouros, que podem culminar em guerras devastadoras, com destruições e degradações humanas, além de grandes prejuízos materiais e imateriais.

Vivemos momentos de incertezas, espionagens e preocupações crescentes, além do conflito
militar entre Ucrânia e Rússia, com movimentos das nações da Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN), cuja expansão pode gerar um aprofundamento do conflito, levando várias nações a entrarem na guerra, gerando devastações em toda a comunidade internacional e seus resultados, com certeza, não são animadores. Afinal, estamos falando de nações com forte poderes bélico, militar e nuclear, neste cenário, o poderio nuclear pode levar a sociedade internacional a destruição.

O envio de equipamentos militares, armas, aviões, tanques, drones e bilhões de dólares, dos países da OTAN para “defender” a Ucrânia, pode aumentar a instabilidade na região, aumentando os conflitos e as ameaças de uso de armas nucleares, tudo isso contribuindo para aumentar o conflito, gerando mais represálias, mais destruições e impactos sobre a economia internacional, aumentando os preços das commodities, como alimentos, energias, combustíveis e fertilizantes, impactando a economia mundial, degradando a renda dos países mais pobres e garantindo lucros extraordinários dos setores vinculados a indústria bélica.

Destacamos ainda, as arestas verbais entre os Estados Unidos e a China, que podem levar a conflitos militares nos próximos anos. Neste cenário, depois de crises financeiras internacionais e pandemias avassaladoras, uma possível guerra entre nações com fortes potenciais nucleares nos levariam para uma verdadeira tempestade perfeita, de destruição, de devastação e de irracionalidade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/02/2023.

Decrescimento – uma necessidade imperiosa? por Eleutério Prado.

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Eleutério F. S. Prado

A Terra é Redonda – 06/02/2023

A lógica da expansão, que guiou a civilização nos últimos séculos, precisa ser detida
Não há dúvida, o capitalismo é globalmente hegemônico. Em quase todos os países que conformam o mundo atual domina o modo de produção histórico que se orienta pela acumulação de capital. Em todos eles, por isso, o crescimento econômico figura como um imperativo socialmente cristalizado. Em consequência, a expansão da produção como riqueza efetiva e da riqueza fictícia na forma de dívidas empapeladas (ou digitalizadas) não pode ser desafiada de modo eficaz. O decrescimento, assim, aparece como uma má utopia.

No entanto, acumulam-se já nos sítios da internet e nas prateleiras das bibliotecas artigos e livros que defendem o decrescimento como uma necessidade imperiosa e mesmo definitiva para o caso de que a humanidade deseje sobreviver nas próximas décadas deste e do próximo século pelo menos. Como se sabe, a razão imediata do surgimento dessa ansiedade teórica – e mesmo prática – advém da preocupação crescente com as mudanças climática enquanto uma mega-ameaça à existência de vida altamente organizada na face da Terra.

Se esse perigo existencial tem sido encarado como antropogênico há bastante tempo pelas pessoas bem-informadas, crescentemente agora ele tem sido atribuído ao próprio capitalismo mesmo por autores que não se veem como marxistas. Mas as resistências ainda são poderosas mesmo quando já há uma consciência sobre a seriedade dos efeitos da poluição em geral sobre as condições da vida possível neste planeta – planeta este que, como bem se sabe, propiciou excepcionalmente o desenvolvimento de uma complexidade orgânica rara ou única no universo.

O Relatório sobre os riscos globais produzido pelo Fórum econômico mundial é um exemplo da alienação ilustrada que prevalece na elite pensante do sistema da relação de capital. Eis que se preocupa – afirma de início e centralmente – com a ocorrência de eventos que podem causar “impactos negativos significantes sobre o PIB e a população mundial”. Ora, ao focar privilegiadamente o PIB e ao tomar esses eventos como se fossem exógenos ao bom funcionamento sistema econômico, é bem evidente que o relatório pressupõe a continuidade do capitalismo.

Veja-se, então, como concebe os riscos globais que aparecem no horizonte próximo e mais distante: “A próxima década se caracterizará por ocorrências de crises ambientais e societárias, impulsionadas pelas tendências econômicas e geopolíticas subjacentes. A crise do custo de vida aparece como o risco global mais severo nos próximos dois anos – o seu pico é de curto prazo. A perda de biodiversidade e o colapso dos ecossistemas surge como o risco global crescentemente mais agudo do próximo decênio”.

Como se pode ver, as ameaças são levadas a sério nesse relatório, pois são vistas, sim, como mega-ameaças. O documento também não deixa de indicar que o sistema econômico global se encontra num processo acelerado de deterioração devido a várias causas que aponta, discute e critica.

Além dos problemas ecológicos sobrevenientes, esse escrito anota como riscos as “confrontações geopolítica” e a “erosão da coesão social e aumento da polarização política”, sem deixar de mencionar as crescentes “imigrações involuntárias” e a “difusão dos crimes cibernéticos” que causam insegurança para as empresas e para as pessoas em geral.

O relatório não se resguarda nem mesmo de assumir um tom catastrófico: “À medida que as ameaças crescem em paralelo, o risco de policrises se acelera. (…) crises díspares interagem de modo que o impacto geral excede em muito a soma de cada parte. A erosão da cooperação geopolítica terá efeitos em cascata no cenário de riscos globais no médio prazo, inclusive contribuindo para uma potencial policrise de riscos ambientais, geopolíticos e socioeconômicos inter-relacionados relacionados à oferta e demanda de recursos naturais”.

Se a avaliação da falência possível do sistema é pertinente, se a visão das ameaças se mostra assustadora, as recomendações para enfrentá-las parecem tímidas e, na verdade, incompletas: “Alguns dos riscos descritos no relatório deste ano estão chegando a um ponto crítico. Este é o momento de agir de forma coletiva, decisiva e com uma visão de longo prazo para traçar um caminho para um mundo mais positivo, inclusivo e estável”.

Sim, é preciso atuar coletivamente. Mas para fazer o quê? Como tal ação seria possível nas circunstâncias atuais. É evidente que falta uma proposta efetiva para arrostar os perigos anunciados, ainda que não seja este ainda a principal deficiência do relatório.[i] Pois, ele supõe desde o início que o modo de produção capitalista tem de ser conservado, ou seja, que as alternativas para enfrentar as mega-ameaças têm de se circunscreverem ao que seria possível mantendo as estruturas societárias desse modo de produção.

Para provar que esse pressuposto não passa de um equívoco, na verdade, de um erro ideologicamente induzido, é preciso mostrar que é impossível enfrentar as mega-ameaças mantendo as relações sociais constitutivas do capitalismo. E, para tanto, é preciso de início recuperar a argumentação básica dos que advogam o decrescimento econômico. E este se funda em apenas um elemento, ainda que central, da calamidade que se aproxima.

Sustentam com base científica sólida que a expansão da transferência material (material throughput) realizada pelo atual sistema econômico é incompatível com a redução das emissões de gases do efeito estufa e mesmo com a manutenção dos níveis atuais, os quais já são considerados como desastrosos.

Portanto, se o objetivo for alcançar a sustentabilidade no futuro próximo, é imperativo reduzir o volume atual de transferência material, o que implica necessariamente – julgam – no decrescimento econômico. Dito de outro modo, a lógica da expansão, que guiou a civilização nos últimos séculos, precisa ser detida, pois, em caso contrário, sobrevirá um colapso da civilização humana e da vida complexa na face da Terra.

Um decrescimento substantivo, em princípio, poderia ser obtido de várias formas. Por exemplo, por meio de um genocídio implacável das populações mais fracas dos países mais pobres da periferia. E essa é uma possiblidade real que encontra exemplos na própria história do colonialismo capitalista do passado e do presente. Se ele for almejado para alcançar um grau mais elevado de civilização, vai requer necessariamente um planejamento que contemple também uma redistribuição drástica do produto social, que hoje se encontra muito concentrado.

Veja-se, agora, que os críticos dessa tese costumam contestar a positividade da relação entre o crescimento econômico e a elevação do transporte material. Sugerem que as inovações tecnológicas, o uso de outras fontes de energia, podem inverter o sentido das mudanças dessas duas variáveis. Se isso fosse efetivamente possível, ter-se-ia, nesse caso, uma transformação do capitalismo realmente existente em um “capitalismo verde”. Ora, os estudos empíricos existentes têm demonstrado que mais crescimento implica em mais efeito estufa e que as tentativas de contornar essa “lei tendencial” têm fracassado sistematicamente.

Ora, como se sabe, o sistema econômico atualmente dominante não pode existir sem crescimento – eis que a sua lógica está baseada na acumulação insaciável de capital e, assim, na apropriação sem limites da natureza humana e não humana. E não precisa ser marxista saber disso, basta conhecer um pouco de história. Logo, o que na verdade esses críticos não suportam saber é que o capitalismo precisa ser suprimido para que a humanidade possa ter um horizonte de sobrevivência mais amplo, de longo prazo. Aquilo que Sigmund Freud chamou de “denegação” no âmbito da clínica psicanalítica, está se manifestando assim em escala social para sustentar um evolver suicidário, um negacionismo in extremis, enfim, um passado que precisa morrer para que o ser humano genérico possa sobreviver.

Não apenas o “aquecimento global”, mas todos os riscos mencionados no Relatório produzido sob os auspícios do Fórum Econômico Global provêm do motor econômico do antropoceno, o qual por isso mesmo costuma ser chamado também de capitoloceno. Assim, o ressurgimento das “confrontações geopolíticas”, assim como o advento da “erosão da coesão social e aumento da polarização política” são produtos endógenos da sociabilidade do capital.

Em particular, como diz Gustavo Mello, “a guerra atravessa a reprodução social moderna nos mais diversos sentidos e dimensões. Sendo o solo no qual germina a finalidade sem fim da valorização do valor, num segundo momento a guerra será subsumida pelo capital, que se autonomizará em seu movimento fetichista, sem, no entanto, deixar de ter na guerra um de seus pilares fundamentais”.[ii]

A questão que põe agora é saber por que o processo da acumulação de capital requer os dois tipos de guerra – a interna e a externa – como momentos constitutivos. Ora, o capitalismo é um modo de produção que se baseia na apropriação de mais-valor gerado pelo trabalho em unidades de produção, as quais são detidas por capitais particulares que competem entre si mesmo por meio da concorrência.

O antagonismo entre as classes trabalhadoras e capitalistas só pode prosperar produzindo mercadorias porque se encontra selado pelo Estado, superestrutura cuja função principal vem a ser pôr a unidade da sociedade em face dessa contradição constitutiva, seja por meio de leis seja por meio da violência. Ora, a concorrência capitalista para além dos limites dos Estados nacionais não está limitada por um “Estado global” e, por isso mesmo, engendra lutas constantes pela hegemonia regional ou global. É esse processo igualmente antagônico, como se sabe, que foi chamado adequadamente de imperialismo.

É precisamente esse caráter do modo de produção capitalista que explica o paradoxo central da geopolítica no presente momento histórico. As nações precisam cooperar para enfrentar a mega-ameaça do aquecimento global, mas elas não podem deixar de atuar de modo oportunista praticando sistematicamente o “free-riding”, ou seja, fugindo das obrigações que elas mesmas aceitaram nos “acordos climáticos”.

Mas isso não é tudo. A prioridade das potências, em particular da potência hegemônica, não é combater as mega-ameaças em geral que a humanidade está enfrentando, mas garantir essa hegemonia frente a concorrentes potenciais. É isso, evidentemente, que explica a guerra da Ucrânia entre a Otan e a Rússia, é isso que explica a tensão crescente entre os Estados Unidos e a China, é isso que explica os conflitos permanentes no Oriente Médio.

Tudo isso, como se sabe, é bem óbvio; mas é preciso repetir tais obviedades porque os olhos estão cegos, os ouvidos estão moucos e as bocas estão fechadas para o imperativo do decrescimento.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).
Notas

[i] Entretanto, Klaus Schwab, o cofundador do Fórum Econômico Global, pensa num “capitalismo das partes interessadas” como solução dos problemas atuais. Eis como explica esse oxímoro societário: trata-se de “um modelo que (…) posiciona as empresas privadas como administradoras da sociedade para responder aos desafios sociais e ambientais de hoje”.
[ii] Mello, Gustavo M. de C. – A natureza bélica do capital: uma introdução à crítica da economia política do capital. Relatório de Pesquisa, 2022.

Radicalização da direita passa por influenciadores considerados moderados, diz pesquisadora.

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Michele Prado, que pesquisa extremismo online, diz que atores digitais que não são considerados ligados a essa mobilização estão entre principais introdutores de teorias conspiratórias

UIRÁ MACHADO – FOLHA DE SÃO PAULO – 06/02/2023

SÃO PAULO Fazia mais de dez anos que Michele Prado havia mergulhado no ambiente online da direita quando decidiu mudar de vida. Não foi fácil. Ela precisava largar o emprego na área de decoração e romper com pessoas que, àquela altura, respondiam pela quase totalidade de suas amizades.

“Eu tinha duas opções: ficar calada e manter a amizade com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta intelectualmente e ficar com as consequências”, diz Prado, 44.

Ela escolheu a segunda opção. Mudou-se para o interior da Bahia e começou a pesquisar. Queria entender o que estava por trás das mensagens que pipocavam num grupo de WhatsApp do qual ela começou a participar após a eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018.

Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um golpe, que teria adesão popular”, conta.
“Vi que não era uma direita democrata, moderada. Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana.”

Durante seus estudos, entendeu que muitas das teorias conspiratórias que circulavam no WhatsApp eram teorias antissemitas disfarçadas teorias antissemitas disfarçadas com outras palavras.

Ficou chocada, porque vinham de pessoas que ela considerava intelectuais e suas amigas.

Chamado “Internet livre”, o grupo agregava diversos influenciadores da direita. “Só os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de organizações de direita etc.”, afirma Prado, que em 2021 publicou o livro “Tempestade Ideológica” (Lux) e se prepara para lançar “Red Pill – Radicalização e Extremismo”.

“Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória”, diz a pesquisadora. “E isso continua radicalizando as pessoas.”

No ano passado, após o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB) atacar policiais, a sra. disse que não se tratava de episódio isolado. Eventos como a tentativa de ato terrorista no aeroporto de Brasília e a intentona golpista de 8 de janeiro estavam no seu radar? A gente está vendo no Brasil um processo de radicalização em massa que ocorre essencialmente online, especialmente quando a gente está se referindo às várias correntes da extrema direita. O próprio bolsonarismo é um movimento que surgiu online.

Dentro desse ecossistema da direita, os conceitos, as teorias conspiratórias, as pautas e os métodos são copiados da alt-right, dos Estados Unidos [movimento de extrema direita], e da far-right internacional como um todo [junta direita radical e extrema direita]. Então era óbvio que, se estávamos passando por um processo de mais ou menos 15 anos de radicalização online, e se lá nos Estados Unidos teve a invasão do Capitólio, aqui não seria diferente.

Lá no meu livro, “Tempestade Ideológica”, eu falei que a gente teria algo similar aqui, porque são as mesmas ideias que estão radicalizando e mobilizando essas pessoas. E essas pessoas estão sendo capturadas dentro de um sistema de crenças que rejeita a democracia liberal de forma extrema, inclusive com adoção da violência.

Aqui no Brasil, vimos exemplos de pessoas em acampamentos golpistas acreditando em teorias conspiratórias sem nenhum lastro na realidade. Por que que isso acontece? A nova direita do Brasil é toda baseada em teorias conspiratórias de extrema direita. Todo o universo imaginário dessas pessoas já está contaminado com a mentalidade conspiração.

Recentemente, Renan Santos, que é o coordenador do MBL [Movimento Brasil Livre], compartilhou uma teoria conspiratória de cunho antissemita, racista, que tem alto potencial para violência, que é a teoria da grande substituição [segundo a qual as elites estão substituindo a população europeia branca por povos não europeus]. Só que ele compartilhou com o nome de “transplante populacional”.

Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória. E as pessoas que começam a ser capturadas por isso ficam presas nessas câmaras de eco e formam uma identidade coletiva.

Em que sentido? Se você olhar as imagens que foram disponibilizadas da invasão [em Brasília], você observa que a maioria das pessoas está gravando, fazendo selfie. Isso é um recurso de identidade para as pessoas que estão ali. Elas põem na câmara de eco, onde elas se acham pertencentes a algo muito maior. Elas saem do anonimato. Elas têm uma identidade coletiva construída à base de teorias conspiratórias que desumanizam outros grupos e que têm total rejeição à democracia liberal.

Não é só extrema direita que está capturada pela mentalidade conspiratória. É a direita em si.

Porque são os influenciadores, talvez por desinformação de muita gente, que continuam até agora a disseminar teorias conspiratórias, mas com outras palavras, com eufemismos, como no caso do “transplante populacional”. E isso continua radicalizando as pessoas.

No 8 de janeiro, as pessoas de fato achavam que iriam derrubar o governo? Não era um grupo homogêneo. Ali tinha muitos oportunistas, pessoas que viram a confusão e aproveitaram para tirar algum proveito. Mas a maior parte realmente acreditava que aquele ato de violência iria provocar a interrupção da ordem democrática.

Aqueles manifestantes que estavam acampados em frente a quartéis potencializaram o extremismo violento. Quando você está dentro da radicalização online, você não tem todos os meios para cometer o ato. No acampamento, os manifestantes tiveram uma radicalização híbrida, online e offline. Isso aumenta o investimento emocional no extremismo violento.

Como se fosse realmente uma incubadora para a ação violenta. E quando aquilo foi permitido pelas
Forças Armadas e pelas demais instituições, as pessoas se sentiram mais empoderadas para considerar a solução da violência como legítima.

Logo após os ataques, a sra. afirmou que a ação não se restringiria a Brasília. No entanto, não houve mais nada tão expressivo. Por quê? Eu acho que é momentâneo, porque a mobilização continua. As pessoas ainda não estão desengajadas, não estão desligadas. O volume de pessoas presas dá uma atenuada no ímpeto de quem eventualmente poderia querer continuar com esse tipo de ataque. Mas pode esperar que vai continuar. Não vai parar.

A atuação do Bolsonaro no fim do mandato foi criticada por bolsonaristas. Isso vai fazer com que o bolsonarismo fique mais fraco? Houve uma decepção com Bolsonaro. Para muitas dessas pessoas, ele não foi extremista o suficiente, não estava representando o que eles acreditam ser uma direita. Então elas vão buscar outro ídolo, outro avatar, outro candidato para suprir essa necessidade. A extrema direita no Brasil não se resume ao Bolsonaro ou ao bolsonarismo. É maior. Eles vão se reagrupar, como já está acontecendo.

Qual é a sua avaliação sobre a reação institucional ao extremismo, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal? Só chegamos a essa situação porque as outras instituições foram muito omissas. Foram muito improdutivas, inconsequentes e irresponsáveis. Porque houve muitos alertas a respeito do processo de radicalização.

Cabe aos parlamentares exigir das agências de inteligência relatórios de monitoramento do extremismo violento no Brasil, por exemplo. Pedir relatórios a respeito da infiltração de extremistas em forças militares. Nada disso foi feito nos últimos anos. Então sobrou para uma corte [o STF] tomar conta desse problema sozinho, o que a torna um alvo.

O que o Brasil deveria fazer para combater o crescimento da violência extremista? A gente tem que pensar em formas como os programas de PCVE [prevenção e combate ao extremismo violento, na sigla em inglês], que existem em outros países. O Brasil está uns 15 anos atrasado nisso. Mas uma coisa importante de dizer é que não abarca só a extrema direita. Precisa ter disposição de abordar todos os extremismos, da direita à esquerda. Não pode pensar com a perspectiva político-eleitoral.

Antes de olhar para a extrema direita como um objeto de pesquisa, quanto tempo a sra. frequentou esses grupos como uma participante regular, por assim dizer? Era um ecossistema, um ambiente.

Não era um grupo específico. Eu sempre fui de direita, minha vida inteira. Hoje não sou mais. Muita coisa aconteceu e eu acho que estou bem ao centro. Mas em 2004, por exemplo, eu já estava no Orkut olhando esses influenciadores.

Eu não tinha ainda a visão “direita X esquerda”. Eu era só uma pessoa que não votava no PT. Ou melhor, poderia votar no PT se eu achasse que as propostas eram boas, mas eu preferia o PSDB.

Passei a primeira década dos anos 2000 online, conversando com pessoas que também não votavam no PT. Não eram pessoas de extrema direita, pelo menos não que eu soubesse na época. Só depois que eu fui recordar algumas coisas.

Depois, ali por volta de 2010, o boom da nova direita, Olavo de Carvalho, os novos livros, tudo isso eu acompanhei como espectadora. Em 2018, votei no Bolsonaro no segundo turno, porque eu era antipetista radical.

E no primeiro turno? Acabei votando no João Amoêdo [então no Partido Novo]. Bolsonarista mesmo eu nunca fui. Logo depois, uma moça que conheci no Facebook, totalmente radicalizada na extrema direita, me colocou num grupo de WhatsApp chamado “Internet livre”. Era um grupo só com influenciadores, só com os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de organizações de direita etc.

E eu fiquei observando. Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um golpe, que teria adesão popular. Fiquei observando aqueles comentários internos e vi que tinha alguma coisa muito sinistra. Percebi que o grupo estava radicalizando as pessoas.

Por isso a sra. decidiu romper? Eu discuti com essas pessoas, fiz barraco. Então decidi estudar, pesquisar, porque eu já via muito sinais acontecendo e eu tentava entender o que era aquilo.

Quando eu cheguei nesses influenciadores dentro desse grupo, ficou tudo muito claro para mim. E eu vi que não era uma direita democrata, moderada, nada disso.

Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana. Eu chutei o pau na barraca, foram discussões homéricas, que sempre acabavam em misoginia.

A gente conta nos dedos quem a gente pode falar que é direita moderada no Brasil, democrata. Em quem você pensar de influenciadores digitais de direita que você acha moderados, você pode colocar todos dentro de um balaio da far-right, porque todos eles trazem conceitos da direita radical e da extrema direita transnacional.

Durante suas pesquisas, qual foi sua maior surpresa? A primeira coisa que me deixou chocada foi ver como eles protegem os erros uns dos outros. Por exemplo, quando alguém aponta algo que está errado, nenhum deles analisa o argumento. Se um deles falar que a pessoa está errada, todos passam a atacar aquela pessoa.

Outra coisa chocante foi entender que as teorias disseminadas por eles eram teorias antissemitas. Porque eram pessoas que eu considerava minhas amigas. Eu tentava alertar uma pessoa no grupo, mas ela dizia: “Não, você está viajando”. Aí eu chamava outro influenciador, e ele dizia que eu estava maluca, que eu não entendia bem o que estava acontecendo.

Então eu tinha duas opções: ou ficar calada e manter a amizade com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta intelectualmente e ficar com as consequências. Eu optei pela segunda opção, que foi mais difícil, porém mais necessária.

MICHELE PRADO, 44
Pesquisadora da extrema direita, é autora dos livros “Tempestade Ideológica” (Lux) e “Red Pill – Radicalização e Extremismo” (lançamento em breve)

Extermínio yanomami é resultado de séculos de impunidade, por Itamar Vieira Jr.

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Vivemos em um país sem memória; é preciso romper com a anistia indiscriminada para que nos reste algum futuro

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 05/02/2023

Toda sociedade possui seus códigos de justiça. A palavra é derivada do latim “iustitia”, que por sua vez vem de “iustos” —justo—, que por fim deriva de “ius” —direito, correto, lei.

Uma sociedade sem os pressupostos da justiça está predestinada ao colapso, à completa anarquia, em que os interesses individuais se sobrepõem aos coletivos. No 8 de janeiro, vimos por algumas horas a violência devastar as sedes dos três Poderes da República, entre as quais a da Justiça.

Em “Ensaio sobre a Cegueira”, José Saramago cria uma alegoria sobre um mundo onde valores éticos e coletivos desmoronam, usando a metáfora de uma epidemia de cegueira. Sem os olhos para ver, o mal aflora, o horror se instaura e o pacto civilizatório se dissolve. Resta a barbárie como a lei da sobrevivência.

A bestialidade que tomou conta de Brasília no primeiro domingo pós-posse do presidente e de governadores é a mesma que devasta o território yanomami e os de outras sociedades indígenas. A tragédia que os assola é brutal e violenta. É um crime contra a humanidade. É um genocídio. É tudo, menos surpresa. A calamidade instaurada na terra indígena não é um evento circunstancial; é o projeto de extermínio mais persistente no país.

Colonizadores foram anistiados. Escravocratas também. Igualmente os militares pelos crimes do passado e do presente. Relatórios de inteligência da Funai apontam para um conluio entre garimpeiros e militares, incluindo uma possível relação de parentesco e o compartilhamento de informações em grupos de redes sociais para facilitar a atividade ilegal na terra indígena.
A anistia nos trouxe até aqui.

Nos trouxe também até a tentativa de ruptura da ordem democrática com uma minuta de golpe, para reverter o resultado das eleições, conspirações com propostas de espionagem de um ministro de Suprema Federal e sua posterior prisão. Nos trouxe à confissão de um deputado de que todos os ministros tinham uma minuta golpista em casa. Nos trouxe à revelação de um senador de que teria sido convidado para compor um comitê golpista.

A falta de justiça nos trouxe até aqui.

Em dezembro, a polícia alemã desarticulou uma rede de extrema direita que pretendia um golpe para restituir a monarquia. Para os procuradores alemães, tratava-se de um grupo terrorista que visava atingir o regime democrático. Foram realizados indiciamentos, prisões, restando à sociedade a confiança na Justiça para julgar e punir. Por aqui, prisões também foram feitas, mas sem chegar aos mentores do ato golpista.

A palavra anistia vem do grego e do latim “amnestía” ou “amnestia” e significa esquecimento. Vivemos no país sem memória e, só quando nos dermos conta disso, compreenderemos seu poder para nos devolver à trilha dos avanços civilizatórios.

Nas ruas de inúmeras cidades da Europa, é possível encontrar as “stolpersteine”, que significa “pedras do tropeço” em uma tradução livre. São pequenas chapas douradas fixadas nas calçadas em frente a casas de onde vítimas do Holocausto foram retiradas para a morte.

Somente em Berlim, são quase 9.000 placas com nome, sobrenome, data de nascimento e de morte de pessoas que viveram naquele exato local. São placas individuais para recordar que cada pessoa era única; somadas, dão uma pequena noção da dimensão da tragédia. Sem contar nos inúmeros monumentos e museus que abrigam a história desse evento tão traumático.

A justiça pode ser um poderoso instrumento contra o esquecimento.

Há poucos meses, escrevi um texto sobre a morte do indígena tanaru, último sobrevivente de sua etnia. Viveu sozinho na floresta durante 26 anos. Seus últimos parentes foram mortos por fazendeiros na década de 1990. Como ele, muitas etnias estão em risco pelo garimpo ilegal, pela criminosa extração de madeira, pela derrubada da floresta para criação de pastos e monoculturas, por conflitos fundiários de toda ordem.

As imagens dos yanomamis em grave estado de desnutrição são retratos da devastação de corpos e território atingidos por um projeto de extermínio que perdura há mais de cinco séculos. São resultados da anistia indiscriminada, da falta de justiça, da nossa condescendência quase cúmplice de não exigir o contrário.

É preciso romper com os ciclos de impunidade para que nos reste algum futuro.

Patriotas versus cidadãos, por Luiz Marques

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Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome

Luiz Marques – A Terra é Redonda – 02/02/2023

Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome
Entre as revoltas que precederam a declaração de Independência do Brasil, a Inconfidência Mineira (1789) refletiu os valores iluministas do século XVIII e a experiência das colônias da América do Norte. Os líderes descendiam da “casa grande” – militares, fazendeiros, magistrados, padres, poetas. À semelhança da Revolução Haitiana (1791), a rebelião mais popular foi a Revolta dos Alfaiates (1798), na Bahia, que envolveu militares de baixa patente, artesãos e escravizados. Composta por uma maioria de negros e mulatos, mirou na escravidão e no domínio dos brancos. Não buscou fundar um quilombo distante de uma cidade populosa, como era hábito dos foragidos (Palmares).

A última insurreição colonial aconteceu em Pernambuco (1817), encabeçada por militares de alta patente, comerciantes, senhores de engenho e padres (estima-se em 45), que se diziam “patriotas”. Sob inspiração maçônica, proclamou uma república autônoma que enlaçava Pernambuco e as capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Sobre o modelo escravista, iniciado logo após o descobrimento e mantido por penosos 350 anos, silêncio obsequioso. Os grilhões restariam intactos.

Apesar dos pesares, no livro Cidadania no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho salientou no evento insurgente “uma nascente consciência de direitos sociais e políticos”, na crua geografia de abestalhados – entrecortada pela mestiçagem derivada dos frequentes estupros das negras. Por república, entendia-se o governo de povos livres em oposição ao absolutismo monárquico. Não acenava um futuro com ideias sustentadas na igualdade. Com a identidade forjada em batalhas prolongadas contra os holandeses, o patriotismo do epicentro pernambucano superava o brasileiro.

Agora, um salto temporal. Adeptos do movimento golpista recente também se autodenominaram “patriotas”. Não “cidadãos”, como na terminologia propagada na Revolução Francesa para designar o pertencimento a um Estado-nação. No caucasiano acampamento da extrema direita, incubadora dos atos descompensados no 12 de dezembro e no 8 de janeiro, em Brasília, os partícipes não evocavam o conceito de cidadania ao justificar o vandalismo brutal dos símbolos republicanos. Considerando-se indivíduos de exceção perante as leis vigentes, depredaram com brutalidade os fundamentos sedimentados por práticas civilizacionais inexistentes em hegemonias fechadas.

O clamor contrarrevolucionário não se construiu em relação a um inimigo externo: portugueses, holandeses, franceses, espanhóis ou ingleses com os quais em algum momento o Brasil esteve em conflito. Dirigiu-se ao inimigo interno (o povo) que desfraldou a bandeira da democracia, em defesa das instituições da estremecida Terra brasilis. Apostou no fratricídio e nas manipulações digitais com robôs e fake news. O dedo seletivo apontou os judeus da hora: os sujeitos políticos (partidos de esquerda), regionais (nordestinos), étnicos (negros, indígenas), de gênero (mulheres), identitários (grupos LGBTQIA+) e do conhecimento (intelectuais, cientistas, agentes da cultura e das artes).

O simulacro patriótico tinha um forte ingrediente ideológico, ligado a uma visão mítico-messiânica para ocultar o antinacionalismo econômico remanescente do colonialismo. Fenômeno reatualizado pela vassalagem vira-lata ao imperialismo estadunidense e pelas privatizações crescentes. Vide o fatiamento da Petrobrás e do pré-sal. Tudo consentâneo o Consenso de Washington. A peculiaridade do neofascismo tropical foi a estreita associação com a globalização neoliberal que, com dogmas monetaristas em favor da “austeridade fiscal” e do “teto de gastos públicos”, retirou poderes da governança submissa que, de resto, cedeu-os sem um mínimo de decoro na função presidencial.

A estratégia desenvolvimentista com foco na reindustrialização para formar um mercado de massas, dentro das fronteiras territoriais, e amainar as infames desigualdades herdadas do longo ciclo de horrores, nunca integrou a agenda do Coisa Ruim. Os protestos de aparência leonina maquiavam os desprotestos raposinos, vergonhosos, pusilânimes, de traição à pátria. O objetivo era congelar a matriz colonialista (racista) e patriarcal (sexista), junto com as hierarquias sociais da antiga tradição de dominação e subordinação. A violência e a hostilidade aos progressistas tinham um por quê.

O antipatriotismo estrutural foi disfarçado com a estética verde-amarela dos desfiles, com hinos. Os toscos revoltosos concentraram os disparos nas balizas constitucionais de amparo a uma democracia com justiça social e ambiental. Por suposto, a raiva e o ódio não se estenderam até o mundo das finanças. O rebanho de manobra desconhecia os patrões e, por ignorância, aliou-se aos opressores. Para curar frustrações com as promessas descumpridas do sistema democrático, o remédio indicado foi a instalação do regime iliberal. O liquidificador fundiu a essência neofascista (Jair Bolsonaro), o neoliberalismo duro (Paulo Guedes) e o conservadorismo teocrático (Silas Malafaia, Edir Macedo). Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome.

A lógica de financeirização do Estado e os interesses do agronegócio somaram-se ao predatório extrativismo de madeiras (nobres) e minerais (ouro, diamantes) da Amazônia, o que esgaçou a crise climática e o genocídio de comunidades originárias. O programa da ultradireita fez, da floresta, uma refém do totalitarismo da mercadoria. Nisto, resumiu-se a distopia de extermínio bolsolavista.

Com opção de classe nítida, os entreguistas celebraram a necropolítica no aparelho estatal. Danem-se os pobres; vivam os privilégios redobrados ao capital financeiro. La noblesse du dollar oblige.

Ao transformar as “liberdades individuais” em panaceia para os problemas da nação, a obtusidade das vertentes obscurantistas entrincheirou-se em um campo específico de direitos, que abrangiam a vida, a garantia da propriedade, a segurança pessoal, a manifestação do pensamento, organizar-se, ir e vir, e acessar informações alternativas – rápido, convertidas em passaporte para o negacionismo. Quando a ênfase recai apenas nos “direitos civis” e, estes, ademais, se restringem ao usufruto dos correligionários, os “direitos sociais” e os “direitos políticos” saem pela porta dos fundos; para retomar o estudo clássico de T. H. Marschall sobre as três dimensões indispensáveis da cidadania.

No transcurso da pandemia do coronavírus, vale lembrar, uma hermenêutica levada ao paroxismo liberou o desaforo de festas privadas, superlotadas, enquanto as UTIs dos hospitais estavam abarrotadas de pacientes da covid-19. No macabro jogral negacionista, não faltaram os empresários dispostos a “salvar a economia”, à revelia dos cuidados com as normas sanitárias para a proteção da população. A desobediência narcísica aos protocolos de isolamento social, à prescrição para o uso de máscaras e à vacinação enalteceu um hiperindividualismo, de pretensões aristocráticas. Com muita arrogância, se reproduziu nas ruas a pulsão genocida encastelada no Palácio do Planalto.

O quadro sombrio desembocou nos ataques terroristas à soberania popular, com a contestação das eleições – sem provas. A convicção tola foi regada pelo despresidente pária, a partir de 2018, para arregimentar as mentalidades entorpecidas pelo antipetismo / antilulismo e jogar desconfiança sobre os suportes da democracia na institucionalidade. O fetiche da “liberdade de expressão” avalizou as realidades paralelas dos militontos, com ares de zumbis. Mas o caos não angariou outras adesões.

É necessário intensificar a disputa política e ideológica na sociedade civil, empoderar a unidade na diversidade, fortalecer a esfera pública crítica e pluralista com a voz dos segmentos excluídos. Os marginalizados da história devem ocupar um “lugar de fala”, na intrincada arquitetura do poder nos municípios, nos estados e na União. Sem esse engajamento ativo é impossível mudanças de cenário. Não basta que os democratas e os intelectuais orgânicos das classes subalternas legitimem as justas demandas “de baixo”. A situação de espectadores das narrativas ofertadas e benefícios recebidos não contempla o importante princípio da autonomia, no processo pedagógico de desalienação. “A emancipação será obra dos próprios trabalhadores”, ensinava o ainda atual Manifesto comunista de 1848.

Para combater a sociopatia do extremismo direitista, a solução sob auspícios do governo liderado por Lula reside na implementação de: (a) Mais direitos sociais – saúde, educação, segurança, renda, formalização do trabalho, sociabilidade não discriminatória e; (b) Mais direitos políticos, por meio da participação cidadã ampliada para a elaboração coletiva de políticas públicas, na forma de um Orçamento Participativo Nacional (OPN). Para uma exposição detalhada, ver o artigo “Políticas participativas” de Leonardo Avritzer e Wagner Romão, no sítio internético A Terra É Redonda.

O desafio está em estimular a cidadania a confrontar o falso civismo que estupidificou a política, no quadriênio miliciano. Tarefa para os partidos e movimentos sociais do campo e da cidade, entidades comunitárias e estudantis, sindicatos e clubes de bocha, pagodes e saraus, ônibus e metrôs, praças e bares, almoços dominicais e intervalos dos jogos de futebol. Qualquer local. Como na bela canção de Caetano Veloso: “É preciso estar atentos e fortes / Não temos tempo para temer a morte”.

Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Carta Mensal – janeiro 2023

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O primeiro mês do ano de 2023, foi marcado por inúmeros movimentos políticos e institucionais, depois de quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o ano começou com grandes agitações, com alterações estruturais, com novas agendas, novos comportamentos e grandes expectativas, muitas vezes as expectativas são imensas e preocupantes.

O governo que começa, do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT), inicia envolto em variadas composições políticas, onde encontramos pessoas ou representantes de várias vertentes políticas. Com isso, não podemos dizer que o governo seja de esquerda, podemos acreditar que o novo governo deve ser visto como de centro-esquerda. Neste momento, cabe uma reflexão mais sólida e mais sofisticada, que deve ser feita pelos cientistas políticos.

Antes de começarmos a descrever as questões políticas, gostaria destacar questões econômicas, embora a economia tenha uma importância em todos os governos, o mês de janeiro de 2023 foi marcado por poucas instabilidades no campo econômico, as medidas adotadas pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad foram sólidas e consistentes, com forte capacidade de conversação e de diálogo, as questões econômicas foram colocadas no segundo plano, ainda mais depois das movimentações de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes.

No front econômico, é importante destacar os escândalos ou as fraudes das Lojas Americanas, denunciadas pelo presidente da empresa Sérgio Rial, que levou ao mercado um rombo de, inicialmente, R$ 20 bilhões, que posteriormente, chegou a mais de R$ 43 bilhões, levando a empresa a buscar proteção jurídica que culminou no pedido de recuperação judicial, gerando variados conflitos com acionistas, bancos, fornecedores, trabalhadores e controladores.

O caso Americanas colocou em xeque um modelo de fazer negócio dos empresários do Grupo 3G, composto por Marcel Telles, Carlos Sicupira e Jorge Paulo Lemman, cujo patrimônio perpasse bilhões de dólares que os colocam na lista dos maiores bilionários brasileiros, acionistas de empresas gigantescas como AB Inbev, Burger King, Kraft Heinz, dentre outras…

Logo no começo do ano, no dia 8 de janeiro, a sociedade brasileira foi devastada pelos eventos que aconteceram na capital Federal, onde a praça dos Três Poderes foi fortemente saqueada por vândalos organizados que invadiram os prédios representantes da República Brasileira, depredando, saqueando, vandalizando, devastando e criaram uma verdadeira balbúrdia, cujas imagens foram espalhadas por toda a comunidade internacional, levando o país ao centro das grandes discussões dos eventos estimulados por defensores da extrema direita.

Toda essa destruição só foi possível, porque os setores de segurança do Distrito Federal foram omissos, além da participação das forças armadas e de grupos de acampados que colocaram para que o evento acontecesse, todos foram irresponsáveis para evitar esse caos, cujos impactos mostraram a fragilidade da democracia nacional, onde pessoas organizadas, dotadas de câmeras de celulares, muitos deles com paus e produtos cortantes, levaram à praça dos Três Poderes a destruição, a degradação, que impactaram fortemente a democracia brasileira.

Neste evento foram invadidos o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, todos foram fortemente degradados na invasão, deixando um rastro de destruição, de incertezas e sentimentos de que estamos, todos os momentos, vivendo num ambiente de insegurança.

Logo depois da devastação foram calculadas em mais de 18 milhões de reais de prejuízos e levaram as autoridades a adotarem medidas extremas para punir os agitadores e rever parte dos recursos milionários que foram degradados na capital federal.

Depois do dia 8 de janeiro, o governo inicia um novo momento, marcado pela adoção de medidas fortes de punição aos vândalos, que muitos chamaram de terroristas, com prisão de mais de mil pessoas e inúmeros perseguidos pelas forças policiais, que movimentou todo o aparato de repressão do Distrito Federal, na busca dos indivíduos que participaram deste ato, a condução das investigações, as tomadas dos depoimentos, além da acomodação dos presos, toda a logística da ação repressiva, além de uma verdadeira busca de culpados e participantes indiretos, como financiadores e idealizadores.

Neste período se descobriu muitas lacunas, que colocaram no centro da invasão pessoas de alta hierarquia, como o Secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo anterior e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, sendo que o primeiro foi preso e o segunda foi afastado por 90 dias do cargo, sendo último foi substituído pela vice-governadora.

Ações do governo foram rápidas, as investigações foram aceleradas, os responsáveis foram punidos, demitidos ou investigados. A segurança pública do Distrito Federal foi retirada do governo local e foi repassada pelo governo federal, que nomeou como interventor um agente indicado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, que conduziu a segurança até o final de janeiro, investigando e punindo as pessoas que participaram direta ou indiretamente pela invasão dos poderes da República.

O mês de janeiro de 2023 foi marcado por grandes desastres para a sociedade brasileira, embora o Brasil conseguisse escolher um novo presidente, em uma eleição muito apertada com graves conflitos e confrontos, depois da posse, muitos fenômenos mostraram que, nestes quatro anos do governo anterior, os dados de destruição e degradação foram elevadíssimos, levando-nos a se afastar da comunidade internacional e passou a ser visto como uma nação pária. Tanto assim, que neste primeiro mês de governo, o novo presidente visitou mais da metade dos países que o presidente anterior visitou em quatro anos de governo.

Destacamos ainda, os eventos importantes do mês de janeiro de 2023, a descoberta da situação famélica da população indígena Yanomamis, uma comunidade que foi fortemente degradada pelo governo anterior, fenômeno possibilitado pela invasão de seu território por garimpeiros ilegais, que levaram para a região a destruição dos rios, degradando o solo, além de estupros de indígenas, aumentando as gravidez de meninas yanomamis, além de assassinatos e cooptação forçado de índios para trabalhar nos garimpos ilegais.

Neste cenário, o governo foi estimulado a adotar medidas de proteger a comunidade indígena, levando alimentos, equipes médicas, assistência social, além de medidas para combater os garimpeiros ilegais, levando um aparato militar e de segurança para evitar que essa situação não perdure por mais tempo.

Como vimos, o mês de janeiro de 2023 foi marcado por grandes agitações, grandes crises, fortes conflitos, graves confrontos e grande incertezas políticas que devem postergar a recuperação da economia nacional, devastadas nos últimos anos, de graves crises políticas e dificuldades fiscais e financeiras da sociedade nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Demissões em massa

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Constantemente refletimos, nesta coluna, sobre as grandes transformações econômicas e seus impactos para a sociedade internacional. Neste cenário, marcado por alterações nos modelos de negócios e fortes transformações no mundo do trabalho, onde a tecnologia está moldando as bases da comunidade, destruindo empresas até então bem-sucedidas, fragilizando trabalhadores e criando instabilidades na empregabilidade dos indivíduos, gerando novos desafios, medos e incertezas, que podem abrir espaço para novas oportunidades, criando ganhadores e perdedores com fortes impactos sociais e políticos na sociedade.

Recentemente, as mídias especializadas, estão mostrando o aumento das demissões das grandes empresas de tecnologia, que se transformaram em fortes empregadores de trabalhadores altamente capacitados e, na contemporaneidade, estão demitindo números consideráveis de trabalhadores, com impactos sobre todas as regiões do mundo, pois são grandes conglomerados e empregam pessoas do mundo todo, tais como Amazon, Google, Twitter, Meta, Microsoft, dentre outras.

Nos últimos anos, as empresas de tecnologia ganharam relevância na sociedade internacional, angariando valores de mercado, consolidando seus modelos de negócios e se transformaram nas queridinhas do mundo corporativo. Suas ações eram desejadas pelos investidores, seus valores de mercado foram multiplicados várias vezes, passando a se transformarem nos maiores conglomerados da economia internacional, deixando para trás grandes empresas automobilísticas, siderúrgicas, varejistas e petroleiras, algumas delas conseguiram ultrapassar US$ 1 trilhão em valores de mercado, algo impensável anteriormente.

Depois de fortes contratações no período da pandemia, as empresas perceberam que, com a normalidade da estrutura econômica e a redução das paralisações das economias em decorrência do covid-19, seus ganhos financeiros foram reduzidos fortemente e levando-as a uma reestruturação em seus negócios, diminuindo sua força de trabalho, iniciando dispensas em todos os setores e diminuindo os cargos estratégicos, visando reestruturar seus modelos de negócios e buscando incrementar seus lucros e ganhos adicionais, melhorando sua performance financeira e operacional, incrementando os valores de suas ações e a rentabilidade de seus negócios.

Destacamos ainda, o incremento dos preços dos produtos internacionais, impacto direto da pandemia, da quebra das cadeias globais de produção e da guerra entre a Ucrânia e a Rússia, inflacionando preços de energia, dos combustíveis, dos fertilizantes e dos alimentos. Com o aumento da inflação, redução da renda das famílias e, imediatamente, levando os governos, via Bancos Centrais, a incremento das taxas de juros, com redução da liquidez internacional e a elevação dos custos financeiros, com a redução dos movimentos de riscos, levando os agentes econômicos e financeiros a reduzirem recursos alocados em investimentos de risco e a buscarem os investimentos de menor risco, como a renda fixa.

As empresas de tecnologias, grandes conglomerados econômicos e produtivos, perceberam os movimentos de reestruturação, buscando equacionar seus equilíbrios financeiros e aumentar seus rendimentos sem mexer nos grandes ganhos para seus acionistas e os investidores, com isso, aumenta o contingente de desempregados numa sociedade centrada por instabilidades e volatilidades crescentes, com degradações econômicas, desequilíbrios familiares, com incremento das ansiedades e formas generalizadas de patologias sociais que culminam em violências crescentes, ressentimentos, medos e inseguranças que levam a sociedade as desorganizações crescentes.

As demissões em massa da sociedade contemporânea tendem a continuar em alta e os lucros dos acionistas e dos investidores tendem sempre a ascensão. Neste ambiente, a exploração dos fragilizados tende a crescer e os rendimentos dos trabalhadores tendem a se reduzir rapidamente, com isso, os consultórios de psicólogos e terapeutas tendem a crescer de forma acelerada, caracterizando uma sociedade desigual, degradada e violenta. E ainda encontramos gurus acreditando e apregoando que a solução desta equação está no empreendedorismo….

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/02/2023.

Leniência militar em 8 de janeiro lembra levante integralista de 1938, por Antonio Lavareda.

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Há 85 anos, Palácio da Guanabara estava desguarnecido na hora do ataque e forças de segurança demoraram a chegar

Antonio Lavareda, Doutor em ciência política e professor colaborador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais)

Folha de São Paulo, 29/01/2023

[RESUMO] O Brasil sofreu 13 investidas golpistas desde a Independência, entre as quais o ataque aos três poderes no último dia 8. A ação dos bolsonaristas guarda semelhanças com o levante da AIB (Ação Integralista Brasileira) em 1938. Nesses episódios, os golpistas encontraram a residência e a sede da Presidência desguarnecidas, as forças de segurança demoraram a chegar e houve omissão de setores do Exército. Resta saber se o futuro da nova extrema direita será melhor que o do fascismo tropicalizado dos anos 1930, que entrou em declínio após a Segunda Guerra.

Alguns fenômenos políticos, sobretudo quando inusuais e estrepitosos, ao ocorrerem tornam irresistíveis os exercícios comparativos. É quando a leitura dos fatos os coloca em perspectiva, permitindo identificar singularidades, de um lado, e constantes históricas, de outro.

O 8 de janeiro, que despertou estupor no mundo, por certo demandará um olhar assim quando as investigações descortinarem toda a sua tessitura, incluindo, além dos vândalos, a autoria intelectual e os apoiadores explícitos e ocultos e esclarecendo como se dava a relação entre os quartéis e os acampados à sua frente.

Nós não temos, que eu saiba, um estudo comparativo suficientemente amplo desses processos de tomada violenta do poder na América Latina, embora o continente seja pródigo deles. Nem mesmo das revoluções havidas —do que, aliás, já reclamava Joaquim Nabuco (1849-1910) em sua releitura do fim trágico do presidente chileno José Manuel Balmaceda— e muito menos no Brasil, onde, desde a Independência, tivemos 13 golpes de Estado, exitosos ou não.

Eles se distinguem dos movimentos separatistas, como a Confederação do Equador (1824) ou a Guerra dos Farrapos (1835-1845). Diferem também de outros conflitos como a Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932) e mais ainda dos movimentos revoltosos tenentistas, incluída a Coluna Prestes (1924).

Golpes ou autogolpes implicam o assalto direto aos Poderes e objetivam a ruptura constitucional. Foram de iniciativa palaciana os de 1823 (dissolução da Assembleia Constituinte), 1840 (Golpe da Maioridade), 1891 (Deodoro fecha o Congresso) e 1937 (Estado Novo). O de Marechal Deodoro durou apenas 20 dias.

Todos os demais tiveram como objetivo a destituição ou o impedimento dos então chefes de Estado. Começando pela implantação da República (1889), depois pela Revolução de 1930, que culminou com o golpe militar que depôs Washington Luiz, pela Intentona Comunista (1935), pelo Levante integralista de 1938, pela deposição de Vargas (1945), pelo chamado contragolpe legalista do marechal Lott (1955), pela adoção forçada do parlamentarismo (1961), pelo golpe militar de 1964, que inaugurou a Quinta República, e pelo assalto às sedes dos três Poderes em janeiro de 2023. Golpes e autogolpes vitoriosos foram 70% deles.

Houve movimentos com menor ou maior participação popular, mas a constante irrefutável é a participação de “cidadãos armados”, os militares. Nunca foi minimamente plausível subverter o regime sem a sua participação, e o tamanho da adesão dos mesmos sempre foi a principal variável explicativa do êxito ou do fracasso dessas iniciativas.

A breve compilação acima dos eventos anteriores de igual natureza nos permite identificar um único episódio que guarda alguma similaridade com o golpe frustrado do início deste ano: o putsch da AIB (Ação Integralista Brasileira), o fascismo tropicalizado, em 11 de maio de 1938, uma semana após o fechamento da entidade pelo governo Vargas.

Os que atacaram, 85 anos atrás, o Palácio Guanabara, residência presidencial à época, também o encontraram desguarnecido, tal como se deu em Brasília nos prédios do Planalto, Congresso e Supremo, quando horas foram decorridas até que os responsáveis pela segurança enfrentassem os invasores.

Como lembra Lira Neto, no golpe integralista eram poucas dezenas de atiradores, mas não se via inicialmente qualquer mobilização dos milhares de militares acantonados no Rio de Janeiro para sufocar o levante, que era enfrentado na madrugada pelos funcionários do Palácio, alguns militares leais ao presidente e por Vargas e seus familiares empunhando armas.

O tenente Júlio Barbosa, oficial do dia, facilitou a entrada, por um portão lateral, dos invasores chefiados pelo também tenente Severo Fournier. Ele também restringiu propositalmente a munição da tropa incumbida da guarda, que terminou se rendendo aos golpistas.

Mesmo comunicada, a polícia demoraria horas para enviar reforços e foram visíveis as omissões de setores do Exército e da Marinha, cujo prédio também foi ocupado. Os atacantes só foram rechaçados após a chegada decisiva do general Dutra, então ministro da Guerra, cuja presença sinalizou o apoio da cúpula das Forças Armadas ao presidente. A lógica da operação estava desfeita.

O objetivo era eliminar fisicamente o presidente e, no vácuo político, abrir caminho para os militares, entre os quais havia um sem número de simpatizantes do integralismo, tomarem o poder. Suspeitos de envolvimento ou simpatia foram, entre outros, o almirante Guilhem, o general Góis Monteiro, admirador confesso de Hitler, e Filinto Müller, o chefe de polícia famoso pela repressão sanguinária. Mas Vargas, ditador dependente dos aliados militares, não quis esclarecer a participação deles. Anos depois seria deposto por Góis.

Quanto à autoria intelectual, esse papel coube a Plínio Salgado, depois preso e exilado em Portugal. Líder do movimento que chegou a contar com 1,5 milhão de adeptos por todo o Brasil, ele se sentiu traído por Getúlio, que mandara fechar as sedes da AIB, colocando-a na ilegalidade, após ter contado com seu apoio no combate aos comunistas e na criação do Estado Novo. Ou seja, o golpe de 1938 foi urdido por um movimento político, o integralismo, com apoio na sociedade civil e ramificações incontroversas nas Forças Armadas e na polícia do Rio de Janeiro.

A lógica da tentativa de golpe de 2023, mesmo sem tiroteios como seu congênere da Terceira República, foi basicamente a mesma. Visava surpreender e desarticular o sistema político, promovendo um cenário caótico nas sedes dos três Poderes, o qual, transmitido pelas redes sociais e repercutindo nas TVs, obrigaria, no entendimento dos seus idealizadores, a “intervenção militar” reclamada desde a vitória do novo presidente pelos acampamentos à frente dos quartéis, com milhares de radicais que imaginavam ter suas teses acolhidas, interpretando dessa forma a leniência dos chefes militares que admitiram essas concentrações, não o bastante suas faixas e redes sociais afrontarem a Constituição.

Lembrando que a ideia de intervenção no TSE, no último mês do mandato de Bolsonaro, na prática um autogolpe como a famosa minuta do decreto evidenciou, provavelmente foi descartada por insuficiência de adesão das altas patentes.

Os participantes de agora foram extraídos de um movimento antissistema de extrema direita que, ao invadir e destruir os prédios que simbolizam a República, removeram as últimas dúvidas sobre o caráter regressivo de sua liderança, movida pela nostalgia do regime militar de 1964.

O bolsonarismo, no segundo turno do ano passado, aproximou-se da metade da votação presidencial válida, e o partido que o abrigou (PL) logrou eleger a maior bancada da Câmara Federal. Tal como a antiga AIB, tem conexões internacionais —é o capítulo local da nova direita mundial— e se mostrou bem mais enraizado que seu predecessor da primeira metade do século 20.

Em expansão no mundo, o futuro dessa vertente não parece comprometido, como se deu com as ideias fascistas que, após empolgarem porções significativas do Ocidente, entraram em derrocada juntamente com o Eixo na Segunda Guerra. Nadando nessa raia, o integralismo brasileiro declinaria durante o conflito e nunca se recuperou da mancha de 1938. Quando sobreveio a redemocratização, tampouco conseguiria reaver a força original.

Ao disputar finalmente a Presidência, em 1955, Plínio Salgado só alcançou 8,3% dos votos. Somente na região Sul chegou aos dois dígitos (14,2%). Em toda a República do Pós-Guerra, a direita seria representada pela UDN, que terminaria encapsulando o populista Jânio Quadros para finalmente ganhar a eleição de 1960. Plínio continuaria sua caminhada com horizonte mais modesto. Seria deputado por São Paulo, apoiador do golpe militar de 1964 e depois vice-líder da Arena na Câmara dos Deputados.

Não é fácil divisar o futuro do bolsonarismo. Vai depender do aprofundamento das investigações e da eventual responsabilização e inelegibilidade de Bolsonaro, sobre o qual pesam suspeitas de participação no possível autogolpe de dezembro e no golpe de janeiro. Também dependerá do posicionamento que seus líderes —o ex-presidente e parlamentares— venham a adotar.

Para qualquer evento futuro, sempre haverá no mínimo duas rotas possíveis para os personagens, como Churchill nos mostrou escrevendo o perfil de Hitler em 1935.

Prevalecerá a retórica antissistema, baseada no mito da fraude nas urnas? Ou essa página será virada, como aliás já fizeram os governadores desse campo, e o enfrentamento se dará como oposição “normal”?

Na primeira hipótese, o movimento, uma vez inviabilizado legalmente o líder, apresentaria uma candidatura do clã. Perderia certamente densidade eleitoral, deixando de ser competidor efetivo pelo poder nacional.

Já na segunda opção, novos nomes disputariam o espólio bolsonarista, distanciando-se do fantasma do 8 de Janeiro, embora sempre equilibrando-se para contar com as bênçãos do ex-presidente e tentar, assim, manter a hegemonia à direita no espectro ideológico.

Barbárie em Brasília não é obra só de bolsonaristas radicais, por Bernardo Carvalho

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Tentativa de se desvincular de responsabilidades une eleitores não envolvidos no ataque e criminosos

Bernardo Carvalho, Romancista, autor de “Nove Noites” e “O Último Gozo do Mundo”.

Folha de São Paulo, 29/01/2023

Nos dias seguintes à invasão da praça dos Três Poderes pela turba bolsonarista, 93% dos brasileiros se diziam contrários aos atos de vandalismo, segundo pesquisa do Datafolha, mas apenas 55% atribuíram alguma responsabilidade ao ex-presidente, um pouco mais dos que não votaram nele.

Desde a invasão, governo, autoridades e jornalistas tentaram associá-la a uma minoria criminosa, ignorante e insana. O momento é de emergência, de reunir forças para tentar governar (“pacificar”) um país onde quase metade dos eleitores votou em Bolsonaro mesmo depois de quatro anos de um governo cuja racionalidade não diferia em essência da turba que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes.

Que racionalidade é essa?

O ex-presidente tem histórico de incendiário. Como militar, planejou plantar bombas para aumentar seu salário. Como deputado, fez a apologia da tortura no Parlamento. Como presidente, tomou todas as medidas a seu alcance para incendiar o patrimônio público, extinguindo multas, desregulando e desmontando órgãos de controle, corrompendo com prendas diversas as forças de segurança, pondo-se a serviço dos delírios inconstitucionais de alguns de seus membros. Também fez de tudo para armar a população contra si mesma, para implodir e desestabilizar as instituições.

Daí o aparente absurdo, embora essa sempre tenha sido a tática bolsonarista, de tentar desvinculá-lo dos atos do dia 8, chegando ao cúmulo de atribuir a supostos esquerdistas infiltrados a responsabilidade do crime. depois de tê-lo defendido e incentivado de maneiras mais ou menos dissimuladas ao longo dos anos.

Por razões opostas, analistas de diversos extratos também tentaram circunscrever a barbárie a uma minoria ignara e radical, como se ela nada dissesse dos eleitores de Bolsonaro não diretamente envolvidos nos atos.

Há, entretanto, um elemento da performance do dia 8 que acaba unindo os dois grupos (ativos e passivos) no próprio esforço de desvinculação. Quase tudo o que vimos da destruição do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF se deve a selfies orgulhosas e registros da cena do crime gravados pelos próprios criminosos. O que esperavam que ocorresse?

Nas selfies há uma cisão entre ato e responsabilidade. A conexão entre os dois só pode ocorrer pela lei. A queda no real, num segundo momento, a ressaca da alucinação bolsonarista, com as prisões, as investigações e os indiciamentos, fez com que os vídeos de repente começassem a desaparecer, apagados pelos próprios agentes que os gravaram para registrar suas ações antes “heroicas e patrióticas”.

Já ouvi gente em princípio civilizada dizer que votou em Bolsonaro pela segunda vez porque não tinha escolha, tapando o nariz, repetindo o mesmo mantra de 2018, como se não houvesse história, memória, experiência ou responsabilidade.

Tem a ver com o autoengano de um identitarismo ideológico, infantilizado e oportunista, para o qual a justiça é um estorvo: o culpado é sempre o outro. Ninguém assume nada nunca. Se tive de votar em Bolsonaro, foi culpa do “comunismo”.

Os que dizem ter tapado o nariz para votar em Bolsonaro também taparam o nariz para os criminosos do dia 8, mas como se fossem coisas diferentes, assegurando que o ex-presidente (assim como a parte da polícia e das Forças Armadas aparelhada e corrompida por e com ele) nada tem a ver com o crime. Se o ex-presidente tiver a ver com o crime, eles também terão. A conexão é insuportável. A responsabilidade associa “gente de bem e de Deus” a criminosos.

Pouco a pouco, vai se delineando o papel de militares no que culminou com os atos de vandalismo contra a República. Não haverá “pacificação” sem que os responsáveis assumam, sob a pena da lei, sua parte no horror. Mas também não dá para continuar a perpetrá-lo no conforto do lar, com a mão no nariz, dizendo que não tem nada a ver com isso, ou conspirando, à espera de uma nova oportunidade, atrás dos muros dos quartéis. A irresponsabilidade e a covardia são a base do modo de agir bolsonarista.

O governo Bolsonaro foi um longo ato de incitação contra a República, e não podia ser outra a sua consequência. Bolsonaro tomou o partido do crime contra os bens públicos. Grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais. Chefes da milícia.

Desvincular-se dele significa uma condenação enfática não apenas do personagem mas do que ele representa. Significa fazer as conexões, assumir as responsabilidades. Ou ficaremos à espera do próximo ataque, para sempre à espera dos bárbaros, quando faz tempo que eles estão entre nós.

Lula precisa derrotar o ódio e usar sua autoridade sem abusar do poder, por Betty Milan

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Petista se opõe a todas as formas de fanatismo e pode reintegrar o Brasil no mundo

Betty Milan, Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

Folha de São Paulo, 28/01/2023.

O que já mudou com as eleições? Tivemos um presidente que se autoengrandecia a ponto de se declarar imune ao coronavírus e merecedor da medalha do mérito científico. Um narcisismo desmesurado pelo qual o país pagou com a morte de milhares de pessoas que poderiam não ter morrido. Disso ninguém mais duvida. Se o lockdown tivesse sido sério e a vacina aplicada em tempo hábil, o número de mortes seria significativamente menor.

O narcisismo é mortífero como mostra o mito. De tão belo e vaidoso, Narciso desprezou todas as pretendentes e se apaixonou pelo próprio reflexo. Não podendo deixar de se olhar, não podia sair da beira da fonte onde via sua imagem refletida e, de tão fascinado por si mesmo, morreu de fome e sede. Tornou-se o símbolo da falta de empatia pelos outros e do individualismo.

Como Narciso, o ex-presidente só existia pela e para a sua imagem. O lábio inferior tremia sempre que precisava fazer um discurso.

De nada ele tinha mais medo do que da tribuna para qual, dada sua limitada capacidade intelectual, não havia nascido. Como só a palavra permite justificar os próprios atos, só podia ser autoritário. Se valia da palavra para atacar as instituições ou fazer provocações e saiu de cena como incendiário-geral da República.

Na democracia, quem governa precisa se valer da sua autoridade sem abusar do poder que lhe é outorgado e, para tanto, tem que escutar. O que Lula está fazendo é isso. A exemplo, o seu discurso para os reitores das universidades. “Não pensem que o Lula vai escolher o reitor que ele gosta. Quem tem que gostar do reitor são os professores.”

Lula se vale da fala para se posicionar como quem respeita o desejo e o saber do outro. Por isso, diante do mesmo público, afirmou que a comunidade universitária, e não o presidente, sabe quem tem condições de administrar a universidade.

Como ele respeita o saber alheio, valoriza a escuta e a reunião com as diferentes corporações para ouvir queixas, cobranças, “se informar sobre o que falta e o que não falta”. Insiste na ideia de que será sempre possível divergir, “mas de forma civilizada porque democracia é isso”.

Faz questão de transmitir o que sabe.

Quer “derrotar” o ódio, as fake news, o fanatismo para que a sociedade brasileira possa voltar a sorrir, gostar de música, de Carnaval e de futebol, “gostar da gente ser humanista, a gente ser mais fraterno, mais solidário”.

Há circunstâncias em que o ódio precisa ser derrotado como fez Lula, ao demitir e exonerar rapidamente quem foi conivente com o vandalismo. Nas suas memórias sobre Auschwitz, Primo Levi escreveu que, contra um lobo furioso, a gente pode tudo: mentir, trair, matar.

Noutras circunstâncias, não se tratará de derrotar o ódio, e sim de vencê-lo, não instigando mais ódio, “contendo as pedradas” como disse sabiamente o ministro Luís Roberto Barroso para um jornalista, ao sair do STF vandalizado.

No que diz respeito às fake news, só uma nova regulamentação sobre a informação permitirá resolver esta prática que foi sistematicamente adotada pela KGB, onde quanto mais desinformação o funcionário produzia, mais subia na hierarquia da instituição. Putin foi o desinformador mor.

Quanto ao fanatismo, é necessário denunciar o seu discurso onde quer que ele se manifeste. O fanatismo religioso, durante a pandemia, foi tão responsável pela contaminação quanto o ex-presidente.

Segundo um dos bispos evangélicos, a preocupação com o novo vírus resultava de uma tática de Satanás para espalhar o medo. Queira ou não ainda estamos às voltas com esta e outras formas de fanatismo como o racismo, o machismo e o nacionalismo.

Lula se opõe a todas. Mostrou isso ao compor o seu ministério e anunciar um programa de governo que leva em conta a solidariedade internacional e pode reintegrar o país no mundo. Será uma glória se nós enfim pudermos deixar de viver isolados no mapa mundi do Brasil.

Homofobia é um elemento central para mobilizar paixões políticas, diz cientista político

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Luis Felipe Miguel, professor na UnB, afirma que a ideia de democracia política está em crise como resultado de uma ausência de democracia social

Tayguara Ribeiro e Priscila Camazano

Folha de São Paulo, 25/01/2023

A ideia de democracia está em crise. Causas? Uma das principais é a ausência de democracia social, ou dito de outra forma, a existência de desigualdades e a dificuldades no acesso a serviços essenciais.

Segundo essa análise de Luis Felipe Miguel, professor de ciência política da UnB (Universidade de Brasília), isso levou a conflagração nos últimos tempos pelo mundo afora porque os regimes democráticos passaram a cada vez menos responder às demandas da população.

Para ele, as pessoas se sentem ameaçadas porque os seus valores maiores estão sendo atacados.
“É um pânico moral, que não leva a reflexão. Ele é alimentado pelos preconceitos mais arraigados das pessoas. A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas.”

A partir da incapacidade dos governos de reduzir as desigualdades, cresce também o papel social das igrejas. E o poder político de alguns de seus representantes. Abalando, assim, o conceito de separação de religião e política.

“O mais grave é que essa entrada da religião perverte o debate público. Vimos no segundo turno um debate sobre coisas fantasiosas, como satanismo e quem é mais cristão. As questões centrais em termos de projeto de país não têm espaço porque há esse uso político da religião”, avalia.

Setores que têm discurso antissistêmico, como os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, afirma o professor, “ao mesmo tempo em que cooptam as pessoas, eles meio que blindam contra a realidade”. “Porque [esses indivíduos] estão inseridos em bolhas em que as pessoas repetem os maiores absurdos e não são confrontadas.”

O professor da UnB analisa que a direita tradicional tem parcela importante de responsabilidade no atual momento político. “Achou que colocar a extrema direita na rua seria útil para derrubar a presidente Dilma”, diz. “Mas o que aconteceu foi que a direita tradicional foi aniquilada no Brasil nas últimas eleições”.

No livro “Democracia na Periferia Capitalista: Impasses do Brasil”, o senhor faz uma análise sobre a democracia. Qual a relação entre a crise democrática e o momento atual do Brasil? O modelo de organização política que chamamos de democracia foi construído nos países da Europa.

Em um processo longo de compromisso entre as elites e a maioria da população.

Foi um sistema que permitiu que a maioria fosse ouvida de alguma maneira no processo de tomada de decisões, ou seja, amenizava a dominação social.

Mas isso foi entrando em crise nos últimos tempos pelo mundo afora, porque os regimes democráticos passaram a cada vez menos responder às demandas da população.

As pessoas foram se desencantando desse modelo. A democracia perdeu vitalidade, ou seja, as demandas populares deixaram de encontrar eco nas decisões do governo. Foi nesse espaço que os políticos com o discurso antissistêmico —o Bolsonaro é o maior exemplo no Brasil—, conseguiram ter sucesso.

Vemos no Brasil um exemplo muito radical de um processo que acontece em outros países do mundo, como nos Estados Unidos com o Trump, na Hungria e na Polônia. Agora, a Itália tem um governo que é tão radical quanto o brasileiro. Isso é um fenômeno generalizado.

A desigualdade social prejudica ou diminui o interesse pela democracia? Sem dúvida nenhuma, porque o que está no coração da democracia é a ideia de igualdade. Quando percebemos que as desigualdades não são enfrentadas, parece que ela não está funcionando.

Depois da Constituição de 1988, iniciativas para melhorar as desigualdades foram implantadas, mas grupos começaram a obstaculizar os avanços no Brasil. O maior exemplo disso é o teto dos gastos, uma emenda constitucional que proíbe o Estado brasileiro de adotar medidas de combate às desigualdades.

Nós votamos, mas tem certas coisas que mexem com a estrutura de desigualdade que já estão proibidas de antemão. Isso desencanta as pessoas. Daí chegou alguém com discurso de ‘sou contra tudo e contra todos’ e isso criou uma sedução.

Então estamos em um ciclo que se retroalimenta? Como sair? Isso não é fácil, porque ainda tem outros fatores.

Setores que têm discurso antissistêmico, ao mesmo tempo em que cooptam as pessoas, eles meio que se blindam contra a realidade. Porque [os indivíduos] estão inseridos em bolhas em que as pessoas repetem os maiores absurdos e não são confrontadas.

O que vemos no Brasil hoje é o efeito disso. Quer dizer, uma captura de uma parte significativa da população por uma mistificação política. Ninguém penetra naquilo. Não existe contraste com a realidade, nem critério de verdade.

É por isso o maior poderio da religião no sistema político? A religião está suprindo as demandas sociais? Sim. Na verdade, temos um recuo também desse ponto de vista.

A combinação entre religião e política leva ao acirramento dos conflitos políticos. Porque os valores religiosos estão a serviço das pessoas como intocáveis, ao passo que a política exige sempre o espaço de negociação. Essa combinação vai ser mobilizada porque é útil para os agentes políticos.

Nas comunidades mais pobres do Brasil, mas não só, as igrejas aparecem como aqueles espaços que dão esperança para as pessoas que não estão encontrando isso nos serviços públicos.

O mais grave é que essa entrada da religião perverte o debate público. Vimos neste segundo turno um debate sobre coisas fantasiosas, como satanismo e quem é mais cristão. As questões centrais em termos de projeto de país não têm espaço porque há esse uso político da religião.

As pessoas se sentem ameaçadas porque os seus valores maiores estão sendo atacados. É um pânico moral, que não leva a reflexão. Ele é alimentado pelos preconceitos mais arraigados das pessoas.

A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas.
Isso mostra a meu ver que nesses anos de democracia só arranhamos a casca dos preconceitos e ressentimentos presentes na sociedade brasileira.

As fake news que são lançadas remetem para os mesmos pontos. Um dia é o kit gay nas escolas, outro dia a mamadeira de piroca, outro dia o banheiro unissex. Estamos vendo uma mobilização deliberada da homofobia que está presente na mentalidade de boa parte da população brasileira misturada com o discurso religioso.

Existe dificuldade para as pessoas entenderem essa discussão sobre democracia nas eleições? Para começar, existe uma dificuldade de compreender o funcionamento da democracia. Temos o voto e o mais votado manda em nome da maioria. Isso é democracia, mas é só um aspecto dela.

As pessoas precisam ter condições de pensar com as suas próprias cabeças e formular suas preferências políticas na democracia. Por isso, precisamos de um debate livre e plural.

É preciso ter mecanismos que impeçam o abuso de poder por parte de quem foi eleito. Por isso, temos instituições liberais, divisão dos poderes e controles mútuos.

O que vemos no governo [Bolsonaro] é um ataque contra tudo isso. Existe um ataque contra a separação de poderes e uma tentativa de dobrar o Legislativo por meio da corrupção.

A liberdade de dissidência, ou seja, de fazer oposição, foi ameaçada por um governo que estimula apoiadores à violência política.

Quais fatores contribuíram para a ascensão da nova extrema direita brasileira? Há um elemento internacional que tem a ver com as frustrações com a democracia liberal. Uma parte da população está ressentida com os avanços, ainda que insuficientes, das lutas antirracistas, feministas e assim por diante. Não é à toa que a principal base dessa extrema direita é formada por homens brancos.

No caso brasileiro, tem uma coisa que é muito importante e não se pode deixar de lado. A direita tradicional achou que colocar a extrema direita na rua seria útil para derrubar a presidente Dilma [em 2016]. A ideia era que depois esse pessoal fosse recolhido e os conservadores de sempre ficariam com o prêmio, mas o que aconteceu foi que a direita tradicional foi aniquilada no Brasil nas últimas eleições.

Na conclusão do livro “Democracia na Periferia Capitalista: Impasses do Brasil”, o senhor fala sobre possíveis cenários para o Brasil após as eleições. Quais são eles? Lula vai enfrentar uma série de desafios. Mas eu quero focar em duas questões principais.

Uma é como lidar com a força da extrema direita. Eu penso que a estabilidade do novo governo e a possibilidade de efetiva reconstrução democrática dependem da responsabilização de Bolsonaro e de seus próximos pelos muitos crimes cometidos. Não é admissível deixar impune o golpismo explícito, a corrupção eleitoral, o banditismo institucional da Polícia Rodoviária.

A segunda questão é a relação de Lula com seus muitos aliados conservadores. Há uma pressão forte para que, restabelecendo a fachada da vigência das regras democráticas, o governo se mantenha impermeável às demandas populares.

Mas se Lula não for capaz de responder às premências dos mais pobres e de conceder novamente aos trabalhadores uma voz no debate público, ele terá fracassado na missão que ele mesmo sempre atribuiu a si mesmo como líder político.

É um caminho estreito, entre, de um lado, a reaglutinação das forças que deram o golpe de 2016, para impedir Lula de governar com ou sem impeachment, e, de outro, uma normalização dos retrocessos sociais que representa a traição das promessas da democracia. Nenhum político brasileiro é tão credenciado quanto Lula para trilhar esse caminho, mas nem por isso a tarefa é fácil ou o resultado, garantido.

RAIO-X
Luis Felipe Miguel, 55
É professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros, do livro “Democracia na Periferia Capitalista: Impasses do Brasil” (Autêntica, 2022).

O que o Brasil quer de seus militares? por Ricardo Abramovay

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Ricardo Abramovay

A Terra è Redonda – 23/01/2023

A elite de nossa corporação armada fez como se a queda do Muro de Berlim nada significasse em sua estratégia de atuação e para os valores básicos que a orientam

O exercício reflexivo e autorreflexivo necessário à superação da tentativa de golpe de 8 de janeiro passa por uma pergunta crucial: o que o Brasil quer de seus militares? Até aqui, e desde 1985, o país fortaleceu sua democracia – não apenas sem acertar as contas com os crimes cometidos por representantes do Estado durante a ditadura, mas, sobretudo, sem jamais entrar no mérito daquilo que os mais expressivos comandos militares pensam, como se as bases político-culturais da formação e da atuação dos militares fossem assunto corporativo interno. O problema é que essa autonomia pesa como espada de Dâmocles sobre a sociedade. [Segundo a lenda grega, Dâmocles era um conselheiro que cobiçava o lugar do rei – que um dia o cedeu. Dâmocles observou então que sobre o assento real pairava permanentemente uma espada.]

A questão central se inverte e recebe formulação ameaçadora: o que os militares querem do Brasil?

A pergunta é impertinente e absurda numa democracia, mas é radicalmente legitimada pelos comandos militares. Sua resposta não se limita à ideia de que todos queremos um país soberano, próspero, cada vez menos desigual e democrático. Inúmeros seminários, declarações e lives realizadas durante a pandemia mostram que os comandos militares mais próximos ao Palácio do Planalto difundiram uma visão alucinada de mundo, que as redes sociais amplificaram e que não seria tão grave se não viesse da burocracia armada que tem como função constitucional defender o país.

Mas defender o país contra o quê? Por incrível que pareça, a mais importante inspiração do comando militar que esteve junto ao Palácio do Planalto nos últimos anos para responder a esta pergunta é um conjunto de trabalhos do general Golbery do Couto e Silva, publicados nos anos 1950, cuja ideia básica é que, no mundo posterior à Segunda Guerra Mundial, as fronteiras físicas foram substituídas por fronteiras ideológicas. Por essa concepção, a missão da burocracia armada não é tanto proteger o país de invasões externas, mas sim de guardá-lo contra um inimigo interno que acabou se materializando, após o golpe de 1964, nas organizações de resistência à ditadura. Nessa narrativa, tortura, assassinatos, sequestros e outras formas de violência amplamente documentadas justificam-se pela missão cívica de impedir a vitória do comunismo.

Grandes corporações só perduram no tempo se forem capazes de perceber as mudanças nos ambientes em que atuam. Mas a elite de nossa corporação armada fez como se a queda do Muro de Berlim nada significasse em sua estratégia de atuação e para os valores básicos que a orientam.

O inimigo continua sendo interno. O delírio de que paira sobre o país uma ameaça comunista no início da terceira década do século XXI não é um puro produto das redes sociais. É uma ideia que a direção da burocracia militar não cessou de propagar, seja quando insistia em comemorar o golpe de 1964 seja em declarações cotidianas. Os acampamentos em frente aos quartéis foram admitidos por fortalecerem essa fantasia com a qual a elite militar brasileira, ao menos a que esteve junto ao Palácio do Planalto nos últimos anos, se identifica.

E isso não foi objeto de debate público em que essas fantasias pudessem receber algum teste de realidade. Ao contrário, formou-se, por meio das redes sociais, o que a professora Zeynep Tufekci, da Universidade Columbia, chama de “esfera pública oculta”, em que a visão conspirativa de mundo se espalha, mas sob a forma de bolhas de pertencimento, o que impede que ela se submeta a qualquer forma sensata de verificação empírica e, muito menos, de discussão pública e aberta.

Mas, nos dias de hoje, o maior inimigo interno, além desse fantasma comunista, é a sustentabilidade. Quem o afirma é o general, e agora senador, Hamilton Mourão. Em Webinar realizado por ocasião dos duzentos anos da independência, no dia 25 de agosto de 2021, no Instituto General Villas Bôas, ele explicava: “neste século XXI, uma das maiores questões que ameaçam a soberania é a sustentabilidade. Dessa forma, a questão do desenvolvimento da Amazônia, onde diversos atores não estatais limitam nossa soberania, é algo que tem que se abraçado pela nação como um todo”. Ao comunismo somam-se, como inimigos internos, os ativistas, os cientistas e os empreendedores que defendem a floresta e os povos que nela vivem.

Já o general Augusto Heleno, na audiência pública sobre o Fundo Clima, convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, no STF, pontificava, em 2020: “As razões do aquecimento são discutidas por cientistas famosos com teses antagônicas”.

Estes não são casos isolados: ainda em 2021, em conversa com o Instituto Defesa & Segurança, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva criticava os “governos submissos” que comprometeram a soberania nacional, particularmente em áreas de fronteira, por terem promovido a demarcação e assinado a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas”.

Estes desvarios estão fortemente relacionados às prioridades que o comando da burocracia militar estabeleceu, juntamente com o Palácio do Planalto e parte significativa do Parlamento, para a maior floresta tropical do mundo: legalizar o que o bom senso e a democracia tornaram ilegal (invadir territórios indígenas, fortalecer o garimpo, extrair madeira ilegalmente e grilar de terras públicas) e impedir o fortalecimento das organizações e das atividades ligadas ao desenvolvimento sustentável. Paralisar o Fundo Amazônia e denunciar o multilateralismo democrático são expressões desse desatino que fez do Brasil um pária global.

É claro que as pessoas têm o direito de acreditar no que quiserem. O que não é admissível é que as ideias e as bases político-culturais da formação e da atuação de um corpo burocrático tão importante e custoso sejam tratadas como um tema de interesse interno, inacessível e insensível ao debate democrático. O 8 de Janeiro não irá para o passado enquanto o Brasil não discutir ampla e abertamente os valores ético-normativos que norteiam a burocracia militar.

Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Instabilidades gerais

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Estamos iniciando mais um ano marcado por grandes incertezas e desafios crescentes na sociedade internacional, que geram instabilidades gerais, desequilíbrios emocionais e novas oportunidades. De um lado, percebemos o crescimento dos conflitos militares, com instabilidades sociais, degradações políticas, contestações sobre modelos de negócios e fortes transformações no mundo do trabalho. De outro lado, percebemos a degradação climática, alterações crescentes no meio ambiente, além de desequilíbrios existenciais, desajustes emocionais e, no limite, aumento da depressão, ansiedades e suicídios, gerando um verdadeiro caos na saúde pública.

Neste cenário, percebemos as movimentações militares que podem gerar constrangimentos para a sociedade internacional, onde as nações estão impulsionando os investimentos bélicos, despejando trilhões de dólares para aumentar a produção de armas e tecnologias militares, gerando medos e preocupações sobre conflitos nucleares, cujas repercussões armamentistas são incertas, destruidoras e degradantes.

Destacando o incremento das demissões de trabalhadores em grandes conglomerados econômicos e produtivos, todos os dias recebemos, nos noticiários especializados, informações de empresas de tecnologia, bancos, indústrias e grandes varejistas que estão demitindo grande contingente de seu quadro funcional. Neste cenário, percebemos que o ambiente de fortes investimentos destes conglomerados está chegando ao final, com o incremento dos juros e a diminuição da liquidez global, estes negócios estão buscando investimentos em renda fixa, risco baixo e, ao mesmo tempo, os governos que, anteriormente aumentavam os investimentos nos momentos de incertezas e instabilidades, foram fragilizados financeiramente depois dos gastos elevados da pandemia. Com isso, suas dívidas cresceram e seus riscos de insolvência aumentaram, levando-os a reduzirem suas exposições e postergando os investimentos produtivos, resultado imediato, sem investimentos públicos e um setor privado endividado, a recuperação econômica tende a demorar mais e os grandes perdedores são os setores mais fragilizados da sociedade, gerando instabilidades, incertezas sociais e degradação política.

O ambiente internacional se caracteriza por grandes instabilidades e fortes volatilidades, a escalada de conflitos militares e as preocupações crescentes com guerras nucleares, o aumento da inflação, o incremento da inadimplência, a compressão dos mercados internos, taxas de juros em ascensão, aumento nos conflitos comerciais e o protecionismo entre nações, instabilidades dos preços dos alimentos e da energia, tudo isso contribuem para as incertezas da economia mundial, criando um clima adverso e fortemente negativo, que contribuem para postergar a recuperação da economia internacional e acaba criando um século de instabilidades gerais e fortes preocupações sobre os rumos das nações, com impactos negativos para os indivíduos, alterando constantemente os modelos de negócios, levando todos os agentes econômicos e políticos a buscarem um caminho seguro e consistente numa travessia fortemente tortuosa, marcadas por medos, incertezas e constrangimentos crescentes.

Neste cenário centrado em fortes volatilidades, a sociedade brasileira sente as grandes inquietações que restringem as estratégias econômicas e limitam a recuperação econômica, postergando medidas estruturais fundamentais para que o país encontre o crescimento econômico sustentável, desta forma, percebemos que a economia nacional caminha a passos lentos, sem investimentos produtivos, sem perspectivas positivas e convivendo com instabilidades cotidianas, com conflitos políticos, desorganização institucional e confrontos generalizados. Enquanto as outras nações buscam a construção de novos horizontes de desenvolvimento econômico, refundando suas estruturas industriais, adotando políticas urgentes para reduzirmos as dependências externas e o aumento de sua autonomia.

Neste momento de instabilidades é imprescindível o surgimento de lideranças conscientes, visionárias e capacitadas para reconstruir novos horizontes, contornar os desequilíbrios, fortalecendo setores produtivos, reorganizando as instituições, reconstruindo e aperfeiçoando políticas públicas exitosas, pacificando a nação, investindo em capital humano e construindo um verdadeiro projeto nacional, sem isso, não teremos desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Sobre teto e alicerces, por Graziella Magalhâes.

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Regra é rígida demais, crível de menos e pouco suscitou reformas

Graziella Magalhães, Doutora em teoria econômica (USP), é professora da Universidade Federal de Viçosa (MG)

Folha de São Paulo, 24/01/2023.

Leitora, leitor, gostaria de propor um exercício. Imagine que sua família gasta mais do que recebe todos os meses. Vocês costumam tomar empréstimos para arcar com as despesas. De repente, o seu banco torna-se menos disposto a conceder novos empréstimos ou, se o fizer, cobra juros maiores. Você decide que é o momento de arrumar as contas.

Sua família estabelece duas estratégias possíveis para organizar as finanças. A primeira consiste em reequilibrar despesas e receitas. Vocês começariam cortando itens supérfluos. Adeus, plataformas de streaming e jantares fora. Mas isso não é suficiente: seria necessário definir gastos prioritários e reorganizar a geração das receitas. Essa reestruturação não vai agradar a todos. Vocês precisariam de muita negociação familiar.

A segunda estratégia consiste em criar uma regra que limite o gasto. Vocês não precisariam fazer ajustes hoje, mas se comprometeriam a não aumentar o gasto por dez anos. A despesa só poderia crescer no mesmo ritmo da inflação. Você crê que essa regra forçaria a sua família a repensar os gastos, suscitando grandes reformas. Por outro lado, você sabe que alguns elementos da despesa crescerão mais rápido do que a inflação, dificultando o cumprimento da regra. Quanto maior a sua idade, mais caro será o plano de saúde; gastos educacionais tendem a encarecer, conforme a escolaridade das crianças.

A regra de limitação dos gastos tampouco prevê espaço para situações atípicas. Caso você descobrisse uma enfermidade, não seria possível arcar com despesas de saúde extra. Ainda que arranjasse um emprego melhor, que proporcionasse aumento permanente da renda, não seria possível colocar sua filha no curso de inglês.

Qual estratégia você escolheria?

A segunda é inspirada na regra fiscal do teto de gastos, adotada de modo a frear o crescimento da dívida pública. Dentre os países emergentes, o Brasil é um dos que possuem maior dívida, cerca de 75% do PIB. Nos últimos dez anos, a relação dívida PIB cresceu 36%.

Considerando que diversos países desenvolvidos possuem endividamento maior que o brasileiro, tais como Estados Unidos (126%), França (138%) e Japão (249%), por que a preocupação com o nosso grau de endividamento?

Governos precisam ter credibilidade no que tange a capacidade de honrar com as suas dívidas.

Isso porque os investidores, ao escolherem quais ativos desejam comprar, analisam seu retorno e o seu risco. Se a possibilidade de calote aumenta, os investidores tornam-se menos dispostos a comprar títulos da dívida do país.

Apesar do alto grau de endividamento dos países acima, a incerteza a respeito de um possível calote não recai sobre eles. Os credores confiam na capacidade de pagamento desses países, ao contrário do que ocorre no Brasil. Por aqui, o cenário de rápido crescimento da dívida gera desconfiança entre investidores.

Eles passam a exigir juros cada vez maiores, o que tende a aumentar ainda mais a dívida e a pressionar os juros de toda economia, podendo gerar recessão. Em economia, expectativas e credibilidade são cruciais. Por isso, toda essa discussão em torno dos gastos públicos.

Passados seis anos da criação da regra fiscal que limita os gastos públicos, ao menos cinco manobras já foram realizadas para acomodar despesas fora do teto. Para muitos economistas, um dos papéis mais importantes do teto de gastos é sinalizar o compromisso do governo com o ajuste da trajetória da dívida.

A criação do teto induziria a realização de reformas estruturantes que seriam fundamentais para reequilibrar o Orçamento, como a administrativa e a tributária. O que se verificou na prática foi uma regra rígida demais, crível de menos e que pouco suscitou reformas.

A possibilidade de o teto ruir na atual gestão preocupa a muitos. A estes digo que políticas de teto, e não de alicerces, eventualmente desabam.